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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 10 a 16 de fevereiro de 2011 Ano 9 • Número 415 C. Elle/CC Roberto Malvezi (Gogó) Brasil mínimo No Brasil, tudo é mínimo: o salário, a renda, até o Estado, há pouco tempo, era para ser mínimo. A saúde e a educação talvez nem cheguem ao mínimo, mas o mínimo é a meta a ser conquistada. Pág. 3 Leandro Konder Linguagem As imagens mostradas na TV e a diversidade dos impactos produzidos pelo levante no Egito desmoralizaram subitamente a ideia de que esse tipo de revolta explosiva não deveria ocorrer. Pág. 3 Miguel Urbano Rodrigues Eleições portuguesas Mais de 52% dos portugueses abstiveram-se nas eleições à Presidência. O discurso dos candidatos deixou transparecer a sua adesão à engrenagem responsável pelas mazelas do povo português. Pág. 10 Egito As origens da revolta Págs. 9 e 10 ISSN 1978-5134 Metrô em SP A política do aperto O trem, na cidade de São Paulo, está cheio e lento. As panes são mais frequentes, assim como os acidentes fatais. Mas o que pode parecer pura má gestão é também uma política de aperto de gastos e expansão de lucro. Págs. 4 e 5 Cultura Um passo para trás Pág. 8 Egito As origens da revolta Págs. 9 e 10 Rodrigo Capote/Folhapress Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Edição 415 - de 10 a 16 de fevereiro de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 415 - de 10 a 16 de fevereiro de 2011

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 10 a 16 de fevereiro de 2011Ano 9 • Número 415

C. Elle/CC

Roberto Malvezi (Gogó)

Brasil mínimoNo Brasil, tudo é mínimo: o salário, a renda, até o Estado, há pouco tempo, era para ser mínimo. A saúde e a educação talvez nem cheguem ao mínimo, mas o mínimo é a meta a ser conquistada. Pág. 3

Leandro Konder

LinguagemAs imagens mostradas na TV e a diversidade dos impactos produzidos pelo levante no Egito desmoralizaram subitamente a ideia de que esse tipo de revolta explosiva não deveria ocorrer. Pág. 3

Miguel Urbano Rodrigues

Eleições portuguesasMais de 52% dos portugueses abstiveram-se nas eleições à Presidência. O discurso dos candidatos deixou transparecer a sua adesão à engrenagem responsável pelas mazelas do povo português. Pág. 10

Egito

As origens da revolta Págs. 9 e 10

ISSN 1978-5134

Metrô em SP

A política do aperto O trem, na cidade de São Paulo, está cheio e lento. As panes são mais frequentes, assim como os acidentes fatais. Mas o que pode parecer pura má gestão é também uma política de aperto de gastos e expansão de lucro. Págs. 4 e 5

Cultura

Um passo para trás Pág. 8

Egito

As origens da revolta Págs. 9 e 10

Rodrigo Capote/Folhapress

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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Os ventos que sopram na América Latina e no império

NOS ÚLTIMOS 10 anos, cresceu a preocupação dos técnicos dos go-vernos, dos políticos e do capital so-bre a necessidade de se projetar ce-nários para o futuro. Esta projeção nos mostra como a classe dominan-te materializa e projeta para dentro da classe trabalhadora sua ideia de manutenção da ordem.

Mas por que as crianças da classe trabalhadora?

1. O futuro exército produtivo Segundo a Cepal, a América La-

tina possui aproximadamente 600 milhões de habitantes. Destes, pou-co mais de 27% têm até 14 anos de idade Se analisarmos as projeções para os próximos 25 anos, este gru-po terá entre 25 a 39 anos de idade.

Em 25 anos, estas crianças já te-rão passado por um processo de for-mação ideológica, cultural e polí-tica que moldará em muitos senti-dos sua forma de ver e atuar sobre o mundo.

Supõe-se que quanto mais cedo estas crianças forem educadas no projeto da classe dominante, menor resistência estas terão para assumir sua posição periférica na tomada de decisão em seus territórios.

É com base nesta relação formal de educar/adestrar para a venda da força de trabalho, que o capital de-termina o que é importante que as crianças internalizem: as imagens, as brincadeiras, os princípios e valo-res do consumismo-individualismo e, a concepção de que se destaque o “melhor” em cada ambiente de con-vívio social.

Assim se reitera a ideia sobre a melhor escola, o melhor bairro para se viver, a melhor empresa para tra-balhar, o melhor sujeito em contra-posição aos piores.

2. A formação da consciênciaNa formação da consciência bur-

guesa desta futura juventude, não pode haver espaço para questiona-mentos sobre a ordem.

O capital só materializa sua for-mação da consciência caso a domi-ne. O modo de produção dominante capitalista consolidou as bases ma-teriais concretas para desenvolver aparatos técnicos científi cos que o permita tirar vantagens de sua posi-ção de classe hegemônica.

Também existe a intenção de ani-quilar com o sentido do público en-quanto se reitera a força do priva-do. Logo, além da conquista do capi-tal sobre o trabalho, deve-se reiterar o poder de uns poucos sujeitos so-bre muitos.

E, se ainda é possível visualizar-mos a importância dos direitos so-ciais da nossa constituição na atuali-dade, a intenção do capital é de tra-balhar agora para que no futuro es-tas bandeiras caiam por terra, na pedagogia do exemplo.

3. Um exemplo concreto do proje-ção do capital

No Espírito Santo, existe um pro-jeto do capital que atua neste ter-ritório denominado ES: 2025. Dita projeção com linhas de ação concre-tas para os 25 anos, elegeu o gover-nador anterior Paulo Hartung como o mais bem votado do país.

A Vale é uma das empresas que atua no Espírito Santo em ação, ONG criada para projetar/executar as linhas de reconstrução do territó-rio capixaba.

A empresa faz uma parceria com algumas escolas públicas e leva as crianças dos centros municipais de educação infantil para conhece-rem suas instalações. Disponibili-za o ônibus, os instrutores, explica pedagogicamente o processo a ser apreendido, distribui jogos “educa-tivos” de presente, dá lanche e re-torna as crianças para a escola e suas famílias com a certeza de que reproduziu, a partir daquele mo-mento, o diferente e belo na vida daqueles futuros trabalhadores.

Esta ação concreta mexe direta-mente com a formação da consciên-cia tanto das crianças como de parte dos educadores, incluindo seus fa-miliares. Por quê? Para que as crian-ças sejam as que:

a) Verão naquela empresa a pos-sibilidade de se empregarem no futuro; b) Desejarão desde já fa-zer o melhor para serem seleciona-das, ou seja, fazerem por onde es-tar ali; c) Visualizarão um conceito de sustentabilidade dado pela em-presa que disfarça o real vivido. No jogo de montar não se vê minério e sim meio ambiente ecologicamente bem sustentado; d) Poderão com-

parar o que têm e projetar o que querem para o futuro, a partir do que ali viveram. Isto as remeterá inclusive para uma refl exão indivi-dual sobre a situação dos pais, dos amigos, do bairro, com o fi m de ou negarem o que têm, ou reforçarem o que querem para saírem do espa-ço dos que nada têm.

A Vale projeta, junto com seus pa-res, um futuro de submissão pa-ra estas crianças da classe, cuja apa-rente certeza de inclusão se constrói sob as bases dos princípios e valores ditados pelo grande capital.

4. O que está em jogo?Está em jogo a manutenção da

acumulação de capital centrada na exploração do trabalho, fruto de uma perversa dominação de classe.

Está em jogo o atual consumo da criança associado à sua inser-ção futura como trabalhador endi-vidado consciente. Enquanto ho-je são os pais os que arcam de for-ma endividada com o consumo das crianças, amanhã estes trabalha-dores já terão internalizado que toda inclusão passa pelo tipo de consumo que são capazes de dese-jar e realizar.

Está em jogo a formação da cons-ciência de que não existe outro pro-jeto senão o da classe dominante.

Está em jogo eliminar a disputa, as contradições e colocar no lugar da divergência um processo de do-minação de classe como um projeto único de sociedade.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular e da organização

Consulta Popular/ES.

opinião Roberta Traspadini

Crianças, o ataque do capitalcrônica Luiz Ricardo Leitão

NAS ÚLTIMAS semanas, ocorreram dois fatos importantes relaciona-dos com a luta de classes na Améri-ca Latina. De um lado, o presidente dos EUA, Barack Obama, reassume agora o papel também de presiden-te do império num contundente dis-curso no Congresso estadunidense. E, de outro lado, celebrou-se no dia 2 de fevereiro, doze anos da toma-da de posse do governo Hugo Chá-vez, na Venezuela, e com ele os no-vos ventos que soprariam, na déca-da, alterando a correlação de forças no continente.

Em quase todos os países da América Latina, e também aqui no Brasil, houve celebrações, atos po-líticos e manifestações nas repre-sentações diplomáticas da Vene-zuela, comemorando os doze anos do fi m do neoliberalismo naquele país com a vitória eleitoral de Hu-go Chávez e a derrota do gover-no repressor de Andrés Carlos Pe-rez. A vitória do desconhecido co-ronel da reserva Hugo Chávez não foi uma vitória pessoal ou fruto de marqueteiros de aluguel. Sua con-quista foi o coroamento de diver-sas lutas sociais na Venezuela a partir do caracazo, em que a po-pulação se levantou contra o neo-

liberalismo e pagou o preço de mi-lhares de mortos, número até hoje desconhecido. Em outros países da América Latina, como aqui no Bra-sil, pipocaram centenas de lutas lo-calizadas, algumas mais massivas e outras mais radicais, que vai des-de as manifestações de Seatlle, o levantamento Zapatista, as realiza-ções dos Fóruns Sociais Mundiais, às revoltas contra a privatização da água, energia elétrica etc. em quase todos países de nosso continente.

O resultado deste processo de re-sistência ao neoliberalismo se trans-formou em vitórias eleitorais, em que foram eleitos diversos governos antineoliberais e anti-imperialistas.

Chávez representa essa virada. A partir de sua vitória eleitoral e do processo que se iniciou na Venezue-la, como a chamada revolução boli-variana, o povo daquele país passou a mobilizar-se permanentemente por um novo modelo de desenvolvi-mento, que resolva de fato seus pro-blemas. E tivemos também mudan-ças signifi cativas em quase todos os países da América Latina.

O império estadunidense levou um susto e teve que recuar. Sofreu uma derrota política estratégica ao não conseguir impor o projeto da Al-

ca, que submeteria nossas econo-mias a seus interesses.

Outras pequenas vitórias de nos-sos povos se seguiram.

Depois veio a crise do sistema ca-pitalista, a partir de 2008, que aba-lou as bases da economia dos EUA. E, como consequência dessa crise, a vitória eleitoral de Obama, um polí-tico democrata, de origem afrodes-cente e com vínculos em lutas so-ciais de Chicago, que conseguiu der-rotar a candidata do sistema Hila-ry Clinton.

Sua eleição despertou curiosida-de e esperança entre os pobres dos EUA e entre as forças progressistas do continente.

Mas o tempo passou e as forças do capital foram retomando sua verdadeira cara. Na política exter-na, comandada pela derrotada Hi-lary Clinton, nenhuma mudan-ça. Ao contrário: mais soldados no Afeganistão, no Haiti (apesar do terremoto), mais provocações em todo mundo a partir de suas bases militares.

Passada a expectativa, fi nalmen-te o presidente Obama retoma seu verdadeiro papel de coordenador político dos interesses econômicos do império e suas empresas.

Num discurso contundente, vi-rulento e imperialista, no Congres-so estadunidense, reafi rma perante a imprensa de todo mundo e seu po-vo a vontade política de recuperar os interesses do império estadunidense e de impor, a qualquer custo, seus interesses frente aos demais po-vos. Todo mundo deve seguir traba-lhando, usando o dólar, para man-ter a melhoria e o bem-estar apenas dos que vivem nos EUA. As empre-sas dos Estados Unidos devem reas-sumir o controle dos mercados e a primazia sobre as demais empresas. O dólar deve continuar regendo os destinos do mundo. Eles usam a ma-quininha de pintar papel de dinhei-

ro, e os povos do mundo se obrigam a curvar-se para pagar a conta.

Triste papel esse. Agora assumido formalmente.

E as consequências já começam a serem sentidas na tentativa de sal-var o regime corrupto e ditatorial de Mubarak no Egito. Assim como ti-veram a petulância de enviar o se-cretario do tesouro para pressionar a presidenta Dilma a fi m de que se afaste da China, para que não tenha política externa independente e vol-te aos braços dos interesses estadu-nidenses.

Certamente, teremos ainda duros anos de luta pela frente. Pois o im-pério começa a retomar a ofensiva, depois das derrotas sofridas com a ascensão de Chávez.

Felizmente a América Latina tra-ta de unir-se cada vez mais para en-frentar o império. Já está marcada para a primeira semana de julho de 2011 a fundação, em Caracas, da Co-munidade dos Estados Latinoame-ricanos e Caribenhos (Celac), que vai sepultar a OEA e reunir todos os países do continente com exceção dos EUA e Canadá. A Celac será um importantíssimo instrumento para enfrentar a sanha imperial de reco-lonizar o continente.

de 10 a 16 de fevereiro de 20112editorial

Reprodução

A ilusão é sagradaINGRESSAMOS NA SEGUNDA década do novo milênio. A história, de-fi nitivamente, não terminou, e os episódios mais recentes nos permitem ver que o mundo real transcende em muito a realidade virtual que a cor-poração midiática nos vende. Ela apenas cumpre o seu papel na longa ca-deia de fetiches do reino das mercadorias: há 100 anos, dentro de uma coletividade histórica dividida em classes, a tarefa coube ao automóvel; já na segunda metade do século 20, a “indústria do conhecimento” eclo-diu, fazendo com que a cultura – a esfera mais geral do saber e das repre-sentações dos fatos vividos – se tornasse um mero “produto” e viesse a se converter na vedete da “sociedade espetacular” pós-moderna.

O sonho do capital era fazer com que os homens não vivenciassem mais fatos concretos, imersos em uma pseudo-história de pseudoacontecimen-tos. Ou seja: converter os atores/produtores do processo social em passi-vos telespectadores/consumidores, graças à violenta – e irônica – expro-priação do seu tempo vital. Conforme escreveu Guy Débord, “a vida real é a vida mais realmente espetacular”, na qual a realidade tangível do tempo é sua publicidade. Afi nal, de que vale “poupar tempo” na sociedade pós-moderna se os velozes meios de transporte, os pacotes de comida instan-tânea e os milhares de eletrodomésticos dos EUA resultam tão somente em três ou seis horas diárias de televisão?

Fredric Jameson advertiu que a pós-modernidade (“expressão da no-va ordem social que emerge do capitalismo tardio”, ou seja, da socieda-de de consumo hipertrofi ada) trata de transformar a realidade em ima-gens (“imagem é tudo!”, nos lembra, sem o menor pudor, um comercial da Pepsi). Contudo, o mundo espetacular não é exatamente um conjun-to de imagens, mas sim uma relação social mediada por imagens. De cer-ta forma, nossa era revalida Feuerbach: as imagens predominam sobre as coisas, a cópia vale mais do que o original. Em suma: “a ilusão é sagrada, ao passo que a verdade é profana”.

Evoco essas lições dos pensadores por conta dos últimos incidentes mundo afora. Diante da persistência de mais uma crise cíclica do capital, a mídia realiza malabarismos para ocultar as verdades paganíssimas que tomam de assalto a vida real. A onda de rebeliões na África, por exemplo, parece ter sido gestada nas badaladas “redes sociais” que clamam por “democracia” nos quatro cantos do globo, querendo-nos fazer crer que o tal “governo do povo” é o sistema vigente nos EUA, França, Reino Unido e demais potências do Velho Mundo. Regimes que apoiaram o Tio Sam & Cia. agora são descartados sem o menor dó, em “transições negocia-das” que, obviamente, visam a “mudar para deixar tudo como está...”

Os motivos efetivos das revoltas permanecem sob uma nuvem de fu-maça. Aos olhos da mídia, o desemprego e a carestia dos alimentos são entidades etéreas, sem a menor conexão com a economia real (a especu-lação com as commodities, os subsídios que Europa e EUA concedem a seus agricultores, etc.). Dizer que o povo se cansou da falta de pão não é muito chique, convenhamos. Melhor acreditar que tudo se deve ao papel “revolucionário” da rede virtual, à centelha explosiva de Twitters e Face-books...

Enquanto isso, em Bruzundanga, o ex-Gaúcho chegava ao Flamen-go no exato instante em que mais de mil pessoas morriam soterradas na tragédia da Região Serrana por omissão deliberada das “autoridades”, que, em troca de votos e gordas comissõe$, abdicaram sempre de regu-lar a ocupação do espaço urbano. Dizem que vai receber R$ 1,5 milhão de um clube afogado em dívidas, mas cheio de patrocinadores interes-sados em vender seus produtos para o mercado tupiniquim em expan-são. Pelos meus cálculos, mais de 2.000 vezes o salário de um professor da rede estadual – e cerca de 280 vezes o vencimento de um adjunto da UERJ, que estudou mais de 20 anos para tentar formar os novos profi s-sionais da província, mas há dez anos não recebe reajuste linear do go-verno (eis o que é a gestão moderninha de Little Boy, Little Rose, Play-boy Cabral & Cia...). Quando a profana verdade do descaso com a Educa-ção, a Saúde e a Moradia atiçar os nossos árabes, que sagrada ilusão eles irão nos vender?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila,

Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

A Celac será um importantíssimo instrumento para enfrentar a sanha imperial de recolonizar o continente

O sonho do capital era fazer com que os homens não vivenciassem mais fatos concretos

“Meninos no balanço”, desenho a grafi te de 1955 de Cândido Portinari

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de 10 a 16 de fevereiro de 2011

res desdenham essas conquistas mínimas, porque não mudam estruturalmente o Brasil, outros as defendem como se tivéssemos solucionado todos os problemas nacionais.

Vivendo na região semiárida há 30 anos, sabemos o quanto essas conquistas do Brasil mínimo foram e são importantes para nosso povo. Afi nal, é melhor viver num capitalismo comendo e bebendo que morrendo à míngua de fome e sede como literalmente acontecia até pouco tempo atrás.

Porém, contentar-se com o que está posto, é conten-tar-se com a subcidadania. Chegará a hora, como acon-tece nas periferias francesas, que essas populações se rebelarão com o mínimo a que foram relegadas, en-quanto outros desfrutam de todas as benesses da socie-dade moderna.

Ainda mais, com as mudanças nos paradigmas que estamos atravessando, fi cará cada vez mais difícil plei-tear o consumismo como parâmetro. De alguma forma, teremos que nos contentar com o que é fundamental, com um vida digna, descartando ter como meta a socie-dade do luxo e do desperdício.

Brasil mínimoNO BRASIL, PARA a maioria da população, tudo é mí-nimo: o salário, a renda, o Bolsa Família, até o Estado, há pouco tempo atrás, era para ser mínimo. A saúde e a educação talvez nem cheguem ao mínimo, mas o míni-mo é a meta a ser conquistada.

Superar a fome, a sede, a miséria, sanear as cidades e implantar uma educação e saúde efi cientes é possível mesmo dentro de um Estado capitalista. Portanto, por hora nem se discute a implantação de um Estado so-cialista, com a superação das injustiças estruturais. As próprias políticas do governo Lula, assim como o pro-pósito de erradicação da miséria de Dilma, se dão den-tro dos marcos da sociedade atual. Com o potencial de solos, água, sol, minerais e até mesmo tecnológico que temos, são metas que podem ser atingidas até dentro desse modelo.

Claro, por outro lado, sobra o Brasil máximo: a renda concentrada, o patrimônio, a propriedade, além da con-centração do poder, do saber e demais mecanismos que garantem a estruturação classista brasileira.

Talvez aqui resida o nó mais controverso entre as esquerdas nos últimos anos. Enquanto alguns seto-

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instantâneo

Roberto Malvezzi (Gogó)

Ciência e Tecnologia, Aloísio Mercadante, fala de cin-co milhões de famílias convivendo com o perigo de en-chentes ou deslizamentos de encostas, ou qualquer ou-tro desastre “natural”.

Por que milhões de pessoas vivem nessa situação? Dados do IBGE revelam que há no país mais de 40

milhões de trabalhadores que não podem nem sonhar em morar decentemente. São pessoas que ganham, de acordo com o órgão, até um salário mínimo por mês. Mas isso é um luxo frente aos 30 milhões de pessoas que vivem, ou melhor, sobrevivem ou vegetam com até R$ 140 mensais. Com este salário dá para escolher on-de morar?

E ainda há “otoridade” que diz que os pobres são cul-pados de morar em áreas de risco. Essas pessoas, que moram em condomínios fechados, muito bem planeja-dos e seguros, não veem que as nossas cidades não têm plano urbanístico. Não querem ver que há vereadores, deputados ou nobres senadores que, em troca de votos dos moradores das encostas perigosas, autorizam qual-quer tipo de construção, antes da próxima enchente. O problema não é que o povo tem tara pela irresponsabili-dade. É o sistema todinho a ser mudado. Por este povo das encostas. Um dia.

As próximas enchentesSORTE GRANDE. Há mais de 15 dias que não há en-chentes no Rio. O morro do Bumba, em Niteroi, já está esquecido. O mesmo pode-se dizer dos deslizamentos de Ilha Grande. Quem ainda se lembra? Das avalanches de Friburgo e Teresópolis ainda há lembranças, mas mesmo estas começam a esvair-se. Quantos mortos foram mes-mo? 500, 700? Mas agora parou. São Pedro está calmo.

Mas afi nal quem são os culpados por essas tragédias? Fala-se de aquecimento global, calotas polares, proble-

mas que o sistema capitalista não está interessado em so-lucionar. E aí se fazem grandes seminários para desco-brir a raiz destes desastres. Como se já não estivéssemos cansados de saber.

Será que o brasileiro tem uma tara especial para fa-zer sua casa ou muitas vezes barraco em lugares perigo-sos? Será que é uma mania de irresponsabilidade do nos-so povo? Aliás, por que o brasileiro adora morar em fave-las? Será que se diverte em construir barracos na beira de córregos, de esgotos, em encostas impossíveis?

Se assim o fosse, seria um povo de estranhas manias. Mas não é.

O Ministério das Cidades diz que há dez milhões de moradias em condições precárias no Brasil. Se diz dez, com certeza são 20. O recém empossado ministro de

Vito Giannotti

comentários do leitorDesmoronamentos

Não há como culpar a natureza. São crimes cometidos pelos homens, políticos irresponsá-veis, prefeitos e vereadores demagogos em ca-da uma de nossas cidades. Há os que fazem vis-ta grossa para as ocupações desordenadas. Há os que incentivam as moradias nas encostas, em troca de favores, ou de votos. Os que chega-ram não fi scalizam os que saem, por camarada-gem, interesses políticos ou mesmo por omis-são provocada pela insaciável fome por poder e para se manterem nos cargos a qualquer preço. Ao mesmo tempo em que o governador Cabral discursa com veemência contra as ocupações irregulares em áreas frágeis, mantém um equi-vocado decreto liberando construções em áreas protegidas em Angra dos Reis e Ilha Grande.

Alexandre Guilherme de Oliveira e Silva, Angra dos Reis (RJ), por correio eletrônico.

Guerras, jamaisAlardeou-se que os Estados Unidos querem

vender suas armas, arrecadar dinheiro promo-vendo guerras e que o Brasil não tem como fi -

car imune a essa tendência. Infelizmente, sou obrigada a concordar com vocês. Seria lamen-tável. Há anos, temos visto o brasileiro renun-ciar ao prazer, trabalhando durante anos para sequer conseguir comer, ou cuidar dos dentes ou pegar um cineminha no fi m de semana. A refeição no bar da esquina sempre custa muito mais do que o vale almoço. O resto da família, que não sobrevive sem comer, está em casa. Is-so sem falar das gerações que vivem e sempre viveram na miséria. Depois de tantos anos, al-guns têm um carro, outros conseguem o diplo-ma de nível superior, outros podem se dar ao luxo de conhecer a Disney ou Buenos Aires e uns outros desfrutam do aquecimento da cons-trução civil, seja morando ou seja trabalhando. Temos que nos mobilizar para que mísseis não coloquem por terra essas migalhas que recebe-mos nos últimos anos.

Nancy Cardoso Silva, por correio eletrônico.

Brasil de Fato 8 anosPoliticamente apartidário, o Brasil de Fa-

to assim prosseguirá nessa sua 9ª caminhada

anual. A cada edição, nos colocamos mais aga-chados à causa socialista, a partir de um es-tilo jornalístico independente e comprometi-do com a soberania da Nação. A qualidade de suas matérias, entretanto, aumentaria após um maior rigorosismo gramatical. Isso senti – permitam-me – quando da manchete sobre a entrevista de Cesare Battisti, cujo conteúdo nos remete à refl exão de que, na realidade, o que se tem de modifi car, no Brasil, é o critério na composição de suas Cortes de Justiça. Re-cebam, pois, as felicitações desse assíduo lei-tor do Nordeste.

Inocêncio Nóbrega Filho, por correio eletrônico.

Quem julga o STF?O editorial com o título acima, do BF nº

413, foi o melhor comentário que li sobre o affair Battisti, no Brasil; chamando-me, ou-trossim, bastante atenção a preocupação do editorialista com a extinção de cargos vitalí-cios: “acabando com a condição de cargos vi-talícios”. Por eximir-se o nosso Poder Judiciá-rio de eleições, contrariando o disposto no ar-

tigo 1º, parágrafo único da nossa Lei Maior –Todo o poder emana do povo –, vivemos nu-ma democracia capenga, porquanto elegemosapenas dois dos três poderes reconhecidos noart. 2º da nossa Constituição Federal: Legis-lativo, Executvo e Judiciário. Não há comonegar ser a vitaliciedade de seus membros acausa maior da lentidão do nosso Judiciário,pois são postas em prática reformas proces-suais, informatizam-se os cartórios, aumenta-se o número de tribunais e a justiça continuaemperrada, desajustada à realidade de nos-sos dias. Em qualquer instância ou tribunal, aprestação jurisdicional deve ser efetuada pormembros eleitos, no mínimo, por ser requisi-to democrático, impedindo em nossa Consti-tuição emenda tendente a abolir o voto dire-to, secreto, universal e periódico (art. 60, pa-rágrafo 4º, III).

Lilia Vitória, por correio eletrônico.

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

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AS IMAGENS MOSTRADAS na TV e a diversidade dos im-pactos produzidos pelo levante da população egípcia des-moralizaram subitamente a ideia de que esse tipo de re-volta explosiva, que o conservadorismo considerava mor-to, não deveria ocorrer. Em especial, a direita tentou sus-tentar o reconhecimento da validade de critérios ditos li-berais com a comprovação da drástica impopularidade do presidente do Egito.

Quando a gente vê os debates entre certos políticosdescambarem para a grosseria, só podemos lamentar is-so. Pior, contudo, é a perda de tempo em alguns discur-sos ocos, reacionários, conservadores e prolixos, que nosé imposta pelas transmissões de rádio e TV, como agoraacabamos de verifi car na disputa pelas cadeiras de che-fes do legislativo.

O que leva os políticos demagógicos a indulgir na malan-dragem? Cada caso é um caso.

As perguntas se multiplicam e se confundem. O fi lóso-fo Tales de Mileto declarava que a fi losofi a começa como espanto. Quando nos surpreendemos com o fato de omundo ser como é, estamos começando a fi losofar. Lem-bremos de Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles, en-tre outros.

Depois de Tales de Mileto, outros fi lósofos elaboraram as suas fi losofi as, porém não deixaram de reconhecer a im-portância do espanto fi losófi co. Um setor da realidade, em especial, mereceu grande atenção. Um interesse particular foi concedido à fi losofi a da linguagem.

A linguagem tem duas funções básicas. Ela pode ser co-municativa ou expressiva. Como comunicação ela informa àquele que ouve aquilo que o falante acha que deveria in-formar. Na pré-história, uma parte sumamente importante da função comunicativa era a função nomeadora.

O mundo estava cheio de coisas e de seres que perma-neciam anônimos. Os homens eram desafi ados a superar esse anonimato. No mundo, os riscos cresciam, e a huma-nidade se defrontava com animais de grande porte, quepodiam acarretar a extinção da espécie humana. Para di-minuir os riscos, os indivíduos precisavam se comunicar.Precisavam da linguagem.

A outra função era a da linguagem expressiva, que sedesenvolveu depois de algumas conquistas básicas da co-municação. Foi o trabalho que proporcionou ao ser hu-mano contrapor-se à natureza, criando o sujeito.

O trabalho ainda tinha características primitivas. Masos pontos em que travou sua batalha bastaram para lheassegurar a sobrevivência. O mundo em que viviam leões, tigres, rinocerontes e outras feras de grande porte pareciainabitável para seres tão frágeis como os homens. No en-tanto, os homens se impuseram.

Através do desenvolvimento da linguagem, foi possíveldesenvolver todo um sistema educativo que permitia àscomunidades humanas enfrentar animais rudes e, apa-rentemente, invencíveis.

O que os seres humanos conquistaram na vida práti-ca só foi mantido e aperfeiçoado por meio da linguagem.Quando o indivíduo usava a palavra “leão”, isso não signi-fi cava nada para a fera, mas podia alertar nossos antepas-sados e salvar-lhes a vida.

Reconhecido o valor da linguagem, as pessoas passa-ram a cultivá-la com maior rigor e, eventualmente, commaior prazer (aparecimento da poesia, anterior ao nasci-mento da prosa).

Trabalhar com as ideias era uma atividade difícil, mascompensadora. Combinadas e articuladas umas com asoutras, as ideias compunham os chamados conceitos, queeram composições efi cientes, criadas a partir da convic-ção humana de que o fortalecimento do gênero humanoera coletivo antes de ser individual.

A linguagem nos ajuda a montarmos sistemas que aten-dem às necessidades da nossa segurança e contribui pa-ra enfrentarmos as pressões, geralmente silenciosa, dosconservadores, detentores do poder.

Expressar-se corretamente e fazer comunicações, tantoquanto possível, amplas e precisas, é uma forma de parti-ciparmos ativamente dos grandes confl itos sociais, ao la-do de quem trabalha.

Os trabalhadores constituem a principal força a manifes-tar sua responsabilidade. O compromisso de defesa da lin-guagem é, sem dúvida, em primeiro lugar, um compromis-so com a massa trabalhadora. Depois, com os gramáticos.

Por sua ligação com a vida, a linguagem é sempre po-tencialmente reveladora de alguns problemas (e de algu-mas propostas de solução para esses problemas).

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

Linguagem

Foi o trabalho que proporcionou ao ser humano contrapor-se à natureza, criando o sujeito

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brasilde 10 a 16 de fevereiro de 20114

Eduardo Sales de Limada Redação

AS PANES SÃO mais frequentes. Em 2010, as lotações nos trens do Metrô (Companhia do Metropolitano de São Paulo) e da CPTM (Companhia Paulis-ta de Trens Metropolitanos) ultrapassa-ram o limite do absurdo. Além disso, eles fi caram mais lentos. No âmbito burocrá-tico, denúncias de corrupção no caso Als-tom até agora não deram em nada. Ali-ás, o promotor Silvio Marques, chefe da força-tarefa do caso Alstom, ainda não se pronunciou. Ele está na França, onde re-aliza curso de doutorado. Só na Linha 4 – Amarela, inúmeros acidentes, dentre os quais o de 2007, que resultou na morte de sete pessoas.

Entretanto, vamos ao que infl uencia de forma mais direta a percepção da popu-lação, o seu cotidiano. De acordo com o Sistema de Indicadores de Percepção So-cial (SIPS), do Instituto de Pesquisa Eco-nômica Aplicada (Ipea), quesitos como conforto, rapidez e preço mais barato se-riam as principais condições, nessa or-dem, para que os brasileiros passem a utilizar o transporte público. Ou seja, efi -ciência no transporte público, para os brasileiros, passa por esses três pontos. E para os brasileiros que residem na ci-dade de São Paulo, defi nitivamente, con-forto, rapidez e preço justo parecem con-ceitos ainda muito distantes da realidade do Metrô e da CPTM.

Considerando apenas as linhas de me-trô que estão nas mãos do Estado, do se-gundo semestre de 2010 para cá, peque-nas e médias panes aumentaram consi-deravelmente com frequência. Só no ano passado foram contabilizados sete panes de relevância.

O laudo do Instituto de Criminalística (IC) apontou que a paralisação de 18 es-tações da Linha 3 – Vermelha do Metrô no dia 21 de setembro de 2010 foi moti-vada por falha técnica. Aconteceu que a superlotação de um vagão na Linha 3 – Vermelha pressionou a porta, acionando o sinal vermelho que impediu o condu-tor de continuar a viagem quando o trem estava parado próximo à estação Sé. Os usuários desceram aos trilhos, o que le-vou o Metrô a cortar a energia de toda a Linha Vermelha e gerar pânico em deze-nas de milhares de pessoas durante as quatro horas de paralisação da linha.

Má gestãoDe acordo com Ciro Moraes dos San-

tos, diretor do Sindicato dos Metroviá-rios de São Paulo, o metrô perdeu qua-lidade, segundo ele, por conta do pro-cesso de privatização, levando em con-ta que “terceirizaram as bilheterias e o serviço de manutenção”. A Linha Ver-melha é a que apresenta maior índi-ce de superlotação no horário de pi-co, com 11 pessoas por metro quadra-do enquanto o padrão internacional é de seis. “Eles [governos tucanos] prefe-rem ônibus cheios que ônibus confortá-veis; e o metrô é a mesma coisa. Vai que nem sardinha”, critica Ciro Moraes.

Essa lotação dos trens, de acordo com a economista Ceci Juruá, é a for-ma efi caz de garantir o lucro. E, no ca-so de São Paulo, é o próprio poder pú-blico levantando essa bandeira. “Eles demoram a ampliar. Para encomen-dar trem, botam até o máximo da lo-tação para maximizar o lucro e adiam até o máximo a compra de material su-

plementar para ganhar mais”, critica a economista.

Dessa forma, se de acordo com a pes-quisa do Ipea, efi ciência para os brasi-leiros signifi ca conforto, rapidez e preço mais barato, para as empresas de trans-portes e para administração do Esta-do de São Paulo, o conceito de efi ciên-cia parece ser outro. “Efi ciência para es-

sas empresas signifi ca ter lucro, e não conforto. Isso eles conseguem. O que não conseguem é dar um serviço de boa qualidade, confortável e com uma tari-fa compatível com a renda do trabalho”, explica a economista.

da Redação

Um engenheiro de 48 anos morreu ele-trocutado na obra da futura estação Fra-dique Coutinho, da Linha 4 – Amare-la do Metrô, na zona oeste de São Pau-lo. O acidente ocorreu no dia 1º de feve-reiro, quando a vítima fazia manutenção na subestação do local. Segundo rela-to de testemunhas, Ricardo Martins en-costou sem querer em um equipamento energizado e levou uma descarga de 20 mil volts.

“O Ricardo era um profi ssional extre-mamente competente, pressionado pelos prazos a fazer a manutenção da estação Fradique Coutinho. Ele mesmo já deu aulas para técnicos metroviários. Como é que um cara com profundo conhecimen-to técnico e teórico sofre um acidente desses? Ele estava pressionado, com so-brecarga de trabalho”, comenta o diretor do Sindicato dos Metroviários do Estado de São Paulo, Ciro Morais, que explica a morte: “Ele era terceirizado de uma linha privatizada”.

cro previsto no contrato”, afi rma Mora-es dos Santos.

Segundo ele, a garantia de lucro a es-sas empreiteiras, no Brasil, não somen-te em São Paulo, pode ser explicado, em parte, pelo fato de que existe um conluio dos fi nanciamentos de campanha. E to-do esse lucro não vem somente da con-cessão, como conta a economista Ceci Juruá. “Eles recebem muitas ajudas do governo, que a gente, de fora, não con-

segue enxergar. Por exemplo, eles im-portam materiais livres de impostos. Eles têm a vantagem de que quem não está dentro da empresa não pode saber a dimensão”, acrescenta. De acordo com ela, o serviço que eles prestam fi ca no limite “para que a população não faça grandes protestos”. Cinco das maiores empreiteiras do país formam o consór-cio da Linha Amarela, e venceram a lici-tação. São elas: a Norberto Odebrecht, a Andrade Gutierrez, a Queiroz Galvão, a Camargo Corrêa e a OAS. (ESL)

2007 – Em janeiro, houve um desmo-ronamento no canteiro de obras da es-tação Pinheiros, na Linha 4 – Amarela do Metrô, e uma cratera foi aberta. Se-te pessoas morreram no local.

2008 – Vem à tona investigação do governo suíço que apon-ta que, em 1997, a Alstom começou a pagar propinas a brasilei-ros. Esse dinheiro facilitava a aprovação de contratos de com-pra de equipamentos para hidrelétricas e para o Metrô do Esta-do de São Paulo.

2010 – Em 21 de setem-bro, pane atinge 250 mil pessoas e para a cidade de São Paulo.

2011– O engenheiro Ricardo Martins, de 48 anos, morre eletrocutado na obra da futura estação Fradique Coutinho, na Linha 4 – Amarela do Metrô, na zona oeste de São Paulo.

Sob a gestão do apertoSÃO PAULO Governo do PSDB prova como o transporte sobre trilhos pode fi car ainda pior

“Esse projeto tucano, em que a iniciativa privada deve fazer a gestão das coisas públicas, não é recente”

“Morreu terceirizado na linha privatizada”Entretanto, essa não foi, nem de longe,

a maior tragédia que envolve a Linha 4 – Amarela do metrô paulista. Em janeiro de 2007, ocorreu um desmoronamento no canteiro de obras das estação Pinhei-ros e uma cratera foi aberta. Sete pesso-as morreram.

Para Moraes dos Santos, esses e inú-meros outros acidentes têm a ver com uma trama sobretudo estrutural. “Esse projeto tucano, em que a iniciativa pri-vada deve fazer a gestão das coisas pú-blicas, não é recente, e vem antes mes-mo do governo de Mário Covas [1995-2001]”. Ele conclui que todos os erros na construção e na manutenção da Linha Amarela estão diretamente relacionados a esse projeto privatista dos subsequen-tes governos tucanos.“Desde o início de sua construção, a tônica da Linha Ama-rela tem sido de mortes, obras embarga-das, laudos que apontam falhas técnicas, esquema ilegal de contratações e cumpli-cidade do Ministério Público e do Tribu-nal de Contas do Estado”, explica.

Fracasso“Essa concessão inclusive foi um con-

trato de pai para fi lho. Se não tivesse uma capacidade, um número de usu-ários que não garantisse o lucro, o Es-tado ainda tinha que fazer um repasse desse subsídio para garantir aquele lu-

Acúmulo de erros desvela um projeto fracassado

Dados de pesquisa da Agência Nacio-nal de Transporte Público (ANTP) sobre a imagem que a população tem do trans-porte público revelaram que as linhas Verde e Vermelha do Metrô tiveram os piores desempenhos da história. No caso da Linha Verde, o índice de usuários que a classifi cam como boa ou excelente caiu de 88% para 84% de 2009 para 2010.

Os trens da CPTM são pior avaliados. Apenas 54% dos entrevistados acham o transporte bom ou excelente. Mas há melhora em relação aos anos anterio-res. Em 2008, apenas 48% achavam os trens bons.

O Metrô considera, porém, que no ca-so específi co da lotação dessa linha o que ocorre é um resultado natural do aumen-to de sua utilidade. Sérgio Aveleda, presi-dente da estatal, chegou a declarar que “a tendência natural é que seu nível de con-forto diminua”.

Para piorar, os trens fi caram mais len-tos. O próprio Metrô fez um levantamen-to apontando que as composições chega-ram a apresentar uma queda de 7% na velocidade média ao longo de 2010. O pior cenário foi registrado na Linha Ver-de, onde os vagões trafegaram a 27,5 km/h., no ano passado, contra os 29,6 km/h. registrados em 2009.

MatildeAo Brasil de Fato, em novembro de

2009, a auxiliar de serviços gerais, Ma-tilde Soares, 43 anos, mãe de três fi lhos, viúva, contava o quão cansativas eram as duas horas de viagem da sua casa, no mu-nicípio de Ferraz de Vasconcelos, locali-zado na região leste da grande São Pau-lo, até o trabalho, no bairro do Tucuruvi, zona norte da capital. “Na troca de trem que a gente faz no bairro de Guaianazes, já me machuquei várias vezes, é um em-purra-empurra, o trem que vai para Mo-gi demora a chegar, depois demora a par-tir, os trens que vêm da Luz não param de chegar, as plataformas vão fi cando lo-tadas. É um descaso muito grande o que fazem com a gente”, contava.

Se, pelos dados do Ipea, da ANTP e do próprio Metrô, o desconforto nos trens fi cou ainda pior durante o ano de 2010, Matilde, provavelmente, fi cará mais irri-tada com o aumento da tarifa, que passa-rá a R$ 2,90 a partir do dia 13, uma ele-vação de 9,43%.

Essa lotação dos trens, de acordo com

a economista Ceci Juruá, é a forma

efi caz de garantir o lucro

Linha do tempo

“Efi ciência para essas empresas signifi ca ter lucro, e não conforto. Isso eles conseguem”

Os trens da CPTM são pior avaliados. Apenas 54% dos entrevistados acham o transporte bom ou excelente

Passageiros disputam espaço para embarcar em trem na Estação da Luz

Rodrigo Capote/Folhapress

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de 10 a 16 de fevereiro de 2011 5brasil

Jogo lucrativoDepois de fi car oito anos cuidando

da mais alta remuneração do capital mundial, o ex-presidente do Banco Central, o banqueiro tucano-peemede-bista Henrique Meirelles, foi indicado pela presidente Dilma Rousseff para chefi ar a Autoridade Pública Olímpi-ca, que administrará a distribuição dos recursos públicos para os setores privados envolvidos no megaevento esportivo. É a volta da raposa para to-mar conta do galinheiro!

Evasão escolarNo momento em que o novo gover-

no federal e a grande mídia propa-gandeiam que a panaceia brasileira é a educação, o último censo do MEC revela que a evasão no ensino supe-rior cresceu no Brasil todo, mas no Estado de São Paulo saltou de 18% em 2000 para 27% em 2009. Neste ano, abandonaram a universidade mais de 315 mil alunos, sendo 16% nas escolas públicas e 29% nas escolas privadas. Motivo: falta de condições econômicas para estudar.

PreventivamenteParece piada, mas não é. A Justiça

Federal da Bahia mandou prender “preventivamente”, no dia 3 de feve-reiro, a cacique tupinambá Maria Val-delice de Jesus, acusada de comandar ocupações de terra na região de Oli-vença. Na verdade, o povo tupinambá luta para reaver terras indígenas que foram griladas. Se a moda de prender “preventivamente” pega, vai faltar cadeia para empresários e políticos corruptos.

Inversão total – 1Editorial do jornal conservador O

Estado de S. Paulo afi rma: “A recon-dução de Sarney à presidência do Se-nado é uma marca do atraso político que o Brasil não consegue superar. É o tributo que a Nação é obrigada a pa-gar, em nome de uma concepção fal-sifi cada de governabilidade, ao mais legítimo representante das oligarquias retrógradas que dominam e infelici-tam as regiões mais pobres do País.” Pergunta obrigatória: Quem dá razão para a direita?

Inversão total – 2De acordo com levantamento do

Instituto Assaf, as Notas do Tesouro Nacional proporcionaram ganhos reais de 164% de 2001 a 2010; muito mais do que investimentos na Bol-sa de Valores (139%), Ouro (112%), Fundos (95%), CDB (83%), Imóveis (27%) e na popular Poupança (17%). Fica claro que a política de juros al-tos do Banco Central favorece mais a minoria rica que tem títulos públicos – contra a maioria que tenta poupar alguma coisa. Transferência de renda é apelido!

Cooptação planejadaEm conversa reservada com intelec-

tual mineiro, ex-ministro da equipe de Lula se vangloriou de o governo ter conseguido “domesticar” a maior par-te dos movimentos sociais e sindicais nos últimos anos. E que o processo vai continuar na atual gestão, tanto é que algumas entidades e movimentos, que estavam com postura crítica e nas lutas populares, foram presenteados com cargos nos ministérios. É pura cooptação! Viva a institucionalização!

Pane cibernética O jornal estadunidense Wall Street

Journal revelou que o sistema de com-putação da Bolsa de Valores Nasdaq foi invadido várias vezes por hackers, no último ano, e que não se sabe ainda qual a extensão dos danos causados para as operações normais da bolsa. Curiosamente a Nasdaq negocia ações das empresas de alta tecnologia de in-formática, eletrônica e computação. Os investidores que se cuidem!

Pirataria É sempre bom registrar: o banco

espanhol Santander acaba de divulgar que teve lucro líquido, em 2010, de 8,1 bilhões de euros, dos quais 43% foram conseguidos na América Latina, sendo que o Brasil participou com 25% do total. Em relação a 2009, o banco te-ve queda de lucro geral de 8,5%, mas o lucro no Brasil aumentou 34% no mesmo período. Está na cara que a especulação com papéis e as altas ta-rifas cobradas dos clientes são as mais rentáveis do mundo!

Boas históriasNa última semana, documentos da

diplomacia dos Estados Unidos libe-rados pelo site WikiLeaks revelaram que o governo estadunidense é capaz de tudo em política internacional, até mesmo trair seu mais fi el e tradicional aliado europeu, a Inglaterra. Esses documentos comprovam que os EUA repassaram aos russos informações secretas sobre o programa nuclear bri-tânico e espionaram altos funcioná-rios do Reino Unido. Os ingleses que se cuidem!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Michelle Amaralda Redação

OS REAJUSTES DAS passagens dos ôni-bus municipais em 17 grandes cidades brasileiras têm gerado protestos em to-do o país. Manifestações de rua, mui-tas delas com a participação de milhares de pessoas, aconteceram em cidades co-mo Porto Alegre (RS), Recife (PE), Ma-caé (RJ), no dia 9, e outras estão pro-gramadas para Curitiba (PR) e São Pau-lo (SP), no dia 10. Desde o início da on-da de aumentos, que começou na virada do ano, passeatas e ocupações de prédios públicos e de terminais foram realizadas – e continuam acontecendo – em Salva-dor (BA), Aracaju (SE), Vitória (ES), en-tre outros.

Para Daniel Guimarães Tertschits-ch, militante do Movimento Passe Livre (MPL), “essas mobilizações, que nascem inicialmente contra aumentos nas tari-fas de ônibus, abrem perspectivas para além desses valores percentuais dos au-mentos”. Ele afi rma que os protestos ser-vem de ponto de partida para “o aprofun-damento da nossa compreensão sobre a verdadeira exclusão social que resulta do sistema de transporte coletivo que temos hoje” (confi ra nesta página entrevista completa).

De fato, segundo dados da Pesquisa do Sistema de Indicadores de Percepção So-cial (Sips), do Instituto de Pesquisa Eco-nômica Aplicada (Ipea), aproximada-mente 30% dos brasileiros têm deixado de utilizar o transporte público para se locomover por causa do alto custo. Além disso, a pesquisa revela que o gasto com transporte, seja público ou particular, al-cançou o mesmo percentual que o da ali-mentação. E ultrapassou as despesas com assistência médica e vestuário.

Tendência nacionalDas dez maiores regiões metropolita-

nas do Brasil, seis anunciaram aumento. Mais de 56 milhões de pessoas que vivem nas regiões com grande densidade popu-

Cresce em todo país movimentocontra o aumento no transporte

lacional estão sendo afetadas pelos rea-justes das passagens.

O engenheiro Lúcio Gregori, que foi se-cretário de transportes da cidade de São Paulo entre 1990 e 1992, durante a ges-tão da prefeita Luiza Erundina (então no PT), explica que os aumentos das passa-gens são resultado do modelo de trans-porte adotado no país. “O transporte é um negócio como qualquer outro e co-mo tal tem que ter as correções dos pre-ços cobrados para corrigir os custos cres-centes”, completa.

Na opinião do engenheiro, a única for-ma de reverter esse quadro é haver uma mudança do pensamento coletivo em que o transporte urbano deixe de ser entendi-do como um negócio e passe a ser trata-

do como um direito. “O transporte públi-co tem que ser tratado como um direito, assim como a saúde e a educação. Para chegar a um hospital e ser atendido, vo-cê precisa do transporte. Para ir à escola, você precisa do transporte”, defende.

Gregori acredita que discutir se o rea-juste das tarifas foi justo ou injusto não resolve o problema, porque revela a acei-tação do modelo de transporte como um negócio. Para ele, a solução passa pelo seguinte pensamento: a tarifa, num pri-meiro momento, deve ser subsidiada no máximo percentual possível e, a longo prazo, no seu valor total.

Hoje o subsídio existe em muitas cida-des e, mesmo assim, as tarifas continu-am a ser cobradas e reajustadas regular-mente.

Na cidade de São Paulo, o prefeito Gil-berto Kassab (DEM) além de anunciar um reajuste de 11,11% nas tarifas dos ôni-bus municipais, que passou a vigorar no dia 5 de janeiro, disse também que o sub-sídio para o setor deve fi car em torno de R$ 600 milhões. No entanto, no orça-mento municipal de 2011, os vereado-res governistas autorizaram o Executi-vo a usar até R$ 743 milhões para ban-car as despesas referentes às compensa-ções tarifárias.

da Redação

Em entrevista concedia por e-mail, Daniel Guimarães Tertschitsch, mili-tante do Movimento Passe Livre (MPL) de Florianópolis (SC), faz uma avalia-ção positiva das manifestações contra os reajustes das passagens de ônibus que ocorrem desde o início de janeiro. Movimentos estudantis e organizações sociais, como o Passe Livre, têm enca-beçado protestos em várias cidades do país. Para Tertschitsch, isso demonstra que “esse problema é de classe, dos tra-balhadores e trabalhadoras, excluídos e excluídas e de todo o Brasil”.

Brasil de Fato – Qual o balanço que se pode fazer do movimento contra o aumento das passagens que ocorre em várias cidades do país?Daniel Guimarães Tertschitsch – Positivo em vários aspectos. Em pri-meiro lugar, demonstra que o transpor-te público entrou de vez na lista de preo-cupações do povo e da esquerda brasilei-ra. A necessidade de deslocamento não é mais um problema menor. Como chegar ao trabalho, aos locais de ensino, aos lo-cais de lazer; agora, são questões funda-mentais para resolvermos as desigual-dades nas cidades brasileiras. E estas mobilizações, que nascem inicialmente contra aumentos nas tarifas de ônibus, abrem perspectivas para além desses va-lores percentuais dos aumentos. No co-

meço dos anos 2000, a Revolta do Bu-zu de Salvador e a Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis deram o ponto de partida para que aprofundássemos nos-sa compreensão sobre a verdadeira ex-clusão social que resulta do sistema de transporte coletivo que temos hoje. A fa-ísca pode nascer da luta pelo passe livre para estudantes, ou contra um aumen-to de tarifa, ou contra cortes nos horá-rios de linhas, mas logo se transforma no consenso de que o transporte público é um direito que deve ser oferecido pa-ra todos sem a cobrança de tarifa. Outro ponto positivo dessas manifestações re-centes é que demonstram que esse pro-blema é de classe, dos trabalhadores e trabalhadoras, excluídos e excluídas e de todo o Brasil. Os atos estão aconte-cendo em cidades distantes umas das outras, por exemplo, Porto Alegre e Ara-caju, passando por várias organizações diferentes, apartidárias e partidárias, ou movimentos sociais que já carregam es-sa luta há mais tempo, como o MPL.

Um levantamento do Ipea mostra que o gasto com transporte se iguala ao da alimentação e que o aumento das passagens faz com que 30% da população deixe de usar o serviço. Há perspectivas de mudança nesse quadro?

Há perspectiva, sim, porque há von-tade política de setores da população. Mas só por isso. A depender dos gover-nos, não vejo saída. Quando Lula disse que “os que defendem investimentos em metrô e trens querem ‘que o pobre deixe a rua livre para eles’”, em março de 2010 no Complexo Petroquímico do Rio, sen-ti que o caminho para reverter esse qua-dro que o Ipea nos apresentou será o da pressão dos movimentos sociais, não po-demos esperar nada de bandeja do Esta-do. O fato é que a indústria do automó-vel exerce imenso poder na economia do

país, e os governos, mais ou menos pro-gressistas, não desejam bater de frente. Os governos não encaram o transpor-te coletivo como um direito, e sim co-mo uma forma de escoar pessoas. Some a isso o poder das montadoras e o cená-rio é explosivo. Mas quando o transpor-te passa a ser tão caro quanto comer, o povo reage. A exclusão pressiona as pes-soas, difi culta suas vidas e, cedo ou tar-de, testemunhamos e participamos de revoltas. A diferença é que há cada vez mais clareza sobre o sistema de trans-porte. A questão do valor da tarifa é um mero início, o que deve ser questionado é a própria existência dessa tarifa.

Estão sendo realizados protestos contra o aumento pelo Twitter. Na luta contra o reajuste das passagens, qual tem sido o papel das redes sociais?

As redes sociais são mesmo uma espé-cie de espaço público hoje. Há quem di-ga que antes vivíamos no campo, depois nas cidades e, agora, online. Essa frase é um grande exagero, ainda bem, mas é inegável que a internet nos proporciona essa facilidade de organização e comuni-cação. Enquanto acontecia o tuitaço, fi -quei sabendo de cidades que contavam com mobilizações que não tínhamos co-nhecimento algum. Vejo essas redes so-ciais como um complemento ao bom e velho cartaz e panfl eto de rua. Só que nesse caso, aqui de Floripa, eu pude “en-tregar panfl etos” para pessoas até de Ro-raima. (MA)

Um problema de todos os brasileiros

PASSE LIVRE Reajustes das passagens dos ônibus municipais em cerca de 17 cidades brasileiras têm gerado protestos e mobilizações

30%dos brasileiros têm deixado

de utilizar o transporte público para se locomover

por causa do alto custo

Militante do MPL afi rma que manifestações mostram que o transporte entrou na pauta da esquerda brasileira

“O fato é que a indústria do automóvel exerce imenso poder na economia do país, e os governos, mais ou menos progressistas, não desejam bater de frente”

“O transporte público tem que ser tratado como um direito, assim como a saúde e a educação”

Manifestação diante do Teatro Municipal no centro de São Paulo

Mateus Zimmermann/CC

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brasilde 10 a 16 de fevereiro de 20116

Alexania Rossato,Edinubia Ghisi,Joana Tavares e

Pedro Carranode Salvador (BA)

A CAPITAL DA BAHIA é um local de en-contros, entre a fi gura do invasor, dos elementos indígenas e originários e do escravo trazido pelo capitalismo mercan-til. É também um local de sínteses: da-qui surgiram resistências populares, nas-ceram lutadores e lutadoras. Um deles é Carlos Marighella, que deu o nome à IV Assembleia Nacional da Consulta Popu-lar, realizada entre os dias 31 de janei-ro e 4 de fevereiro, quando a organiza-ção política aprofundou seus rumos es-tratégicos. Foram debatidos a especifi -cidade da formação do Estado brasilei-ro, a defi nição do sujeito revolucionário, a questão da identidade, a construção da organização, um balanço e desafi os da tá-tica. Mais que isso: o caráter da revolu-ção socialista ganhou contornos mais ní-tidos, enquanto feminista, nacional, de-mocrática e popular, além da caracteri-zação do imperialismo nos dias de ho-je, que tem no projeto da Aliança Boliva-riana para os Povos das Américas (Alba) uma alternativa.

Os cerca de 400 delegados deram mos-tra de que houve, desde a Assembleia an-terior, organizada em 2007 em Belo Ho-rizonte (MG), a apropriação pela militân-cia da estratégia e um avanço no desdo-bramento das suas táticas, organização e formas de luta. Hoje, visivelmente, a Consulta Popular é composta pela juven-tude, proveniente de vários estados bra-sileiros. “O processo de formação ajudou a tornar comum o que era o estudo de um grupo, ampliou-se e mais gente dominou o que está no programa estratégico”, ana-lisa o educador popular, Ranulfo Peloso. O processo de preparação da IV Assem-bleia foi uma confl uência de dois seminá-rios nacionais, debates nas instâncias es-taduais, além da produção de 46 artigos pela militância e núcleos de todo o país reunidos em seis cadernos de debates.

O contexto é o de retomada do debate estratégico na esquerda brasileira, deba-te que se intensifi ca no que toca a ques-tão do caráter da revolução, avalia Fre-derico Santana Rick, militante de Mi-

nas Gerais. “A Consulta segue defen-dendo pontos concretos para a constru-ção de unidade, a partir de processos for-mativos, materiais, instâncias organiza-tivas, além do programa democrático e popular como um todo”, diz. Em linhas gerais, o programa democrático e popu-lar, expresso no chamado “Projeto Popu-lar”, tece unidade entre várias organiza-ções da esquerda social e é defi nido co-mo um processo de construção de força, de poder popular, frente a uma burgue-sia incapaz de realizar um programa de melhorias estruturais para a classe traba-lhadora. De acordo com Leidiano Farias, o conteúdo do projeto popular são as “re-formas de natureza estrutural que têm a capacidade de politizar a sociedade e po-larizá-la”, defi ne o militante do Ceará du-rante o programa “Brasil Popular” – uma série de entrevistas feitas ao longo da IV Assembleia e divulgadas no site da orga-nização (www.consultapopular.org.br) pela equipe de comunicação da Consul-ta Popular.

O debate feminista teve grande dimen-são na IV Assembleia, que foi antecedida por um encontro de 120 mulheres de 15 estados brasileiros, do dia 28 a 31 de ja-neiro. Com o exemplo militante da revo-lucionária Patrícia Galvão, a Pagu (que deu nome ao encontro), foram três dias de debates, formulações políticas, enca-

minhamentos e formação coletiva. Pa-gu, que faria 100 anos, é lembrada ain-da por sua disciplina partidária, sua irre-verência, valorização da arte e participa-ção política feminina. A partir de agora, o feminismo soma-se aos cinco princípios de construção da Consulta Popular (defi -nidos ainda em 1999), presentes em seu centro estratégico.

Frentes de lutasA tática da Consulta Popular para o

próximo período, debatida na IV Assem-bleia em grupos temáticos, levanta o pro-blema de um projeto popular colocado a partir da inserção dos militantes em es-paços de frentes de lutas. “Construto-res” é o termo para identifi car a posi-ção de um militante da Consulta em di-ferentes espaços. Olívia Carolino, edu-cadora popular da Escola Nacional Flo-restan Fernandes (ENFF), fez referência a outra síntese repetida no encontro so-bre as formas de lutas: “Compromisso de

lutas de massas com lutas institucionais, como contribuição à luta do povo, encon-trando as melhores formas de luta para o momento concreto”, defi ne.

Rafaela Carneiro, da Assembleia Po-pular da Paraíba, elenca a construção de campanhas, como “O preço da luz é um roubo”, como ferramenta para o traba-lho com as massas e articulação de mo-vimentos antes dispersos. “Foi um mo-mento interessante, em que a gente vi-venciou de fato o que seria a materializa-ção do projeto popular, combinado com essa autonomia do povo brasileiro, do poder popular, em que grande parte das comunidades possa ser protagonista des-se projeto”, coloca.

Meio ambiente, petróleo, energia, mo-radia, campo, comunicação, feminis-mo, saúde, sindicatos, diversidade sexu-al e desemprego foram os eixos das dis-cussões. “A partir do momento em que a gente coloca a Consulta como um ins-trumento que tem a tarefa de estar no es-paço agindo politicamente, então dá ou-tro sentido para as frentes em que a gen-te atua”, opina Rafaela.

Leandro Spezia, do Sindicato de Ban-cários de Blumenau (SC), afi rma que os militantes da Consulta Popular contri-buem na articulação do “Fórum dos tra-balhadores”, que agrupa 12 sindicatosem lutas econômicas e políticas. O mo-vimento da cidade conjuga as lutas noslocais de trabalho e moradia, tendo co-mo eixo o chamado “tripé” defendido pela Consulta Popular: formação, lutase organização. “Vejo que no último pe-ríodo a Consulta Popular tem avança-do bastante em Santa Catarina, do pon-to de vista de que a construção do Pro-jeto Popular, com a busca da revolu-ção brasileira, deve ser pensada a mé-dio e longo prazo, então todas as tarefasque a gente realiza hoje, menores, diga-mos assim, na nossa visão elas vão cons-truindo um trilho, uma estrada, um ca-minho, para que lá na frente esse proje-to se consolide, de maneira específi ca no nosso estado, mas integrado com o Bra-sil todo”, afi rma.

Uma experiência que refl ete a possi-bilidade de organização de uma parce-la da classe trabalhadora é o LevantePopular da Juventude. “O Levante sur-ge a partir de uma demanda específi cade trabalhar com a juventude, na II As-sembleia Nacional da Consulta Popu-lar, de 2005, principalmente os jovensno espaço urbano e motivar a organiza-ção dos jovens que já estavam em ou-tros movimentos. Partimos de um acú-mulo da Pastoral da Juventude Rural equisemos fazer um acampamento de jo-vens que desse um marco, uma largadana organização da juventude. O acam-pamento da Juventude em São Gabrielem 2006 reuniu 800 jovens, com váriosproblemas, mas com um projeto fi rmena cabeça. E hoje estamos com núcleosorganizados no Rio Grande do Sul, tan-to na universidade como em vários bair-ros”, aponta Luciano Fraga.

de Salvador (BA)

Durante a IV Assembleia, o ato de solidariedade à revo-lução bolivariana reforçou o papel de Hugo Chávez, pre-sidente da Venezuela, como uma liderança que resgatou o dever do Estado em promover políticas para a melhoria da vida do povo. Foi enfatizado, também, o amplo proces-so de referendos convocados por Chávez, que realizou 15 plebiscitos, do qual saiu derrotado apenas em um. E o re-conheceu.

O ato foi realizado em outras cidades da América Lati-na, especialmente nos países que fazem parte da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), e contou com trans-missão pela internet, além da retransmissão na Venezuela através da Telesur. Em Salvador (BA), a mesa foi compos-ta por militantes da Corrente Comunista Luis Carlos Pres-tes, da Alternativa Sindical Socialista (ASS), da Consulta Popular e da Guatemala, Chile, Colômbia e México.

Dentro da construção da Consulta Popular, a proposta da Alba, na perspectiva de unidade e de um calendário comum de ações com outros movimentos sociais da América Lati-na, é uma resposta direta à análise sobre o caráter do im-perialismo hoje. De acordo com Roberta Traspadini, eco-nomista, educadora e militante do Espírito Santo, o capital hegemônico, globalizado, é hoje o detentor do avanço técni-co-científi co. A capacidade de investimento em tecnologia é imbatível nos EUA, com a União Europeia fi cando muito atrás. De acordo com ela, 85% do PIB mundial é apropriado por nove economias. O Brasil, décima economia do mundo, apropria-se de apenas 4%. (AR, EG, JT e PC)

Com relatos do processo de luta vivido por Ma-righella desde a sua juventude, Takao Amano de-clarou: “Para ele, a revolução era uma coisa bonita, alegre e, como um bom baiano, a revolução era co-mo uma boa capoeira”. Ele destacou a importância da Consulta Popular e disse que, assim como Mari-ghella, a Consulta acredita que o alicerce da luta so-cial é a aliança operária e camponesa, na criação de um partido que se fortalece no processo de enfren-tamento.

“Ele sempre foi um homem que amava o povo bra-sileiro e, até o fi m de sua vida, foi um homem que lu-tou pelo que verdadeiramente acreditava. Talvez fos-se o depositário de maior e mais vasta experiência política na esquerda da época em que morreu.” Com essa e outras diversas declarações sobre a vida de seu pai, Carlos Augusto Marighella acendeu o espírito revolucionário dos participantes. Em dezembro de 2011, Marighella estaria completando 100 anos. Ele viveu intensamente e mesmo depois de morto inspi-ra a juventude e muitos brasileiros a fazer do Brasil um país para os trabalhadores, como sinalizou Carli-nhos. (AR, EG, JT e PC)

de Salvador (BA)

Na noite do dia 31 de janeiro, momento de abertu-ra da IV Assembleia Carlos Marighella, instância má-xima da organização Consulta Popular, a vida e a lu-ta do revolucionário baiano foram celebradas. Com os depoimentos de seu fi lho, Carlos Augusto Marighella, o “Carlinhos”, e dos companheiros da Ação Liberta-dora Nacional (ALN), Aton Fon Filho e Takao Ama-no, os militantes se aproximaram ainda mais dos ide-ais de quem afi rmava: “Quero ser apenas um entre os milhões de brasileiros que resistem.”

Morto pela ditadura civil-militar em São Paulo há 40 anos, Marighella vive nas lutas e projetos en-campados pelos militantes da Consulta Popular, pa-ra quem a homenagem pretende resgatar seu lega-do histórico para os trabalhadores brasileiros. O re-volucionário baiano atravessou os principais momen-tos da luta de classes entre as décadas de 1930 a 1970. Foi tribuno parlamentar, organizador sindical, elabo-rador e fundador de organização político-militar. De-fendia a centralidade da luta pelo poder, a partir de uma organização independente, em aliança com am-plos setores populares. Lições para ainda hoje.

A proposta da Alba é uma resposta direta à análise sobre o caráter do imperialismo hoje

Nos marcos da Alba Marighella, as lutas do povo e uma construção de identidadeElementos históricos deixados pela vida e obra de Carlos Marighella alimentam o debate sobre identidade

“Para ele, a revolução era uma

coisa bonita, alegre e, como

um bom baiano, a revolução

era como uma boa capoeira”

Para uma revolução brasileira, internacional e popularORGANIZAÇÃO Quarta Assembleia Nacional da Consulta Popular reúne 400 delegados em Salvador (BA)

O debate feminista teve grande dimensão na IV Assembleia, que foi antecedida por um encontro de 120 mulheres de 15 estados brasileiros

“Foi um momento interessante, em que

a gente vivenciou de fato o que seria a

materialização do projeto popular

Cerca de 400 delegados participaram do encontro: avanços na organização e formas de luta

Keila Martins Gonçalves

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brasil de 10 a 16 de fevereiro de 2011 7

Marcio Zontade Açailândia (MA)

NO DIA 27 DE JANEIRO foi lançado pelo Centro de Defesa da Vida e dos Di-reitos Humanos da cidade de Açailân-dia (Cdvdh) o “Atlas Político Jurídico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Maranhão”. Trata-se de uma obra cujo objetivo é compartilhar com a po-pulação informações que fi cam restri-tas apenas aos órgãos aos quais com-pete o assunto. “Nós não queremos di-zer com o Atlas que existe trabalho es-cravo, isso todo mundo sabe, nós que-remos é mostrar como o Estado, a so-ciedade e o próprio Cdvdh se relacio-nam com o problema”, aponta o ad-vogado Nonatto Masson, coorganiza-dor do livro.

Assim, o Atlas apresenta, entre os se-te capítulos, uma análise sobre uma sé-rie de processos que tramitam na jus-tiça em dezenas de fazendas no Mara-nhão e um estudo das fi guras dos es-cravizados, dos fazendeiros e do “ga-to” (pessoa que recruta os trabalhado-res para levar às fazendas e carvoarias) e questiona os dois planos criados pelo governo para erradicar o problema.

Avanços e retrocessosPara Masson, o lançamento do Atlas

se faz necessário para uma série de in-dagações, quando se constata na pes-quisa para a elaboração do livro que a situação do trabalhador em condições análogas à escravidão em 1975 é a mes-ma de casos apurados pelo Cdvdh em 2010. Mais: entre 2005 e 2010, os 62 processos de fazendeiros no Maranhão, incluídos na lista suja, entregues ao Ins-tituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), não tiveram conclusão, “quan-do teria que ter sido analisada a cadeia nominal dessas terras, para saber quem é o dono e a origem do título do imóvel, e, em casos de terras griladas, desapro-priadas as terras para fi ns de reforma agrária”, lembra Masson.

O advogado reconhece, no entan-to, que, mesmo o Estado sendo ausen-te, um dos motivos para a não erradi-cação do trabalho escravo, duas ações governamentais precisam ser obser-vadas: “o seguro desemprego especial criado pelo governo federal, sendo pa-go aos trabalhadores por quatro meses após serem resgatados, e o grupo móvel composto por fi scais do trabalho e por agentes da Polícia Federal para fi scali-zação das fazendas”.

EscravosHomens, mulheres e crianças com-

põem os 2.300 trabalhadores escra-vos resgatados no Maranhão nos últi-mos dez anos. “As mulheres são mais exploradas do que os homens, dormem em acampamento coletivo, são estupra-das e têm mais atribuições do que os ho-mens. Crianças de dez anos de idade tra-balham como adulto”, revela Masson. As atividades com maior incidência de tra-balhadores escravizados no estado são: nas grandes fazendas, onde roçam a ju-quira na formação do pasto para criação de gados, ou nas carvoarias, além da co-lheita de milho e cana-de-açúcar. Repre-sentando 38%, segundo o Atlas, do mon-tante de trabalhadores escravos no Bra-sil, muitos maranhenses que passaram por essa experiência sabem muito bem as difi culdades de se viver assim. “Fo-ram os piores dias que passei na minha vida”, relata o jovem Leomar Oliveira da Conceição, de 21 anos, recém-libertado do trabalho escravo de três meses numa carvoaria em Açailândia. “Trabalhava 15 horas por dia, só comia arroz e feijão, carne uma vez por semana, água prati-camente não tinha, banhava nos tanques do forno, a dormida era numa casa velha toda suja e pequena onde fi cávamos em 20 homens”, lamenta.

O jovem conta que, depois de ter sido demitido de uma metalúrgica na cidade de Imperatriz (MA), viajou para Açai-lândia a procura de emprego. Chegan-do na cidade, foi abordado por um ra-paz que lhe pagou comida, estadia num hotel e lhe ofereceu emprego, aceito prontamente por ele. “O cara voltou só de noite e me levou para a carvoaria, no meio de uma mata escura, nem deu pa-ra reconhecer o caminho”. Seu sofri-mento só acabou quando conseguiu fu-gir numa manhã caminhando das nove

da manhã às quatro da tarde, quando, enfi m, encontrou a estrada e pediu uma carona até a cidade novamente. “Meu destino lá seria a morte, como de um monte de cadáveres que nós víamos jo-gados no meio da mata, por cobrar seus diretos ou tentar fugir”.

Gildásio Silva, de 30 anos, tem uma história parecida, só que em vez da car-voaria, foi levado por um “gato” para uma fazenda para roçar juquira, com mais 18 homens e dois adolescentes no município maranhense de Santa Luzia do Tide. “Achei que fosse morrer, que nunca mais voltaria para casa porque eu nunca conseguiria quitar minha dí-vida”. Pagando por um sabonete e cre-me dental o valor de R$ 2,50, mais as

próprio do modelo de desenvolvimentodo Estado, do ponto de vista da destrui-ção ambiental e humana, pois esses pe-ões escravizados são fi lhos de quilom-bolas ou sertanejos, que tiveram a ne-cessidade de abandonar suas comuni-dades e caírem na estrada à procura deemprego”, refl ete.

Ariovaldo Umbelino, geólogo apo-sentado pela Universidade de São Pau-lo (USP), analisa nacionalmente o pro-blema do trabalho escravo e a relaçãohistórica que contribui para a conti-nuação do mesmo. “Nossa agricultura,historicamente, utilizou-se do trabalhoescravo. Ela começou com a escravidãoe, no imaginário do capitalista brasi-leiro, paira a ideia de que se pode abu-sar dos trabalhadores. Isso faz parte doque chamamos de imaginário coletivo”.E, na mesma perspectiva do “progres-so” mencionada por Masson, o agrone-gócio tido como avançado “inventa afalácia de que é moderno e não utiliza otrabalho escravo. Esse trabalho escravoé estrutural como a violência que cercaa questão da terra. Eles fazem parte dagênese da agricultura brasileira”, con-clui Umbelino.

Atlas sobre trabalho escravo é lançado no MaranhãoDIREITOS HUMANOS Livro joga luz sobre a superexploração a que são submetidos camponeses do estado

de Açailândia (MA)

A marca Maratá, umas da mais co-nhecidas no Norte e Nordeste brasi-leiro, do grupo empresarial José Au-gusto Vieira – nome de seu proprie-tário – é um conglomerado de em-presas que produz suco, copos des-cartáveis, fumo, produtos alimen-tícios e temperos, tendo até o ator global, Edson Celulari, como garo-to propaganda. Com 30 fazendas na Bahia e 12 no Maranhão, ainda, aten-de o mercado frigorífi co, além de ser detentor de uma universidade, uma escola e um instituto de responsabi-lidade social no Sergipe.

Porém, apesar da riqueza de que gozam os Vieira, foram encontrados há aproximadamente dois anos, nu-ma de suas fazendas no Maranhão, cinco menores de idade (quatro ado-lescentes e uma criança de 11 anos) trabalhando em condições análogas à escravidão.

Mesmo assim, em 2009, a senten-ça publicada por um juiz do Mara-

nhão absolveu o fazendeiro José Au-gusto Vieira e o ‘gato’ Raimundo No-nato Pereira, conhecido como Anão. Eis o trecho da sentença: “o fazen-deiro reside no estado de Sergipe e tem mais de 12 fazendas no Mara-nhão, o que torna quase impossível a sua presença constante em todas elas, assim, em relação ao réu José Augusto Vieira não se pode concluir de forma segura a presença do dolo necessário a confi guração dos delitos descritos na denúncia, eis que é pos-sível que ele tenha agido apenas de modo negligente”.

A apelação do Ministério Público Federal rebateu a decisão: “a fazen-da tinha como atividade econômica a manutenção de criação de gado de corte, não é plausível se concluir que, havendo necessidade de roço da ju-quira em uma área extensa a ser re-alizada por um número considerável de pessoas, não tivesse o proprietá-rio ciência da existência desse nú-

mero de trabalhadores, bem como da inexistência no local de condições mínimas de trabalho, uma vez que o serviço era, ao fi nal, realizado”.

Sem contar os vários relatos dos fi scais que foram ignorados no pro-cesso, sobre as péssimas condições de trabalho e sobrevivência na fazen-da, tais como: “a água que bebiam era a mesma servida ao gado, o local do alojamento onde faziam as neces-sidades fi siológicas e as vasilhas queos trabalhadores levavam para beber estavam cheias de lodo”.

E sobre o “gato” Anão, os traba-lhadores relataram aos fi scais “que o mesmo tinha um caderno em que anotava tudo que os trabalhadores consumiam e sempre dizia que eram os trabalhadores que estavam lhe de-vendo, que todas as refeições eram descontadas, que no almoço serviam apenas feijão e arroz que ainda não era sufi ciente para todos e uma vez ou outra aparecia carne de porco”.

Uma das provas que mais indig-na o advogado do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (Cdvdh), Nonatto Mas-son, obviamente além da não puni-ção do fazendeiro e do “gato”, foram os vários cadernos de dívidas apre-endidas pelos fi scais do trabalho, pois num deles “foi encontrado um dia de ‘deixação de comer’, o que de-nota a tentativa desesperada de um trabalhador de garantir algum saldo no fi m do mês”. (MZ)

“O local do alojamento onde faziam as necessidades fi siológicas e as vasilhas que os trabalhadores levavam para beber estavam cheias de lodo”

Grupo Maratá está envolvidoMesmo com provas concretas, empresário é absolvido pela justiça

ferramentas para trabalhar, além de bo-tas e roupas, devia sempre R$ 600 no fi m do mês. “A água que nós tomávamos era a mesma do gado, a comida horrível, eram os adolescentes que eram obriga-dos a fazer e o local onde dormíamos era infestado de ratos”, relembra. Um dia ele resolveu fugir e chegar até a ci-dade, mas sem muito auxílio e pensan-do nos colegas, resolveu voltar para a fa-zenda. “Quando cheguei lá, o ‘gato’ per-guntou aonde eu tinha me metido. Dis-se que tinha fugido atrás de uma namo-rada, mas que tinha voltado para quitar a dívida com eles”. Aceitando suas des-culpas, ele fi cou por mais algumas se-manas, quando novamente fugiu. “Na segunda vez que consegui sair, consegui auxílio do Cdvdh e voltei lá com a fi scali-zação e a Polícia Federal. Foi o dia mais feliz da minha vida, de ver meus colegas libertados e tendo nossos direitos pa-gos”, se emociona Silva.

DesenvolvimentoPara Masson, o respeito à forma de

vida das comunidades seria importan-te para a erradicação desse crime, “por-que esse trabalho escravo da região é

“As mulheres são mais exploradas do que os homens, dormem em acampamento coletivo, são estupradas e têm mais atribuições do que os homens”

“Esse trabalho escravo da região é próprio do modelo de desenvolvimento

do Estado, do ponto de vista da destruição ambiental e humana”

No ano passado, no Maranhão, 2.300 trabalhadores escravos foram resgatados de carvoarias e grandes fazendas

João Zinclar

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culturade 10 a 16 de fevereiro de 20118

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

DURANTE A CAMPANHA da presiden-te Dilma Rousseff (PT) à Presidência da República, em 2010, um dos setores so-ciais que mais se mobilizaram por sua candidatura foi aquele ligado à produção cultural. A política implementada pelos ministros da Cultura durante o manda-to do ex-presidente Lula, Juca Ferreira e Gilberto Gil, era vista como um dos bra-ços mais progressistas do governo. Con-siderando o forte enraizamento social dos produtores de cultura que apoiavam o governo, sua organização, nas ruas, em apoio a Dilma e o signifi cativo acesso dos militantes da Cultura Digital às mais va-riadas formas de comunicação, não há como negar o papel imprescindível des-se setor na eleição da candidata do PT. Quando a campanha de José Serra (PS-DB) adotou uma tática difamatória pela internet, por exemplo, foram essas pes-soas que, por militância, saíram em de-fesa da petista.

Eleita, Dilma demorou a escolher o responsável por assumir o MinC. Mais de 20 nomes foram cogitados, e o mo-vimento cultural pressionava pela ma-nutenção de Juca, ou de outro nome próximo à mesma política. A presiden-ta surpreendeu quando anunciou a es-colha de Ana Buarque de Hollanda pa-ra a pasta. Com experiência administra-tiva de pouca expressão, teria sido esco-lhida pela proximidade com o grupo po-lítico que orbita em torno do ator petista Antônio Grassi, além de ser mulher e ca-rioca – até então, o Ministério tinha pou-ca presença do Rio de Janeiro. Grassi foi nomeado por Ana presidente da Funda-ção Nacional das Artes (Funarte), onde já havia atuado na gestão anterior, e de onde foi demitido por Gilberto Gil em 2007. Movimentos como os de Softwa-re Livre, Cultura Digital e Pontos de Cul-tura estranharam a escolha de Ana, mas mantiveram o apoio tácito ao governo. Desde que assumiu, entretanto, a nova ministra tem sinalizado em direções que têm sido consideradas, por parte do mo-vimento, mais conservadoras.

Primeiro, ela deu declarações de que a Reforma na Lei dos Direitos Autorais “foi discutida com a sociedade, mas não se chegou a consensos. Precisa ser nova-mente colocada em discussão”. O proces-

so de discussão da reforma tomou, pelo menos, seis anos. Diversos seminários e congressos foram realizados com a par-ticipação de uma ampla gama de setores sociais. Juca deixou um projeto pronto ao novo governo. Ana de Hollanda já de-ra pistas de ter um posicionamento me-nos ousado no texto que, em 2008, ela escreveu no blog de Grassi. “Com o sur-gimento da internet, celulares, com seus provedores, softwares, empresas de tele-fonias e grandes grupos que englobam tudo acima, a criação é o elo mais fra-co e fácil de se neutralizar com o irôni-co discurso de ‘democratização do aces-so’”, postou.

Uma segunda sinalização considera-da negativa pelo movimento de Cultura Digital foi a declaração de que o Escritó-rio Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) não precisa de supervisão estatal. O Ecad é uma instituição privada criada por lei federal (5.988/1973), o que para muitos signifi ca uma aberração jurídica. Detém o monopólio da arrecadação e da distribuição dos direitos autorais. Pratica a cobrança rigorosa do dinheiro – inclu-sive em eventos como festas juninas ou infantis – e é pouco transparente na utili-zação desses recursos. Há setores que de-fendem sua extinção ou substituição. Os mais moderados apoiam apenas o óbvio,

a supervisão estatal, que a ministra agora diz ser desnecessária.

No início deste mês, a ministra se reu-niu com o advogado Hildebrando Pon-tes, vinculado ao Ecad. O encontro foi visto com muita preocupação pelos se-tores mais progressistas da discussão do direito autoral, ainda não recebidos pela ministra. De posições muito conserva-doras, Hildebrando é cogitado para che-fi ar a secretaria de direito autoral. “Seria como nomear o Ronaldo Caiado [depu-tado federal da bancada ruralista] para o Ministério da Agricultura”, compara Pablo Ortellado, coordenador do Gru-po de Pesquisa em Políticas Públicas pa-ra o Acesso à Informação da Universi-dade de São Paulo (GPOPAI/USP). Hil-debrando já declarou que, para ele, não deveria existir o domínio público – o di-reito autoral deveria durar para sempre. Ele fez a defesa do Ecad em centenas de processos em distintos tribunais, entre os quais o Superior Tribunal de Justi-ça (STJ).

Foi, entretanto, uma outra medida de Ana de Hollanda a que mais polêmica gerou entre os setores culturais. O MinC substituiu, repentinamente, a mensagem de rodapé em seu site. O Ministério re-tirou a referência ao Creative Commons, modelo de licenciamento alternativo es-colhido na gestão Gil, substituindo-a pe-lo texto: “O conteúdo deste site, produzi-do pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Sem grandes consequências práticas, a medida tem valor simbólico, com im-plicações políticas e eventualmente ju-rídicas. “Essa frase causa diversos pro-blemas. A nossa lei de direitos autorais é uma das mais restritivas do mundo e di-ferencia a ‘reprodução’ da ‘publicação’. A

Revés no Ministério da CulturaPOLÍTICA Gestão da ministra Ana de Hollanda no MinC dá sinalizações de que a pasta terá postura mais conservadora no governo Dilma

frase trata apenas do direito de reprodu-ção de modo que alguém que republique os conteúdos do site do MinC no seu pró-prio site não está coberto por ela e vio-la direitos autorais”, explica Ronaldo Le-mos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e do Creative Com-mons Brasil.

Importante considerar que o Ministé-rio de Gil e Juca era famoso, na espla-nada, pelos gastos além do orçamento. O programa de maior projeção social e política do período, o Cultura Viva, por exemplo, frequentemente gastava além do planejado. Em 2010, em parte devi-do à campanha eleitoral, que inviabili-za certos gastos, vários pontos de cultu-ra (unidades de produção cultural vin-culadas ao programa) fi caram sem pa-gamento. Ana visa a corrigir essas distor-ções, profi ssionalizando a pasta. E o go-verno Dilma deu sinalizações aos minis-térios de que em seu primeiro ano pre-tende conter gastos.

Ortellado considera que, nesse enfren-tamento, uma das ameaças mais graves seria um possível revés na política exter-na brasileira. “O Brasil era, de longe, omais progressista no que diz respeito aDireito Autoral. Passou a pautar mun-dialmente, através do Itamaraty, a dis-cussão do Direito Autoral vinculada ao direito de acesso, e não ao direito do au-tor. Até a Secretaria de Estado dos EUAchegou a criar um seminário para dis-cutir as questões colocadas pelo Brasil”, lamenta. Os militantes já criaram um “blog protesto” na internet e buscam se mobilizar, articulando-se inclusive comos Pontos de Cultura. No início do mês, a ministra fi nalmente reuniu-se com as lideranças dos Pontos, após seguidasreuniões desmarcadas.

do Rio de Janeiro (RJ)

Defensores da posição da ministra Ana de Hollan-da acusam o movimento de Cultura Digital de aten-der aos interesses de corporações. Segundo eles, grandes empresas terminam lucrando com o fl u-xo livre e gratuito de produção cultural pela inter-net. Não se trata de uma acusação sem embasamen-to, embora haja certo nível de contradição ao se levar em conta o modelo que defendem. Nele, as gravado-ras e editoras – frequentemente estrangeiras – ofe-recem aos compositores e escritores contratos avil-tantes, em que fi cam com a maior parcela dos recur-sos, sob a alegação de que devem recuperar investi-mentos. Essas empresas têm grande infl uência nas associações controladoras do Ecad. São corporações sugando dinheiro dos autores, mas que os defenso-res da ministra não criticam.

“As prática recombinantes favorecem o autor, e não o intermediário. Este foi o setor prejudicado pe-la política de compartilhamento do governo Lula.

O argumento deles é um absurdo”, protesta Sérgio Amadeu, primeiro coordenador do Comitê Técni-co de Implementação do Software Livre no governo anterior. Uma das principais referências brasileiras no assunto, Amadeu se negou a assinar o manifesto contrário à indicação de Ana de Hollanda em 2010. “Eu não a conhecia, não tinha nada contra”, diz. Lo-go que as primeiras ações da ministra começaram a ganhar densidade política, Amadeu passou a ser um dos mais veementes críticos da nova orientação.

Fábio Malini, coordenador do Laboratório de estu-dos sobre Internet e Cultura da Universidade Fede-ral do Espírito Santo (Ufes), também critica o direi-to autoral como mecanismo de manutenção de privi-légio dos intermediários – aqueles que mediam a re-lação entre o artista e o usuário, como por exemplo o Ecad. “Em nome da defesa do autor, se viabilizou toda a formação de uma indústria intermediária, fa-cilitando os monopólios industriais e o constrangi-mento a regras de mercado que fez excluir toda uma geração formidável de autores, que se recusavam a obedecer às regras ditadas por esse monopólio. En-tão, inclui-se abstratamente (no direito) e exclui-se concretamente (no mercado)”, diz. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

O Creative Commons (CC) é um sistema alternativo de licen-ciamento. Uma tentativa de tornar mais prático e diversifi cado o processo das licenças autorais, adequadas aos desejos e ne-cessidades de cada autor. Sua utilização é ampla. O site da Ca-sa Branca, nos EUA, é licenciado pelo CC, assim como o blog do Departamento de Finanças da Austrália. A Presidência do Chi-le também o utiliza em seu site. O governo britânico trabalha com o Open Government Licence (OGL), que eles desenvolve-ram, parecido com o CC. O blog do Planalto, utilizado por Lu-la e Dilma, também é CC, assim como alguns sites da Empre-sa Brasil de Comunicação (EBC). “Essa é uma tendência mun-dial e sites governamentais do mundo todo utilizam o Creative Commons ou licenças similares para autorizar a ampla utiliza-ção dos conteúdos”, afi rma Ronaldo Lemos, diretor do Creati-ve Commons Brasil.

Ele explica que há obrigações legais a serem cumpridas pelo MinC, estabelecidas pela Lei 12.343, que aprovou, em dezembro de 2010, o Plano Nacional de Cultura. A lei estabelece, no arti-go 1.9, a obrigação de “revisar a legislação brasileira sobre di-reitos autorais, com vistas em equilibrar os interesses dos cria-dores, investidores e usuários, estabelecendo relações contratu-ais mais justas e critérios mais transparentes de arrecadação e distribuição” e “criar instituição especifi camente voltada à pro-moção e regulação de direitos autorais e suas atividades de ar-recadação e distribuição”. Para Lemos, o Ministério não estaria cumprindo essas obrigações legais. Em janeiro de 2010, Dilma se encontrou com o formulador da licença, Lawrence Lessig, no Campus Party, em São Paulo. Na ocasião, ela defendeu a refor-ma na Lei do Direito Autoral. (LU)

“Em nome da defesa do autor,

se viabilizou toda a formação de

uma indústria intermediária”

Quem está do lado das grandes empresas?

Por licenças justas e transparentesCreative Commons é cada vez mais utilizado por governos de diversos paísesPara defensores do

novo MinC, ao defender licenciamentos alternativos, militantes da Cultura Digital estariam atendendo a interesses de corporações

“A criação é o elo mais fraco e fácil de se neutralizar com o irônico discurso de ‘democratização do acesso’”, afi rmou, em 2008, Ana de Hollanda

Ortellado considera que, nesse enfrentamento, uma das ameaças

mais graves seria um possível revés na política externa brasileira

A nova ministra da Cultura, Ana de Hollanda, durante cerimônia de transmissão de cargo

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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de 10 a 16 de fevereiro de 2011 9áfrica

Daniella Cambaúvade São Paulo (SP)

ENTRE imagens impactantes que mos-tram milhares de egípcios protestando para exigir a saída do presidente Hosni Mubarak, surge a dúvida: o que explica sua permanência no poder por 30 anos? Um forte aparato de repressão, controle das principais fontes de renda da popu-lação e consentimento da comunidade internacional foram os principais pila-res de sua ditadura, explicaram especia-listas consultados pelo Opera Mundi.

Militar da aeronáutica, Mubarak se tornou presidente do Egito em 14 de ou-tubro de 1981, seis dias após Anwar Al Sadat (1970-1981) ser assassinado. Mu-barak havia se tornado vice-presidente seis anos antes.

O egípcio Mohamed Habib, vice-pre-sidente do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe) e doutor pela Universidade Es-tadual de Campinas (Unicamp), conta que a transição de governo foi tranqui-la. “Houve alguma resistência de intelec-tuais, mas as pessoas tinham emprego, condições razoáveis, então não se quei-xavam”, lembra o professor, que viveu 31 anos no Egito e está há 39 no Brasil.

Quando Mubarak assumiu a Presidên-cia, a primeira medida adotada foi de-cretar estado de emergência, diz o his-toriador da Unicamp, Pedro Paulo Fu-nari. “Num primeiro momento, foi jus-tifi cado pelo assassinato do Sadat, mas depois os partidos políticos começaram a ser proibidos”.

O assassinato do então presidente, du-rante uma parada militar no Cairo, foi atribuído a militantes islâmicos extre-mistas, insatisfeitos com a aproximação com Israel. Em 1977, o Egito foi o pri-meiro país árabe a reconhecer o Estado judeu. Em 1978, por conta de acordo de paz, Sadat ganhou o Nobel da Paz, po-rém foi expulso da Liga Árabe.

“Mubarak conseguiu manter-se por 30 anos no poder por meio da repressão, que não foi introduzida por ele. O Egito não tem um histórico de regimes demo-cráticos”, ressalta o historiador. Os go-vernos anteriores, tanto o de Sadat como o de Gamal Abdel Nasser (1954-1970), ambos militares, não foram democrá-ticos, embora tenham adotado políticas econômicas distintas e diferentes postu-ras diante de confl itos internacionais.

“Ele governou 30 anos sob estado de emergência, um instrumento para viabi-lizar a permanência dele no poder. Com mão de ferro para amedrontar o povo, usando prisões e matanças ocultas. As próprias instituições, o Parlamento, via-bilizaram as candidaturas dele depois”, completa o egípcio Habib.

Outra medida adotada por Mubarak foi acabar com a oposição e colocar na

As armas de Mubarak

ilegalidade qualquer “partido político baseado em fundamento religioso”, co-mo a Irmandade Muçulmana. Mudan-ças constitucionais também foram fei-tas por meio da criação de emendas para fortalecer o Poder Executivo, enfraque-cer o Judiciário e assegurar a dominação política do governista Partido Nacional Democrata (PND).

Nas eleições de 1987, 1993, 1995 e 1999, Mubarak foi o único candidato. Em 2005, pela primeira vez, outros par-tidos puderam participar, mas o veto à Irmandade foi mantido. Houve dez can-didatos e o governo saiu vitorioso com 88,6% dos votos. Apesar do número, que poderia atribuir ao presidente uma aprovação inquestionável, as eleições fo-ram criticadas na época. Eles argumen-tavam que houve um explícito controle do governo, incluindo o uso de gás lacri-mogêneo, balas de borracha e munições que deixaram 14 mortos e centenas de pessoas na prisão.

“As eleições no Egito não são e nunca foram livres. Havia sempre um candida-to único. A juventude que está nos pro-testos é da classe média, instruída, fala inglês e nunca votou fora desse cabres-to”, afi rma Funari, lembrando que o No-bel da Paz Mohamed El Baradei, um dos líderes da oposição, já foi impedido de se candidatar e chegou a ser preso no fi m de janeiro quando saía de uma mesqui-ta no Cairo.

Estrutura nacional Na avaliação de Funari e de Habib, a

política econômica foi outro pilar de sus-tentação do governo egípcio. “Mubarak tem controle de três importantes fon-tes de renda: o turismo, que mesmo sen-do privado depende da estrutura monta-da por ele, o exército e os serviços públi-cos”, explica Funari.

Ao longo dos 30 anos do governo Mu-barak, poucos investimentos na indús-tria nacional foram feitos – a atividade industrial representa 17% do PIB –, fa-zendo com que o país dependa da im-portação, principalmente de alimentos. A principal atividade econômica é o tu-rismo e, em segundo lugar, a extração e a exportação de petróleo, administra-das pelo governo. Há também o servi-ço público, que emprega 31% da popu-lação, e o exército, que tem um contin-gente de 500 mil homens, um dos maio-res do mundo e o mais importante entre os países árabes.

Para Habib, o esgotamento desse mo-delo econômico foi um dos motivos da revolta da população. “Quando já não havia emprego, condições básicas de so-brevivência para a população, a situação mudou. Minha família está toda lá, ve-nho acompanhando tudo de perto”, diz.

O Egito encerrou 2010 com desempre-go em 20%. Em 2007, o mesmo núme-ro era de 10,1%. Já a infl ação chegou a 11,9 % em 2010, enquanto em 2007 es-tava em 6,5%.

Terceiro pilar A política externa foi outro ponto im-

portante para manter o regime de Muba-rak, segundo os especialistas. Isso por-que a comunidade internacional nun-ca deu ênfase aos abusos de direitos hu-

manos no Egito, um país lembrado mais por suas pirâmides e por seu litoral do que por seu regime autoritário, avalia Funari. “É um regime de alinhamento ao Ocidente, ele tinha credibilidade inter-nacional por ser um aliado do ocidente”.

As relações internacionais no governo Mubarak foram a continuidade do gover-no Sadat. Em julho de 1972, ele ordenou a expulsão dos soviéticos do país com a justifi cativa de que a Rússia não tinha fornecido armas sofi sticadas necessárias para retomar os territórios perdidos pa-ra Israel em 1967. A partir de então, pas-sou a receber apoio estadunidense. Des-de 1973, os EUA dão anualmente uma ajuda de 3 bilhões de dólares, dos quais 1,3 bilhão têm fi ns militares.

Outro feito foi reafi rmar o tratado de paz com Israel fi rmado em 1979, geran-do novamente críticas por parte dos pa-lestinos e de outros países árabes.

Durante a Guerra do Golfo (1990-1991), o Egito se posicionou ao lado dos EUA, contra os objetivos expansionistas do Iraque de Saddam Hussein. Em 1993, participou da mediação do acordo entre Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP), assinado em 1993 e cri-ticado por grupos palestinos como o Ha-mas e países como a Síria.

Segundo Habib, o que ocorreu foi um processo de esgotamento em três fren-tes: “a primeira é o esvaziamento do próprio governo, que não tem mais o que oferecer à sociedade, não tem mais como enganá-la, foram 30 anos em que nada do que foi prometido foi feito; a se-gunda, é o término da esperança e da pa-ciência da população; a terceira, é o es-gotamento da relação do governo egíp-cio com o dos Estados Unidos”, referin-do-se ao pedido feito pelo presidente Ba-rack Obama a Mubarak para que o egíp-cio deixasse o poder. (Opera Mundi)

EGITO Especialistas apontam os principais recursos da ditadura egípcia: repressão, controle econômico e conivência internacional

de São Paulo (SP)

Quando se trata de explicar o que leva milhares de pessoas todos os dias às ruas para pedir a renúncia de Hosni Mubarak, crise econômica e esgotamento de um re-gime totalitário são os principais aspectos mencionados. No entanto, a existência de um governo comandado por civis, e não por militares, é também uma das princi-pais demandas, de acordo com o historia-dor da Unicamp, Pedro Paulo Funari.

Ele explica que o que levou os egípcios a pedir o fi m de um governo que já du-ra quase 30 anos é principalmente o alto índice de desemprego, a infl ação, a cor-rupção, mas que há também uma real de-manda por um presidente civil.

“É uma revolta impulsionada por uma população jovem, que nunca teve elei-ções livres, que pede uma democracia, mas também um governo civil, que não seja comandando por um militar.”, afi r-mou Funari.

O historiador lembra que o país nun-ca teve regimes democráticos. O primeiro presidente assumiu em 1952, após uma revolução que proclamou a república e derrubou o rei Faruk I. Na época, o Egito vivia uma crise depois do fi m da primei-

ra Guerra Árabe-Israelense (1948-1949). O rei era acusado de ser responsável pe-la derrota diante de Israel e da submissão do país ao Reino Unido, que estava insta-lado no Canal de Suez. No fi m do século 19, os britânicos haviam invadido e ocu-pado o Egito.

No dia 23 de julho de 1952, a monar-quia foi então derrubada pelo Movimen-to Ofi ciais Livres, grupo liderado por Ga-mal Abdel Nasser e formado por milita-res egípcios jovens de classe média baixa. No dia seguinte, o rei Faruk se exilou em Mônaco. Num primeiro momento, o ge-neral Mohamed Neguib se tornou o pre-sidente, e Nasser passou a ser seu assis-tente, ocupando o posto de vice-presi-dente. Em menos de um ano, Nasser con-seguiu afastar Neguib do poder e tomou seu lugar.

Era Nasser Lembrado por ter sido um presidente

nacionalista, Nasser trabalhou para uni-fi car o mundo árabe e dar ao Egito uma independência total. Ele criou um regi-

me de partido único e as eleições presi-denciais passaram a ser indiretas. A Ir-mandade Muçulmana foi colocada na ile-galidade.

Nasser é lembrado também por sua proximidade com a União Soviética e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Com a economia fragilizada, apelou aos soviéticos para se abastecer de armas e aos estadunidenses para fi nanciar a cons-trução da barragem de Assua, obra que se tornou uma das marcas de seu governo. Dentro do país, ganhou enorme populari-dade por nacionalizar o canal de Suez, co-mandado por britânicos e franceses.

Sua principal derrota foi para Israel na Guerra dos Seis Dias (1967), na qual o Egito perdeu a Faixa de Gaza e o deserto do Sinai. Ainda assim, o regime de Nasser conseguiu sobreviver. Ele chegou a re-nunciar, mas voltou com apoio popular.

Seu governo acabou em 1970, quando ele teve um ataque cardíaco fulminante. Seu sucessor foi o vice-presidente, Anwar al Sadat, outro militar do Movimento dos Ofi ciais Livres.

Os anos seguintes Considerado mais moderado que Nas-

ser, Sadat cortou vínculos com a URSS em 1972 e assegurou ajuda econômica dos estadunidenses. Parte da economia egípcia foi liberalizada, mas a população se ressentiu da alta dos preços, principal-mente dos alimentos.

Em 1973, lançou uma ofensiva contra

Israel, dando início à Guerra do Yom Ki-ppur, resultando em mais uma derrota para o Egito. No ano seguinte, conseguiu recuperar o canal de Suez.

Em 1977, durante uma visita ofi cial ao território vizinho, tornou-se o primeiro país árabe a reconhecer o Estado de Isra-el. Em 1978, assinou com o primeiro-mi-nistro israelense, Menachem Begin, um acordo de paz permanente – o Acordo de Camp David – que rendeu aos dois um Prêmio Nobel da Paz.

Essa aproximação com os judeus foi criticada por países árabes, principal-mente entre os palestinos, que sofriam com a perda de território e demolição de suas casas. Em 1981, Sadat foi assas-sinado por militantes islâmicos e seu vi-ce, Hosni Mubarak, assumiu o comando do Egito. (DC, do Opera Mundi)

Manifestantes querem governo civilAlém da questão econômica, fi m do militarismo mobiliza egípcios

Nasser é lembrado também por sua proximidade com a União Soviética e os

Estados Unidos durante a Guerra FriaEssa aproximação com os judeus foi criticada por países árabes, principalmente entre os palestinos, que sofriam com a perda de território e demolição de suas casas

“Quando Mubarak assumiu a presidência, a primeira medida adotada foi decretar estado de emergência”

Durante a Guerra do Golfo (1990-1991), o Egito se posicionou ao lado dos EUA, contra os objetivos expansionistas do Iraque de Saddam Hussein

Manifestantes pró e contra Mubarak se enfrentam na praça Tahir no centro do Cairo

Nasser Nouri/CC

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internacionalde 10 a 16 de fevereiro de 201110

Ao invés de legitimidade, porém, muitos governos escolhem o medo, a violência pura. E nem sempre esse argumento funciona

MAIS DE 52% dos portugueses abstiveram-se de votar nas elei-ções para a Presidência da Repú-blica. O discurso dos candidatos, com a exceção de Francisco Lopes, deixou transparecer a sua adesão à engrenagem responsável pelas ca-lamidades que atingem a humani-dade e, obviamente, o povo portu-guês. Abstiveram-se de ligar a crise ao capitalismo.

Cavaco Silva foi, como se espera-va, eleito. Foi monótono no discur-so farisaico, de autoelogio, insistin-do em proclamar a sua sabedoria e sobretudo o seu eticismo de político que viveria para servir a pátria.

Francisco Lopes, foi, repito, a ex-ceção. Não recordo uma campanha comunista às Presidenciais que te-nha tocado tão profundamente as bases do Partido Comunista. O dis-curso do candidato foi de uma se-riedade e austeridade exemplares na fi delidade a uma ideologia e um projeto cujo objectivo é o desapa-recimento do capitalismo e a cons-trução de uma sociedade socialista. Não fez concessões ao sistema, não procurou conseguir votos para ga-nhar simpatias de camadas da pe-

quena burguesia contaminadas pe-las engrenagens eleitorais.

Mas Portugal está na Europa e não na América Latina onde a cons-ciência anti-imperialista é muito forte, o que permitiu nos últimos anos a eleição de presidentes com um discurso antineoliberal, crítico da política dos EUA. No espaço da União Europeia isso não é possível.

As eleições promovidas no qua-dro de instituições criadas pela bur-guesia e por ela controladas para funcionarem em benefi cio exclusi-vo dos seus interesses, cabe dizer, do grande capital, fecham a porta a situações como aquelas que leva-ram à Presidência Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia, ou mesmo Lula no Brasil.

Que fazer, então, se no horizonte a perspectiva é a do rodízio de go-vernos do Partido Socialista e do Partido Social Democrata, ambos neoliberais, submissos a todas as exigências do capital fi nanceiro na-cional e internacional.

As gigantescas manifestações de protesto contra a política calami-tosa do governo do PS confi rma-ram que o movimento popular está

em rápida ascensão e que a consci-ência política dos trabalhadores au-menta, forjada na luta em defesa de direitos e conquistas ameaçados pe-lo poder.

As massas não alimentam hoje a ilusão de que as coisas vão mudar pela via eleitoral. Nada esperam do Parlamento, controlado pela direi-ta, embora neste a presença de uma forte bancada comunista seja mui-to importante desde que funcione, sem concessões, como alavanca da luta de massas.

A campanha eleitoral de Francis-co Lopes terá, creio, contribuído pa-ra clarifi car a consciência, ainda di-fusa, de que a ruptura com a políti-ca que empurra o país para a ban-carrota exige, a prazo, uma ruptura com o próprio sistema, isto é, o ca-pitalismo.

Mas acreditar numa revolução social em Portugal em prazo pre-visível seria uma atitude românti-ca. Não existem para isso condições subjetivas mínimas num país semi-colonizado pelos grandes da União Europeia.

Essa realidade não justifi ca pos-turas pessimistas. As revoluções

não têm data no calendário. São o desfecho de processos molecula-res; amadurecem lentamente, dis-tanciadas de modelos importados, inseparáveis de fatores que dife-rem muito em cada sociedade. Ali-ás, com poucas exceções, as grandes revoluções irromperam e venceram impondo-se contra a lógica aparen-te da História.

Os acontecimentos da Tunísia e do Egito, o despertar repentino do mundo árabe, convidam a uma re-fl exão profunda. Um rebelde não se transforma de um dia para ou-tro num revolucionário, sobretudo quando nas sociedades a contesta-ção frontal do Poder tem um carác-ter espontaneísta, pela ausência de partidos revolucionários com im-plantação popular.

Qualquer paralelo com Portugal seria descabido. Nem por isso são menos importantes para os portu-gueses progressistas as lições que essas explosões sociais transmitem.

A mais importante é a de queas massas, quando se mobilizame atuam como sujeito da Históriacontra aqueles que as oprimem,são irresistíveis.

Refl exão sobre as eleições portuguesas Miguel Urbano Rodrigues

Os acontecimentos da Tunísia e do Egito, o despertar repentino do mundo árabe, convidam a uma refl exão profunda

Raphael Tsavkko Garcia

PARECIA IMPOSSÍVEL que o levan-te e a deposição do presidente Ben Ali na Tunísia pudesse se repetir no Egito de Hosni Mubarak, mas o que se vê são protestos gigantescos nas principais ci-dades egípcias e que vêm se espalhan-do também pela Jordânia e pelo Iêmen, ambos governados por ditadores (sejam reis ou presidentes).

A mobilização na Tunísia, durante 29 dias, mostrou que o povo pode ter o po-der nas mãos, que pode retomar o poder que ditadores usurparam.

No Egito, as imagens dos protes-tos são impressionantes. Não impor-ta quantos policiais estejam nas ruas, o número de pessoas protestando é mui-to maior. A polícia é sufocada pelo sim-ples número de manifestantes e, a não ser que entrem em desespero, balas de borracha e gás não parecem conter a massa humana. Só poderão ser conti-dos com balas de verdade, com sangue. E não se sabe se Mubarak está disposto a ir tão longe.

Qual será a reação mundial – mes-mo entre aliados próximos – se Muba-rak decidisse matar a população para se manter no poder? Se isso não acontecer, é difícil que o regime se sustente apenas frente ao número avassalador de mani-festantes.

O grito de guerra dos manifestantes em Alexandria, no Egito, era “Ilegíti-mo”, o que apenas demonstra que um governo – ou mesmo uma ditadura – só se sustentam enquanto povo considerá-lo legítimo. Somente a legitimidade po-pular, ou frente ao povo, garante a so-brevivência de um regime.

Ao invés de legitimidade, porém, mui-tos governos escolhem o medo, a violên-cia pura. E nem sempre esse argumen-to funciona.

Lembremo-nos da Revolução Islâmi-ca no Irã. Apenas a pressão popular der-rubou o Xá – apesar dos imensos inves-timentos e intervenção estrangeira, no-tadamente dos EUA. Chega um momen-to em que a mera pressão da popula-ção, a desobediência civil e o descontro-le causado pelo não funcionamento das estruturas mais básicas do Estado aca-

bam por destruir as bases desse mes-mo Estado.

Infelizmente em muitos casos a von-tade da população não é tão forte, a mo-bilização não se sustenta e o medo to-ma conta.

O passo mais difícil na luta contra qualquer ditadura é superar o medo. É mobilizar o povo e, depois, manter a mobilização frente ao possível aumento da repressão.

Mas, uma vez mobilizado, é difícil pa-rar o povo. Ou o governo cai ou se man-tém derramando muito sangue. E assu-me as consequências políticas e sociais.

No Egito, milhares de manifestantes usavam branco – cor de luto nos países árabes – para mostrar que não tinham medo da morte. Ao mesmo tempo em que o exército não dava mostras de re-agir aos manifestantes que se acumula-vam em praças e ruas, subiam em tan-ques e mesmo pintavam palavras de or-dem nos veículos militares.

Apenas a polícia sobrou como resis-tência do regime. E esses mesmos po-liciais foram responsáveis por saques

e destruição pelo país, na tentativa dogoverno de acusar manifestantes deviolência e descontrole e ter a descul-pa para usar ainda mais violência e des-legitimar o movimento revoltoso. Parteda mídia, notadamente a brasileira, re-produziu essas notícias que foram, po-rém, logo desmentidas através das re-des sociais.

Redes sociais que tiveram importan-te papel na revolta, assim como na Tu-nísia. A mídia internacional deu poucaatenção ao que acontecia na Tunísia até que o presidente fi nalmente caiu. Antesdisso, as informações eram conseguidasapenas pela internet, pelo Facebook e Twitter, as mesmas ferramentas que fo-ram as responsáveis pela organizaçãodos primeiros protestos no Egito.

Diversos grupos organizaram as pri-meiras manifestações online, e boa par-te da propaganda para o mundo – atua-lizações sobre as manifestações, conta-gem dos mortos, imagens dos protestos e da repressão – era também feita e dis-seminada pela rede.

Durante os primeiros dias de pro-testo, o regime de Mubarak bloqueouo Twitter e o Facebook e logo depoisvirtualmente cortou as conexões à in-ternet e difi cultou o uso dos telefones,transformando o Egito em um buraconegro informacional, atitude que, po-rém, não interrompeu o fl uxo de in-formações. Manifestantes encontra-ram formas diversas de fazer as notí-cias saírem sem depender das imagensda Al JAzeera, praticamente a única re-de de TV presente (e cujos jornalistasnão disfarçavam o entusiamo e o apoioàs manifestações).

As redes sociais foram, enfi m, ferra-mentas de grande importância não sóna organização mas na divulgação, pa-ra o mundo, das manifestações, com-provando o poder da rede e justifi cando o temor que líderes políticos nutrem porela e suas tentativas de controle.

Incitados pela rede, unidos pelo so-frimento e pela repressão de 30 anosde regime, os egípcios superaram o me-do e saíram às ruas para mostrar quesão donos do poder e querem ter suavoz ouvida.

Raphael Tsavkko Garcia, jornalista e blogueiro, é mestrando

em Comunicação pela Cásper Líbero e bacharel em Relações

Internacionais pela PUC–SP.

Mobilização popular online e a superação do medoANÁLISE Egito e Tunísia são, talvez, a prova de que quando o povo quer, derruba ditaduras. Ou, talvez, a prova de que as ditaduras só existem se assim quiser/deixar o povo

As redes sociais foram, enfi m, ferramentas de grande importância não só na organização mas na divulgação, para o mundo, das manifestações

Infelizmente em muitos casos a vontade da população não é tão forte, a mobilização não se sustenta e o medo toma conta

Reprodução

Balas de borracha e bombas de gás não assustam manifestantes no Egito

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américa latinade 10 a 16 de fevereiro de 201112

Pedro Carranoenviado a Santiago (Chile)

OS MURAIS DO BAIRRO Villa Fran-cia relembram que a periferia de San-tiago de Chile foi um local de resistên-cia permanente desde o golpe de 1973, que derrubou o presidente Salvador Al-lende e a experiência da Frente Popu-lar. A ditadura de Augusto Pinochet é uma encruzilhada histórica que ainda tem consequências na situação políti-ca chilena. Embora pequena, a comuna de Villa Francia teve papel importan-te na formação de militantes e veícu-los de comunicação popular desse pe-ríodo histórico.

Ali surgiu a primeira rádio popular do país. Hoje, o esforço de organiza-ções de esquerda está em somar às rá-dios comunitárias a construção de TVs populares. Cerca de 20 TVs comunitá-rias operam no Chile, seis delas ligadas a organizações de esquerda. Articulam-se dentro de uma rede maior, chamada “Rede de Meios dos Povos”, que articu-la 80 experiências de veículos de comu-nicação popular. Nesse espírito, o ca-nal comunitário TV Umbrales, em Villa Francia, convocou o “Seminário latino-americano de televisión popular Au-gusto Carmona de Acevedo”, entre os dias 21 a 27 de janeiro. Embora um te-ma em que as organizações de esquer-da América Latina começam a cami-nhar, existem exemplos signifi cativos: a TV Barricadas, ligada às fábricas ocu-padas na Argentina, e o relato da As-sembleia Popular dos Povos de Oaxaca (México), que tomou por 22 dias o ca-nal de televisão estatal, são expressões que participaram do seminário, cujo ei-xo foi o fortalecimento de redes, a gera-ção de agendas temáticas e políticas co-muns, a transferência tecnológica e as questões de fi nanciamento. “Os códi-gos audiovisuais são assimilados mui-to mais rápido pelas massas popula-res. A linguagem audiovisual é o objeti-vo prioritário dentro dos combates que vão se dar no país”, afi rma Pablo Villa-gra, diretor de TV Umbrales.

A análise política coincide em que a comunicação no continente está a serviço de monopólios. Em cada país abrem-se leis no contexto de cada go-verno, ainda limitadas. Algumas de-las permitem um primeiro espaço pa-ra os movimentos sociais. “No Chile, há uma lei que persegue os meios. Mas, no Uruguai, há uma cota de um terço do espectro para os meios populares. No Equador, com as críticas que possa ha-ver à lei de comunicação, ao menos há uma cota para produção independente. São espaços que, nós, os comunicado-res populares, não sabemos ocupar”, descreve Ernesto Pérez, um dos orga-nizadores do encontro, da TV Umbra-les. A análise da Alba TV, surgida em 2006, como plataforma de articulação, com limites e possibilidades, também foi algo mencionado no seminário.

A articulação continental torna-se ur-gente na medida em que a televisão di-gital oscila entre renovar o monopó-lio da comunicação ou abrir portas pa-ra a integração do continente. Conhe-cer os modelos e as leis na iminência de se aplicar em cada país é fundamen-tal, inclusive o modelo brasileiro. No ca-so das experiências já existentes em TV, a preocupação é quanto aos custos pa-ra a mudança de modelo. A constata-ção é de que a mudança de modelo pa-ra o campo digital é inevitável. A ques-tão para as organizações populares é o seu tempo para isso. “Os dois modelos ainda vão conviver juntos, o analógico e digital. A diferença é de custo econômi-co para o povo que faz comunicação. São questões que vão chegar em cinco anos, o que chamam de apagão eletrônico. Co-mo parte do movimento popular, deve-mos saber quais são as demandas para a integração”, comenta Villagra.

Construção de TV popularA primeira escola de TV Popular, pro-

movida pela TV Umbrales, foi concluída no fi m de 2010 e a iniciativa da TV se es-palha por outras localidades. Os organi-zadores do curso elencam que, além de acessórios como transmissor, antena e um local para transmissão, a formação de um grupo na comunidade é a vérte-bra que mantém o projeto.

É o caso de El Paine, região agrícola no entorno de Santiago de Chile. Da ex-

periência da rádio comunitária La Voz del Paine, agora a comunidade apro-veita a sua estrutura e constrói também a TV, aproveitando uma brecha jurídi-ca no Chile, que não difi culta a constru-ção desse tipo de veículo com transmis-são limitada à determinada região. Uma situação que pode mudar com a TV digi-tal e a defi nição de novo marco legal. O alcance é de mais de 40 mil pessoas, es-timam os organizadores. El Paine é pou-co povoada, ainda assim, depois do gol-

pe contra Allende, 70 pessoas, de dife-rentes idades, foram assassinadas e seus corpos desaparecidos. Um temário quepermeia uma proposta política para osmeios comunitários no Chile: combatero legado da ditadura, o neoliberalismo eo individualismo.

A linguagem e o projeto político que devem ser trabalhados com a população são um passo importante para a organi-zação de uma TV popular: “Levamos umano ao ar; os desafi os são melhorar os programas existentes e o vínculo com asorganizações sociais. Uma programaçãomilitante, revolucionária, a massa não é acolhedora deste discurso, vou ter cer-tas resistências, temos que aprender a construir a linguagem que enganchenesse processo”, explica Suzanna Ca-prilles, militante da rádio.

dispersa, fora da lógica dos partidosem jogo. “Madura um movimento so-cial por fora da esquerda partidária”,analisa Ernesto Péres da TV Umbrales.

O cobre é a principal commodity deexportação do Chile. É também o prin-cipal exemplo do saqueio de recursossofrido pelo país, desde o golpe de Pi-nochet até os dias atuais. De uma ren-da de 25 bilhões de dólares para o co-bre, 75% é controlado pelas transnacio-nais, que restringem o mercado inter-no e controlam a exportação. De cobre,passaram a exportar concentrado decobre. A estatal Codelco perdeu partici-pação na exploração do minério desdeque o presidente Allende havia nacio-nalizado o recurso. (PC)

O cobre é a principal commodity de exportação do Chile. É também o principal exemplo do saqueio de

recursos sofrido pelo país

O Chile hojeEntre o despojo dos recursos, o discurso neoliberal e a necessidade de reconstrução

Marcos de uma televisão popularCHILE No país onde o neoliberalismo não encontra projeto alternativo, organizações buscam se articular em torno de TVs comunitárias

O Canal 9 e a luta da Frente PopularAugusto Carmona Acevedo nasceu em Santiago e foi assassinado

aos 38 anos. Dirigente do MIR, foi diretor do Canal 9, ocupado du-rante o governo Allende e perdido com o golpe de 1973. Violeta Par-ra fez apresentações no Canal, sob a gestão dos trabalhadores. No pe-ríodo de mais de um ano de vida da TV ocupada, quando sofria ame-aças, Carmona convocava sindicatos, povoadores e estudantes ao Co-mitê de Defesa do Canal, ao lado dos comitês de Unidade Popular. Desde o assassinato de Acevedo, em 1977, não houve detidos pelo cri-me, informa a ex-companheira de Acevedo, a jornalista Lucía Sepul-veda Ruiz, do site Rebelión e do jornal Punto Final. (PC)

não ofereceu um projeto alternativo ao país. Derrotados nas últimas eleições, a Concertação vive fragmentações cons-tantes. Pela falta de uma alternativa à esquerda, militantes analisam que esse processo é apenas uma reciclagem para as próximas eleições. Uma mudança de discurso, e não de conteúdo.

Nas eleições de 2009, o candidato alternativo Marco Enríquez Ominami (MEO), fi lho do dirigente histórico do MIR, Miguel Henrique, obteve uma vo-tação de 20%, uma expressão de des-contentamento, embora MEO seja uma expressão individual, desligado de um processo social de mudança. As alter-nativas ao neoliberalismo chileno, por enquanto, se apresentam de maneira

de Santiago (Chile)

Após um ano do triunfo da direita chilena, expressada pelo presidente Sebastián Piñera, do partido direitista Alianza por Chile, há uma intensidade maior na perseguição contra o movi-mento popular, contra os povos mapu-ches e contra coletivos independentes, que sofreram a prisão de 14 militantes até o momento – como informa Ernes-to Pérez da TV Umbrales. “Acentua-se a repressão, há uma mudança no posi-cionamento latino-americano, e Piñe-ra se alinha com o uribismo [de Álva-ro Uribe, ex-presidente colombiano], com Alan García [presidente do Pe-ru]”, informa.

Há um período histórico maior, aber-to com o golpe de 1973 no Chile, que ainda não encontrou contraposição efetiva. A aliança Concertação, que go-vernou o partido após a saída do ge-neral Pinochet do governo em 1988,

El Paine é pouco povoada, ainda assim, depois do golpe contra

Allende, 70 pessoas, de diferentes idades, foram assassinadas e seus

corpos desaparecidos

“Os dois modelos ainda vão conviver juntos, o analógico e digital. A diferença é de custo econômico para o povo que faz comunicação”

Participantes de uma das mesas de debate do seminário realizado na sede da Federação de Estudantes da Universidade do Chile

O presidente Sebastián Piñera, alinhado com a direita chilena e latino-americana

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Gobierno de Chile