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ECONOMIA DOS CONFLITOS SOCIAIS

Joo Bernardo

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Primeira edio So Paulo: Cortez, 1991 Segunda edio So Paulo: Expresso Popular, 2009 Esta verso em pdf tem alteraes mnimas relativamente segunda edio

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ndicePrefcio (da primeira edio), por Maurcio Tragtenberg 5 Notas para a leitura de Economia dos Conflitos Sociais (da segunda edio), por Ricardo Antunes 9 Prefcio primeira edio 19 1. Mais-valia 22 1.1. A mais-valia como capacidade de ao 22 1.2. Kant: o eu-em-relao como ao intelectual 27 1.3. Fichte: a ao intelectual do ns como criao da realidade 42 1.4. Schelling: a contradio como ao para o divino 47 1.5. Jacobi: a vontade como ao extrafilosfica a f 53 1.6. Marx: a ao como prxis 58 1.7. A contradio como luta de classes 69 2. Mais-valia relativa e mais-valia absoluta 73 2.1. Mais-valia relativa: 1) a reproduo da fora de trabalho 73 2.2. Mais-valia relativa: 2) a produo de fora de trabalho 90 2.3 Mais-valia absoluta 113 2.4. Articulao entre a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta 124 2.5. Taxa de lucro 149 2.6. Crises 157 3. Integrao econmica 170 3.1. Condies Gerais de Produo e Unidades de Produo Particularizadas 170 3.2. Estado Restrito e Estado Amplo 176 3.3. Trabalho produtivo 198 3.4. Trabalho improdutivo: os capitalistas como produto 207 3.5. Classe burguesa e classe dos gestores 218 4. Repartio da mais-valia 235 4.1. Concorrncia na produo 235 4.2. Desigualdade na repartio da mais valia 245 5. Dinheiro 252 5.1. Funo do dinheiro 252 5.2. Tipos de dinheiro 262

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5.3. Operaes do dinheiro 283 6. Reproduo em escala ampliada do capital 302 6.1. Reproduo extensiva do capital 302 6.2. Reproduo intensiva do capital 319 7. Economia dos processos revolucionrios 327 7.1. Marxismo ortodoxo e marxismo heterodoxo 327 7.2. Relaes sociais novas 334 7.3. Desenvolvimento das relaes sociais novas 351 7.4. Colapso das relaes sociais novas 358 7.5. Ciclos longos da mais-valia relativa 369 Nota sobre a ausncia de uma bibliografia 390 Posfcio segunda edio 393

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Prefcio (da primeira edio)por Maurcio Tragtenberg

1 Na Economia dos Conflitos Sociais, Joo Bernardo mostra claramente que o modelo da mais-valia emerge da luta de classes como modelo aberto que se baseia na fora de trabalho capaz de ao e na luta de classes como forma estrutural desta ao contraditria. Contrariamente a isso, as teorias econmicas legitimadoras do capitalismo apelam para o conceito de equilbro econmico. No processo da luta de classes, o capital tanto emprega a represso quanto uma poltica de ceder limitadamente s reivindicaes dos trabalhadores, como forma de se antecipar a futuros conflitos. A burguesia tanto recorre explorao da mais-valia absoluta, quanto mantm uma ditadura autoritria que fecha os sindicatos impedindo o surgimento de profissionais da negociao, prende trabalhadores e fecha os canais polticos de participao social. Como mostra o autor, essa no a nica tcnica de manuteno da dominao e da explorao. A burguesia pode recorrer a mecanismos participativos, cedendo em parte s reivindicaes operrias, porm antecipando-se a elas mediante o aumento da explorao do trabalho atravs da mais-valia relativa. O Estado Restrito participaria do esquema de explorao da mais-valia absoluta e o Estado Amplo, segundo Joo Bernardo, concomitante explorao da mais-valia relativa. Sob o ttulo marxismo ortodoxo e marxismo heterodoxo discute ele o marxismo que centra sua anlise no desenvolvimento das foras produtivas e o marxismo que centra sua anlise nas relaes sociais. O marxismo das foras produtivas partia do privilgio concedido por Marx ao mercado, onde s a o produto adquiriria carter social, surgindo a articulao capitalismo, mercado concorrencial e arbitrariedade econmica; ao mesmo tempo Marx valorizava o planejamento existente no interior das fbricas, pelo que haveria a desorganizao do mercado em oposio organizao fabril, sendo esta a porta de entrada para o socialismo. O problema que o desenvolvimento das foras produtivas sob o capitalismo e suas formas de organizao no obedecem a princpios de neutralidade tcnica, mas sim, 5

explorao da mais-valia. Cada modo de produo produz sua tecnologia. Atrs desta tese, do desenvolvimento das foras produtivas, atuou uma classe de gestores da produo em que o marxismo das foras produtivas tornou-se uma ideologia de reorganizao do capitalismo. 2 Num momento de contra-ofensiva neoliberal vinculada a legitimar a hegemonia capitalista, sua obra constitui leitura obrigatria de todos aqueles para quem antes dos fatos existem argumentos: os fatos no falam por si mesmos. A Economia dos Conflitos Sociais tem o mesmo valor para a anlise marxista que a Enciclopdia das Cincias Filosficas de Hegel teve para o idealismo alemo do sculo XIX. A Economia dos Conflitos Sociais concentra uma suma metodolgica em que, atravs da anlise do universo de discurso de pensadores como Kant, Fichte, Schelling e Jacobi, o autor estuda a mais-valia: como capacidade de ao a partir de Kant, que v o mundo centrado no eu-em-relao, como ao intelectual, em Fichte, no qual a ao intelectual do ns fundante da criao da realidade; em Schelling, em que a contradio tem como vetor o divino, e finalmente em Jacobi, no qual a vontade como ao extrafilosfica pela f funda o real. Neste contexto, o autor situa a importncia de Marx como criador da ao entendida como prxis, base de uma teoria da ao radical e inovadora. Mostra como em Marx a ao no era pensada enquanto um processo intelectual, mas sim uma prxis concomitantemente material e social. o carcter material da prtica que leva a pens-la como social. Sob o capitalismo, cada processo de produo diz respeito aos trabalhadores enquanto coletivo, pois ele no pode ser isolado dos demais e os produtos que resultam de um processo de trabalho s existem como capital enquanto vivificados pelos processos em seqncia. Da o carter social da prtica dos trabalhadores constituir um contnuo no tempo e abranger a totalidade dos trabalhadores, enquanto fora coletiva global, embora diversificada. Por isso, segundo o autor, conceber a prtica como social num sistema em que existe uma pluralidade de processos de trabalho especficos e interdependentes implica num todo estruturado com mecanismos de causalidade complexos, em que o todo mais do que a mera justaposio das partes. Marx, segundo o autor, agregou virtualidades novas concepo hegeliana da alienao, transformando as teorias da ao numa teoria da prxis, atravs da reformulao da teoria da alienao e atribuindo centralidade capacidade de ao atravs da fora de trabalho. Para Marx, a alienao transcorre no universo criado pela mais-valia, na qual a explorao da mais-valia relativa converte a fora de trabalho em apndice do capital, fazendo 6

crescer a massa de capital ante os trabalhadores, agravando sua misria. Ressalta o autor no se tratar da misria absoluta e sim de uma definio relativa de misria social porque se define atravs da articulao do coletivo operrio que produz a mais-valia e a classe que dela se apropria, na forma camuflada de sobretrabalho, taxa de juros e renda da terra. Se para Marx a fora de trabalho se constitui numa medida bsica da formao do valor, somente ela produz e reproduz a vida social. Essa uma concepo vinculada ao modelo da mais-valia como um modelo de antagonismo social, que decorre da constatao da existncia de uma sociedade dividida em classes, com interesses diversificados, em que a razo histrica de uma das classes elegida como o nico elemento capaz de agir. a existncia da contradio que permeia o modelo da mais-valia, em que a ao da fora de trabalho institui a equivalncia, na qual o tempo de trabalho determina o valor da fora de trabalho como valor do output. Para Marx, nota o autor, a explorao no se constitui num roubo mas a regra geral da sociedade capitalista, em que na reciprocidade da equivalncia vigora tambm o modelo da explorao. O valor de uso da fora de trabalho para o autor , na sua capacidade de incorporao do tempo de trabalho, implanta o conflito pela defasagem entre os tempos de trabalho incorporados. A defasagem se d na medida em que, sob o capitalismo, os trabalhadores perdem o controle sobre o processo de trabalho e sobre o destino do que foi produzido. A contradio da mais-valia uma contradio interna, da qual resultam as classes sociais, definidas em funo desta contradio bsica. O capitalismo, considerando o alto custo social da represso direta, recorre a inovaes tecnolgicas para o aumento da produtividade, isto , da explorao do trabalho. Da a importncia da explorao da mais-valia relativa, que tem como complemento a emergncia de ideologias conciliatrias, de participacionismo, co-gesto, em que se afirma a vitria dos exploradores do trabalho. Emerge ento uma burocracia sindical, um sindicalismo de negociao, em que os capitalistas procuram antecipar os conflitos mediante concesses secundrias para resguardar o essencial: seu controle sobre os meios de produo, a tecnologia, a organizao do trabalho; elaboram doutrinas a respeito, para garantir a legitimidade patronal no processo capitalista. Isto faz com que o Estado Restrito, emergente no perodo da acumulao primitiva do capital, imediatamente repressivo, ceda lugar ao Estado Amplo, que desenvolve polticas sociais de integrao da mo-de-obra no sistema, acentuando a explorao da mais-valia relativa.

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A resposta operria a esse integracionismo, que se articula internacionalmente, tem sido a auto-organizao independente a partir do local de trabalho. Em contrapartida, permanece a contradio fundamental, que ope trabalhadores ao capital, medida que estes lutam contra o mesmo, em que o agente d passagem a um novo sistema econmico no so as foras produtivas, mas sero os trabalhadores em luta. Da Joo Bernardo definir a corrente que acentua o antagonismo acima como o marxismo das relaes de produo. Na economia revolucionria diferente da economia de submisso em que funciona a disciplinao do trabalhador pela mquina e organismos administrativos no interior da fbrica, aparece o trabalhador como sujeito coletivo num processo de luta. Por um processo coletivo de luta, o trabalhador rompe com a disciplina fabril criando estruturas horizontais, conselhos, comisses essas sim constituem o elemento revolucionrio, pois significam no ato a implantao de relaes comunistas entre seus membros. O comunismo no algo a atingir; decorre da auto-organizao da mo-de-obra atravs de estruturas horizontais que rompem com o verticalismo dominante nas unidades produtivas. a que se criam relaes sociais novas, incompatveis com a disciplina fabril tradicional e precursoras de relaes sociais comunistas, ou seja, da auto-organizao do trabalhador a partir da unidade produtiva superando o verticalismo, a hierarquia e a fragmentao que o capital procura eternizar no seu seio. Ao longo de suas pginas, encontrar o leitor problematizados o tema do capital, do Estado, da explorao da mais-valia relativa e da resposta operria ao capital.

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Notas para a leitura de Economia dos Conflitos Sociais (da segunda edio)por Ricardo Antunes

Economia dos Conflitos Sociais um livro para ser lido e estudado por todos aqueles que lutam contra o capitalismo e pela construo de um outro modo de produo e de vida que signifique uma ruptura frontal com o sistema destrutivo vigente. Seu ncleo central trata da anlise do modelo de produo da mais-valia e sua articulao direta e decisiva com a luta de classes, a confrontao entre capital e trabalho, que tanto visa, por um lado, a preservao do sistema de explorao como querem os capitalistas, quanto, em seu plo oposto, pelos trabalhadores que lutam por sua superao. Seria muito difcil fazer um resumo das principais teses de Joo Bernardo. Trata-se de um livro por excelncia polmico, da primeira ltima parte, provocativo, gerador de um conjunto de teses incomuns, especialmente dentro do marxismo, sendo um convite leitura para todos que querem entender pontos ainda obscuros que conformam a dominao do capital e que, por isso, no se tornaram prisioneiros do dogmatismo que trava a reflexo. Ele fora anteriormente publicado no Brasil pela Editora Cortez em 1991. Ganha agora nova edio pela Editora Expresso Popular. Joo Bernardo um autor portugus muito conhecido no Brasil, que tem uma vastssima obra intelectual. Nada acadmico, fez toda sua produo fora da universidade, inserindo-se na linhagem do marxismo heterodoxo, devedor, mas tambm crtico de Marx. No Brasil, talvez aquele que lhe seja mais prximo tenha sido Maurcio Tragtenberg, socilogo falecido precocemente em 1998, um incansvel crtico do poder e defensor dos trabalhadores em todas as situaes. Tragtenberg, que nos faz tanta falta nos dias de hoje, talvez tenha sido, se minha memria no falha, o primeiro e melhor apresentador de Joo Bernardo no Brasil. Economia dos Conflitos Sociais um livro de sntese de algumas das principais teses de

Dentre seus principais livros lembramos: Para uma Teoria do Modo de Produo Comunista (1975); Marx Crtico de Marx. Epistemologia, Classes Sociais e Tecnologia em O Capital, 3 vols. (1977); Capital, Sindicatos, Gestores (1987); Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Sculos V-XV, 3 vols. (1995, 1997, 2002); Transnacionalizao do Capital e Fragmentao dos Trabalhadores (2000); Labirintos do Fascismo (2003); Democracia Totalitria. Teoria e Prtica da Empresa Soberana (2004) e Capitalismo Sindical (em parceria com Luciano Pereira) (2008).

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Joo Bernardo. Uma vista pelo sumrio da obra suficiente para mostrar sua fora, abrangncia, coragem e ousadia: a mais-valia (absoluta e relativa), a luta de classes, a mais-valia como capacidade de ao e a crtica ao subjetivismo, Marx e a prxis social, a taxa de lucro, as crises, os ciclos, o Estado Restrito e Amplo, o trabalho produtivo e improdutivo, a burguesia e os gestores, as formas desiguais na repartio da mais-valia, o dinheiro, a reproduo ampliada do capital, o marxismo ortodoxo e heterodoxo, os processos revolucionrios e as novas relaes sociais. Tudo isso d uma idia ao leitor da complexidade e do tamanho da empreitada que vai realizar ao debruar-se sobre este livro. O livro principia com uma slida defesa da teoria da prxis social e uma crtica forte ao subjetivismo que recusa a fora material e social da vida real. Em suas palavras: Marx no se limitou [...] a conceber a fora de trabalho como capacidade de ao, mas remeteu toda a dinmica real ao exerccio dessa capacidade de trabalho. Foi no confronto com esta tese que pude estabelecer, como o fiz, o grande vazio na filosofia de Kant e nas dos seus contemporneos e herdeiros, qualquer deles incapaz de pensar uma prtica do homem sobre a realidade material exterior. Mas, ao resolver esse vazio, Marx procedeu a uma transformao profunda na concepo de ao, de conseqncias ideolgicas sem precedentes. [...] Marx passou a conceber a ao como prxis, ou seja, como uma prtica simultaneamente material e social. A ruptura de Marx e de Engels com a crtica dos jovens hegelianos consubstanciou-se nesta concepo da ao enquanto prxis. Seu ponto central, ento, comea com o modelo da mais-valia, solo estruturante da totalidade das aes sociais na produo capitalista. Isto porque, segundo o autor, no capitalismo, a disputa pelo tempo de trabalho a questo vital e decisiva e o tempo de trabalho incorporado na fora de trabalho sempre menor do que o tempo de trabalho que a fora de trabalho capaz de despender no processo de produo. Este diferencial, apropriado pelo capital, torna o modelo de produo da mais-valia o ponto nodal de toda a teoria que se pretenda crtica em relao ao capitalismo. E o modelo de produo da mais-valia , em si mesmo, o ncleo constituinte da luta de classes, uma vez que a explorao da fora de trabalho a regra geral de toda a sociedade capitalista. Contrariamente a toda mistificao que se desenvolveu nas ltimas dcadas, atravs de formulaes que teorizaram sobre a perda do sentido do trabalho e acerca da perda de importncia da teoria do valor e da mais-valia, este livro um antdoto poderoso contra esse conjunto de teses equivocadas que procuraram desconstruir no plano terico aquilo que

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decisivo no plano real. Joo Bernardo, ao contrrio, destaca o papel central da fora de trabalho e, conseqentemente, da teoria da mais-valia e seu corolrio, a luta de classes. Como a mais-valia uma relao social, ela expressa a polarizao crescente entre a fora de trabalho, de um lado, e o capital que se apropria dela, de outro. Num plo tem-se, ento, a fora de trabalho subordinada ao capital, sendo que o tempo de trabalho incorporado na fora de trabalho voltado para sua reproduo, atravs do consumo de bens materiais e servios que a remunerao recebida pelos trabalhadores lhes permite. No outro, tem-se a apropriao do produto pelo capital: o produto que a fora de trabalho incorpora, esse tempo de trabalho excedente pertence ao capital, e o assalariamento cria um crculo vicioso ao permitir que a fora de trabalho torne-se, alm de produtora, tambm consumidora. Desprovida da possibilidade de se formar e se reproduzir de modo independente e depossuda do controle do produto que ela prpria criou, a fora de trabalho encontra-se alijada do controle e da organizao do processo de produo. Uma vez que as classes sociais definem-se por seu papel central na produo da maisvalia, os capitalistas no se apropriam somente do resultado do trabalho, mas fundamentalmente do direito ao uso da fora de trabalho. Embora sejam os trabalhadores que executam os raciocnios e os gestos necessrios produo, [...] os capitalistas lhes retiram o controle sobre essa ao, integrando-a no processo produtivo em geral e subordinando-a aos seus requisitos. Aqui aflora o papel da gesto capitalista do processo de trabalho, outro tema que merece um tratamento original e mesmo pioneiro no livro: o campo a partir do qual incessantemente se renova o desapossamento da fora de trabalho nos dois plos da produo de mais-valia. S a fora de trabalho capaz de articular ambos esses plos, mas desprovida de qualquer controle sobre o processo dessa articulao este o mago da problemtica da mais-valia. Se, por um lado, essa subordinao e sujeio esto presentes na lgica da produo da mais-valia, os contra-movimentos do trabalho, suas formas de organizao, os boicotes e as sabotagens, as lutas de resistncia, greves, rebelies, so parte do que Joo Bernardo desenvolve como sendo a economia dos processos revolucionrios, quando a sujeio que comandada pelo capital atravs das formas diferenciadas da mais-valia absoluta e relativa contraditada pela rebeldia, contestao e confrontao. H uma contradio, no cerne da vida social, entre o que o autor denomina de economia da submisso e de economia da revoluo. 11

Tanto na mais-valia relativa quanto na mais-valia absoluta, diz o autor, o sobretrabalho apropriado pelo capitalista maior do que o trabalho necessrio para a reproduo do operrio. Na mais-valia relativa o aumento se verifica sem a ampliao dos limites da jornada e sem diminuio dos insumos e materiais (que o autor denomina inputs) incorporados na fora de trabalho, enquanto que na mais-valia absoluta o acrscimo se obtm ou atravs do aumento do tempo de trabalho, ou mediante a diminuio dos materiais incorporados na fora de trabalho, ou ainda por uma articulao destes dois processos. Por isso, na mais-valia absoluta, o aumento da explorao no traz aumento de produtividade, enquanto na mais-valia relativa o ganho de produtividade decisivo. Mas, dadas as diferenciaes nas formas da mais-valia (absoluta e relativa) estas lutas tm significados diferenciados. O autor explora, a partir da, a tese de que esses modos distintos de explorao so assimilados/incorporados/reprimidos pelo capital de modo tambm diferenciado e por isso pode aumentar ou diminuir a longevidade do sistema capitalista. Isto significa que, nas lutas dos trabalhadores que inicialmente no visam a abolio do sistema, mas somente a reduo da diferena entre os extremos do processo da mais-valia (dados pela produo e reproduo da fora de trabalho), manifestam-se duas formas predominantes de lutas: aquelas que procuram aumentar os insumos incorporados na fora de trabalho, ou aquelas outras que procuram reduzir o tempo de trabalho despendido no processo de produo. Estas duas modalidades de luta articulam-se e mesclam-se freqentemente quando, por exemplo, lutam por melhores condies de trabalho; mas, segundo o autor, distinguem-se na anlise porque do lugar a processos econmicos distintos. Por isso, para Joo Bernardo, as lutas sociais entre as classes so centrais para uma melhor compreenso do desenvolvimento do capitalismo, seus ritmos e dinmicas. Se, por um lado, ele analisa as formas diferenciadas de assimilao e/ou represso dessas lutas desencadeadas pela fora de trabalho contra o capital (desencadeadas no mbito ora da maisvalia relativa ora da mais-valia absoluta), por outro demonstra tambm que, como os modos de produo no so e nunca foram eternos, so as classes exploradoras em suas lutas sociais que fazem mudar os modos de produo, intensificando suas crises, gerando novos modos de produo. Em suas palavras: [...] ningum ignora que vrias vezes ao longo da histria do capitalismo enormes massas de trabalhadores colocaram de forma prtica e generalizada a questo da ruptura deste modo de produo e do aparecimento de um novo.

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Convivem, portanto, contraditoriamente, tanto a economia da submisso, quanto a economia da revoluo. E foi por causa dessa duplicidade contraditria que, segundo o autor, desenvolveu-se no marxismo ao longo de vrias dcadas em verdade ao longo de todo o sculo XX, prolongando-se para o XXI duas conhecidas correntes distintas e mesmo antagnicas: o marxismo das foras produtivas e o marxismo das relaes de produo. E aqui novamente Joo Bernardo toma clara posio pela segunda linhagem. Vamos, ento, apresent-las de modo resumido. Comecemos pela primeira tese. O marxismo das foras produtivas sustenta-se nas formulaes que afirmam que aquilo que de mais especfico o capitalismo apresentaria foi assimilado ao mercado livreconcorrencial, e o sistema de organizao das empresas, as tcnicas de gesto, a disciplina da fora de trabalho, a maquinaria, embora nascidos e criados no capitalismo, fundamentariam a sua ultrapassagem e conteriam em germe as caractersticas do futuro modo de produo. [...] Deste tipo de teses resulta o mito da inocncia da mquina. A tecnologia poderia ser um lugar de lutas sociais, mas sem que ela mesma fosse elemento constitutivo das lutas. Essa leitura do marxismo seria, ento, responsvel em ltima instncia pela excluso da questo da mais-valia, uma vez que no faz a crtica aprofundada dos mecanismos causadores da extrao do valor, da produo da mais-valia e dos mecanismos de funcionamento da explorao do trabalho. Partilham das teses que defendem a neutralidade da tcnica e o carter central do desenvolvimento das foras produtivas como o elemento fundamental para a construo do socialismo, desconsiderando que tanto a tcnica quanto o conjunto das foras produtivas so partes constitutivas do sistema capitalista, expresso material e direta das relaes sociais do capital. Nas palavras de Joo Bernardo as tcnicas de gesto, os tipos de disciplina no trabalho, a maquinaria, nas suas sucessivas remodelaes, tm como objetivo aumentar o tempo de sobretrabalho e reduzir o do trabalho necessrio. Estas foras produtivas no so neutras, porque constituem a prpria forma material e social como o processo de produo ocorre enquanto produo de mais-valia e como dessa mais-valia os trabalhadores so despossudos. E, lembra ainda o autor, nenhum modo de produo que nasceu em ruptura com o anterior preservou o sistema de foras produtivas existentes no modo de produo anterior. Aqui o livro faz aflorar com fora a sua coerncia em relao tese central que defende:

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se o marxismo das foras produtivas reduz a significao e a importncia da mais-valia na crtica ao capital, o marxismo das relaes de produo encontra na crtica da mais-valia o seu ponto central e, por isso, concebe o modo de produo e suas foras produtivas como relaes sociais capitalistas fundadas na explorao da fora de trabalho e na extrao da mais-valia. So as relaes sociais de produo capitalistas que plasmam as foras produtivas e no o contrrio. E, sendo as relaes sociais de produo estruturadas a partir da mais-valia, as lutas de classes tornam-se fundamentais, tanto para a manuteno quanto para a ruptura do sistema. E, como: apenas enquanto lutam contra a explorao que os trabalhadores afirmam o seu antagonismo a este sistema econmico, o agente da passagem ao novo modo de produo sero os explorados em luta. Em resumo, na contradio fundamental que atravessa as relaes sociais de produo e que constitui a classe trabalhadora, em conflito contra o capital, como base da passagem ao socialismo, que esta corrente do marxismo encontra resposta problemtica que agora nos ocupa. Por isso lhe chamo, simplificadamente, marxismo das relaes de produo. O desafio est, ento, na compreenso de qual a classe que controla a produo, o processo de trabalho, a organizao da vida e da economia: so os gestores em nome dos trabalhadores ou so os trabalhadores livremente associados, para recordar Marx? exatamente por esta questo central que, segundo Joo Bernardo, o antagonismo entre as duas grandes concepes do marxismo acima referidas o marxismo das foras produtivas e o marxismo das relaes de produo tambm manifestao da oposio prtica entre a classe dos trabalhadores e a classe dos gstores. Se este talvez possa ser indicado como o ncleo central que est presente em todo o livro, o seu fio condutor, h inmeras outras teses apresentadas que so ricas e eivadas de conseqncias tericas e prticas. Aqui vamos mencionar apenas mais duas outras teses que tm enorme interesse e atualidade, preservando sempre o carter polmico que marca todo o livro. Um dos pontos de maior destaque trata da estrutura das classes dominantes e diz respeito bifurcao, dentro da classe capitalista, entre o que Joo Bernardo denomina como classe burguesa e classe dos gestores. A classe burguesa definida a partir de um enfoque descentralizado, isto , em funo de cada unidade econmica em seu microcosmo. A classe dos gestores, ao contrrio, tem uma alada mais universalizante e definida em funo das unidades econmicas em relao ao processo global. Ambas se apropriam da mais-valia, ambas

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controlam e organizam os processos de trabalho, ambas garantem o sistema de explorao e tm uma posio antagnica em relao classe trabalhadora. Mas a classe burguesa e a classe dos gestores se diferenciam em vrios aspectos: 1) pelas funes que desempenham no modo de produo; 2) pelas superstruturas jurdicas e ideolgicas que lhes correspondem; 3) pelas suas diferentes origens histricas; 4) por seus diferentes desenvolvimentos histricos. Enquanto a classe burguesa organiza processos particularizados visando sua reproduo no plano mais microcsmico, a classe dos gestores organiza estes processos particularizados articulando-os com o funcionamento econmico global e transnacional. Deve-se acrescentar ainda que, para o autor, a classe dos gestores pode pretender assumir a forma de uma classe aparentemente no-capitalista, mas isso se d apenas em sua aparncia. O exemplo da ex-URSS pode ser bastante esclarecedor e frequentemente evocado por Joo Bernardo. O outro ponto diz respeito diferenciao apresentada entre Estado Amplo e Estado Restrito e que central nas teses presentes no livro, uma vez que reconfiguram os mecanismos, as formas e as engrenagens da dominao. O primeiro, o Estado Amplo, constitudo pela totalidade dos mecanismos responsveis pela extrao da mais-valia, isto , por aqueles processos que asseguram aos capitalistas a reproduo da explorao, incluindo, portanto, todos aqueles que, no mundo da produo e da fbrica, garantem a subordinao hierrquica e estrutural do trabalho ao capital. O Estado Restrito aquele que expressa o sistema de poderes classicamente definidos, como o poder civil, militar, judicirio e seus aparatos repressivos tradicionais. E exatamente pela limitao do Estado Restrito que Joo Bernardo recorre a uma noo ampliada de Estado para dar conta da dominao capitalista de nosso dias. Naturalmente, quando se considera o Estado globalmente, deve-se considerar a integralidade da superstrutura poltica que resulta da articulao entre o Estado Amplo e o Estado Restrito. Como no mundo capitalista atual o Estado Amplo se sobrepe ao Estado Restrito, ele abarca tambm o poder nas empresas, os capitalistas que se convertem em legisladores, superintendentes, juzes. em suma, constituem um quarto poder inteiramente concentrado e absoluto, que os tericos dos trs poderes clssicos no sistema constitucional tm sistematicamente esquecido, ou talvez preferido omitir. Foi contra esta leitura restritiva do Estado que Adam Smith considerava que, ao lado do 15

poder poltico (civil e militar), dever-se-ia acrescentar tambm o poder de mando e controle na explorao da fora de trabalho nas empresas. por isso que, ainda segundo Joo Bernardo, as funes capitalistas no espao produtivo aparecem, para os trabalhadores, sob a forma coercitiva, desptica, policial e judicial. a este aparelho, to vasto quanto o o leque que compreende as classes dominantes, que o autor denomina Estado Amplo. Poderamos prosseguir nas teses que so desenvolvidas ao longo deste livro profundamente crtico, polmico e atual. Mas penso que j foi dito o bastante, o suficiente para incentivar e provocar a sua leitura e o seu estudo.

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Agradeo a Rita Delgado ter encontrado tempo para ler o manuscrito e pacincia para formular crticas e sugestes. Quando estava este livro numa verso ainda no definitiva, alguns captulos inspiraram a srie de seminrios e palestras que realizei no Brasil, durante os meses de outubro e novembro de 1988, no Programa de Ps-graduao da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte; no Curso de Ps-graduao da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo; no Departamento de Administrao Geral e Recursos Humanos da Escola de Administrao de Empresas da Fundao Getlio Vargas, em So Paulo; no Departamento de Poltica da Pontifcia Universidade Catlica, em So Paulo; no Curso de Psgraduao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre; no Programa de Ps-graduao em Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da mesma universidade. Os debates que invariavelmente se seguiram permitiram-me reformular varias questes, desenvolver outras e completar algumas mais. Sem a oportunidade destas discusses, o livro no seria para bem ou para mal aquilo que . Por isso o dedico a todos os que as tornaram possveis e aos que nelas participaram.

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Quando se fechou num recipiente de vidro a fmea prenha de crias, viu-se que as devorava logo medida que iam nascendo; apenas uma escapou destruio geral, refugiando-se no dorso da progenitora; e em breve vingou a causa das irms, matando-a por seu turno. Oliver Goldsmith, A History of the Earth, and Animated Nature

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Prefcio primeira edioA histria por vezes mais rpida do que as edies. E ainda bem. Recordando este livro, nem h dois anos terminado de escrever, vejo como tanta coisa mudou, remetendo o manuscrito para outra poca, outro mundo. Mas teriam afinal as transformaes sido assim to sbitas? O que sobretudo se alterou foi a percepo que o grande pblico e, inevitavelmente, os rgos de informao tm dos pases do Leste europeu e da Unio Sovitica. No isso que d ao livro o gosto de antiquado, ao contrrio. As mudanas operadas confirmam o que escrevi, a tal ponto que seria desnecessrio hoje demonstrar algumas das teses, visveis entretanto na realidade cotidiana. E, se as reformas econmicas relegaram para o passado situaes que descrevo como atuais, a anlise em nada fica prejudicada, pois a conduzi na perspectiva do processo histrico, e o funcionamento ontem das sociedades da Europa oriental decisivo para compreendermos os problemas de agora. Quanto a estes, remeto o leitor para o meu livro Crise da Economia Sovitica (Coimbra, Fora do Texto, 1990). Aqui, sobre o que as evidncias atuais mostram, nada vale a pena acrescentar. Merece um pouco de ateno o que essas evidncias ocultam. A rapidez, at a precipitao, dos acontecimentos recentes contribui para fazer esquecer o substrato de transformaes de longa durao que os tornou possveis. S por demagogia, os novos dirigentes surgidos no Leste europeu fingem tomar letra a cartilha dos anteriores, no menos demaggica tambm. No se trata de desenvolver hoje a livre-empresa contra o socialismo do passado. Nem o capitalismo de uns livre-concorrencial, nem deixara de ser capitalista a economia dos outros. Ambos os blocos constituam as alternativas possveis no interior de um quadro capitalista comum. E o pndulo que agora oscila para um lado movera-se antes em sentido contrrio. Na dcada de 1930, foi a planificao central sovitica que influenciou profundamente a economia dos demais pases. E, porque estes levaram a experincia mais longe do que se conseguiu no Leste europeu, a planificao descentralizada, assentada nas grandes companhias transnacionais, pode atualmente encarregar-se da organizao global da economia mundial. No captulo final, afirmo que o movimento autnomo dos trabalhadores entrou desde o incio da dcada de 1980 numa fase de refluxo de longa durao e tudo o que agora est sucedendo, na forma como ocorre, confirma esta anlise. S enormes presses populares tm obrigado as figuras polticas do Leste europeu a se moverem, com uma rapidez muito superior

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que pretendiam ou mesmo julgavam possvel. No s dirigentes de tradio stalinista foram obrigados a adequar-se s novas condies, mas tambm polticos de oposio at h pouco isolados, tantas vezes ineptos, sempre rodos de rivalidades, viram-se forados a unir-se e a governar em conjunto. Mas esta afirmao de fora dos trabalhadores tem sido afinal uma manifestao de fraqueza porque, com excees como a da grande vaga de greves na Unio Sovitica em meados de 1989, limitam-se a pressionar a reorganizao do capitalismo. A situao de refluxo no se caracteriza pela ausncia de conflitos sociais. Pretendi ao longo deste livro mostrar como a contraditoriedade social permanente. Mas tambm multiforme e, tal como j vm se processando h um ano nos pases do Leste europeu, as lutas so facilmente recuperveis pelo capitalismo. Movimentos descentralizados, caractersticos do presente ciclo longo da mais-valia relativa, no puderam por isso ser contidos nem assimilados pelas burocracias stalinistas centralizadoras, apenas pelas burocracias descentralizadas, ou pluricentradas, que agora se instalam. Portanto estes movimentos de massas servem para ativar o capitalismo, precipit-lo num novo estgio de desenvolvimento e, na perspectiva da classe trabalhadora, continua o quadro de refluxo. Mas criar-se-o daqui em diante, esto desde j criadas, as condies para ultrapassar a mais grave das limitaes que levou repetida derrota das ofensivas anteriores dos trabalhadores. A ausncia de internacionalismo ser cada vez mais difcil num mundo que as grandes empresas se encarregam de unificar economicamente. Nem nos iludamos com os atuais surtos de nacionalismo ou, mais exatamente, de sub-nacionalismo. Rompendo a unidade estabelecida de pases europeus, fragmentando a Unio Sovitica como ameaam repartir ao meio a Tchecoslovquia, estilhaam j a Iugoslvia, dividem a Romnia, eles no devem ser entendedidos como reforo das naes. So, ao contrrio, a sua fraqueza. Lembremo-nos das independncias africanas. Foi porque no conseguiram desenvolver-se no quadro do panafricanismo e se realizaram na forma fragmentada de uma multiplicidade de pases rivais, que as companhias transnacionais mais facilmente puderam consolidar a sua hegemonia nesse continente. A pluralidade de fronteiras um fator de disperso e precisamente tal ausncia de coeso que importa ao capital transnacional, para tecer as redes que unem os estabelecimentos nos vrios pases e articular, em cada um deles, os plos de desenvolvimento e a manuteno de vastas reas estagnadas. isto que hoje comea a se passar no Leste europeu. Os gestores das transnacionais tm uma estratgia a longo prazo a de unificar a organizao econmica sem, com isso unificarem a fora de trabalho, a de fragmentar, ou at individualizar, a mo-de-obra. E a estratgia a longo prazo da classe trabalhadora ser de

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desenvolver as suas formas bsicas de inter-relacionamento social contra a disperso a que a querem condenar, utilizando o quadro das novas tecnologias para sobre ele internacionalizar as relaes de classe. Ser assim que se prepararo, no perodo atual de refluxo, as condies da luta ofensiva que inaugurar o prximo ciclo longo da mais-valia relativa. Mas sobre isto no esperemos encontrar notcia nem rastro nos rgos da grande informao, atentos apenas ao que se passa superfcie e conhecedores somente do que j traga um rtulo ideolgico. E, na esfera das ideologias nem esta a menos profunda das transformaes operadas no Leste europeu , a classe trabalhadora pode hoje comear de novo, como vinha a ser inadiavelmente urgente. Dispe de uma pesada herana ideolgica, reduzida agora a fragmentos, inexistente j como corpos coesos de doutrina. Tanto melhor. Apenas a disputa entre modelos capitalistas alternativos dava vida ideologia de cada um dos blocos, na oposio ao outro. Ser ao mesmo tempo que os trabalhadores, contra a estratgia gestorial de fragmentao da fora de trabalho, implantarem as formas do seu interrelacionamento social bsico, que desenvolvero tambm os postulados e as grandes linhas em que a prxima ofensiva h de ser concebida. E ao prever esse futuro que sinto este livro datado. Irremediavelmente, porque as doutrinas tradicionais apenas acabaram de morrer e mal se esboa o novo quadro ideolgico. S disponho de conceitos forjados em outra poca, em outras lutas. Perante as oportunidades que se antevem, gostaria de saltar o espao, de no ter os ps presos no antigo. Parece-me este livro uma expresso, espero que o eplogo, de uma fase que se encerra. Gostaria que fosse uma ponte. maro de 1991

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1. Mais-valia

1.1. A mais-valia como capacidade de aoNo centro de qualquer teoria crtica do capitalismo, encontra-se o modelo da produo de mais-valia, possvel de resumir na frmula: O tempo de trabalho incorporado na fora de trabalho menor do que o tempo de trabalho que a fora de trabalho capaz de despender no processo de produo. Antes de desenvolver este modelo nas suas virtualidades, que constituem os mecanismos do que correntemente se denomina Economia, convm refletir sobre a sua forma lgica e os princpios tericos que o fundamentam. A estrutura do modelo da mais-valia a de uma relao social, entendida como movimento de tenso entre dois plos. Num extremo temos a submisso da fora de trabalho ao capital: o tempo de trabalho incorporado na fora de trabalho a formao e a reproduo dessa fora de trabalho, mediante o consumo de bens materiais e servios permitido pelo montante da remunerao recebida; s na seqncia do assalariamento pode a fora de trabalho incorporar em si tempo de trabalho mediante o consumo de bens. No outro extremo temos a apropriao pelo capital do produto do processo de produo: o produto em que a fora de trabalho incorpora tempo de trabalho -lhe socialmente alheio, pertence ao capital, que comeou por assalari-la; e o assalariamento surge assim como a possibilidade de reproduzir o modelo, permitindo fora de trabalho consumir algo do que produziu, para poder produzir de novo. neste movimento de tenso que defino as classes sociais. A sociologia acadmica concebe as classes de maneira esttica, ou mediante critrios decorrentes da repartio dos rendimentos, como estratos de consumidores indiferenciados na forma comum do dinheiro recebido e, portanto, s distinguveis quantitativamente; ou como grupos culturais, definidos em funo dos comportamentos ou em funo das formas de conscincia assumidas por cada pessoa relativamente sua prpria situao. Mas a categoria econmica dos rendimentos serve apenas para confundir, na iluso de uma forma comum, a realidade social de situaes distintas, ou opostas. E tanto os comportamentos como a autoconscincia constituem aspectos circunstanciais, a cada momento alterados e, afinal, acessrios, que nunca adquirem validade

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por si s, mas apenas quando comparados com outros termos de referncia, os quais conferem s formas ideolgicas a sua verdadeira funo e significado. As classes sociais definem-se por ocuparem, neste modelo da produo da mais-valia, os plos de uma oposio recproca. Entre os dois plos, que representam os dois aspectos do capital, o comeo e a concluso do seu processo cclico, ocorre o movimento que os articula e os faz viver: a ao da fora de trabalho, a sua capacidade de trabalhar. E a fora de trabalho a nica capaz de articular estes termos numa relao e de lhes conferir, assim, existncia social. Porm, despossuda, num extremo, da possibilidade de se formar e se reproduzir independentemente e despossuda, no outro extremo, do controle do produto que criou, a fora de trabalho encontra-se desprovida tambm de qualquer possibilidade de organizar o processo de produo. Os capitalistas no adquirem apenas o resultado do trabalho, mas fundamentalmente o direito ao uso da fora de trabalho, o que implica serem eles que organizam esse uso, organizam e administram o processo produtivo. E este o quadro em que ocorre o tipo especfico de acidentes de trabalho caracterstico do capitalismo. So os trabalhadores os que executam os raciocnios e os gestos necessrios produo, mas a todo momento os capitalistas lhes retiram o controle sobre essa ao, integrando-a no processo produtivo em geral e subordinando-a aos seus requisitos. O acidente um dos resultados possveis da ciso entre os trabalhadores e a organizao do processo de trabalho, e esta ciso constitui o elemento central na relao da mais-valia. A administrao capitalista do processo de trabalho o campo a partir do qual incessantemente se renova o desapossamento da fora de trabalho nos dois plos da produo de mais-valia. S a fora de trabalho capaz de articular ambos esses plos, mas desprovida de qualquer controle sobre o processo dessa articulao este o mago da problemtica da mais-valia. O capital varivel, isto , a frao do capital total destinada ao assalariamento, s constitui capital enquanto representa a possibilidade, ainda no efetivada, de adquirir a capacidade de usar a fora de trabalho. Uma vez, porm, consumado o assalariamento, o capital varivel desaparece, ele no participa na constituio do valor dos novos bens a serem produzidos e ento que a fora de trabalho assalariada entra em cena, enquanto capaz de trabalhar, isto , de incorporar tempo de trabalho em produtos. E esta relao social que converte uma dada grandeza de limites previamente definidos, o montante do capital varivel, numa grandeza de antemo indefinida, mas sempre possvel de ser superior primeira, o tempo de trabalho que os assalariados so capazes de despender. esta relao que constitui a maisvalia e que sustenta o capital e todos os seus mecanismos, Karl Marx deixou esta problemtica

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absolutamente clara na prpria terminologia que criou. Para ele, o capital varivel varivel precisamente porque a nica frao do capital que d lugar criao de novo valor, variando por a de dimenso a massa do capital total. E, se ousasse dizer aqui em trs linhas o que precisaria de um longo livro para ser explicado, afirmaria ento que a mais-valia constitui, no capitalismo, a entropia negativa. ela a fonte dos ganhos de energia, que permite a expanso da sociedade existente, e no o seu declnio; a obsesso de tantas correntes doutrinrias pelo problema da entropia revela a preocupao com a ameaa de suspenso da mais-valia, a converso ideolgica do que para elas seria uma catstrofe social numa catstrofe natural. Sendo o carter expansionista da mais-valia resultado da sua existncia enquanto relao, o capital no um conjunto de objetos. A substncia do capital, a substncia do valor, o tempo de trabalho, que no constitui algo de materializado, que no ainda o produto do trabalho, mas precisamente o trabalho no seu decurso, a fora de trabalho enquanto capacidade de trabalho em realizao. S a compreenso prvia do mecanismo da mais-valia permite compreender o valor. Definir o valor de um produto como o tempo de trabalho nele incorporado , portanto, defini-lo como o resultado do trabalho em ao. Todas as relaes sociais so sociais porque so institucionalizadas, o que significa que surgem na vida cotidiana como um dado adquirido, de forma que cada um dos seus processos aparece enquanto necessidade decorrente do anterior e condio para o seguinte. Assalaria-se a fora de trabalho e, portanto, se retira dela a capacidade de consumo independente dos produtos, precisamente com o objetivo de faz-la produzir; e privada do controle sobre o produto criado precisamente com o objetivo de assalari-la de novo; e afastada da organizao do processo de trabalho precisamente para ser mantida em desapossamento em ambos os termos da relao e se reproduzir como produtora assalariada. Os processos de produo da mais-valia pressupem-se e sucedem-se e, por isso, no podemos limitar-nos a conceb-los como atos isolados, mas temos de explic-los como uma cadeia ininterrupta. Em cada um dos processos de produo particularmente considerados, so criados novos valores, e esse perodo de trabalho divide-se num tempo de trabalho necessrio para reproduzir o tempo de trabalho incorporado na fora de trabalho assalariada, ou seja, correspondente ao valor do capital varivel que a assalariou, e num tempo de sobretrabalho que a fora de trabalho capaz de despender a mais e que constitui a produo de mais-valia propriamente dita. O valor criado durante um perodo de trabalho se define pela totalidade do tempo de trabalho despendido durante tal perodo, independentemente da proporo em que se possa repartir em produo de mais-valia e reproduo do capital varivel avanado; da capacidade global de trabalho exercida pelos

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trabalhadores durante esse perodo que resulta o novo valor. Porm, os novos produtos no so criados a partir do nada e implicam a utilizao de instalaes, de meios de produo e de matrias-primas produzidos em perodos anteriores. Sucede, assim, que a fora de trabalho, ao mesmo tempo que produz um novo valor, conserva a poro gasta do valor das matrias-primas e dos meios de produo e instalaes. Ainda aqui, a terminologia criada por Marx elucidativa, pois a este valor meramente conservado denomina capital constante. No se trata de qualquer conservao material de elementos, mas da sua manuteno nas mesmas relaes sociais em que se inseriam. O processo de produo um processo de transformao e, na generalidade dos casos, o produto apresenta uma forma diferente da maquinaria, utenslios ou matriasprimas empregados em sua fabricao. No o aspecto material que um produto mantm pela sua insero num novo processo de trabalho, mas o valor, quer dizer, a sua funo numa relao dada. De onde se conclui que o tempo de trabalho incorporado num dado produto sempre superior ao tempo de trabalho efetivado durante o perodo em que se fabrica tal produto. O valor de um produto se divide na poro criada durante o perodo de sua fabricao e que, como disse, se reparte internamente em mais-valia e numa parte que reproduz o capital varivel, e numa outra poro, que conserva o valor do capital constante despendido, mantendo o valor da parte gasta de produtos criados durante processos de produo anteriores. assim que, no modelo da mais-valia, cada perodo produtivo se liga indissociavelmente aos que o precederam. Sob o ponto de vista temporal do processo de trabalho, ambos aspectos se sobrepem: no necessrio qualquer esforo adicional para conservar o valor do capital constante empregado durante um dado perodo, sendo o prprio trabalho de criao de novos valores que, por si, conserva o valor antigo. O mesmo trabalho que, graas ao seu carter genrico, cria um valor novo, no pode deixar de se exercer ao mesmo tempo que um dado trabalho especfico, utilizando de maneira adequada meios de produo e matrias-primas j existentes e, portanto, conservando no novo produto o valor dos materiais consumidos. So dois aspectos do mesmo ato de trabalho, inseparveis e simultneos. Sob o ponto de vista, porm, do valor do produto, os dois aspectos se justapem, visto que frao constituda pelo novo valor se adiciona a poro conservada do capital constante. E, porque produtos fabricados num dado perodo iro ser incorporados, enquanto matrias-primas ou meios de produo ou instalaes, em processos de trabalho de perodos posteriores, o mecanismo renova-se sempre. Como a conservao do valor do capital constante depende exclusivamente do seu uso na criao de novos valores, a questo crucial a da sobreposio e simultaneidade de ambos os aspectos no processo de trabalho. Em cada perodo de produo particularmente

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considerado, vimos que a ao da fora de trabalho que sustenta o capital enquanto relao social. Podemos agora entender que, ao longo da reproduo dos processos de trabalho, esta capacidade de ao que conserva o capital enquanto ele prprio, que impede que os seus produtos materializados se reduzam a meras coisas sem significado social e os mantm inseridos na relao produtora de mais-valia. Neste modelo, toda a reproduo do capital o que quer dizer: a prpria existncia do capitalismo depende exclusivamente da ao da fora de trabalho que se efetiva em cada momento. Um elemento material, fruto de um qualquer perodo de produo passado, representa ou simboliza o capital apenas enquanto se suponha a renovao da capacidade de dispndio de tempo de trabalho por parte da fora de trabalho. Esta dialtica do trabalho atual, do trabalho no momento do seu decurso, vivificando os elementos materializados que restam do passado histrico do capitalismo, Constitui o fundamento lgico do modelo da mais-valia. Os elementos representativos do capital constante so trabalho morto enquanto permanecerem exteriores ao elemento ativo das relaes sociais, enquanto a fora de trabalho em ao no os inserir de novo no processo de produo da mais-valia. O mecanismo da explorao, sinnimo do trabalho vivo no seu processo, mantm como capital toda a sociedade e todos os elementos materiais que a corporalizam. A vivificao permanente da enorme massa de capital pela renovada ao da fora de trabalho torna-se, com a dinmica histrica, uma necessidade sempre mais compulsiva: o aumento da produtividade, sinnimo do desenvolvimento do capitalismo, consiste, em cada processo produtivo particularmente considerado, no acrscimo dos elementos do capital morto relativamente fora de trabalho, tendendo nestes termos a acentuar-se a diferena entre o tempo de trabalho efetivado durante um dado perodo e o valor do produto global resultante. Quanto mais esta defasagem se verifica, mais crucial se torna para a reproduo do capital a permanente renovao do valor da massa crescente de meios de produo e de matrias-primas produzidas, mediante a sua utilizao em novos processos de trabalho. Todos os mecanismos do capital requerem a passagem do trabalho morto pelo trabalho vivo, que lhe conserva o valor e lhe d novo alento. Assim, no centro do capitalismo, sustentando-o como relao social em reproduo, encontra-se a fora de trabalho entendida enquanto capacidade de ao. Uma teoria da ao no era novidade no tempo de Marx e a problemtica filosfica suscitada na seqncia da obra de Kant pode resumir-se, afinal, reformulao de uma teoria da ao e aos seus mltiplos desenvolvimentos. Novidade e, muito mais do que isso, profunda ruptura era pensar a fora de trabalho como sujeito dessa ao, definindo portanto a ao ou, pelo menos, o seu fundamento como a ao prpria dos trabalhadores, a capacidade de trabalho

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produtivo, a capacidade de produzir mais-valia. H um nico modo de nos apercebermos da dimenso de to colossal ruptura, e colocarmos esta teoria do trabalho enquanto capacidade de ao contra a teia ideolgica das teorias da ao vigentes na poca em que Marx primeiro formulou o modelo da mais-valia.

1.2. Kant: o eu-em-relao como ao intelectualDesde que rompeu a fuso ideolgica entre o homem e a natureza, deparou a civilizao europia com o problema permanente de revolver essa separao. At ento, no quadro das concepes teolgicas medievais, o prevalecimento das teorias da inteno divina permitira pensar unificadamente a existncia humana e a do mundo exterior; e os que neste contexto propunham um conhecimento da natureza especificamente experimental se inseriam na tradio alqumica, para a qual a experincia dos sentidos se conjugava com a iluminao interior, culminando na experincia mstica absolutamente unificatria. E mesmo aqueles assombrosos telogos que, no ltimo tero do sculo XIII e na primeira metade do seguinte, defenderam o carter meramente sensorial do nosso conhecimento dos objetos naturais e, assim, admitiram a possibilidade ou a necessidade do conhecimento emprico, fizeram-no porque concebiam as realidades da natureza como absolutamente particularizadas, sendo o seu inter-relacionamento exclusivamente contingente e sem que existisse uma causalidade interna esfera natural. Decorria daqui uma atitude de ceticismo e de probabilismo perante os resultados do conhecimento sensorial. Estes telogos deram um desenvolvimento mximo teoria da liberdade criativa de Deus, e o seu ceticismo quanto possibilidade de compreenso emprica o reverso de um acentuado misticismo, assentado numa concepo da revelao entendida como absoluta iniciativa divina. A extrema liberdade de Deus explicaria o extremo particularismo das criaturas e a f revelada garantiria a unidade de um conhecimento que a experincia sensorial jamais alcanava. Com a Renascena, a laicizao das prticas e do conceito de poder modificou profundamente este panorama filosfico. Na segunda metade do sculo XVI e na primeira metade do sculo XVII, a civilizao europia passou a considerar a natureza separadamente do homem, deixando a unidade entre ambos de aparecer como garantida. A verdade do homem no era j a mesma que a do mundo exterior e, perdido o carter imediato de qualquer verdade da natureza, acabou por se duvidar tambm da verdade do homem. As grandes disputas 27

filosficas destes sculos incidiram nas questes de mtodo e nos critrios da verdade. Na dualidade resultante de tal ruptura, Galileu inaugurou uma tradio segundo a qual a verdade da natureza se encontraria precisamente no carter objetivo desta, na sua separao do homem. Considerava secundrias e irrelevantes para a definio da realidade fsica aquelas qualidades que, em seu entender, constituam o efeito do movimento dos corpos sobre as mentes; e s qualidades que denominava primrias, considerava-as reais, porque constitutivas da natureza e independentes da mente humana. A ruptura de Galileu com a tradio aristotlica no consistiu apenas na negao do geocentrismo, mas ainda na afirmao de que os modelos matemticos seriam a prpria expresso da realidade fsica. As qualidades primrias, objetivamente naturais, seriam todas elas quantitativas, de maneira que a natureza foi entendida por Galileu e pelos seus continuadores como um vasto mecanismo cujo funcionamento real obedeceria s leis da matemtica e cuja verdade, portanto, a anlise matemtica permitiria desvendar. Esta corrente filia-se na tradio empirista de um conhecimento baseado na observao sensorial da natureza exterior. Desenvolveu-se ao mesmo tempo outra corrente, racionalista, fundamentada na observao pelo homem da sua prpria mente. Tal introspeco pretendia tambm obedecer a leis rigorosamente matemticas, no na acepo quantitativa, mas quanto definio clara e distinta dos conceitos e ao tipo de relacionamento a estabelecer entre eles. Era um mtodo algbrico, ou geomtrico, que esta corrente de iniciativa cartesiana propunha para o novo raciocnio filosfico. E tambm aqui se manteve a dualidade do homem e da natureza porque, se Descartes partia da indubitabilidade da existncia do eu, entendido como a mente do indivduo, fazia-o em confronto com a existncia distinta da matria. Para o conhecimento desta, props o modelo mecanicista, de inspirao galileana. Embora afirmasse a unidade dos tipos de conhecimento, pelo emprego, em todos eles, do mtodo matemtico, Descartes com efeito distinguia-os ao aplicar diferentemente esse mtodo. Foi talvez este filsofo quem melhor expressou a separao entre o homem e a natureza, no s ao postular a dualidade substancial entre o pensamento da mente e a extenso material tridimensional, mas ainda ao propor, para cada um destes campos, diferentes aplicaes do mtodo matemtico. A matemtica aparecia, ento, como a linguagem do entendimento comum a ambas as grandes correntes filosficas, explicando no empirismo as operaes da matria e regrando, no racionalismo, as do esprito. Mas tanto numa tendncia como na outra a experimentao, procurando relacionar a natureza e um indivduo que dela estava radicalmente separado, podia apenas aparecer como a reunificao de elementos originariamente distintos. Por isso, ou se secundarizava a validade do sujeito humano relativamente ao objeto natural, cuja verdade existiria por si prpria, como sucedia com os empiristas; ou se tornava a verdade dos objetos naturais acessria da prvia 28

definio de uma verdade tida por fundamental, que era a da existncia do sujeito pensante, como acontecia com os racionalistas. Apenas Isaac Newton concebeu um vasto quadro que permitiria resolver esta dualidade de origem. A noo de ao a distncia implicada na teoria da gravitao universal, as atraes e repulses resultavam na sua obra de uma poderosa influncia da tradio platnica e hermtica, do alquimismo e da magia, que Newton combinava com as concepes mecanicistas e atomistas defendidas por certos empiristas. O conceito de fora representou para Newton a conciliao daquelas duas grandes tendncias de pensamento. Mas os filsofos e a generalidade dos cientistas continentais que primeiro haviam recusado a idia de ao a distncia, em nome do empirismo mecanicista, quando passaram a aceitar a teoria da gravidade reduziram-na a esses mesmos postulados empiristas, amputando-a de tudo o mais. Fracassou assim o ensaio newtoniano de unificao do homem com a natureza. A afirmao da exterioridade do eu relativamente natureza era o pano de fundo da problemtica com que Kant se defrontou. Para esse confronto, Kant destacou no panorama filosfico de ento as duas correntes que, partindo ambas da ciso inicial entre o indivduo e a natureza, procuravam super-la de modos distintos. Uma dessas correntes situava-se no desenvolvimento da tradio empirista e encontrava os seus principais expoentes nas filosofias de Locke e de David Hume e nas do iluminismo francs. A outra, no direto desenvolvimento do racionalismo cartesiano, compunha-se dos sistemas de Spinoza e de Leibniz. Kant referiu-se tambm freqentemente, neste seu mtodo antinmico, oposio entre o empirismo e o idealismo berkeleyano. Porm Berkeley recusava qualquer subjetividade ao conhecimento. Para ele, o real era a mente tendo idias, as quais resultariam de sensaes impostas regular e ordenadamente a partir do exterior, pela mente de Deus. Este sistema filosfico absolutiza de tal modo as impresses sensoriais, que resulta como que um empirismo sem objeto material exterior. Por isso, no foi a oposio entre o empirismo idealista de Berkeley e o empirismo materialista de Locke e de Hume que serviu de fundamento constituio do sistema kantiano, mas o confronto de Locke e Hume com Spinoza e Leibniz. O empirismo, tanto dos filsofos britnicos como dos franceses, encerrava-se com a reafirmao da particularidade dos elementos. Partindo da problemtica geral que estabelecia o eu e, portanto, a natureza como entidades originariamente autnomas, como coisas, o empirismo as unificava no processo de conhecimento, fazendo prevalecer o carter supostamente ativo das impresses sensoriais provenientes do exterior sobre o carter 29

supostamente passivo da sua recepo pela mente. Desta passividade do eu perante a natureza resultava, porm, o completo fracionamento do mundo exterior, conforme a multiplicidade das experincias sensveis do homem. Assim, uma unificao entre a natureza e o homem com base no apagamento deste frente s impresses recebidas pelos sentidos implicava, afinal, a concepo do particularismo e da fragmentao do mundo exterior e, por conseguinte, da prpria individualizao do homem. Fazendo as coisas prevalecerem sobre as relaes, os filsofos empiristas mantinham-se alheios a qualquer esforo de superao da ruptura entre o homem e a natureza. A outra das correntes renovava, no interior daquela problemtica comum, uma tradio que antes existira apenas sob forma mstica. Para Spinoza e Leibniz tratava-se de pensar a unio dos elementos. Spinoza criticava o particularismo empirista e ao prprio Descartes, em cuja imediata continuao se inseria, censurava a dualidade estabelecida entre a mente e a matria e a transcendncia atribuda a Deus; e tambm Leibniz criticou nos cartesianos a completa separao que supunham entre mente e matria, defendendo ao contrrio, a sua unio e concordncia. A individualizao dos elementos o termo inaugural do processo de constituio das filosofias spinozista e leibniziana, embora no o seja na forma de exposio adotada por Spinoza, que apresenta a unio dos elementos como uma constante. Por outras palavras, foi aquela a problemtica que suscitou estes sistemas, embora ela no presidisse sempre sua ordenao para o pblico. Era do conhecimento que resultaria a anulao da separao entre o eu e o mundo exterior, porque Spinoza e Leibniz concebiam um conhecimento racional, e no sensorial como os empiristas. O modelo da compreenso no era aqui a pluralidade das sensaes, mas o princpio unificatrio constitudo pela capacidade pensante. E, embora fosse a Deus que estes filsofos remetiam tal capacidade unificatria, ela no era mais, como sempre, do que a divinizao do processo humano de pensamento. Tratava-se de um tipo de conhecimento que unificava o campo experiencial, no se limitando a hierarquiz-lo e a tornar metodologicamente rigorosas experincias particulares. A diviso da natureza pela absolutizao das sensaes, opunham a unio pela razo unificatria. Enquanto para o empirismo o processo de conhecimento era a ao de mltiplas coisas sobre outras e, assim, um aspecto da fisiologia das sensaes, nos sistemas de Spinoza e Leibniz o conhecimento uma relao totalizante e esta o objeto filosfico. A compreenso da atividade racional era entendida, antes de mais nada, como um autoconhecimento e este seria o conhecimento da relao do indivduo com o todo e, portanto, do todo enquanto relao. Da a dificuldade tida por esta corrente para pensar a existncia de elementos, enquanto tais, no todo em que se unem. Para o misticismo ateu de

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Spinoza, os elementos no apareciam como entidades distintas, mas apenas como atributos e modos de uma substncia nica, de maneira que o que se manifestasse num dos elementos encontraria correspondncia nos demais. Leibniz, ao discordar da existncia de uma substncia nica, parecia afirmar um maior grau de individualidade dos elementos; mas, na verdade, a sua diferenciao recproca vem somente de cada um refletir a todo segundo uma perspectiva prpria; e, se cada elemento expresso do todo, entre eles deve ento necessariamente existir uma inteira harmonia, que os faz exprimir mediatamente as mudanas recprocas. Em ambos os casos era o carter de emanao do todo que definia os elementos, porque o objeto de conhecimento era remetido para o ato de conhecer. A ruptura de Kant assumiu a forma de uma sntese entre as duas grandes correntes que melhor exprimiam as diferentes virtualidades dessa problemtica com que se defrontava. A dvida metdica cartesiana, certeza de si, surgida na ciso entre a exclusividade do eu e a natureza enquanto exterior, foi transformada por Kant na regra do ordenamento das filosofias existentes. Aquilo de que agora metodicamente se duvida no a natureza experimentada e o sujeito experimentador, mas os sistemas filosficos anteriores, ordenados em pares de opostos, de cujo jogo recproco iria surgir a verdade nova. A antinomia kantiana filia-se expressamente na dvida metdica cartesiana e, mantendo-lhe os objetivos anticticos, transforma-a, no entanto, por completo. Apresentando assim a constituio da sua filosofia como lio de didatismo pois no incidia o cartesianismo precisamente sobre o mtodo? , Kant props aos dogmatismos uma alternativa no-ctica. O ceticismo seria a atitude de todos quantos meramente concebiam a oposio entre as duas grandes correntes filosficas da poca, sem conseguirem, no entanto, ultrapassar a problemtica que lhes era comum. O objetivo de Kant: converter a antinomia, de processo de negao das respostas existentes, em mtodo de produo de novas questes, ou seja, ultrapassar a crtica pelo criticismo. Muito atenta legitimao de todos os seus passos, a filosofia kantiana comeou por extrair da sua prpria forma de constituio uma atitude moral perante a vida, a conciliao pela superao dos antagonismos enquanto base de uma nova sntese e radical negao de todo o ceticismo. A sntese no incidiu tanto nos resultados a que chegara cada uma das grandes correntes filosficas como, sobretudo, nas suas metodologias prprias. A sntese que importa considerar no kantismo verifica-se entre a experincia e a razo. A experincia prevalecera na forma sensorialista do conhecimento, que havia levado absolutizao, enquanto coisas, daquilo que suscita as sensaes. E a corrente de Spinoza e Leibniz, embora pressupusesse o campo originrio da experincia, j que a sua problemtica resultava precisamente da necessidade de

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unir elementos particularizados, unificara-os, no entanto, s pela capacidade pensante do eu e, portanto, em direto alheamento da experincia. A razo unificante, ou reunificante, e a sensibilidade experiencial fragmentria foram tomadas por Kant como termos antinmicos. Tinham em comum a problemtica do conhecimento enquanto objeto especfico, resultante da ciso entre o eu e a natureza, mas separava-os a diversidade dos processos atribudos ao conhecimento. A sntese kantiana consistiu na aplicao de um destes mtodos ao outro, abrindo experincia um campo novo: o do processo unificatrio da razo. Com tais virtualidades, a forma de experincia que prevalece nesta sntese a experimentao. At ento a experimentao fora aplicada exclusivamente pelo eu isolado natureza; e fora-o numa forma secundarizada que a tornava, na corrente empirista, mera reformulao do predomnio da experincia sensorial fragmentada e, na corrente spinozo-leibniziana, assimilvel ao particularismo dos sentidos e alheia, por isso, ao princpio unificante da razo. Kant mudou o estatuto da experincia, assimilando-a ao modelo da experimentao, e abriu-lhe ao mesmo tempo uma problemtica nova, fazendo-a incidir na razo unificante. Foi sobretudo na primeira edio da Crtica da Razo Pura que sublinhou a comunidade entre o mtodo experimental no conhecimento da natureza e a metodologia proposta para a abordagem da razo, mas penso que as remodelaes operadas na segunda edio em nada diminuram a importncia desta questo, que decorre da prpria estrutura do criticismo. Foi possvel a Kant no restringir o objeto da experimentao natureza ou, por outras palavras, pde assimilar a experincia experimentao, porque compreendeu que a especificidade do mtodo experimental consiste em no seguir o percurso natural mas sim em reconstituir o objeto natural consoante um percurso prprio ao intelecto. A autonomia do mtodo experimental relativamente ao processo da natureza , para compreender a sntese kantiana, uma constatao bsica. Se o percurso da experimentao decalcasse o da natureza e se, portanto, estivesse inteiramente subordinado atividade do objeto natural, ento caberia razo um papel meramente passivo. Ao contrrio, da autonomia do percurso experimental resulta necessariamente o papel ativo da razo. Seno, sendo o resultado da experimentao o mesmo que o do processo natural, de onde viria a diferena de percursos? porque a razo constitui um princpio ativo, a par do objeto natural, que ela pode ser tambm objeto da experimentao. E, aplicada a este campo novo, a experimentao se desenvolve em introspeco. A crtica ao indiferentismo e sua superao resultaram, na sntese das correntes filosficas antinmicas, do estabelecimento da unidade do conhecimento mediante a aplicao do mtodo experimental,

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tido como comprovado pelas cincias da natureza, ao conhecimento interior do eu. No se tratou, como com a introspeco cartesiana, de procurar um fundamento decisivo onde assentar toda a deduo filosfica, mas de conhecer a razo e marcar-lhe os limites. O objetivo da filosofia transcendental era a definio, pela rigorosa introspeco, dos princpios existentes na razo. Daqui resultou o carter ativo da lgica transcendental, que a distingue da lgica geral. Nesta, os conceitos so posteriores s representaes, resultando como que de uma mdia dos objetos representados, ao passo que o carter ativo da lgica kantiana a fez partir dos conceitos puros para as representaes. Afirmar quanto experimentao, e pela experimentao, o carter ativo da razo , por isso mesmo, postular o carter ativo do eu cognoscente. Com o que quero dizer que o eu se afirma ativo no processo de conhecimento, enquanto eu-a-conhecer. E, sendo essa atividade no processo de conhecimento que lhe permite tornar-se objeto da experimentao, esta, enquanto introspeco, a nica com legitimidade para estabelecer os limites do conhecimento. Aqui o transcendentalismo torna-se crtico e a crtica, afirmando no s os limites como as possibilidades, pretende evitar o ceticismo sem cair no dogmatismo. Porm, se os limites experimentais do conhecimento se estabelecem introspectivamente, ento esses limites so os do prprio eu cognoscente. A aplicao da experimentao ao campo da razo tornou-o dominante no processo de conhecimento. E porque, no conhecimento do mundo exterior, o eu cognoscente se pe a si prprio, ao repor o fenmeno natural num percurso distinto do da natureza, que o eu cognoscente ocupa o lugar central na filosofia kantiana. Fundamentada na existncia prvia da introspeco, toda a experimentao assume o papel ativo de realizao intelectual, e no prtica pois a reconstruo do objeto natural deve-se iniciativa da razo e pressupe os seus princpios e os seus limites. Pela introspeco, pretendeu o transcendentalismo ultrapassar a experincia (sntese com o racionalismo) sem neg-la dogmaticamente (sntese com o empirismo). A unidade do todo no tem j lugar em alheamento da experimentao, mas a partir desta, mais alm. Enquanto se limitara ao mundo natural, a experimentao era reservada ao no-eu, reproduzindo assim a ciso entre o indivduo e a natureza. Ao desenvolv-la num novo tipo de introspeco, Kant negou essa ciso, pois, tornando-se ambos objeto da experimentao, o eu e o mundo exterior redefinem-se como relacionados. Neste sentido so muito elucidativas as observaes de Kant a propsito do cogito ergo sum cartesiano: o a priori do sujeito, que a priori de algo, apresentado como demonstrao suficiente da existncia real dos objetos. Kant afirma, contra Descartes, que o eu s se conhece como existente se relacionado com os objetos;

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s na atividade de sntese o eu tem conscincia da sua identidade. O penso, logo existo o penso algo. O eu para Kant existe sempre numa relao intelectual, e no prtica com os objetos. Daqui em diante os a priori da razo definem-se como o prprio princpio ativo da experimentao e, assim, o eu cognoscente como o princpio ativo na relao entre o eu e o mundo exterior. Kant conservou o dualismo cartesiano da mente e da matria, mas ultrapassando-o pelo papel ativo conferido ao eu no conhecimento da natureza. E pela atividade desse eu, que a sua existncia se estabelece numa relao de conhecimento com os objetos, recusando-se assim problemtica tradicional, pois que se parte agora do relacionamento entre o indivduo e o mundo exterior. O eu do kantismo no o eu do empirismo, sensorialmente passivo e fragmentado na multiplicidade dos elementos; nem o eu de Spinoza e Leibniz, modelo de unio dos elementos do todo, mas inativo nesse resumo a si dos elementos. Surge-nos na filosofia de Kant um eu-em-relao, ativo pelo processo de conhecimento. Se, para Kant, a experimentao recria os objetos, criando o fenmeno enquanto unidade, isso resulta do carter unificatrio do processo autnomo do eu nessa experimentao. o princpio ativo da razo que constitui a unidade bsica e que permite uma viso unificada do mundo fenomenal. A unidade a integrao da pluralidade objetiva nos apriorismos do conhecimento do sujeito. Embora reconhecesse que sem a reproduo regular da realidade exterior seria impossvel uma constncia das representaes e a viso unificada no poderia ter lugar, Kant considerou decisivo o carter unificante do movimento de apreenso. O princpio ativo da razo, os princpios apriorsticos, puros, que cabe crtica estabelecer, constituem inatamente a conscincia como uma unidade que precede os dados das intuies e que torna possveis as representaes num quadro sinttico. A unidade da percepo transcendental o princpio a priori de todos os conceitos. a identidade do ato de apreenso que permite conceber a identidade do eu na diversidade das representaes e que, ao mesmo tempo que reafirma as representaes como diversidades, coloca o eu numa relao absolutamente necessria com o mundo exterior. Das filosofias de Spinoza e de Leibniz conservou Kant o princpio da unidade do todo; mas trata-se de uma unidade subjetiva, conforme a que Leibniz teria entendido (ver Jacobi). Os princpios unificadores apriorsticos implicam o que Kant denominava: carter arquitetnico da razo. Na primeira edio da Crtica da Razo Pura, a arquitetonia da razo serviu sobretudo para acentuar o carter unificatrio do conhecimento; mas, na segunda edio, numa exposio mais elaborada e que atinge mais diretamente o centro da questo, Kant mostrou como a razo arquitetnica permite, alm da identidade das representaes, a sua diversidade. Precisamente na simultaneidade dessa diversidade e da

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unificao nela possvel, mostram os princpios puros a priori sua funo unificatria. Contra a problemtica anterior, a unificao da diversidade no consistia j numa unio a posteriori de elementos originariamente cindidos, mas passou a constituir um princpio geral, prvio a todos os fenmenos. Ao fundamentar a relao de conhecimento num princpio unificador apriorstico, Kant retomou de forma nova um sistema mstico de causalidade que inspirara a cultura da Reforma e que persistia tambm em vrias correntes significativas na rea da Igreja de Roma, e o qual Spinoza e Leibniz haviam laicizado, dando-lhe um aspecto filosfico e uma estrutura lgica. Onde vigoravam as normas mais estritas da Contra-Reforma, prevalecia um sistema de causalidade caracterizado simultaneamente pela exterioridade da causa com relao ao efeito e pela linearidade das cadeias de causas e efeitos sucessivos. Encontravam aqui uma expresso lgica, a fragmentao e a coisificao empiristas e at uma boa parte do dedutivismo matemtico racionalista. A Reforma retomou um outro sistema de causalidade: de uma causa fundamental, central, concebida como um princpio interior e, portanto, uno e unificatrio, os efeitos decorrem, no j em sucesses lineares, mas numa disposio concntrica, enquanto emanao do princpio fundamental. A uma causalidade exteriorizada, opunha-se uma causalidade em que o efeito era entendido como expresso. Entre estes dois grandes sistemas, repartiu-se a cultura europia ps-trentina. A pintura e escultura, ao urbanismo, msica barroca baseados nos efeitos cnicos e, portanto, na exterioridade da relao causal, opunham-se a pintura, a arquitetura e a msica em que os efeitos se resumiam estritamente prpria estrutura da obra, que supunha por isso um princpio causal interior. Klingsor contra Parsifal. Decisivo foi o fato de no se terem repartido estas concepes em reas culturais homogeneamente definidas. A Igreja nacional anglicana destacava-se ideologicamente do protestantismo em que formalmente se integrava, assim como o catolicismo francs obedecia sobretudo a interesses de Estado que o distanciavam do papado. Bastava o enorme bloco constitudo no centro da Europa por estas duas ambguas Igrejas nacionais para impedir qualquer traado claro de fronteiras ideolgicas. O desmo e a defesa de uma religio natural, se correspondiam por um lado progressiva laicizao, certamente, por outro, cobriam a necessidade sentida em ambos os pases de conciliar as duas grandes correntes do cristianismo europeu. E at nas prprias ptrias da mais ativa Contra-Reforma desenvolveram-se, em oposio exterioridade da cultura barroca reinante, correntes da unificao interior e de emanao expressiva. Lembremo-nos do gnio de Caravaggio e mesmo de certas obras de Zubarn. Por isso, se compreende que este sistema de causalidade interna tenha estruturado a filosofia do judeu heterodoxo Baruch de Spinoza e a do

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agente diplomtico Gottfried Wilhelm Leibniz, que to constantemente se esforou pela unificao das vrias correntes do protestantismo e pela reunificao das duas grandes Igrejas crists do Ocidente. O empirismo eliminou as especificidades pela comparao a posteriori das experincias, definindo ento uma causa mdia, de modo que a necessidade do princpio da causalidade no surgia como um a priori, mas apenas da repetio experiencial. Este um dos temas mais freqentes nas crticas de Kant a Hume, pois a mera repetio das experincias empricas no poderia sugerir a necessidade universal inerente, no kantismo, ao conceito de causa. Esta necessidade apodctica da causa resultava, para Kant, dos princpios apriorsticos do eu cognoscente e, por isso mesmo, no pode a causa permanecer exterior aos efeitos. Mas no se trata tambm da verso spinozista ou leibniziana do modelo da causalidade interior. Spinoza e Leibniz resolviam a originria ciso entre o homem e a natureza numa forma de unio que tinha como condio absoluta a reduo do mundo exterior ao modelo do eu, negando-se assim natureza a sua exterioridade; o modelo dessa unio consistia na reduo do processo de conhecimento razo, em alheamento da atividade sensorial. Assim, no tipo de causalidade em que estas filosofias funcionavam, os efeitos reduziam-se na causa e nela anulavam a sua especificidade; o princpio causal interior tinha a a forma de uma simples expresso nos seus efeitos. Kant afirmou tambm que o efeito no meramente acrescentado causa, mas por ela produzido e dela deriva. Porm, no campo transcendental e no-dogmtico em que se situou, esta concepo significa que, apesar de produzidos pela causa, os efeitos no so entendidos como mera emanao. Os princpios apodcticos existem para o exterior de si, num sistema complexo em que, se por um lado se reproduzem a si prprios, trata-se por outro lado de uma relao causal objetiva. Concebeu assim um modelo de causalidade inovador, uma vez mais pela aplicao da corrente spinozo-leibniziana corrente empirista. Uma filosofia que se baseia na concepo de um eu cognoscente, intelectualmente relacional, apenas pode funcionar num modelo em que a causa fundamental interior enquanto princpio apodctico do eu consiste, no numa forma de expresso, mas numa forma de relao imediata, afirmando-se s na medida em que se relaciona com o exterior. Trata-se de uma relao do eu com a realidade emprica, segundo os princpios ntimos do eu; simultnea reproduo do eu, numa forma de causalidade interna, e afirmao do eu-em-relao, pois s nessa relao o eu se reproduz e s nela tem sentido. Em suma, se a abstrao causal kantiana se distinguia da empirista pelo seu carter apriorstico e ativo, distinguiu-se da spinozo-leibniziana por ser relacional e no-redutora, abrindo o caminho, no modelo geral da causalidade interior, a formas de causalidade e de abstrao

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orgnicas e estruturais, e no j imanentes. Contra a concepo do princpio da unidade enquanto reduo do todo ao eu, Kant manteve a afirmao fundamental do empirismo: a existncia real do mundo exterior. Porm, como o eu-em-relao reproduz os seus princpios apriorsticos, ou seja, como um eu que se reproduz nessa relao, nem se trata de uma relao com a natureza (empirismo), nem de uma relao final do eu consigo mesmo (spinozo-leibnizianismo). o eu em relao com o fenmeno. Por isso Jacobi pde definir a ruptura kantiana na tese de que s conhecemos o que produzimos, quer dizer, que o objeto do conhecimento o s para o sujeito e que, enquanto objeto fenomenal, decorre das formas apriorsticas do conhecimento. O conceito de fenmeno ocupa um dos lugares centrais na filosofia de Kant, exprimindo simultaneamente o carter relacional do eu e a existncia absoluta do mundo exterior. Mas exprime ainda a dominncia do eu na relao de conhecimento, pois o fenmeno a reproduo do eu sobre a existncia do mundo exterior. Daqui decorre imediatamente uma conseqncia da maior importncia. Refiro-me coisa em-si. O objeto que se conhece objeto de conhecimento, o que quer dizer que objeto numa relao em que o eu se reproduz, e no o objeto absoluto. A relao de conhecimento a produo de um objeto para o sujeito. Na sua realidade absoluta de objeto exterior, este no existe para o sujeito, mas em-si, quer dizer, numa existncia do objeto para o objeto. A coisa em-si um dos resultados culminantes da sntese kantiana, decorrendo da aplicao do princpio spinozo-leibniziano de unidade sobre a afirmao empirista da realidade exterior absoluta. Kant reformulou assim e transformou a velha problemtica da verdade por detrs das aparncias, da substncia e dos acidentes. Para ele, a matria dos fenmenos o que corresponde sensao, e a forma o que permite a essa diversidade ser coordenada. A antiga dicotomia entre o que aparece e o que resolve-se na sntese entre a atividade do eu cognoscente e a realidade absoluta do mundo exterior. exatamente isto que Kant afirmava ao estabelecer que, como a coordenao necessria das sensaes no pode consistir em sensaes, a forma a priori e a matria a posteriori; a forma a ao do eu e a matria resulta da existncia de uma realidade exterior absoluta, sem ser, porm, essa realidade absoluta. Definia-se, assim, a substantividade das formas a priori do conhecimento; mas, como no h fenmenos sem realidade exterior absoluta, eles, embora acidentais relativamente aos princpios a priori do eu cognoscente, supem tambm a existncia absoluta das coisas em-si. Condio da unidade da diversidade sensorial, as formas constituem o carter

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arquitetnico da razo, a ao do eu cognoscente para a sua reproduo no processo de conhecimento. E a homogeneidade das formas puras da intuio sensvel que lhes permite preencherem aprioristicamente todas as condies de existncia sensvel de todos os fenmenos possveis. A homogeneidade do espao e do tempo decorre do carter arquitetnico de uma razo que integra o campo experiencial no princpio ativo do eu cognoscente. Enquanto forma pura da intuio sensvel interna, o tempo concebido como substncia, como o elemento da permanncia, no servindo para pensar as transformaes. Kant foi claro a este respeito num dos pontos centrais da primeira edio da Crtica da Razo Pura, quando converteu o penso, logo existo em penso, logo existe o exterior a mim, transformando o eu em um eu-em-relao. Kant argumentava ento que a existncia do eu temporal e, como a determinao no tempo pressupe a permanncia e como essa permanncia no pode existir no eu, pois s pela permanncia o eu enquanto determinao no tempo pode existir, deduzia que a existncia temporal do eu somente possvel numa permanncia objetiva exterior, que no seja mera representao. Na verso proposta na segunda edio, Kant insistiu sobretudo na tese pela qual uma representao implica algo de permanente que distinto dessa representao. O tempo , pois, afirmado substancialmente e, enquanto acidentes, os fenmenos so remetidos para a homogeneidade do tempo como princpio a priori. O prprio Kant sublinhou o carter tradicional desta concepo de um tempo homogneo que reduz a mudana aparncia, pretendendo inovar apenas no emprego da demonstrao transcendental, onde, at ento, haveriam falhado as tentativas de demonstrao dogmtica. A prova transcendental da tese que define o objeto como o permanente no fenmeno e que reduz o mutvel aos modos de existncia do objeto consiste em afirmar que a mudana no diz respeito ao prprio tempo, mas aos fenmenos no tempo, seno seria necessria a existncia de outros tempos para medir aquelas mudanas. A permanncia constitui, no kantismo, o substrato da mudana. O que permanece no a coisa em-si, exterior relao com o eu e, portanto, exterior ao tempo enquanto forma pura da intuio sensvel interna, mas a maneira como nos representamos, a existncia das coisas no mundo fenomenal. Foi, no entanto, a afirmao da realidade absoluta da coisa em-si que levou Kant a esta concepo da permanncia no mundo fenomenal. Na segunda edio da Crtica da Razo Pura, Kant alterou parcialmente a redao, fugindo referncia ao objeto e substituindo-lhe a meno de uma persistncia quantitativa da substncia do fenmeno em todas as suas mudanas. Mas, alm de obter uma maior coerncia terminolgica, as concepes no se alteraram, continuando a secundarizar-se a mudana relativamente ao real dos fenmenos e inalterabilidade do tempo. O tempo homogneo torna a mudana ilusria.

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Desta incapacidade de pensar a transformao, resulta uma concepo passiva da antinomia que no uma contradio interna. Para Kant, algo s pode ser e no ser ao longo do tempo, e no simultaneamente, como sucederia se concebesse a insero no mesmo momento em movimentos de relao opostos. No pensando a contradio, o kantismo no pode, por isso, ter uma dinmica estrutural. Estes problemas culminam na extremao da coisa em-si: o eu em-si. Se tivermos em conta o papel dominante do sujeito na concepo reacional do conhecimento, poderemos afirmar que a coisa em-si sobretudo o eu em-si. O eu em-si o sujeito que no objeto para o sujeito, o sujeito que no se produz como fenmeno para si prprio, o que implica que s uma parte do eu seja internamente afetada pela atividade do eu. Vimos atrs que, ao tornar a razo objeto da experimentao, Kant ultrapassara a concepo de uma passividade do eu nas experincias, defendida pelos empiristas, e passara a definir o eu como o agente ativo da experimentao. Podemos verificar agora que esse papel ativo no total e que ambguo. Enquanto se reproduz a si prprio no processo de conhecimento, o eu ativo; mas, enquanto no se produz como fenmeno para si prprio, o eu passivo, tanto mais passivo quanto o perante si mesmo. Esta ambigidade encontra-se no prprio mago do problema da coisa em-si. A coexistncia no kantismo de um modelo de atividade e de um modelo de passividade do eu decorre, ainda, da aspirao sintetizadora desta filosofia. E da ambigidade no estatuto do eu resulta uma duplicidade no modelo do processo de conhecimento: os princpios puros a priori existem antes de qualquer experincia, mas no se realizam sem a experincia sensorial, nem antes dela; o que implica que, na definio geral do processo cognitivo, os princpios apodcticos tenham a primazia. Ao mesmo tempo, porm, na descrio de cada conhecimento particular, a ordem se inverte e a sensibilidade, correspondente receptividade do esprito, que um aspecto passivo, tem a prioridade sobre o entendimento que, na produo de representaes, corresponde ao aspecto ativo do eu cognoscente. Inverte-se, assim, a ordem dos intervenientes, entre o processo geral e os processos particulares de conhecimento. Essa inverso, com a coexistncia de ambos os modelos, torna a figura da mediao indispensvel para a coerncia do sistema filosfico. E a mediao necessria tambm ao kantismo para tentar resolver os paradoxos resultantes de uma concepo de tempo incapaz de pensar as transformaes. Assim, o recurso mediao decorre da problemtica da coisa em-si e do seu culminar no eu em-si. A mediao indica, afinal, a ausncia no kantismo da figura da contradio, o carter no-dinmico desta filosofia. Mas no paradoxal, ento, que um sistema cuja ruptura com a problemtica da poca consistiu precisamente na atribuio de um papel 39

ativo ao eu na relao de conhecimento seja ao mesmo tempo desprovido de uma estrutura dinmica? Ao transportar para o eu cognoscente o princpio da unidade do todo, Kant inovou, concebendo-o como um princpio ativo, como resultado da tenso permanente do eu-em-relao. Ousarei dizer essas palavras? Elas no foram escritas por Kant, mas no ser certo que transparecem claramente, deixando antever o futuro de toda a nova filosofia que com ele se inaugurou? Direi, pois: para Kant a unidade existe no a priori como ao. Mas este o campo aberto pela sua filosofia, e no ainda a letra do que escreveu. A relao em que constituiu o processo de conhecimento no plena: afirmar a existncia da coisa em-si, do eu em-si faz com que a relao implique o sujeito e o objeto apenas exteriormente a cada um deles enquanto fenmenos. Por isso no preciso momento em que ultrapassava a tradio de Spinoza e Leibniz, transformando a unificao do todo de passiva em ativa, Kant permanecia prisioneiro do empirismo, deixando o em-si escapar relao. Se a problemtica do em-si reside no ponto fulcral em que Kant inaugurou a concepo relacional e ativa do conhecimento, ela igualmente que limita as potencialidades dessa concepo. Os vazios de uma filosofia no residem no que ela no viu. Para o mundo ideolgico, o que no visto no existe. Um vazio ideolgico aquilo que fica expresso, sem nunca ter sido dito; o que o autor no consegue proferir nunca para si prprio, nem por si prprio mas dito pelos outros. A viso que os outros filsofos tiveram da obra de Kant, que a viso da diferena entre a filosofia de cada um deles e a de Kant, define-lhe as contradies e, pelo jogo destas, os vazios. As contradies do kant