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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011 Ano 9 • Número 413 ISSN 1978-5134 Leandro Konder Amor e política O sentido com que a palavra amor costuma ser mais frequentemente utilizada é o de uma exasperação afetiva. O prestígio do amor na literatura e nas artes é antigo e imenso. A grande dificuldade para enfrentar os mistérios e as dores do amor é o problema da falta de entrosamento dos indivíduos tais como se dispõem (ou não se dispõem) a assumir sua pertinência a uma comunidade. Pág. 3 Pág. 11 Meu julgamento é político O refugiado italiano Cesare Battisti, preso no Brasil desde 2007, sustenta que o seu julgamento tornou-se munição para atacar o governo federal. Em sua primeira entrevista após a decisão tomada pelo ex-presidente Lula de negar sua extradição, Battisti fala ainda sobre a vida na penitenciária, seu posicionamento político, a luta armada e o governo italiano. Pág. 7 Entrevista exclusiva: Cesare Battisti Alipio Freire Riscos do economicismo Economistas do campo da esquerda, inclusive vários não ligados ao governo Dilma Rousseff, anunciam que as finanças e a economia brasileira “vão bem, obrigado”; que a política desenvolvida nos últimos oito anos para essa área é sólida; e que a crise que afeta o Hemisfério Norte pouco ou nada atingiria nosso país. Pág. 3 Roberto Malvezzi Um verão para Dilma A presidenta Dilma Rousseff visitou as áreas devastadas pelas chuvas. Pousou no lugar. Conversou com os prefeitos e o governador. Não riu das pererecas, dos bagres, nem criticou os ambientalistas, o Ministério Público, os indígenas e os quilombolas. Com humildade disse que era também um momento de aprender. Pág. 3 Tunísia O povo contra o sequestro da revolução Pág. 11 Meu julgamento é político O refugiado italiano Cesare Battisti, preso no Brasil desde 2007, sustenta que o seu julgamento tornou-se munição para atacar o governo federal. Em sua primeira entrevista após a decisão tomada pelo ex-presidente Lula de negar sua extradição, Battisti fala ainda sobre a vida na penitenciária, seu posicionamento político, a luta armada e o governo italiano. Pág. 7 José Cruz/ABr Tunísia O povo contra o sequestro da revolução

Edição 413 - de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011Ano 9 • Número 413

ISSN 1978-5134

Leandro Konder

Amor e políticaO sentido com que a palavra amor costuma ser mais frequentemente utilizada é o de uma exasperação afetiva. O prestígio do amor na literatura e nas artes é antigo e imenso. A grande difi culdade para enfrentar os mistérios e as dores do amor é o problema da falta de entrosamento dos indivíduos tais como se dispõem (ou não se dispõem) a assumir sua pertinência a uma comunidade. Pág. 3

Pág. 11

“Meu julgamento é político”O refugiado italiano Cesare Battisti, preso no Brasil desde 2007, sustenta

que o seu julgamento tornou-se munição para atacar o governo federal. Em sua primeira entrevista após a decisão tomada pelo ex-presidente Lula de negar sua extradição, Battisti fala ainda sobre a vida na penitenciária, seu posicionamento político, a luta armada e o governo italiano. Pág. 7

Entrevista exclusiva: Cesare Battisti

Alipio Freire

Riscos doeconomicismoEconomistas do campo da esquerda, inclusive vários não ligados ao governo Dilma Rousseff, anunciam que as fi nanças e a economia brasileira “vão bem, obrigado”; que a política desenvolvida nos últimos oito anos para essa área é sólida; e que a crise que afeta o Hemisfério Norte pouco ou nada atingiria nosso país. Pág. 3

Roberto Malvezzi

Um verãopara DilmaA presidenta Dilma Rousseff visitou as áreas devastadas pelas chuvas. Pousou no lugar. Conversou com os prefeitos e o governador. Não riu das pererecas, dos bagres, nem criticou os ambientalistas, o Ministério Público, os indígenas e os quilombolas. Com humildade disse que era também um momento de aprender. Pág. 3

Tunísia

O povo contra o sequestro da revolução

Pág. 11

“Meu julgamento é político”O refugiado italiano Cesare Battisti, preso no Brasil desde 2007, sustenta

que o seu julgamento tornou-se munição para atacar o governo federal. Em sua primeira entrevista após a decisão tomada pelo ex-presidente Lula de negar sua extradição, Battisti fala ainda sobre a vida na penitenciária, seu posicionamento político, a luta armada e o governo italiano. Pág. 7

José Cruz/ABr

Tunísia

O povo contra o sequestro da revolução

Quem julga o STF?

A CATÁSTROFE NA região serra-na do Rio de Janeiro é noticiada com todo alarde, comove corações e mentes, mobiliza governo e solida-riedade. No entanto, cala uma per-gunta: de quem é a culpa? Quem o responsável pela eliminação de tan-tas vidas?

Do jeito que o noticiário mostra os efeitos, sem abordar as causas, a im-pressão que se tem é de que a cul-pa é do acaso. Ou se quiser, de São Pedro. A cidade de São Paulo trans-bordou e o prefeito em nenhum mo-mento fez autocrítica de sua admi-nistração. Apenas culpou o excesso de água caída do céu. O mesmo ci-nismo se repetiu em vários municí-pios brasileiros que fi caram sob as águas.

Ora, nada é por acaso. Em 2008, o furacão Ike atravessou Cuba de Sul a Norte, derrubou 400 mil casas, deu um prejuízo de quatro bilhões de dólares. Morreram sete pessoas. Por que o número de mortos não foi maior? Porque em Cuba funciona o sistema de prevenção de catástrofes naturais. No Brasil, o governo pro-mete instalar um sistema de alerta... em 2015!

O ecocídio da região serrana fl u-minense tem culpados. O principal deles é o poder público, que jamais promoveu reforma agrária no Brasil. Nossas vastas extensões de terra es-tão tomadas pelo latifúndio ou pela especulação fundiária. Assim, o de-senvolvimento brasileiro se deu pe-lo modelo saci, de uma perna só, a urbana.

Na zona rural, faltam estradas, energia (o Luz para Todos chegou com Lula!), escolas de qualidade e, sobretudo, empregos. Para escapar da miséria e do atraso, o brasileiro migra do campo para a cidade. As-sim, hoje mais de 80% de nossa po-pulação entope as cidades.

Nos países desenvolvidos, como a França e a Itália, morar fora das me-trópoles é desfrutar de melhor qua-lidade de vida. Aqui, basta deixar o

perímetro urbano para se deparar com ruas sem asfalto, casebres em ruínas, pessoas que estampam no rosto a pobreza a que estão conde-nadas.

Nossos municípios não têm plano diretor, planejamento urbano, con-trole sobre a especulação imobiliá-ria. Matas ciliares são invadidas, rios e lagoas contaminados, morros des-matados, áreas de preservação am-biental ocupadas. E ainda há quem insista em fl exibilizar o Código Flo-restal!

Darwin ensinou que, na natureza, sobrevivem os mais aptos. E o siste-ma capitalista criou estruturas para promover a seleção social, de modo que os miseráveis encontrem a mor-te o quanto antes.

Nas guerras, são os pobres e os fi -lhos dos pobres os destacados pa-ra as frentes de combate. Ingres-sar nos EUA e obter documentos le-gais para ali viver é uma epopeia que exige truques e riscos. Mas qualquer jovem latino-americano disposto a alistar-se em suas Forças Armadas encontrará as portas escancaradas.

Os pobres não sofrem morte súbi-ta (aliás, na Bélgica se fabrica uma cerveja com este nome, Mort Subi-te). A seleção social não se dá com a rapidez com que as câmaras de gás de Hitler matavam judeus, comunis-tas, ciganos e homossexuais. É mais atroz, mais lenta, como uma tortura que se prolonga dia a dia, através da falta de dinheiro, de emprego, de es-cola, de atendimento médico etc.

Expulsos do campo pelo gado que invade até a Amazônia, pelos cana-viais colhidos por trabalho semies-cravo, pelo cultivo da soja ou pelas imensas extensões de terras ociosas à espera de maior valorização, famí-lias brasileiras tomam o rumo da ci-dade na esperança de uma vida me-lhor.

Não há quem as receba, quem pro-cure orientá-las, quem tome ciên-cia das suas condições de saúde, ap-tidão profi ssional e escolaridade das crianças. Recebida por um parente ou amigo, a família se instala como pode: ocupa o morro, ergue um bar-raco na periferia, amplia a favela.

E tudo é muito difícil para ela: alistar-se no Bolsa Família, conse-guir escola para os fi lhos, merecer atendimento de saúde. Premida pe-la sobrevivência, busca a economia informal, uma ocupação qualquer e, por vezes, a contravenção, a crimi-nalidade, o tráfi co de drogas.

É esse darwinismo social, que tan-to favorece a acumulação de mui-ta riqueza em poucas mãos (65% da riqueza do Brasil estão em mãos de apenas 20% da população), que faz dos pobres vítimas do descaso do governo, da falta de planejamento e do rigor da lei sobre aqueles que, an-siosos por multiplicar seu capital, ig-noram os marcos regulatórios e ana-bolizam a especulação imobiliária. E ainda querem fl exibilizar o Código Florestal, repito!

Frei Betto é escritor, autor de A arte de semear estrelas (Rocco),

entre outros livros.

opinião Frei Betto

Darwinismo social

crônica Luiz Ricardo Leitão

HÁ QUE SE reconhecer mais um mérito do ex-presidente Lula. Gra-ças a uma decisão sua, tomada no último dia do seu governo, é possí-vel ver do que é capaz um presidente do Supremo Tribunal Federal: des-respeitar uma decisão tomada pelo próprio STF. O presidente da Corte, Cézar Peluso, inconformado com a decisão do presidente da República de conceder asilo ao militante políti-co italiano Battisti, alterou uma de-cisão do próprio Supremo, manten-do-o preso. Não é crime desrespeitar uma decisão do STF?

A Constituição Federal do Brasil já estabelece que o presidente da Re-pública é o representante da nação na política internacional. Além dis-so, há uma sólida jurisprudência que assegura ao chefe de Estado o direi-to de rejeitar ou acatar um pedido de extradição. Portanto, se já cabia ao presidente decidir pela extradição ou não, por que o STF provocou essa situação que desmoraliza o próprio Supremo? Exposto ao ridículo, al-guns membros do STF fazem ques-tão de evidenciar a histórica subser-viência das elites brasileiras aos in-teresses estrangeiros e de se opor a quaisquer decisão soberana do go-verno brasileiro. A sabujice está no

DNA da burguesia brasileira e seus representantes, encastelados no mo-nopólio das comunicações ou em se-tores do Poder Judiciário.

Ainda em novembro de 2009, o STF autorizou, por 5 votos a 4, a ex-tradição de Battisti. E pelo, mes-mo placar, foi aprovado que o presi-dente deveria decidir entre executar ou indeferir a extradição. Essa deci-são foi publicada no acórdão de abril de 2010. Ou seja, a palavra fi nal, por decisão do próprio STF, deveria ser do presidente Lula. No entanto, ao indeferir o pedido de extradição, atendendo ao parecer elaborado pe-la Advocacia-Geral da União (AGU), o presidente Lula teve sua decisão desrespeitada pelo presidente do STF. Parece aquelas brincadeiras de criança em que o perdedor, não sa-tisfeito com o resultado, quer mudar as regras ou acabar com o jogo.

E, como afi rma o jurista Luís Ro-berto Barroso, advogado de defesa de Battisti, o julgamento já foi con-cluído, a decisão já tramitou em jul-gado e o processo de extradição já foi arquivado, restando apenas dar cumprimento ao que foi decidido. Se não haverá extradição, por decisão do presidente Lula, Battisti deve-ria ser imediatamente libertado. Pe-

luso decidiu mantê-lo preso. Deci-são tomada na mesma época em que o governo italiano manifestou sua vontade de que fosse mantida a pri-são. E, ainda por decisão de Peluso, o assunto será encaminhado ao re-lator do caso, Gilmar Mendes, para dar seu parecer. A decisão do STF de que o Lula deveria dar a palavra fi -nal transformou-se numa farsa.

A situação é tão vergonhosa e esd-rúxula que o jurista Carlos Lungar-zo, da Anistia Internacional, ques-tiona se não é o caso de solicitar a impugnação – o impeachment – do presidente do STF Cézar Peluso. Quem julgará a ação do presiden-te do STF que desrespeitou a deci-são da Corte do Supremo? O seu an-tecessor no cargo, Gilmar Mendes, também frequentou o noticiário em que se pediu sua impugnação por decisões tomadas no exercício da presidência do STF. No entanto, na-da sofreu. Assim, se a impunidade é propulsora da repetição de práticas condenáveis, então, certamente, ain-da veremos novos casos que promo-vem o descrédito da mais alta insti-tuição judiciária do país. E continu-aremos esperando pelos dias em que a escolha dos membros do STF seja feita por mecanismos democráticos e que seus mandatos sejam por perí-odo defi nidos, acabando com a con-dição de cargos vitalícios.

Ainda nos servindo desse processo de extradição do ativista político, ca-be evidenciar as manipulações de in-formações feitas pela mídia burgue-sa sobre o caso. Consciente da luta de classes, a mídia não poupa esfor-ços em defesa das forças políticas e

das práticas direitistas. Nada men-ciona sobre os outros países que já negaram pedidos de extradição fei-tos pelo governo de Berlusconi. Não noticiam a existência de mais de 50 pedidos feitos pelo governo italiano a vários outros governos. Dão a en-tender que a decisão do governo Lu-la é a única no cenário internacional. E muito menos falam dos ativistas políticos neonazistas italianos, pro-motores de assassinatos de sindica-listas e de atentados terroristas que resultaram em dezenas de mortos e que hoje estão vivendo impunes fo-ra da Itália.

Nos últimos dias, essa mídia não poupou espaços para propagandear que o Parlamento Europeu aprovou uma moção pedindo que o gover-no brasileiro reveja a decisão do pre-sidente Lula. A moção foi aprova-da numa sessão onde havia apenas 86 membros de um total de 736 que compõem o Parlamento. Dos pre-sentes na sessão, 77 eram italianos. Desmoralizado internacionalmente, Berlusconi usa do Parlamento Eu-ropeu para tentar desacreditar uma decisão soberana do governo brasi-leiro. E a mídia daqui se junta ao di-reitista governo italiano. Nenhuma novidade nessa união.

de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 20112editorial

Valter Campanato/ABr

Depois da chuvaHÁ DUAS SEMANAS, às vésperas da tormenta que provocou cente-nas de mortes e deixou milhares de desabrigados na região serrana do Rio, este cronista expressou, nesta coluna, sua convicção de que a tra-gédia social não pode ser mais um espetáculo a exibir-se como merca-doria de consumo na tela da TV. Já farto da desfaçatez da burguesia tu-piniquim, indaguei então, sem qualquer pretensão premonitória, sobre quantos ainda padeceriam submersos nas enchentes enquanto os “su-per-ricos” voam de helicóptero para os balneários “selecionados”, be-bendo champanha Veuve Clicquot à beira-mar, por R$ 280,00 a gar-rafa

A crônica ainda não tinha sido impressa quando tudo veio abaixo na serra fl uminense. Sabíamos bem que esta era mais uma tragédia anun-ciada, mas ainda assim sua colossal proporção espantou a todos nós que maldizemos a terrível “pedagogia da catástrofe”. Em uma socieda-de regida pelos dogmas do grande deus Mercado, em que a mobiliza-ção coletiva dos trabalhadores cede cada vez mais espaço à cantilena sedutora das (pseudo)redes sociais virtuais, a impiedosa rotina de Bru-zundanga mais uma vez se impunha como a forma mais crucial de re-velar-nos o quão desnudos estão os monarcas da província...

Reeleito com quase 2/3 dos votos em 2010, Dom Cabral estava em Paris a comprar perfumes quando soube dos incômodos eventos na terrinha. Contabilizou rapidamente o prejuízo político da notícia e vol-tou em sua caravela à colônia, temeroso de que seus projetos para 2014 possam soçobrar no barro de Friburgo, Petrópolis e Teresópolis. Afi nal de contas, não há como ocultar a omissão e prevaricação das ditas “au-toridades” no tsunami que devastou a região: mesmo os mais desinfor-mados já estão a perguntar-se por que o playboy pagará R$ 1 bilhão às empreiteiras para “reformar” o recém-reformado Maracanã (lembram-se do PAN em 2007?), em vez de usar essa dinheirama para reduzir o defi cit de moradias populares no estado.

“No hay mal que por bien no venga”, costumam dizer os cubanos, um povo muito sofrido, mas cuja organização social lhes permite en-frentar ciclones e furacões com um mínimo de perdas humanas, ao passo que certos vizinhos – uns paupérrimos, como o Haiti, e outros bem poderosos, como o Tio Sam – somam mortos e prejuízos inume-ráveis após as intempéries ditas “naturais”. Por que Katrina provocou tamanha destruição em Nova Orleans? Culpar os ventos e a chuva, co-mo certamente diria o DJ Cabral aqui no Rio, não convence mais nin-guém – que o diga o desgoverno de Bush, cuja omissão e desdém às vítimas da tormenta jamais serão esquecidos ao sul do Império.

Além de desvelar as falácias do discurso ofi cial e as maracutaias das elites Bruzundanga, as chuvas da Serra também soterram o vazio das sociedades que o capitalismo globalizado erige, sobretudo em sua peri-feria. O tão sublimado indivíduo da ideologia pós-moderna não valerá nada se este continuar alheio ao seu espaço social – alienado e desor-ganizado, ele é apenas uma presa fácil da tirania do Mercado, incapaz de propor uma nova ordem global ou de traçar o próprio futuro pesso-al. Vive a esmo, submerso pela propaganda e por ideologemas baratos que o capital lhe vende como bijuterias tropicais. Que novas especia-rias nos trarão as naves de Cabral, a fi m de que a impiedosa e sarcásti-ca pedagogia da catástrofe não faça o monarca sucumbir em meio à la-ma e aos corpos insepultos nas montanhas?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa –

Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Continuaremos esperando pelos dias em que a escolha dos membros do STF seja feita por mecanismos democráticos

Dom Cabral estava em Paris a comprar perfumes quando soube dos incômodos eventos na terrinha

O ecocídio da região serrana fl uminense tem culpados. O principal deles é o poder público, que jamais promoveu reforma agrária no Brasil

As chuvas da Serra também soterram o vazio das sociedades que o capitalismo globalizado erige

de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011

lidade e acordos internacionais. Inútil esperar que ape-nas fóruns econômicos e/ou políticos mundiais (e me-nos ainda regionais) possam arbitrar a possível bancar-rota de Washington.

Enfi m, mísseis não existem para garantir a paz, e pro-dutos da indústria armamentista não se realizam en-quanto mercadorias sem guerras, além das guerras re-ativarem diretamente muitos setores da economia. Mais que isto, sabe-se que toda a indústria estadunidense po-de rapidamente ser redirecionada para a produção pa-ra guerras.

Ou seja, é necessário começarmos a pensar desde ago-ra o que fazer com a crise do grande capital. E não esque-çamos jamais, que esse grande capital tem uma forte ba-se social interna ao nosso país.

Talvez seja isto que a doutrina de segurança nacional – que está sendo reescrita pelo ministro da Defesa, dou-tor Nelson Jobim – queira signifi car, quando diz que as Forças Armadas não mais têm que se ocupar do inimigo externo, pois esse inimigo hoje está no interior das nos-sas fronteiras.

Bem, é tudo uma questão de ponto de vista de classe.

Riscos do economicismoECONOMISTAS DO CAMPO da esquerda, inclusive vá-rios deles não ligados ao governo da presidenta Dilma Rousseff, anunciam que as fi nanças e a economia bra-sileira “vão bem, obrigado”; que a política desenvolvida particularmente nos últimos oito anos para esta área é sólida; e que a crise que neste momento afeta, sobretudo, o Hemisfério Norte, pouco ou nada atingiria nosso país.

No campo da esquerda, os que não participam desse consenso, se existem, estão em silêncio.

O bordão é sempre o mesmo.Variam os cálculos técnicos de índices e/ou nuances do

jargão do economês. Mas, noves-fora, no fi nal das con-tas, as contas dão no mesmo.

CQD.O problema é que esquecem que, além do capital estar

cada vez mais globalizado, seus movimentos continuam a depender da política a ser adotada pelos grandes cen-tros. Não falamos apenas das políticas econômicas.

Resumindo: o governo dos EUA não deixará sua eco-nomia sucumbir sozinha. Pelo bem, ou pelo mal, a Casa Branca arrastará todos que puder, para pagar sua falên-cia. Ilusão imaginar que o Império se submeterá à lega-

Emiliano Sosa

instantâneo

Alipio Freire

sam. Quem passa por essa situação, a cada chuva, revi-ve a tensão emocional de situações do passado.

O que acontece no mundo é muito mais grave que fortes chuvas de verão. O fracasso de Copenhague, Cancun, o avanço progressivo das cidades e agricultu-ra sobre as fl orestas, desaba em fenômenos que agora presenciamos.

Dilma precisa, enfi m, vetar qualquer mudança no Código Florestal que venha a aumentar o desmata-mento nas encostas e às margens dos rios. A força eco-nômica e política do agronegócio não pode sobrepor-se aos direitos da esmagadora maioria do povo brasileiro. Sua racionalidade econômica é irracional para o bem do conjunto da nação. Sobretudo, a presidenta precisa entender que ela tem um papel histórico infi nitamen-te maior que ser uma gerente dos interesses do capital. Precisamos ser um país melhor e equilibrado, não ne-cessariamente a 5ª economia do mundo. A história lhe deu gratuitamente o papel de conduzir o país para um novo paradigma civilizacional, justamente nesse mo-mento que atravessamos uma mudança de época. To-mara que ela compreenda a magnitude da tarefa que lhe cabe e não se abespinhe diante de interesses pode-rosos, mas profundamente mesquinhos.

Lembremo-nos sempre: hoje foi na casa do vizinho, amanhã poderá ser na nossa.

Um verão para DilmaA PRESIDENTA DILMA visitou as áreas devastadas pelas chuvas. Pousou no lugar. Conversou com os pre-feitos e o governador. Não riu das pererecas, dos ba-gres, nem criticou os ambientalistas, o ministério pú-blico, os indígenas e os quilombolas. Humildemente disse que era também um momento de aprender.

Dilma tem aparência dura, mas muitas vezes chora em público. Chorar e sorrir são atitudes exclusivas do ser humano, sinais de inteligência e sensibilidade.

Portanto, esperamos da presidenta atitudes coeren-tes com seu procedimento e com suas palavras. O pri-meiro passo do poder público é mesmo socorrer com o melhor essas populações. Em segundo, é preciso o ma-peamento imediato das áreas de risco no Brasil e o in-vestimento prioritário para remover essas populações. Será um custo econômico astronômico, mas ainda é melhor prevenir que remediar, porque muito além do econômico está a vida da população. Essa tragédia, ao soterrar condomínios de luxo, prova mais uma vez que, diante do que o mundo vem atravessando e vai atraves-sar, a natureza não distingue classe social.

Muitos especialistas comparam o que aconteceu no Brasil agora com o que acontece na Austrália e outros países, como Bélgica. Oras, não se pode avaliar essas tragédias apenas pelas mortes, mas por todos os pre-juízos e transtornos físicos e psicológicos que eles cau-

Roberto Malvezzi (Gogó)

HAITI – Nas ruas da capital Porto Príncipe, o cenário, muitas vezes, é idêntico ao do dia seguinte ao terremoto que devastou o país há mais de um ano

comentários do leitor

DrogasAs drogas não surgiram junto com o capi-

talismo. Enquanto as pessoas tiverem a ilu-são de que a humanidade vai parar de con-sumir drogas, e por isso são contra medi-das racionais, as coisas não vão melhorar. É uma questão de ser pragmático. Você tem que jogar com o que se tem em mãos. Não dá para as pessoas continuarem com um pensamento irracional por causa de pre-conceito em relação a drogas. É necessá-rio, sim, que as politicas antidrogas (que na verdade focam a repressão ao usuário) se-jam revistas.

Lucca Dutra, por correio eletrônico

Caso BattistiA atitude de Peluso confi gura com clare-

za o papel político e ideológico que envolve a questão de Battisti no âmbito do STF. No aspecto jurídico, a decisão de manter Bat-

tisti preso já se revelou abusiva e autoritá-ria, porém revestida de interesses políticos. Peluso não o soltou, pois entendo que não admite, nas relações de poder com Lula e suas posturas políticas, que sua decisão an-terior dada pela extradição de Battisti pos-sa ser “descumprida”. Mostra a necessidade de uma avaliação da própria Corte se o STF realmente é uma Corte Constitucional ou uma Corte Constituinte, que molda a cons-tituição conforme interesses meramente políticos e ideológicos.

Iohanas Ganesh, por correio eletrônico

Tragédia no RioPara mim, mesmo morando em Porto

Alegre, sem viajar para o Rio, a tragédia que aconteceu era previsível. E não tenho conhecimentos científi cos, apenas o olhar de uma cidadã comum. Prevenção é uma palavra desconhecida da maioria dos polí-

ticos. E quem paga o preço, inclusive com a vida, como neste caso, é a população. Pe-na que não há uma assessoria judicial para processar os responsáveis, tirar de seus bol-so um pouco do muito que ganham. É que deveriam ser processados prefeitos e gover-nadores dos últimos dez anos, no mínimo. Utópico, mas talvez, mexendo com o bol-so, houvesse políticos mais responsáveis e corretos, que efetivamente buscassem so-luções para as questões básicas da popula-ção. Quando vejo reportagens sobre o Rio na TV, fi co pensando no que aconteceria se houvesse um incêndio na parte baixa do morro. Desta vez foi a água. Que novas tra-gédias ainda estão por vir?

Rosa Cunha, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

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O SENTIDO COM que a palavra amor costuma sermais frequentemente utilizada é o de uma exaspera-ção afetiva.

O prestígio do amor na literatura e nas artes é antigo e imenso. A grande difi culdade para enfrentar os mistérios e as dores do amor é o problema da falta de entrosamen-to dos indivíduos tais como se dispõem (ou não se dis-põem) a assumir sua pertinência a uma comunidade.

Todos nós atravessamos a zona de difi culdades que, inevitavelmente, tumultuam a solidão em que o mercado – deus todo poderoso da sociedade burguesa – cria me-canismos cheios de sutileza e coerção para nos levar a fa-zer o que não queremos e a querer o que não fazemos.

O amor é sempre posto à prova e nunca se sai inteira-mente bem. Os jovens, sobretudo, são chamados a deci-dir se investem em relações duradouras ou em “casos” fugazes.

A ternura pode ser temeridade de quem tem medo, ou desarmamento de quem quer e teme amar.

Quase todos os heróis de romances da segunda meta-de do século 19 e do século 20 são pessoas completamen-te envolvidas nos problemas da relação amorosa possível na sociedade burguesa.

Diversos leitores e críticos já apontaram essa conver-gência. Por mais que ela seja desejada, há um confl ito inerradicável entre alguém que está amando e alguém que está calculando um prejuízo mensurável.

Recentemente, fi camos todos emocionados ao vermos a força do afeto amparando os sobreviventes da desgraça da região serrana do estado do Rio de Janeiro. E repeti-mos a nossa experiência de nos sentirmos envolvidos nu-ma área obscura e incerta das relações entre indivíduos que se amam e indivíduos que não podem deixar de con-tabilizar prejuízos e distribuir recursos provenientes de movimentos de solidariedade.

De nada adianta contarmos a cruel persistência do nosso problema e verifi carmos que ele não se modifi ca. A correção de uma distorção funcional, como aquela que junta os indivíduos em torno de algumas ideias ou de al-guns homens, é uma correção inviável. O que precisaria ser alcançado seria a reunião dos indivíduos, estimula-dos na sua generosidade, como vimos num movimento apenas esboçado no caso das inundações que causaram tanta destruição em Nova Friburgo, Teresópolis e Petró-polis, entre outras cidades da região.

O que mais nos surpreende neste e noutros episódios é a força que o amor, geralmente vencido, mostra aos auto-nomeados vencedores. Mesmo golpeado sem clemência, o amor passa a ser a mais vigorosa das nossas refl exões.

Um poeta espanhol, Antonio Machado, que morreu na primeira metade do século 20, assinalou essa força na linguagem: “a las palavras de amor les senta bien su po-quito de exageración” (às palavras de amor lhes cai bem um pouquinho de exagero). O amor procura se expres-sar na esperança daquele que se declara amoroso, mes-mo que uma vitória pouco sólida na esfera da vida priva-da tenha chegado a alimentá-lo, misturando-se a menti-ras e mistifi cações.

O amor é bem mais abrangente do que a paixão. Pa-ra o uso cotidiano do conceito, a diferença, quando reco-nhecida, legitimava o sentimento em sua forma lapidar e também no nível do enlouquecimento amoroso. Ain-da hoje há pessoas que acham que um amoroso possuído por uma paixão se põe automaticamente fora do âmbito da justiça e é imune aos juízos humanos em geral.

É extremamente difícil julgar grupos humanos em situ-ação de confl ito. Na verdade, estamos sempre julgando a nós mesmos. E, como não somos “neutros”, criamos arti-fícios para nossos “expedientes”.

O fato de percebermos o caráter interessado de nos-sas manobras na esfera da autoilusão não deve enfraque-cer a consciência que temos de um certo facciosismo, por nós combatido, mas reconhecido em suas características perversas.

Não podemos deixar de hesitar quando nos defronta-mos com o discurso cristão sobre o amor. Esse discurso ora parece ser demasiadamente consolador e inócuo; em outros momento, porém, constatou-se uma reação inter-na e forte à perspectiva conservadora de que estava em-butido.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

Amor e política

O amor é sempre posto à prova e nunca se sai inteiramente bem. Os jovens, sobretudo, são chamados a decidir se investem em relações duradouras ou em “casos” fugazes

Na verdade, estamos sempre julgando a nós mesmos. E, como não somos “neutros”, criamos artifícios para nossos “expedientes

brasilde 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 20114

Manobra aliadaVárias contas bancárias da família

do deputado Paulo Maluf (PP-SP) estão bloqueadas na Suíça, Jersey, França e Luxemburgo, com 48 mi-lhões de dólares já confi scados à espera do pedido brasileiro para o repatriamento. Os processos para re-patriar a fortuna surrupiada pelo me-liante estão parados no Supremo Tri-bunal Federal porque a Procuradoria Geral da República tem enrolado há anos na apresentação de provas. Afi -nal, Maluf é da base aliada!

Pesadelo haitianoO ex-ditador Baby Doc voltou

inesperadamente para o Haiti, de-pois de 25 anos de exílio na França, e foi imediatamente indiciado por desvio do dinheiro público. Só fal-ta agora ser processado e julgado pelos inúmeros crimes de violação de direitos humanos, como prisão, tortura, assassinatos e perseguição implacável aos adversários políti-cos. Será que o governo haitiano tem interesse e força para colocar o ex-ditador na cadeia?

ConcentraçãoNo primeiro mês do governo Dilma,

o Banco Central decidiu aumentar a taxa básica de juro de 10,75% para 11,25%, o que aumenta de imediato a transferência de renda dos milhões de trabalhadores brasileiros para aproximadamente 20 mil capitalistas que especulam com os títulos públi-cos. Por isso mesmo os banqueiros e os grandes empresários nacionais e estrangeiros apoiaram a continuida-de do governo Lula.

Jogada WikileaksO site Wikileaks propôs a um grupo

de blogs brasileiros uma entrevista “exclusiva” com Julian Assange, com regras estabelecidas por seus repre-sentantes no Brasil, como o teto de dez perguntas selecionadas por eles, respostas já traduzidas e igual para todos e veiculação conjunta no dia 26 de janeiro às dez horas. Alguns blogueiros aceitaram o esquema mar-queteiro e não deixaram o assunto transparente para seus leitores. Jor-nalismo crítico e ético é isso aí!

Tribunal PopularO movimento Tribunal Popular ini-

ciou em janeiro o processo de debate e mobilização que vai culminar, até o fi nal de 2011, com a realização de um grande evento nacional denomi-nado Tribunal Popular da Terra. O primeiro debate tratou de “Políticas e Direitos Indígenas”, já que nos úl-timos anos os povos indígenas foram as principais vítimas da violência no campo, pela não demarcação dos seusterritórios e o avanço predatório do agronegócio.

Mobilizações jáDe manifestação em manifestação,

está crescendo – em São Paulo – a mobilização contra o aumento das passagens de ônibus, de R$2,70 para R$3,00, que, nos últimos anos, foi bem acima da infl ação e dos reajustes salariais. Finalmente os estudantes e os trabalhadores estão saindo da passividade e ganhando as ruas em protestos. É preciso fazer o mesmo em defesa do petróleo e contra a pri-vatização da saúde e da educação.

DevastaçãoDepois do festival de horrores pro-

movido pelas chuvas de janeiro em várias regiões do Brasil, especialmen-te no estado do Rio, só mesmo quem for muito insano pode concordar com o novo Código Florestal que tramita no Congresso Nacional e que reduz as áreas de proteção dos rios e lagos, das encostas e dos topos de morros – como querem os ruralistas e os es-peculadores imobiliários. De olho nos deputados e senadores!

Violência políticaCassados em 2008, por acusação

de compra de votos em 2002 e 2006, o senador João Capiberibe e a depu-tada federal Janete Capiberibe, am-bos do PSB-AP, foram reeleitos em 2010, mas novamente cassados pelo TSE com base na lei da Ficha Limpa. Acontece que se sabe agora que o processo inicial de compra de votos foi uma farsa, com testemunhos fal-sos, montado por políticos ligados ao grupo Sarney. A injustiça vai conti-nuar?

Salário mínimoO governo fi xou o novo salário mí-

nimo em R$540,00, abaixo da infl a-ção medida nos últimos 12 meses. As centrais sindicais querem que o novo mínimo seja de R$580,00, com algu-ma recomposição do poder aquisitivo perdido nas últimas décadas. Essa é a primeira queda de braço entre o novo governo Dilma Rousseff e as centrais. A decisão fi nal pode sinalizar como será a mobilização dos trabalhadores em 2011.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Márcio Zontade São Luís (MA)

ERA OUTUBRO DE 2010. Enquanto a Vale celebrava mais um lucro trimestral bilionário (R$ 10,5 bilhões), Dona Ma-ria* sentia pela segunda vez uma mesma dor: a perda do marido no exato lugar e circunstância que havia perdido o fi lho há oito anos. Ambos morreram atrope-lados, nos trilhos que cortam o assenta-mento Palmares, em Parauapebas (PA). Sem muitas palavras desde o acontecido, a agricultora apenas colocou mais um porta-retrato, agora do marido, no altar com a imagem de barro de Nossa Senho-ra, onde já estava a foto do fi lho.

A história de vida de Dona Maria se tornou rotina em diversas comunida-des por onde a estrada de ferro de Cara-jás passa. Do Pará ao Maranhão, são 23 municípios.

A cada mês, em média uma pessoa morre atropelada pelos trens operados pela Vale, segundo dados da Justiça nos Trilhos. Em 2007, foram contabilizadas 23 mortes; em 2008, o número caiu pa-ra nove vítimas fatais, mas foram regis-trados 2.860 acidentes ao longo da ferro-via. A cidade com maior índice de atrope-lamentos é Alto Alegre do Pindaré (MA), pois o trem de carga fi ca parado no meio da cidade entre três a quatros horas por dia, impedindo a passagem de pedestres e de carros. Quando sai, não avisa, atro-pelando muitas pessoas que estão ten-tando a travessia por debaixo dos vagões. Padre Denys, responsável pela igreja da comunidade indaga: “até quando nossas crianças devem passar debaixo do trem para ir até a escola? A Vale precisa urgen-temente construir passarelas”.

IntrusaEm operação desde 1986, a via férrea

mudou a rotina de vida de moradores, ti-rou muitos de suas casas, mudou traje-tos, isolou povoados e foi percebida, até pelas crianças, como uma intrusa. Se não isso, o que explicaria crianças de 6 a 12 anos apedrejarem o trem cargueiro da Vale, no bairro conhecido como Km 07, em Marabá (PA), a ponto de acertarem uma pedra fatal num maquinista, cau-sando a sua morte em 2001? Jeane dos Santos, professora na comunidade, tem a resposta: “O bairro se instalou antes da ferrovia em 1974, e o espaço ocupa-do era onde antes essas crianças brinca-vam. Elas sentiram seu espaço invadido, era o quintal delas. Fora que começaram a ver os pais reclamando do barulho, das rachaduras das casas e dos telhados cain-do com a trepidação daquele sujeito es-tranho para elas, que era o trem”.

Antes, em 1998, outro incidente gra-

Foi um trem que passou em minha vidaFERROVIA A ambição do Corredor de Carajás à custa de vidas

ve no bairro já havia acontecido. “Uma menina de 12 anos atirou uma pedra no trem, que voltou nas suas próprias per-nas com uma força violenta, o que a dei-xou paraplégica, levando-a à morte anos depois”, conta Santos. Para a professora, era preciso agir, fazer algo. Ela procurou a Vale, mas foi em vão. Logo, outra mor-te: o atropelamento de uma menina com problemas mentais que frequentava os trilhos junto a outras crianças.

A educadora não pensou duas vezes e, com parcos recursos, abriu uma esco-la de dança e teatro, que passou depois a incluir esporte, informática, tornando-se, com a ajuda de alguns vereadores, o programa Adote Cultura Viva. Hoje, com o espaço consolidado, ela apenas recorda das crianças – que chama de os meninos dos trilhos de Marabá – com fotos e ma-térias de jornais. “Olha, consegui tirar to-dos dos trilhos. Se não, acho que não es-tariam vivos”, diz.

Meninos do tremSe existiu os meninos dos trilhos de

Marabá, ainda existem os meninos do trem. Trata-se de crianças e adolescen-tes que entram sem serem percebidas nas estações e se escondem nos vagões de minério que vão para São Luís (MA). “São crianças que sofrem maus tratos em casa ou passam por algum tipo de difi cul-dade fi nanceira e vão para a capital ma-ranhense, geralmente, para se prostituí-rem ou mendigarem”, explica a coorde-nadora do Conselho Tutelar do municí-pio de Buriticupu (MA), Ivonete de Ma-tos dos Santos.

Marisa*, uma negra de estatura bai-xa e de um sorriso lindo, foi uma des-sas crianças. Desde os 12 anos, viaja-va no trem. “Várias vezes a recolhemos para o conselho tutelar ao ser encontra-da. Ela chegava em Buriticupu fétida, su-ja, faminta, depois de horas viajando nos vagões de minério”. Hoje com 14 anos e mãe de uma menina, fruto da prostitui-ção em São Luís, voltou para a casa po-bre que mora com a mãe em Marabá, com quem tem sérios problemas de rela-cionamento, inclusive relatos de espan-camento.

“A Vale se isenta do problema, não pensa numa fi scalização adequada para saná-lo e, tampouco, trata com dignida-de as crianças e adolescentes quando en-contradas em seus vagões ou nos trilhos, geralmente por mero acaso”, critica Ivo-nete. Quando a reportagem esperava o embarque, na estação de Açailândia, o que foi dito pela coordenadora do con-selho tutelar pôde ser presenciado. Três crianças adentraram sem difi culdade pe-lo acesso dos trens de carga. Avisados, os funcionários da empresa Cefor, presta-dora de serviço da Vale nas estações, ape-nas sorriram e caminharam sem pressa em direção às crianças.

Os margeadosNa parada de São Pedro Água Branca,

também interior do Maranhão, o que se vê é um mundaréu de homens, mulhe-res e crianças se acotovelando e andan-do nas pontas dos pés para conseguir vender seus produtos aos viajantes do trem, debruçados nas janelas, enquan-to ocorre o embarque e o desembarque na estação. É vendido água a R$ 2,00, em garrafas de dois litros nas embala-gens de refrigerante, além de sucos e re-frigerantes, também pelo mesmo preço, e de refeições de galinha caipira, boi ou frango, por apenas R$ 5,00.

Joana de Amaral Lima é uma dessas mulheres que vende o prato preparado por ela mesma. “Trabalho aqui já faz um tempo, meu marido está desempregado, vive de bico de pedreiro na cidade, assim sustentamos nossos quatro fi lhos”. Sobre a renda mensal, ela não quis revelar: “ah dá para o básico de casa, sem luxo”. Vi-vendo à beira de tanto progresso, ela diz que seu marido nunca conseguiu um em-prego na Vale. “Ele já procurou trabalho lá, mas o que dizem é que ele não tem qualifi cação”.

Na opinião do sociólogo e engenhei-ro agrônomo, Raimundo Gomes da Cruz Neto, presidente do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp) e hoje a frente de um movimen-to que organiza os atingidos pela minera-ção, “esses são os que sobraram nos pro-jetos da Vale e nunca serão incluídos, a não ser dessa forma, pela rebarba, com um trabalho ainda mais precário do que os que estão lá dentro da mineradora ou em suas siderúrgicas diariamente como funcionários”, explica.

O progressoDividido em classe econômica e exe-

cutiva, o trem que sai de Parauapebas e vai até São Luis entrecorta paisagens al-ternadas, de casas de cidades ou ocupa-ções, passando pela reduzida mata se-cundária que resiste ainda à pastagem e ao eucalipto. Bois, fazendas e as obras de duplicação da linha, junto aos vagões dos trens de cargas carregados de miné-rio, que passam paralelos, completam o cenário da viagem. “Também não é pa-ra menos, no Maranhão tem mais bois do que gente. São aproximadamente 6,5 milhões de população contra aproxima-damente 7 milhões de cabeças de gado”, comenta o advogado do Centro de Defe-sa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, Nonato Masson.

Marlucia Azevedo, coordenadora do Fórum de Políticas Públicas de Buriti-cupu, ironiza: “a compensação ambien-tal da devastação da mata para o pasto é a plantação de eucalipto. Muito curioso já que o eucalipto serve para as siderúr-gicas alimentarem seus fornos”.

Na televisão do trem, porém, nada dis-so é dito e os programas de canal educati-vo da emissora Globo, patrocinados pela Vale, falam a todo instante de preserva-ção do meio ambiente. Sistemas de sons nos vagões propagam jingles institucio-nais, que enfatizam o progresso trazido pela Vale, através da ferrovia, para o Bra-sil e as comunidades ao seu redor.

“Vale a pena morrer ou sofrer em no-me do progresso? Quantos atropelamen-tos, de todos os tipos, deveremos ainda aceitar, quantos povoados, cidades ain-da sofrerão com a gigante mineradora antes de exigir um limite a essa fome de ferro e dinheiro?” é a pergunta que deixa no ar o Padre Dario Bossi, um dos coor-denadores da Justiça nos Trilhos.

*Nomes fi ctícios

“Até quando nossas crianças devem passar debaixo do trem para ir até a escola?

“Vale a pena morrer ou sofrer em nome do progresso? Quantos atropelamentos de todos os tipos deveremos ainda aceitar? Quantos povoados, cidades ainda sofrerão com a gigante mineradora?”

Nils Vanderbolt

Trem parado no meio da cidade em Alto Alegre do Pindará (MA)

de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011 5brasil

Pedro Carranode Curitiba (PR)

OS TRABALHADORES da planta da an-tiga Fosfértil/Ultrafértil, em Araucária (PR), e a direção do Sindiquímica, que os representa, estão diante de um fato po-lítico novo, em plena data-base, que se prolonga desde 2010. O setor de produ-ção de fertilizantes no Brasil, controlado pelo oligopólio formado pela Bunge, Car-gill e Iara, que tornaram o Brasil depen-dente do insumo desde a privatização do ramo, agora está nas mãos da Vale, por meio da Vale Fertilizantes, desde 2009.

Porém, em entrevista ao Brasil de Fato, os dirigentes do sindicato afi rmam que não há sinais de que a nova gestão rompa com a dependência, o oligopólio e os preços infl acionados, o que prejudi-ca os pequenos agricultores. Para os diri-gentes Paulo Roberto Fier e Otêmio Gar-cia de Lima, as práticas antissindicais e os riscos no trabalho do período da Bun-ge continuam. E, logo na primeira cam-panha salarial, até se intensifi cam.

Brasil de Fato – Como foi o processo de privatização da empresa de fertilizantes? Otêmio Garcia de Lima – No fi nal do governo Collor, essa planta que era da Petrofértil entrou no processo de deses-tatização. Na época era a Goiasfértil, Ul-trafértil e a Fosfértil, sendo essa última a que arrematou as demais de fertilizan-tes. Para arrematar a Fosfértil foi cons-truído um consórcio de misturadoras, todas elas de capital nacional, que era a Maná, a IAP, Solo Rico, Cutia e a Take-naka. Eram as principais misturadoras que constituíram esse consórcio chama-do Fertifós. Então, esse grupo, Fertifós, detinha a maior parte das ações e contro-lou a Fosfértil durante todos esses anos até 2009, quando a Vale assumiu e extin-guiu o Fertifós. E esse grupo, ao longo do período, por ter maioria de ações, sem-pre deu as cartas e, ao longo de 1992 para cá, foi modifi cando a composição do gru-po. Bunge, Cargill e Iara foram compran-do todas as misturadoras que tinham as ações da Fertifós. As três empresas pas-saram a dominar a Fertifós. Sendo que a Bunge é que teve ação mais ativa e ob-teve, em 2006, o controle acionário do grupo Fertifós e, a partir daí, fez a ges-tão da política da Fosfértil no ramo de fertilizantes. Ela deu um tombo nas ou-tras ‘companheiras’ dela e destituiu todo o conselho de administração e assumiu as onze cadeiras no conselho. Foi ges-tora de políticas desastrosas para o país, concentrando o setor, não fazendo inves-timentos, controlando preço, o país fi cou refém de três empresas, refém de trazer fertilizantes de fora, foi quando fi zemos, em 2008, todo um trabalho de balanço de quinze anos da privatização.

As lutas políticas do sindicato na época da privatização repercutiram na categoria?Paulo Roberto Fier – Em 1993, tive-mos o apoio completo dos trabalhado-res. Na época foi mobilizada toda a socie-dade, todas as escolas públicas de Arau-cária participaram de passeatas na porta da fábrica, agricultores, lideranças locais, o MST, foi muito bem articulado. Nesse período, compramos essa briga não tão preocupados com o desemprego, lógi-co, também com ele, mas principalmen-te pela questão do modelo de sociedade e projeto de país, um país agrícola entre-gando todo o setor de fertilizantes para a iniciativa privada. Fizemos uma CPI pu-xada pelo Dr. Rosinha (PT). A iniciativa privada busca só o lucro, então o preço da ureia iria inviabilizar o pequeno agri-cultor, e foi o que de fato aconteceu.

Em 2008, houve a criação do comitê em defesa dos pequenos agricultores.Otêmio Garcia de Lima – Pudemos provar, na Assembleia Legislativa (PR), que nesses quinze anos de privatização só ganharam as empresas que compra-ram, deixaram o país dependente de 70% da importação e o preço da ureia de 154 dólares chegou agora a R$ 1,6 mil. O lu-cro de 2007 foi de R$ 777 milhões. O fa-turamento de um ano foi o que eles paga-ram por duas empresas. Paulo Roberto Fier – Tivemos dois grandes momentos, esse na Assembleia

Vale mantém monopólio no setorde fertilizantes e ataca trabalhadores

Legislativa e uma versão menor que fi -zemos em Ponta Grossa [PR]. Tentamos nesse período conciliar também, além da questão institucional, um ato político, ao lado dos sem-terra, para dar maior visi-bilidade para essas ações. Fechamos em Ponta Grossa a BR-277, criamos o Comi-tê em Defesa dos Pequenos Agriculto-res, que foi esse grupo maior que se reu-niu e levou essa discussão. Quisemos evi-denciar o estrago na sociedade por uma questão política e ideológica. O neolibe-ralismo na lógica de passar tudo para a iniciativa privada, quais são as conse-quências para a sociedade?

Como se dá a política da Vale para o ramo de fertilizantes?Otêmio Garcia de Lima – Ainda que não de forma clara, a ação política da Va-le entrar nesse segmento de fertilizantes não se deu só por uma opção de viabilida-de fi nanceira. Lógico que é um segmento importante, que dá muito dinheiro no mundo, concentrado em poucas empre-sas. Mas é um segmento onde houve uma ação determinada para tirar tanto a Bun-ge, Cargill e a Iara desse grupo de mono-pólio. A denúncia que fi zemos culminou em que o governo tenha entendido o mo-nopólio como prejuízo para o país e, de certa forma, a Vale foi intimada para en-trar nesse jogo e quebrar esse monopó-lio. O monopólio continua.

E quais as consequências desse processo? Otêmio Garcia de Lima – É cedo para analisar. Há três segmentos: o fosfatado, nitrogenado e o potássio. No potássio, o país é mais dependente, só tem uma mi-na em Sergipe, 90% dos fertilizantes são importados, e não tem muita alternativa a se fazer no país. A questão do fosfato a Vale conhece, tem desde antes parcerias no setor de fertilizantes. Agora a questão do nitrogenado, nós acompanhamos pe-la imprensa que a Petrobras vai voltar a investir, porque a base dos nitrogenados depende de gás natural, e Petrobras, que tem o monopólio estatal, anunciou duas fábricas grandes, no Mato Grosso do Sul e em Minas Gerais. É uma questão inde-fi nida, o foco da Vale é o fertilizante que usa como base a mineração. Foi criada uma empresa nova, chamada Vale Fer-tilizantes, com todos os ativos da Fosfér-til, que era a parte da Bunge de minera-ção, a mina em Cajati (SP), então são três grandes: Fosfértil, a Bunge e essa parte de Sergipe do potássio, ela incorporou tudo isso. Criou-se uma nova empresa. Na produção de fertilizantes, o monopó-lio é da Vale.

Em que consistem as denúncias contra a Vale durante a data-base desde o fi nal de 2010?Paulo Roberto Fier – O assédio mo-ral. As chefi as que se usam disso já eram da Bunge, só que está se acentuando nos últimos meses quando começou a nego-

ciação coletiva. Por exemplo, os traba-lhadores tiraram em assembleia que, du-rante a negociação coletiva, enquanto não fechar, eles não vão fazer hora-extra e não vão mais trabalhar. Então, o traba-lhador que se recusa está tendo a jorna-da alterada como retaliação. Isso nunca havia acontecido. Uma outra questão no atual momento é que estamos sem uni-forme. Em uma fábrica petroquímica, o uniforme é um Equipamento de Prote-ção Individual (EPI), ou seja, é obriga-tório, não pode entrar sem uniforme lá dentro, devido aos riscos, é de tecido de algodão, tem uma especifi cação. E atual-mente a empresa não tem nem uniforme, nunca havia acontecido. Otêmio Garcia de Lima – Percebe-mos que eles põem a posição deles, não abrem, não negociam. Temos feito ações, antes do Natal fi zemos uma passeata com participação maciça, forçando nova rodada de negociação. É a primeira vez que chegamos em janeiro sem fechar o acordo. O exemplo do Canadá é bastan-te emblemático. Ao contrário da propa-ganda, ela não explora apenas minério de ferro, ela explora trabalhadores.

Com a Vale, segue a repressão no interior da fábrica e a proibição da entrada do sindicato, fatos que ocorreram na gestão da Bunge?Paulo Roberto Fier – Um diretor do sindicato, que já foi assediado anterior-mente, de onde saiu ação junto à Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT), que acatou e condenou o governo bra-sileiro. Esse diretor novamente recebeu advertência pela Vale, por motivos de improbidade. Levamos isso para a SRT, delegacia regional do trabalho, fi zemos a denúncia que mostra claramente a inten-ção de a empresa de preparar uma justa causa para esse diretor do sindicato, por ele ter conversado com os trabalhadores, ela criou essa situação. Da época da Bun-ge, tudo havia sido revertido graças à de-núncia na OIT, que condenou e a empre-sa teve que fazer um Termo de ajusta-mento de Conduta (TAC), pois a OIT ca-racterizou prática antissindical. E agora a empresa retoma, via Vale, com atitudes semelhantes.

A precarização das formas de contrato é crescente? Paulo Roberto Fier – Depois da pri-vatização, a empresa tentou terceirizar por completo toda a manutenção, labo-ratório, engenharia e carregamento. De-nunciamos no Ministério Público, que entendeu que a terceirização era frau-dulenta, porque atingia atividade fi m da empresa. O MP entrou com ação civil pú-blica contra a terceirização, da qual re-sultou um acordo para não ser julgada a ação. A empresa voltou atrás e contratou 40 trabalhadores terceirizados a mais no seu quadro. Estabeleceu critérios para a terceirização. E hoje, nesse movimen-

to de negociação coletiva, a empresa es-tá quebrando o acordo, porque, como os trabalhadores se recusaram a fazer ho-ra-extra, a Vale colocou o ‘terceiro’ [para trabalhar] como forma de quebrar a mo-bilização dos trabalhadores.

Como foram as mobilizações em torno dos trabalhadores terceirizados das obras de ampliação da Repar (Petrobrás), ao lado de outros seis sindicatos (em 2009)?Paulo Roberto Fier – Nas obras da Petrobras, quatro consórcios tinham de-zenas de empresas terceirizadas, essas empresas tinham subempresas, que por sua vez tinham outras empresas. Chega-mos assim a níveis de “quarteirização”. No mesmo local de trabalho, havia qua-tro mecânicos, um de cada empresa, ca-da um com condição diferente de traba-lho, salário, benefícios etc. A CUT procu-rou uniformizar um acordo só para todo mundo, no local de trabalho, nas mesmas condições e salários. A Petrobras concor-dou e apoiou esse tipo de ação, mas não no sentido da mobilização, e aí que os sindicatos fi zeram a greve. Eram em mé-dia 10 a 14 mil trabalhadores, e ali que se costurou um acordo que envolvia os tra-balhadores das ‘terceiras’ na Ultrafér-til. Por quê? Porque a mesma empreitei-ra na Petrobras estava na Ultrafértil, en-tão como ela pagaria uma condição para o trabalhador na BR e outra na Ultrafér-til, se era a mesma empresa? Foi costura-do um acordo que, na prática, estabele-ceu uma relação para 80% dos trabalha-dores. Muitas empresas não cumpriram o acordado, usando subterfúgios, mas houve um avanço signifi cativo nas con-dições desses trabalhadores. (Para mais informações sobre o sindicato, acesse http://sindiquimicapr.com.br.)

PARA ENTENDERPetrofértil – Setor da Petrobras que controla-va o setor de fertilizantes dentro do país. Das cinco empresas, três foram privatizadas, uma extinta e uma fi cou na Petrobras (Nitrofértil). Além dela, a ICC foi extinta; e Fosfértil, Ultrafér-til e Goiasfértil foram privatizadas.

ENTREVISTA Diretores do Sindiquímica/PR denunciam assédio moral e práticas antissindicais da Vale Fertilizantes

“A iniciativa privada busca só o lucro, então o preço da ureia iria inviabilizar o pequeno agricultor, e foi o que de fato aconteceu”

“Ao contrário da propaganda, ela não explora apenas minério de ferro, ela explora trabalhadores”

“No mesmo local de trabalho, havia quatro mecânicos, um de cada empresa, cada um com condição diferente de trabalho, salário, benefícios etc.”

Divulgação

Passeata dos trabalhadores na Fosfértil/Ultrafértil, que pertence à Vale

brasilde 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 20116

Fator Amazôniada Redação

Também se tem dito, no meio aca-dêmico, que poderia haver uma cor-relação entre as mudanças no regi-me de chuvas do Bioma Amazôni-co (provocada pelo crescimento do monocultura e da pecuária fl oresta adentro) com as chuvas torrenciais no sudeste. Para o engenheiro fl o-restal Luiz Zarref, membro da Via Campesina, entretanto, a única cor-relação comprovada até agora com o excesso de chuvas localizadas é o próprio aquecimento global.

“O desmatamento da Amazônia tem mais importância com relação a secas do Rio Grande do Sul, por exemplo, do que com a intensidade de chuvas. Isso porque a Amazônia cria uma quantidade de vapor que é levado pelos ventos até ‘baterem’ nos Andes. E, dos Andes, eles des-cem para a região sul”, explica. Por isso, segundo ele, boa parte das chu-vas que caem na região sul depende da Amazônia.

Zarref cita outro exemplo da rela-ção entre a Amazônia e a região sul do país. “Ouvi relatos de Santa Cata-rina e Rio Grande do Sul de que es-tava tudo enfumaçado, e não houve grandes queimadas nessas regiões, ou seja, é bem provável que isso te-nha ocorrido porque a fumaça que estava no arco de fogo no Mato Grosso, Pará, Amazonas, pegava es-sa corrente de ventos, chegava nos Andes, e vinham até a região sul”, elucida. (ESL)

mostram que municípios como Petró-polis e Teresópolis já perderam 70% de sua cobertura fl orestal de Mata Atlânti-ca; e São João do Vale do Rio Preto te-ve quase 80% desmatados. “Quando cai uma quantidade de chuva maior num período menor e não se tem uma cama-da de fl oresta próxima da cabeceira dos rios, essa água rapidamente se transfor-ma em tromba d’água”, explica.

Dessa forma, a água não se infi ltra no solo e escorre diretamente para os rios. Segundo Zarref, é como se imaginar uma calha. “Diferente de um planalto ou pla-nície, onde haverá uma área para a chu-va não correr tanto, na região serrana, a mínima devastação refl ete diretamente no aumento da caudalosidade dos rios”, afi rma Zarref. (ESL)

da Redação

Segundo o Instituto Nacional de Pes-quisas Espaciais (Inpe), as últimas seis décadas testemunharam o aumento gra-dativo da intensidade das águas. O órgão indica que as chuvas acima de 50 mm por dia, raras até a metade do século pas-sado, atualmente ocorrem com mais fre-quência em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No dia de maior tempo-ral em Nova Friburgo, foram 182,8 mm. Devido às mudanças climáticas, agora, os eventos como as chuvas, por exemplo, são mais extremos e intensos.

O engenheiro fl orestal Luiz Zarref, membro da Via Campesina, elucida que na região da Mata Atlântica sempre cho-ve cerca de dois mil mm. “Acontece que, o que choveria em cinco, seis dias, chove em um dia; o que choveria em um mês, chove em uma semana”, explica.

Zarref lembra ainda que a característi-ca topográfi ca da região serrana do esta-do do Rio de Janeiro é fundamental para

“A serra bloqueia uma parte da quantidade de água que vem do oceano e cai naquela região; se fosse plana, cairia continente adentro”

Chuvas concentradas em áreas devastadasMudanças climáticas colaboraram para chuvas extremas no sudeste

compreender a frequência de chuvas. “A serra bloqueia uma parte da quantidade de água que vem do oceano e cai naque-la região; se fosse plana, cairia continen-te adentro”, explica.

A outra característica é a própria ve-getação da Mata Atlântica, que produz a chamada “evapotranspiração”, que ocor-re quando a atmosfera “puxa muita umi-dade do solo (por meio da evaporização), ao mesmo tempo que recebe a transpira-ção da fl oresta, por causa do clima mais quente”, afi rma.

DesproteçãoA consequência do excesso de chuvas

fi ca pior justamente quando não há pro-teção fl orestal. Dados do Inpe e da ONG SOS Mata Atlântica, na última década,

Eduardo Sales de Limada Redação

ANOS DE OMISSÃO por parte de gover-nos municipais e estaduais, que ignora-ram os impactos ambientais e humanos ao permitirem ocupações irregulares; se-ja de famílias pobres, de classe média ou ricas. Em parte, isso explica o alto núme-ro de mortes em desastres causados pe-la chuva no Brasil, como no caso do últi-mo desastre da região serrana do Rio de Janeiro.

Há, entretanto, um fator de fundo, es-trutural, político, ideológico, responsável diretamente pelo excesso de mortes e pe-lo caos urbano nas cidades e que não é citado tanto por governos como pela mí-dia corporativa: o histórico de concentra-ção de terras e o favorecimento à especu-lação imobiliária no Brasil, seja no cam-po ou na cidade. Esse modelo não só in-fl uiu no número de mortos; sobretudo, pobres. Estimativas do governo federal, baseadas em dados enviados pelos Esta-dos, revelam que hoje vivem cerca de cin-co milhões de pessoas em áreas de risco no Brasil, em 300 áreas sujeitas a inun-dações e 500 com risco de deslizamento.

Vejamos o triste exemplo do Rio de Ja-neiro. “A região serrana do Rio cresceu pela presença de indústrias de médio porte, pelo turismo e sobretudo pelo fa-to de ser a região de descanso e lazer da elite carioca. É uma região marcada por uma enorme concentração de terra, com fazendas gigantescas pertencentes a uma população cujo poder aquisitivo permi-tiu a ocupação das melhores áreas e a melhoria delas, inclusive se protegendo da natureza, moldando-a”, explica o es-pecialista em sociologia urbana, Tiaraju Pablo D’Andrea.

À população mais pobre daquela re-gião, segundo ele, restou o assentamento em áreas de risco e irregulares do ponto de vista jurídico. “O fato de casas de ricos terem sido atingidas é justamente a exce-ção que confi rma a regra: foram atingi-das porque o nível pluviométrico foi mui-to maior que o esperado. No entanto, na grande maioria, os atingidos foram po-bres que habitavam áreas de risco, que neste caso é um fato mais relevante do que o fato de serem irregulares”, desta-ca o sociólogo. A tragédia da região ser-

Um modelo perfeito para tragédiasENCHENTES Concentração e especulação de terras potencializam os desastres humanos e ambientais provocados pela chuva

rana do Rio de Janeiro contabiliza mais de 700 mortos, sendo que existem ainda mais de 300 desaparecidos.

Como afi rma a professora da Faculda-de de Arquitetura e Urbanismo da USP, Ermínia Maricato, em recente artigo, “reorientar o processo de urbanização no Brasil implica contrariar interesses po-derosos que dirigem o atual modelo que exclui grande parte da população da ci-dade formal”.

Segundo Maricato, a falta de contro-le sobre o uso e ocupação adequada do solo e a lógica da especulação imobi-liária são as principais causas dessas tragédias.“Controlar a ocupação da terra quando esta é a mola central e monopólio de um mercado socialmente excludente (restrito para poucos, apesar da amplia-ção recente promovida pelos programas do governo federal) viciado em ganhos especulativos desenfreados é inviável”, pondera em seu artigo. É por isso que os trabalhadores migrantes e seus des-cendentes “não encontram alternativa de assentamento urbano senão por meio da ocupação ilegal da terra e construção pre-cária”, segundo argumenta Maricato.

AssentamentoMas, e agora? Para onde irão as famí-

lias que tiveram suas casas perdidas por causa do alagamento? Segundo Tiara-ju, no caso da região serrana do Rio de Janeiro, os regularizados, certamente os mais abastados, manterão suas pro-priedades, possuindo recursos para re-cuperá-las ou pressionando o Estado a fazê-lo por uma série de mecanismos. “Quanto aos pobres irregulares, resta-rá fi carem nessas áreas, até que novas tragédias aconteçam, ou haverá uma in-tervenção massiva do Estado para re-solver o problema e assentá-las em so-luções paliativas ou recorrendo às for-mas tradicionais de produção e venda de moradia popular, com todos os pro-blemas decorrentes desse tipo de solu-ção”, afi rma.

Fato é que, sempre que possível, as soluções estruturais fi cam veladas por meio do que Tiaraju denomina de en-trave “tautológico”. “A chamada opinião pública (mídia corporativa) se detém na análise rasa e factual; as causas reais das tragédias não são discutidas de fato; não há força/vontade política para mudar o

quadro; as tragédias voltam a ocorrer; a opinião pública se detém na análise rasa e factual...”, descreve.

Esse ciclo que, segundo ele, induz à não resolução real do problema, traba-lha uma comoção que apenas reforça a possibilidade de outras tragédias acon-tecerem. “Logo, difi cilmente haverá uma intervenção nessas causas, que nesse ca-so é a concentração de terra nas mãos de poucos e as regras do mercado imobiliá-rio que impedem o acesso dos mais po-bres”, elucida.

Questionado sobre uma solução ime-diata em relação a maior parte das famí-lias atingidas, Tiaraju entra com uma re-ceita simples.“A verdadeira solução seria reforma agrária, parcelando os latifún-dios da elite que reside na região para o assentamento da população que hoje não tem acesso à cidade nem à moradia dig-na”, conclui.

Para entenderTautológico – Relativo à repetição inútil da mesma ideia em termos diferentes.

“O fato de casas de ricos terem sido atingidas é justamente a exceção que confi rma a regra: foram atingidas porque o nível pluviométrico foi muito maior que o esperado”

Área atingida pelas chuva, no município de Nova Friburgo, região serrana fl uminense

Estragos causados pela enxurrada no rio Santo Antônio, no Buraco do Sapo, em Itaipava, região serrana do Rio

Valter Campanato/ABr

Wilson Dias/ABr

brasil de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011 7

LINHA DO TEMPONasce em dezembro de 1954 em Sarmoneta, Itália.

Após iniciar sua militância na Juventude Comunista, passa a ter contato com a “Autonomia Operária”, em meados de 1970, em Milão.

Aos 22 anos, integra o grupo marxista Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), formado em 1976.

Em junho de 1979, é preso em meio a uma onda de repressão violenta a todos os militantes de esquerda do país, em decorrência do assassinato da principal liderança da Democracia Cristã italiana, Aldo Moro. Em seguida, assina carta rompendo com a luta armada.

Acusado por formação de quadrilha, subversão e posse de armas, recebe condenação de 12 anos e dez meses de prisão.

Em outubro de 1981, foge com a ajuda de outros militantes do PAC.

Depois de atravessar os Alpes a pé, chega à França.

Muda-se para o México em 1982, onde inicia carreira de escritor de romances policiais. Nesse período, seu processo na Itália é reaberto.

Sem provas novas ou testemunhas, é condenado à prisão perpétua por participação em quatro homicídios ocorridos na Itália entre 1977 e 1979. Todas as acusações foram baseadas na palavra de Pietro Mutti, ex-companheiro dos PAC que se tornou um “arrependido”.

Em 1990, sob a proteção da “Doutrina Mitterrand”, volta para Paris, passando a viver de sua literatura e do salário de porteiro do prédio onde viveu até fevereiro de 2004.

Em junho de 2004, a pedido do governo italiano, o Tribunal de Apelação de Paris autoriza sua extradição às autoridades da Itália. Battisti foge para o Brasil.

É preso no Rio de Janeiro em março de 2007, em uma operação conjunta das polícias brasileira e francesa.

Em 2009, o então ministro Tarso Genro (Justiça) concede refúgio político ao ativista. Em novembro do mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) anula a decisão, mas determina que a palavra fi nal caberia ao ex-presidente Lula.

No último dia de seu mandato, 31 de dezembro de 2010, Lula nega a extradição.

Em seguida, a defesa do italiano entra com o pedido de liberdade. O presidente do STF, Cezar Peluso, nega a petição e determina que todos os pedidos relativos ao processo sejam encaminhados para o relator Gilmar Mendes, que deverá levar o assunto ao plenário do tribunal no início de fevereiro.

Maria Mello e Vinicius Mansur

de Brasília (DF)

EM ENTREVISTA exclusiva, o refugia-do italiano Cesare Battisti, preso no Bra-sil desde março de 2007, ressalta que seu julgamento fugiu da esfera jurídica depois que virou moeda de troca da po-lítica internacional e munição para ata-car o governo federal, a ponto de colocar em xeque a soberania nacional e as com-petências da Presidência da República. Politização às escondidas, demonização midiatizada. A seguir, Battisti relata os impactos do sensacionalismo e da des-contextualização dos fatos.

Brasil de Fato – Como é sua relação com os demais presos? Cesare Battisti – A ala onde estou é especial, para ex-policiais; mas tem também gente com curso superior, que são uns 10%. Tenho relações com todo mundo tranquilamente. A cadeia é um micromundo, se reproduzem as mes-mas relações que existem na rua. Tem pessoa de todo tipo, você se relaciona mais com umas, menos com outras. Fe-lizmente não tem problema de violência e não é muito bagunçado como outros pavilhões, que são um inferno, como o local onde me colocaram na cadeia da Polícia Federal, em que fi quei um ano e quatro meses, e também em Cascavel [PR], onde estive alguns dias.

Todo mundo lhe conhece na prisão?

Claro. Todo mundo sabe. Quando tem visita, parentes de presos fi cam surpre-endidos, porque a mídia fala que eu sou terrorista, assassino. O psicólogo de um preso já perguntou: “E esse Cesare Bat-tisti, onde está?”. E o preso disse, “está aí conosco”. E ele respondeu: “Sério? Está aí? E não está acorrentado? Como?”.

Como o senhor tem visto a repercussão do seu caso na Itália e no Brasil?

É difícil falar disso, essa é a razão pe-la qual fi quei traumatizado e precisei de um psiquiatra. Só de ver alguma coisa que não tem muito diretamente a ver comigo eu já fi co... meu coração dispa-ra, já não me controlo, fi co em um es-tado semiconsciente. Ontem, por exem-plo, passou no SBT uma informação do Berlusconi com suas prostitutas. Só com o anúncio da notícia “Itália”, eu fi quei assim [trêmulo].

Fabricaram um monstro que não tem nada a ver comigo.

Qual é o interesse nisso?Perseguem-me porque sou escritor,

tenho imagem pública. Se eu não fosse isso, seria mais um, como vários italia-nos que saíram do país pelo mesmo mo-tivo. Sou perseguido pelo Estado italia-no e pelo Judiciário brasileiro. Essa per-seguição não é gratuita. Não se desres-peitaria por nada uma decisão do presi-dente da República. Não existe um país no mundo onde a extradição não é de-cidida pelo chefe do Executivo. Imagi-na se essa decisão tomada pelo Judiciá-rio brasileiro acontecesse em outro país, como na França, por exemplo? Seria um absurdo, impensável. E quando eu virei um caso internacional, virei uma moe-da de troca para muitas coisas. Se o Lu-la desse esta decisão antes, iam em cima dele, porque me derrotar também é der-rotar o Lula. Agora o objetivo principal da direita brasileira, nesse caso, é afetar o governo Dilma.

Como o senhor recebeu a decisão do Lula?

Foi ato de coragem. Por ser chefe de Estado do tamanho do Lula, com a res-ponsabilidade que tem, envolvido na geopolítica. Claro que a escolha do mo-mento não foi por acaso. O caso Battisti foi usado com outras razões políticas.

Sua extradição abriria quais precedentes?

Mudaria a história, porque até ho-je os italianos nunca foram extradita-dos. Então prejudicaria muito. E não só italianos.

“Me derrotar também é derrotar o Lula”ENTREVISTA Para Cesare Battisti, interesses políticos superdimensionaram seu caso

O senhor acha que se consumada a não extradição, a Itália retaliará o Brasil?

A Itália nunca teve força para estar en-tre os países mais ricos do mundo. Já te-ve por causa da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e da máfi a que enche os cofres dos bancos do mun-do. A Itália sempre foi um blefe. É a Itá-lia quem precisa do Brasil. O que a mí-dia passa é muita mentira. Na Itália tem muita gente que me defende. Se eu for para lá, vai ter bagunça e o Berlusconi sabe disso.

Qual seu sentimento hoje pela Itália?

Já não é meu país. Eu me formei como cidadão do mundo. Quando abandonei a Itália, eu ainda era muito jovem. En-tão, para mim, essa coisa da pátria não cola. Não cheguei a isso intelectualmen-te, como anarcocomunista. Foi pela vida mesmo, pela maneira como eu vivi, por escolha e por obrigação também. Para mim, essa coisa da pátria não tem sen-tido. Perdeu sentido, digamos.

Quem são seus inimigos na Itália?Meus inimigos são os que querem es-

conder os anos de chumbo. A mídia faz de tudo para apagar o contexto históri-co. Governo e oposição são os mesmos dos anos de chumbo: democracia cris-tã e PCI, Partido Comunista Italiano. O PCI era partido mais stalinista, mas que não podia controlar o poder. Eles foram os mais cruéis para nós. Torturadores. E hoje eles seriam a oposição ao Berlusco-ni. Mas não existe oposição, o PCI não tem nenhum programa político. Quan-do Berlusconi, que sabemos quem é, fa-la que a oposição quer ganhar as elei-ções com um golpe do Judiciário, está falando a verdade. Como já aconteceu uma vez. Eles chegaram uma vez, entre dois mandatos do Berlusconi, com um golpe. Porque o Judiciário era contro-lado pelo PCI, o PCI controlava os ma-gistrados italianos. Nos anos de chum-bo, os melhores magistrados eram do PCI e continuaram sendo, alguns de-

les são candidatos. Na ditadura eles or-ganizavam e assistiam sessões de tortu-ra. Torturavam o movimento revolucio-nário, desde as Brigadas Vermelhas até a autonomia, os PAC. Um deles era Ar-mando Spataro, que não era fi liado, mas tem relações com o PCI. Ele era o tortu-rador de Milão. Na Anistia Internacio-nal, tem documentação sobre isso. E ele é o procurador que hoje me persegue. Ele é o procurador geral de Milão e ain-da é o procurador europeu-italiano de terrorismo.

E qual é o seu vínculo com o Brasil?Se existe um recanto de patriotismo,

ele seria o Brasil. Pode parecer um pou-co oportunista isso, mas cheguei aqui, não conhecia ninguém e se criou um movimento a meu favor. Isto acalenta muito o coração.

Quem o senhor procurou quando chegou?

Quando cheguei já tinha minha fo-to por todos os lados. Sabia que estava sendo monitorado; então não tomei ne-nhum contato com os italianos refugia-dos aqui, nem com nenhum movimento. Tentava preservar a eles e a mim. Mas como eu não posso fi car longe de pro-blemas, subia os morros todos os dias. Sentava no boteco, tomava uma cerve-jinha e a dona do boteco tinha um fi lho preso. Ela era analfabeta e me pedia pa-ra ler as cartas do fi lho e também res-ponder. E assim, eu estava aí em três morros, tinha contato excelente com to-do mundo.

Quais morros?Santa Marta, Tabajara e Cantagalo.

No Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, tu-do isso aí. Virei o escrivão dos morros. Eeu sempre trabalhei com isso. Na Fran-ça eu tinha permissão do Ministério daPolícia e do Ministério do Interior parafazer ofi cinas de redação. Para mim foi natural e todas as viaturas da PM me co-nheciam, porque em todo morro do Rio tem uma viatura lá embaixo. “Aí vai ogringo”, falavam. Subia o morro para poder me sentir vivo.

Mas quando o senhor chegou, de quem recebeu apoio?

De muita gente, do PT e até do PSDB.Quando eu fui preso, o Fernando Gabei-ra chegou com alguns deputados do PS-DB. Claro, eles não sabiam muito bem oque estava acontecendo e logo se afas-taram, inclusive o Gabeira. Ele me rece-beu no Brasil, me ajudou, mas não como um sujeito político pensante. Recebeu-me como um detido dos anos de 1970,que achava que não iria representar pe-rigo para ninguém, porque já tinha ita-lianos aqui nessa condição. Quando ele se deu conta de quem era eu, ou melhor,do que a mídia fez de mim, ele tomoudistância.

Como o senhor se defi ne politicamente?

Sou anarcocomunista desde sem-pre, por considerar leninismo acabado.Mas sou do anarquismo organizado, um anarcomarxista, porque existe um outronúcleo forte do anarquismo que é indi-vidualista.

E como vê o socialismo no mundo hoje?

Acredito que estamos criando condi-ções para o socialismo. A socialdemo-cracia no norte da Europa, com políti-cas de bem estar social, avançou. Masestá caindo porque o bloco liderado pe-los Estados Unidos, de liberalismo sel-vagem, que não tem custo com seguri-dade social, é uma concorrência muito difícil, cruel. A Venezuela está fazendoo melhor que pode. Não avançou maisporque o país não permitia. Era quase feudal. Não se pode achar que trocan-do de presidente o país vai mudar do diapara a noite. E Cuba, se não fosse o em-bargo, poderia ser a melhor democracia do mundo.

Qual é a sua avaliação sobre a luta armada?

O Estado nos empurrou para a luta ar-mada, porque só assim poderia derrotaro fortíssimo movimento cultural que ha-via. O movimento revolucionário italia-no chegou a ter mais de um milhão depessoas. Mas caímos na armadilha eacabamos fazendo o jogo do poder. Eunão posso dizer que a luta armada não éviável no mundo inteiro, mas no mundoque eu conheço não é mais. Acho que arevolução é eliminar as classes, mas nãopassa pelas armas, mas sim pela cultu-ra e educação.

Saindo da prisão, o que pretende fazer?

Não sei fazer outra coisa além de es-crever e trabalhar com coletividades.Pretendo fazer um trabalho social a par-tir da escrita. Talvez não tenha o direito de fazer política, mas vou fazer cultura.A fronteira aí é tênue, mas como eu gos-to de discutir, tudo bem.

O senhor vê riscos se solto?Há abaixo-assinados de agentes car-

cerários contra mim; é preocupante. Se acontecer algo comigo, Berlusconi teráde prestar contas.

QUEM É

Cesare Battisti, de 56 anos, é escritor italiano e ex-integrante da organização Proletários Ar-mados pelo Comunismo (PAC), que optou pela luta armada na década de 1970. Foi condenado à prisão perpétua por participação, direta e in-diretamente, em quatro assassinatos ocorridos naquela época. Fugiu para o Brasil em 2004, onde foi preso em 2007. Está no presídio da Papuda, em Brasília, aguardando a defi nição sobre seu pedido de extradição por parte da Itália.

“‘E esse Cesare Battisti, onde está?’. E o preso disse, ‘está aí conosco’. E ele respondeu: ‘Sério? Está aí? E não está acorrentado? Como?’”

“Imagina se essa decisão tomada pelo Judiciário brasileiro acontecesse em outro país, como na França, por exemplo? Seria um absurdo, impensável”

“A Itália sempre foi um blefe. É a Itália quem precisa do Brasil. O que a mídia passa é muita mentira”

“Eu não posso dizer que a luta armada não é viável no mundo inteiro, mas no mundo que eu conheço não é mais”

Parlamentares prestam solidariedade a Cesare Battisti na Penitenciária da Papuda em 2009

José Cruz/ABr

culturade 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 20118

Michelle Amaralda Redação

ENTRE 2005 E 2010, o fotógrafo João Zinclar percorreu as margens do rio São Francisco em oito estados e regis-trou a cultura do povo ribeirinho e sua luta em defesa do rio. Uma retrospec-tiva deste trabalho está reunida no li-vro O rio São Francisco e as águas no sertão, lançado no fi nal do ano passa-do, Algumas dessas imagens podem ser vistas nesta página.

Na entrevista a seguir, Zinclar conta que a ideia de realizar o ensaio surgiu com a intensifi cação das discussões e mobilizações contrárias à decisão do go-verno federal de realizar a transposição das águas do rio. “Senti necessidade e vontade política de contribuir nesse de-bate através da fotografi a, nesse cenário de confl itos em torno do uso e controle das águas do Velho Chico”, conta.

O fotógrafo afi rma que, apesar do iní-cio das obras, o confl ito em torno do pro-jeto da transposição continua. “É uma questão mal resolvida e que pode ter desdobramentos futuros”, explica. Nes-se sentido, ele acredita que o livro pos-sa contribuir no debate e luta em defe-sa do rio.

Brasil de Fato – Como nasceu a idéia de produção do livro fotográfi co?João Zinclar – Esse livro é a conclu-são de um ensaio que vem sendo reali-zado desde 2005 no rio São Francisco e no sertão nordestino. É uma obra coleti-va, pois contou com a valiosa contribui-ção de várias pessoas amigas, que escre-veram textos que enriqueceram a publi-cação. A ideia de fotografar essa pau-ta surgiu com a intensifi cação das mo-bilizações contrárias à transposição do São Francisco. Senti necessidade e von-tade política de contribuir nesse deba-te através da fotografi a, nesse cenário de confl itos em torno do uso e controle das águas do velho Chico. Antes de virar livro, essas fotos já foram expostas em vários lugares, serviram para estimular debates e ilustrar varias reportagens so-bre a transposição, principalmente as realizadas pelo Brasil de Fato ao lon-go desses cinco anos.

Você poderia falar da experiência vivida no período em que percorreu o rio São Francisco?

Conhecer melhor aquele povo, suas as-pirações, sua cultura e suas lutas foi uma experiência rica em fundamentos. O con-tato e a interação nas beiradas do rio São Francisco com os povos tradicionais, in-dígenas, quilombolas, pescadores ribei-rinhos, sem-terra, pequenos agriculto-res, vazanteiros, em sua lutas por terra e água, fi zeram ampliar meu entendimen-to sobre a luta de classes no Brasil. À sua maneira, esse povo contribui na linha de frente no confl ito com o capital, resistin-do e procurando construir alternativas à nova fase do avanço do agronegócio no campo e do capitalismo no Brasil.

Quais difi culdades você enfrentou no período de produção da obra?

Fui assaltado na estrada em Cabrobó [PE], juntamente com o jornalista e ami-go Flaldemir Sant’ana. Sofri ameaças de morte fotografando carvoarias em Buri-tirama (BA). Tirando esses fatos indese-jáveis, na verdade, não encontrei muita difi culdade, pois contei com apoios logís-ticos importantes de sindicatos de traba-lhadores e pessoas amigas de Campinas (SP), cidade onde moro, e principalmen-te com a receptividade política, o des-prendimento e a solidariedade ativa do povo lutador da bacia hidrográfi ca do Rio São Francisco e do sertão nordestino. Veio deste povo e de suas organizações políticas, sociais e pastorais, todo apoio necessário com transporte, alimentação e hospedagem, contatos e informações valiosas que ajudaram a compreender realidades pelos caminhos do velho Chi-co. Sem essa solidariedade seria impos-sível percorrer diversas vezes, os mais de dez mil quilômetros rodados em oito es-tados (Minas Gerais, Bahia, Pernambu-co, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Rio Gran-de do Norte e Ceará) desde 2005.

“Conhecer melhor aquele povo, suas aspirações, sua cultura e suas lutas foi uma experiência rica em fundamentos”

Olhar em defesa do Velho Chico

LIVRO João Zinclar retratou em imagens, nos últimos cinco anos, a resistência à transposição e ao capital no rio São Francisco

O livro pode ser adquirido na Editora Expressão Popular (www.expressao popular.com.br)

de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011 9américa latina

Renato Godoy de Toledoda Redação

O PRESIDENTE boliviano Evo Mora-les enfrentou o maior protesto de mo-vimentos sociais desde o início de seu governo em 2006. Nos últimos dias de 2010, os movimentos sociais, que sem-pre foram a maior base de apoio de seu governo, protestaram contra um decre-to presidencial (de número 478) de 26 de dezembro que autorizava a elevação do preço da gasolina (em 83%) e do die-sel (em 72%).

Segundo o governo, a medida visava equiparar o mercado boliviano às con-dições impostas internacionalmente e estancar a sangria ocasionada pelo con-trabando de combustível que, de acor-do com dados ofi ciais, representava 150 milhões de dólares anuais. Mas os mo-vimentos sociais não fi caram convenci-dos por essa argumentação e foram às ruas em protestos intensos. Consegui-ram fazer com que o governo recuasse e revogasse o decreto 478 no dia 31 de dezembro.

Os protestos foram engrossados ainda por setores não contemplados por um aumento salarial de 20% anunciado por Morales no dia 29 de dezembro. A medi-da benefi ciou apenas quatro setores da sociedade: magistrados, trabalhadores da saúde, policiais e militares. O epicen-tro dos protestos se deu na cidade de El Alto, onde Evo sempre gozou de ampla margem de apoio, tendo mais de 80% dos votos na última eleição em 2009.

Apesar de ser uma manifestação de descontentamento baseada em deman-das reais dos mais pobres, é certo que parte da oposição de direita e as oligar-quias de Santa Cruz de La Sierra tiraram proveito da medida impopular.

Para os movimentos sociais que se opuseram ao chamado “gasolinazo”, a justifi cativa de que a Bolívia precisa se adequar aos padrões de preço interna-cional do combustível pode até ser per-tinente, mas não para um governo de es-querda comprometido com as transfor-mações sociais. Os movimentos avaliam que a necessidade de “competitividade” e “inserção no mercado” são agendas do neoliberalismo e não da pátria plurina-cional comandada por Evo Morales.

Evo e os movimentosNa opinião de Juan Carlos Balderas,

do Grito dos Excluídos da Bolívia e do Centro de Estudos e Apoio ao Desen-volvimento Local (Ceadel), ao sancio-nar o aumento da gasolina, Evo Mora-les tomou uma medida que nem mesmo os governos anteriores, neoliberais, ti-nham ousado tomar. E, pior, o aumen-to dos combustíveis seria uma forma de os pobres pagarem os erros dos ne-oliberais.

Balderas também aponta que a me-dida visava a favorecer os interesses de transnacionais petrolíferas e questiona o porquê de o governo não cortar a sub-venção a outras empresas, como a Pe-trobras, e deixar de pagar dívidas à Ar-gentina e ao Chile.

Mesmo alcançando o seu objetivo de barrar o aumento, os movimentos não tiveram um grande ganho, segundo Bal-deras, pois permaneceram na mesma si-tuação. O mesmo não pode ser dito em relação ao governo.

“Os movimentos não saíram fortale-cidos, porque ninguém ganhou nada de concreto. Mas o grande perdedor, la-mentavelmente, foi o governo. O go-verno agiu sem planejamento e até com ausência de clareza. Pôs em ação uma prática neoliberal com um discurso de esquerda, de mudança, que não encon-tra base na realidade. E as transna-cionais se aproveitam dessa situação, agindo sobre o desgaste permanente do governo. E esse processo foi condeco-rado com a crise que agora o governo enfrenta”, analisa.

Fica evidente a perda de apoio do go-verno Evo Morales entre os movimen-tos sociais. Para Balderas, esse processo

Evo Morales perde batalha contra os movimentos sociais bolivianos‘GASOLINAZO’ Para especialistas, levante contra o aumento dos combustíveis refl ete distanciamento entre movimentos e governo

é acelerado pela despolitização das ba-ses sociais. “Há uma ‘desideologização’ nos movimentos. Muito se fala em ‘Ma-dre Tierra’, mas a luta de classes está au-sente do debate e na formação dos mo-vimentos”, opina.

Raúl Prada, ex-deputado constituinte do MAS, partido do presidente, afi rma que a crise enfrentada por Evo Mora-les é grave. “O apoio ao presidente dimi-nuiu muito. Foi um impacto muito for-te, uma crise muito forte. Creio que a imagem do presidente como líder caiu. Temos agora um homem comum, não aquele carismático do imaginário po-pular. O apoio dos movimentos a Evo vem diminuindo, pouco a pouco, desde 2006. E, além de distanciamento, agora há um enfrentamento”, aponta

Direita fracaPor outro lado, as forças conservado-

ras da Bolívia aproveitaram-se da situ-ação para obter ganhos políticos. Mas não chegaram a liderar os movimentos. O comitê de emergência contra o gasoli-nazo repudiou a “carona” que alguns se-tores tentaram pegar junto aos protes-tos. “Repudiamos as ações oportunistas do Partido Sem Medo (do ex-prefeito de La Paz), dos representantes da oligar-quia cruceña e paceña [de Santa Cruz e de La Paz, respectivamente] e do Comi-tê Cívico de Santa Cruz, que distraem a opinião pública com suas marchas e dis-cursos em defesa dos setores sociais po-bres e vilipendiados há mais de 518 anos”, dizia uma nota do comitê.

Juan Carlos Balderas vê com naturali-dade o proveito que as elites tiraram da situação. “Sempre, na América Latina, as direitas tentam tirar proveito de si-tuações de contradição. Nesse caso, nas mobilizações contra o decreto 478, não foi diferente. Contudo, seria um erro di-zer que o movimento contra o decreto foi dirigido pela direita ou por uma for-ça em particular”, aponta.

Balderas aponta que, apesar do enfra-quecimento do governo e da crise polí-tica criada após o gasolinazo, não exis-te uma força de direita capaz de se im-por nacionalmente. “A direita aprovei-tou bem a situação. Mas não existe ho-je na Bolívia um movimento de direita que possa se estruturar nacionalmente e fazer frente ao presidente Evo Morales. E não há uma expressão da direita que possa dirigir qualquer movimento”, diz.

da Redação

O Chile também foi palco de protestos contra aumento do preço de combustí-veis no início de 2011. O foco das mani-festações foi a cidade de Magallanes, no extremo-sul do país, na Patagônia chi-lena. A população local revoltou-se con-tra o reajuste de 17% no preço do gás, muito utilizado na região para aquecer as casas.

Os manifestantes fi zeram greves e bloquearam estradas, deixaram dois mil turistas isolados na região. Tal co-mo na Bolívia, os protestos chilenos obtiveram êxito. Após se mostrar ini-cialmente intransigente, o governo do presidente Sebastián Piñera negociou com os manifestantes após as autorida-des alertarem para o risco de desabas-tecimento de produtos básicos em toda a região da Terra do Fogo. O reajuste foi reduzido de 17% para 3%. Além da

Chilenos também protestam contra aumento de combustívelComo na Bolívia, manifestações foram bem-sucedidas e arrancaram recuo do governo

diminuição do reajuste, os movimentosque promoveram os bloqueios na Terrado Fogo conseguiram obter mais 15 milsubsídios para famílias pobres da re-gião. Atualmente, o benefício é conce-dido a três mil famílias. O subsídio go-vernamental aos moradores da região éconcedido em função das temperaturasbaixas e do solo inapropriado para di-versas culturas.

Repressão

O governo Piñera lançou mão de um expediente de repressão para conter as manifestações – a maior que ele enfren-tou desde que assumiu o governo em 2010. O ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, ordenou a Lei de Segurança Interna do Estado na região sul do país para inibir as manifestações.

Essa lei permite triplicar as sanções contra os detidos e, em casos extremos, as Forças Armadas podem ser autoriza-das a intervir para garantir a “manuten-ção da ordem”. Nas repressões ao protes-to, morreram duas mulheres e um me-nor fi cou gravemente ferido, enquanto 33 pessoas foram detidas.

As manifestações são avaliadas como o fi m da “lua de mel” da opinião pública chilena com o presidente, muito fortale-cido após o resgate dos 33 mineiros.

Em meio aos protestos, Piñera enfren-tou uma crise ministerial, com a renún-cia de quatro ministros (Defesa, Trans-porte, Trabalho e Energia). (RGT)

Além da diminuição do reajuste, os movimentos que promoveram os

bloqueios na Terra do Fogo conseguiram obter mais 15 mil

subsídios para famílias pobres da região

CHILE

“O governo agiu sem planejamento e até com ausência de clareza. Pôs em ação uma prática neoliberal com um discurso de esquerda, de mudança, que não encontra base na realidade”

Balderas aponta que, apesar do enfraquecimento do governo e da crise política criada após o gasolinazo, não existe uma força de direita capaz de se impor nacionalmente

Movimentos realizam protesto em La Paz contra o aumento da gasolina

Emerson Alecrim

Emerson Alecrim

Paralisação em estrada próximo a Magallanes no Chile

américa latinade 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 201110

Daniel Lozanode Porto Príncipe (Haiti)

LILIANE PIERRE-PAUL é várias vezes sobrevivente. A Rádio Kiskeya, a emis-sora que dirige, balançou durante o ter-remoto tanto quanto seu corpo duran-te as torturas selvagens dos tonton ma-coutes, os milicianos paramilitares em-pregados pelos dois ditadores da dinas-tia Duvalier.

Mas ela não delatou seus companhei-ros de luta, manteve-se tão fi rme como seu escritório, que ainda resiste apesar da queda do teto e de uma parede. “Me salvei milagrosamente no dia 12 de janei-ro de 2010”, rememora orgulhosa, abrin-do a porta para mostrar o que já é um símbolo de resistência em sua emissora. “Igual que com Baby Doc”, acrescenta. Dois milagres, mas não os únicos: “Tam-bém sobrevivi aos militares. Y a Lavalas [o partido do ex-presidente Jean Ber-trand Aristide, deposto em 2004]”.

No país dos milagres desesperados, Li-liane é exemplo de lutadora da liberdade e pela memória histórica. Jornalista per-seguida, como tantos outros, durante a tirania hereditária dos Duvalier, não da-va crédito quando a notícia do retorno de Jean Claude, o Baby Doc, chegou à reda-

ção de sua rádio no dia 17 de janeiro. “Ti-ve que pedir cautela a meus jornalistas, parecia inacreditável. Mas, depois, me embarguei de dor. E de raiva”, queixa-se. O caudilho do “regime de terror” estava aterrissando em Porto Príncipe.

LágrimasEssa mulher, valente e forte como

tantas no Haiti, desmancha-se por al-guns minutos. As lágrimas afl oram en-quanto relata as torturas que recebeu quanto foi detida em 1980. Assim, dói menos. “A vitória de Reagan [Ronald Reagan, ex-presidente estadunidense, entre 1981 e 1989] foi celebrada com champanhe no Palácio Presidencial. Os tonton tomaram as ruas para impor o medo, depois de anos de relativa tran-quilidade que havia sido a presidên-cia de Jimmy Carter [1977-1981]. Pren-deram-me na rádio. Horas mais tarde, também levaram 13 familiares e amigos que me procuravam em casa. Na prisão de Dessalines, tiraram minha roupa na frente de meus torturadores. Fazia mui-to frio; me bateram. Minhas costas do-em deste então”.

Liliane respira fundo, se procurando nas recordações. Seu fi lho, sentado jun-to a ela, tampouco contém as lágrimas. “Só nos restava a paz do cemitério”. Dói o corpo. E também a alma. A jornalista se declarou em greve de fome. E depois de muita pressão nas ruas e nos EUA, a embarcaram em um avião sem visto. “Sabiam que podiam me mandar de vol-ta, era o que esperavam. E, no meu retor-no, queriam-me executar. Mas em Cura-çao ameacei cortar meu pulso: ou me exi-lava, ou me matava”.

Assim começou seu exílio na Vene-zuela (“os serviços secretos me vigia-vam, me acusavam de ser comunis-ta”) e no Canadá. Já de volta ao Hai-

res quase absolutos que lhe dava uma Constituição desenhada por seu pai pa-ra fazer algumas reformas, como a li-bertação de alguns presos políticos e o afrouxamento da forte censura de im-prensa existente, atendendo aos conse-lhos da embaixada dos EUA.

Corrupção A gestão de Richard Nixon tornou-se

cada vez mais tolerante e amistosa pa-ra com a política de “respeito” aos direi-tos humanos sob a gestão “Baby Doc”, embora esta, objetivamente, não tives-se mudado um milímetro em relação a de seu pai.

A corrupção no governo crescia tanto quanto a pobreza e a indigência do po-vo. A cerimônia nupcial que uniu Jean-

Claude Duvalier a sua nova esposa, Mi-chèle Bennett Pasquet, uma mulata di-vorciada com má reputação, custou três milhões de dólares e isso, unido à trans-cendência de uma série de negócios fraudulentos de familiares da nova pri-meira-dama, fez o ditador se distanciar das maiorias negras, principalmente, edos velhos duvalieristas linha-duras.

A chamada cleptocracia dos Duvalier,pai e fi lho, terminou em 1986. Foram 29anos de ditadura que fi zeram com que opovo haitiano merecesse um respiro de-mocrático que ainda não teve.

Jean-Claude Duvalier e sua família seestabeleceram na França para viver lu-xuosamente. Foram objeto de denún-cias e processos que conseguiram ar-quivar, ainda que as autoridades france-sas não lhes tivessem concedido formal-mente o asilo político desejado.

Dizem que uma boa parte de sua enor-me fortuna se perdeu ao se divorciar deMichele em 1993. Em 2006, para pro-mover aspectos positivos da tirania de seu pai e algum apoio político no Hai-ti e no exílio, criou a Fundação François Duvalier.

EnsaiosEm 2004, na ocasião da derrubada

de Aristide, Duvalier anunciou sua in-tenção de voltar ao Haiti e se postularà presidência nas eleições de 2006 pelo Partido da Unidade Nacional, mas nada disso aconteceu.

Em setembro de 2007, foi transmitidovia rádio no Haiti um discurso de Duva-lier em francês (não crioulo) anuncian-do que o exílio o havia arruinado, masque a sorte crescente do Partido da Uni-dade Nacional o havia “revigorado”.Não falou de planos para voltar. Em fe-vereiro de 2010, uma corte suíça liberou mais de quatro milhões de dólares deuma conta sua que estava bloqueada.

O anúncio do eventual regresso à vida pública de um dos mais emblemáticos representantes das ditaduras promovi-das pelos EUA ao sul de suas fronteiras, em um passado muito recente, é motivo de grave preocupação em um continen-te onde ainda consternam o evento gol-pista de Honduras e as fracassadas ten-tativas na Venezuela, Equador e Bolívia. (Rebelión)

Manuel E. Yepe é jornalista cubano

Tradução: Igor Ojeda

Uma nova desgraça para o HaitiANÁLISE O rastro deixado pela dinastia Duvalier na empobrecida nação haitiana é muito profundo e triste

HAITI As vítimas denunciam à Promotoria o ex-ditador Baby Doc por torturas e assassinatos

No país dos milagres desesperados, Liliane é exemplo de lutadora da liberdade e pela memória histórica

Manuel E. Yepe

A VIAGEM SURPRESA ao Haiti de Jean Claude “Baby Doc” Duvalier, depois de 25 anos de exílio, foi uma notícia agra-vante das tensões geradas pelo terre-moto que deixou milhares de falecidos e centenas de milhares de feridos, pe-la epidemia de cólera igualmente dura e por outras calamidades naturais e po-líticas adicionais, que se juntaram a este inesperado retorno do sanguinário ex-ditador, em tempos de tenso desenlace das eleições presidenciais.

O rastro deixado pela dinastia Duva-lier na empobrecida nação haitiana é muito profundo e triste. François Duva-lier (Porto Príncipe, 1907-1971), que se fazia chamar Papa Doc, contando com o apoio do exército, ganhou as eleições presidenciais de 1957, que lhe deram um mandato de seis anos.

Sua campanha eleitoral foi de cor-te populista, levando a cabo uma es-tratégia pró-negritude que convocava a maioria negra a se opor à elite mula-ta que estava no poder. Renovou a tra-dição do vudu e a usou depois para afi r-mar seu poder identifi cando-se como hougan (sacerdote), imitando a imagem do Baron Samedi (deus da morte e dos cemitérios no panteão vudu).

MilíciaDepois de sobreviver a um atentado

contra sua vida em 1958, Papa Doc de-purou o exército e seu governo se tornou brutal e repressivo. Em 1959, inspirado nos camisas negras do fascismo italia-

ti, tem vivido intensamente as convul-sões do país mais golpeado do planeta: “Baby Doc fuzilou e torturou 30 mil hai-tianos e enviou centenas de milhares ao exílio. Roubou milhões de dólares, tam-bém arruinou nosso meio ambiente. Por tudo isso, sonho com um processo judi-cial baseado na verdade e não na dema-gogia. Mas não há justiça no Haiti. De-pois de Baby Doc, chegaram os militares e Aristide. E cometeram tantas atrocida-des quanto ele. Por isso, não vão conde-ná-lo. Todos são cúmplices. Eu não bus-co vingança, só quero justiça diante da impunidade”.

Lutas por memóriaPara a sorte do Haiti, Liliane não é a

única lutadora com memória. Um gru-po de perseguidos e sobreviventes, com outra mulher no comando, Michele Montas, apresentou ao Promotor-Ge-ral uma nova demanda contra Duva-lier. “O acusamos de detenção ilegal,

exílio, destruição da propriedade pri-vada, tortura física e mental e violaçãode direitos políticos e civis”, anunciouMontas, mulher de um dos símbolos daluta contra a ditadura, o jornalista Je-an Dominique. A esta denúncia, soma-ram-se Alix Fils-Aime, Nicole Mangloi-re e Rosiers Claude, torturado e encar-cerado por dez anos.

Como o atleta Bobby Duvall, que so-breviveu graças a sua fortaleza. “Vi gen-te morrer na cadeia, perseguida e espan-cada com bastões de beisebol. Uma situ-ação desumana e inimaginável”, conta. Ou como Evans Paul, ex-prefeito de Por-to Príncipe e símbolo da luta contra a di-tadura. Sua voz foi a primeira que se le-vantou quando o mundo contemplava como Baby Doc passeava impune pelas ruas de Porto Príncipe, gritando aos qua-tro ventos a “história de sangue e roubo” do ditador.

É um sonho impossível julgar Duva-lier no Haiti? “O melhor seria devolvê-lo à França com um mandado judicial e que seja a Corte Internacional que lhe jul-gue no exterior”, afi rma convicto Patrick Elie, antigo ministro do Interior e outra das vítimas do genocida. “É muito duro para todos nós. Não parece só uma pro-vocação. Ele também está nos intimidan-do”. (Público)

Tradução: Igor Ojeda.

“Com Duvalier, só nos restava a paz do cemitério”

no, criou uma milícia, a VSN (Voluntá-rios da Segurança Nacional), que passou a ser conhecida como os tonton macou-te: uma temida força que não recebia re-muneração, mas impunha seus próprios meios de fi nanciamento através do cri-me e da extorsão. Em 1964, François Duvalier titulou-se presidente vitalício, cargo que exerceu despoticamente até sua morte em 1971.

Seu sucessor foi Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, designado para o car-go por seu pai aos 19 anos (nascido em 1951). Foi o mais jovem chefe de Estado na história republicana da América.

Diz-se que, inicialmente, Jean-Clau-de Duvalier havia resistido à designa-ção, preferindo que sua irmã mais ve-lha, Marie Denise, ocupasse o cargo, e que depois se contentou com que sua mãe desse conta dos assuntos políticos e administrativos da presidência – auxi-liada por Luckner Cambronne, ministro do Interior de seu pai – para poder levar uma vida libertina, mais própria de sua idade, interesses e formação. Isso faci-litou a infl uência dos “dinossauros”, ou velhos duvalieristas, e seu controle so-bre aspectos do governo.

Mas, na medida em que Jean-Claude foi se interessando, utilizou seus pode-

Em 1964, François Duvalier titulou-se presidente vitalício, cargo que exerceu despoticamente até sua morte em 1971

Foram 29 anos de ditadura que fi zeram com que o povo haitiano merecesse um respiro democrático que ainda não teve

Fotos: Emiliano Sosa

Dói o corpo. E também a alma. A jornalista se declarou em greve de fome. E, depois de muita pressão nas ruas e nos EUA, a embarcaram em um avião sem visto

Baby Doc “fuzilou, torturou, roubou milhões de dólares e arruinou o meio ambiente” do Haiti

Menina se banha em meio aos escombros do terremoto: país arrasado também por 29 anos de ditadura dos Duvalier

áfrica de 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2011 11

Gladys Martínez López de Madrid (Espanha)

NA TARDE DE 14 de janeiro, a Tunísia iniciava “uma nova era”, nas palavras do secretário-geral da Liga Árabe. O dita-dor que durante 23 anos havia dirigido o país, Zine el-Abidine Ben Ali, havia fugi-do em seu avião presidencial, derrotado pelos fortes protestos populares que du-rante um mês foram se incendiando por toda a geografi a tunisiana e que acaba-ram infl amando a capital.

Os militares, cujo papel, de momen-to, está sendo o de manter a ordem e que contam com a simpatia da população por não ter participado em sua repressão, mantêm o controle dos pontos estratégi-cos, e continua vigente o estado de exce-ção, que lhes permite o controle da segu-rança, mas que também põe em suspen-são certas liberdades.

De momento, continua havendo inse-gurança nas ruas, embora muitos comér-cios e o transporte tenham começado a funcionar. “Os cidadãos formaram comi-tês de vigilância em todos os bairros e ci-dades e se coordenam com o Exército pa-ra fazer frente às milícias” formadas por policiais e jagunços do ditador deposto, que começaram a semear o pânico “para criar uma situação de caos que justifi cas-se o retorno de Ben Ali”, explica ao Dia-gonal o advogado Mohamed Jmour.

Depois da prisão do Chefe de Seguran-ça do ditador, Ali Seriati, responsável por essas milícias, e com a auto-organização popular para defender os bairros, espe-ra-se a progressiva recuperação da cal-ma. Enquanto isso, os acontecimentos se sucedem vertiginosamente no plano po-lítico, que ferve como nunca se viu neste país, agora presidido de maneira interina por Fouad al-Mebaza, anterior presiden-te do parlamento.

Mal assumiu, o novo governo já viveu sua primeira crise com a saída de três mi-nistros e um secretário de Estado. Os de-missionários, uma independente e três membros da central sindical UGTT, ocu-pavam a Secretaria de Estado de Trans-porte e os Ministérios de Trabalho e Cul-tura, além de outro sem pasta. Além dis-so, o ministro de Saúde suspendeu sua participação. Sua saída do governo se deu por causa da presença de membros do partido ofi cialista RCD no Executi-vo, que ocupam, entre outras pastas, os Ministérios-chave das Relações Exterio-res, do Interior, da Defesa e das Finan-ças. Além do partido de Ben Ali e dos três partidos que já eram legais sob o antigo regime, embora estivessem marginaliza-dos na vida política, esse primeiro gover-no provisório incorporava personalida-des independentes.

O governo de “unidade”Um dos aspectos que mais provocou

indignação foi, precisamente, a presen-ça do RCD no governo. Desde a forma-ção do Executivo, milhares de pessoas se manifestaram, desafi ando o estado de exceção, contra essa decisão. “Inquie-ta-me a presença do partido de Ben Ali, que é corrupto e que se confunde com o Estado”, queixa-se Massoud Romdhani, presidente da Liga Tunisiana de Direitos Humanos em Kairaouan, embora reco-nheça que em sua associação existam ou-tras posturas.

Deste modo, grande parte da popula-ção exige que o RCD, que até agora con-trolava todos os âmbitos da sociedade, seja separado das instituições do Esta-do. Por outro lado, esse governo só in-cluía os partidos da oposição reconheci-da por Ben Ali, “que não possuem mui-ta representatividade e que não atuaram muito. E estão ausentes os partidos não reconhecidos e os sindicalistas que fi ze-ram a revolução com os desempregados e os jovens”, critica Romdhani.

Uma opinião compartilhada por Has-

cuperados e que as comissões de investi-gação que vão ser estabelecidas para de-purar responsabilidades e para investi-gar a corrupção sejam formadas por pes-soas independentes, para que seu traba-lho seja transparente e suas conclusões convincentes”.

Para que se conquiste um proces-so realmente democrático, Romdhani considera necessário, além das medi-das já anunciadas, “uma separação en-tre o partido de Ben Ali e o Estado, a eli-minação da presença militar nas ruas e, sobretudo, a elaboração de uma no-va Constituição, que seja democrática, responda às aspirações do povo, dê voz a todos e assegure a laicidade do Esta-do. Deve-se lutar para que a revolução

não seja roubada e para que desembo-que em uma verdadeira democracia eem um desenvolvimento sustentável para a Tunísia”.

“Do lado do povo”No plano internacional, diversos paí-

ses ocidentais aliados de Ben Ali não de-moraram em virar a casaca. São os casos de EUA e França, Estados com grandes interesses estratégicos e econômicos que mantinham excelentes relações com o di-tador. A União Europeia (UE) também se posicionou ao lado do povo tunisiano na última hora, embora nos últimos anos, apesar das constantes denúncias dos de-fensores de direitos humanos, não teve pudores de negociar com o país um esta-tuto avançado que lhe permitisse conso-lidar seus interesses comerciais.

Mas há dois atores internacionais que não reagiram, pelo menos publicamente, à revolução tunisiana: o FMI e o Banco Mundial, cujas políticas de ajuste estru-tural, liberalização e abertura de merca-dos, aplicadas desde há três décadas na Tunísia – que era qualifi cada como sua “melhor aluna” na região – estão tam-bém na base do profundo descontenta-mento popular que levou o povo tunisia-no a se levantar. (Diagonal)

Tradução: Igor Ojeda.

san Qassar, professor de Ciências So-ciais em uma universidade de Túnis, que afi rma que “só deixaram participar os partidos que contaram com o aval dos EUA”, e que “os setores populares que iniciaram a revolução não se sentem re-presentados por eles”.

Outros âmbitos da sociedade, críticos ou não, pediam uma oportunidade ao novo Executivo, que deve se encarregar de organizar e convocar eleições legisla-tivas e presidenciais. O governo “de uni-dade” havia anunciado que suas primei-ras medidas de urgência serão a legaliza-ção dos partidos não reconhecidos pela gestão de Ben Ali, a anistia geral para to-dos os presos políticos e a liberdade total da informação.

Hoje, o futuro político na Tunísia es-tá carregado de esperança, mas também de medos. “Temo que essa revolução dos pobres seja sequestrada por políticos que vão se aproveitar do sacrifício realizado”, afi rma Hassan Qassar. De momento, de-vemos esperar para ver como a situação política evolui e qual é o papel do povo tunisiano nessa nova etapa.

Está em discussão também a criação de uma comissão nacional de reforma política, informa Mohamed Jmour, que acrescenta que “as pessoas exigem tam-bém que se julgue o ex-presidente e sua família, que os bens do Estado sejam re-

Os dias depois da revoluçãoTUNÍSIA Depois da queda do ditador, o povo tunisiano se organiza para trazer de volta a tranquilidade nas ruas e impedir que o levantamento seja “sequestrado”

de Madrid (Espanha)

Em 17 de dezembro, quando Moha-med Bouazizi, um vendedor ambulan-te de verduras de 26 anos, ateou fogo em si mesmo diante da prefeitura de Si-di Bouzid, uma cidade do interior da Tu-nísia, depois de a polícia o ter humilhado e requisitado sua mercadoria com a qual ganhava a vida, ninguém podia imagi-nar que esse ato de desespero provocaria uma reação em cadeia que acabaria antes de um mês com a fuga do ditador que du-rante 23 anos havia dirigido o país.

Mas a paciência da população havia chegado a seu limite. Como pano de fundo, um profundo descontentamen-to latente com o desemprego endêmi-co, que afeta 30% dos jovens, a falta de perspectivas de futuro, as desigualda-des econômicas e a corrupção dos cír-culos de poder, mas também com a au-sência de liberdades civis e política e de democracia.

As manifestações espontâneas que se seguiram ao ato desesperado de Bouazi-zi, e que começaram nas zonas mais des-favorecidas do interior, foram crescendo em tom e reivindicações. E sua repressão brutal por parte da polícia, que provocou dezenas de mortes, além de um apagão informativo dos meios de poder, não fez mais do que contribuir para a radicaliza-ção dos protestos, que tomaram um ca-

O fi m de um tiranoRevoltas tiveram início no interior e foram se alastrando por todo o país

tos de “atos terroristas imperdoáveis per-petrados por bandidos com passa-mon-tanhas”, prometeu investir para o de-senvolvimento das regiões mais pobres e criar 300 mil postos de trabalho em dois anos, uma afi rmação que os tunisianos consideraram uma nova piada.

No dia 13, quando tomou consciên-cia de que a situação saía de seu contro-le, Ben Ali anunciou que não se apresen-taria às eleições em 2014, assim como a libertação de todos os detidos nas mo-bilizações, a criação de uma “comissão de investigação” da corrupção, a liber-dade de imprensa e uma “profunda mu-dança política”, enquanto a polícia conti-nuava matando manifestantes. “É muito tarde”, responderam os tunisianos, que mantiveram a greve convocada na capi-tal Túnis.

Centenas de milhares de pessoas se concentraram durante horas diante do Ministério do Interior ao grito de “Ben Ali, vá embora”. Depois de quatro sema-nas de revoltas e uma centena de mortos, o ditador abandonou o país. (GMF, para o Diagonal)

Tradução: Igor Ojeda

ráter cada vez mais político e que foram se estendendo gradualmente às regiões mais prósperas da costa e da capital.

Aos protestos, somaram-se cada vez mais camadas da população, incluindo sindicalistas, advogados, artistas e estu-dantes. Facebook e Twitter se converte-ram nos meios de difusão do protesto.

Repressão e “concessões”A resposta de Ben Ali conjugou a re-

pressão armada com mudanças no go-verno, algumas “concessões” e mais re-pressão. Destituiu o governador de Si-di Bouzid e os ministros de Informação e do Interior e, em 10 de janeiro, ao mes-mo tempo em que qualifi cava os protes-

Aos protestos, somaram-se cada vez mais camadas da população, incluindo sindicalistas, advogados, artistas e estudantes

“Inquieta-me a presença do partido de Ben Ali [no novo governo], que é corrupto e que se confunde com o Estado”

No plano internacional, diversos países ocidentais aliados de Ben Ali não demoraram em virar a casaca. São os casos de EUA e França

“Temo que essa revolução dos pobres seja sequestrada por políticos que vão se aproveitar do sacrifício realizado”

Nasser Nouri

Nasser Nouri

Polícia tunisiana tenta impedir passagem de manifestantes em frente à sede do RCD, o partido do ditador deposto

A resposta de Ben Ali aos protestos conjugou mudanças no governo com repressão armada

especialde 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 201112

Michelle Amaralda Redação

NO DIA 25 DE JANEIRO de 2003, o jor-nal Brasil de Fato era lançado. O audi-tório Araújo Viana, em Porto Alegre, es-tava lotado. Cerca de cinco mil pessoas de diversas nacionalidades saudaram o surgimento do semanal em meio à reali-zação do 3º Fórum Social Mundial.

Nascido com a missão de produzir uma visão sobre a política, a economia e a sociedade a partir dos trabalhado-res, o Brasil de Fato completa em 2011 o seu 8º aniversário. Este feito, na ava-liação daqueles que o acompanham des-de o lançamento, é uma vitória a ser co-memorada.

Milton Viário, metalúrgico da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Rio Grande do Sul, que participou do lança-mento, considera a longevidade do jor-nal um fato inédito. Para ele, o semaná-rio é “uma experiência vitoriosa, por ser um jornal vinculado aos movimentos so-ciais, portanto, com recursos muito es-cassos, que conseguiu se manter por oi-to anos”.

A mesma opinião é compartilhada pelo jornalista Daniel Cassol, que fez uma tese de mestrado sobre o Brasil de Fato. Se-gundo ele, “muitas vezes por divisão da própria esquerda ou difi culdades fi nan-ceiras, os jornais alternativos fecham”. “No caso do Brasil de Fato, é diferente por esse motivo, por durar bastante tem-po. Imagino que seja um dos mais lon-gevos do Brasil na imprensa alternati-va”, afi rma.

O jornal foi lançado com o apoio da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e de movimentos como Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Via Campesina, Consulta Popu-lar, Pastorais Sociais e de outras entida-des do movimento social internacional.

PapelDom Tomás Balduíno, bispo emérito

de Goiás e conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), avalia que, atualmente, o Brasil de Fato é um dos mais importantes jornais da esquer-da brasileira. De acordo com o bispo, “o jornal tem feito o esforço para o qual foi criado”, de ser um registro das lutas po-pulares e aglutinar a sociedade, através de refl exões e críticas, em torno de uma linha de mudança.

“Um jornal necessário”, defi ne Olívio Dutra, ex-ministro das Cidades, que par-ticipou do lançamento do jornal. Em sua

avaliação, o semanário torna-se necessá-rio à medida que faz “uma crítica pela es-querda das coisas que precisam ser en-frentadas pelos governos e movimentos sociais”.

Nesse sentido, Milton Viário aponta como positivo o fato de o Brasil de Fa-to, desde seu surgimento, ter conseguido manter uma linha política independente de governos. “O jornal conseguiu man-ter uma linha política que não foi de opo-sição ao governo nem de adesão, mas a partir da visão dos movimentos sociais”, resume.

Daniel Cassol explica que historica-mente os jornais da esquerda acabaram sendo instrumentalizados pela opinião política de determinados partidos e is-so acabou resultando na pouca qualida-de dos veículos.

“Eu acho que o Brasil de Fato tenta superar isto, faz um jornalismo que é cla-ramente vinculado às transformações da sociedade, se abre de uma forma hones-ta para os leitores e tenta com seu cor-po jornalístico e com seus colaboradores fazer matérias de qualidade e relevância jornalísticas”, defi ne o jornalista.

Cassol afi rma que o semanário tem-se colocado como uma experiência impor-tante e avançada de jornalismo alterna-tivo e que tem que ser potencializado. “O jornalismo por si só é uma forma de co-nhecimento, de revelação da realidade e precisa ser liberado, precisa receber au-tonomia”, defende.

O jornalista destaca o esforço do jornal em produzir reportagens sobre a reali-dade da população e, ao longo de sua his-tória, manter correspondentes pelo Bra-sil e em países da América Latina.

Desafi osDom Tomás conta que o jornal nas-

ceu em um momento propício de avanço, quando se tinha o crescimento de diver-sas entidades e a esperança da constru-ção de um projeto popular para o Brasil. No entanto, esse quadro foi pouco a pou-co sendo arrefecido e a falta de um pro-jeto mobilizador gerou consequências na cobertura do jornal. Segundo o bispo, o que temos é “uma esquerda que hoje em dia não tem a mesma coesão que tinha quando o jornal começou”.

Entretanto, na contramão dessa des-mobilização, Dom Tomás salienta que o Brasil de Fato se “consolidou entre nós com uma perspectiva que mantém uma esperança que não está tudo perdi-da”. Para ele, um desafi o que se coloca ao jornal é justamente vencer a desmobili-zação da sociedade atual, começando por chegar nas camadas mais populares.

Daniel Cassol, porém, ressalta que não é apenas necessário que o jornal amplie a sua abrangência no que diz respeito aos seus leitores, mas também nos assun-tos que aborda. “O jornal poderia bus-car ampliar o seu leque de informações para não fi car somente centrado na pau-ta imediata dos movimentos sociais, eu acho que isso contribui, inclusive, para o diálogo com camadas da população mais amplas”, afi rma.

Cassol afi rma que a internet se colo-ca como um novo caminho para se fazer o jornalismo. Para ele, o Brasil de Fa-to “precisa entrar nesse mundo de uma forma autônoma, sem perder de vista o que é um jornal popular, que precisar ser mais lido e mais conhecido pelos setores mais amplos da população”. Nesse as-pecto, o jornal tem concentrado esforços para produzir notícias diárias através de seu site na internet. A Agência Brasil de Fato faz a cobertura jornalística utilizan-do ferramentas online e amplia sua atua-ção por meio das redes sociais.

da Redação

Ao longo dos seus oito anos, o jornal Brasil de Fato tem procurado corres-ponder às expectativas políticas que o cercam atualizando seu formato e con-teúdo. Com o passar dos anos, o sema-nário mudou de tamanho e layout, sem-pre visando facilitar a leitura de seus tex-tos e imagens, sem perder a profundida-de de cada tema.

A mais recente reforma do Brasil de Fato, introduzida em outubro do ano passado, teve como objetivo torná-lo mais leve e analítico. Hoje, o jornal conta com treze colunistas fi xos.

Têm seu espaço regular os articulistas: Alípio Freire, jornalista, escritor e artista plástico. Altamiro Borges, jornalista. Anita Leocadia Prestes, professora e historiadora. Beto Almeida, jornalista.Guilherme C. Delgado, economista.

Hamilton Octavio de Souza, professor e jornalista. Igor Fuser, professor e jornalista. João Brant, membro do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social. Leandro Konder, fi lósofo, professor e escritor.Luiz Ricardo Leitão, escritor e professor de literatura. Miguel Urbano Rodrigues, escritor e jornalista português. Roberto Malvezzi, músico e assessor da Comissão Pastoral da Terra. Silvio Mieli, professor e jornalista.

No visual, o jornal passou a privi-legiar fotos maiores e mudou de seis para quatro colunas, com uma colu-na branca. As mudanças não diminu-íram o tamanho dos textos e, ao mes-mo tempo, trouxeram maior leveza pa-ra as páginas.

Outra inovação foi abertura de es-paço para os comentários do leitor, na página 3. Agora, por correio eletrônico

ou carta, é possível manifestar-se so-bre o conteúdo do jornal.

CoditianoComplementando as mudanças do

jornal, a Agência Brasil de Fato procura dar as respostas imediatas para notícias do cotidiano. Vídeos, fotos, redes sociais e debates são ferramentas usadas para ampliar o contato direto entre os jorna-listas da redação e seus leitores. E, ain-da, estreitar a distância entre leitores.

Um bom exemplo dessa aproximação foi o “Debate dos Presidenciáveis de Es-querda”, organizado pelo Brasil de Fa-to em outubro de 2010, quando sete mil internautas trocaram impressões so-bre os candidatos via Twitter e ao mes-mo tempo participaram da dinâmica en-viando perguntas.

Por tudo isso, o nosso jornal preten-de permanecer investindo em inovações com o intuito de fortalecer “Uma vi-são popular do Brasil e do mundo”. Em 2011, teremos novidades, aguardem!

Brasil de Fato,8 anos de jornalismo popularANIVERSÁRIO Personalidades saúdam a longevidade do jornal e apontam desafi os para os próximos anos

Um jornal tem que ser atualSeguindo seu caminho político, o Brasil de Fato se atualiza para se tornar mais leve, crítico e dinâmico

Personalidades, como Aleida Guevara, Sebastião Salgado e Eduardo Galeano participam do lançamento do jornal

Cerca de 5 mil pessoas foram ao ginásio Araújo Viana no lançamento do Brasil de Fato

João Zinclar

Renato Stockler