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EàD: lucros para burguesia, precarização para os trabalhado- · Os trabalhadores em formação e a crise cíclica do capital Na sociedade capitalista, a educação serve essencialmente

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EàD: lucros para burguesia, precarização para os trabalhado-res em geral e exclusão para os pretos e pretas em específico

Por conta das medidas de quarentena necessárias para evitar a disseminação do novo coronavírus, algumas institui-ções de ensino tem proposto a Educação à Distância como forma de dar continuidade aos semestres ou anos letivos em escolas, universidades, cursos técnicos etc. O coletivo Outros Outubros Virão vem a público denunciar essa me-dida usada de maneira oportunista, pois se aproveita da atual crise sanitária para introduzir ataques à educação a longo-prazo com a máscara de serem meras medidas emergenciais.

A EàD é um problema, num primeiro nível, pedagógico. O processo educacional é, por definição, o processo onde o estudante entra em contato com o conhecimento já produzido pela humanidade, se apropria dele e desenvolve as capacidades tipicamente humanas.

Nesse processo, além da apropriação dos instrumentos e da linguagem, é fundamental a presença do professor en-quanto um mediador da aprendizagem, bem como a presença dos colegas com os quais compartilha e potencializa a atividade coletiva de aprendizado. É no contato do educador com o estudante que o primeiro pode identificar as dificuldades do segundo e, partindo do que este já sabe, aquele o auxilia a chegar num estágio de desenvolvimento que ainda não alcançou. Também é imprescindível a cooperação dos estudantes entre si, que perguntam e tiram dúvidas, fazendo com que se tornem membros de uma mesma coletividade ao redor de um objetivo específico: o do aprendizado.

Essa dimensão coletiva das relações de ensino é muito importante. Em grupo os erros e acertos de cada um se convertem em erros e acertos de um todo, tornando mais ampla a gama de possibilidades de desenvolvimento da própria coletividade. Esses laços, além de produzirem no processo de ensino-aprendizado sensações de prazer e sa-tisfação, possibilitam um alargamento de sua qualidade.

É precisamente a dimensão coletiva que é perdida em aulas pelo computador. Mesmo no caso de aulas por telecon-ferência, não há a mesma possibilidade de comunicação e interação com os colegas, etc. É importante destacar que esse isolamento e restrição da coletividade não é inovação da EàD: quantos de nós não vivemos essa condição de isolamento nas aulas e avaliações em todos os níveis educativos? Na verdade, o desenvolvimento da EàD exacerba os traços individualistas presentes no capitalismo, expondo seus limites formativos, já que a socialização é função fundante das formas especificamente humanas de aprendizagem. Se, do lado dos estudantes, isso prejudica a for-mação, do lado dos professores isso prejudica as condições de trabalho: cada vez mais isolados, com cada vez menos relações com seus pares, seja na relação trabalhista (outros professores), seja na relação de ensino-aprendizagem (os estudantes), os professores na EàD tendem a manter relações estreitas unicamente com o conteúdo ministrado, prejudicando a sua capacidade de avaliar e aprimorar, por meio da reflexão conjunta, os frutos de seu trabalho, assim como, de obstaculizar sua organização coletiva enquanto categoria. Isso sem falar, evidentemente, na tendência de que um só professor abarque um número cada vez maior de alunos, já que as relações mantidas se estreitam (ten-dencialmente sob um salário menor), desgastando com maior velocidade suas capacidades de trabalhar.

Demissões e retirada de direitos dos trabalhadores da educação, precarização e piora da situação dos estudantes

Desse modo, aparece o segundo nível no qual a EàD é um proble-ma: a retirada de direitos em geral na forma específica de preca-rização do trabalho e do ensino. O governador de São Paulo, João Dória, dá um exemplo claro. Seu governo decidiu manter os contra-tos dos professores da rede estadual, exigiu que dessem algumas aulas online e depois deu férias coletivas antecipadas. No entanto, com as aulas presenciais suspensas, o governo suspendeu também os contratos com as empresas terceirizadas, levando à demissão imediata de milhares de merendeiros, cuidadores de crianças com deficiência e motoristas que trabalhavam na rede estadual. Além disso, os professores são levados a ter que aprender a toque de

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caixa a mexer na internet (nem sempre com o auxílio adequado do Estado) para poderem montar a sua aula. Isso é trabalho, e é trabalho não-remunerado: aumento da jornada de trabalho sem aumento de salário. Vemos, pelo exemplo de São Paulo, como sob a aparência de medidas “emergenciais”, efetivamente se precariza e ataca os traba-lhadores da educação.

Em pesquisa de 2018 publicada pela ANDIFES, o número de estudantes universitários das universidades e institutos federais que trabalham é de 29,9%, enquanto aqueles que precisam trabalhar e estão à procura de emprego chegam a 40%. Ou seja, aliar o estudo com o trabalho é questão presente para mais da metade dos universitários, seja em um emprego estável, ou no desemprego e na precariedade/informalidade. Se olharmos para dados que contemplem universidades públicas e privadas, mais da metade dos estudantes trabalham, o que só aumenta se considerarmos os que estão procurando emprego.

Tabela: Graduandos (as), segundo a situação de trabalho - 2018 e 2014 (em%)

(http://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2019/05/V-Pesquisa-do-Perfil-Socioecon%C3%B4mico-dos-Estudantes-de-Gradua%C3%A7%C3%A3o-das-Uni-versidades-Federais-1.pdf)

Com a EàD essa situação – conciliação de trabalho e estudo – se torna ainda mais complicada, seja para estudantes de Ensino Médio ou Ensino Superior. Primeiro, pela questão do tempo, pois a cobrança constante de tarefas via apli-cativos de mensagem, característica já difundida nas diversas formas de trabalho hoje, é acentuada pelo homeoffice. Sem falar do sem número de estudantes que, juntos com o restante da juventude trabalhadora, encontram em traba-lhos informais, como as plataformas digitais (Ifood, Uber e os demais) a única forma de obter renda nesse momento1. Acrescentada a isso há a necessidade de execução do trabalho doméstico, como lavar, passar, limpar a casa, fazer a comida, o que em grande medida ainda é feito principalmente pelas mulheres. No topo do bolo, a EàD: alguém tem dúvidas de que a classe trabalhadora será cada vez mais afastada da educação?

Para além do tempo, há ainda a inadequação do ambiente doméstico enquanto espaço para o estudo. Se por um lado as escolas fornecem para o estudante um lugar onde lhe será oferecida comida e um ambiente propício aos estudos, por outro, muitas famílias não conseguem garantir nenhuma das duas coisas dentro de casa, pois falta comida e muitas vezes o estudante tem que lidar com questões relativas ao convívio familiar. São muitos os casos onde os es-tudantes sequer possuem um quarto próprio, individual, onde possam “desligar-se” de outros assuntos para estudar, ou um computador próprio que não precise ser repartido entre os outros moradores da casa. Ademais, a parcela da população com renda familiar de até 1 salário mínimo que possui acesso a um computador é de 19%.

Se levarmos em consideração que uma expressiva parte da população brasileira vive em favelas, bairros não planeja-dos, com habitações precárias, com muitos habitantes dividindo um mesmo cômodo e que a maior parte das pessoas que aí vivem são pretas, é evidente que há um caráter eminentemente racista nessa medida de precarização da educação. Em se tratando de comida, muitas famílias já tinham as férias escolares como momentos de ampliação de sua insegurança alimentar antes da pandemia e da quarentena, imagina agora com a crise econômica?

Considerando a situação da educação pública, e até mesmo de algumas redes privadas, a própria estrutura escolar já é extremamente precária, o que coloca a classe trabalhadora numa luta histórica pela constituição desse o espaço,

1 O trabalho informal e precário é uma constante no desenvolvimento capitalista, e tem se tornado regra nos últimos anos. A “uberização” do trabalho como muitos tem chamado – o trabalho por meio de plataformas digitais – já é presente há anos na sociedade, e muitas vezes têm sido o único espaço para que os trabalhadores, em especial a juventude, consigam se sustentar. Com a atual pandemia, e consequente crise econômica que se instaura, o elevado número de desempregados tem levado cada vez mais trabalhadores a venderem sua força de trabalho por meio dos aplicativos. Tem sido constantes os relatos de uma exploração cada vez maior para receber ainda menos pelas corridas e entregas.

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a escola, como o espaço efetivamente responsável por fornecer um ambiente físico e psicológico que fortaleça o ensino-aprendizagem, respaldado numa concepção coletivista que realmente avance a aprendizagem. A EàD, como já vimos até agora, vem justamente na contramão dessa luta. O que determina que essa regressão em relação à luta da classe trabalhadora apareça com tanta força agora?

Os trabalhadores em formação e a crise cíclica do capital

Na sociedade capitalista, a educação serve essencialmente para reproduzir a força de trabalho e manter o controle educativo sobre os filhos dos trabalhadores, isto é, para que os futuros trabalhadores adquiram habilidades técnicas e os costumes necessários ao ato de trabalhar. Dessa forma, os estudantes são uma categoria específica da classe trabalhadora, a dos trabalhadores em formação (mesmo que, como vimos, muitos estudantes já exerçam atividades de trabalho – seja remunerado ou não).

A disputa entre trabalhadores e burgueses pela riqueza social atravessa também a educação. Seja por meio do corte de gastos estatais com a educação pública para que esses recursos sejam reencaminhados aos seus bolsos em di-versas formas (concessões, pagamento da dívida pública, desoneração fiscal, etc), seja forçando uma lógica cada vez mais produtivista e precária tanto na educação pública e privada, a burguesia promove maior exploração da força de trabalho e menor investimento no orçamento público em prol do capital financeiro. Assim, estão disponíveis mais trabalhadores em menos tempo com menor custo. Para além disso, o próprio setor educacional pode ser uma fonte de lucros para burguesia, o que atesta a formação do maior conglomerado educacional privado do mundo com im-portante ajuda dos governos do PT desde 2003.

Dessa forma, medidas que tendam a precarizar a educação são medidas que atacam a situação geral da classe tra-balhadora ao mesmo tempo que são ataques diretos aos trabalhadores em formação. Mas não só: também são medidas que aumentam a exploração, seja pelo lado da produtividade (o professor precisa ministrar uma aula virtual para várias turmas no mesmo tempo em que ministraria apenas uma aula presencial para uma turma), seja pela di-minuição dos gastos em salários (pelas demissões e pela pressão aos professores que sobrarem, já que haverá mais desempregados disponíveis para contratar). Longe de serem inovações, essas formas de exploração já são adotadas há tempos pelos monopólios privados da educação (Kroton, YDUQS, Laureate etc) que oferecem cursos à distância ou “semi-presenciais”.

Para vencer seus concorrentes, os capitalistas são obrigados a diminuir os gastos em capital variável (salários) e aumentar o de capital constante (tecnologias, máquinas, instalações e ma-térias-primas). Em outras palavras, a burguesia busca sempre investir cada vez menos nos trabalhadores e cada vez mais em maquinário para que a produtividade dos trabalhadores seja maior. No entanto, esse procedimento faz com que a taxa de lucro tenda a cair cada vez mais, e é nesse momento que os capitalistas começam a tomar diversas medidas para queimar capital constante (máquinas, instalações, matérias primas) e reiniciar o ciclo econômico. Eis, então, a crise capitalista.

Longe de ser uma condição “permanente” do sistema capita-lista, a crise econômica é cíclica e periódica. A particularidade da crise atual é que ela foi antecedida por um longo ciclo de acumulação e expansão econômica global (após a saída da crise de 2007/08) e que, além disso, estamos passando pelo aconte-cimento de uma crise sanitária, que intensificou a crise econô-mica de forma ainda mais particular.

Nesse processo crítico e violento contra a classe trabalhadora algumas empresas sobrevivem e outras são levadas à falência completa. O fato de essas medidas serem adotadas agora pe-las universidades e escolas públicas é um sinal de que uma das medidas “pós-crise” pode ser a privatização, total ou parcial, da educação pública – medida que já vinha se apresentando há

(https://3patrias.com/cade-reprova-fusao-das-universidades/)

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décadas no Brasil, mas que em um momento de crise se acelera. Chegamos, então, à conclusão de que esse processo é determinado pela lógica e natureza do próprio sistema capitalista, mesmo que o coronavírus apareça como um catalizador, revestindo de “naturalidade” a adoção da EàD agora.

Para conseguir ter condições de realizar a EàD é preciso que a instituição tenha estrutura para: produzir os vídeos e materiais; organizar a metodologia do ensino que se adéque ao ambiente remoto e online; ferramentas para dis-tribuição das aulas (sites de hospedagem e streaming, canais de televisão etc.). Revemos, aqui, o avanço da priva-tização: o caminho adotado pelo Estado para obter essa estrutura não é o de investimento em tecnologias públicas e estatais, mas sim a compra desses serviços das empresas privadas, e em especial dos grandes monopólios de TI, como Google e Microsoft. Portanto, a EàD, junto com outras propostas que vinham caminhando no Brasil – como o Future-se no ensino superior e a reforma do Ensino Médio – escancaram a porta para a privatização da educação pública.

Tudo isso considerado, é absolutamente aterrador imaginar o impacto da efetivação e proliferação de medidas EàD sobre a classe trabalhadora como um todo, em particular suas parcelas mais pobres e vulneráveis. Como na estrutura social brasileira a população negra foi constituída dentro dessas parcelas empobrecidas, um dos efeitos prováveis da EàD, a evasão escolar, afetará muito mais profundamente a negritude trabalhadora. A denúncia da EàD passa, portanto, necessariamente pela exposição de seu caráter racista enquanto política proposta pela burguesia e por seu Estado.

EàD: a face “pedagógica” da exclusão e do extermínio da juventude preta

Além da queima de capital constante, a crise também gera um aumento do número de desempregados. Desses, uma parte pode ser deixada para morrer de fome (e, no caso atual, também de covid-19) ou pode ser diretamente exter-minada através das guerras imperialistas ou das “operações policiais” contra “inimigos internos”, gerando lucros aos produtores de armas (que são uma das saídas capitalistas para a crise, já que podem fornecer novas demandas – bélicas – aos outros setores da indústria capitalista). Assim, a crise cíclica não é a única causa do extermínio de setores do proletariado (no Brasil, principalmente o proletariado preto), mas é, sim, uma das causas da sua intensificação.

O genocídio da população preta em escala global é algo estruturante do sis-tema capitalista, pois remonta à escravidão e se mantém sob o regime de segregação racial atual. No Brasil esse genocídio tem se ampliado e sofisticado a cada ano. Desde a aprovação da Lei de Drogas em 2006, durante o governo Lula, o encarceramento no Brasil tem crescido exponencialmente: somos hoje o terceiro país do mundo em número de encarcerados. Com esse mecanismo legal que facilita a repressão e a prisão de pessoas negras e pobres, a “Guerra às Drogas”, que nada mais é do que uma guerra aos negros e pobres, também se intensificou no Brasil. Temos a polícia que mais mata no mundo. A sanha racista e genocida desse sistema alicerçado na supremacia branca não para-rá ou diminuirá com a crise atual, pelo contrário. O racismo endêmico tende a explodir e avançar sobre cada poro da sociedade brasileira. Na educação, como já vimos, não será diferente. Esse excedente de “vagabundos”, “pobres”, “desocupados” não têm outro destino a não ser o extermínio direto, pela bala, ou indireto pela negligência na assistência social e sanitária.

Sem dúvida, a população preta é a mais vulnerável ao coronavírus no Brasil, dadas as diversas desigualdades socioeconômicas advindas do racismo que vão desde condições de habitação até o acesso à água, recurso tão importante no combate a proliferação do coronavírus. Perversos exemplos desse quadro que estamos expondo são o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Em plena quarentena decretada devido à pandemia, as operações policiais genocidas em favelas do estado governado pelo facínora Witzel não pararam, apenas mudaram de forma. Já no Sul, o prefeito de Porto Alegre segue fazendo opera-

(https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/26/superlotacao-aumenta-e--numero-de-presos-provisorios-volta-a-crescer--no-brasil.ghtml)

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ções de demolições de casas nas periferias da cidade. Parece que o #FiqueEmCasa não é estendido as comunidades periféricas, aos mais vulnerabilizados, majoritariamente negros. Não é por acaso que diante desse cenário racialmen-te trágico o crápula do Bolsonaro tem defendido abertamente o fim da quarentena, não por irresponsabilidade, bur-rice ou loucura, mas por método de recuperação econômica às custas da ampliação do extermínio do proletariado preto. O que esses dados nos revelam é que a sociedade capitalista é necessariamente racista, pois independente-mente de que período do ciclo econômico estejamos (seja expansão ou crise) ela promove uma profunda segregação e opressão sobre os não-brancos. Contudo, intensifica e reorganiza o racismo em épocas como as que estamos agora, de recessão econômica e agudização das contradições sociais.

Esse racismo atravessa a própria educação. Em 2019 uma pesquisa da UNICEF apontou que o número de estudantes negros reprovados no Brasil era o dobro de reprovados brancos. Vale destacar que um dos estereótipos racistas que recaem sobre os pretos e pretas do mundo é a respeito de sua capacidade intelectual. Vistos pelo imaginário social racista enquanto corpos desprovidos de emoções e racionalidade sofisticadas, desde muito cedo, pretos e pretas são pressionados a locais de trabalho onde prevalecem atividades manuais sobre as intelectuais. A escola enquanto es-paço de reprodução do intelecto socialmente construído é posta, portanto, como um local estranho às peles pretas. Perpetuando assim, o caráter supremacista branco das instituições de ensino, bem como, a pobreza e o subemprego entre o povo preto que quando, com muita dificuldade, consegue ir contra essa tendência se vê afetado diretamente pela precariedade sistêmica da educação sob o capital.

Nesse sentido, a EàD se revela como a face “pedagógica” da exclusão e do extermínio do proletariado preto, já que, além das causas citadas, uma parte dos estudantes não possui acesso a um computador, ou tem que escolher, no momento atual, entre pagar os planos de internet ou comprar comida. Nas favelas o medo da fome devido à quaren-tena desassistida promovida pelo Estado brasileiro é a maior preocupação entre seus moradores. Como os filhos das comunidades periféricas terão condições de estudar diante de uma universidade EàD? Associada a falácia da maioria universitária de pretos, a EàD vem engrossar o conjunto de mecanismos de exclusão racial do ensino2.

O cenário atual: movimentações político-econômicas em torno das propostas do EàD

No dia 18 de março, o governo federal lançou uma portaria permitindo o sistema EàD como medida excepcional nas universidades federais. Dessas, 37 de 63 recusaram aderir, utilizando alguns argumentos em comum com os presen-tes nesse texto.

Outras instituições como a Unicamp, por exemplo, lançaram programas de aulas à distância para a graduação supos-tamente acompanhadas do direito a trancar o semestre e fazê-lo depois. No entanto, pouco após lançou uma porta-ria dizendo que os estudantes bolsistas (justamente o setor mais vulnerabilizado socialmente da universidade) que não cumprissem os 75% das aulas à distância perderiam suas bolsas.

Inúmeras universidades públicas vêm agora reformulando propostas para garantir o estudo remoto. Sob o argumen-to de que precisamos pensar maneiras de não parar as atividades, de que a quarentena pode se prolongar por meses, as reitorias e setores do corpo acadêmico tem proposto que sejam fornecidas conteúdo remoto de caráter voluntá-rio, e que não será contabilizado como horário obrigatório. No entanto, nada falam sobre: a precariedade das condi-ções de ensino pela EàD; falta de preparo dos professores para tal modalidade; falta de estrutura física para estudar remotamente tanto dos professores como principalmente dos estudantes; falta de condições físicas e psicológicas para manter a normalidade do estudo; escassez de políticas de permanência e assistência estudantil – que já falhas historicamente hoje em dia são ainda piores com o corte de bolsas, fechamentos dos restaurantes universitários e outros ataques.

O cenário nas universidades privadas, que já contavam com diversas aulas EaD, só acentuam as já precárias condi-ções de ensino e trabalho. Agora com a totalidade das aulas EaD, os professores vêm sentindo o aumento da carga de trabalho e os estudantes sentindo as péssimas condições de estudo com um conteúdo cada vez mais precário. Enquanto isso as mensalidades continuam sendo cobradas como se tudo seguisse na normalidade. É mais um claro exemplo de que no ensino privado, da grande indústria da educação, o que está em jogo é o lucro e não a formação.

2 Indicamos como falaciosa a afirmação de que pretos são maioria nas universidades federais porque a autodeclaração é o único critério garantido pela “Lei de Cotas” e a fraude é comum e generalizada em todos os processos seletivos. Vale lembrar que em 2022 acaba o prazo da lei que obriga cotas sociais e raciais nas universidades federais. Certamente haverá ataques a essa política afirmativa e a EàD é, sem dúvida, um prelúdio deles.

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Junto a isso, voltam a pipocar as propostas de “homeschooling” (educação básica em casa) no governo brasileiro. A proposta em si é absurda num país onde as leis recentes permitem o aumento da jornada de trabalho e onde as pessoas passam fome. Mas o homeschooling é historicamente um movimento elitista, que atende aos interesses da classe dominante e implica que os pais teriam que se formar (mais trabalho docente não-pago!) antes de ensinar algo aos filhos, o que, num país conservador como o Brasil, pode levar a resultados próximos aos Estados Unidos, onde o homeschooling foi utilizado pela extrema-direita para criar um “exército” de cristãos fundamentalistas e reacionários.

Esse cenário coloca a luta contra as diversas formas de EàD como um dos carros-chefes entre as tarefas dos traba-lhadores em formação no momento atual. Não somos contra a disponibilização de materiais, recursos e conteúdos online, mas entendemos que a proposta que vem junto com a EaD carrega um conteúdo de precarização das con-dições de ensino, exclusão dos trabalhadores, em especial dos pretos e pretas, e privatização da educação pública. Precisamos desmascarar tais propostas em sua essência e em seus objetivos, demonstrando que seus promotores apenas querem precarizar e privatizar a Educação em nome do lucro de poucos. Como vimos, a centralidade dos lu-cros é contrária às necessidades dos trabalhadores e dos trabalhadores em formação, de modo que precisamos nos contrapor a ela com a organização autônoma e independente de toda a classe trabalhadora.

Nossas profissões têm data de validade

O que será do porteiroQuando não tiver mais propriedadePara vigiar, controlar?

O que será do segurança, da políciaQuando não houver mais autoridadesPara proteger?

Como viverão os médicos e seus remédiosQuando a cura para as doençasFor um bom conselho e um ouvido amigo?

O que farão os advogados, especialistasQuando as regras - se precisarem existir -Forem feitas por todos e para todos?

O que será dos padres, pastores, mentores,religiosos profissionaisQuando a espiritualidade não for monopólio depoucosE a fé não estiver atrás de palcos, livros, altares?

Para que jornalistas profissionaisQuando todos puderem contar suas históriasUnidos por uma História de classe, comum, semnecessidade de manipular?

Por que políticos profissionaisQuando a vida for políticaE a profissão for viver?

Virá um tempo em que todosSerão filósofos-professoresE trocaremos conhecimentoscom a humildade de quem sabeque será sempre estudante-aprendiz

Virá um tempo em que todosserão atores, músicos, dançarinos, poetas,pintoresE a arte não será privilégio, privada, restrita

Virá um tempo de viverEntre iguaisE, portanto, abraçar o diferenteSem temer o desconhecido jamais

Vivemos em um mundo com data de validade

Por isso lutamosPara vencerPara viver

Num mundo contínuoSem datasSem prazos

HumanoValioso

***

O mundo dos trabalhadores(Militante do Coletivo Outros Outubros Virão)

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