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Edição de Luxo n° 4

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Zine mensal sobre moda e cultura. Nessa quarta Edição, entrevista com Ronaldo Fraga e colaborações de @oficinadeestilo @modamanifesto @mairathums

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Moda vs. Roupa

A Edição de Luxo #4 é sobre roupas. Por mais estranho que possa soar, moda e roupa não são exatamente a mesma coisa. Roupa é todo e qualquer objeto usado para cobrir partes do corpo e, portanto, podemos dizer que existe desde os tempos de Adão e Eva.

A moda é entendida como um fenômeno surgido no fim da Idade Média e começo da Idade Moderna, coincidindo com a ascensão da burguesia. Se a roupa antes marcava a condição social e o grupo a que a pessoa pertencia, com o advento da moda ela passou a ganhar um status de diferenciação e individualização. Com a possibilidade de mobilidade de classe, o novo modelo de sociedade impôs um ritmo precipitado das frivolidades e o culto à fantasia. Dessa forma, surge o sistema moda e sua busca incessante pelo Novo.

Podemos então inferir que existe uma grande história do vestuário muito antes de existir a história da moda, o que significa que, para melhor entender a moda, precisamos entender as roupas. É por isso que, desde o primeiro número, estamos em busca dos mundos possíveis que ela é capaz de criar. Nesta quarta Edição, quem vai nos ajudar nessa tarefa são as consultoras da Oficina de Estilo, Fernanda e Cristina, que abriram seus guarda-roupas e nos contaram sobre o estilo de cada uma.

O estilista Ronaldo Fraga dividiu com a gente suas ideias a respeito da moda brasileira e do valor das peças de vestuário, em uma entrevista rápida mas cheia de reflexões. Temos ainda as meninas do Moda Manifesto falando sobre estética e semiótica dos figurinos; divagações sobre nossa relação de cada dia com as roupas; e um pouco da história da costura e da confecção. Boa leitura!

hAline Botelho & Thiago Felix

Editores

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Por Aline Botelho

Segundo o livro Histórias da Moda, de Di-dier Grumbach, a distinção entre costura e confecção é, na origem, muito sutil. As duas atividades se inseriam na mesma indústria e eram representadas, a partir de 1868, pelos mesmos profissionais. Somente em 1910 a costura se constitui em profissão autônoma e é em 1943 que a alta-costura como insti-tuição organiza a defesa dos direitos de seus membros. Ao optar por se dissociar de uma vez por todas da confecção, a costura trata de definir suas normas de funcionamento, enfatizando o luxo, exaltando a criatividade e a unicidade das peças.

A confecção se dedica, originalmente, à fabricação de roupas que necessitam de uma produção em série, os trajes profis-sionais, por exemplo. Quando o camponês se instala na cidade, cria-se um padrão de roupa econômico e simples para todo mun-do. O traje dos homens se resume a uma calça reta, um longo paletó e uma camisa com colarinho removível. Já a roupa das mulheres é composta geralmente de uma lon-ga saia drapeada no cós, caindo em grandes do-bras arredondadas e um corpete bufante. A con-fecção não é destinada à criação de peças inven-tivas e a qualidade dos tecidos é bastante ruim.

A confecção passa a ocupar um espaço mais amplo com a criação das lojas de de-partamento, que ofereciam uma moda mais criativa que a confecção que vestia os tra-balhadores e a preços inferiores aos prati-cados pelos costureiros de bairro. Assim, passa a conquistar uma grande clientela, tornando-se um grande negócio. Com a crise instaurada após a Segunda Guerra Mundial, a alta-costura perde fôlego e as indústrias especializadas em confecção se tornam cada vez mais competitivas. No fim da década de 1950, graças a Weill e Lempereur, o prêt-à-porter ganha autono-mia, com confeccionistas agora aplicando suas marcas nas etiquetas. Começou uma verdadeira revolução: libertando-se das tendências impostas pela alta-cosura, o prêt-à-porter criou seus próprios modos de funcionamento e virou sinônimo de moda como a conhecemos hoje. ►

Costura e Confecção

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Com os avanços industriais, o costureiro, e suas técnicas artesanais, foi se tornando uma figura mítica dentro do imaginário da moda. Um pouco dessa realidade pode ser vista no documentário Inútil (Wu Yong, 2007), do diretor chinês Jia Zhangke. Tra-ta-se de um filme de contrapontos entre o industrial e o artesanal. De um lado, mu-lheres trabalham em fábricas de tecidos em condições precárias para grandes marcas internacionais; do outro, uma China que ainda conserva uma produção artesanal que serve a comunidades mais pobres; no meio, uma estilista que faz um trabalho conceitual que propõe uma crítica ao mercan-tilismo da moda. De alguma forma, há um sentimento de que o trabalho manual con-serva uma aura, uma beleza singular, pois uma roupa feita artesanalmente nunca é igual à outra.

Hoje, a valorização da roupa feita a mão e de peças usadas se beneficia do momento de freio consumista e da vontade cada vez maior de diferencia-ção, afinal, a palavra de ordem da década é estilo. Se, durante a Segunda Guerra Mundial, o racionamento de tecidos obrigou as pessoas a serem criativas e fazer roupas a partir de remendos e sobras, agora, o desejo de personalização está ligado a esse novo momento da moda. A figura do costureiro é resgatada sob um novo olhar, como um agente de poder de criação único. As roupas,

por conseguinte, retomam seu valor como elemento atemporal, capaz de ressaltar e definir identidades.

Entendendo moda como algo que muda de tempos em tempos e que a roupa é capaz de sobreviver a este ciclo, fica cada vez mais claro em que sentido Yohji Yamamoto disse odiar a moda. “I may be making fashion in the sense of craftsmanship, but I hate the world of fashion. Fashion sighs after trends. I want timeless elegance. Fashion has no time. I do.”

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Por Thiago Felix

Sobre um bom modelo, sempre dizem que ele tem que valorizar a roupa. Fiquei meia hora encantado com essa ideia de uma pes-soa que valoriza a roupa, de uma pessoa que é uma espécie de cabide vivo. Sempre vemos também o outro lado da moda: gente que se destrói tentando seguir as tendências usando coisas que não lhe favorecem.

Existe então o pressuposto de que existem roupas que valorizam a pessoa e, como os modelos, existem pessoas que valorizam a roupa. É claro que as duas coisas não são incompatíveis – principalmente no caso dos modelos. Mas podemos perceber, principal-mente em nós mesmos, qual dessas duas ca-racterísticas predomina.

Pessoalmente, como apreciador de moda “como um meio de expressão que se esgota em si mesmo”, acho que valorizar a roupa está num patamar superior ao de ser valori-zado por ela, apesar de ser justamente este o propósito fundamental da roupa que se com-pra para vestir .

A pessoa que valoriza/favorece a roupa é aquela que veste a roupa bem, em vez de ser vestida por ela. Uma simples camiseta se transforma sobre aquela pessoa, uma calça se acomoda sobre aquelas pernas.

O contrário, a roupa que favorece a pessoa parece ter sido feita pra ela, um vestido in-venta um corpo melhor pra uma mulher, uma calça alonga um pouco mais a sua perna, uma cor valoriza os seus olhos.

Tentei pensar em exemplos. No mundo da moda, quando se fala em exemplo, seja lá

do que for, eu penso em Kate Moss. Des-culpem, sou fã! Acho que ela (obviamente) valoriza muito a roupa, e a acho um exemplo tão definitivo que não preciso citar uma pes-soa valorizada pela roupa, é só você pensar no contrário da Kate Moss.

Um personal stylist deve procurar roupas que valorizem a pessoa. Pensei na Rachel Zoe, nas coisas incríveis que ela faz vestindo essas mulheres de Hollywood e em como isso deve ser complicado. Ela faz coisas incríveis não só com as roupas, mas com as pessoas também (vide Keira Knightley).

Como se pode ver, ser valorizado pela roupa é uma coisa que se pode comprar. Valorizá-la a gente deixa pra Kate e pra só mais umas duas pessoas que eu conheço. Até!

P.S. Existem dias também em que você se sente em guerra com o seu guarda-roupa e preferiria sair nu valorizando a si mesmo.

Você versus A Roupa

Kate valorizando um cigarro e um fanzine

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Por Fernanda Resende

Eu tive, tempos atrás, uma crise com a moda. Com o mundo da moda, mais especificamente. É com o que eu trabalho todos os dias - com amor! - mas tem uma hora que é tanta roupa, tanto look, tanta vitrine, tanta “tendên-cia”, tanta importância... que cansa. Não tem como a gente não se vestir, ninguém pode sair pelada de casa, e ninguém quer sair feiosa (eu não quero, haha!). Além de ser obrigada a se vestir, a gente quer estar bacana - por isso se interessa, lê blogs, folheia revistas e tal. Tipo fazer exercício de abas-tecimento imagético pra aplicar na própria escolha. É pela gente mesmo, mas presta atenção se também não acaba sendo pela roupa: a peça que en-canta na arara e que vai pra casa com a gente requer atenção, precisa ser coordenada, tem que dar certo com esse ou aquele acessório. A gente ama a roupa e faz com que ela “aconteça”, de um jeito ou de outro. Mas ó: é legal também se vestir pra vida. Menos pela roupa e mais pra viver dentro dela alguma coisa muito muito muito mais legal.Eu tenho pensado nisso a cada olhada em frente ao espelho. Eu amo tudo que tenho no armário, mas to amando ainda mais levar as minhas roupas pra passear comigo pela vida - e não o contrário! Não tenho tido vontade de vestir pra “desfilar”, mas tenho tido vontade de fazer com que cada peça participe de alguma coisa tão especial na vida que carregue em si uma lem-brança (tudo na vida pode ser especial). E olha, tem sido um exercício tão querido! Pensa só que delícia escolher o que vai usar pra ir àquela exposição que dá vontade de ver há tempos, escolher o que usar num jantarzinho com os amigos no meio da semana, escolher o que vestir pra encontrar gente importante (importante assim, pro coração!). No lugar de pensar “essa roupa é incrível” eu tenho pensado “essa roupa merece viver esse momento comigo”. Pensamento que tá me servindo de guia até na hora de comprar: tô indo pro caixa menos pela peça e mais pela vida que eu quero/vou viver dentro dela.E então, depois da minha crise, esse ‘jeito de funcionar’ do mundo moda ganhou toda uma nova aplicação pessoal no meu vestir. Agora a moda é uma coadjuvante-melhor-amiga, cumprindo o papel que ela tem que cum-prir: o de companheira e não de personagem principal - essa tem que ser eu mesma, e você e todo mundo. Né?

Moda pra vida realWWWW

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Por Cristina Gabrielli

Eu acho que quem me vê andando por aí não consegue imaginar que meu sonho de infância era ser bailarina, que minha cor fa-vorita é lilás e que eu construí a minha vida pra casar com o meu amor e ser uma mãe dedicada… Minha identidade visual - um pouco masculina demais, um pouco escura demais, um pouco inacessível demais - não condiz totalmente com quem eu sou. E durante um bom tempo isso me incomodou e durante todo esse tempo eu fiquei tentando descobrir como eu ia transmitir toda essa “doçura” através do que eu vestia. Acontece que eu nunca me encontrei nos elementos visuais que usualmente transmitem essa feminilidade toda! Sempre preferi calça a saia, sempre gostei de formas, de pontas, de ângulos… Sempre fui mais “arquitetu-ra” que “decoração”, sabe!? Já criança tive o cabelo “joãozinho”, quando tive chance de ter um quarto só pra mim ele era todo azul, na adolescência achava cafona corações, laços e afins. Mas parecia que alguma coisa não casava, parecia que eu tinha que usar desses símbolos pra que os outros me enxergassem como a mulherzinha que no íntimo eu sou.Até que eu fiquei grávida e depois de noves meses eu tive a Estela e com ela veio a parte mais mulher que uma mulher pode ter: a maternidade. A relação - apenas sensorial - com aquele bebê re-dondo, cor de rosa, sinuoso me libertou!Agora mãe cortei os cabelo a la Mia Farrow, corri pra calças que não me serviam fazia um bom tempo, desisti dos saltos de-finitivamente, passei a usar brincos quase-nada, fugi do decotes, comprei uma camisa igual a do meu marido e nunca me senti tão bailarina em toda a minha vida!

Agora que eu tenho umamenina eu posso ser menino

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Considerado um dos maiores estilistas do Brasil e grande representante de uma moda genuinamente brasileira, Ronaldo Fraga lançou sua marca no extinto Phyto-ervas Fashion, em 1996. Dois anos depois, passou a desfilar suas coleções na Casa de Criadores e desde 2001 é um dos hot ti-ckets da São Paulo Fashion Week. Recente-mente, foi eleito um dos 15 representantes do Colegiado Setorial de Moda, órgão vin-culado ao Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) que tem a finalidade de formular políticas públicas para o setor de moda. Ronaldo gentilmente concedeu-nos um espaço em sua agenda atribulada para uma conversa rápida por telefone, onde falou sobre moda brasileira, identidade e a peça preferida de seu guarda-roupa.

CVocê é constantemente citado como um dos estilistas que mais contribui para uma moda genuinamente brasi-leira. O que seria uma moda brasileira pra você?

Mais do que uma moda com signos brasi-leiros, ela precisa ser feita por brasileiros e ter referências de um olhar brasileiro. Além disso, é necessário tratar com respeito e carinho os ofícios brasileiros, as fibras, as histórias que produzimos aqui e, o mais importante, trazer algo do intangível. Uma coleção de moda brasileira deve transpor-tar as pessoas para o universo do Brasil e não se trata apenas de fazer uma coleção com um tema brasileiro, isso é coisa para “inglês ver”. Eu acho que minha coleção sobre a Pina Bausch, por exemplo, é uma das coleções mais brasileiras que eu já fiz. Não só porque a Pina era uma figura apai-

xonada pelo Brasil, mas muito mais pela forma e pela composição da coleção. A moda brasileira precisa perder o medo de ser caricata, pois é do lado caricato que se pode tirar o nosso lado sofisticado. Uma vez me perguntaram se eu não tinha medo de ser caricato e eu respondi: olha pra mi-nha cara, você acha que eu com esse cabelo e esse bigode teria medo de caricato? (rs).Eu acho que ser caricato é algo urgente, é uma atitude política.

“A roupa sempre cai melhor em quem é mais inteligente, senão ela não pega a sua magia”

Qual o significado das roupas na sua vida?

A roupa pra mim é uma escrita, uma inter-pretação de texto, ela é a primeira escrita do corpo.

Nós aqui estamos sempre em busca de histórias que as roupas podem nos con-tar e acho que isso tem também muito a ver com o seu trabalho. Mas o quanto você acha que a roupa realmente re-flete a personalidade de alguém, já que a maioria das pessoas se veste mais ou menos igual?

Quando a moda entra na moda, as pessoas procuram seus pares. Acho que hoje em dia, apesar de existirem mais possibilidades de escolha, estão todos iguais. Mas as roupas estão iguais porque as pessoas pensam iguais e agem da mesma forma - a culpa é das pessoas e não das roupas. Estamos em uma época sem ideologias. Nesse contexto,

Edição de Luxo entrevista: Ronaldo Fraga

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a roupa sempre cai melhor em quem é mais inteligente, senão ela não pega a sua magia.

“A moda brasileira não tem que ter medo, ser caricato é algo urgente”

Você já fez um desfile em homenagem às costureiras a fim de mostrar o valor dessas figuras muitas vezes esquecidas no mundo da moda. Hoje em dia, com o apelo ao estilo próprio em detrimento ao seguimento de tendências, você não acha que a figura do costureiro pode voltar a ser tão importante quanto an-tigamente?

Aquele meu desfile das costureiras foi em homenagem à Dona Nilza, uma figura muito importante para mim e para a moda no Brasil. Acho que o nome dela deveria estar presente em todos os livros de moda pela sua importância histórica. As pessoas não dão mais valor a esse ofício e eu acre-

dito, inclusive, que o ofício de alfaiate está extinto. Meu objetivo era mostrar para as costureiras, rendeiras, bordadeiras do Bra-sil o seu valor.

Tem alguma peça do seu guarda-roupa que tem um significado especial pra você? Você pode nos contar um pouco da história dela?

São tantas que fica difícil escolher uma... mas acho que eu escolheria uma cabeça de Maracatu feita em Nazaré da Mata, em Pernambuco. Ela não pode ser comprada e dizem que ela não é feita para qualquer cabeça. Se a sua cabeça entrar nela, é porque ela foi feita pra você. Eu não a uso com medo de estragar, mas adoraria sair com ela em um evento Black Tie.

Por fim, o que podemos esperar da sua próxima coleção?

Como sempre, um olhar de afeto sobre o Brasil.

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Por Ana Carolina Acom

Hans Christian Andersen escreveu “As No-vas Roupas do Imperador”. Nessa história, o Imperador foi enganado, se manteve nu com medo que pensassem que não era inteli-gente, assim como sua corte que elogiava suas roupas “invisíveis” com receio de serem taxa-dos de ignorantes. O esperto tecelão foi quem enganou o Imperador, lhe mostrando a belís-sima fazenda que só as pessoas inteligentes enxergavam. O Imperador, então, desfilou nu e seus súditos de repente desataram a rir, foi quando ele se deu conta de que havia sido en-ganado. As roupas falam por quem as veste, são a forma visual de manifestação do Eu. E só quem não é seguro de sua identidade abre mão desse direito de comunicação, se sujeita ao ridículo, com medo que pensem que não é “inteligente”. No mundo da moda, chama-mos pessoas como o Imperador de “fashion victims”.

As roupas podem ser consideradas signos, pois segundo Peirce o signo deve representar algum objeto. Neste caso, o objeto que a roupa deve representar é o sujeito que a veste, algo de sua identidade ou mesmo sua localização no tempo e espaço. Por exemplo: ao vermos gravuras de Abraham Bosse de 1629 a 1636, sem ter delas qualquer referência, associa-mos seus indivíduos aos Três Mosqueteiros, situando-os, assim, na França do século XVII. Outro exemplo bastante claro de as-sociação imediata é o caso dos uniformes: ao mesmo tempo em que podemos identificar rapidamente a ocupação de um indivíduo através dele, o uniforme também pode sig-nificar tolher sua expressividade individual pela roupa. Alison Lurie em A Linguagem das Roupas refere-se a esta indumentária: “A

forma extrema de roupa convencional é o tra-je totalmente determinado pelo outro: o uni-forme. Independente do tipo – militar, civil ou religioso; a roupa de um general, de um carteiro, de uma freira, de um mordomo, de um jogador de futebol ou de uma garçonete, vestir uma dessas fardas é abdicar o direito de agir individualmente – em termos de discur-so falado é estar, parcial ou totalmente, sob censura.”

Ao entrar em contato com pesquisas sobre figurino e com quem produz esta arte, per-cebemos que a relação semiótica de interpre-tar as vestes é ainda mais clara e apaixonante. A construção de um figurino deve fazer o caminho inverso: ao invés de lermos na indu-mentária a personalidade de um indivíduo, partimos de todas as características deste in-divíduo expressas na literatura ou em roteiro para criar e interpretar o que simbolizará sua identidade e características mais marcantes. A vestimenta de um personagem deve trans-mitir e simbolizar a sua essência já estabele-cida por um autor.

Dessa forma, a intersecção inevitável de semiótica e figurino completa ainda mais a ideia de aproximar a moda e a arte através da experiência estética. Pois, é possível ver a moda, em seu percurso histórico, nas cria-ções de estilistas excêntricos ou mesmo na mais admirável modelagem de um vestido, com o mesmo “olhar” ou “espanto” de quem admira uma obra de arte. E se o objeto de arte estiver entre as artes cinematográficas, teatrais e performáticas, teremos a indumen-tária como parte concreta e significativa de algo capaz de provocar um prazer único des-pertado pelo belo.

Moda, Semiótica e Experiência Estética

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Por Carolina Citton Puccini

Desde o início da cultura humana, a deco-ração corpórea e os artefatos usados para a ornamentação fornecem possiblidades de significação. Quando se estuda a história da indumentária e, consequentemente, da moda, pode-se observar que a simbologia sempre esteve presente na construção das roupas. Flügel, em sua Psicologia das Roupas, propôs que os trajes exercem 3 funções: de-coração, pudor e proteção. Em qualquer uma das três, as roupas são carregadas de signifi-cados perante a sociedade e perante a própria personalidade de quem as veste. O figurino, da mesma maneira, é composto por todas as roupas e acessórios que os personagens usam, seja em filme, peça de teatro, novela ou outra manifestação artística. Sua função é caracte-rizá-los tanto física quanto psicologicamente. Mais do que apenas colocar uma roupa de lã quando a cena se passa no frio, o figurino é responsável pela materialização, através das roupas, dos sentimentos, ideias e valores do personagem em questão.

Entre todos estes pormenores de confeccio-nar o figurino, temos um termo muito usado entre os profissionais da área: a vivência. Esta se dá de duas formas. A primeira é na feitura da roupa. Pode estar embebida já no próprio tecido escolhido, por este ser muito antigo, ou por ser parte de uma roupa já de época, garim-pada em algum brechó ou herança de família. Ou então, se o tecido é novo, com a roupa já costurada, começa-se a tecer essa vivência, desgastando a roupa em determinadas partes, sujando-a, desfazendo algumas costuras ou arrancando um botão propositadamente. A segunda forma de vivência dá-se por meio do corpo do ator. O ideal é que o ator receba o figurino alguns dias, ou semanas, se possível, antes das gravações/apresentações, para que já utilize a indumentária em seus ensaios. Assim, ele colabora para a vivência do traje

tanto pelo constante uso, como pela incor-poração daquele personagem, que torna-se completo ao estar devidamente vestido com seu figurino.

Colado ao corpo do ator, o figurino participa sempre da ação, e é desta forma que podemos descobrir o corpo do personagem. Um auxilia o outro a encontrar sua identidade. A partir do momento que participa da construção des-sa personalidade, o figurino transmite men-sagens para o público. Rosângela Cortinhas acredita que o figurino é um objeto ambíguo, que não corresponde à descrição habitual que coloca o real de um lado e o místico de outro, mas sim, traduz um para o outro, tendo em vista que é um sistema de signos. Em seu texto “Referência e significação no traje de cena” (2006), ressalta: “Ligado a toda cultura visual e a eventos paralelos, o vestuário enca-deia uma conexão entre usos e costumes. (...) ele é um dos elementos de onde se pode ter certeza que a trama está clara e que ficamos todos, personagem e espectador, mais próxi-mos uns dos outros.”

Para todos envolvidos no processo de um es-petáculo (diretor, equipe, atores e público), o figurino é um argumento, uma forma de raciocínio pelo qual é possível fazer deduções e tirar consequências. Ao mesmo tempo, ele consegue ser real e irreal. Real a partir do mo-mento em que empregamos materiais como tecido, linhas, cores, superfícies e ainda ab-sorve todas as questões de uso individual, como medida da roupa, funcionalidade, ma-nias pessoais do ator e também os custos desse material. É também irreal uma vez que possui a função capital da ilusão e da transposição. É uma atividade de transformação na qual há uma passagem da estrutura tecnológica para a estrutura simbólica, porque ele é parte de um ritual - uma imagem de conciliação entre o real e o imaginado.

O Figurino como Ligação entre a Atuação, o Público e a Realidade3 3

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Desapego: para muitas pessoas, essa é uma palavra que não combina com roupa. Quem realmente gosta de emprestá-las? E, entre os que pegam emprestado, quem gosta de de-volver uma roupa de que gostou? Por questões muitas vezes práticas, as roupas não costumam ser compartilhadas; não é comum com-prar uma roupa para dividir com alguém. Roupa é um objeto muito adequado às nos-sas noções de pro-priedade.

Cada pessoa no mundo equivale a um guarda-rou-pa inteiro. Para cada corpo que vemos na rua, sabemos que exis-te um conjunto de roupas que a ele per-tencem (ou ao qual ele pertence). Diferente-mente das casas, apar-tamentos e fazendas, as roupas normalmente não passam dos pais para os filhos. O que acontece en-tão com aquele conjunto que lhe servia tão adequadamente? Trata-se de um guarda-roupa perfeitamente aprovei-tável (você há de concordar), mas por quem?

Muita gente tem medo de usar roupas que pertenceram a pessoas que já estão mortas.

Pelo que sei, em geral, as roupas do defunto são doadas àquelas pessoas que não estão em condições de negar: moradores de rua. Deve ser por isso que há tantos mendigos elegan-

tes, alguns bem mais que pessoas mais abastadas - digo com

sinceridade.

Há no Orkut a co-munidade Men-digos Nouvelle Vague, em ho-menagem a este belo exemplar da fauna urbana. Recentemente, houve ainda grande burburi-nho em torno do homeless chic. As sobreposições, o charme vintage

e a pobreza como elemento estético

encontram no mo-rador das ruas o seu

grande ícone.

Pra mim, a grande lição do mendiguismo é

“fique com as roupas dos seus avós” ou “brechós são

as lojas de roupas mais legais e emocionantes do mundo”.

Acho que os espíritos (se existirem) não vão ficar muito preocupados em recu-perar aquela calça que tinha uma caimento bom, então sinta-se livre pra fazer o mundo continuar girando. Quem sabe a morte não lhe cai bem?

A morte lhe cai bemPor Thiago Felix

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Maíra Thums

Começa com o fio da trama no primeiro ato. E a cena só continua

conforme o tecido vai se desenhan-do no corpo, camada por camada,

como acariciado por um pincel que costura no laço e no traço. Vestir a própria pele quando em deter-minado estado se estica, arrepia, aquece, mantém contato, afasta –

só aproxima.

Seja do outro, de si, de todos, ou até do nada, por suas formas, cur-vas, eixos que se encontram e en-caixam, estendem o sentir secreto

para o sentir concreto.

Misturar as proporções com arre-mates fazendo da imagem o reflexo

da própria vontade, o desejo de existir sólido e cromático. Lamber das solas aos cabelos um contorno embrionado dia após o outro para revelar a ternura sincera no ato de

vestir.

Ato e desato

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Sobre os autoresAline Botelho e Thiago Felix se conheceram na faculdade de jorna-lismo, onde descobriram um interesse comum por moda e cultura pop. Separadamente, trabalharam em editorias de moda e cultura; juntos, cobriram a temporada Verão 2010 para o site Erika Palo-mino. Desde 2008, publicam seus escritos no blog Duo de Luxo (http://duodeluxo.wordpress.com), dedicado a explorar a moda como fenômeno cultural. Cansados da mesmice da blogosfera, re-solveram lançar uma publicação impressa, a Edição de Luxo.

Editoria e RedaçãoAline Botelho e Thiago Felix

Projeto gráficoDiego Almeida ([email protected])

Ilustração Coco ChanelVeridiana Scarpelli (http://donamargot.blogspot.com)

Colaboração de TextoFernanda e Cristina (http://oficinadeestilo.uol.com.br)As Carolinas (http://modamanifesto.com)Maíra Thums (http://mairathums.com)

Sugestões, críticas, dúvidas, pedidos de envio, escreva para: [email protected]

Siga-nos no twitter: @edicoesdeluxoAcesse: http://edicaodeluxo.tumblr.com

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