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EDGAR ALLAN PÖE BERENICE - AUTORES CLÁSSICOS · 2019-02-09 · Ah! A sua imagem ergue-se diante de mim, radiosa e bela, como nos tempos idos da sua graciosidade e alegria! Oh, que

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EDGARALLANPÖE

BERENICE

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSESTRANGEIROS

TERROR-HORROR-FANTASIA

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Título:BERENICE

Autor:EdgarAllanPöe(1809–1849)

Traduçãodeautordesconhecidodoiníciodoséc.XX(c.1903)

Imagemdacapa:HarryClarke(1889-1931)

Leiautedacapa:Canva

Série:ClássicosEstrangeiros–vol.13

Editor:FreeBooksEditoraVirtual

Site:www.freebookseditora.com

Obraoriginaldedomíniopúblico(Leinº9.610,de19defevereirode1998,art.41)

Direitosdatradução:Domíniopúblico,nostermosdoart.43daLeinº9.610,de19defevereirode1998.

Ano:2017

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br

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SumárioBERENICE

SOBREOAUTOR

BERENICEAmisériadaterraémultiforme.Sobrepujandoovastohorizontecomo

oarco-íris,assuascoressãotãovariadascomoasdeste—tãodistintasetãointimamentecombinadascomoelas.Sobrepujandoovastohorizontecomooarco-íris! Como foi que da beleza e uderivei um tipo de hor ror?— do

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símbolo da paz um símile de sofrimento?Mas, como,na ética, omalé aconsequência do bem,assim do prazer nasceu,com efeito, a do r .Ou arecordaçãoda ventura passada é a amargurade ho je ,ou a sangústiaspresentestêmasuaorigemnosêxtasesporventuragozados.

OmeunomedebatismoéEgeu;odeminhafamília,essenãoocitarei.Todavia,nãohánopaístorresmaisantigasemaisvenerandasdoqueomeuvelho, severo ,hereditário solar. Chamaram à minha linhagem raça devisionários; e e mmuitos e frisantes pormenores— no caráterdo solarfamiliarnosafrescosdosalãonobre—nastapeçariasdosquartosdedormir—noscinzeladosdealgumastravesdearmaria—mas,maisespecialmente,na galeria de pinturas antigas — na feiçãoda sala da biblioteca — e,finalmente,naíndoleespecialíssimadorecheiodabiblioteca,existemaisdoqueosuficienteparaàevidênciaprovarajustezadaminhaassertiva.

Asrecordaçõesdosmeusprimeirosanosandamligadas a esta sala eaosseusvolumes—dosquaisnadamaisdirei.Foiaíquemorreuminhamãe.Foiaíqueeunasci.Maséociosodizerqueeunãohaviavividoantes—queaalmanão temexistênciaanterior.Negai-lo?—nãodiscutamosoproblema.Comoeuestouconvencido,nãoprocuroconvencer.Existe,porém, emmimumalembrançadeformasaéreas—deolhosespirituaiseexpressivos—desons, musicais, conquanto tristes — uma lembrança que j ama i ssedesvanecerá; um arecordaçãosemelhante a um asombra, vaga,variável,indefinida, inconsistente, e que a u m asombr ase assemelhaainda naimpossibilidadeemqueeumedebatodemelibertardela,enquantosemenãoapagarosoldarazão.

Foi nesta sala que eu nasci. Assim, acordando da longa noite do queparecia,masnãoera,não-existência,parade chofreser lançado emplenopaísdefadas—numpaláciodeimaginação—nosperegrinosdomíniosdopensamentoedosabermonásticos—nãoédeestranharqueeuolhasseemvoltademimcomolhosespantadoseardentes,quepassasseaminhainfânciaimersoemlivrosedissipasseaminhamocidadeemsonhoedevaneio.Masoqueédeestranharéqueosanosfossempassando,queeuatingisseoapogeudaminhavirilidadeemeconservassesempredentrodosmurosdosolardemeuspais.Queprodigiosaestagnaçãoimobilizouasfontes daminha vida!Que prodigiosa inversão se operou no car áterdo m e um a i sbanalpensamento!

As realidades do mundo afetavam-me como visões, e como visõesapenas,aopassoqueasdesvairadas ideiasdopaísdossonhosse tornavam,

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por sua vez— não o material da minha existência quotidiana— mas, narealidade,essamesmaexistênciaexclusivaeabsorvente.

***

Berenice e e uéramospr imose fomoscriados juntos no meusolarpaterno.Todavia,asnossasíndolesdivergiamcompletamente:eueradébiledoenteevivia imersoemsombrasemelancolia—elaer aágil,graciosaeexuberantedeenergia.Asuapredileçãoeracorrerpelosmontes—aminha,estudarnoclaustro.Eu me comprazia emconfinar aminha vida dentro domeucoraçãoe abismava-mede co r poe alma na mais intensa e penosameditação; ela vagueavadescuidosamente pela vida, alheia à ssombrasdocaminhoouaovoosilenciosodashorasdeasasnegras.

Berenice!—evocooseunome—Berenice!—eaestapalavrasurgemdasbrumosasruínasdamemóriamiltumultuosasrecordações.

Ah!Asua imagemergue-sediantedemim,radiosaebela, comonostemposidos da sua graciosidade e alegria! Oh, que beleza deslumbrante efantástica!Oh,silfoporentreasmatasdeArnheim!Oh,náiadeporentreassuasfontes!—E,depois...Depois,tudoémistérioeterror,eumahistóriaquenãodeveriasernarrada.

Adoença—doençafatal—soprousobreoseucorocomoumsimum,e, mesmo enquanto os meus olhos a estavam contemplando, o espírito detransformação abateu sobre ela as suas asas, lançando as garras à suainteligência,aosseushábitos,aoseucaráter,e,transtornandoaté,damaneiramaisterrívelesutil,aidentidadedasuapessoa!Aidemim!Oflagelochegoue partiu, e a vítima— onde estava ela? Eu não a conhecia— ou já não aconheciacomoBerenice.

Entre o numeroso séquito de doenças derivadas daquela fatal eprimária, que operou uma revolução tão horrível nomoral e no físico deminha prima, pode mencionar-se, como a mais aflitiva e obstinada, umaespéciedeepilepsiaquenão rarasvezes terminavaem transecataléptico—transequemuitodeperto se assemelhava àmorte efetiva, e daqual ela, namaiorpartedoscasos,serecobravaabruptamente.

No entanto, a minha doença — pois me disseramque e um edeviaconsiderarumdoente— ia acelerandoos seus progressos, até, finalmente,assumirumcarátermonomaníacodeformanovaeextraordinária—quefoi,hora a hora,momentoamomento,redobrandode intensidade e ,por fim,

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obtevesobremimomaisincompreensívelascendente.Estamonomania,seassim a devo classificar, consistia numamórbida irritabilidade daquelaspropriedades intelectuais que na metafísicase denominamfaculdades deatenção.Émaisdoqueprovávelqueeunãosejacompreendido.Maseu,naverdade,receioquenãosejademodoalgumpossíveldaraoleitorumaideiaadequadadessa nervosa intensidade de atenção com que, nomeucaso, asfaculdadesda meditação (paranão r eco r r eraos termo stécnicos) seabsorviam e se sepultavam na contemplaçãodos objetos maisbanais douniverso.

Permanecerlongas e infatigáveis horascom a atençãoafer r adaaalgumagaratujanamargemounotextodeumlivro;passaramelhorpartede um dia de verãoabsorto no examede umasombra projetadasobre astapeçar iasou sobre o assoalho; abismar-me umanoite inteira nacontemplaçãoda chamade um candeeiroou das br asasde uma lareira;embeber-mediasseguidosnoperfumedeumaflor; repetirmonotonamentealgumapalavravulgar,atéosom,àforçaderepetido,deixardeacordarnomeuespírito amaisténue ideia; perdertoda a noçãodemovimentoou deexistência física, por meiode umaabsoluta imobilidade física e mque euperseveravalonga e obstinadamente— eis a íalgumasdasmaiscomunsemenosperniciosas extravagâncias,oriundas de umacondição especialdasminhas faculdadesmentais, não, decer to,absolutamente única no mundo,mas,semdúvida,dedificultosíssimaanáliseouexplicação.

Todavia,compreendei-mebem:ainsólita,insistenteemórbidaatençãoassimexcitadaporobjetosemsimesmofúteis,nãosedeveconfundircomaquelapropensãomeditabunda,comumatodaahumanidadeeaquesãomaisparticularmenteatreitasaspessoasdeimaginaçãoardente.

Nem sequer era, comoa princípio se poderia supor, umacondiçãoextrema,um exagerode tal propensão, m a soriginária e essencialmentedistintaediferente.Habitualmente,osonhadorouentusiasta, interessando-seporumobjetonão fútil, imperceptivelmente perdedevistaesteobjetonumemaranhamentodededuçõesesugestõesderivadasumasdasoutras,atéque,ao c aboda divagação, muitas vezesrepleta de prazer, ele encontra oincitamento ou a causa primáriado seu devaneio inteiramente apagadaouesquecida.Nomeucaso,porém,oprimitivoobjetoerainvariavelmentefútil,emboraassumisse, devido à minha desequilibrada visão, umaimportânciarefrataeirreal.Poucas deduções eufazia,seéqueasfazia.Eessaspoucasrefluíam pertinazmente a oobjetoprimitivo comoa um centro. As minhas

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meditaçõesnuncam ecausavamprazer. E, ao cabodomeualheamento,acausa primária,e mvez de se encontrarj álonge do m eualcance,haviaatingido aquele interesse sobrenaturalmente exagerado,que e r aa feiçãocaracterísticadadoença.Numapalavra,asminhasfaculdadesintelectuaisquemaisparticularmente entravamemaçãoeram,comoe udisse atrás, a sdaatençãoenão,comonocasodomeditativovulgar,asdaespeculação.

Osmeuslivros,nestaépoca,senarealidadenãoserviamparairritaromeudesarranjomental,participavam,comofacilmentesecompreenderá,nasuaíndoleimaginativaeincoerente,dasqualidadescaracterísticasdoprópriodesarranjo.Recordarei,entre outros, o tratado do nobre italiano CoeliusSecundus Curio

1, Amplitudine Beati Regni Dei; a grande obra de Santo

Agostinho, A Cidade de Deus; e Tertuliano, De Carne Christi, e mque aparadoxalsentença“MortuusestDeifilius;credibileestquiaineptumest:etsepultus resurrexit; c e r t u mest quia impossibile est

2” ocupou

ininterruptamente o m e utempodurante muitas semanasde laboriosa einfrutíferainvestigação.

Destarte pareceráque, desviada do seu equilíbrio apenaspor coisastriviais, a minha razão se assemelhavaàquele r ecifecitado por PtolomeuHefestião,que,afrontandorijamenteosataquesdaviolênciahumanaeafúriaselvática dos ventos e das vagas, somente tremiaa oser tocado pela florchamadaasfódelo. E embo r a,a opensador superficial, possa parecerindubitável que a alteraçãoproduzida pela doença na condição moral deBerenice,meproporcionassemuitosobjetosparaoexercíciodaquelaintensaeanormalmeditação,cujanaturezaeutivealgumadificuldadeemexplicar,ocertoéquetalsenãodeu.

Nosintervaloslúcidosdaminhaenfermidade,oseuinfortúnioafligia-me deveras, e, condoído profundamente daquela total submersão de umamocidade tão formosa e tão gentil,muitas vezesmeditei com amargura namaneiramaravilhosacomonelaseoperaratãosúbitaeestranharevolução.

Estas reflexões, porém, não participavam da idiossincrasia da minhadoença,eeramasmesmasque,emigualdadedecircunstâncias,ocorreriamàmassa ordinária da humanidade. Fiel ao seu caráter próprio, o meudesarranjovoltava-seàsmudançasmenos importantes,masmais flagrantes,operadas no aspecto físico de Berenice — na singular e horripilantedeformaçãodasuaidentidadepessoal.

Duranteosradiososdiasdasuabelezasempar,émaisquecertoqueeu

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nunca a amara. Na estranha anomalia da minha existência, os meussentimentosnunca foramdo coração, e asminhas paixões foram sempredainteligência.

Naluzpardacentadasprimeirashorasmatutinas,porentreassombrasda floresta ao meio-dia, e no silêncio da minha biblioteca à noite, elaperpassarapelosmeusolhoseeuavira—nãocomoaBerenicerealeviva,mascomoaBerenicedeumsonho;nãocomoumserterreno,mascomoumaabstração; não como uma coisa a admirar, mas a analisar; não como umobjetodeamor,mascomotemadamaisabstrusaedesconexaespeculação.

E agora— agora eu tremia na sua presença e empalidecia ao vê-laaproximar-se. Todavia, lastimando amargamente a sua desditosa e míserasituação, eu evocava nomeu espírito o pensamento de que ela haviamuitotempomeamavae,nummomentofatal,falei-lhedecasamento.

A época aprazada para as nossas núpcias ia-se, finalmente,aproximando,quando,numatardedeinverno—umatardecalma,nevoentaedeumatemperaturaimprópriadaestação,quesãoassimcomoaamadeleitedeAlcíone

3—julgandoestarsozinho,sentadonasalainteriordabiblioteca,

levanteiderepenteosolhosevinaminhafrenteBerenice.Era a minha imaginação excitada — era o brumoso influxo da

atmosferaeraodúbiocrepúsculodasala—oueramasroupagenscinzentasquearevestiam—oquelhedavaumcontornotãovacilanteetãovago?Eunãopoderiadizê-lo.Nãoproferiupalavra,eeupornadadestemundopoderiapronunciar uma sílaba. Percorreu-me o corpo todo um gélido calafrio;oprimiu-meumasensaçãodeincomportávelansiedade;avassalou-meaalmaumamortificante curiosidade; e, enterrando-me na poltrona, ali permanecialgumtempoimóvelesemfôlego,deolhoscravadosnoseuvulto.

Aidemim!Elaestavaexcessivamentemagra, e emnenhuma linhadoseucontornosevislumbravaomínimovestígiodoqueforaantes!Porfimosmeusolhosansiososfixaram-seemseurosto.

Tinhaafrontealta,muitopálidaedeumaplacidezsingular;ocabelo,outroranegrodeébano,caía-lheempartesobreatesta,formandoinúmeroscaracóisdeumamarelogritante, que, no seu caráterfantástico, faziam umflagrantecontrastecomamelancoliapredominantedafisionomia.Osolhose r a mba ço se sem vida e par eciamaté desprovidos de pupila, e,involuntariamente, desviei deles osmeuse pus-mea contemplaros lábiosfinosearrepanhados.Entreabriam-se.E,numsorrisodepeculiarsignificado,os dentes da transformadaBerenice surgiram, lentamente,à minha vista.

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ProuveraaDeusqueeu nuncaoshouvessevisto,ouque,havendo-osvisto,morresseinstantaneamente!

***

O fecharde umaporta arrancou-medo alheamento,e ,erguendoosolhos, vi queminha primahavia saído da sala.Do âmbito desordenado domeucérebroéque—aidemim!—nãosaíranemsairiaobrancoe tétricoespectrodosdentes!Na sua superfícienãohaviauma mancha—nemumasombranoesmalte—nemumaarranhaduranassuasarestas—masoqueeuviraduranteoperíododoseusorrisobastaraparagravá-losparasemprenaminhamemória.

Via-os agora ainda mais nitidamente do que então. Os dentes — osdentes!—estavamaqui,ali,portodaaparte,visíveisepalpáveisantemeusolhos.Compridos,estreitoseexcessivamentebrancos,comoslábiospálidosarrepanhadossobre eles, comono próprio momentoda sua pr imeiraeterríveleclosão.

Surgiuentão,emtodaasuaplenitude,a fúriadaminhamonomania,eem vão lutei contra a sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplosobjetos domundo externo eu não tinha pensamentos senão para os dentes.Desejava-oscomumaansiedadelouca.

Todasasoutrascoisasetodososdiferentesinteressesseapagavamanteasuaexclusivaeabsorventecontemplação.

Eles e só eles estavam presentes aos olhos domeuespírito e ,na suaúnica individualidade, tornaram-sea essência da minha vida intelectual.Examinava-osatodasas luzes.Voltava-osem todasas posições.Observavaas suas características. Quedava-mea estudar a ssuas minúcias. Meditavasobre a sua conformação.Cismava sobre a alter açãoda sua natureza.Estremeciaquando,naminhaimaginação,lhesatribuíaumasensibilidadee,até,emborasemaajudadoslábios,umacapacidadedeexpressãomoral.

De Mademoiselle Sallé4 se disse que tous ses pas étaient des

sentiments5,edeBereniceeucriamaisseriamenteque todososseusdentes

eramideias.

Ideias!—ah,eisoparvopensamentoquemedestruiu! Ideias!— ah,era,portanto,esseomotivoquemelevavaaambicioná-lostãoloucamente!Sentiquesóasuapossepoderiarestituir-meapaz,quesóporeleseupoderiarecuperararazão.

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Caiuatarde,eeucontinuavasumidonomeumarasmo—cerraram-seastrevasda noite, dissiparam-se e alvoreceuum novo dia — envolveu-meonegrumede umasegunda noite, e e ucontinuava imóvel, enterrado numapoltronadaquelasalaerma:ofantasmadosdentesnemummomentodeixaradeexercersobremimoseuterríveldomínio,pairandocomamaispalpitanteehediondanitidezporentreasluzeseassombrasdasala.

Porfim,foiosilênciodomeucismarcortadoporumgritodehorroredeespanto.Apósumapausa, seguiuo ruídodevozesalteradas,depermeiocomabafadosgemidosdedoroudepesar.

Pus-me logoapée,abrindoumadasportasdabiblioteca,deparei-mecomumacriada,banhadaemlágrimas,quemedissequeBerenicejánãoeradestemundo:foraacometidadeepilepsiademanhãcedo,eagora,aofechardanoite,asepulturaestavaprontaparaacolhê-la,eestavamconcluídostodosospreparativosparaoseuenterro.

***

Achava-mesentado na biblioteca, e outra vez só. Parecia-meque

acabavadedespertardeumsonhoconfusoeperturbante.Sabiaqueerameia-noite e não ignorava que aopôr do sol Berenice havia sido enterrada.Dofúnebrelapsodetempodecorridonointervalonãotinhanoçãopositivanempelomenosdefinida. Contudo, a recordaçãodesse período e r arepleta dehorror—horrormaishorrívelporservago,eterrormaisterríveldevidoàsuaambiguidade.

Eraumaterrívelpáginanosanaisdaminhaexistência,escritadealtoabaixo comobscuras, horrendas e ininteligíveis reminiscências.Esforcei-mepordecifrá-las,masemvão;eacadamomento,comooespíritodeumsomextinto,pareciamressoar-meaosouvidosasagudasepenetrantesvibraçõesdeumavozfeminina.

Alguma coisa eu havia praticado— que foi? Interroguei-me em vozaltavezessemconta,esóosecosdasalarespondiamaomeuanseio:quefoi?

Na mesa ao meu lado ardia uma lâmpada,e perto dela estava umapequenacaixa. Nadatinha que a destacasse, emuitas vezes a vira e uantes,poispertenciaaomédicodeminhafamília.Mas,comoveioelaparaali,paracimadaminhamesa,eporquemotivoeuestremeciaaoolharparaela?

Nãoatinava com explicaçãopossível par aestas coisas, e os meusolhos,porfim,pousaramnaspáginasabertasdeumlivroenuma frasenelesublinhada.

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Eram aspalavr assingulares, m a ssingelas, do poeta Ebn Zaiat:Dicebant mihi sodales si sepulchrum amicae visitarem, curas measaliquantulumforelevatas

6.

Porquemotivoentão,aorelê-las,oscabelospuseram-seempéeomeusanguegelounasveias?

Bateramdemansinhoàportadabiblioteca,e,pálidocomoumcadáver,um criado entrou nas pontas dos pés. Tinha o olhar esgazeado de terror efalou-menumavoz trémula, roufenhaequase imperceptível.Quedisseele?—apenaslheouviumasfrasesentrecortadas.

Falou-medeumgritoferozquecortaraosilênciodanoite;doalarmequeatraíratodaagentedacasa;debuscasnadireçãodogrito;e,finalmente,asua voz adquiriu maior clareza ao falar de uma sepultura violada, de umcorpodesfigurado,amortalhadoe,todavia,aindapalpitante,aindavivo!

Apontouparaaminharoupa:estava todaempastadade lamaesangue.Eunãofalei,eelepegou-memuitoaodelevenamão:estavatodamarcadacomimpressõesdeunhashumanas!

Chamouaminhaatençãoparaumobjetoqualquerqueestavaencostadoàparede:olheiparaeleeexaminei-odurantealgunsminutos—eraumapá...

Solteiumgritoedeumpuloatirei-meàmesaeagarreiacaixaquenelaestavapousada.Nãoapude,porém,abri-la;nomeutremor,elaescorregou-medasmãose caiu pesadamentea ochão,partindo-se empedaços: do seuinterior saltaram então, com estrépito, alguns instrumentos de cirurgiadentária, de mistura com trinta e dois pequeninos objetos br ancosquepareciamdemarfimequeseespalharamemtodosossentidospelochão!...

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SOBREOAUTOR

EdgarAllanPöe (1809-1849),poetaecontistanorte-americano,éoautordemuitosdosmaisbrilhanteseengenhoscontosdehorroremistério jáescritos.“AquedadacasadeUsher”,“Opoçoeopêndulo”, “A máscara da morte rubra”, “Os crimes da RuaMorgue”, entre outros, deitaram profundainfluênciana literaturafantásticaepolicialdosséculosXIXeXX,esão,atéosdiasdehoje,umafonteinexaurível de inspiração. Do autor, recomendamos a leitura de “A verdade sobre o caso do SenhorValdemar”.

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Notes

[←1]CélioSecondoCuroine(1503–1569),humanistaitaliano.

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[←2]PoesintetizaacélebresentençadoapologistacristãoTertuliano(ca.160–ca.220):CrucifixusestDeiFilius, non pudet, quia pudendum est;/et mortuus est Dei Filius, prorsus credibile est, quiaineptum est;/et sepultus resurrexit, certum est, quia impossibile, ou seja: “O filho de Deus foicrucificado:nãohávergonhaporqueistoévergonhoso;/eofilhodeDeusmorreu:istoécrívelporqueéabsurdo;/efoisepultadoeressuscitado:istoécertoporqueéimpossível”.

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[←3]PoiscomoJúpiterconcedia,duranteoinverno,duasvezessetediasdecalor,oshomenschamavamestetempobenignoetemperadode“aamadeleitedabelaAlcíone–Simônides(N.doA.)

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[←4]MarieSallé,bailarinafrancesadoséc.XVIII.

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[←5]Ouseja,“quetodososseuspassoseramsentimentos”.

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[←6]Ouseja:“Meusamigosmedisseramque,seeuvisitasseosepulcrodeminhaamiga,poderiaaliviarumpoucoasminhaspreocupações.”