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São Paulo 2011 REVISTA BRASILEIRA DE

Edição Nº 18 - São Paulo, 2011

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Revista Brasileira de Literatura Comparada

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São Paulo2011

REVISTA BRASILEIRA

DE

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Diretoria A B R A L I C 2009-2011

Presidente Marilene Weinhardt (UFPR)

Vice-presidente Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

1º Secretário Benito Martinez Rodriguez (UFPR)

2º Secretária Silvana Oliveira (UEPG)

1º Tesoureiro Luís Gonçales Bueno de Camargo (UFPR)

2º Tesoureiro Maurício Mendonça Cardozo (UFPR)

Conselho Fiscal José Luís Jobim (UERJ, UFF)

Lívia Reis (UFF)

Sandra Margarida Nitrini (USP)

Helena Bonito Couto Pereira (Universidade Mackenzie)

Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto)

Carlos Alexandre Baumgarten (FURG)

Rogério Lima (UnB)

Sueli Cavendish de Moura (UFPE)

Suplentes Adeítalo Manoel Pinto (UEFS)

Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,

Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,

Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,

Yves Chevrel.

A B R A L I CCNPJ 91.343.350/0001-06Universidade Federal do ParanáRua General Carneiro, 460, 11.o andar80.430-050, Curitiba - PRE-mail: [email protected]

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REVISTA BRASILEIRA

DE

ISSN 0103-6963

Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.18 p. 1-247 2011

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2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa rada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editor Luís Bueno

Organizador Luís Bueno

Comissão editorial Marilene Weinhardt

Luiz Carlos Santos Simon

Benito Martinez Rodriguez

Silvana Oliveira

Luís Bueno

Mauricio Mendonça Cardozo

Preparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas

Diagramação Rachel Cristina Pavim

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991- v.1, n.18, 2011

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005 CDU 82.091 (05)

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Sumário

Apresentação Luís Bueno 7

Artigos

Forma imanente e história na crítica literária de Lukács, Candido e Schwarz Irenísia Torres de Oliveira 11

A formação vista desde o sertão Luís Augusto Fischer 41

O escritor e o crítico (lições de mediação) Salete de Almeida Cara 73

Leituras de O cortiço (notas para um público estrangeiro) Paulo Franchetti 87

Candido, leitor de Rosa: crítica e crítica (do) por vir Sérgio Luiz Prado Bellei Claudia Campos Soares 97

“Atroadas de máquinas, motores, estrugidos”: lírica e sociedade na poesia de Joaquim Cardozo Hermenegildo Bastos 115

Poesia itinerante do Trem da Serra Antônio Marcos V. Sanseverino 143

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Impasse e conciliação: a posição do homem livre pobre em O tronco do ipê Fernando C. Gil 169

A trajetória dos migrantes nordestinos em Graciliano Ramos, Dias Gomes e Ivan Ângelo Belmira Magalhães Lígia dos Santos Ferreira 201

Melodrama e alegoria em Valêncio Xavier Ângela Maria Dias 221

Pareceristas 241

Normas da revista 243

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Apresentação

Nas atividades desenvolvidas pela Associação Brasi-leira de Literatura Comparada já há 25 anos, a tradição crítica brasileira que foca sua atenção nas relações entre forma literária e estrutura social tem tido lugar constante. A proposta deste número da Revista Brasileira de Literatura Comparada foi colocá-la em posição central.

O resultado é um conjunto de textos significativos, que se dividem em dois grandes blocos. O primeiro deles, de caráter mais amplo, é composto por trabalhos que orbitam, como é natural, em torno da obra de Antonio Candido, mas com o sentido de repensar a tradição crítica brasileira a partir dele, e não como mera repetição. É para a renovação de uma tradição que se aponta.

Abre esse bloco “Forma imanente e história na crítica literária de Lukács, Candido e Schwarz”, de Irenísia Torres de Oliveira, que enfrenta a tarefa difícil de sintetizar as diferenças do pensamento de Lukács entre a escrita de A teoria do romance e os textos da década de 1930, para em seguida articulá-los com as obras de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Com essa operação crítica, a autora compõe o retrato menos de uma filiação crítica do que de um exercício comum de constituição de uma tradição que não se restringe às fronteiras nacionais da análise da articulação entre forma literária e estrutura social.

Em “A Formação vista desde o sertão”, Luís Augusto Fischer considera, desde dentro, os pressupostos e des-dobramentos da Formação da literatura brasileira. Num gesto crítico de simultâneos adesão e questionamento, a partir da ideia de que uma obra forte acaba gerando sua própria chave de leitura, ele procura investigar o

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conceito de “formação” desnaturalizando a própria noção de Brasil (entre outras) sobre a qual se assenta. O resultado é uma proposta instigante de repensar e fortalecer a tradição formativa.

“O escritor e o crítico”, artigo de Salete de Almeida Cara se constitui num trabalho original que toma como objeto, a ser analisado também desde dentro, as notas de um curso dado por Antonio Candido em 1975 sobre o na-turalismo, exatamente o período em preparava sua leitura fundamental de O cortiço, de Aluísio Azevedo. Assim, ao mesmo tempo que se instaura como testemunho de um momento importante da reflexão de Antonio Candido, converte-se em visada crítica pessoal, inscrito nas recentes discussões da autora sobre o naturalismo.

O artigo de Antonio Candido sobre O cortiço é o foco central de interesse de “Leituras de O cortiço”. Além de estabelecer uma breve história da recepção crítica ao romance de Azevedo, Paulo Franchetti se debruça sobre a leitura de Antonio Candido com o fim de estabelecer uma crítica metodológica à leitura alegórica do país por ele empreendida. Ao final, propõe, em seu lugar, a visão de que em seu romance mais conhecido, Azevedo constroi uma visão radicalmente pessimista do Brasil.

Fechando este primeiro bloco temos “Candido, leitor de Rosa”, de Sérgio Luiz Prado Bellei e Claudia Campos Soares. Aqui os autores retomam a pequena mas significativa produção crítica de Antonio Can-dido sobre Guimarães Rosa para, a partir da abertura que nela encontram, sugerirem a necessidade de sua superação, num contexto mental em que a crítica li-terária se questione acerca da hegemonia da noção de “interpretação fechada”.

No segundo bloco, estão reunidos cinco textos que se dedicam à prática da análise da relação entre forma literária e estrutura social em autores e textos específicos.

Os dois primeiros tratam da lírica. Hermegildo Bastos, em “‘Atroadas de máquinas , motores, estrugidos’: lírica e sociedade na poesia de Joaquim Cardozo” analisa detida-

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Apresentação 9

mente dois textos do poeta pernambucano, “Canção de uma espera sem fim” e “Canção que vem por um caminho”. A partir dessa análise, estabelece uma leitura geral para o conjunto a que pertencem esses poemas específicos, as “Canções Sombrias”. Dessa maneira, localiza uma poética fundada na contradição que encena a contradição maior da lírica moderna: dizer o mundo ao dizer de si mesma, numa recusa que é intervenção no real.

Antonio Sanseverino parte da consideração do livro Trem da serra de Ernani Fornari, nomeadamente do tra-tamento dado às marcas “mecânicas” da modernização por meio da incorporação do trem e do automóvel. Com um olho no poeta gaúcho e outro nos poetas modernistas canônicos – Mário, Oswald, Bandeira – Sanseverino sugere um deslocamento de nosso olhar sobre a poesia modernista brasileira em sua totalidade.

A prosa de ficção brasileira é o tema dos três artigos que fecham este número. Em “Impasse e conciliação: a posição do homem livre pobre em O tronco do ipê”, Fernando Gil discute a forma como Alencar convoca para sua obra um problema central da sociedade bra-sileira, a relação de dependência, especialmente aquele manifestado na precariedade do homem livre pobre. Acompanha os movimentos da trama e aponta como a tensão derivada dessa condição social específica se cria e se dissipa no interior da obra.

Uma outra figura central da sociedade brasileira, o migrante, é o tema a partir do qual Belmira Magalhães e Lígia dos Santos Ferreira, em “A trajetória dos migrantes nordestinos em Graciliano Ramos, Dias Gomes e Ivan Ângelo” mobilizam um método que se vale da noção de que a oposição não implica, vistas para examinar um corte temporal generoso da história literária brasileira – um arco que vai da década de 1930 ao anos 1970 – e discutir como estrutura social se converte parte integrante e irredutível da forma literária.

Em “Melodrama e alegoria em Valêncio Xavier”, Ângela Maria Dias parte do Walter Benjamin do Drama

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barroco alemão para mostrar como, por meio de recursos aparentemente “antiquados”, no livro Crimes à moda antiga, Valêncio Xavier faz um retrato contundente da sociedade brasileira contemporânea.

Luís Bueno

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Forma imanente e história na crítica literária de Lukács,

Candido e Schwarz

Irenísia Torres de Oliveira*

resumo: N’A teoria do romance, de Lukács, o romancista é um criador de formas. Ele deve ser capaz de, pelas virtudes da forma, engendrar a totalidade a partir dos elementos de um mundo fragmentado. Este artigo procura pensar, focando o exercício da crítica, a influência das concepções de forma na análise e julgamento das obras literárias, n’A teoria do romance e em alguns ensaios de Lukács nos anos 30. A seguir, estende a discussão para ensaios críticos de Antonio Candido e Roberto Schwarz, para mostrar que eles atuam, até certo ponto, num mesmo campo de problemas relacionados, mas que os brasileiros, talvez pelas dificuldades de abordar a situação social, cultural e ideológica local, trabalham com uma noção de forma literária a um só tempo mais particularmente histórica e mais autônoma que as referências disponíveis.

palavras-chave: Georg Lukács, Antonio Candido, Roberto Schwarz.

abstract: In Lukács’ Theory of the Novel, the novelist is a creator of forms. He must be able, by means of forms, to engender a totality from the elements of a fragmented world. Focusing the exercise of criticism, this article aims to show the influence of conceptions of form in analysis and judgment of literary works, in the Theory of the Novel and in some essays of Lukács in the thirties. Then, the discussion is extended to the criticism of Antonio Candido and Roberto Schwarz and concludes that the three critics move, to some extent, in the same field of interrelated problems, but also that the Brazilians work with a conception of literary form, which is at once more particularly historical and more autonomous than the available references.

keywords: Georg Lukács, Antonio Candido, Roberto Schwarz.

* Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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Roberto Schwarz diz, no início do ensaio sobre a “Dialética da malandragem” de Antonio Candido, que “o básico da crítica marxista está na dialética de forma literária e processo social”, ao que acrescenta: “palavra de ordem fácil de lançar e difícil de cumprir.” (SCHWARZ, 1987, p. 129). Realmente, estudos dialéticos não são fáceis de fazer. Talvez porque não exista nada como um modelo para eles, pois cada nova obra pede outros pon-tos de abordagem, outras formas de pensar e expor. São, portanto, estudos sem garantias prévias, cujos fracassos dificilmente se deixam disfarçar e que exigem do crítico uma combinação afinada de rigor e imaginação. Talvez por isso o primeiro livro a tentar analisar obras individuais de um ponto de vista dialético, embora ainda não marxista, A teoria do romance, de Georg Lukács, seja um estudo cheio de atenções às rigorosas exigências da forma e aos riscos, às vezes milimétricos, que elas correram até atingir (as que lograram atingir) uma verdadeira forma épica. Alguma coisa desse sentimento de um risco iminente corrido pelas obras transmite-se ao próprio estudo, que busca lhe fazer face pela máxima concentração e agilidade.1

A teoria do romance é um livro controverso, que foi renegado pelo próprio autor e resgatado por outros. Lukács, no prefácio de 1962, fala dele quase como do livro de outra pessoa, reconhece alguns de seus méritos e conclui que ninguém deveria tomá-lo para orientar-se. Embora seus resultados não sejam tão consideráveis quanto os proble-mas que propõe, a mistura de rigor e liberdade que o livro exercita é uma espécie de gesto constitutivo do ensaio dialético. Para Fredric Jameson, a riqueza do livro estaria principalmente no quadro especulativo que ele articulava, coerente com a reflexão de toda a vida do autor sobre o valor epistemológico da narrativa em sua relação com a realidade, superior mesmo a formas de conhecimento mais abstratas (JAMESON, 1974, p. 163; 178). No nível formal, A teoria do romance seria um livro irrepreensível, que só perdia quando acoplava à consideração da forma um elemento de conteúdo, uma teoria do herói. Esta apontava

1 No estudo positivista total, de procedimento paralelístico, tudo é certeza; no relativista total, tudo é incerteza. Por isso nenhum sentido de risco de fracasso perpassa esses tipos de estudo. O primeiro vai do tudo ao tudo; o outro vai do nada ao nada. O fracasso do sentido no relativismo é uma certeza, por isso não há nele propriamente o sentimento de um perigo, mas antes a reiterada constatação de uma perda vivida em abstrato.

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desde o início para uma trajetória definida, o retorno do indivíduo a si mesmo, a volta para casa, a reconciliação, que, segundo Jameson, contradiziam a liberdade da forma de se relacionar com a existência. A contradição entre forma e conteúdo lançava desconfiança sobre os resultados do livro (JAMESON, 1974, p. 178-179).2 Em vista disso, o objetivo do presente artigo é pensar, focando o exercício da crítica, de que maneira a consideração da forma influenciou na análise e julgamento das obras literárias abordadas n’A teoria do romance e em alguns ensaios de Lukács dos anos 30. Depois, estende-se essa discussão a alguns ensaios crí-ticos de Antonio Candido e Roberto Schwarz, para pensar as diferentes soluções propostas nas análises, bem como as várias questões de forma e método surgidas na busca mesma de explicar as complexas e nem sempre evidentes relações entre literatura e sociedade nas obras.

Na teoria proposta por Lukács, no livro de 1916/1920, a forma épica, para consumar-se, apresentava exigências estruturais. Ela pressupunha a constituição de uma totali-dade capaz de superar os limites entre indivíduo e mundo, entre ideia e ação, entre valor e vida, entre dever ser e ser. A mais antiga e completa realização dessa totalidade podia ser encontrada na epopeia grega, na qual as ações tornavam concretas as ideias em um mundo pleno de sentido. Isso significava que os valores de uma narrativa não precisavam ser declarados nem sequer pensados pelos personagens, pois poderiam ser depreendidos de suas ações e destinos, ou seja, seriam imanentes. O declínio da epopeia, da narrativa heroica, era o sinal da dificuldade mesma de representar o mundo pleno de sentido, ou seja, o mundo que realizava os valores e dava sentido aos destinos individuais. O romance era a forma narrativa desse mundo que já não garantia a realização do indivíduo, e no qual, portanto, agir significava amadurecer. Por isso, na frase já bem conhecida, Lukács declara: “O romance é a forma da virilidade madura” (LUKÁCS, 2000, p. 130). O herói problemático, buscan-do valores autênticos em um mundo degradado, saía “do opaco cativeiro da realidade simplesmente existente” rumo

2 “The great richness and suggestiveness of the Theory of the Novel result more from the problems its speculative framework permits it to raise than from the solutions it offers. In the first place, there is in it a contradiction between form and content which ultimately casts doubt on its conclusions.” (JAMESON, 1974, p. 178).

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a si mesmo. Esse processo constituía a forma interna do romance (p. 82). Diferentemente da epopeia, que colhia uma totalidade anteriormente amadurecida no mundo, o romance apresentava uma totalidade apenas proposta. Contudo, assim como na epopeia, “essa totalidade só é um retrato verdadeiro da vida na medida em que [...] a idéia que lhe é inerente com imanência é apenas a da própria existência, a da vida em geral” (2000, p. 133).3

Esse breve resumo – incompleto, sem dúvida – ajuda a deixar algumas ideias presentes, para a comparação que gostaria de fazer entre as análises de Lukács nesse livro teórico e depois nos ensaios dos anos 30. As mudanças que ocorrem de um para os outros lançam luz sobre o que está em jogo nessas análises e julgamentos, em termos da compreensão do relacionamento entre literatura e socie-dade e do campo de atuação da crítica.

Na segunda parte d’A teoria do romance, Lukács ana-lisa obras que teriam logrado alçar-se a essa forma épica, ou seja, que teriam conseguido engendrar dos fragmentos do mundo, e superando as dualidades do pensamento, uma totalidade. A análise dos romances está dividida em grandes tipologias: o idealismo abstrato, o romantismo da desilusão e o romance de aprendizagem. Como exemplos de formas épicas bem-sucedidas, tem-se, na primeira tipo-logia, o Dom Quixote e os romances de Balzac; na segunda, praticamente o único exemplo é A educação sentimental, de Flaubert, ao qual está ligada a importante reflexão, depois retomada por Walter Benjamin, sobre o tempo como ele-mento constitutivo do romance; e na terceira, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, que aparece como síntese das outras duas tipologias. A análise dessas obras, muito diferentes entre si, mostra um conceito de forma mais flexível do que o que Lukács adotará a partir dos anos 30, mas a adesão ao marxismo por si só não ex-plica a mudança. Na verdade, aqui temos uma via de mão dupla, porque as mudanças nas concepções estéticas de Lukács também podem ajudar a entender o seu marxismo. Sem pretender aprofundar esse tema, gostaria apenas de

3 Como vimos antes, para Jameson, nessas duas últimas postulações havia uma contradição. A forma interna proposta por Lukács, a volta do herói a si mesmo, seria incompatível com a descrição da forma do romance como um processo sem diretrizes prévias, no qual nenhum valor preconcebido seria imposto à existência, à “vida em geral” (JAMESON, 1974, p. 179).

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indicar que o crítico fez escolhas que dialogavam tanto com a nova visão materialista adotada quanto com antigas perguntas presentes em seus ensaios. Do primeiro momento para o seguinte, nos anos 30, Lukács reformulou análises e julgamentos, em três direções: a) continuou valorizan-do positivamente alguns autores, como Cervantes (Dom Quixote), Balzac, Goethe, Tolstoi, Dostoiévski, por motivos diferentes; b) passou a julgar negativamente outros, como no interessante caso de Flaubert; e c) continuou julgando negativamente Sterne, Jean Paul e Zola, também com novas justificativas.

As mudanças nas análises e avaliações de Balzac e Flaubert, especialmente, revelam as alterações na concep-ção de forma do crítico. N’A teoria do romance, Balzac rece-be um tratamento muito menos privilegiado que Flaubert, embora Lukács reconheça na obra deste a realização de uma verdadeira forma épica. A obra de Balzac está situada na tipologia do idealismo abstrato, a mesma do D. Quixo-te, aquela em que a alma se estreita e toma um “caminho reto e direto para a realização do ideal” (LUKÁCS, 2000, p. 100). Para o crítico, a ideia imanente nos romances de Balzac era a da própria inadequação ao mundo, o “demo-nismo subjetivo-psicológico”, que impulsionava todos à ação. Por mais heterogêneos que fossem os caminhos e destinos dessas almas solitárias, agindo umas ao largo das outras em um labirinto intrincado, o valor que se realizava na “grande concentração novelística dos acontecimentos” era o do próprio demonismo.

Como se vê, não há nenhuma menção aos desejos e valores que movem essas personagens ou a como, espe-cificamente, elas se chocam com o mundo. O conteúdo histórico concreto de suas aspirações e dos obstáculos que a elas se antepõem não parece ser relevante para a análise da forma, que pode permanecer em um nível mais abstra-to. Efetivamente, a análise detém-se na possibilidade de consumação de uma forma épica, que supera as dualidades, mas nem por isso tem o poder de tornar evidente o sentido expulso do mundo.

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A partir dos anos 30, Lukács desenvolve uma teoria do romance estreitamente vinculada com uma noção de realismo. Este se torna a forma interna do romance por excelência e implica não uma cópia fotográfica do mundo, nem mesmo uma apreensão naturalista da vida social, mas uma série de pressupostos formais, entre os quais refiro alguns mais importantes: o ponto de partida em uma situ-ação social concreta, a escolha dos personagens entre os que melhor pudessem desvelar, em suas vidas e com suas ações de indivíduos, as relações petrificadas no capitalismo; a perspectiva a partir de uma visão de mundo que obrigasse à coerência ideológica; a predominância da ação como procedimento narrativo, em detrimento da descrição ou da alegoria; o encadeamento lógico preciso e convincente entre as ações. A ação ganha aqui uma importância central. Ela e só ela era o mecanismo que desmascarava as ideolo-gias e recompunha o sentido por trás da aparência reificada do mundo. O valor desse tipo de narrativa e o modelo de tal procedimento de análise podem ser encontrados n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx. Neste, o momento decisivo, que empurra todos à ação, é também o momento da verdade, no qual as verdadeiras posições tornam-se evidentes e dissipam a confusão dos discursos e a falsidade das aparências. Da mesma forma, esperava-se do grande realista que ele soubesse intuir entre os atores e situações presentes aqueles que pudessem conduzir a narrativa a um momento decisivo, no qual todas as máscaras cairiam e as verdadeiras posições seriam reveladas. O crítico devia saber reconhecer e apontar nas obras o seu realismo, ou seja, os mecanismos que lhes permitiam narrar e revelar as relações reificadas na sociedade capitalista.

O ensaio de 1935, sobre As ilusões perdidas, inicia-se com a seguinte afirmação: Balzac “criou nessa obra aquele novo tipo de romance que representa como o falso conceito da vida, necessariamente criado pelo homem da socieda-de burguesa, desaba miseravelmente ao chocar-se com a brutal prepotência da vida capitalista” (1968, p. 101). Ele não era mais um tipo do idealismo abstrato. Era um

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romance da desilusão burguesa, assim como o D. Quixote representara a destruição das últimas ilusões feudais. É bastante compreensível que a ênfase dada à ação nesse momento privilegie os romances do idealismo abstrato, que se caracterizavam n’A teoria do romance justamente por seus personagens lançarem-se obstinadamente ao ideal, por desejarem realizar objetivos concretos no mundo e sofre-rem um choque de “pura imanência”, ou seja, um choque impingido pelo mesmo mundo que punham à prova com suas ações e projetos individuais.

A análise do romance de Balzac segue a noção de realismo referida acima. N’As ilusões perdidas, via-se pela primeira vez, e de modo completo, como a economia do capitalismo “levava os ideais burgueses a uma trágica disso-lução”. Balzac não teria sido o único a enfrentar o assunto. Antes, outros já o haviam tratado, como Stendhal, em O vermelho e o negro, e Musset, em Confissão de um filho do século: “O argumento estava no ar: e não em virtude de um modismo literário, mas porque era produto da evolu-ção social da França, o país-tipo da evolução política da burguesia” (1968, p. 102). As obras de Stendhal e Musset encarnaram problemáticas relacionadas ao esgotamento das energias da revolução. Contudo, os romances de Balzac enfrentaram, ainda mais que elas, as situações relacionadas à ascensão do capitalismo. As ilusões perdidas eram um po-ema tragicômico que tratava da “capitalização do espírito” (p. 103-104). Seu assunto era o da mercantilização da literatura no capitalismo, cuja amplitude (desde a fabri-cação do papel até o sentimento lírico) “determina […] as formas da construção artística” (p. 104-105). A escolha dos personagens, David Séchard e Lucien de Rubempré, o contraste entre eles, suas diferentes reações diante das pressões capitalistas, mostravam a genialidade de Balzac já nesse primeiro esquema fundamental de composição (p. 105). David Séchard trilhara o caminho da “resignação, segundo o qual somente aquele que se afasta das intrigas do capitalismo pode viver em paz”; Lucien, ao contrário, reunia em si “talento poético e fraqueza humana”, “fraque-

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za e ambição”, e com isso tornara-se um joguete das forças capitalistas. As mesmas características que lhe permitiriam a rápida ascensão também eram as responsáveis por sua rendição moral e derrota inevitável. D’Arthez, quase um autorretrato, encarnava o que Balzac desejava da litera-tura. Já Rastignac, o arrivista sem abismos nem fraquezas, representava outra “mistura de talento e imoralidade”, a disposição de utilizar a mesma realidade em proveito próprio. As diferenças de personalidade e raios de ação dos personagens recobriam o campo das possibilidades de realização no mundo capitalista. Mas o princípio unificador de todas essas vidas era o processo social. “O verdadeiro princípio que, em última análise, determina a unidade do romance é o processo da evolução social. A verdadeira ação do romance consiste na ascensão e no triunfo do capitalismo” (p. 108).

O efeito complexo do conjunto correspondia comple-tamente à realidade objetiva, que nós, com os nossos vícios de pensamento abstrato, não estaríamos em condições de exprimir. Por isso mesmo, quanto mais o método de Balzac aproximava-se da realidade, mais se afastava da descrição direta, habitual da realidade objetiva. Ele seria muitas vezes considerado exagerado e desconcertante, mas afastava-se da reprodução da realidade média justamente pela profun-didade de seu realismo4 (LUKÁCS, 1968, p. 116-117).

No final do ensaio, o crítico faz uma comparação de Balzac com os sucessores, semelhante à encontrada no ensaio “Narrar ou descrever?”: o escritor realista era diferente destes porque nos mostrava o processo de for-mação do capitalismo, enquanto os autores do período seguinte, como Flaubert, encontravam-se já diante de um fato consumado. Suas obras consistiam num “luto lírico e irônico”: “o furor da luta contra a depravação abandona o posto a uma ironia impotente e altiva que ataca pelos flancos”. Os escritores que vieram depois “representaram um rebaixamento do nível artístico atingido por Balzac; mas do ponto de vista social e histórico, esse rebaixamento era inevitável” (p. 121).5

4 “O elemento fantástico em Balzac deriva apenas do fato de ele meditar profundamente nas leis da realidade social, alçando-se acima dos limites da vida do dia a dia, e mesmo acima da própria realizabilidade.” (LUKÁCS, 1968, p. 116)

5 Fredric Jameson considera que Lukács forneceu uma explicação válida para as diferenças entre os procedimentos realista e simbolista, da maneira como são mostradas no ensaio “Narrar ou descrever?”. Acontecia aqui de fato uma clivagem formal e histórica, a qual Lukács teria percebido melhor que alguns teóricos do Modernismo, por causa do pensamento profundamente diferenciador e comparativo com que abordou a tendência nova, mesmo ficando do lado do termo mais antigo, o realismo. “Yet for Lukács the symbolic mode of apprehension which he will call description, that is, a purely static contemplative way of looking at life and experience which is the equivalent in literature to the attitude of bourgeois objectivity in philosophical thought. For the realistic mode of presentation, the possibility of narration itself, is present only in those moments of history in which human life can be apprehended in terms of concrete, individual confrontations and dramas, in which some basic general truth of life can be told through the vehicle of the individual history, the individual plot.” (JAMESON, 1974, p. 199-201).

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No encontro da sociedade-tipo com o processo típico de evolução do capitalismo, Lukács formula o realismo como um modelo. Uma vez assimilados tais modelos, da sociedade capitalista e do romance realista que é sua expressão, a tarefa do crítico reduz-se a pouco mais que reconhecer essa identidade. Por causa da coincidência das formas da sociedade e do gênero, falar do romance é falar da sociedade, por isso a impressão que nos passa sua crítica de Balzac de uma forma transparente e de um conteúdo em primeiríssimo plano, tomado indiferentemente da socieda-de ou do romance.6 A forma do romance coincide com a da própria sociedade, a qual, já antes, fornecera ao gênero novas possibilidades de articulação e desenvolvimento. Mesmo a genialidade do escritor, na análise do crítico, teria sido a de escolher os personagens e as situações adequadas à revelação do andamento e sentido do processo. Da feli-cidade dessa escolha dependia o caráter completamente objetivo que a narrativa tomava, independentemente mesmo das convicções e idiossincrasias do escritor.

Se, no ensaio sobre Balzac, Flaubert representava um rebaixamento artístico inevitável, em cuja obra um luto lírico e irônico (um romantismo não superado) insinuava-se e sobrepujava o realismo, n’A teoria do romance, sua Educação sentimental era vista como “o único [dos romances da desilusão] que alcançara a verdadeira objetividade épica e, através dela, a positividade e a energia afirmativa de uma forma consumada” (LUKÁCS, 2000, p. 132). O fato de ser o único já mostrava as dificuldades enfrentadas por esse tipo de romance para constituir uma forma épica. O sujeito desiludido construíra um mundo autônomo em si mesmo e desistira de toda ação no mundo. A realização de uma totalidade, entretanto, pressupunha que esse sujeito fechado em si mesmo, essa subjetividade constituída por si mesma como obra de arte, pudesse ceder espaço para algo imperfeito como o mundo, sem o qual, entretanto, não havia épica, mas lírica.

Para refletir sobre a diferença existente entre a forma considerada por Lukács n’A teoria do romance, quando a

6 Tal coincidência parece estar na base das críticas feitas a estudos literários de Lukács, por Adorno e por Candido: “Enquanto o conceito hegeliano do concreto está como sempre bem cotado em Lukács – especialmente quando se trata de prender a literatura à imitação da realidade empírica -, a argumentação mesma permanece largamente abstrata. O texto dificilmente submete-se alguma vez à disciplina de uma obra específica e seus problemas imanentes.” (tradução minha) (“Während der Hegelsche Begriff des Konkreten bei Lukács nach wie vor hoch im Kurs steht – insbesondere, wenn es darum geht, die Dichtung zur Abbildung der empirischen Realität zu verhalten, bleibt die Argumentation selber weithin abstrakt. Kaum je unterwirft sich der Text der Disziplin eines spezifischen Kunstwerks und seiner immanenten Problemen.” (ADORNO, 2003b, p. 254); para Antonio Candido, que reconhece “momentos de grande plenitude crítica” na obra de Lukács, este teria deixado algumas vezes de trilhar a “seara estimulante” da análise dialética pela preocupação com as consequências políticas de suas ideias: “chegou a dar exemplo negativo de uma leitura meramente temática, revertendo ao paralelismo, mesmo em estudos tão famosos, mas tão insatisfatórios quanto os que dedicou a Balzac.” (CANDIDO, 2002, p. 54).

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avaliação de Flaubert é positiva, e a forma propugnada no ensaio (o realismo lukacsiano), gostaria de resumir e cha-mar a atenção para alguns aspectos da análise do romance A educação sentimental naquele primeiro momento, que vem, no livro, depois de uma importante reflexão sobre o tempo na constituição do romance.

De acordo com a formulação de Lukács, só quando a essência não estava mais presente e havia a necessidade da busca, o tempo estava implicado na forma. Por isso, o romance assimilara o tempo como princípio constitutivo. O drama e a epopeia não conheciam a ação do tempo. Na epopeia, “a vida ingressa na eternidade como vida, a organicidade aproveitou do tempo apenas a floração, e todo estiolamento e morte foi esquecido e deixado para trás” (LUKÁCS, 2000, p. 129). Nos romances da desilusão, a maior discrepância entre ideia e realidade era o tempo, que tendia a se apresentar como um princípio corruptor. O essencial perecia pela ação do tempo e todo o valor concentrava-se do lado da parte derrotada. Uma correção posterior era então efetuada pela autoironia, que conferia à essência corrompida, “num sentido novo e condenável”, o atributo da juventude: o ideal era constitutivo apenas para o estado de imaturidade da alma. Contudo, para Lukács, a forma se mostraria incongruente se valor e desvalor fossem repartidos de maneira tão estrita entre ambas as partes. A forma só podia rejeitar um princípio de vida se o excluísse aprioristicamente. Se tivesse de acolhê-lo, ele se tornava positivo. A realização do valor tinha como pressuposto não apenas a resistência a esse princípio, mas também a sua existência, motivo pelo qual a experiência do tempo devia dizer respeito à completude da vida, não apenas à sua corrupção. Assim, o positivo, a afirmação que a forma do romance incorporava, por mais desolado que fosse seu conteúdo, era o valor da vida completa, da vida vivida até o fim, que se constituía da variada inutilidade da busca realizada no tempo (p. 128-130).

É desmentindo, portanto, o princípio unilateral de corrupção do tempo e declarando a possibilidade da afir-

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mação do valor para além da ingenuidade da juventude, que Lukács declara o romance como forma da maturidade da alma. Para além dos valores da juventude a serem des-truídos, firma-se também no tempo a intuição “de que por toda parte germes e pegadas do sentido perdido tornam-se visíveis” e o tempo não apenas não corrompe, mas se torna o portador da poesia elevada e épica do romance. Desde que existia, ninguém podia mais pará-lo, restringi-lo com regras. Mas, como permanecesse o sentimento de que esse fluxo vinha de algum lugar e ia para algum lugar, mesmo que a direção não indicasse um sentido, desse sentimento elevaram-se as experiências do tempo legitimamente épi-cas, a recordação e a esperança. Elas eram essencialmente épicas porque levavam à ação e surgiam da ação; eram vivências, mas também superações do tempo: uma visão de conjunto da vida como unidade ante rem; e sua apreensão de conjunto post rem. E mesmo se o que restava à vivência no in rem fosse subjetividade e reflexividade, o sentimento configurador do sentido não podia ser retirado deles. Esta era a experiência mais próxima possível da essência em um mundo abandonado pelo sentido. O romance, portanto, só conseguia consumar-se como forma se resistia à desin-tegração e conseguia “dominar o tempo existente dotado de força e peso excessivos” (LUKÁCS, 2000, p. 138).

A mesma experiência do tempo, para Lukács, estava na base d’A educação sentimental. O romance era o menos concatenado possível: não procurava superar a fragmenta-riedade de seus elementos por alguma espécie de elemento unificador e não substituía a falta de unidade pela descrição dos estados de ânimo. Ao contrário, “duros, quebradiços e isolados, os fragmentos avulsos da realidade postam-se enfileirados” (p. 131). Além disso, o herói não se sobressaía dos demais e sua vida interior era tão fragmentária quanto o mundo em volta, ou seja, sua interioridade nada tinha de especial para contrapor a essa dissolução. No entanto, Lukács afirmava que esse romance típico do século XIX tinha sido o único a atingir a “verdadeira objetividade épica”, “a energia positiva de uma forma consumada” (p.

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132). E o tempo era o responsável por isso. “Seu fluxo desenfreado e ininterrupto é o princípio unificador da ho-mogeneidade que lapida todos os fragmentos heterogêneos e os põe numa relação recíproca, se bem que irracional e inexprimível” (p. 132). Tais fragmentos emergiam não de uma instância imaginada, mas de uma continuidade viva e concreta; movimentavam-se por uma corrente de vida singular e única, que superava a casualidade e o isolamento de suas existências. A totalidade da vida era algo dinâmico. O lapso de tempo do romance que dividia os homens em gerações e os integrava no contexto histórico-social não era um conceito abstrato (como a totalidade da Divina comédia), mas algo realmente existente (p. 132-133).

O fracasso da recordação e da esperança em restabele-cer o sentido era o momento do valor. O instante presente, enriquecido pela duração que se dirigia ao passado e ao futuro, comunicava essa riqueza ao tempo perdido. A busca do sentido não era satisfeita, mas a configuração alçava-se a uma verdadeira totalidade de vida (p. 133).

O caráter épico da memória era demarcado artistica-mente pela diferença da apreensão do passado em relação a outros gêneros: no drama e na epopeia, que não conheciam o decurso temporal, não existia diferença qualitativa entre passado e presente; já na lírica, somente a modificação era essencial; pouco lhe importava configurar o objeto, como objeto, no vácuo do tempo; “ela configura o processo de recordar ou esquecer, e o objeto é somente um pretexto para a experiência” (p. 133-134).

Apenas no romance e em certas formas épicas que lhe são próximas se dá uma recordação criativa, que capta e sub-verte o objeto. O genuinamente épico dessa memória é a afirmação viva do processo da vida. A dualidade entre interioridade e mundo exterior pode ser aqui superada para o sujeito, se ele vislumbrar a unidade orgânica de toda a sua vida como fruto do crescimento de seu presente vivo a partir do fluxo vital do passado, condensado na recordação (LUKÁCS, 2000, p. 134, grifos meus).

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A forma em Balzac equaciona o demonismo subjetivo dos personagens com a resposta inexorável de um mundo puramente humano. O choque por eles recebido é, como diz Lukács, de pura imanência, porque inteiramente coe-rente com as ideias que regulam o mundo no qual vivem. No labirinto das interdependências de indivíduos isolados, de lógica inteiramente humana, constitui-se uma totali-dade. Apesar do nível de abstração alto, a concepção da forma do romance de Balzac não se opõe inteiramente à que Lukács desenvolverá adiante. É verdade que, mais tarde, uma visão mais historicamente especificada desse demonismo mostrará que os ideais e objetivos dos persona-gens (seu demonismo subjetivo), ligados historicamente à ascensão da burguesia, são parte indissociável desse mesmo mundo. No entanto, a conquista da forma épica dever-se-ia nas duas avaliações à manutenção implacável da lógica do mundo – uma lógica puramente humana (ou puramente econômica e social) – diante das solicitações, desejos e ambições dos sujeitos, em sua heterogeneidade.

A forma épica d’A educação sentimental instaura-se com a articulação da experiência (ou da existência) pos-sibilitada por uma recordação criativa. É a possibilidade de, no fluxo do tempo, configurar a própria vida como totalidade, por meio da recordação e da esperança. Assim, a tentativa não é de anular o tempo, uma vez que recordação e esperança só são possíveis no fluxo temporal, mas propor uma visão do decorrer não apenas como negação da vida, mas como processo, que repropõe os valores (o passado e o perdido) a cada passo. Não se chega ao sentido, ou seja, a uma vida que realiza plenamente os ideais, o que é impossível, dada a situação de “completa pecaminosidade” do mundo, mas atinge-se uma forma capaz de superar as dualidades. A subjetividade, que, pela recordação, orga-niza a vida, ou seja, a experiência concreta, constitui uma natureza subjetivo-constitutiva e objetivo-reflexiva, que efetua a totalidade épica. Uma ideia imanente é regulativa em todo o romance, esta é a do próprio processo da vida. Por mais que haja diferença dessa visão para a do realismo

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posterior, elas têm algo em comum: a forma épica pressu-põe que o sujeito estabeleça um contato com o mundo pela ação. No romance de Flaubert, a ação está incluída nas vivências épicas do tempo (recordação e esperança), que nascem dela e conduzem a ela. O conteúdo delas no romance são, sobretudo, ações, não se apresentam como vagas aspirações ou sensações imprecisas. O “passado e o perdido”, as opções decisivas tomadas ou a serem toma-das estão presentes a cada momento. A relação entre as ações, passadas, presentes e futuras, não chega a ser defi-nida, mas o sentido e o valor também não são meramente depreciados como imaturidade, permanecendo todo o tempo presentes e atuantes na vida que flui. A afirmação da vida como processo continua um valor para Lukács, posteriormente, mas a memória e a recordação não serão mais suficientes para instaurar uma forma épica. Do livro teórico para os ensaios críticos dos anos 30, o que o crítico eliminou foram as possibilidades de consumação de uma totalidade a partir do sujeito ou constituída por ações que se relacionem de maneira “irracional e inexprimível”, ou seja, cujas relações não estejam inteiramente esclarecidas na lógica do processo. Toda a categoria do romantismo da desilusão viria a ser descartada.

N’A teoria do romance, a forma que atinge a totalidade é mais imprevisível. A superação dos problemas postos pela forma é uma conquista realizada em cada romance, embora o mesmo procedimento possa estar presente em todos os romances de um mesmo autor, como Balzac, por exemplo. Mesmo assim, Lukács afirma que a totalidade alcançada em cada romance não se replica no conjunto da Comédia humana. No caso d’A educação sentimental, a análise está dedicada aos procedimentos que lhe são específicos.

A partir dos anos 30, o realismo torna-se, para Lukács, a forma da totalidade no romance, uma totalidade intensiva que desafiava implacavelmente, pela ação, as ideologias e alienações capitalistas. A ação revelava o oculto, o latente, o movimento profundo e objetivo da história. As ações de um romance como As ilusões perdidas, estreitamente

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ligadas aos desejos, sentimentos e derrotas de Lucien de Rubempré, David Séchard e demais personagens, expu-nham o processo social mais amplo de mercantilização da literatura. É possível perceber que, apesar da especificação histórica, acontece um salto argumentativo que, em vez de aprofundar o poder de especificação da forma, entrega o romance a outra abstração. O trabalho com tipos tanto para a forma literária quanto para a sociedade deve ter sido em grande parte responsável por essa recaída na abstração que há nos ensaios críticos de Lukács sobre Balzac, pois uma tal coincidência, que anula a resistência específica das formas sociais e artísticas, só pode ocorrer de maneira abstrata. Nesse sentido, a conclusão de que a forma do romance é a da mercantilização até considera elementos sociais e históricos mais específicos que as grandes linhas d’A teoria do romance, mas o nível de abstração permanece alto. Tão alto que pode erigir um modelo e um modelo mais restritivo porque com conteúdos mais definidos.7

Lukács propôs análises muito mais vivas quando conseguiu sair da prisão relativa que criara ao acoplar um realismo-tipo (Balzac) a uma sociedade-tipo (a França). As análises das obras de Dostoiévski e Gottfried Keller, que se afastavam do tipo, impuseram-lhe desafios. Para enfrentá-los, ele reuniu o que tinha de melhor: uma compreensão profunda da sedimentação social e histórica que são os gêneros literários e a grande liberdade, demonstrada n’A teoria do romance, de identificar formas significativas. O método comparativo e diferenciador valorizado por Jame-son na apreensão do Modernismo (1974, p. 199) propiciou também aqui nessas análises maior especificação, com efeitos positivos sobre a qualidade dos ensaios.

Entretanto, houve limites que Lukács se negou a ul-trapassar. O ensaio sobre Dostoiévski mostra um dos mais importantes. A obra do escritor russo traz o último ponto que Lukács aceita na crise do sujeito. Mesmo que nela a individualidade entre em profunda crise, procurando de-sesperadamente encontrar em si mesma um fundamento que não encontra na sociedade, ela ainda está lá, com

7 É possível que a teoria do realismo, tornada prescritiva, tenha funcionado em certas circunstâncias como a teoria do herói, interferindo indevidamente no quadro especulativo formal.

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todas as suas cisões. Quando Adorno explica a nova posi-ção do narrador no romance de vanguarda, rejeitada por Lukács como unilateral, relaciona a dissolução do relato, o antirrealismo, ao processo de desindividuação em curso (ADORNO, 2003a, p. 56-57). A crítica de Lukács, por mais que ressalte a precedência do processo objetivo, con-tinua contando com uma individualidade minimamente íntegra, ainda que desesperada, como em Dostoiévski.8

Preservando o indivíduo até certo ponto, Lukács resguarda nele a capacidade de conhecer, discernir, tomar consciência. Tanto que a alienação/reificação das relações podia ser atingida por essa consciência individual, nas condições especiais criadas pela narrativa. É bem possível que tal compreensão tenha pesado na incompatibilização de Lukács com os escritores pós-1848, que configuraram círculos de ação abafados, de lógica fechada, infensos a revelações, cuja lógica férrea mantém-se até o fim. Como Lukács percebe, é um luto que explica essa dureza, mas nem por isso ela é apenas subjetiva (ele sabe que é resul-tado histórico). Tanto que ao luto ele não oferece como alternativa uma visão mais otimista das coisas, mas a revolução, sem a qual não se pode entender suas escolhas e posições críticas.9

Nos anos 60, verificou-se uma grande procura pela obra de Lukács, na Europa e também no Brasil, acompa-nhando o processo de radicalização política do período.10 Os livros de ensaios literários de Lukács de que dispomos hoje foram traduzidos e publicados nos anos 60. Antonio Candido recorre também a Lukács, na mesma altura, para definir uma questão central no ensaio “Crítica e sociolo-gia”, publicado no livro Literatura e sociedade, de 1965. A citação, entretanto, vem do primeiro livro publicado por Lukács, em 1911, da fase neokantiana ainda. No ensaio, Candido distingue o que é fazer crítica literária do que é fazer sociologia da literatura. Ele, que tem formação em ambos os domínios, considerava importante deixar claras algumas questões atinentes tanto à diferenciação quanto à inter-relação entre essas áreas. Todo estudo de literatura

8 Adorno assumiu a dissolução do indivíduo, mas não minimizou a dificuldade que havia nisso. A literatura moderna tinha diante de si uma espécie de “quadratura do círculo”, como diz em ensaio sobre Kafka. O desafio, que derrotara quase toda a literatura expressionista, era o de articular o inevitável subjetivismo (a descrença na apresentação de uma matéria intransformada) e o processo objetivo, que apontava para o retorno a uma condição pré-individual na moderna sociedade administrada (ADORNO, 1998, p. 273).

9 A possibilidade da ação, da intervenção no processo vivo da vida, que seria a base de toda narração, passa pela aceitação da possibilidade da revolução ou pelo menos por sua não rejeição: “para que um escritor encontre um meio de escapar à crise social e ideológica da atual sociedade burguesa – crise cujo reflexo está hoje no centro de toda a literatura – não lhe é necessário situar-se no terreno do socialismo, tornar-se pessoalmente socialista; basta que o socialismo não seja eliminado, aprioristicamente, dos seus interesses de homem e de artista, que o socialismo não se choque com uma prévia recusa do escritor.” (LUKÁCS, 1969, p. 97). Nesse ensaio, em que valoriza Thomas Mann em detrimento de Kafka, o crítico considera que a perspectiva do socialismo é a possibilidade de o escritor orientar-se para o futuro, animar as obras com movimento (ou seja, ação), esclarecer os processos sociais do presente.

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que considerava fatores sociais estava sendo “sociológico”? Estava, por assim dizer, saindo do domínio do “literário”? Do ponto de vista da literatura, tinha sentido essa divisão especializante? Para responder a isso, Antonio Candido propõe, com base na referida citação de Lukács, a consi-deração de uma pergunta anterior: os elementos externos fornecem apenas matéria para a realização da obra, caso em que o estudo poderia concentrar-se apenas na forma, ou tinham parte na definição de seu valor estético, devendo, portanto, ser considerados na análise literária? (CANDI-DO, 2000 p. 4-5). Aceitando antes a segunda alternativa, a crítica é, para Antonio Candido, o estudo interno das obras, nas quais os elementos externos são tornados in-ternos justamente pela forma, enquanto a sociologia (um tipo de estudo também válido) faz o estudo externo dos elementos externos (estudos sobre a função política de obras e autores, relação entre obra e público, etc).

Um ensaio crítico como “Dialética da malandragem”, de 1970, publicado, portanto, cinco anos depois da pergun-ta formulada com a ajuda do jovem Lukács, redimensiona vários tópicos das teorias que vimos tratando aqui. Antes de tudo, o ensaio tem aquela liberdade e disposição do Lukács d’A teoria do romance, de perseguir o que, no roman-ce, convence o leitor da existência de uma generalidade (ou de uma totalidade), de um mundo com regras. O crítico busca uma forma que não está previamente definida e que “pode ser todo e qualquer nexo que subordine outros no texto, inclusive as formas fixas.” Pois, “uma vez afastado o balizamento da tradição, entra em vigor a dinâmica histó-rica das significações, sem mais, e o verdadeiro designado da forma passa a ser uma atualidade histórica.” (SCHWARZ, 1989, p. 139). Mas, onde há uma liberdade, há também uma exigência, porque a forma buscada pelo crítico é, sem prejuízo da relação com a sociedade, inteiramente imanen-te, como Lukács afirmava n’A teoria do romance.

A partir daqui surgem diferenças importantes no pro-cedimento de Candido em relação a Lukács n’A teoria do romance. Esta permanece num nível de abstração mais alto,

10 Em 2009 foi publicado um livro, com contribuições diversas e interessantes, sobre o “renascimento” da obra de Lukács nos anos 1960, bem como sobre o lugar dessa obra (principalmente História e consciência de classe) nas discussões teóricas que acompanharam a radicalização das manifestações estudantis de 1968. A referência é DANNEMANN, Rüdiger. Lukács und 1968. Bielefeld: Aisthesis, 2009.

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o que talvez tenha permitido ao seu autor a liberdade de aceitar, nesse primeiro momento, “todo e qualquer nexo” como elemento formal a examinar. Seja a forma do labirinto de almas isoladas que se entrecruzam no enfrentamento de um mundo puramente humano, cuja ideia imanente é a da própria inadequação, ou seja a do fluxo e refluxo permitido pelas vivências épicas do tempo, recordação e esperança, cuja força regulativa é a do processo da vida, está em pri-meiro plano o êxito na configuração de uma totalidade que cumpriu as exigências estruturais da forma épica, um êxito que é tanto maior porque nada pode garanti-lo e porque o empreendimento é rodeado de riscos.

O ponto de partida da análise das Memórias feita por Candido é mais livre por dois aspectos. Em primeiro lugar, porque não tem em mente um romance-tipo: a) ao contrário de Lukács, o crítico não conta com uma forma interna prévia do romance, ou seja, não tem um realismo predefinido; b) não precisa apegar-se, pelo próprio feitio da obra, à convenção do romance romântico, do qual as Memórias claramente se afastam; e c) termina rejeitando, por inadequada, a influência do romance picaresco, da qual a crítica o havia aproximado em um primeiro momento. Em segundo lugar, porque o crítico também não parte da existência de uma sociedade-tipo, ou seja, de um processo social típico a buscar no Brasil, pautado pelo desenvolvi-mento capitalista europeu. A pergunta que está no início é sobre o que no romance convencia o leitor de uma rea-lidade plausível (capaz de ser vista como “uma sociedade bastante coerente e existente”) e que dependia menos da presença de dados documentais de uma época e mais de uma forma de organização.

No ponto de chegada da análise, Antonio Candido aponta duas generalidades atuando na composição das Memórias: a primeira, mais universal, estaria ligada a ar-quétipos do universo popular (a figuras como a do trickster, por exemplo); e a segunda, mais específica, que, inclusive, reforça e determina a primeira, estaria relacionada a um modo de viver, aos destinos das pessoas em sociedade, no

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Rio de Janeiro do tempo de D. João VI. Os personagens – quase todos pertencentes a uma camada social média, entre escravos e senhores – viviam suas peripécias transitando livremente entre as esferas da ordem e da desordem, sem que o romance as marcasse com um sinal negativo ou positivo, numa organização bruxuleante, à qual o crítico deu o nome de dialética da ordem e da desordem. Com A teoria do romance, Antonio Candido tem em comum a liberdade de partida e a exigência de imanência, ou seja, de autonomia da forma; com o Lukács posterior, que con-siderou situações históricas específicas em vez de um vago horizonte histórico-filosófico, compartilha a disposição de particularizar a historicidade da forma e descer das altas abstrações em que permanece o livro teórico.

A análise de Candido concentra-se na identificação da forma (que é uma proposta de generalidade), mas tra-ta a construção dessa regra como algo social, histórica e esteticamente especificado. Com isso, o trabalho crítico preserva o resultado geral de uma reconversão à abstração, o que termina acontecendo no Lukács analista de Balzac. A dialética da ordem e da desordem é diferente, em termos de resultado crítico, tanto das conclusões da inadequação de-moníaca tornada regra e do processo da vida afirmado pelas vivências épicas do tempo, d’A teoria do romance, quanto do processo de mercantilização da literatura como forma do romance, no ensaio sobre As ilusões perdidas. A dialética da malandragem pressupõe um trabalho de especificação tanto do romance quanto da sociedade: o mundo restrito dos personagens, as trajetórias que fazem, os destinos a que chegam e a ideia imanente que regula o universo proposto. Ordem e desordem não são termos abstratos, mas designa-ções complexas de certa configuração social histórica. Por isso, esses termos (bem como a dialética entre eles) não podem ser simplesmente transplantados para a análise de outros romances, sem consideração de sua impregnação histórica específica. Toda consideração dela na análise de outras obras requer para essas um movimento semelhante de análise e lhes propõe não um relacionamento modelar,

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mas uma exigência de autoespecificação, propiciada pela diferenciação/indiferenciação entre elas.

O ensaio de Antonio Candido sobre O cortiço aproxi-ma-se mais que o anterior do universo de análise de Lukács nos anos 30. O crítico identifica no romance a representa-ção de um processo social mais geral, a acumulação primiti-va. Nem por isso a análise está finda e a forma, descoberta. Vários níveis de mediação estética e social (ou seja, outras formas mais específicas) entram na consideração do livro: o Naturalismo de Zola, a sociedade brasileira da época e, mais inesperadamente, um dito brutal e corrente na época de Aluísio Azevedo, o dito dos pês, proposto como cristalização de um preconceito arraigado, que entraria de maneira sub-reptícia na composição do livro. Essas mediações são examinadas meticulosamente quanto às formas de relacionamento, predominância, possibilidades de combinação, resultados críticos ou regressivos, de ma-neira que, ao final, temos uma visão extraordinariamente especificada da construção do romance. A parte mais difícil (de fazer) e talvez a mais interessante do ensaio é a que mostra como o próprio processo narrativo mostra a “ver-dade dos pês”, ou seja, desmente o preconceito do ponto de vista do romance (o narrador seria também o emissor latente do dito regressivo) e repropõe o significado dos pês no processo de acumulação. Entretanto, nem nesse caso, em que fica evidente a predominância do processo objeti-vo, imanente ao romance e com força de relativizar outras formas, inclusive as opiniões e preconceitos do narrador, o crítico se dá por satisfeito com o achado formal nesse nível de abstração. Indo adiante, ele descreve dois ritmos sempre presentes no livro, um espontâneo e outro dirigido, sendo que “o desenvolvimento da narrativa implica lento privilégio do segundo sobre o primeiro”. A passagem de um para o outro “manifesta a acumulação do capital, que disciplina à medida que se disciplina, enquanto o sistema metafórico passa do orgânico da natureza para o mecânico do mundo urbanizado.” (CANDIDO, 1998, p. 135-136).

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Da mesma forma que na “Dialética da malandragem”, a dialética do espontâneo e do dirigido descreve certa generalidade formal imanente a um universo específico. O encontro da forma não depende aqui de depuração, de expurgo dos “detalhes” em nome do “essencial”. Nesse tipo de análise, os detalhes fazem diferença. Chegar à forma depende, antes, de um enfrentamento de todos os níveis de mediação identificáveis e das variadas relativizações internas. Por isso, a leitura do ensaio passa a ideia de uma grande atenção, de riqueza e variação de movimentos.11 Muitos ensaios críticos de Lukács parecem menos atraen-tes hoje porque subestimaram o trabalho de especificação interna das obras, conformaram-se com uma descrição genérica, que ficou aquém da complexidade histórica e converteu-se em abstração.

A crítica machadiana de Roberto Schwarz também se relaciona, de vários modos, com questões formuladas na obra teórica e crítica de Lukács. A análise da adaptação do romance no Brasil, que está no livro Ao vencedor as batatas, apresenta como eixo as relações entre indivíduo e sociedade, entre ideias e mundo, cuja definição na estrutu-ra romanesca foi uma obsessão lukácsiana. Ao lado disso, nunca é demais lembrar que as reflexões e, sobretudo, as realizações críticas de Antonio Candido apoiaram Schwarz na combinação dos elementos do gênero (que estão pre-sentes em Ao vencedor as batatas) com os procedimentos de análise literária (muito ativos em Um mestre na periferia do capitalismo),12 tudo relacionado à importância da consi-deração histórica das formas internas.

Considerados esses pressupostos, gostaria de mostrar como Roberto Schwarz repropôs, sobretudo em relação a Lukács, mas também a Adorno, algumas questões de forma narrativa, quando analisou romances como Me-mórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Começo apontando para as semelhanças desses livros com A edu-cação sentimental de Flaubert, tendo em mente que são memórias e que o ponto de vista subjetivo torna-se ainda mais marcado, porque ambos são narrados em primeira

11 No livro A função da crítica, Terry Eagleton atribui a “admirável conclusão” do livro Culture and society 1780-1950, de Raymond Williams, a um procedimento crítico semelhante aos dos ensaios de Candido: “A capacidade de generalização de Williams […] está, em sua maior parte, ligada a um conhecimento histórico e cultural obstinadamente pormenorizado [...]. A visão sinóptica de Williams não é a mesma do observador transcendental que apreendeu a essência da totalidade; deriva, pelo contrário, de um exame das articulações entre diferentes sistemas sígnicos e práticas.” (EAGLETON, 1991, p. 102).

12 Note-se como o tratamento do primeiro parágrafo das Memórias póstumas de Brás Cubas utiliza procedimentos de análise de poesia para mostrar os vários lances da prosa (ritmo binário apoiado em alternativas, paralelismos, antíteses, simetrias, disparidades) que se propõem a “logicizar” o real, a mostrá-lo como campo “sobre o qual triunfou a inteligência”, “sem prejuízo de estas aptidões estarem numa versão apalhaçada”.

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pessoa. Vale lembrar também que neles se trata igualmente da educação sentimental de um jovem e as histórias são pouco encadeadas, constituindo-se quase de fragmentos de experiências.

Afora isso, há diferenças significativas, porque o narra-dor discreto de Flaubert, quase até a secura, contrasta com o narrador bem-falante e sinuoso dos romances de Macha-do. A postura do primeiro deve ter predisposto Lukács a aceitar em seu romance uma forma épica, tendo em vista que ali as “reflexões” e os “estados de “ânimo” (inclusive do narrador) estavam sempre referidos à ação. E existe ainda uma diferença mais sutil. Por mais desencantado que seja o romance de Flaubert, A teoria do romance e depois o ensaio “O narrador”, de Benjamin, apontam nele – mais que o luto lírico visto por Lukács nos anos 30 – uma “afirmação do processo da vida”. A última cena do romance é uma conversa nostálgica entre amigos, uma busca do tempo perdido. Já os de Machado fecham ambos com capítulos de negativas: nada resta do naufrágio das ilusões.

Pensando na relação entre indivíduo e sociedade e numa forma imanente, Roberto Schwarz não tinha um modelo teórico próximo que apoiasse a análise de Macha-do. A perceptível afinidade com Flaubert antes dificultava que facilitava as coisas. Lukács o havia rejeitado na fase materialista pela falta de uma perspectiva central e pela passividade, assim como Adorno o acusara de realismo de fachada. Não por acaso, Schwarz teve de reavaliar os procedimentos da narrativa flaubertiana, aceitando a in-terpretação de Dolf Oehler contra as de Lukács e Adorno, justamente no livro Um mestre na periferia do capitalismo, o estudo do romance de Brás Cubas.

Não que os procedimentos de Machado tivessem sido os mesmos de Flaubert. Mas a redefinição do autor implicava a consideração de outros mecanismos formais, historicamente específicos, outras formas de relação entre literatura e sociedade, que não seriam exatamente nem os de Balzac, entronizados por Lukács, nem os da vanguarda, defendidos por Adorno. Nessa análise renovada, Flaubert

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é recolocado no contexto da Europa pós-1848, o momen-to da desilusão posterior aos massacres de trabalhadores, enfocando aí, sobretudo, a crise da consideração universal dos valores da Revolução Francesa. Essa crise, segundo Schwarz, contribuíra para a objetividade sui generis da lite-ratura moderna (Flaubert, Zola, Henry James, Dostoiévski) (SCHWARZ, 1998, p. 168).

Para o nosso raciocínio o caso crucial é a narrativa de Flaubert. A disciplina da escrita, cultivando com igual absolutismo a observação da realidade, a expressão justa e as virtualidades sensíveis e sugestivas da linguagem, compu-nha um objeto de evidência por assim dizer incontestável. Contudo, esta solidez sem brecha, tão peculiar, resulta da incorporação simultânea de perspectivas sociais antagôni-cas, e não, como parece, da supressão delas (SCHWARZ, 1998, p. 169-170).

Flaubert havia desenvolvido um mecanismo minucioso de desmascaramento ideológico: “[…] entre os pressupos-tos do novo dispositivo literário está a falência de idéias ou intenções consideradas em abstrato. […] Os pensamentos e as emoções são qualificados a cada passo e de modo ful-minante pela posição que ocupam na intriga, e só existem nessa especificação.” (SCHWARZ, 1998, p. 170-171). Já se pode perceber, no dispositivo de criar personagens especificados pela posição relativa na intriga, criado por Flaubert, a afinidade com o narrador machadiano posto em situação, que Schwarz identificou. No caso de Machado, a ousadia era ainda maior, porque relativizava uma espécie de entidade intocável, a posição narrativa, o ponto de vista de quem tinha a palavra.

Com isso, Schwarz rejeita, ao mesmo tempo, as acu-sações a Flaubert de subjetivismo e formalismo feitas por Lukács a partir dos anos 30; e também a de reprodução passiva da fachada, lançada por Adorno. A explicação de Schwarz ultrapassa o limite atrás do qual Lukács permane-cera, incluindo aí a rejeição da vanguarda, com a negação

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da possibilidade de constituição de uma forma épica (ou seja, a superação da dualidade sujeito/mundo) a partir do sujeito. Indo além, o crítico verifica que o mundo reificado do proprietário tem seus protocolos: a leitura enviesada que Bentinho faz da peça de Shakespeare (se Otelo ma-tou Desdêmona, que era inocente, o que ele não deveria fazer com Capitu, que era culpada?) implica a tradução do fechamento infernal da reificação em forma literária. Se há sempre, nos dois romances, também a possibilidade da leitura crítica, como aponta Schwarz, uma vez que, de qual-quer forma, situações e personagens relativizam o narrador, o protocolo alienante tem qualquer coisa de armadilha. Brás Cubas e Dom Casmurro são respectivamente versões envenenadíssimas do Frédéric Moreau, protagonista d’A educação sentimental, e do narrador proustiano da busca do tempo perdido.

Schwarz apresenta a volubilidade como princípio de composição, ou seja, como forma imanente das Memórias póstumas de Brás Cubas. Assim como a dialética da ordem e da desordem, a volubilidade não é um termo abstrato, mas um resultado histórico ligado à situação ideológica da classe dominante escravocrata no Brasil e de sua incorporação das ideias dominantes no mundo ocidental, que eram liberais. Na impossibilidade de eliminar na prática um dos termos do que, considerado em abstrato, seria uma contradição, essas classes dominantes adotavam um modo de ser – a volubilidade – que combinava os termos aparentemente antagônicos das maneiras as mais diferentes e inusitadas, tanto em argumentos como em práticas. A suposta con-tradição entre civilização e barbárie aparecia, assim, como parte da própria ideologia dominante.

A meticulosa construção crítica de Schwarz consistiu em mostrar como essa configuração ideológica está no cerne da forma literária machadiana, uma forma na qual “a idéia que lhe é inerente com imanência é apenas a da própria existência, a da vida em geral.” (LUKÁCS, 2000, p. 133). Isso parece simples, mas não é. Basta lembrar que o sentido, a essas alturas, estava expulso do mundo, como

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dizia o primeiro Lukács, e que a reificação tornava a vida opaca, como dizia o segundo. A “própria existência” e a “vida em geral” eram, assim, mais uma conquista da nar-rativa do que um ponto de partida da composição. Dela dependia sua força.

Schwarz avança aqui em relação aos dois Lukács pela radicalização de uma compreensão materialista da sub-jetividade e do indivíduo, escapando assim ao idealismo d’A teoria do romance e a certo determinismo dos ensaios posteriores, para os quais os sentimentos, ideias e intenções de indivíduos não podiam constituir-se como ponto de partida da narrativa. Nos dois romances mais famosos de Machado, acontece exatamente que um narrador muito desenvolto assume o comando. Na análise de Schwarz, a desconfiança de que esse indivíduo falaria apenas de si mesmo e distorceria a visão objetiva do mundo dava lugar à desconfiança de que, na verdade, ele nunca falava ape-nas de si mesmo, mas, ao falar, tentava conseguir algo dos leitores e defender seus interesses. Desse modo, a posição narrativa perde a neutralidade e passa a ser elemento de caracterização. Tal deslocamento muda tudo. Surge aqui também, como na “Dialética da malandragem”, um modo de ser específico, histórico, cujo reconhecimento dependeu de avanços da crítica, como indica Schwarz.

A especificação histórica, nesse caso, é mais compli-cada, justamente por causa da instância do narrador, que é uma individualidade encravada no romance e precisa permanecer assim, sob pena de a análise desmanchar a forma. A volubilidade é um achado crítico porque ela mesma resolve o problema da liberdade e da necessidade do personagem, uma vez que nesse princípio cabe, ao mesmo tempo, sua liberdade aparentemente sem limites e as condições dessa liberdade. A posição do narrador é privilegiada, social e literariamente, mas a constante mu-dança de feição não nasce de uma postura autônoma, da liberdade, mas da necessidade de mudar sempre, dada por sua situação histórica. Ela segue, na sua desenvoltura mes-ma, um protocolo de alienação, segue à risca seus reflexos

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de classe e, com isso, a partir de si mesma, dá precedência formal à lógica dominante, que é objetiva.

Lukács percebeu, n’A teoria do romance, que a subje-tividade fechada sobre si mesma tende a constituir uma espécie de interioridade que se organiza com a necessidade e a autonomia de uma obra de arte. Com isso, o crítico explica a tendência da interioridade no romantismo da desilusão. Transcrevo abaixo o trecho completo, para po-dermos julgar os deslocamentos que esse raciocínio sofre quando pensamos no Brás Cubas mostrado por Schwarz.

Naquele [no idealismo abstrato], o mundo exterior deveria ser recriado à imagem dos ideais; neste [no romantismo da desilusão], uma interioridade que se aperfeiçoa como cria-ção literária exige do mundo exterior que ele se consagre a ela como material apropriado à configuração de si mesma. No Romantismo, o caráter literário de todo o apriorismo em face da realidade torna-se consciente: o eu, destacado da transcendência, reconhece-se como o único material digno de sua realização. A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e o observador dessa vida como uma obra de arte criada. Essa dualidade só pode ser configurada liricamente (p. 123-124).

A teoria do romance refere-se a uma subjetividade que se elevou tanto sobre o mundo degradado que passou a constituir uma espécie de totalidade regida por regras próprias. Faz pensar mais diretamente no poeta desilu-dido, sensível e inteligente, pronto a desertar do mundo rebaixado e grosseiro, e cuja expressão parece realizar-se melhor na lírica. Aqui está pressuposto um afastamento e um isolamento da sociedade, uma espécie de excentrici-dade, que marca a subjetividade do escritor como especial. No ensaio sobre Dostoiévski, de 1943, Lukács identifica uma subjetividade parecida, o indivíduo voltado sobre si mesmo, mas que se expressa desesperadamente pela ação. O herói isolado age para testar o próprio individualismo, para encontrar um ponto firme em si mesmo, na busca

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desesperada de derrubar a muralha chinesa que há entre o eu e os outros, entre o eu e o mundo (LUKÁCS, 1968, p. 157-164).

Brás Cubas não é obviamente uma subjetividade desse tipo, mas surpreende que tenha algo em comum com ela. No caso de Brás, não é o isolamento ou a inadaptação que produz tal interioridade, embora ele simule uma distância com a situação do defunto-autor. Schwarz já mostrou que tal situação não retira o narrador de sua posição no mundo, de seus preconceitos e valores historicamente específicos, ou seja, não confere ao seu olhar, como ele pretende, uma perspectiva desinteressada, central e universal. Assim, a interioridade de Brás constitui-se numa alienação sem isolamento social, encravada num modo de ser generali-zado. Para falar com Schwarz, a volubilidade é de todos e a variedade vertiginosa dos assuntos no romance mal encobre a monotonia de fundo. A subjetividade nem é isolada nem especial nem excêntrica em relação aos de-mais, dando antes uma súmula das relações existentes. Só a situação do defunto autor, a situação especial, depõe pela individualidade do narrador, por sua pretensão de contar a própria vida, sem ter nada de especial (do ponto de vista romântico) ou exemplar (do ponto de vista clássico) em que ancorá-la. O fato de que essa individualidade precisou ser inventada e afastada do mundo real revela as dificul-dades do ponto de vista subjetivo na história de si contada pelo gentleman brasileiro, as quais Machado manejou e soube superar. Em Dom Casmurro, é um pouco diferente, porque o motivo da trama ali pode ser pensado como a história de um amor e de um adultério, ou seja, aconteci-mentos especiais em uma vida, enquanto, nas memórias, o interessante precisa assentar-se no próprio processo da vida, nas lembranças e na subjetividade de quem conta. Há nesse caso, de saída, exigências maiores à subjetividade do narrador, o que não impediu Machado de tratar o eu configurador da narrativa como forma alienada (fechada nos imperativos de sua classe).

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O fechamento sobre si mesmo (o sentimento de si do narrador), nos dois romances de Machado, cria algo como uma forma com regras, possível de configurar um romance. Portanto, em vez de reforçar a hipótese de que a interiorida-de fechada passaria preferencialmente para os domínios da lírica (com a correlata recusa do subjetivismo da narrativa de vanguarda), Schwarz aponta para outra possibilidade materializada na obra de Machado. Nesta, a subjetividade é exposta à investigação épica da lógica particular de um ponto de vista de classe e suas obnubilações, o que quer dizer que a narrativa realiza-se no espaço mesmo da sub-jetividade alienada, tomada como forma histórica.13

Os ensaios de Schwarz levam ainda mais longe a vi-são de que uma especificação social e histórica da forma, conseguida não pela depuração, mas pela consideração das relações as mais variadas entre os elementos de composição das obras, reforça a capacidade de a crítica literária fazer jus à complexidade do material com o qual trabalha. A pergunta de Antonio Candido, citando Lukács, pode aqui ser chamada novamente: os fatores externos importam na análise estética dos romances? A resposta é: só quando se tornam internos, ou seja, quando adquiriram um valor específico na configuração da obra. Esse “externo” vale mesmo para recursos estéticos aproveitados de outros autores, como os de Sterne por Machado, porque externo não é considerado aqui como de fora dos domínios estético ou literário, mas externos à obra, na autonomia de seus significados. Segundo essa visão, o romance constrói o seu próprio mundo (uma proposta de superação das dualidades que ameaçam a forma), mas o constrói com os elementos de uma configuração histórica – vivida, pensada e imaginada – e em relação com ela, o que, ao contrário de enterrá-lo no passado para sempre perdido, favorece a sua atualidade, a sua capacidade ativa (da obra e do passado) de irromper no presente. Assim, para falar com Lukács e com Benjamin, o tempo, a história no romance, não é a condenação ao passado, à corrupção e ao perecimento, mas a afirmação

13 Dolf Oehler, que também leva em consideração as posições de classe na análise d’A educação sentimental de Flaubert, ressalta as ligações nada acidentais entre desilusão e volubilidade ideológica na França do século XIX. Cf. OEHLER, Dolf. O fracasso de 1848. In:_____. Terrenos vulcânicos. Trad. Samuel Titan Jr. e outros. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.

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do processo da vida, inclusive das obras, e a chance dada a cada época de arrancar a tradição ao conformismo.

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A Formação vista desde o sertão1

Luís Augusto Fischer*

resumo: Este ensaio discute a noção de “formação”, que está no centro da obra de Antonio Candido, particularmente no livro Formação da literatura brasileira, a partir das recentes pesquisas de Jorge Caldeira, que tem demonstrado a relevância, para a história brasileira, do mundo do sertão, este mundo econômico e social que produz grande parte do PIB brasileiro, desde o século 18, mas que não é alcançado pelo modelo proposto por Caio Prado Júnior, organizado em torno aos conceitos de escravis-mo, latifúndio e exportação. O trabalho procura pensar qual o compromisso da tese candidiana com a visão de Caio Prado ao discutir o Arcadismo e o Romantismo e ao final propõe algumas especulações sobre o que poderia resultar numa nova descrição de formação da literatura no Brasil se forem tomadas em conta as conclusões de Caldeira.

palavras-chave: Formação da Literatura Brasileira; Antonio Candido; Jorge Caldeira; Modernismo

abstract: This paper discusses the notion of “formation” (central to the work of Antonio Candido, and especially to his Formação da literatura brasileira), on the basis of recent research by Jorge Caldeira. Caldeira has emphasised the socio-economic importance for Brazilian history of the hinterland, responsible for the bulk of the country’s GDP since the 18th century, but not considered in the model proposed by Caio Prado Júnior, whose Formação do Brasil Contemporâneo is based on the concept of plantations using slave labour to produce for export markets. The paper considers to what degree Candido’s work is moulded by Caio Prado’s model in its discussion of Brazilian neoclassicism and romanticism, and concludes by speculating on the possible effects of Caldeira’s conclusions on a new description of the formation of Brazilian literature.

1 Este ensaio deve muito a alguns interlocutores, companheiros de debate formativo, especialmente Homero Araújo, Ian Alexander e Guto Leite. Várias formulações nasceram em diálogo com Rafael Cariello, que me entrevistou a propósito do assunto deste ensaio, para a Folha de S. Paulo (edição do dia 30 de outubro de 2011, caderno Ilustríssima). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre as idéias aqui apresentadas, por certo.

* Professor do Instituto de Letras da UFRGS

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keywords: Formação da Literatura Brasileira; Antonio Can-dido; Jorge Caldeira; Modernism

Quando uma interpretação se torna clássica, no sentido de ser incorporada ao fluxo rotineiro das aulas e conferências, dos escritos acadêmicos e do jargão da área, ela ao mesmo tempo se consagra e perde força. Se consa-gra porque ganha fama, é repetida, vira moeda corrente, passando a ser um novo filtro através do qual todo mundo enxerga o objeto a que se refere; mas perde força porque, repetida e rotinizada, sua existência de alguma forma pas-sa a moldar o próprio objeto a que se refere, tornando-se parte, agora, da matéria a ser examinada criticamente; seu poder analítico fica, assim, necessariamente comprometido. Tal fenômeno ocorreu em todas as partes, notoriamente nas áreas de humanidades, muito mais do que nas ciências naturais e nas matemáticas, ainda que também nessas haja casos célebres. Quantas vezes se argúi Marx por coisas que ele disse de modo preciso e específico mas foram tomadas como genéricas e vagas? E por coisas que ele nunca disse, nem pensou, mas foram dadas como sendo de sua lavra por repetidores? Quantas referências equivocadas suporta o trabalho de Darwin?

No Brasil, mesmo em nossa curta trajetória de pen-samento original, igualmente se podem encontrar casos relevantes. Talvez o caso mais saliente seja o de Sergio Buarque de Holanda em seus comentários acerca da cordia-lidade, matéria de seu Raízes do Brasil (1936): em nenhum momento o sociólogo defende, nem remotamente, a idéia de que os brasileiros sejam caracteristicamente gentis, tampouco reivindica para tal o grau de traço positivo da vida brasileira. E no entanto as duas coisas se dizem sobre seu pensamento, despudoradamente. Faltaria ler melhor o texto para logo perceber que Sérgio Buarque está tentando definir uma marca do trato rotineiro do país, marca que não se resume à gentileza, pois que da mesma cordialidade faz parte a reação discricionária, de fundo patriarcal, baseada

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na recusa à lei imparcial e universal que o analista toma como parâmetro de leitura da sociedade brasileira.

O caso mencionado pode ser classificado como leitura inepta, na mesma linha, por exemplo, das restrições que foram feitas à crítica de Machado de Assis ao romance O primo Basílio, de Eça de Queirós, em uma das mais célebres polêmicas do país. Era o ano de 1878, Machado era já reconhecido como um crítico e escritor de primeira linha, embora ainda não tivesse operado o salto de Memórias póstumas de Brás Cubas; e resolveu analisar o romance de Eça a partir de um ângulo contrário ao realismo praticado pelo autor português. Não importam aqui os termos do debate, mas a forma: estampada a crítica de Machado, saíram alguns em defesa de Eça, e duas semanas mais tarde Machado retomou a palavra e o debate. Comenta o que repararam a seus juízos e, constatando não ter sido compreendido corretamente, diz: “Que não entendessem, vá; não era um desastre irreparável. Mas uma vez que não entendiam, podiam lançar mão de um destes dois meios: reler-me ou calar”.

Sérgio Buarque poderia dizer o mesmo a seus tres-leitores, mas só em seu período de vida, naturalmente. Passado esse prazo, eis aí a má leitura correndo solta pelo mundo, consagrando e estragando o trabalho do grande sociólogo.

Outro é o caso que queremos analisar aqui, neste ensaio conscientemente provisório. Não vamos falar de leituras equivocadas sobre o autor que vamos comentar; o que queremos é reinterpretar uma categoria de análise da literatura brasileira que, como a cordialidade buarquiana, entrou para o repertório das facilidades acadêmicas, no campo das Letras. E reinterpretar não para defender nosso autor de uma leitura errada, inepta, ruim, mas sim contra o pano de fundo de um debate novo no cenário historiográ-fico e sociológico do Brasil. Fique claro: também há, sobre nosso autor, leituras ruins, que barateiam enormemente os vetores centrais de sua – digamos de modo pomposo e não inexato – sua teoria do Brasil. Nosso autor (que nada tem

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de pomposo) é Antonio Candido, e sua teoria do Brasil se chama, genericamente, de formação da literatura brasileira; a novidade crítica que servirá para reler tal perspectiva está na obra de Jorge Caldeira, em vários trabalhos, espe-cificamente em dois livros, A nação mercantilista (1999) e História do Brasil com empreendedores (2009).

Formação: alguma história

1.

O debate sobre o sentido da “formação” ocupa já vários artigos e livros, escritos por gente muito qualificada, de forma que se corre aqui o risco de uma certa leviandade ao tentar sintetizar a coisa em poucas linhas. Mas vamos lá: a perspectiva de formação a rigor esteve no horizonte de várias gerações de pensadores no Brasil, ao menos des-de Machado de Assis, como se pode ler em seu clássico e sempre interessante artigo “Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de nacionalidade”, de 1873. O grande escritor não dispunha do conceito em estado por assim dizer puro, acadêmico, algébrico, mas sua reflexão caminha exatamente na direção de tentar decifrar o caminho da formação da literatura brasileira, nos marcos da formação da nacionalidade. Uma possível gênese intelectual dessa visada, no caso de Machado, deve ser buscada em dois campos: no debate sobre a natureza da história da litera-tura e da crítica literária, tema que esteve no horizonte do jovem Machado de modo muito forte, de um lado; e, de outro, no debate sobre as virtudes e os limites da identidade nacional, brasileira em particular, tema que uma geração antes de nosso escritor maior já ganhava corpo em ensaios, romances, poemas.

Sem ir muito longe agora, registremos que antes ainda de sua maioridade civil já Machado de Assis publicava arti-gos com reflexões substantivas sobre a matéria, como se lê em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, texto de 1858, de título absurdamente abrangente em cujo cerne

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já está posto o problema de modo bastante razoável: ali, ele clama por educação para todos, de forma a habilitar o povo na leitura dos textos que já existem; assinala a obra de Basílio da Gama como um passo importante na definição da literatura brasileira, pois que o temperamento de sua obra é “se não puramente nacional, ao menos nada europeu”; antecipando em muitos anos uma das premissas dialéticas do artigo de 73, diz já aqui que para uma literatura “não há gritos de Ipiranga”, porque “as modificações operam-se vagarosamente” em seu âmbito2.

Assim também se poderá ver em outros textos da juventude, como a série “Idéias vagas”, estampadas em 1856, aos 17 anos do autor, ou na tradução, feita no ano seguinte, do artigo de Lamartine “A literatura durante a revolução”, em que Machado lidou de perto com alguns dos mais importantes pensadores da matéria naquela altura, como Chateaubriand e Madame de Staël. É uma freqüen-tação que se estende por vários anos de sua juventude, alcançando, por exemplo, um comentário seu de 1866 (aos 27 anos do autor), em que, para examinar um livro chamado Curso de literatura portuguesa e brasileira, recém-editado, Machado refere de modo aparentemente sólido o historiador Abel-François Villemain, que outro grande historiador de literatura, Otto Maria Carpeaux, muitos anos depois qualificaria assim: “distingue-se dos dogmáti-cos do classicismo pela atenção às influências estrangeiras na literatura francesa e pela tentativa de compreender a literatura como resultado das mesmas forças históricas que também determinaram as expressões políticas e artísticas da nação; Villemain, comparatista e ‘historiador da civilização’ num campo especializado, é herderiano”3.

Podemos dizer, em suma, que o jovem Machado já pen-sava na literatura (1) como parte do processo geral do que os franceses gostam de chamar “civilização”, envolvendo a vida social, a educação por exemplo, e política, a Independência por exemplo; (2) a partir de uma visão nacionalista unitária, que nos anos 1860 ganhava contornos sólidos, garantida a unidade do território brasileiro mediante controle de re-

2 Citações da edição Aguilar em três volumes, p. 787 do volume III.

3 História da literatura ocidental, vol. I, p. 22.

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beliões provinciais, algumas das quais contando com teses emancipacionistas, que fragmentariam o Brasil (o caso mais notável é a guerra dos Farrapos, em cujo contexto chegou a haver declaração de independência de um estado, a Repú-blica do Piratini); e (3) em perspectiva processual, quer dizer, não sincrônica, e comparatista, quer dizer, antixenófoba e também antinacionalista. Sem forçar em nada o debate, aqui estão linhas essenciais da visada formativa, que terá larga vida entre nós, daí por diante.

2.

De modo muito mais autoconsciente, a geração mo-dernista vai se valer do conceito “formação” com grande empenho e ganho; basta lembrar dos clássicos Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre (1933), que tem como subtí-tulo Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, que não traz a palavra “formação” no título mas atende ao mesmo programa, descrever e entender a formação do país e da nação, no ritmo do ensaio, e ainda Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior. Na geração de Candido, ao menos três livros assu-miram a categoria “formação” como programa de estudos e como conceito de operação: Os donos do poder, subti-tulado Formação do patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro, Formação Econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, e a Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido. Depois disso, vamos encontrar pers-pectiva formativa na obra de Darcy Ribeiro, Aziz Ab’Sáber, Florestan Fernandes, Milton Santos, Fernando Henrique Cardoso, Roberto da Matta e alguns outros, assim como podemos dizer que essa mesma forma de pensar estava já em Joaquim Nabuco, em Euclides da Cunha, ou nos modernistas Mário de Andrade, Augusto Meyer, Nelson Werneck Sodré e Vianna Moog, por exemplo.

Mais uma noção do que um conceito propriamente dito, “formação” representa, no plano do pensamento, o sentido construtivo que esses pensadores viam existir em

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seu tempo político e social, em conjunturas sucessivas, todas elas de algum modo auspiciosas para as sempre urgentes reformas necessárias ao Brasil. Nos anos 1870 e 1880, o tempo do Machado ensaísta, a energia formativa derivava das campanhas abolicionista e republicana, que empolgaram muita gente, de modo desigual mas efetivo. (Nos anos 1900 e 1910, toma a palavra uma geração desen-cantada com os rumos da república, em variados sentidos, desilusão que se lê na obra de um Euclides e de um Lima Barreto4). Nos anos 1930, a busca formativa ganhava tônus e escala no amplo movimento modernizante, industrialista e socialmente reformador, liderado pelo estado getulista. Nos anos 1950, é inegável que a força mais uma vez mo-dernizadora expressa por JK comoveu pensadores e artistas, ecoando e potencializando a nova indústria metalúrgica que surgia, processo de que temos exemplo elevado nos ensaístas formativos e nos pujantes movimentos da Bossa Nova, do Cinema Novo, da construção de Brasília.

Esse o caldo de cultura do pensamento formativo, em sucessivas conjunturas. Trata-se de um ponto de vista que quer entender o passado do país, em seus lineamentos cen-trais conforme o caso (o campo econômico, social, político, literário, etc., isoladamente ou em alguma combinação), com vistas a discernir as possibilidades do presente e as chances de futuro. Assim, a noção de formação depende de (a) uma perspectiva de conjunto, que pensa o país como um todo, o país como uma unidade, (b) um certo otimismo reformista, um certo reformismo otimista, numa conjuntura favorável ao pensamento crítico, e (c) uma visão prospecti-va, que relê o passado orientada por um problema tomado como vivo, no presente e no futuro. Poderíamos dizer o mesmo de outra forma: o pensamento formativo é sempre empenhado: interpreta o passado porque quer intervir no presente com vistas ao futuro. Não estranha nada, assim, que os maiores pensadores formativos sejam figuras com grandes interesses fora da academia, na política, no jorna-lismo, na vida prática, digamos5.

4 O diagnóstico desse malogro está em Literatura como missão – Tensões sociais e criação literária na primeira república (1983), de Nicolau Sevcenko, e num excelente ensaio de Homero Araújo intitulado “Modernos e enfurecidos: O cortiço, O Ateneu, Triste fim de Policarpo Quaresma e Os sertões”, no livro Machado de Assis e arredores (2011).

5 Esse sentido de intervenção na vida prática, extra-acadêmica, é um fator que o tempo vai permitindo ver com mais clareza. Veja-se o contraste entre esses citados ensaístas, surgidos entre 1870 e 1960, quase todos inscritos empiricamente em tarefas públicas, muitas delas políticas, e ensaístas que brotaram a partir da super-especialização acadêmica e da profissionalização da vida intelectual, particularmente na pós-graduação e na pesquisa universitárias (como será o caso de gente de altíssima qualidade como Roberto Schwarz, Sérgio Miceli e Eduardo Viveiros de Castro, para citar apenas três, de que sou leitor entusiasmado): entre aqueles e estes, se abrem várias diferenças variadas, na abordagem, no texto, no intento, no alcance pragmático. Na arena pública e sem posição dentro da universidade profissionalizada também há algum caso; o mais notório é o de Paulo Francis, com sua visada por assim dizer luterana sobre o Brasil (como em O Brasil no mundo).

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Os ensaios – e são ensaios no sentido forte do termo, isto é, textos escritos com grande liberdade em relação aos cânones que tomam como referência, textos que são, de si mesmos, uma ação sobre o mundo – concebidos sob o signo da formação, reinterpretando o passado, estão sempre disputando a interpretação no presente: Machado relativizando a euforia romântica e querendo a consolida-ção de uma esfera pública de debate esclarecido; Freyre defendendo a mestiçagem como valor positivo; Sérgio Buarque postulando o fim do estado patriarcal familista; Caio Prado querendo incorporar o proletariado à nação; Furtado defendendo a necessidade de internalizar no Brasil os mecanismos de decisão econômica; Faoro intentando acabar com o patrimonialismo dos gestores brasileiros; e Candido...

3.

Bem, o horizonte do debate de Candido merece todo um detalhamento, toda uma outra abordagem. Em síntese não óbvia, podemos dizer que a disputa de Candido, ao escrever sua Formação da literatura brasileira, dirigia suas forças contra alguns inimigos que ainda davam as cartas no campo literário: a Academia Brasileira de Letras e suas sucursais pelo país todo; a crítica literária regular, que ainda acontecia nos jornais; assim como o sistema escolar, através dos manuais de ensino, incluídas nessa conta as florescen-tes faculdades de Letras, que passaram a brotar pelo país afora nos anos 1950 e 60. Os antagonistas de Candido eram, então, o espiritualismo católico (vale evocar o agora inacreditável prestígio que tinha Tristão de Athayde, na crítica de jornal e nos colégios6), o nacionalismo, o ruibar-bosismo, o parnasianismo, todas elas ideologias literárias retardatárias mas dominantes naquelas instituições. Daí o sentido renovador, quase revolucionário, da vibração modernista que se encontra, não no enunciado, mas nos alicerces desse grande livro. Modernista em alguns sen-tidos específicos: um pensamento leigo, crítico, aberto à experimentação, antiformalista, plural, sem renegar nem

6 Veja-se sua Introdução à literatura brasileira, sob o nome civil de Alceu Amoroso Lima, cuja primeira edição é de 1943.

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a alta tradição literária ocidental nem a força de formas e temas populares da tradição oral7.

Vejamos, de modo ultra-sumário, alguns termos em-pregados por Candido em seu livro, tais como “sistema literário” e “nacional”. “Sistema” Candido trouxe do mundo da sociologia funcionalista norte-americana para o ambiente da história da literatura. O conceito tem grande rendimento crítico, em parte porque passa por fora de categorias como “geração”, “escola”, “estilo de época” e outras, que costumam ainda hoje comandar o espetáculo no campo literário apesar de sua fragilidade epistemológica e incompetência descritiva. Como disse em um grande livro o também sociólogo Leopoldo Waizbort (A passagem do três ao um), o livro de Candido é, como Mimesis, de Erich Auerbach, uma história da literatura concebida em função de um problema, sem ilusão de ser um manual de história concebido para atingir a completude empírica de seu obje-to: Auerbach quis estudar a representação da realidade na literatura ocidental, e Candido procurou entender como se formou o sistema de produção e circulação de literatura no Brasil, entre 1760 e 1880 (correspondendo ao que nos manuais se chama de Arcadismo e Romantismo). Esse sistema é simples de descrever: trata-se de uma relação social entre autores e público leitor, mediante obras que vão sendo produzidas e lidas, relação que é vista sincronica-mente, em cada momento, mas também diacronicamente, na formação de uma tradição local, que Candido identifica com a tradição nacional brasileira.8

O termo “nacional” vale um detalhamento. É certo que nosso tempo, este começo de século novo, que sucede ao fim de um importante ciclo histórico, a Guerra Fria, este nosso tempo que é o da completa hegemonia do capital financeiro sem compromisso com plantas industriais e estruturas sociais situadas concretamente em algum terri-tório, o tempo da internet e tudo que ela proporciona em matéria de internacionalismo prático cotidiano, representa um novo momento no que se refere à noção de nação, nacionalidade, nacionalismo, identidade nacional. Não há

7 Procurei evidenciar o empenho modernista do trabalho de Candido no artigo “Formação hoje – uma hipótese analítica, alguns pontos cegos e seu vigor”. Uma demonstração interessante desse nexo entre a perspectiva formativa e a militância modernista em Candido poderá ser averiguada num estudo redigido em 1950, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, em Literatura e sociedade: ali se lê explicitamente que Romantismo e Modernismo são de fato os dois “momentos decisivos” na vitalização da inteligência brasileira (p. 112), estabelecendo o nexo que no enunciado da Formação da literatura brasileira desaparece, embora continue como pressuposto.

8 Em artigo anterior à publicação da Formação, que é de 1959, esse esquema conceitual aparece já bem delineado, embora em termos menos precisos. O texto é “A literatura na evolução de uma comunidade”; ali se lê: “Assim, não há literatura enquanto não houver congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre tenha consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma

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quem possa pensar nessas dimensões do nacional como se pensava até uns vinte anos atrás, até 1989 marcantemente (a Queda do Muro, o fim da União Soviética), ou então até 2001 (o ataque às Torres Gêmeas em Nova York), tempo em que o pertencimento de cada pessoa, de cada grupo social ao seu mundo nacional gozava de forte estabilidade (que vinha de um século antes, mais ou menos) e quando a relação de cada indivíduo com a informação era mediada por instituições mais lentas, muito menos dinâmicas do que a internet (a escola, o rádio, a televisão, a indústria de bens culturais). A nova etapa da mundialização, dos mercados, mas também da luta pela hegemonia geopolítica, e a entrada em cena da internet, no campo literário, são fatos com conseqüências certamente fortes, que ainda mal se podem avaliar mas que sim podem ser registradas com clareza, ao menos em um patamar: mudou, para sempre, a relação da produção literária e intelectual com as antigas demandas do nacional. Isso não significa que o nacional tenha desaparecido por completo, nem no âmbito das ins-tituições formais (a justiça e o ensino, majoritariamente), nem no plano da literatura; mas é certo que ele mudou de tamanho, significado e conteúdo. Vale acrescentar uma modulação: o Brasil tem a peculiaridade de ser o único país de língua portuguesa na região americana, sendo o mais populoso país dessa importantíssima língua, a quinta ou sexta em número de falantes, o que não é pouco e confere ao sentimento nacionalista brasileiro um sentido de auto-suficiência e um caráter de verossimilhança muito grande, traços que de certa forma destacam nosso país no contexto daquele rebaixamento geral do valor do nacional em nosso tempo.

Quanto ao livro de Candido, é certo que ele mantém seu valor em vários níveis, mesmo lidando, como lida, com uma categoria problemática em nossa conjuntura como “nacional”. Não faltam argüições desse traço; a mais articulada está nos ensaios de Abel Barros Baptista, um inteligente leitor do debate nacional brasileiro; animado de uma perspectiva desconstrucionista que está nas antí-

herança), que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo” (pp. 140-1).

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podas do ponto de vista formativo de Candido, Baptista tem escrito para denunciar o que julga ser uma limitação nacionalista do trabalho de Candido, em um ensaio como “O cânone como formação: a teoria da literatura brasileira de Antonio Candido”9.

4.

Num sentido historiográfico ativo, a perspectiva de leitura posta de pé por Candido tem força para descrever outras formações literárias e culturais, especificamente no Novo Mundo10. Mas também permanece válido por se tratar de um diagnóstico historicamente relevante no con-junto, contendo além disso uma coleção de agudas leituras tópicas de escritores e obras da tradição brasileira e, ainda, por se tratar de um relevante livro do combate modernista em busca da conquista de sua hegemonia, esta finalmente alcançada nos anos 1970, creio. Este último aspecto não é muito óbvio, mas está na raiz da legibilidade do livro: para além de seus méritos como história e como crítica, a Forma-ção da literatura brasileira manterá sua vigência enquanto o projeto modernista como um todo tiver força, em particular a variante paulista do modernismo – e ele visivelmente a mantém, bastando ver a recente homenagem a Oswald de Andrade, na FLIP de 2011, em que, com algum excesso, foi tido até como precursor dos tuítes, com suas crônicas da série “Telefonema”. A flamante e moderníssima escritora argentina Pola Oloixarac, tomada por aquela inveja que São Paulo dá nos portenhos descolados de hoje em dia, declarou que Oswald foi “muito mais original” do que Jorge Luis Borges, comparação que diz mais sobre a percepção da força de São Paulo até na sofisticada Buenos Aires do que sobre os autores implicados.

Será possível encontrar exemplos ou sintomas nítidos que fundamentem a tese de que a Formação da literatura brasileira forma parte do combate modernista em busca de hegemonia? Nas palavras da Formação não vamos en-contrar afirmações evidentes dessa ligação entre formação e modernismo, entre outros motivos porque o tema ali é

9 Em O livro agreste. Não sendo este o nosso assunto, no presente artigo, fica apenas este registro da crítica de Baptista a Candido, trabalho que no entanto está a merecer debate crítico detalhado.

10 Sirva de exemplo, ainda que cabotino, meu livro Machado e Borges (2008, com tradução ao espanhol: Machado de Assis y Borges. Buenos Aires: Leviatán, 2011), em que tento mostrar como os dois grandes escritores, com a companhia historicamente anterior de Poe, foram escritores-pensadores de temperamento formativo, cada qual pensando a literatura de seu país em termos muito próximos entre si e com enorme afinidade com o pensamento formativo candidiano. Ian Alexander (v. bibliografia) tem mostrado que o raciocínio formativo quadra bem, igualmente, a uma realidade aparentemente remota como a australiana.

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outro, historicamente distante (Arcadismo e Romantismo) do presente em que está sendo gerado (anos 1940 e 50) – e vale ressaltar que o foco em dois momentos afastados no tempo, Arcadismo e Romantismo, foi uma escolha do autor, e escolha relativamente estranhável, dada, entre outras coisas, a origem do trabalho, nascido do convite feito pelo editor José de Barros Martins (e confessada pelo autor no prefácio) para que Candido escrevesse “uma his-tória da literatura brasileira, das origens aos nossos dias”. Em 45, quando deste convite, e ao longo dos anos 1950, quando da redação, é claro que já seria possível estender a descrição histórica até ao menos os anos 1930, ainda mais quando sabemos que Candido acompanhava de perto essa geração e suas obras, como crítico de varejo que era, de alta qualidade.

Na superfície do texto da Formação há até mesmo divergência com algumas posições modernistas, especifi-camente contra o argumento nacionalista originariamente romântico, depois “revigorado pelos modernistas e agora pelos nacionalistas”, de que o Arcadismo fez apenas “lite-ratura de empréstimo”, quando se sabe que Candido leu a literatura árcade como tendo um empenho protobrasilei-ro – “os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quando os europeus”. Por outra parte, a redação da Formação é contemporânea da pesquisa e da redação da tese da Candido em Sociologia, depois publicada com o título Parceiros do rio Bonito, si-tuação esta que pareceria afastar Candido mais ainda do trabalho modernista que afirmo existir.

Mas indiretamente, há vários traços desse empenho modernista. Para começar, veja-se que o ponto de vista do livro Formação da literatura brasileira, ao mesmo tempo informado e arejado, mantendo em vista a tradição local das histórias literárias anteriores (Candido estudou a fundo a de Sílvio Romero, como se sabe, tendo escrito uma tese de livre-docência sobre ela) mas também operando com conceitos abstratos (como “sistema”) originados da então

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moderníssima Sociologia norte-americana, corresponde bem a proposições modernistas as mais defensáveis, leigas, antiformalistas, antifetichistas, vacinadas contra o nacio-nalismo e o cosmopolitismo tolos. Depois, considere-se que em mais de uma entrevista Candido comenta, retros-pectivamente, que sim tinha esse empenho de validação do Modernismo, por esses anos. Finalmente, em textos posteriores, por exemplo em Iniciação à literatura brasileira (redigido em 1987), se lê uma reiterada notação de fami-liaridade entre Romantismo e Modernismo, o que não é inédito, mas continua a ser eloqüente11; e na Formação Candido postula essa familiaridade como constituição do ponto de vista do trabalho – “O leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos primei-ros românticos”, não por ingenuidade, mas por método, para assim poder escrever, perseguindo um ideal que era romântico mas também modernista, uma “história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. História de um desejo fundacional compartilhado por românticos e modernistas, por certo, e tomado conscientemente por Candido como ponto de convergência histórica e ponto de partida analítico12.

(Entre parênteses: sempre vale a pena notar que tal identificação entre Modernismo e Romantismo não decorre imediatamente de toda e qualquer posição van-guardista do começo do século XX, e não ocorre em todas as partes, nem mesmo aqui na América. Tal identificação decorrerá restritamente das vanguardas marcadas de nacionalismo e consistentemente conectadas a interesses políticos, como se poderá ver no caso hegemônico de São Paulo e em parte do cenário artístico de Buenos Aires; o caso mexicano parece bastante diverso, tanto no chamado “estridentismo” quando no romance social do período, por exemplo com Mariano Azuela, ambos mais populares do que nacionalistas.)

11 Escrito para fins que não se cumpriram (seria parte de uma obra a ser publicada na Itália, no quinto centenário do Descobrimento da América), este estudo defende a mesma posição formativa, ainda que de modo diverso, menos rigoroso no manejo dos conceitos (e dos preceitos) do livro canônico, a Formação. Veja-se que entra em conta, neste livro, a figura de Gregório de Matos; na parte relativa ao Modernismo, lemos: “O Modernismo não foi apenas um movimento literário, mas, como tinha sido o Romantismo, um movimento cultural e social de âmbito bastante largo, que promoveu a reavaliação da cultura brasileira, inclusive porque coincidiu com outros fatos importantes no terreno político e artístico, dando a impressão de que na altura do Centenário da Independência o Brasil efetuava uma revisão de si mesmo” (p. 88).

12 Ver nota 6.

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Pontos cegos da formação

Formação da literatura brasileira tem como subtítulo a expressão Momentos decisivos, os quais são identificados como o Arcadismo e o Romantismo, estudados no livro. Isso significa muita coisa, de saída: num livro escrito nos anos 1950, ficam de fora materiais empíricos da produção literária muito significativos, materiais cuja ausência é eloqüente: Candido não reconhece a existência de sistema literário no século XVII, motivo por que deixou o Barroco de fora de seu livro (angariando incompreensões e contra-ditas as mais variadas), e deliberou encerrar seu trabalho antes da entrada em cena de Machado de Assis, autor que é o no entanto o ponto de chegada ideal de seu raciocínio, eis que Candido toma como referência historiográfico e crítico justamente a reflexão de Machado no “Instinto de nacionalidade”. Para nem falar das exclusões posteriores a ele: nada se diz sobre parnasianos e simbolistas, sobre os naturalistas e outros narradores já provadíssimos na altura da redação da Formação, nem sobre os vários modelos de renovação que a historiografia agrupa sob o nome impre-ciso de Modernismo. (Não se trata aqui de cobrar que o autor tivesse falado de tudo isso – se bem que seria um gosto poder ler agora o depoimento sempre inteligente de Candido sobre essas expressões –, mesmo porque o livro foi escrito, como se sabe, no rabo das horas, num tempo em que o autor era professor de Sociologia, e não há razão em esperar que tivesse tido o vagar e a dedicação de repassar a matéria posterior a Machado, ainda mais conhecendo a excelência das análises que os autores abrangidos mere-ceram na obra.13)

Mas o caso é que, mesmo considerado apenas o recorte eleito pelo autor, há pontos cegos na obra, pontos presentes no conjunto mas invisíveis no enunciado, provavelmente porque inalcançáveis pela lente em ação, pontos que precisam ser comentados, vistas as coisas pelo ângulo do presente ensaio. O primeiro desses pontos cegos é, seria, outro “momento decisivo”, o Modernismo: Candido só

13 Especulação: o artigo “De Cortiço a Cortiço”, de 1973 (incluído em O discurso e a cidade), pode ser lido como um novo capítulo da Formação da literatura brasileira, tratando de mostrar o papel do Naturalismo.

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consegue armar sua equação crítica e seu ponto de vista porque está estabelecido no ângulo modernista de leitura do mundo. Na introdução, lemos a declaração do autor de haver-se identificado com o ponto de vista dos primeiros românticos, e que foi a partir dessa condição que ele releu os ditos momentos decisivos, Arcadismo e Romantismo; para mim, essa identificação só subsiste porque, como sabemos (e desde Mário de Andrade está dito de modo explícito, naquela famosa conferência de 1942 intitulada “O movimento modernista”), a visão do nacional por parte dos românticos tem muito de parecido com a dos modernistas paulistas, ambos relendo o país, sua literatura, a representação da vida nacional, ambos mergulhados em otimismo e gosto pela novidade, ambos com finalidades de constituir uma interpretação nova do Brasil.14

Outro ponto cego, já mencionado acima, é Macha-do de Assis. Não porque Candido não soubesse de sua importância formativa e sua excelência estética, mas porque não dispunha do instrumental teórico capaz de descrevê-las (esta teoria será construída por seu discípulo Roberto Schwarz, na esteira de seu professor mas com a lente lukacsiana e adorniana)15. Talvez se deva dizer, com maior precisão, que Machado de Assis é um ponto cego por ser o ponto de fuga da armação conceitual, no sentido geométrico: Candido estava, ao conceber a Formação, profundamente identificado com o Machado do “Instinto de nacionalidade”, que também tomava o Brasil como uma unidade indiscutível ao estabelecer uma perspectiva com seu tanto de evolucionista, como se lê na declaração de que uma literatura não tem Grito do Ipiranga, mas se faz aos poucos, num processo que só não é chamado de “sistema literário” porque escapou a Machado o termo.

Em sentido estrito, os dois pontos cegos mais relevan-tes, a meu juízo, são os que dizem respeito a totalidades que Candido naturaliza: o Brasil e a Europa. Onde se lê “Europa”, na Formação, quase sempre se deveria ler “Fran-ça”, que nem por ser o farol da cultura letrada brasileira era a única fonte do pensamento, bastando ver o caso do

14 No já mencionado ensaio “A literatura na formação de uma comunidade”, lemos um comentário que pode ser tomado em linha com o debate que aqui se faz: “como o Romantismo, o Modernismo é, de todas as nossas correntes literárias, a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas” (p. 165).

15 Em sentido mais remoto, a ausência de Machado na Formação pode ser creditada a motivos empíricos da vida social: no tempo histórico do Candido em busca da validação do modernismo (anos 1930 a 50, mais ou menos) eram pouco nítidas ainda as mudanças sociológicas havidas no país desde o tempo histórico de Machado (digamos os anos entre 1870 e o fim do século 19), ou, se não pouco nítidas, de todo modo muito menos nítidas do que passariam a ser no tempo histórico seguinte ao deste Candido, que vai ser o tempo do Schwarz analista do narrador machadiano (anos 1960 a 80), tempo este em que se tornou clara a distância entre o mundo da fábrica moderna e do proletariado urbano, notadamente paulistanos, e o mundo do favor e dos agregados dependentes, especificamente cariocas. Dito de outro modo: quando Schwarz entra em cena, já há toda uma nova distância, todo um afastamento em relação à experiência social concreta que Machado abordou; uma distância tal que permite ao crítico discernir e descrever o mundo do favor, agora visível

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mesmo Machado, que sabidamente deu o salto decisivo de sua carreira mediante emulação do romance inglês. (Mas Machado, vale insistir, também tomava o Brasil como uma totalidade, sem matizes, naturalizando o ponto de vista carioca.) E onde se lê “Brasil”, estamos lendo de fato Rio e Minas, a partir de São Paulo, porque as variedades de literatura e vida literária que estejam fora deste circuito são apagadas – com sólidas razões, me apresso em dizer, dada a centralidade dessas duas províncias na organização do Brasil, mas razões de todo modo criticáveis, vendo as coisas de longe no tempo e no espaço e mantendo em mente as variadas formações infranacionais no Brasil, aquilo que a pressa classificatória e a ideologia centralista chamam de “regionais”.

Em certa medida, a ligação de Candido com o Moder-nismo paulista explica, provoca e condiciona esses pontos cegos. Em atitudes de vanguarda, há pouco espaço para sutilezas, porque a ação é mais urgente do que a reflexão, os detalhes, as delicadezas; e os dois pontos de apoio histórico de Candido (o Romantismo, deliberadamente, e o Moder-nismo paulista, implicitamente) são de feição vanguardista, ao menos em um sentido decisivo – são processos com claro empenho ideológico, são literatura a serviço de causas, no primeiro caso definindo a nacionalidade autônoma a partir do Rio, no segundo a nacionalidade moderna a partir de São Paulo16.

Agora o caso da naturalização de “Brasil”: se tomarmos uma figura de referência para cada um dos dois momentos implicados no raciocínio, José de Alencar para o Romantis-mo e Mário de Andrade para o Modernismo, autores por si-nal com grandes afinidades ideológicas, veremos que ambos julgam incorporar todo o país em sua obra, desde o centro em que vivem até toda a variedade regional brasileira, desde o passado até o presente, Alencar extensivamente, em vários romances, Mário intensivamente, em Macunaíma (e também nas pesquisas sobre cultura popular). Nesses exemplos se pode ver que uma idéia totalizante de Brasil estava encarnada na própria obra de seus talvez principais

por contraste. De modo mais simples ainda: no tempo de Schwarz é que se configuraram as condições materiais objetivas para a compreensão crítica das estruturas profundas presentes na obra de Machado.

16 Sobre esse paralelo, Ian Alexander fez, em conversa com o autor do presente ensaio, uma síntese em forma de quase-piada de grande eloqüência: “Eu gostaria de acrescentar também uma oposição: com o Romantismo, o Rio diz para Portugal ‘somos mais parecidos com Paris do que com vocês’; com o Modernismo, São Paulo diz para o Rio ‘somos mais parecidos com Paris que vocês’.”

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agentes, que se dispensavam, por assim dizer, de atentar para a difusa diversidade do país, em latitudes e longitudes variadíssimas. Creio que se poderia identificar na oposi-ção entre Mário de Andrade, metonímia de Modernismo paulista, e a Academia Brasileira de Letras, supra-sumo da velharia combatida pela vanguarda de São Paulo, a raiz da naturalização de “Brasil”, a raiz desse ponto cego. A ABL (os parnasianos, Ruy Barbosa, Coelho Neto) ganhou o estatuto de inimigo número um, numa opção histórica que empurrou para a sombra uma boa quantidade de formas e autores que pouco ou nada tinham com o conservadorismo acadêmico (Euclides da Cunha, Lima Barreto, Augusto dos Anjos, João do Rio, os poetas simbolistas, para nem falar de escritores de circulação provincial, como eram nessa época Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto); nesse processo, quem tomou a palavra na condição de Modernismo, ten-do escolhido aqueles alvos, modelou-se a si mesmo pelo tamanho do inimigo enfocado.

Por que Mario de Andrade não mediu forças, por exemplo, com os experimentos simbolistas, que já tinham mostrado boa força no Brasil na altura de 1920? Por dois motivos, penso: um, Mario não teria motivo para combate, porque o melhor Simbolismo tem muito mais afinidades do que discrepâncias com as melhores vanguardas, em sentido amplo, particularmente na rejeição à brutalidade da vida regulada pela mercadoria; dois, ele teria que apurar o debate formal em grau superior e precisaria haver-se com debate crítico mais duro, porque o Simbolismo tinha tutano estético muitíssimo mais exigente do que o Parnasianismo, no Brasil e em qualquer outra praça, sendo parte notável da visão crítica contra o mundo do capitalismo da chamada Segunda Revolução Industrial.

Consideradas as coisas por esse vértice de observação, será possível estimar o preço pago por Candido, na armação de sua perspectiva formativa, em função de sua militância modernista: ao olhar para o conjunto da história de lite-ratura brasileira pela mesma lente de Mário de Andrade, sem registrar qualquer discrepância notável para com ela,

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também ele, Candido, operou com uma noção de Brasil que necessariamente reduzia a quase nada a complexidade das discrepâncias regionais, uma vez naturalizada a visão do país todo ao seu centro.

Quanto ao ponto cego da idéia de Europa, há ainda muito a pensar. Ian Alexander, que tem sido um leitor minucioso desse tema, na obra de Candido (e na Harold Bloom17, mostrou que na Formação acontecem sucessivas modulações para acomodar a experiência estética e política parisiense no patamar de “Europa”; para Ian, australiano que faz questão de manter tal dado no horizonte de sua análise que nada tem de nacionalista, essa identificação de Paris com Europa empobrece imensamente o debate. Penso mais ou menos da mesma forma, em suma: aquilo que Alencar e Mário viam como sendo Europa – funda-mentalmente a cultura de língua francesa processada em Paris – é o que a Formação toma como Europa. E isso por certo reduz muito o espectro da variedade real européia.

Pode-se armar uma equação elegante e, creio, repre-sentativa: o Machado de Assis crítico está para o Roman-tismo/Alencar como o Antonio Candido da Formação para o Modernismo/Mário de Andrade; e os dois conjuntos compartilham uma visão centralista, centrípeta, exclu-dente, que não foi inventada por eles, antes está no DNA da organização do Brasil, desde Portugal e até hoje (e tal centralismo tem tudo a ver, por contraste, com a renovação que o trabalho de Jorge Caldeira está promovendo, como veremos adiante). Uma visão que de certa forma simplifica e assim empobrece as duas pontas do processo, a de lá, do centro de referência, e a de cá, da periferia brasileira.

Esclarecendo: não é que o Machado crítico (funda-mentalmente até seus quarenta anos de idade, momento a partir do qual praticamente abandonou a atividade crítica para se dedicar à ficção e à crônica) ou o Candido até a publicação da Formação não tivessem notícia das literatu-ras inglesa, alemã, italiana, etc.; é que não as colocaram em jogo no raciocínio de tipo formativo, que tem como pontos de referência o debate português (forte no tempo

17 Ver “Leituras novo-mundistas” e Formação nacional e cânone ocidental: literatura e tradição no Novo Mundo”.

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de Machado, já bastante secundário para Candido, embora presente nos círculos letrados brasileiros, que nos anos 1950 ainda se entregavam a discussões sobre quem era melhor, Eça ou Machado18) e o francês (forte nos dois casos). E por quê? A primeira resposta está na evidência de que Portu-gal e França (Paris, mais propriamente) de fato ditavam normas para os artistas e intelectuais brasileiros entre o final do século XVIII, passando pelo século XIX como um todo e alcançando até os anos 1950, muito mais do que qualquer outra tradição culta; assim, é razoável operar a compreensão crítica levando em conta esses dois centros, e não outros. Onde, então, o cabimento para argüir a na-turalização de “Europa” em Candido (e em Machado)?

Assunto para muita meditação, que não espero haver entendido suficientemente mas que pode talvez ser en-caminhado provisoriamente do seguinte modo: na obra de Machado, escritor formado fortemente na tradição francesa, está bem provado que houve um aporte decisivo, para seu amadurecimento como escritor, vindo da língua inglesa – a leitura meditada de Lawrence Sterne está na base das Memórias póstumas de Brás Cubas. Sem essa lei-tura, o depois famoso humor machadiano seria bem outro, talvez diretamente voltairiano, sem o traço inglês que todos nele reconhecem como excelente. Da mesma forma, Machado é um excepcional freqüentador de Shakespeare, desde jovem, e algumas de suas peças estão no centro da criação machadiana, como é o caso do Othello. Mesmo assim, quem mais fez sua cabeça foi mesmo a literatura de língua francesa, incluindo a crítica e a historiografia literária, e por essa tradição ele parecia medir sua visão das coisas literárias.

Na obra de Candido, que ostenta intensa relação com a cultura de língua francesa e um indesmentível empenho de análise e interpretação da literatura brasileira, domínio este largamente dominante no conjunto da obra, ocupam lugar de secundária importância análises de autores de outras origens. Há alguns casos: os estudos sobre T. S. Eliot (de 1945, reunidos para publicação em 200019), um

18 Num ensaio com um tanto de memória, Candido lembra o imenso papel que teve, em suas leituras de juventude, a presença portuguesa: “Eça de Queirós era o mais lido e conhecido [dos escritores da geração portuguesa de 1870] (...). Anoto de passagem a coincidência feliz de terem sido contemporâneos dois narradores de nossa língua que eram dos maiores nas literaturas ocidentais: ele e Machado de Assis. E faço a anotação para dizer que Machado era menos lido, menos conhecido e menos estimado. Sobretudo, menos incorporado aos hábitos mentais” de sua geração. Está em “Dos livros às pessoas”, em O albatroz e o chinês, p. 102.

19 Ver Bibliografia de Antonio Candido, p. 68-9.

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trabalho sobre Joseph Conrad (redação primeira em0 1957, reunido em 1964 no livro Tese e antítese sob o título “Ca-tástrofe e sobrevivência”20), e um trabalho sobre Ricardo II, de Shakespeare (1992); o ensaio sobre o romance de Giovani Verga Os Malavoglia (1970), assim como comen-tários sobre outros escritores italianos (Ungaretti e Dino Buzzati); um ensaio sobre Kafka; outro sobre poema de Kavafis; alguns ensaios sobre o âmbito latino-americano. No conjunto da obra de um pensador de primeiro nível, o campo não-francês e não-brasileiro não chega a ser vasto, convenhamos. Mas é por isso mesmo significativo: Can-dido, leitor de várias das tradições literárias ocidentais, de fato pouco escreveu fora do circuito França–Brasil; aqui estará, talvez, uma evidência de sua forte afinidade com tal universo de experiências, que tem como contraparte certa falta de fluência em relação a outras tradições.

Problema algum para a obra de Candido, naturalmen-te, ou para a de Machado, menos ainda: o que importa, para essa breve discussão sobre a possível naturalização da noção de Europa, é tão-só apontar algumas evidências laterais da força que tem a França, muito superior à de qualquer outra nação ou língua européia, na perspectiva, isto é, na visão de mundo dos dois analistas que aqui ocu-pam o centro do interesse.

O sertão entra em cena

A modulação feita há pouco, que aponta para o que parecem ser pontos cegos na perspectiva formativa, aju-dará, quando menos, a entrar no novo passo do raciocínio de modo informado e, quando mais, a considerar as coisas que seguem sempre com essa preliminar crítica. Dito isso, vamos ao trabalho de Jorge Caldeira, para depois, a partir dele, voltarmos ao tema de formação em Candido.

O debate formativo, nos últimos anos, não tem tanta força pública, e talvez esteja destinado às estantes aca-dêmicas, aos arquivos sem acesso regular. Assim, cabe a pergunta: há pensadores públicos de temperamento for-

20 Devo a lembrança a Homero Araújo.

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mativo, aparecidos de 1980 para cá? Arrisco uma resposta, que não dispõe de qualquer consenso: acho que há alguns, que ocupam lugar de destaque para além dos muros acadê-micos, embora tenham, alguns deles ao menos, formação e vida profissional dentro deles. Penso nos ensaios de gente como Caetano Veloso, os psicanalistas Jurandir Freire Costa e Contardo Calligaris e o professor de literatura e compositor musical José Miguel Wisnik, diversos entre si mas igualmente empenhados em processar analiticamente a experiência brasileira de forma a encontrar e descrever constantes, todos eles intervindo na arena pública do deba-te; acrescento a essa estrita lista a figura de Jorge Caldeira, jornalista com uma importante atuação na área da canção popular e com formação na área da Política, em que se doutorou. A leitura de seus livros está na base do presente ensaio, desde a biografia de Mauá (na verdade desde antes, com seu estudo sobre o samba carioca dos anos 20 e sobre Noel Rosa) e alcançando sua produção mais recente, como os dois volumes de O banqueiro do sertão.

Tenho acompanhado com muito interesse suas formu-lações analíticas, marcantemente originais e solidamente argumentadas, que aproveitam as recentes conquistas empíricas de historiadores como Manolo Florentino e João Luís Fragoso, entre outros. Caldeira é, na geração atual, talvez o mais formativo dos intelectuais: na conjuntura socialmente progressista deste tempo FHC-Lula, ele tem apresentado um novo diagnóstico do passado com vistas a disputar na arena viva da política e da ideologia uma visão prospectiva do país, num movimento mental relativamente otimista que é muito semelhante, em estrutura, ao dos demais ensaístas formativos. Em seu livro mais recente, História do Brasil com empreendedores (Ed. Mameluco, 2009), ele aprofunda a crítica a uma tradicional explicação do passado brasileiro, aquela posta de pé por Caio Prado Jr. Caldeira demonstra, a meu juízo suficientemente, que Caio Prado supergeneralizou uma visão da história colonial e do Império em que certos traços, como o escravismo e,

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mais ainda, o latifúndio, resultam valorizados de modo impróprio.

Esses dois aspectos, escravismo africano e latifúndio, ao lado da condição quase exclusivamente exportadora, embora tenham estado evidentemente no centro da orga-nização econômica e social que produziu açúcar e café em regime de “plantation”, foram tomados, a partir de Caio Prado, e sem muita mediação, como verdadeiros para a totalidade do país, quando, diz Caldeira, no vasto “hinter-land” que se estendia de São Paulo para o norte, o oeste e o sul (imenso e variado território do sertão, tomando a palavra em sentido ultragenérico, território em que por certo havia escravidão e latifúndio, mas não sempre, não como contínuo social, nem majoritariamente na geografia), imperava uma organização muito diversa, baseada no que Caldeira, liberal sem temor ao nome, chama de empreen-dedorismo, isto é, ação social e econômica, de indivíduos e grupos, voltada não para a simples sobrevivência, nem principalmente para a exportação, mas já para a busca de lucro. (Daqui Caldeira extrai um dos principais argumentos para a demonstração da existência do mercado interno.) Quem seriam os empreendedores? Os bandeirantes (eles próprios já mestiços de branco com índio), os índios que eram seus servos ou eram contratados por eles, os homens livres em sentido amplo – ou, dizendo de outro modo, os não-escravos, no sentido estrito em que eram escravos os trabalhadores da plantation –, gente que fazia trocas de comércio (mesmo que muitas vezes sem moeda, apenas na forma de escambo ou na modalidade de fiado a ser saldado em algum momento do futuro), que coureava e tropeava entre o sul e o centro do país, que guerreava, que desco-bria rotas e minas pelo sertão afora, constituindo todos um desigual mas forte tecido social ligado ao movimento de mercado interno, sem nexo direto com a exportação da grande empresa latifundiária escravista localizada no litoral atlântico.

Importante dizer que não se trata, para Caldeira, de repisar a velha e conhecida dualidade entre sertão e litoral,

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ou sociedade interiorana de mercado interno (mas sem moeda) versus “plantation” voltada ao mercado externo, como instâncias distantes: neste livro e num excelente trabalho anterior, A nação mercantilista, Caldeira mostra várias articulações entre os dois mundos, as duas formações históricas, e afirma, com dados econométricos recentes que parecem confiáveis, que 86% do PIB brasileiro às vésperas da Independência era mercado interno, contra 14% externo, e que a larga maioria da população brasileira era formada por homens livres, não por escravos. A ser verdade (e não tenho motivos nem meios para duvidar), aí está uma enorme mudança de patamar do debate sobre a formação histórica do país; estamos diante de uma neces-sária alteração de perspectiva. Olhando de trás para diante, poderíamos dizer que Caldeira vocaliza, com sólidos dados empíricos, o ponto de vista paulista, hegemônico em nosso tempo, ou mais restritamente o ponto de vista paulistano, da cidade de São Paulo, que é de certa forma a síntese desse mundo do sertão, não apenas porque foi, a contar de meados do século XVI, o ponto português mais avançado em direção ao “hinterland”, mas também porque é uma cidade empreendedora, que encarna a talvez mais notável vocação progressista na economia em todo o país.

Onde entra Candido nessa conta? Bem, o caso é que seu livro mais claramente voltado a uma descrição histórica21, a Formação da literatura brasileira, depende, mesmo indiretamente, daquela visão de Caio Prado Jr. Em qual medida, é preciso avaliar com detalhe; mas me parece instigante pensar que a Formação é concebida a partir de São Paulo – da USP, filha dileta do Modernismo, com tudo que nisso se implica – mas versa sobre o passado literário ligado ao universo de Minas Gerais no período do ouro (caso histórico de extração de riqueza natural, o ouro, diretamente para girar a roda de mercado mundial já monetizado) e ao mundo da “plantation” fluminense. Nos termos de Caldeira (se deduzo adequadamente), o ponto de vista histórico da Formação de Candido é aquele formulado na cidade-síntese do mundo empreendedor,

21 Há aquele outro livro, já citado, menos exigente do ponto de vista conceitual, concebido especificamente como uma descrição histórica de conjunto: a Iniciação à literatura brasileira, apresentado na orelha como um “resumo histórico da literatura brasileira, desde as origens no século XVI até os nossos dias”.

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São Paulo, e com base na ideologia que melhor exprime esse mundo, o Modernismo de combate, o Modernismo dos manifestos oswaldianos e de Macunaíma; mas o livro de Candido se ocupa não do sertão, e sim do mundo cuja síntese é o Rio de Janeiro, a cidade que, conforme descreve Caldeira (veja-se sua biografia de Mauá), é o oposto do mundo empreendedor, dominado que foi (é, ainda?) pela mentalidade de gente que “se julga identificada com a modernidade, desde que haja garantias que ela seja um privilégio”, em suas palavras, o mundo que Machado de Assis reprocessa criticamente em sua ficção e que Roberto Schwarz descreveu com precisão.

(Por que a Formação da literatura brasileira não se ocupa do mundo do sertão? Resposta simples e aparentemente final: porque o sertão não produzira, até 1950, uma litera-tura suficientemente vigorosa; pior que isso: o mundo do sertão é o mundo da tradição oral, e não da palavra escrita, considerando o período todo, desde o século XVI. Dizendo de modo positivo: foi nas cidades criadas pela “plantation”, especialmente o Rio de Janeiro, assim como, antes, nas cidades mineiras criadas com o ouro, que a literatura se criou e circulou. Voltaremos ao ponto.)

De certa forma, se poderia pensar que, pela perspectiva de Caldeira, a Formação de Candido reuniu analiticamen-te aquilo que seria talvez mais bem analisado se tomado separadamente, Minas e Rio, ou, nos termos da literatura, Arcadismo e Romantismo. Por que reuniu tais momentos? O argumento de Candido é que os dois, opostos em termos estéticos (o Arcadismo com seu internacionalismo classi-cista, o Romantismo com seu nacionalismo vanguardista), contribuíram solidariamente para validar o Brasil como um lugar inserido no sistema geral do Ocidente. Então haverá razão histórica de ordem estrutural para, pensando a partir de Caldeira, reunir numa mesma visada, numa mesma explicação, as duas formações históricas distintas, a da “plantation” hegemônica na formação do estado nacional brasileiro na Independência, e a do sertão, longe desse processo embora a ele associada? Temos aqui uma

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peculiaridade história que vale a pena esmiuçar. O caso é que Minas por um lado pertence ao mundo do sertão e do empreendedorismo caldeiriano – as descobertas das minas dependeram diretamente de empreendedores, que queriam lucro, e nas cidades geradas pelo ouro prosperou, como em qualquer cidade, a vida empreendedora de milhares de in-divíduos, em ofícios especializados, em tarefas artesanais, e até mesmo na burocracia, nas forças policiais e militares e no mundo religioso, para nem falar do temperamento algo empreendedor implicado nas idéias de autonomia poilítica, cogitadas nas mesmas cidades –; por outro lado, Minas se liga fortemente ao mundo da “plantation” hegemônica no litoral, o mundo da produção do açúcar e do café, porque a extração do ouro foi feita grandemente com mão-de-obra escrava negra, a mesma que organizava a economia exportadora brasileira, e também porque a organização do estado português no Brasil por assim dizer transitou entre Salvador, Vila Rica e Rio de Janeiro, o que faz dessas cidades uma teia que está na origem do estado brasileiro.

Então Candido tem razão em reunir os dois momentos em uma mesma visada, por certo. Mas não estão isentos de ambivalências nem o processo histórico da sucessão Minas–Rio, nem a leitura de Candido sobre as afinidades entre os dois momentos literários relativos a Minas e ao Rio. A conta completa, aliás, não envolveria apenas uma sucessão de dois estágios, mas de três, desde o século XVIII: de Minas, seu ouro, sua burocracia, seus empreendedores e seu Arcadismo, passa-se ao Rio, seu café, o Estado nacio-nal brasileiro organizado e seu Romantismo (mas também a literatura do fim do século e a Academia Brasileira de Letras), e chega-se finalmente a São Paulo, seu café e sua indústria, a República que patrocina e o Modernismo que pratica e entroniza. (Isso deixando de lado Salvador, com seu açúcar, sua vida urbana, seu relativo requinte cultural, seu Barroco, etc., conjunto que porém poderia ser inte-grado ao raciocínio, em certo sentido, mas contrariando o pressuposto de Candido para a formação do sistema literário, para ele ausente no século 17 baiano.22)

22 Essa hipótese de integração tem, parece-me, grande cabimento, mas não será discutida em detalhe aqui. Para considerá-la, será preciso alterar uma cláusula aparentemente pétrea da visão de Candido, justamente a que não reconhece a existência de sistema de produção e circulação regulares de literatura na Bahia do século 17. Como alterar? O ponto-chave se liga a uma mudança da visão estritamente sincrônica que Candido estabelece: se de fato Candido tem razão em não reconhecer tal sistema no século 17 baiano, e o tem, por outro lado é certo que no século 18 e seguintes a Bahia conhecerá a produção e a circulação de literatura culta de modo sistêmico, fato singelo cujo reconhecimento de alguma forma repõe Salvador no mapa formativo, em sincronia com as demais cidades brasileiras com vida letrada, com o acréscimo nada desprezível de haver sido sede de escola superior (dos jesuítas) e de alta burocracia letrada desde o século 17 mesmo, para nem recuar ao 16, e de haver visto florescer, mesmo que sem a circulação regular e/ou em livro, a obra de grandes como Vieira e Gregório de Matos.

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Assim, não é que Minas e Rio devessem ser vistos isoladamente em função da visão do Caldeira, que coloca em cena o mundo do sertão como protagonista da cons-trução brasileira, e o motivo é simples de enunciar: a rigor, sendo o objeto de Candido a literatura (poderíamos dizer, para ênfase, literatura culta), é óbvio e fatal que seja ela compreendida em termos adequados, como uma forma artística e uma prática social marcantemente urbanas, cultas, letradas, ocidentais, exigentes, tendencialmente sem importar a marca do lugar específico; nesse sentido e nesses termos, Minas no último terço do séc. 18 e o Rio do século 19 são de fato ambientes aparentados, que têm tudo para ser vistos como continuidade, como permanência, como partes de um mesmíssimo circuito, ou sistema, para usar o termo de Candido. Haveria algum matiz de distinção entre Minas e Rio, sublinhado por Caldeira e ignorado por Candido? Sim, há, mas não é óbvio, nem imediato. Candido olha para o continuum Minas–Rio a partir do Modernismo paulista, e o que dá tutano a essa perspectiva é o ângulo europeu (francês, mais restritamente), que olha para a instauração e o desenvolvimento da literatura culta em um país da América.

Mas há o outro lado, potencial ao menos: se a Minas urbana, das cidades organizadas em função da exploração e do controle da produção do ouro, está integrada nesse continuum, não assim a Minas do sertão, que estará in-tegrada ao mundo daquela outra formação, que Caldeira qualifica como sendo a dos empreendedores, fora da Corte, fora da literatura culta e mesmo fora do português culto (praticando a chamada “língua geral”, misto de tupi com português, falado francamente nesse ambiente e até usado para registro escrito eventualmente, língua ou dialeto que não chegou às alturas da literatura escrita naquele momen-to, nem no Romantismo23). Esse outro mundo importa para a literatura, então? Sim, importa: não no século 18 mesmo – a menos que tomemos um caso notável como O Uraguai, de Basílio da Gama, de 1769, como sendo um esforço de fazer falar o sertão na língua da literatura, hipótese interessante

23 Rodolfo Ilari anota que eram várias as “línguas gerais” no Brasil, e que uma delas “continuou sendo falada em São Paulo até o início do século XX”, apesar de ter havido proibição formal de uso de língua geral em contexto escolar, por Pombal, em 1757. Ver O português da gente, p. 62.

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e futurosa, mas que precisaria ser demonstrada –, mas a longo prazo é este mundo que vai falar na obra de Afonso Arinos (Pelo sertão, de 1898), e a partir dela na literatura produzida nesse mundo, até ao menos o gênio Guimarães Rosa, que não se explica pela pauta do Modernismo paulis-ta e sim por esse outro continuum, de que a literatura dita regionalista, de um pedante esquecível como Coelho Neto a um gênio não totalmente realizado como Simões Lopes Neto, é um termo médio indispensável. Nessa tradição se inscrevem ainda outros nomes, aqui apenas evocados: o Bernardo Guimarães romancista; Manuel de Oliveira Paiva; Monteiro Lobato, o dos contos mas também o da criação do mundo ficcional infantil; uma variedade de pes-quisadores de valor e obra muito irregular, como Valdomiro Silveira e Cornélio Pires, assim como os contos e novelas de Hugo de Carvalho Ramos e de Alcides Maya; e o caso paradigmático de Euclides da Cunha, com seu ensaio sobre o sertão mas dirigido à cidade moderna – “este não é um livro de defesa [dos sertanejos], é infelizmente, de ataque”, disse ele mesmo, nas notas à segunda edição24.

E neste outro processo se poderá ver essa linhagem muito significativa de narrativas (e também de formas poé-ticas, incluindo as que se expressam na canção), linhagem que a visão modernista, urbanófila, desprestigia, negli-gencia ou simplesmente renega, linhagem que demonstra o parentesco de todo o mal chamado “regionalismo” (o bom e o ruim, que em descrições históricas não se devem excluir enquanto elementos do processo de formação), literatura que, para acrescentar outro elemento, guarda ligações importantes com a tradição narrativa oral, seja nos temas (lendas, imaginário indígena, etc.), seja nas formas (formas arcaicas de relato e poesia, a linguagem, o narrador totalmente identificado com o protagonista em Simões Lopes Neto e em Guimarães Rosa, etc.25). Quer dizer: para enxergar essa linhagem, para ver seus lineamen-tos e suas ligações com o mundo do sertão de Caldeira, é absolutamente central por em tela de juízo ao Modernismo, que se apresenta como processo unificado, unitário, unifi-

24 P. 783 da edição de Leopoldo Bernucci.

25 Num ensaio prenhe de idéias sobre o tema (ainda que tenha como objeto algo diverso), José Hildebrando Dacanal aventava, no começo da década de 70, uma descrição que ainda hoje guarda interesse para o presente debate. Ali, Dacanal postulava uma divisão em três do país, em termos de organização econômica, social e cultural: haveria o Brasil da Costa, integrado à Europa (o mundo da “plantation” mas também dos grandes portos exportadores e das grandes cidades); próximo da Costa haveria o que ele chamou de Interior I, espaço e sociedade agrários integrados econômica e culturalmente à Costa; e haveria o Interior II, o espaço do sertão, com pouca relação orgânica com o Interior I e a Costa. A Costa é o território da literatura reconhecida como culta, o mundo de Alencar, Machado de Assis e da Academia; o Interior I é o mundo de Bernardo Guimarães, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato, Erico Verissimo; o Interior II é finalmente o mundo de Euclides da Cunha, talvez de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa. O ensaio se chama “Dependência cultural: notas para uma definição”; sua edição mais recente está em Ensaios escolhidos.

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cador mesmo a respeito de obras de que devem sua força a bem outros elementos, outros processos, outra formação histórica; ao Modernismo, que se compreende como a culminação de tudo e a prefiguração de tudo, e com isso obscurece várias facetas, vários processos, em particular esse mundo do sertão caldeiriano; ao Modernismo, que está invisível mas indesmentível nas entranhas da visada formativa de Candido26.

Perspectivas

Que nova “formação”, ou melhor, quais novas pers-pectivas sobre a formação de um sistema literário no país se tornam possíveis ao considerarmos essa historiografia mais recente sobre o Brasil, em especial as teses de Cal-deira? Se conseguirmos identificar e neutralizar a fantasia de onipotência que há décadas se atribui o Modernismo paulista, tanto na produção literária quanto, pior ainda, na crítica e na historiografia literárias, e que homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira ao custo de apagar muitas diferenças relevantes, creio que será possível diagnosticar processos interessantíssimos de formação do sistema literário e cultural no país, que agora são invisíveis em função do monopólio modernistocêntrico. Muitas per-guntas serão formuláveis, muitas descrições novas serão possíveis.

Qual o tamanho dos sistemas não-hegemônicos, que na pressa modernista ficaram reduzidos ao rótulo de “regionais”, rótulo que de saída rebaixa o objeto a que se refere? Qual sua função? Qual sua capacidade de gerar leitores? Qual sua possibilidade de produzir obras de alto valor literário? Como funcionam os casos de formações não-hegemônicas que compartilham materialidade his-tórica e formas culturais com outras línguas e culturas (pensemos no caso do sul, com tanta identificação social e estética com os países do Cone Sul, ou na grande comarca da Amazônia)? Qual o lugar de Monteiro Lobato, com sua visada antimodernista, ou antivanguardista, inegável,

26 Desculpada a autocitação, escrevi um texto a respeito do nexo entre a hegemonia do Modernismo de feição paulistana e a má (inapetente, equivocada) apreciação da literatura dita regionalista: “Conversa urgente sobre uma velharia – Uns palpites sobre a permanência do regionalismo”, em Cultura e pensamento, nº 3, São Paulo, dezembro de 2007.

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no processo real de criação de leitores? Que peso teria a resposta a essa questão na avaliação do cânone escolar de hoje? Qual o sentido de sua oposição ao projeto mo-dernista, que ele viu nascer e crescer (mas não chegou a ver hegemônico)? Qual o nexo entre a poesia moderna e a poesia simbolista, que é forte mas se tornou invisível pela militância exclusivamente antiparnasiana de Mário de Andrade? Qual o nexo entre o romance realista dos anos 30 e 40 (Jorge Amado, Erico Verissimo, Rachel de Queirós, etc., que encontraram a linguagem narrativa capaz de realmente imantar leitores em massa no país) e o realismo-naturalismo de duas gerações antes? Não haverá aqui mais continuidade do que ruptura, ao contrário do que tem dito a historiografia modernistocêntrica?

E, mais genericamente, o que poderemos dizer da criação letrada oriunda do mundo do sertão caldeiriano? Ele é igual ao do mundo da “plantation”? Ele fala a mesma língua, ao longo do tempo? Certo, o mundo do sertão é pouco letrado, ao longo do tempo, e se valia da língua geral para falar e anotar os negócios, para nem dizer que precisava lidar com o espanhol em toda a fronteira, assim como com línguas indígenas; mas esse mundo de escassa tradição letrada acedeu à escrita em algum momento, nem que seja o momento final do século 19 e inicial do século 20, quando sua cidade-síntese, São Paulo, explode econo-micamente e engole sucessivas legiões de operários e de imigrantes, que se somam aos incontáveis descendentes de índios já amalgamados à população – e quem vai expressar essa experiência no plano das letras? Resposta rápida: a música caipira, Adoniram Barbosa e... o Modernismo de São Paulo.

Quer dizer: me parece que temos muito para pensar e descrever, em favor de deixar aparecer mais nitidamente a produção literária feita em língua portuguesa no Brasil: mais estilos, mais vozes, mais textos, mais práticas de leitura terão direito à existência no plano da crítica e da historio-grafia. Assim como, talvez mais importante do que tudo, essas variedades terão direito à existência no repertório

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de leitura dos brasileiros, fortemente dependente do que é oferecido na escola, a qual hoje só enxerga e só repassa adiante o que está sancionado pelo cânone modernista paulistano, o que sobrevive a esse restrito filtro.

Assim, a interpretação de Caldeira ilumina a histó-ria brasileira com uma luz relativamente nova e muito interessante, incluindo a produção literária, que porém não está entre seus objetos imediatos. Por um lado, o Modernismo paulista, visto por esse ângulo, perde parte da centralidade que adquiriu, em processo histórico des-crevível mas nunca descrito em detalhes (embora intuído por mais de um intelectual, começando talvez por Sérgio Miceli em seus estudos sobre os intelectuais e escritores da República Velha e do tempo de Vargas): ele deverá ser reposto como uma vanguarda relevante, de grande poder de imantação e de vistas largas, sem dúvida, mas também como uma vanguarda que chegou ao poder, o político (já com Mário em São Paulo, depois com a criação do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico, já envol-vendo Rodrigo Mello Franco de Andrade, o mesmo Mário e Augusto Meyer, além de Carlos Drummond de Andrade, entre outros) e o ideológico (já com a criação da USP, depois com a indústria cultural moderna, etc.). E, tendo chegado ao poder, impôs sua visão das coisas, mas – aqui um paradoxo interessante – mantendo uma reivindicação de energia utópica e inconformista, quer dizer, mantendo o charme da vanguarda que não está no poder, que ainda quer conquistar o poder que de fato já tem. Um paradoxo que valeria a pena descrever e que, uma vez descrito, verá desativada parte de sua descomunal força institucional.

Mas esse mesmo Modernismo também ganharia, nessa hipotética nova descrição, ao menos um traço novo: a qualidade de ser a culminação da construção do sertão, um ponto alto na trajetória de crescente força na expres-são letrada culta de uma cidade que é a mais sofisticada construção histórica do mundo do sertão. Neste caso, Mário de Andrade passaria a figurar com mais clareza como o pensador deste mundo, o do sertão, o que ele é em

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certo sentido evidente, nas pesquisas sobre música popu-lar que ele fez, mas que em outro sentido não é evidente, por exemplo na síntese (confusa, problemática) que ele tentou fazer do Brasil todo, mas com ênfase no mundo do “hinterland”, em Macunaíma, em que a cidade é uma coisa demoníaca, por sinal tendo como demônio-mor um italiano endinheirado, e em que o mundo primitivo é uma utopia regressiva. Em sentido mais geral, a visão de Caldeira pode ajudar a mostrar que o combate modernista foi mesmo uma parte decisiva da disputa pela hegemonia entre o mundo paulista, fruto da formação histórica do sertão, e o mundo carioca, fruto refinado e derradeiro da formação história da “plantation”, do açúcar da Bahia e do café da província fluminense; entre o mundo nascido da força “empreendedora” e o mundo brotado da força cortesã, do jeitinho, do pistolão.

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O escritor e o crítico (lições de mediação)

Salete de Almeida Cara*

resumo: Este artigo recupera um curso de pós-graduação mi-nistrado pelo Prof. Antonio Candido em 1975. Ele se vale das anotações de classe de uma aluna do curso como fonte para as leituras daquele material.

palavras-chave: forma literária, experiência social, media-ções.

abstract: This article draws on a graduate course taught by Professor Antonio Candido in 1975. It uses the class notes written by a student enrolled in the course as source for the lectures material.

keywords: literary form, social experience, mediations.

Quem deseja enfrentar os desafios de uma análise lite-rária que leve em conta as relações entre experiência social e forma literária sabe que, formalizadas no texto, estarão várias ordens de questões que precisam ser devolvidas às suas circunstâncias históricas. Começando pelos próprios objetos que o escritor escolhe tratar: antes mesmo de serem figurados literariamente, eles colocam problemas e fazem pensar, já que um texto nunca se desvincula da perspectiva do seu presente, que é simples e pouco complexa apenas para os ingênuos ou de má-fé. Mas, para quem leva em conta o caráter mediado das obras, o modo de apreensão dos problemas trazidos pelos objetos fala também das con-dições históricas em que se dão os impasses, para os quais as obras dão respostas produtivas, nos melhores casos.

É o que pode ocorrer mesmo quando acontecimentos, personagens e narrador remetem a outros tempos, e quando a prosa recolhe a matéria do mundo sem subserviência aos * Universidade de São Paulo.

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modelos mais prestigiosos e sem idealizar o andamento da vida, afastando-se assim das formas convencionais e banais de toda sorte a que ela costuma ficar reduzida (sem pre-juízo das más notícias que possa estar trazendo). No caso da exposição de experiências particulares, que parecem se referir a valores universais e perenes, é também a configu-ração formal do particular que especifica uma experiência mais ampla de tempo e lugar, que é tensa e contraditória e escapa da mera contingência.

Está em questão a posição do escritor diante das formas literárias em circulação: as escolhas formais é que revelam aspectos não previstos por abordagens que pretendem prescrever formas e descrever as condições do tempo, sem um exame crítico dos próprios objetos. No entanto, é justa-mente ao ampliar o limite das possibilidades de configurar sentidos, e ao mostrar o que ainda não é consenso, que a obra se torna propriamente histórica, avessa a suposições ideológicas e a preconceitos.

Por tudo isso, não são poucos os desafios do crítico. Posto diante de objetos já configurados (e não necessa-riamente seus contemporâneos), cabe a ele dar a ver os resultados obtidos pelos procedimentos formais e, por esse caminho, avaliar o alcance da apreensão dos objetos de que trata o texto e das alianças literárias e não literárias que o escritor pode estabelecer. Por isso, os textos literários e críticos, a despeito da autonomia dos primeiros e das particularidades de ambos, têm peso e interesse na medi-da mesma dos recursos que mobilizam, seja para elaborar formas, seja para interpretá-las, tal como acontece com os ensaios de Antonio Candido que compõem, com os objetos analisados, um material que tem força cognitiva para incidir criticamente numa experiência mais ampla.1

Ao remexer anotações num antigo caderno e nas lembranças de aluna de um curso de pós-graduação em 1975 para traçar, talvez dali, a gênese do caminho que me levou à atual pesquisa, “Naturalismo e antinaturalismo no Brasil”, vi que a exposição de Antonio Candido foi além das duas versões da análise do romance naturalista O cortiço,

1 Roberto Schwarz considera “Dialética da malandragem”, publicado em 1970 e provavelmente escrito entre 1964 e o AI5, como o “primeiro estudo literário propriamente dialético”, lembrando que “a dialética entre forma literária e processo social” é “uma palavra de ordem fácil de lançar e difícil de cumprir”. Cf. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In:_____. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 129.

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de Aluisio Azevedo (na qual o curso se deteve mais), pu-blicadas em 1974 e 1976 (esta última uma conferência de agosto de 1975), mesmo sem ter tirado resultados compa-rativos da relação entre o romance brasileiro e L’assommoir, de Émile Zola, perspectiva que o curso não contemplou, e que está na terceira versão da análise, publicada pela primeira vez em 1991.2

A primeira versão de “A passagem do dois ao três” parte de uma discussão de princípios com o estruturalismo, enquanto a segunda coloca em perspectiva histórica os estudos das relações entre literatura e sociedade, algum tempo depois da “compreensível hipertrofia formalista”. An-tonio Candido vê então, com alguma simpatia (“é quase com o sentimento de ver realizado algo previsto e necessário...”), o ecletismo de críticos da sociologia da literatura interes-sados na semiologia de Barthes e na Escola de Frankfurt, os estudos semióticos interessados na “dimensão social do texto” (Lotman, Eco, o grupo da revista Poetics ou de Tartu) e os críticos de formação marxista interessados em estudar a dimensão formal do texto literário.3

Em relação a esses interesses, no entanto, a sua opção crítica tem inflexão mais radical, a saber, a de uma análise ideológica reveladora do nível estrutural subjacente que traduz os sentidos mais fundos do texto, incorporados (e transformados) na própria forma. “O desvendamento da estrutura subjacente do texto (um mecanismo relacional) como modo de apreensão ideológica”. Leitura que depende da eficiência heurística e hermenêutica da categoria das mediações, intermediárias entre as relações particulares da construção literária e as relações gerais que ela coloca em movimento (no caso de O cortiço, está subjacente “o mundo da competição econômica tal como era possível no Brasil do século XIX”).4

As mediações não privam a prosa literária de sua au-tonomia, e são elas mesmas históricas. “Não perder de vista o caráter concreto do texto estudado, sua singularidade. Como o social se desfigura (sic) ao passar para o formal. Interação em relações dialéticas”. Autonomia suficiente para que a

2 Revista de História, São Paulo, n. 100, 1974. Em 1976, uma versão um pouco modificada foi publicada em Cadernos da PUC, Série Letras e Arte, Rio de Janeiro, n. 28. Essas duas versões podem ser encontradas em Textos de intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2002. A versão definitiva, dos anos 90, apareceu primeiro em Novos Estudos Cebrap, n. 30, 1991, e, com o título “De cortiço a cortiço”, em O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

3 Cf. CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2002. p. 60. O grifo é meu.

4 Em itálico e aspas, quando sem referência em nota, estão as anotações do caderno da aluna. Vistas de hoje, muitas vezes fica claro que o espírito do curso esbarrava numa apreensão tributária do alvoroço teórico do momento. Mesmo assim, elas também dão a ver o caráter formativo de indagações que mantinham alto o ânimo e a ambição crítica dos alunos.

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prosa não guarde nenhuma necessidade de fidelidade ou cópia ao que lhe é anterior e exterior, além de garantir sua independência em relação “aos desígnios do autor”. Donde a insuficiência de uma leitura sociológica que tome o texto como sintoma e veículo (a diferença ficava bem sublinhada). Examinadas a partir da formalização literária (“procurar referências de caráter geral nas relações particula-res do universo do livro”), as categorias também podem ser esclarecidas se o analista “encontrar na sociedade em que o texto foi criado certos pressupostos de análise”.5

O que leva à fatura de um real já existente? A his-toricidade dessa fatura (e de suas determinações) desafia aquele crítico que fala em nome de uma ideologia ou, outra face da mesma moeda, em nome da aplicação de “uma técnica convencional de abordagem que não dá conta do que poderia ser a tendência-limite da realidade na obra”. A ideia de “tendência-limite” retoma a questão da fatura e diz respeito às condições da “verdade do texto”, que não significa “pedir ao texto uma relação externa desnecessária, como se ele trouxesse uma verdade científica”. Tal como está no caderno da aluna, aquela verdade é “ilusão de realidade que o próprio texto produz, enquanto situação-limite historicamente conceituada, que o analista deve pressupor.”

As possibilidades históricas dessa “situação-limite”, depois de abalada a possibilidade de reconciliação entre o Eu e o mundo em tempos de “consciência do provisório e do imediato, quando a idéia de missão é substituída pela de função”, ratificam a opção por um materialismo crítico e dialético como modelo de relação entre sujeito e objeto e, portanto, como modo de conhecimento. “É possível conhecer a verdade sem ser através de uma posição definida?” No caso do alcance cognitivo da literatura, a posição de sujeito não seria a de mero paciente do que lhe é exterior, em que não lhe cabe nenhum papel na construção do conhecimento, e tampouco a de construtor privilegiado da realidade (um idealismo extremo sem referências ex-ternas e nenhuma garantia). “A inteligibilidade do mundo é

5 O curso de Pós-graduação “Leitura ideológica dos textos literários”, em Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP em 1975, tinha eixo teórico forte, com análises de textos e seminários dos alunos, e desenvolveu o seguinte programa: I. Dependência e independência da obra; II. Leituras formais que amputam o elemento referencial; III. Leituras referenciais que reduzem ao documento; IV. O problema da leitura radical; V. Radicalização do texto através da escrita; VI. Radicalização do texto através do tema; VII. Mimese, autotelia, práxis: três modos de radicalização; VIII. A leitura crítica como ideologia. O trabalho final constou de uma dissertação de 20 a 30 páginas datilografadas, com espaço 2 e 32 linhas por página, em torno da seguinte proposta: “O texto e o contexto. O texto é o contexto. O contexto é o texto. O texto não é o contexto. O contexto não é o texto. O texto e/ou o contexto”. Para dar uma ideia do espectro de leituras da bibliografia básica, à qual eram acrescentadas outras leituras teóricas trabalhadas ao correr do curso e nos seminários, retomo alguns exemplos (sempre em traduções acessíveis, já que quase não havia traduções em português): Theodor Adorno (Notas de literatura, Prismas e Filosofia della musica moderna), Georg Lukács (Problemas del realismo e Marxismo e teoria literária),

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possível através da ficção e passa pela destruição da pretensão de objetividade e pelo tratamento da palavra”.

O alvo crítico era, portanto, a transformação da tensão produtiva entre objetividade das formas e suas condições históricas em regras de estilo e convenção, que já não respondem ao andamento real do mundo (tal como a “ten-tativa que se vê de recuperação de uma teoria dos gêneros”). Afinal, a “transformação dos meios expressivos acompanha as transformações da vida”. O passo seguinte ao esgotamento do Realismo como “convenção historicamente determinada” foi um realismo que fosse além da “aparência dos fatos”, como a procura de Proust pelo “desenho oculto”, quando “o próprio processo revela a estrutura e o modelo emerge do tempo”. As observações do curso estão na origem do en-saio “Realidade e realismo via Marcel Proust”, publicado primeira vez em 1983.

Tal como no ensaio, a irônica construção proustiana de um pastiche de Goncourt (as descrições apaziguadas na superfície dos objetos e dos fatos não alcançavam um grau de generalidade estrutural) seria uma crítica ao realismo “de escola” (o naturalismo, que teve Goncourt como discípulo por um bom tempo). Um transrealismo construído pela força da imaginação, que transfigura o pormenor “como se ele criasse uma realidade além da que experimentamos”. Coube então uma pergunta, ao lado da qual a aluna anotou a ob-servação: pergunta-provocação. “No ato preciso da análise, posso colocar o tempo entre parênteses?”. A “entrada formal que permite o alargamento posterior da interpretação” não coloca o tempo entre parênteses. Por isso, evita as “modalidades de abordagem parcializadoras e alienantes, a saber, o radicalismo conteudístico (que, no limite, nega a literatura e pode dar em crítica como censura) e o radicalismo formalista”.6

Vindo para poemas de A idade do serrote (1960), de Murilo Mendes, “um tempo de outra dimensão” desvia o discurso das suas referências externas, regido agora por uma lógica analógica e paranomástica, pelo elemento do absur-do e pelo sentimento de crença no milagre e no mistério. Ainda assim é preciso indagar pelas condições objetivas,

Walter Benjamin (Mythe et violence e Poésie et révolution), o estruturalismo soviético (I sistemi di segni e lo strutturalismo sovietico), Iouri Lotman (La structure du texte artistique), Julia Kristeva (Sêmiotikê e La revolution du langage poétique), Roger Bastide (Arte e sociedade), grupo Tel Quel (Théorie d’ensemble), Ferreira Gular (Vanguarda e subdesenvolvimento), entre outros

6 “O realismo se liga, portanto, à presença do pormenor, sua especificação e mudança. Quando os três formam uma combinação adequada, não importa que o registro seja do interior ou do exterior do homem; que o autor seja idealista ou materialista. O resultado é uma visão construída que pode não ser realista no sentido das correntes literárias, mas é real no sentido mais alto, como aconteceu na obra de Proust, que negava qualquer sentido à chuva de pormenores formada pelo seu grande livro. Ele tinha uma teoria não realista da realidade, que acabava numa grande espécie de transrealismo, literariamente mais convincente do que o realismo referencial, por permitir o curso livre da imaginação e, sobretudo, o uso transfigurador do pormenor, como se ele criasse uma realidade além da que experimentamos.” Cf. CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 125.

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os possíveis “motivos de ordem social e psíquica, subjacentes e não-conscientes que levam à desfiguração sonora e metafórica” (“O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão e que não é aquele tempo. Temporizemos”. Murilo Mendes).

Recuando para efeitos do argumento crítico, foram outras as determinações histórico-sociais que, ainda no Brasil, sustentaram a permanência do ideal de Beleza par-nasiana, que entra pelo século XX “solidamente articulado com a materialização da natureza (caminho inverso ao das inquietações das vanguardas européias)”. Um repertório de classe social, o da burguesia nacional em ascensão no fim do século XIX, feito de decoro, normas e “visão advocatícia do mundo”, que “curiosamente proclama, ao final um elogio do Espírito”. Ideal que ganha sentido no âmbito de um confronto entre experiências históricas de temporalidades defasadas, a europeia e a brasileira. Em contraponto à vanguarda europeia, a sobrevivência do ideal parnasia-no invade inclusive o nosso modernismo, que, pelo seu lado, dá um passo significativo na antiga tarefa nacional de atualização cultural e superação do atraso (tarefa que mantém e transforma).

Nas vanguardas europeias, o destaque foi dado ao projeto político do primeiro surrealismo de herança dada-ísta, “nova forma de vida que subverte a vida burguesa con-vencional” que, programaticamente distante do modelo do romance realista oitocentista, procura liberar a expressão do inconsciente e das energias psíquicas. No entanto, essa proposta emancipatória, que vinha acompanhada da asser-tiva de que “a revolução na escrita não existe sem revolução política”, provocou uma série de perguntas críticas incidindo sobre as relações entre estética e política, arte e práxis da vida, e a sobrevida do próprio movimento: “Um texto radical na forma será socialmente radical? A radicalização social leva à radicalização estética? Essa relação será necessária, possível, eventual? Como ela se dá? A forma literária convencional pode carregar um conteúdo radical? Pode haver um texto literário efetivamente radical?”

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Desse modo, o curso conferia alta voltagem aos seus assuntos, tratados como problemas histórico-estéticos, abrindo o caminho de um comparatismo literário com consequências. A pergunta que cortava e ligava as refle-xões dizia respeito ao modo de tratar um fenômeno que, em resumo, não é fiel às intenções do autor, não funciona como espelho direto da realidade, nem é demonstração de teses. No primeiro caso, ele dá a ver em cifra crítica o que não estava previsto para ser discutido; no segundo, é condição de conhecimento daquilo de que, por natureza diversa, se distancia sem negar; o terceiro caso, no limite, é uma falsa questão, já que o material literário anula o próprio pressuposto. No tratamento da forma literária, de natureza autônoma e construída por conflitos e choques, não caberia nenhuma esquematização ou abstração dos mecanismos de mediação, quer no plano da construção formal, quer no plano dos seus fundamentos práticos.

Tratando-se de posição contrária à tendência de apanhar a obra como reflexo da sociedade, ou como re-sultado direto de determinações externas, a necessidade de encontrar mediações adequadas entre as séries (numa referência a Tynianov) mobilizava uma noção de forma diversa daquela dos formalistas. A procura pela verdade do texto espera sempre, portanto, por uma interpretação que não corresponda ao suposto desígnio do autor, nem à ideologia do leitor ou à avaliação estrita de um grupo social, e que possa ser uma leitura midiatizada que não rejeite o caráter mediado do próprio objeto analisado. Por isso a in-sistência no fato de que a interpretação depende sempre da consideração dialética dos mecanismos de mediação, eles mesmos históricos e validados texto a texto (como mos-traram uma breve história do conceito e, principalmente, as questões trazidas por textos literários).

Na análise do romance naturalista brasileiro O cortiço, Antonio Candido se distanciou da crítica conservadora europeia (que neutralizava o alcance formal e social dos romances de Émile Zola) e também fez restrições à leitura de Lukács, alertando para o risco de extrapolar o interesse

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pelos conteúdos, sem atenção ao vigor da forma que os qualifica. Em relação ao método estruturalista (a exemplo de uma análise de Afonso Romano de Sant’Ana), o risco seria o de uma perspectiva formal baseada em sistemas de oposição, sem estudo detido da linguagem (afinal, o estruturalismo não previa uma etapa descritiva?). E, ao mesmo tempo em que tomava por objeto um romance naturalista brasileiro, pensando nas suas especificidades e no papel do Naturalismo no Brasil, ele andava atento às particularidades de outros romances naturalistas estrangei-ros, a considerar os cursos oferecidos desde 1968, inclusive fora do Brasil.7

No caso de O cortiço, o nível estrutural profundo depende da concorrência de várias mediações, pondo em xeque o nacionalismo e a xenofobia do narrador, impedido de perceber a injustiça social e a exploração de classes contidas no assunto do romance e de questionar “os fundamentos da ordem” no Brasil. O perfil de classe do narrador é uma mediação decisiva (o crítico trazia à cena o emissor de um ditado racista e violento que corria à boca pequena nas ruas da cidade. “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar”). Os preconceitos e ambiguidades, próprios do intelectual do tempo, são confrontados pelo próprio enredo que, até onde podia ir, qualifica as outras mediações da prosa, dando a vitória ao português desprestigiado pela arrogância do “brasileiro livre daquele tempo”.8

Assim, a animalização, num primeiro plano com sen-tido biológico (como se entendia ser a finalidade única da proposta naturalista), acaba como sinal de exploração do trabalho, e as diferenças raciais (que ocupavam as preocu-pações dos intelectuais brasileiros) dão lugar à diferença entre ricos e pobres, num romance “cuja violência social é maior do que supunha o autor”. No curso de 1975, a suges-tão mais poderosa parece ter sido a de que haveria traços formais particulares a conferir em cada um dos nossos romancistas, sustentados por condições objetivas comuns

7 Em 1968, Antonio Candido ministrou, na Universidade de Yale, um curso de Literatura Comparada em torno de L’assommoir, de Émile Zola, I Malavoglia, de Giovanni Verga, O cortiço, de Aluisio Azevedo, Vidas secas, de Graciliano Ramos e Doña Bárbara, de Rómulo Gallegos. Em 1969, no curso de pós-gradução “Representação e espaço no romance naturalista”, trabalhou com os mesmos autores, à exceção de Graciliano Ramos e Rómulo Gallegos. O volume O discurso e a cidade, de 1993, contém um ensaio sobre Émile Zola e um sobre Giovanni Verga, para ficarmos apenas com os textos naturalistas.

8 “Penso no brasileiro livre daquele tempo, com tendência mais ou menos acentuada para o ócio, favorecido pelo regime da escravidão, encarando o trabalho como derrogação e forma de nivelar por baixo, quase até à esfera da animalidade, como está no dito. [...] O tipo de gente que o enunciava senti-se confirmado por ele na sua própria superioridade. Essa gente era cônscia de ser branca, brasileira e livre, três categorias bem relativas, que por isso mesmo precisavam ser afirmadas com ênfase, para abafar as dúvidas num país onde as posições eram tão recentes quanto a própria nacionalidade, onde a brancura era o que ainda é (uma convenção escorada na cooptação dos ‘homens bons’), onde a liberdade era uma forma disfarçada de dependência”. (Cf.

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de experiência, dando a ver um complexo trabalho com as mediações, que caberia ao crítico desentranhar.

Dou, como exemplo pontual dos resultados a que o crí-tico chegou, uma formulação exposta na última versão do ensaio sobre O cortiço. As descrições da vida sexual nesse romance vão além do modelo francês e mesmo de outros romances brasileiros. Mas, embora sejam demonstrações de avanço escandalizado, próprio das circunstâncias brasileiras (e diverso do “enfoque ‘natural’ de Zola”), também revelam, num plano mais fundo, a circulação de uma violência social que merece reflexão. Violência que o movimento crítico apreende e generaliza: “Como sempre, quando a Europa diz ‘mata’ o Brasil diz ‘esfola’”.9

Não é demais dizer que o curso de 1975 propunha uma lição exigente, nada fácil de seguir, que era de método e de postura crítica: aprender com o objeto analisado para poder ir além dele, chegar a uma generalidade histórica a partir de formas literárias particulares, sem simplificar a primeira em esquemas nem fazer elenco prévio e redutor das segundas. Desafio duplicado pela clara necessidade de pensar, não só em termos nacionais, as diferentes experiências que são contadas pelas próprias formas. E pela sugestão de incluir, lado a lado, um exame dos pontos de vista crítico-teórico e literário, compondo, cada um a seu modo, o sentido histórico-social de uma experiência formal-literária (como está exposto nos quatro primeiros parágrafos deste texto). Provavelmente pode ter vindo daí, e também da última versão da análise de O cortiço, o caminho tomado pela pesquisa “Naturalismo e antinaturalismo no Brasil”.

A análise do romance Bom-Crioulo, de Adolfo Cami-nha, trouxe questões curiosas que acabaram levando aos textos críticos. No romance, os estereótipos naturalistas que, em O cortiço, eram colocados em segundo plano pelo enredo permanecem como núcleo duro, e o narrador parece ter um papel singular. Os cacoetes naturalistas, misturados aos traços mais grossos dos chavões contra negros, homos-sexuais e marinheiros de baixa patente, ganham inflexão irônica do narrador. Sua posição não se resume a mera

CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 129; 132). Para um estudo sobre esses ensaios, cf. SCHWARZ, Roberto. Adequação nacional e originalidade crítica. In:_____. Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

9 “É como se nas sociedades mais atrasadas e nos países coloniais o provincianismo tornasse difícil adotar o Naturalismo com naturalidade, e as coisas do sexo acabassem por despertar inconscientemente um certo escândalo no que se julgavam capazes de enfrentá-las com objetividade desassombrada”. Cf. CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 147-148; 150.

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indecisão, quando insiste nos lugares-comuns do tempo (embora nem o narrador nem o próprio Bom-Crioulo estejam a salvo deles).

A insistência nos estereótipos e nas avaliações enchar-cadas de preconceito tem, ela mesma, sentido avaliador do conjunto da situação representada, detalhando os termos cruéis impostos ao desejo de felicidade de Bom-Crioulo, o que o enredo comprova. O lado mais cruel da experiência do negro, ex-escravo, na sua paixão por um grumete bran-co, de família catarinense, é indissociável das condições da vida popular no país patriarcal e escravocrata. Marcados sempre pela ironia, os valores da hegemonia patriarcal (falo, propriedade e trabalho escravo) invadem, com feição caricata, o ambiente da Rua da Misericórdia por meio do trio formado por D. Carolina, a portuguesa Carola Bunda, Bom-Crioulo e Aleixo. Apenas como um exemplo, é ver como são narrados os episódios em torno dos arremedos de família, encenados dois a dois.

Arranjo entre outros, o arremedo não é alternativa para a vida social ou afetiva: são duríssimas as caricaturas armadas pelo narrador como alegorias do solapamento da própria ordem do desejo, na ausência de horizontes emancipatórios efetivos. Não é possível determinar até que ponto o escritor teve consciência da crítica à ordem social que o seu romance traz embutida na forma. Para os contemporâneos de Caminha, que escreve Bom-Crioulo em 1895, cinco anos depois de O cortiço, o romance natura-lista já estava defasado em relação à produção e à crítica francesas. No entanto, entender a experiência literária brasileira é, desde sempre, levar em conta essa defasagem, que não é apenas formal. Com ela cada escritor teve de se haver no trato com seus materiais, e cada crítico com um instrumental de reflexão que, no período que interessa, estava destinado a fazer uma aposta otimista no Brasil, sem a contrapartida de uma visão realista dos seus aspectos mais problemáticos.

Assim, se, na origem, o projeto naturalista de orien-tação materialista e científica significava anti-idealismo,

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presença do mundo do trabalho, da vida material e sexual, dos temas ligados ao corpo e à sua deterioração (daí o interesse pelas ciências e pela biologia), a entrada do na-turalismo entre nós teve ressonâncias e respostas formais muito diversas entre os críticos e os ficcionistas. É preciso mapear os impasses históricos que correspondem a essas respostas, sem esquecer aqueles que determinaram as leituras na matriz. Dentre os críticos brasileiros, Araripe Júnior, por exemplo, apostou numa feição particular do nosso naturalismo, baseado nas vantagens da sociedade nova e cheia de vida. Um naturalismo tropical, e não o de uma “sociedade exausta”, mergulhada numa crise que não se queria ver por aqui, e que levava à ascensão das massas e do quarto estado, à corrupção por dinheiro, à fuga do intelectual para posições místicas e extravagantes.

Daí que, embora Araripe visse o Naturalismo com bons olhos, a ele incomodassem os romances de Zola: ausência de heróis, “formigamento de gente”, ódios entre as pessoas, ambiente corrupto, povo sem “elevação dos instintos”. De modo que, a despeito da lucidez necessária do romance naturalista, seria preciso preservar sua feição particular no Brasil. Em 1888, ele testemunha sobre o susto que o autor de L’assommoir pregou em nossos escritores, uma geração que até então não tivera nenhum interesse por Balzac, Stendhal e Flaubert (afirmação por certo exagerada). O susto “manifestou-se pelas formas mais exageradas que já puderam inventar a preguiça e a mediocridade”.10

Cerca de uma década antes da publicação de Bom-Crioulo, Sílvio Romero tinha considerado as “idéias novas” (positivismo, evolucionismo, naturalismo, espírito cientí-fico e racional) como aliadas no combate à mentalidade jesuítica e colonial, mesmo que, por aqui, a transformação para melhor tivesse de se dar, necessariamente, por meio de ideias e fatores culturais: “fator mental” e evolucionismo social contra os “fatores naturais”, que nos eram desfavo-ráveis. Por isso mesmo se afastava do que julgou ser, em Zola, uma concepção artística baseada na consideração da vida social e da evolução humana como “jogo da vida

10 Araripe Jr. insiste na diferença brasileira por não acreditar existir, entre nós, aquele “mal-estar de almas penadas” nem o pessimismo e a debacle da razão parisiense. Os climas quentes seriam mais apropriados para alucinações sensuais, com mestiços e crioulos inebriados e felizes, surpreendendo “a natureza em flagrante delito de hipocrisia”. Cf. O romance experimental. Aquisições de formas do Assommoir à Terra. Evolução transversal do caráter de Zola. A sátira. In: Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Casa de Rui Barbosa, 1963. v. I. p. 56. Movimento do ano literário do ano de 1893. In: Obra crítica de Araripe Júnior, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Casa de Rui Barbosa, 1963. v. III. Evolução das formas do romance. In: Obra crítica de Araripe Júnior, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Casa de Rui Barbosa, 1963. v. I. p. 27-28.

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animal em ação”, temendo o “realismo sórdido” que a com-preensão da sociedade como “fenômeno natural” poderia trazer, e propondo um “naturalismo mais vivo, mais correto, mais humano e mais científico”.11

Qual o preço pago pela combinação entre presença anêmica do romance realista e recepção entusiasmada das novas teorias cientificas, aliadas ao susto provocado pelo romance de Zola, como contou Araripe? O conjunto é explosivo, merece desenvolvimento e talvez possa con-vocar, por um lado, um escritor antinaturalista, Machado de Assis, e, por outro lado e razões diversas, um crítico antinaturalista, José Veríssimo, para quem Machado teria representado, nos romance posteriores a Memórias póstumas de Brás Cubas, a “nossa melhor sociedade”, ou ainda, “nossa sociedade mais civilizada, menos matuta, mas não menos brasileira [...], a sociedade brasileira policiada, culta, cidadã e portanto nosso coeficiente exato, como nação civilizada, e não simplesmente como povo exótico e pitoresco [...]”.12

Talvez por conhecer muito bem a violência dos pre-conceitos, que as perspectivas racistas da miscigenação só fariam acentuar, Machado não levava em grande conta “a sociedade brasileira mais civilizada”. E também não se entusiasmou com os usos positivados do evolucionismo darwinista no contexto brasileiro – “o otimismo no fim”, como escreve em “A nova geração”, de 1897. Dois anos antes da publicação de O mulato, de Aluisio Azevedo, ele se indispôs com a geração combativa de Romero, descon-fiado do otimismo excessivo de uma mocidade empolgada pelas ideias científicas do momento, lembrando que muitos daqueles entusiastas “ainda cheiram a leite romântico”.13

A questão era decidir como tratar literariamente a vida brasileira e o tipo de convivência da elite com escravos, ex-escravos fugidos, libertos e homens livres pobres, incluindo ainda os imigrantes que, desde os anos de 1830, constituíam o tráfico paralelo que alimentava os novos mercados. O escravo fugido e o menino de família imigrante são personagens de Bom-Crioulo. Seria demais pensar que um desafio comum foi enfrentado, de modos

11 Cf. ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. v. 5. p. 1637.

12 Cf. VERÍSSIMO, José. Machado de Assis. In:_____. Estudos de literatura brasileira. 6ª série. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977. p. 103-108.

13 Cf. ASSIS, Machado de. A nova geração. In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. v. III.

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diferentes e em graus diversos de radicalismo formal, por um autor simpático ao naturalismo, Adolfo Caminha, e por um antinaturalista como Machado de Assis?

Afinal, o antinaturalismo machadiano também res-pondeu a uma pauta de assuntos proibitivos para uma elite provinciana e prepotente. Destaco a sugestão de Roberto Schwarz quanto à “crueza não-naturalista” de Iaiá Garcia, romance que procurou conciliar subordinação patriarcal e “compensações materiais e simbólicas” dos dependentes, cujas aspirações são condenadas ao fracasso pelo impulso realista do romance, que expõe a continuidade do paternalismo. Distante tanto do Realismo quanto do Naturalismo euro-peus, a crueza machadiana continuará sendo não naturalis-ta, e ao escritor interessará, cada vez mais, escarafunchar os processos de satisfação simbólica dos indivíduos, tanto na esfera privada da família patriarcal quanto nos ambientes da rua, como duas faces da mesma moeda.14

Em ambos os escritores, com graus de realização diver-sos, está presente uma crítica ao falso decoro paternalista que recobria perversões e preconceitos próprios de um país escravista, introjetados e disseminados por todo o corpo social. Machado de Assis deu a ver os caminhos do desejo e da sordidez abrindo o trajeto entre vida familiar e vida da rua, apanhando segredos e problematizando desejos e satisfações comprometidos com as regras impostas pelo andar de cima da nossa sociedade. O melhor romance de Caminha foca o procedimento no andar de baixo, comple-tando o quadro geral. De fato, o interesse de Machado pelos meandros mais sórdidos da família patriarcal brasileira veio junto com seu interesse pela vida vivida fora dessa esfera, supostamente cerrada em decoro, moralidade, ordem e progresso.

São níveis profundos da experiência que nem sempre estão no plano mais evidente das narrativas, e que o nar-rador machadiano muitas vezes pontua com curiosidade, alguma crueldade, ou com intensa piedade. Nos limites deste texto, fica a pergunta pelo papel da ficção natura-lista e pelo papel de uma crítica de teor nacionalista, cuja

14 Cf. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 2. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1981. Para uma avaliação das “soluções formais heterodoxas” e seu alcance pós-naturalista, em Machado de Assis, cf. SCHWARZ, Roberto. “Eugênia”, no capítulo “A sorte dos pobres”. In:_____. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000. Nos termos da “estrutura subjacente” e da “verdade do texto”, tais como aqui comentados, “fatos de composição” como a “desproporção entre brevidade e importância do episódio” encontram seu sentido mais fundo no próprio foco do narrador (um foco de classe), que, sem medir sua crueldade sibilina, e não menos eficaz, não admite laivos de igualdade aos dependentes.

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resposta dependerá do exame dos casos. O antinaturalismo de Machado de Assis, cuja verdade pode ser buscada na sua prosa ficcional, talvez possa compor, com o melhor e o pior romance naturalista, a inteligibilidade possível de um mundo ficcionalmente transformado. E os críticos do tem-po formarão o coro, como comentadores que representam a voz social bem posta e hegemônica diante das ousadias ou das contensões formais mais reveladoras.

Referências

ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro: MEC/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1958-1963. 5 v. Organização de Afrânio Coutinho.

ASSIS, Machado de. A nova geração. In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. v. III.

CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 147-148; 150.

_____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 125.

_____. Textos de intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2002. p. 60.

ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. v. 5. p. 1637.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 2. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1981.

_____. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In:_____. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 129.

_____. Adequação nacional e originalidade crítica. In:_____. Se-qüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_____. “Eugênia”, no capítulo “A sorte dos pobres”. In:_____. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000.

VERÍSSIMO, José. Machado de Assis. In:_____. Estudos de liter-atura brasileira. 6ª série. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977. p. 103-108.

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Leituras de O cortiço (notas para um público

estrangeiro)

Paulo Franchetti*

resumo: Neste artigo comentam-se rapidamente algumas das principais linhas de leitura do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, com destaque para a interpretação alegórica que dele faz Antonio Candido.

palavras-chave: naturalismo, Aluísio Azevedo, O cortiço.

abstract: This article briefly discusses some of the main inter-pretative lines in the criticism of Aluísio de Azevedo’s novel O cortiço, with special emphasis in the allegorial reading proposed by Antonio Candido.

keywords: Naturalism, Aluísio Azevedo, O cortiço.

O cortiço é um romance breve, composto de 23 capí-tulos. O eixo principal do enredo é a história do enrique-cimento de João Romão, um imigrante português que se torna proprietário de uma venda, de um conjunto de casas populares e de uma pedreira.

O livro abre com uma apresentação desse personagem e de sua companheira, uma negra chamada Bertoleza, cujo trabalho João Romão explora e com quem viverá aman-cebado até enriquecer e completar a sua escalada social. E fecha com o suicídio de Bertoleza, quando descobre que fora enganada por Romão e que continuava presa à condição servil.

Como parte do processo de enriquecimento de Romão, ergue-se o cortiço que ele possui, e dentre os habitantes da estalagem destacam-se, porque têm suas histórias narradas de forma mais extensa, um casal de portugueses (Jerônimo e Piedade) e um casal de mulatos (Firmo e Rita Baiana),

* Professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

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bem como Pombinha (menina que terminará por se tornar prostituta de luxo).

Do lado de fora da estalagem, encontramos a família de outro português, Miranda, que vive num sobrado cujas varandas abrem para o cortiço.

No que toca à estrutura dos capítulos, o livro se divide em duas partes de extensão semelhante. Na primeira, que vai até o capítulo 10, no que diz respeito a João Romão, o foco reside no processo de seu enriquecimento; a partir do capítulo 13, já enriquecido, assistimos às suas negociações, com um agregado da casa de Miranda, para casar-se com a filha do capitalista – casamento esse que implica livrar-se de Bertoleza, que passa a constituir um empecilho à obtenção de seu novo status social.

Do ponto de vista da vida na estalagem, tal divisão também existe: na primeira parte, predominam as cenas de vida coletiva, nos locais de trabalho ou em dias de festa; enquanto na segunda o cortiço surgirá remodelado, após um incêndio, e organizado como uma pequena vila de classe média.

Por fim, a história dos casais Jerônimo/Piedade e Fir-mo/Rita se articula segundo a mesma divisão: na primeira metade narra-se o surgimento e manifestação da paixão de Jerônimo por Rita; na segunda, o resultado, que é a destruição do lar do português e a sua decadência moral e física.

Entre essas duas partes, há dois capítulos centrados na personagem Pombinha – num dos quais se conta, em flashback, a sua sedução pela prostituta Léonie, e no outro a vinda de sua primeira menstruação, numa passagem em que o sol desempenha um papel central – que acentuam a divisão estrutural do romance, formando uma espécie de intermezzo.1

Na história da recepção crítica do livro, a primeira parte recebeu atenção mais constante e terminou prati-camente por subsumir a segunda na definição do método e do sentido geral do romance.

1 A história de Pombinha cumpre em outro momento essa função de intervalo no fluxo da ação principal. Trata-se de capítulo 22, o penúltimo. Entre o momento em que Romão descobre a forma de se livrar de Bertoleza, restituindo-a ao antigo senhor, e o episódio final, em que põe seu plano em prática, surge de novo Pombinha e outra vez sua história – a da vida de casada e de sua transformação em prostituta associada a Léonie – é narrada em flashback. Quanto à cena seminal do sol fecundando a jovem, vale a pena registrar que é tal a sua força e seu aparente deslocamento do resto do livro, que Lúcia Miguel Pereira, por exemplo, assim se referiu a ela: “uma das mais declamadoras e piegas de Aluísio Azevedo”. (PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1988. p. 153). Apreciação a que ainda acrescenta: “Felizmente trechos assim são raros no Cortiço, em regra sóbrio nas linhas gerais, incisivo nos detalhes”.

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Não posso agora me deter no comentário da estrutura do romance, mas devo registrar que, na segunda parte, os personagens individuais têm muito mais peso do que na primeira, em que de fato vigora o princípio compositivo que Álvaro Lins assim descreveu:

[...] Aluísio fez recuar os personagens, pessoalmente, para um plano quase que secundário; o que se encontra no primeiro plano é uma dualidade de existências coletivas e simbólicas: o sobrado patriarcal e a habitação dos cortiços. Não são os personagens que determinam a ação; é a ação, resultante do ambiente, que vai criando e movimentando os personagens. [...] Na verdade, o principal personagem neste romance nem é João Romão, nem Bertoleza, nem Miranda, nem Rita. O principal personagem é o cortiço, que aparece, documentariamente, em toda a sua história: os seus princípios, na sua plenitude e na sua decadência. [...] é a cidade do Rio de Janeiro numa das fases mais particulares e mais características da sua formação histórica.2

Décadas depois, essa linha de interpretação tradi-cional é retomada por Antonio Candido, mas submetida a uma inflexão importante. Para Candido, a acumulação de dinheiro por João Romão “assume para o romancista a forma odiosa da exploração do nacional pelo estrangeiro”.3 E é justamente a oposição entre o nacional e o estrangeiro que orientará sua leitura:

Mas em outro nível, não será [o cortiço] também antinatu-ralisticamente uma alegoria do Brasil, com a sua mistura de raças, o choque entre elas, a natureza fascinadora e difícil, o capitalista estrangeiro postado na entrada, vigiando, ex-torquindo, mandando, desprezando e participando?4

Para compreender essa valorização do romance na-turalista justamente pelo que ele teria de antinaturalista,5 é preciso observar que, para Candido, a literatura produ-zida no Brasil está sempre às voltas com “o Brasil como intermediário”,6 isto é, com o imperativo nacional, o impe-

2 LINS, Álvaro. Jornal de Crítica – segunda série. Rio de Janeiro: José Olympio. p. 148-149.

3 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 111.

4 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 117.

5 Candido discorda de Lukács, que atribui ao Naturalismo como um todo o uso da alegoria como forma de representação social. De seu ponto de vista, Verga e Eça, por exemplo, não fazem alegorias; Zola, sim. E entende que “talvez por influência de Zola nós a encontramos também nos de Aluísio, sendo em ambos os casos, a meu ver, elemento de força e não de fraqueza”. CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 116.

6 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 129.

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rativo de representar, em cada obra, o Brasil como um todo. É desse imperativo que nasceria a intenção alegorizante de O cortiço, pois, enquanto (sempre segundo Candido), na representação do cortiço parisiense por Zola, a pretensão alegórica estaria ausente, no seu livro, Azevedo, “em vez de representar apenas o modo de vida do operário, passa a representar, através dele, aspectos que definem o país todo”.7 Isso diminuiria “o alcance geral do romance de Aluísio”, mas “aumentaria o seu significado específico”. Ou seja, diminuiria o valor universal e aumentaria o seu valor nacional.

Mas qual seria o “significado específico” desse roman-ce – seu valor nacional – se o próprio Candido reconhece que “n’O cortiço há pouco sentimento de injustiça social e nenhum da exploração de classe, mas nacionalismo e xenofobia, ataque ao abuso do imigrante ‘que vem tirar o nosso sangue’”,8 e atribui ao autor “uma curiosa visão popular ressentida de freguês endividado de empório”.9

O sentido alegórico redundaria numa representação do país como uma comunidade racialmente mista, explorada pelos estrangeiros? Candido parece crer que sim. Mas é uma leitura difícil de defender.

Não há dúvida de que haja oposição entre portugueses e brasileiros, dentro do cortiço. Ela se manifesta com clare-za no episódio da briga de Piedade com Rita. Mas também é certo que essa rivalidade cessa imediatamente, perante o ataque dos integrantes do outro cortiço.

Por outro lado, não existe um cortiço nacional e um explorador estrangeiro. Dentro do cortiço há negros, brancos, mulatos, portugueses e outros europeus, dentre os quais se destacam os italianos.

Tampouco é razoável dizer, com Antonio Candido, que João Romão pode ser lido alegoricamente como o es-trangeiro “postado na entrada”. Pelo contrário, ele labuta furiosamente a maior parte do romance, privando-se de confortos, conforme o velho modelo do avarento, e dificil-mente (exceto no final do romance) poderia ser descrito como um capitalista.

7 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 117.

8 A frase entre aspas na citação de Candido não faz parte do romance.

9 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 112.

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Quanto aos portugueses, é certo que o próprio narrador afirma, ao descrever o destino de Jerônimo: “o português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer”.

Mas não se pode reduzir a esse contraste a figura do português no romance. Há, pelo menos, mais um tipo: Miranda – submetido não ao meio, mas à imoralidade que advém da sua dependência do dinheiro da mulher brasilei-ra. E há ainda, sem individualidade marcante, portugueses que vivem no cortiço e que não são como Jerônimo nem como Romão.

Por fim, a aceitar a pertinência da leitura alegórica do nacional, não parece razoável aplicá-la apenas a parte da história. Seria preciso incluir nela vários elementos significativos, que precisariam ser interpretados no qua-dro geral da alegoria, a começar pela existência de outro cortiço, explorado por um brasileiro, por meio de um feitor português: o “Cabeça-de-gato”, para onde, nas palavras do próprio Candido, “os moradores inadaptados [ao cor-tiço remodelado de Romão] são expulsos ou se expulsam, indo continuar o ritmo da desordem”.10 E o que fazer de outros eventos do romance, como a destruição pelo fogo e a reconstrução do cortiço de João Romão, que renasce esquadrejado e limpo? Qual dos dois cortiços em guerra seria o Brasil? Ou haveria dois Brasis? E a reforma do cortiço-Brasil do português Romão, como teria de ser lida? Como uma proposta de reconstrução nacional? Conduzida pelo pior tipo de estrangeiro? Ou teria algo a ver com a passagem do Império à República?

A verdade é que a alegoria não se sustenta. E o próprio Antonio Candido traz à tona a insubsistência da leitura que ele mesmo propõe, quando se pergunta: se Romão é um exemplo dos “homens superiores de outra cepa”, “por que então apresentá-lo de maneira tão acerba? Por que mostrar nele um explorador abjeto, se sua matéria-prima era uma caterva desprezível?”11

10 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 115.

11 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 118-119.

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A questão que logo se apresenta é: quem disse, senão as exigências da interpretação alegórica articulada sobre a oposição nacional/estrangeiro, que Romão é um homem superior de outra cepa?

No romance, não se fala de homens, de indivíduos superiores, mas de raças superiores. E é fácil constatar que, para Aluísio, a questão da superioridade das raças nada tem a ver com superioridade moral. De fato, tudo é desprezível no mundo desse romance: como animais que se devoram, sobrevive o mais apto. Mas o indivíduo pertencente a uma raça biologicamente superior, nos termos de Aluísio, não é sequer o mais apto a sobreviver. A prova é Jerônimo, escolhido por Rita por conta do impulso da mulata de se unir a um branco, mas cujo destino é a decadência física, econômica e moral.

Em O cortiço, para usar a linguagem do tempo, tanto os exemplares da raça superior quanto os da inferior são descritos da mesma perspectiva pessimista e com recurso a vocabulário e imagens que denotam, sobretudo, desa-grado e repugnância. O que levou Lúcia Miguel Pereira a escrever:

parece ter havido, em Aluísio Azevedo, uma contradição essencial, que se poderá exprimir sucintamente dizendo que foi um naturalista com horror à realidade. [...]

A natureza, para esse naturalista, era uma força cruel e avassaladora que endoidecia as mulheres quando não se punham, apenas púberes, a serviço da perpetuação da es-pécie, transformava em ‘supuração fétida’ as decepções dos homens, armava umas contra as outras todas as criaturas, numa ferocidade de cães à disputa de ossos.12

O nivelamento por baixo é uma das características mais marcantes desse romance e responde até hoje pelo estranhamento que ela provoca.

Num estudo que merece leitura, Affonso Romano de Sant’Ana descreve da seguinte maneira os dois ambientes principais do romance: um conjunto simples, regido pelas

12 PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1988. p. 148-149

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leis do instinto e próximo da natureza (o cortiço); e um conjunto complexo, regido por regras culturais e pautado por um sistema de trocas objetivas (representado pelo sobrado de Miranda).13 Distinguindo os dois conjuntos pelo grau de afastamento em relação à natureza, Sant’Ana afirma que João Romão perfaz o trânsito entre ambos, realizando a passagem do simples ao complexo, do mundo da natureza ao da cultura. E que o mesmo movimento é realizado por Pombinha.

A consideração dos personagens que ascendem de um a outro universo mostra que essa passagem não tem, a rigor, implicação moral. Igualam-se antes os dois conjuntos numa só amoralidade básica. Tanto Romão quanto as prostitutas (tais como representadas no romance) configuram-se como predadores. Perante eles, quase todos os demais persona-gens perdem relevo como indivíduos, ficando confinados a um ambiente apenas, enquanto eles transitam de um para outro e entre um e outro.

Nesse sentido, se há uma atitude crítica nesse roman-ce, ela reside na afirmação de um absoluto pessimismo quanto ao conjunto da sociedade, cuja estratificação nada tem a ver com o mérito, a moralidade ou a justiça. Por isso, os personagens mais simpáticos (por assim dizer) terminam por ser os derrotados, os que permanecem no nível mais próximo da animalidade. Entre a paixão de Jerônimo por Rita, mesmo que descrita na clave mais baixa das compara-ções aviltantes, e o cálculo de João Romão ao se utilizar de Bertoleza, com quem fica a simpatia – mesmo que limitada ou contrafeita – do leitor? Entre a sexualidade gratuita de Rita (ainda que condicionada pelo desejo de apurar o sangue) e a de Pombinha, qual a menos aviltante? E em que cena o leitor teria mais propensão a se emocionar: no encontro de Piedade com o ex-marido, quando se abraçam os dois derrotados e destruídos, ou no namoro de Romão com “a brasileirinha fina e aristocrática”, quando ele se delicia com a evocação da “doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro,

13 SANT’ANA, Affonso Romano de. O cortiço. In:_____. Análise estrutural de romances brasileiros. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. (1ª ed.: 1975). Este estudo de Sant’Ana antecede o de Candido, que constitui uma contraposição a ele.

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rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos”?

Na verdade, o que falta nesse romance são os escru-pulosos. Os fracos, que são os pobres, são igualmente ines-crupulosos e não há condescendência do narrador quanto a isso. Por essa razão, não há como concordar com Álvaro Lins, quando ele diz que a “a simpatia com que descreve a gente dos cortiços e a antipatia com que expõe a gente dos sobrados – revelam o romancista de espírito popular animado de prevenções contra a burguesia”.14

No romance, os pobres explorados apenas compõem, como diz o próprio narrador, “a gentalha”. Não existe, em O cortiço, propaganda libertária direta ou indireta, exceto no que diz respeito à escravidão – e sobretudo não existe, como bem notou Jean-Yves Mérian, proposta política: “Aluísio Azevedo não colore seu romance com nenhuma ideologia socialista como alguns críticos desejariam. Ele não propõe nenhuma solução contra os males que atingem a sociedade que descreve.”15

O alcance de O cortiço, assim, aparece bem reduzido em relação ao esforço de Candido de dotá-lo de um forte sentido nacional. E ele se deixa mais facilmente ler como aquilo que parece de fato ser: um romance de carregado estilo naturalista, no qual a força determinante na con-formação e destino dos personagens não é tanto o meio social ou os caracteres herdados, mas o ambiente natural, isto é, o clima dos trópicos, regido pelo sol escaldante, que o narrador textualmente afirma, ao narrar a guerra entre os miseráveis, tratar-se do “único causador de tudo aquilo”.16

Daí que o próprio Antonio Candido termine por concluir que Aluísio esboce, nesse romance, “uma visão involuntariamente pejorativa do país”.17 Involuntariamen-te porque presume que sua vontade seria apresentar uma visão consistente, por meio de uma alegorização do país no cortiço de Botafogo. Ora, não parece que seja o caso. Pelo contrário, parece muito difícil vislumbrar um projeto nacional em O cortiço, ou uma alegoria nacionalista. Nele

14 LINS, Álvaro. Jornal de Crítica – segunda série. Rio de Janeiro: José Olympio. p. 149.

15 MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo – vida e obra (1857-1913) – O verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de Janeiro/Brasília: Espaço e tempo/INL, 1988. p. 582. Nisso diverge, e com razão, a nosso ver, de Pardal Mallet, que no referido artigo escrevia: “O cortiço deixa de ser um livro de estudo, impassível e frio como a ciência, para tornar-se um livro de propaganda, onde vibra toda inteira a bela alma sonhadora e compassiva do escritor maranhense. / De propaganda nativista, e de propaganda socialista também”.

16 Eis o período inteiro, localizado no capítulo XVII: “E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.”

17 CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004. p. 117.

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não há, a rigor, sequer oposição real entre o nacional e o estrangeiro. Eles se mesclam em vários níveis e o triunfo ou fracasso dos personagens tem a ver não com uma separação entre o autóctone e o adventício, mas entre a cedência ao natural – exacerbado, no caso da natureza tropical – e a recusa (ou manipulação) do natural, não como caminho de ascese ou de obtenção de equilíbrio, mas como outra forma de perversão.

Não há pecado abaixo do Equador, dizia um ditado do século XVII, reproduzido por um historiador holandês. Não há também virtude, parece reafirmar esse livro.18

Se há uma dimensão alegórica nesse romance, ela é de caráter muito mais amplo do que a representação da pátria brasileira. Nela, o sol tem o papel central: é ele, como um deus pagão, que cria e que mata, que perverte e destrói – é ele, enfim, como vimos, a causa única.

E talvez resida na reinterpretação do romance no âmbito da atualização de um mito solar a solução de um mistério. Um mistério ainda mais misterioso porque sequer foi, até hoje, formulado como mistério. Algo que passou despercebido a gerações de leitores, que é a improvável conjugação, no bloco de epígrafes desse livro ateu, da pro-messa de apresentar a verdade, apenas a verdade e nada além da verdade, custe o que custar, com uma citação da vida de S. Francisco de Assis, na qual o santo demonstra o seu poder sobre a natureza, que comandava para que, com ele, louvasse ao Senhor.

Coimbra, novembro de 2011.

Referências

CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In:_____. O discurso e a cidade. 3. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. In:_____. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

18 Caspar Barlaeus (1584-1648). Segundo Sérgio Buarque de Holanda, Barlaeus comentara o ditado nestes termos: “Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício”. In: Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 33.

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LINS, Álvaro. Jornal de Crítica – segunda série. Rio de Janeiro: José Olympio.

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Candido, leitor de Rosa: crítica e crítica (do) por vir

Sérgio Luiz Prado Bellei*

Claudia Campos Soares**

resumo: As leituras feitas por Antonio Candido da obra de Guimarães Rosa, valiosas tanto pela complexidade de sua visão analítica como pelo seu poder de disseminação de uma linha de entendimento a ser expandida pelos seus discípulos, têm ainda o mérito de deixar entrever, no caso específico da obra do ficcionista mineiro, a necessidade de uma multiplicidade de interpretações, capazes de melhor dar conta da riqueza e da com-plexidade dos textos. O trabalho pioneiro do autor de “O homem dos avessos” abriu caminho para leituras de cunho sociológico e metafísico. Em seu tempo, estas foram complementadas por estudos que vincularam a obra de Guimarães Rosa a contextos de modernidade não necessariamente brasileiros. O presente ensaio lança um olhar crítico sobre essas vertentes e reflete sobre possíveis desdobramentos críticos e teóricos no futuro.

palavras-chave: Antonio Candido; Guimarães Rosa; abor-dagens textuais.

abstract: Antonio Candido’s readings of Guimarães Rosa’s literary works, valuable both for the complexity of its analytical acumen and for its power to generate a form of perception to be expanded by his followers, is also remarkable in terms of poin-ting to the need, in the specific case of the Mineiro writer, of a multiplicity of interpretations that would allow for an expanded understanding of his texts. The pioneering work of the author of “O homem dos avessos” paved the way for sociological and metaphysical interpretations. In due time, these were comple-mented by studies that related the work of Guimarães Rosa to contexts of a modernity that was not necessarily Brazilian. This essay examines critically these critical positions and reflects on possible developments in the future.

keywords: Antonio Candido; Guimarães Rosa; approaches.

* Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

** Universidade Federal de Minas Gerais.

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O pensamento crítico de Antônio Candido sobre Guimarães Rosa vale menos pelo seu volume1 do que pela complexidade de sua visão analítica e pelo seu poder de disseminação de uma linha de entendimento a ser expan-dida por seus discípulos. Esta última pode ser desdobrada em duas grandes vertentes, a primeira desenvolvida prin-cipalmente no poderoso contexto institucional da USP e voltada para a percepção do texto rosiano como represen-tação do Brasil, a segunda dedicada ao entendimento da obra, particularmente de Grande sertão: veredas, em termos de seus aspectos míticos.

Em “O homem dos avessos”, Candido detecta, ao lado da representação de elementos da realidade histórico-social brasileira, uma força de “invenção” que transfigura o sertão e amplia o seu alcance:

A experiência documentária de Guimarães Rosa, a obser-vação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico, – tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns sem os quais a arte não sobrevive: dor, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que, na verdade, o sertão é o mundo (CANDIDO, 1983, p. 295).

O que Candido chama de “invenção” relaciona-se ao uso que faz Guimarães Rosa de fontes eruditas diversas na construção de sua obra ficcional, como é o caso do mundo da cavalaria andante, que é o que o crítico vai enfatizar no seu texto.

Vale a pena chamar a atenção para a percepção que tem Candido da enorme complexidade do romance de Rosa. Como se verá adiante em mais detalhes, a percepção de tal complexidade aparece claramente na referência a Grande sertão: veredas como um romance em que “há de tudo para quem souber ler” (CANDIDO, 1983, p. 294).

1 Antonio Candido dedicou a Grande sertão: veredas o estudo “O homem dos avessos”, publicado menos de 2 anos depois de o romance de Rosa vir a luz (CANDIDO, 1983) e publicou mais tarde (em 1970) um segundo ensaio em que estuda a figura do jagunço na literatura brasileira e se aprofunda um pouco mais em algumas das questões abordadas no estudo anterior (CANDIDO, 1995). Candido escreveu ainda um breve texto sobre Sagarana, publicado no mesmo ano da coletânea de contos de Guimarães Rosa (CANDIDO, 1983, p. 243-247).

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Faltou um pouco à crítica posterior, frequentemente marca-da pelo desejo de privilegiar no texto o sentido dominante, levar a sério esse aviso do mestre. Seja como for, anote-se por enquanto que Candido, demarcando uma área de sentido, aponta simultaneamente para a insuficiência do território demarcado.

Luiz Roncari expande a proposta de Candido em seu tratamento do romance como lugar no qual se conjugam representação do Brasil e elementos da mitologia greco-romana, que Rosa resgataria reelaborando.2 A tendência geral da crítica rosiana, entretanto, foi separar história e mito, enfatizando sentidos dominantes. Entre os estudos sobre o Grande sertão: veredas que privilegiaram a história, estão os de Walnice Nogueira Galvão.3 Entre os que en-fatizaram no romance rosiano o caráter de mundo que se abre “às regiões da alma e do cosmo” (CANDIDO, 1983, p. 252) estão os de Benedito Nunes (1983), Heloísa Vilhena de Araújo (1996) e Francis Utéza (1994).

Os estudos de Candido enfatizam particularmente a dimensão sociológica do romance. Rosa constrói um mundo ao mesmo tempo histórico e ficcional em que a lei não se faz sentir, por isso, o jaguncismo é aí “uma forma de estabelecer e fazer observar normas, o que torna o jagunço um tipo especial de homem violento e, por um lado, o afasta do bandido” (CANDIDO, 1995, p. 164). Da perspectiva de Candido, as condições de sobrevivência no sertão rosiano “fazem da vida uma cartada permanente [...] e obrigam as pessoas a criar uma lei que colide com a da cidade e expri-me essa existência em fio de navalha” (CANDIDO, 1983, p. 299). Isso porque, no sertão, “o indivíduo [...] manda ou é mandado, mata ou é morto. O Sertão transforma em jagunços os homens livres, que repudiam a canga e se re-dimem porque pagam com a vida, jogada a cada instante” (CANDIDO, 1983, p. 300). Por isso, ao jagunço, apesar de ser criminoso violento, caracteriza “uma espécie de dignidade não encontrada em fazendeiros estadonhos, solertes aproveitadores da situação, que o empregam para

2 Segundo Luiz Roncari, Rosa restabelece as relações da literatura brasileira com a antiguidade clássica rompidas pelo Modernismo (RONCARI, 2004, p. 105-150, principalmente).

3 Em As formas do falso (1986), Walnice Nogueira Galvão desenvolve as ideias de Candido no que se refere à visão do sertão como representação do Brasil, mas não dá quase nenhum espaço a questões míticas ou místicas. A estudiosa menciona muito rapidamente fontes míticas (também a cavalaria), mas atribui sua presença na narrativa a sua vigência, também, no imaginário popular sertanejo.

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seus fins ou o exploram para maior luzimento da máquina econômica” (CANDIDO, 1995, p. 164).

Na perspectiva sociológica que marca a obra de Candido, portanto, a dignidade do jagunço advém de sua obediência a um código ético próprio. Mas o autor de “O homem dos avessos” é também homem de formação mais ampla, humanística, o que o leva a olhar também para o que ele chama de “universal”. Vale lembrar aqui que a perspectiva sociológica de Candido não problematiza o conceito de universal, como seria feito mais tarde pela te-oria, que o percebeu como um local dissimulado: a Europa, o Ocidente. Seja como for, Candido dá continuidade, em seus estudos, à trilha aberta por Cavalcanti Proença,4 que percebe em Rosa um movimento para além da dimensão local, já que a sua obra traz o romance de cavalaria para o sertão. Em Grande sertão, “duas humanidades [...] se comunicam livremente”: o “sertanejo real” e o “homem fantástico” da cavalaria, o que significa que, no livro, a “ação lendária se articula com o espaço mágico” (CAN-DIDO, 1983, p. 301).

Muito da dignidade do jagunço rosiano resulta também dessa “contaminação” do sertão pelo idealismo universalizante dos “padrões medievais”. Provém, mais especificamente, da observância, por parte dos cavaleiros andantes sertanejos, da norma fundamental de conduta dos heróis do romance de cavalaria: a lealdade (CANDIDO, 1983, p. 302).

Ao misturar realidade e invenção, Rosa teria alcan-çado realizar um feito que Candido sempre considerou de grande importância para a literatura de uma nação de origem colonial: a síntese entre universal e particular.5 Em outro trabalho, esse já dos anos 80, Candido afirmava que o grande mérito de Guimarães Rosa teria sido o de realizar exemplarmente essa síntese. Comparando o escritor mi-neiro a Machado de Assis, afirma o crítico:

Machado de Assis tinha mostrado que num país novo e inculto era possível fazer literatura de grande significado,

4 Como se vê, Candido não inaugurou essa visão, mas, ao confirmar e dar continuidade às concepções de Proença, num momento em que a crítica brasileira se transferia dos jornais para a Academia, contribuiu para legitimá-la.

5 V. Candido (2006, p. 25).

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válida para qualquer lugar, deixando de lado a tentação do exotismo (quase irresistível no seu tempo). Guimarães Rosa cumpriu uma etapa mais arrojada: tentar o mesmo resultado sem contornar o perigo, mas aceitando-o, en-trando de armas e bagagens pelo pitoresco regional mais completo e meticuloso, e assim conseguindo anulá-lo como particularidade, para transformá-lo em valor de todos. O mundo rústico do sertão ainda existe no Brasil e ignorá-lo é um artifício. Por isto ele se impõe à consciência do artis-ta, como à do político e do revolucionário. Rosa aceitou o desafio e fez dele matéria, não de regionalismo, mas de ficção pluridimensional, acima de seu ponto de partida contingente (CANDIDO, 1987, p. 207).

A força disseminadora do ensaio de Candido, aqui apresentada esquematicamente, é apenas uma de suas contribuições aos estudos rosianos. Como apontado no início, marca o ensaio do mestre uma significativa com-plexidade de visão analítica, visível particularmente na breve referência à multiplicidade de interpretações que deve acompanhar o texto de Rosa:

Na extraordinária obra prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler. Tudo é forte, belo, impecavel-mente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar (CANDIDO, 1983, p. 294).

Não é de qualquer obra que se pode dizer que nela “há de tudo” e que se abre a interpretações infinitas. É porque Grande sertão: veredas é uma “extraordinária obra prima”, na qual “tudo é forte, belo, impecavelmente realizado”, que “cada um poderá abordá-la a seu gosto”. Dizendo de outro modo, o romance de Rosa é reconhecido por Candido, me-nos de dois anos após sua publicação, como um “clássico”, contanto que se entenda por “clássico” o texto literário que deixa sempre um resto estrutural inesgotável e gerador de interpretações infinitas no devir temporal. Mas a produção

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temporal de interpretações infinitas não pode significar um vale-tudo. É que o “gosto” que poderia levar a uma leitura impressionista não basta, deve ser complementado pelo “ofício” de cada um, contanto que gosto e ofício respeitem “o traço fundamental do autor”, ou seja, a capacidade de inventar. São o gosto e o ofício, aliados ao respeito pela especificidade da obra clássica, que, ao que tudo indica, separam os que sabem dos que não sabem ler.

Já se vê que o que Candido propõe aqui como uma metalinguagem e um complemento necessários à leitura do extraordinário texto de Rosa é uma complexa teoria da interpretação, marcada por um equilíbrio precário entre os que sabem e os que não sabem interpretar, os que podem e os que não podem revelar sentidos ocultos, o leitor comum e o especialista, o diletante e o professor universitário mais ou menos legitimado por forças institucionais. E trata-se de proposta que tem como pressuposto o que se poderia chamar de “a ideologia da interpretação”: interpretar é preciso. Note-se que, nesse contexto, “interpretar é pre-ciso” torna-se uma forma quase naturalizada de leitura do texto, entendendo-se precisamente por naturalização a força discursiva que, ao produzir o ideológico, produz ne-cessariamente também o esquecimento da história. “Inter-pretar”, nesse contexto, é o que é preciso fazer com o texto literário. Historicamente, contudo, a prática de interpretar não foi sempre dominante. Como lembrou recentemente Jonathan Culler, antes dos últimos 150 anos, só muito raramente o texto literário era objeto de “interpretações”, e particularmente do tipo de interpretação praticada no contexto universitário. Diz Culler:

But increasingly criticism which before 1850 was almost never interpretive, has claimed the task of telling us what works mean. If the work is expressive, then criticism eluci-dates what it expresses: the genius of the author, the spirit of the age, the historical conjuncture, the conflict of the psyche, the functioning of language itself… The work is

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mute, and the critic must speak for it, unfolding the hidden meaning (CULLER, 2010, p. 906).6

Historicamente, portanto, a proposta de Candido insere-se no período que poderia ser caracterizado como “A era da interpretação”. O que marcava a prática anterior do discurso sobre o literário era, segundo Culler, o proce-dimento avaliativo e governado por “normas de gênero” (CULLER, 2010, p. 906).

Seja como for, nos termos do texto de Candido, sabem e souberam ler Grande sertão: veredas aqueles que, como se viu, exercitaram-se na prática de perceber no livro ora a representação da sociedade brasileira, ora as forças míticas subjacentes ao texto. Mas essas são apenas duas possibilidades realizadas, dentre muitas outras, por aqueles que sabem ler. Parte da força do ensaio de Candido resulta precisamente do reconhecimento de outras possibilidades a serem realizadas, ainda que tais possibilidades sejam apenas entrevistas de relance. É o caso da referência à “capela perigosa”, quando do tratamento do pacto supostamente feito por Riobaldo com o Demo. Candido lê esse episódio do romance como marcado “por uma certa atmosfera de opressivo terror” que constitui parte integrante “de muitos ritos de passagem”. Diz o crítico: “E o ambiente noturno das Veredas-Mortas equivale ao da Capela Perigosa, como vem, por exemplo, sintetizado na parte final de The Waste Land, de Eliot”. Candido se refere aos seguintes versos do poema:

In this decayed hole among the mountainsIn the faint moonlight, the grass is singingOver the tumbled graves, about the chapelThere is the empty chapel, only the wind’s homeIt has no windows, and the door swings,Dry bones can harm no oneOnly a cock stood on the rooftreeCo co rico co co ricoIn a flash of lightning (ELIOT, 1983, p. 1010).7

6 Cada vez mais intensamente, a crítica, que antes de 1850 não era quase nunca interpretativa, chama a si a tarefa de nos dizer o que as obras significam. Se a obra é expressiva, então a crítica elucida o que ela expressa: o gênio do autor, o espírito da época, a conjuntura histórica, os conflitos da alma, até mesmo o próprio funcionamento da linguagem [...] a obra é muda, e o crítico deve falar por ela, revelando seu significado oculto (CULLER, 2010, p. 906).

7 Na tradução de Ivan Junqueira: Nessa cova arruinada entre as montanhas Sob um tíbio luar, a relva está cantando Sobre túmulos caídos, ao redor da capela É uma capela vazia, onde somente o vento fez seu ninho. Não há janelas, e as portas rangem e gingam, Ossos secos a ninguém mais intimidam. Um galo apenas na cumeeira pousado Cocorocó cocorocó No lampejo de um relâmpago (ELIOT, 1981, p. 104).

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À primeira vista, trata-se aqui apenas de uma con-textualização do episódio em termos da leitura mítica de Grande sertão: veredas discutida anteriormente, já que Candido refere-se em nota de rodapé ao livro de Jessie Weston, From ritual to romance. O livro de Weston, como se sabe, é também uma das fontes utilizadas por Eliot para a composição do texto que pode bem ser visto, hoje, como a peça maior e mais representativa da poesia mo-derna anglo-americana. Tivesse Candido citado apenas o livro de Weston, essa primeira leitura mítica poderia ser tida como a única aceitável para a boa compreensão do romance de Rosa. A referência a Eliot, contudo, complica significativamente o gesto interpretativo, na medida em que Eliot utiliza e modifica o material encontrado em From ritual to romance para atender aos seus próprios objetivos como poeta essencialmente preocupado com uma moder-nidade que se afasta do passado mítico porque marcada por decadência, fragmentação e ausência de sentido. Em outras palavras, enquanto Weston volta-se para o passado para recuperá-lo, Eliot volta-se para o presente moderno para nele lamentar o passado perdido. Nesse contexto, a equivalência que Candido propõe entre as Veredas-Mortas, a Capela Perigosa de Weston e a chapel de Eliot é uma equivalência ao mesmo tempo problemática e produtiva. Problemática porque tende a tornar homogêneas diferenças significativas. Produtiva porque, consciente ou inconscien-temente, aponta para outras possibilidades interpretativas. Pois a chapel decadente de Eliot, que é também uma “cova arruinada entre as montanhas” (decayed hole), onde “a relva canta sob os túmulos caídos”, e “onde somente o vento faz seu ninho”, não pode ser entendida separadamente de uma modernidade em decomposição. Não custa lembrar que o poema foi escrito quatro anos após o término da Primeira Guerra Mundial, que transformou a Europa, literalmente, em uma terra devastada. A Capela Perigosa expressa uma parte dessa degeneração, lado a lado com a degradação das grandes metrópoles, de Londres em particular, onde o glo-rioso Tâmisa mítico do passado já não tem suas ninfas:

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The river bears no empty bottles, sandwich papers, Silk handkerchiefs, cardboard boxes, cigarrette endsOr other testimony of summer nights. The ninphs are departed (ELIOT, 1983, p. 1005).8

Se a referência que faz Candido ao poema de Eliot é problemática, é também, como dissemos anteriormente, produtiva. Há nela, consciente ou inconscientemente, um potencial de entendimento de Grande sertão: veredas em termos de uma modernidade não necessariamente ligada apenas a questões histórico-sociais brasileiras. É bem possível que essa modernidade alternativa possa ser percebida, de forma privilegiada, não tanto no que se refere a problemas de decadência na modernidade, mas princi-palmente no tratamento que dá o romance a certas formas de violência. Candido mostrou que há, no romance de Rosa, a representação de uma violência histórica, própria ao ambiente de jagunçagem que Rosa recria esteticamente no livro. Acredita também que essa violência tenha muito em comum com a que é descrita no mundo da cavalaria andante e dá o seguinte exemplo:

Uma das “flores da Cavalaria”, Ricardo Coração de Leão, mandou certa vez a Felipe Augusto, com quem estava de luta, quinze cavaleiros franceses prisioneiros, amarrados em fila, de olhos vazados e o guia apenas caolho. O rei de França respondeu mandando quatorze cavaleiros ingleses nas mesmas condições, mas conduzidos por uma mulher, – o que foi reputado “boa traça”, golpe de finura e superioridade (CANDIDO, 1983, p. 302).

Essa violência, contudo, é significativamente diversa da que se encontra no romance de Rosa. A dos reis de Inglaterra e França é regrada por determinados códigos historicamente definidos que não se aplicam ao Grande sertão. Na história dos reis medievais, a atenção não está focada no que o ato praticado por eles tem de cruento, ou no seu “sentido” (ou falta dele), mas na disputa cortês que

8 Novamente na tradução de Ivan Junqueira: O rio não suporta garrafas vazias, restos de comida, Lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro, E outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já partiram. (ELIOT, 1981, p. 96)

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travam entre si – disputa esta vencida pelo rei de França, que se demonstrou não só capaz de responder à altura, mas de superar em “finura” o rei de Inglaterra.

Ao contrário da violência medieval, que tem um sen-tido histórico preciso, em Grande sertão nota-se a presença de uma violência que é sem fundo e sem razão, inexplicável e incompreensível.9 Também, ao contrário do que ocorre no mundo da cavalaria, ela costuma ser descrita em minú-cias, o que lhe intensifica o impacto. É o que demonstra o episódio da matança dos cavalos na Fazenda dos Tucanos, levada a cabo justamente pelo bando do Hermógenes, a quem o grupo de Riobaldo combatia na ocasião. A citação é longa, mas importante, pois o detalhismo na descrição dos sofrimentos impingidos aos animais dá a medida da perple-xidade de Riobaldo – que espelha a de seus companheiros de bando – com o absurdo da violência que presenciam:

Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus nem justiça de coração, se viravam para judiar e estragar, o rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a torto e direito, fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt’-e-baixos – entendendo, sem saber, que era o destapar do demônio – os cavalos desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam erguidos em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos outros, retombados no enrolar dum rolo, que reboldeou, batendo com uma porção de cabeças no ar, os pescoços, e as crinas sacudidas esticadas, espinhosas: eles eram só umas curvas retorcidas! [...] Curro que giraram, trompando nas cercas, escouceantes, no esparrame, no desembesto – naquilo tudo a gente viu um não haver de doidas asas. [...] Iam caindo, achatavam no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os topetes para cima, numa tremura. Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dor – o que era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem quase falando, de outros zunido estrito nos dentes, ou saído com custo, aquele rincho não respirava, o bicho largando as forças,

9 É importante notar que a questão da violência em Grande sertão: veredas é de extrema complexidade e que o tema é tratado sob perspectivas múltiplas. Mas talvez seja possível pensar uma tipologia da violência marcada, digamos, ora pela necessidade de justiça, ora pela vingança, ora pela constatação da presença da essência do mal no mundo, como no caso da descrição do Hermógenes: “Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza. § Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez, quando um inimigo foi pego, ele mandou: – ‘Guardem este.’ Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou falar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta no meio, como sem vontade, boca de dor. Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele – um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para

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vinha de apertos, de sufocados. [...] O Fafafa chorava. João Vaqueiro chorava. Como a gente toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não havia remédio. À tala, eles, os Hermógenes, matavam conforme queriam, a matança, por arruinar. Atiravam até no gado, alheio, nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o começo, tinham querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os animais iam amontoando, mal morridos, os nossos cavalos! Agora começávamos a tremer. Onde olhar e ouvir a coisa inventada mais triste, e terrível – por no escasso do tempo não caber. [...] Aturado o que se pegou a ouvir, eram aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquele rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada de aflição [...] O senhor escutar e saber – os cavalos em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para morrer e não morrer, e o rinchar era um choro alargado, despregado, uma voz deles, que levantava os couros, mesmo uma voz de coisas da gente: os cavalos estavam sofrendo com urgência, eles não entendiam a dor também. Antes estavam perguntando por piedade (ROSA, 1976, p. 257-258).

A imagem de violência e crueldade construída nesse trecho de Grande sertão: veredas não se explica pelas ne-cessidades da guerra. A atitude do bando do Hermógenes é recebida, até por homens sanguinários como são os jagunços, como extraordinária e incompreensível. Além do detalhismo da descrição do sofrimento dos animais, indicam-no, explicitamente, as palavras de Riobaldo: “naquilo tudo a gente viu um não haver de doidas asas”; “Não se podia ter mão naquela malvadez”; “os cavalos estavam sofrendo com urgência, eles não entendiam a dor também”. Nesse último trecho, o “também” indica que os jagunços do bando de Riobaldo, como aparentava aconte-cer com os cavalos, “não entendiam”, aquela “malvadez” despropositada.

Essa forma de violência, historicamente associada mais à modernidade do que ao mundo da cavalaria an-dante, foi trabalhada por Jean-Paul Bruyas, em um estudo

elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele dava à gente” (ROSA, 1976, p. 132).

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importante, mas de pouca repercussão nos meios críticos brasileiros. Para Bruyas, a temática da violência no ro-mance de Rosa pode ter sido influenciada pela experiência pessoal de seu autor durante a Segunda Guerra, quando era cônsul na Alemanha. Nas palavras do crítico, Rosa, “como diplomata, observou, de modo bastante direto, o espetáculo de uma guerra terrível e de uma sociedade dominada pela violência” (BRUYAS, 1983, p. 473). Para o episódio da matança dos cavalos, o chamado “Diário alemão” de Guimarães Rosa é documento de extrema relevância. Encontra-se, nas notas de Rosa, a descrição, ainda que esquemática, de uma experiência que apresenta singular correspondência com o episódio anteriormente referido: “Fragor tremendo. Bombas poderosas. Fim-de-mundo. [Bomba no Jardim Zoológico. Camelos mortos. Bichos outros mortos - bombeados ou metralhados [...] canhão pesado].”10

Ao chamar a atenção para uma possível repercussão da experiência da guerra na ficção de Rosa, Bruyas aproxi-ma questões trabalhadas em Grande sertão de concepções próprias à Modernidade que vai do final do século XIX até por volta da metade do século XX. Piers Armstrong, outro crítico estrangeiro, teceu reflexões análogas às de Bruyas:

[…] critics have often compared the book to medieval romance. […] But though the work does draw on various structural devices found in romance, and even exploits reader expectation of the genre, it would be inappropriate to classify it as a romance. There is no consistent allegorical system of reference, no ultimately reliable form of authority making for the childlike sweetness of the vassal-master relation, whether in terms of Christian values or pagan metaphysical hierarchies. There is too much sense of the wantonness of violence and too much fascination with evil for Grande sertão: veredas to be the spawn of any era prior to that of the European modernism beginning in the second half of the nineteenth century.

10 Devemos essa informação à estudante Lorena Lopes, da Universidade Federal de Minas Gerais, que gentilmente nos enviou o trecho que transcreveu do chamado Diário alemão do escritor, designação provisória dada às anotações que Rosa fez quando era cônsul adjunto em Hamburgo, durante os anos 1939 a 1941. O diário ainda não foi publicado. Lorena consultou a cópia dessas anotações que se encontra hoje no Fundo Henriqueta Lisboa do Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. A anotação transcrita acima é do dia 7 de setembro de 1941.

11 Antes, Armstrong tinha falado das “Heraclitean connotations of Riobaldo’s speculations about the process of becoming, the uncertainties which constantly renew themselves, and doubts […] undermine any assertion of identity”. Ou seja, para o crítico, as “conotações heracliteanas das especulações de Riobaldo sobre o processo de mudança, sobre as incertezas que se renovam constantemente e as dúvidas [...] subvertem qualquer afirmação de identidade” (ARMSTRONG, 1999, p. 65).

12 “[...] os críticos comparam com freqüência o livro ao ‘romance’ medieval. [...] Entretanto, muito embora a obra realmente utilize vários recursos estruturais que se encontram no ‘romance’ e explore a expectativa que o leitor tem do gênero, seria inadequado classificá-lo como ‘romance’. Não existe um

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In fact, despite these various classical literary echoes in the storyline, in terms of intellectual themes the work has most in common with the twentieth century. The Heraclitean im-pulse11 and the constant renewability of doubt are informed, philosophically, by existentialism. The focus on a single personal perspective, and the sense of loss of any reliable truth system beyond that generated by personal experience is characteristic of modernism. Further, the dubious nature of the protagonist’s courage, his strength as a survivor rather than as the incarnation of an ideal, though it is not used for comic irony and is only to be inferred by close reading, is consistent with other modernist works. Thematically, the confusion of nominal gender roles – Diadorim incarnating heroic courage and Icarian impulse, Riobaldo buying his courage with an illusion and suffering disorientation of sexual attraction – is not traditional. Finally, the stylistic license indulged places the wok alongside other great modernist works that demonstrate great artistic virtuosity while revolutionizing previously held formal standards (ARMSTRONG, 1999, p. 66-67; grifos nossos).12

Armstrong observa ainda que, apesar da precisão his-tórica e geográfica claramente visíveis no romance,

The governing principle is rather the act of memory made by Riobaldo for the purpose of metaphysical speculation, his own deliberately subjective reconstruction of concrete events which are now psychologically orchestrated as aspects of a greater epistemological problem of particular fascination to himself. The description of mountain ran-gers and plains, bushes and species, for example, are not designed to give an objective sense of the law of the land but rather to communicate the impression made on Rio-baldo as he moves steadily and often laboriously through it. The subject in Grande sertão: veredas is not a hero but a speaker; as in the most radical works of modernism, the final protagonists are the subjective filters of perception, memory and language (ARMSTRONG, 1999, p. 71; grifo nosso).13

sistema alegórico de referência consistente. Não existe, no final das contas, uma forma de exercício de autoridade confiável para a suavidade infantil da relação entre senhor e vassalo, quer seja em termos de valores cristãos ou de hierarquias metafísicas pagãs. Há um sentido exagerado da gratuidade da violência e um fascínio muito grande pelo mal no Grande sertão: veredas para que se possa compará-lo a qualquer época anterior ao do modernismo europeu que começa na segunda metade do século XIX. Na realidade, e a despeito desses vários ecos da literatura clássica no enredo, em termos de temas a obra tem muito mais em comum com o século XX. O impulso heracliteano e a renovação constante da dúvida são moldados filosoficamente pelo existencialismo. O foco em uma única perspectiva narrativa e a experiência de perda de qualquer sistema de verdade confiável para além da experiência pessoal são típicos do modernismo. Além disso, a natureza dúbia da coragem do protagonista, a sua força como sobrevivente mais do que como encarnação de um ideal, muito embora não sejam usadas para a ironia cômica e só possam ser percebidas pela leitura atenta (close reading), são consistentes com outras obras do modernismo. Tematicamente, a confusão de papeis de gênero – Diadorim encarnando a coragem heróica e o impulso icário, Riobaldo adquirindo a sua coragem com a ilusão e a desorientação

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Existiriam leituras de Grande sertão: veredas para além do projeto de Candido e de seus desdobramentos, aqui apresentados esquematicamente? Uma forma de pensar essa possibilidade, hoje, seria retornar à questão da historicidade da interpretação. O que chamamos antes de “ideologia da interpretação”, ou seja, a prática crítica dominante dos estudos literários nos últimos 150 anos, não chegou ao final do século passado sem turbulências significativas. A partir da década de sessenta, quando Candido escrevia Literatura e sociedade,14 um elenco de críticos franceses estruturalistas e pós-estruturalistas ten-tava pensar uma forma alternativa de leitura do literário em relação àquelas típicas da Era da Interpretação. As “análises textuais” de Barthes, aplicadas a Balzac (s/d) e Poe (1977), constituem os exemplos mais evidentes. Mas posturas analíticas semelhantes, por outras vias, poderiam ser detectadas em outros críticos, como o Deleuze leitor de Bartleby (1997), o Derrida leitor de Mallarmé (1981), ou o Lyotard que definiu, com relação ao texto artístico, a possibilidade de uma “comunicação sem comunicação” (1988). São, em todos os casos, “interpretações” (se é que assim podem ser chamadas) que resistem ao ato interpre-tativo convencional e que, de uma forma ou de outra, insistem, no tratamento do literário, na presença de uma força que se recusa a ser fechada em um ato interpretativo. No Barthes autor de análises textuais, a sugestão da pre-sença dessa força aparece, por exemplo, na constatação de que a narrativa é ao mesmo tempo estruturada e infinita (BARTHES, 1977, p. 39), o que justificaria uma leitura do texto que já não interpreta porque se resume à perseguição sem fim de códigos culturais arbitrariamente escolhidos pelo leitor. No Derrida de “Força e significação”, é o próprio conceito de “força” que aponta para um resto textual que sempre escapa ao ato interpretativo que fecha o texto em geometrias de sentido. É sempre possível estigmatizar tais propostas como démodés, ou como desvios temporários da boa rota que pratica sempre a boa interpretação nos termos pensados por Culler, ou seja, como uma prática de

sofrida da atração sexual – não é tradicional. Finalmente, a licença estilística nela presente situa a obra lado a lado com outras grandes obras modernas que demonstram virtuosidade artística ao mesmo tempo que revolucionam padrões formais existentes anteriormente.”

13 O princípio central é principalmente um ato de memória praticado por Riobaldo, com o objetivo de especulação metafísica, ou seja, a própria reconstrução subjetiva e deliberada por ele feita de eventos concretos que são agora orquestrados psicologicamente como aspectos de que problema epistemológico maior e de particular fascínio para ele (Riobaldo). As descrições de cavaleiros de morros e planícies, fauna e flora, por exemplo, não são usadas para representar um sentido objetivo da lei da terra, mas antes para comunicar a impressão que tem Riobaldo enquanto se move com firmeza e com dificuldade através dela (a terra). O sujeito de Grande sertão: veredas não é um herói, mas um falante; como na maior parte das obras radicais do modernismo, os protagonistas finais são filtros subjetivos de percepção de memória e de linguagem.

14 Literatura e sociedade foi publicado em 1965 (CANDIDO, 1985, Prefácio à 3ª edição).

15 Avaliando a geração a que pertence, Derrida fala em causa própria. Mas não seria exagero dizer que já não é mais possível, hoje, relegar à lata de lixo da história o grupo

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leitura que faz com que o texto mudo e resistente ao sen-tido único venha a falar na voz do crítico, proporcionando ao leitor que ainda não sabe ler bem o conforto de um sentido fechado e coerente. Nesse contexto, os momen-tos estruturalistas e pós-estruturalistas nada mais seriam do que propostas radicais a serem esquecidas, momentos de exceção extravagante que apontariam apenas para a necessidade de retorno às boas práticas interpretativas. Mas é também possível pensar que os textos produzidos nesses períodos ainda não acabaram de ser lidos e que neles pode-se, ainda hoje, entrever um legado a ser explorado. É desse legado que fala Derrida em sua última entrevista, quando avalia a contribuição da geração chamada por Cixous de “the incorruptibles” (DERRIDA, 2004, p.27).15 A essa geração pertencem, entre outros, Lacan, Althusser, Levinas, Foucault, Barthes, Deleuze, Blanchot, Lyotard. O que essa comunidade de pensadores tem em comum, segundo Derrida, é

an ethos of writing and of thinking, an intransigent or in-deed incorruptible ethos […] without any concession even to philosophy, an ethos that does not let itself be scared off by what public opinion, the media, or the phantasm of an intimidating readership might pressure one to simplify or repress. Whence the strict taste for refinement, paradox, and aporia (DERRIDA, 2004, p. 27-28).16

Para Derrida, essa geração pertence a uma “provisio-nally bygone era” (grifo no original),17 o que significa que “it is necessary to save that or bring it back to life, at any cost” (DERRIDA, 2007, p. 27-28).18 Trata-se de tarefa urgente no momento atual, um momento que, mais do que nunca,

[...] calls for an unrelenting war against doxa, against those who are today called “media intellectuals”, against a general discourse that has been preformatted by media powers that are themselves in the hands of certain economic, editorial,

que Cixous chamou de “os incorruptíveis”. Um crítico de orientação ideológica diversa, senão hostil, Terry Eagleton, inclui os nomes mencionados por Derrida no que chama de a “Era da Alta Teoria”, afirmando que são pensadores maiores, que deixaram uma marca indelével no estudo das humanidades. E conclui: “Não muito do que tem sido escrito desde então é comparável à ambição e originalidade desses precursores. [...] Muitas das idéias desses pensadores continuam a ter valor incomparável. [...] estamos vivendo agora as consequências do que se poderia chamar alta teoria, numa época que [...] [se enriqueceu] com os insights de pensadores como Althusser, Barthes e Derrida [...]” (EAGLETON, 2010, p. 13-14).

16 “[...] um ethos de escrever e de pensar, um ethos intransigente e verdadeiramente incorruptível [...], sem nenhuma concessão nem mesmo à filosofia, um ethos que não se deixa assustar pela opinião pública, pela mídia, ou pelo fantasma de uma comunidade de leitores intimidantes que poderiam nos pressionar a simplificar ou a reprimir. Daí o gosto exacerbado pelo refinamento, pelo paradoxo e pela aporia.”

17 (...) era provisoriamente passada (...).

18 (...) é preciso preservá-la e trazê-la de volta à vida, a qualquer custo (...).

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and academic lobbies. At once European and global. (DER-RIDA, 2007, p. 28).19

A resistência à doxa é, para Derrida, também uma resistência a toda interpretação fechada e coerente que domestica o texto literário, reduzindo-o ao sentido único que lhe vão dando, no devir histórico, cada um de seus intérpretes, responsáveis pela produção de uma pluralidade potencialmente infinita de sentidos fechados. A produção dessa pluralidade de sentidos, ilustrada no presente ensaio a partir do Candido que lê Grande sertão: veredas, faz parte do que chamamos antes da “ideologia da interpretação”, que, como observou Culler, permaneceu dominante de 1850 até o momento presente.

Levada a sério a questão da historicidade da interpreta-ção, a pergunta inevitável diz respeito à possibilidade de sua permanência ou não como ideologia dominante que sofre o desgaste do tempo. A interpretação, em outras palavras, veio historicamente para ficar, apesar dos questionamentos a ela dirigidos, a exemplo daqueles formulados a partir da década se sessenta do século passado? Seria possível ler um texto como Grande sertão: veredas de uma forma que não o domesticasse nas sucessivas interpretações daqueles que podem abordá-lo “a seu gosto, conforme seu ofício”? Seria possível, dizendo de outro modo, ler um clássico como o romance de Rosa respeitando o resto estrutural que é justamente o que o define como clássico?

São perguntas que, em outro contexto, foram formu-ladas com precisão pelo próprio Culler em reflexão recente sobre possíveis mudanças na crítica no século XXI:

Will criticism continue to be primarily interpretive? Are there new models of interpretation? If what we call theory has been the deployment of discourses and analytic perspec-tives originating in other disciplines for use in one’s own, are there new theoretical orientations available that may enrich literary studies in this new century? With the eroding of the value of the cultural capital long represented by literature,

19 “[...] clama por uma guerra sem tréguas contra a doxa, contra aqueles que são hoje chamados de ‘intelectuais da mídia’, contra um discurso generalizado que foi programado de antemão pelo poder da mídia, aprisionado por lobbies econômicos, editoriais e acadêmicos. Ao mesmo tempo europeus e globais.”

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will literary studies, and hence literary criticism need to take new forms? (CULLER, 2010, p. 907)20

Dependendo das respostas a serem dadas a tais perguntas, seria talvez possível, hoje, começar a pensar possibilidades de leitura alternativas em relação à valiosa fortuna crítica herdada de Candido e expandida em dire-ções múltiplas. Ou não.

Referências

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_____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.

_____. Formação da literatura brasileira. 10. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

_____. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

20 “A crítica continuará a ser primariamente interpretativa? Aparecerão novos modelos de interpretação? Se o que chamamos de ‘teoria’ consistiu no desenvolvimento de discursos e perspectivas analíticas originadas em outras disciplinas para serem utilizadas na nossa própria [a crítica literária], existiriam novas orientações teóricas disponíveis que poderiam enriquecer os estudos literários no século atual? Com a degeneração do valor do capital cultural que foi, durante longo tempo, representado pela literatura, seria necessário aos estudos literários e à crítica literária desenvolverem novas modalidades?”

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114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.18, 2011

CULLER, Jonathan. Introduction: critical paradigms. PMLA, New York, v. 125, n. 4, p. 920-923, 2010.

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DERRIDA, Jacques. Learning to live finally: an interview with Jean Birnbaum. Trad. De Pascale-Anne Brault e Michael Naas. New Jersey: Melville House Publishing, 2007.

_____. Força e significação. In:_____. A escritura e a diferença. 3. ed. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Per-spectiva, 2005.

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“Atroadas de máquinas, motores, estrugidos”: lírica e sociedade na

poesia de Joaquim Cardozo

Hermenegildo Bastos*

resumo: A lírica, apesar da opinião predominante, é o gênero em que a vida social se manifesta ao mesmo tempo mais inad-vertida e poderosamente. À crítica dialética interessa perceber o inesperado ou inadvertido da vida social presente na lírica, sendo essa a sua razão de ser. A partir da leitura das “Canções sombrias”, de Joaquim Cardozo, procuraremos rastrear os traços da vida social e histórica na lírica.

palavras-chave: Conexões entre lírica/sociedade; papel da crítica; Joaquim Cardozo.

abstract: In the lyric, in spite of the predominate opinion, the social life appear in the same time more inadvertently and substantially than in others literary genres. The dialectical critic must perceive the unexpected or inadvertent of the presence of the social life. That is her significance. In this work we read the “Canções sombrias” of Joaquim Cardozo following the tracks of the social and historical life in the poems.

keywords: Connections between lyric and social life; role of the critic; Joaquim Cardozo.

Comecemos por enunciar algumas noções que balizarão o nosso trabalho. Como não é um trabalho exclusivamente teórico, pois se concentra na análise e interpretação de um conjunto de poemas, as noções deverão ser consideradas em face do trabalho crítico.

A poesia diz o mundo e a vida, mas o faz de modo úni-co: sua fala é o acentuar de uma especificidade. Ela quer se alongar do mundo como numa forma de recusa. Ao recusá-lo, porém, fala dele. Diz o mundo como fala de si mesma, do seu tipo muito especial de trabalho – o poético. Como trabalho, opõe-se ao trabalho estranhado, forma determi-

* Universidade de Brasília (UnB).

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nante do trabalho na sociedade capitalista. A oposição é dialética, pois a obra também habita o mundo reificado, e sabe disso. O saber se evidencia para o leitor nos vários elementos da organização da obra, seja na construção dos personagens, na figuração do eu lírico, etc.

Procuraremos ler a sociedade e a história a partir das “Canções sombrias”, de Joaquim Cardozo. Importa sublinhar que a experiência poética, tanto para o autor quanto para o leitor, está indissoluvelmente ligada ao conhecimento da vida e do mundo. A sua relação com a sociedade é de contradição: a poesia é, assim, tomada aqui como a antítese da sociedade fetichizada, ou, ao menos, ela assim o deseja.

A poiesis é também mimesis ou, em outras palavras, a mimesis, por ser um fazer e não simples reprodução da realidade, é já poiesis (sobre isso ver BASTOS, 2008). Na Poética, Aristóteles definiu mimese como imitação das ações humanas. Por isso, prevaleceu a ideia de que daí estaria excluída a lírica e que o poema se compreenderia primor-dialmente como manifestação da subjetividade do poeta. Na verdade, porém, na lírica estão envolvidos elementos miméticos, como procuraremos demonstrar.

Neste trabalho, procuraremos discutir a atualidade da crítica social, que, entretanto, não se confunde com a crítica sociológica. A dificuldade está em se entender a dia-lética sujeito/objeto na obra de arte. Em “A característica mais geral do reflexo lírico”, Lukács realça a subjetividade como característica da lírica, mas ressalta que elementos subjetivos existem também na épica e no drama. Contudo, observa ele, a subjetividade do escritor tem na lírica um significado particular. Diz ele que a diferença qualitativa da lírica está não na emergência da subjetividade consti-tutiva, mas, ao contrário, na específica e visível ação desta subjetividade (LUKÁCS, 2009, p. 246).

Partindo da ideia central na sua Estética de que a realidade existe independentemente da consciência, Lukács pondera que a função da subjetividade na lírica não é puramente passiva, mecânica. O comportamento do

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poeta é ao mesmo tempo, e de modo indissociável, ativo e passivo: ele, ao mesmo tempo, cria e reflete. O caminho que leva do fenômeno ou aparência à essência (caminho do reflexo estético) só pode ser percorrido de modo ativo. A atividade, porém, não suprime o caráter fundamental de todo processo, ou seja, de ser um reflexo da realidade objetiva.

A especificidade lírica está em que nela o processo (o reflexo da realidade) emerge como processo também no plano artístico. Daí ser visível para o leitor, que acompanha o poeta no seu trabalho. A realidade representada na lírica se manifesta in statu nascendi. Enquanto isso, a épica e o drama representam, na realidade artisticamente refletida, a dialética objetiva de fenômeno e essência. O papel da subjetividade aí é, portanto, outro. O que na épica e no drama se desenvolve como natura naturata, ou seja, em sua dinâmica objetivamente dialética, de natureza gerada, aparece-nos na lírica como natura naturans ou natureza geradora.

A partir das leituras da “Canção de uma espera sem fim” e da “Canção que vem por um caminho”,1 procura-remos lançar um olhar sobre o conjunto das “Canções sombrias”, de Cardozo. Uma visão dialética priorizará as contradições presentes nos poemas, contradições que eles tentam solucionar, mas que insistem e se organizam como numa espécie de mitologia. “Mitologia” significará aqui um conjunto articulado de seres e figuras, que inclui seres humanos (entre os quais o eu lírico), medidas de tempo e espaço, seres naturais (flora e fauna, estrelas, raios e trovões), objetos (casas, roupas), máquinas (reais ou fabulosas, entre elas a “máquina do mundo”) e seres sobrenaturais, todos organizados num sistema de poder. Se o raio ou trovão age sobre o homem, impondo-lhe limites ou submetendo-o, temos uma relação de poder. A roda ou o arado, invenções humanas, agem sobre a natureza, de uma forma que também é de poder.

Em poemas enigmáticos como as “Canções sombrias”, a mitologia é quase sempre explícita, mas nem sempre as

1 Trabalhamos com a edição da Poesia completa e prosa da Nova Aguilar/Editora Massangana (2008), algumas vezes cotejada com a edição das Canções sombrias da Civilização Brasileira/Massao Ohno/Editores Fundarpe (1981).

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situações são claras. O mundo material tem quase uma dimensão metafísica. Todos esses elementos agem uns sobre os outros como num sistema de relações de poder, de que o poema também faz parte. Daí sua natureza basicamente contraditória: fazendo parte do sistema de poder, entre-tanto, a ele se opõe. A atividade do poeta aparece, assim, como a construção do mundo da liberdade, por oposição ao sistema de poder.

No poema lírico, o poeta pode escolher “cantar” as suas próprias experiências, mas, quando estas incluem seres naturais e sobrenaturais e/ou “personagens” humanos, este conjunto de seres funciona como uma mitologia de que se serve o poeta para comunicar, mas também para ocultar as contradições.2

O ponto de partida da crítica está na atividade mesma do poeta, no seu trabalho. Lemos os poemas procurando acompanhar o poeta na sua atividade criadora. A poesia, como reflexo específico da realidade, vai além da percepção comum da vida cotidiana, supera as aparências, dando a ver a essência.

Eis a “Canção de uma espera sem fim”, a segunda das “Canções sombrias”:

1 Não se sabe o que vem para ficarNão se sabe o que vem, se inda demoraDessa planície não se encontra o fimAo longe passa o carrossel da aurora5 Vem até mim o carro do horizonte.

Tristeza de um olhar que alonga a vistaEspera que se dá no espaço longoEntre lembranças finas acenandoEntre saudades que se recuperam10 Tristeza de um olhar de longa esperaQue de longe se estende entre caminhos.

Não se sabe quando é, quando seráNão se sabe o que vem para ficarNão se sabe ao que vem, se inda demora;

Em planta se tornou, não floresceu45 Em árvores se fez, anoiteceu.

Depois se fez estátua e empedernidaQue se encostou à porta do casalEsculpida e gelada para sempre:Fantasma que parece a própria espera50 Daquilo que não vem e não viráEspera que é fantasma e se desfez.

Talvez a mancha sombra de um navioQue de tudo é saudade e nostalgiaOu talvez seja um trem que se apro-xima55 Trazendo uma notícia, uma lem-brança,Trazendo a flor serena de um motivoTrazendo o despontar de uma sau-dade.

2 Com o termo mitologia não pretendemos aproximar-nos da crítica mítica. A palavra deve, então, ser tomada no sentido mais comum que pode ter na linguagem cotidiana. A sublinhar apenas que a tomamos como um sistema de poder, não como mera ilusão. À crítica dialética cabe perceber nessas relações “mitológicas” a vida social e suas relações de poder.

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15 Sobre a planície estendo o coraçãoJá que os olhos esperam do horizonteA chegada ilusória de um perdão.

Esperança no que nunca se espera;Alguém de pé, se expõe na solidão20 E a olhar se fica, a olhar da portaA vista prolongada sobre as lindesE espera a espera da esperança morta.

Por onde andará o que procuraPor onde andará o que não vem:25 Nunca mais viu e nunca mais verá;Seu coração perdeu-se na planuraNa tristeza das almas esquecidas- Talvez sumidas numa noite escura.

Alguém está de pé no umbral da porta30 Figura confrangida e inconsolávelAli de pé à espera eternamenteÀ espera de que volte o que não foi;Fica sempre soando em som noturnoPois não tem da manhã cinza no céu.

35 Talvez cheguem rumores deste mundoAtroadas de máquinas, motoresEstrugidos que vão se decompondoCom fumigações e seus vaporesContinuamente a espera perlem-brando.

40 Alguém está de pé no umbral da portaO que esperou não veio e não viráNão sobreveio e não sobreviráDe tanta espera à porta do casal

A insistência de uma frase negativa que se repete vá-rias vezes (“Não se sabe o que vem para ficar”) é irônica porque a frase, embora negativa, traz em si o paradoxo de ser também, e desgraçadamente, afirmativa: alguma coisa vem para ficar, disto se sabe e é isto que pesa. Ainda mais: não há o que se possa fazer para impedi-lo. O não saber soma-se ao peso já excessivo. Um determinismo massa-crante tem dupla face: não se sabe isto que, entretanto, é inevitável. Algo (humano? sobre-humano?) se impõe ao homem e o abate.

Ou quem sabe? avião que lento passeAcompanhando o corredor da aurora60 Das árvores as frondes apaziguamOs ramos entrelaçam esquecimentos;A estátua fica inerme e inconsolável,E ali há de ficar sempre ao relento.

Alguém está de pé no vão da porta65 Figura confrangida e inconsolávelNa rigidez da pedra e do carvão;Todos nós de uma célula nascemosQue se vai desfazendo em chão de terraEsperança, esquecimento se desfazem70 Nessa expansão sem fim dentro do chão.

No chão de várzeas longas, estendidasOs desejos que nunca sucederam;As ambições de todos já morreramNo chão de virgens ramos enleados;75 No chão de quem morreu já muito antesNuma espera sem fim dentro da terra

Alguém está de pé dentro da portaQue em planta se tornou e feneceuQue em árvore se fez e emudeceu80 Que em estátua se compôs pere-nemente.

Das plantas e das árvores perduramTodas que juntando se entrelaçamDeixando no ar cantante esta canção:

O fim, sem fim, da espera para sempre.

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Longe de ser uma proposição enigmática que o leitor deveria elucidar, é, como enigma, constitutiva do poema. Elucidá-la seria, então, desintegrar o poema. Ou submetê-lo a uma lógica a que ele quer se furtar. Por isso, dizemos “o poema se inicia” como dizendo que ele inicia por um corte com a lógica ou racionalidade dominante. Não exa-tamente para se ausentar do mundo, mas elaborando uma racionalidade outra, que pode ser uma forma de recusa da primeira.

Entre aquilo que tarda a ir e o que tarda a chegar – a demora. Duplo percurso de retardo. A tardança fez morada e desenha o horizonte, como uma fatalidade que nos obriga a ficar “À espera de que volte o que não foi”.

É um poema longo, de 84 decassílabos, em que se canta a esperança/desesperança. O canto é o gesto mesmo de esperar/desesperar. “O fim, sem fim, da espera para sempre” (II, 84)3 é a própria canção que lemos e voltamos a ler.

Na canção há um eu que fala, fala de si mesmo, na primeira pessoa (“Vem até mim o carro do horizonte”, II, 5) como também na terceira pessoa (“Alguém de pé se expõe na solidão”, II, 19). Deparamos aqui com a noção de “eu lírico” que nos obrigará a uma digressão.

A evolução histórica da noção de eu lírico (lyrisches Ich) sofreu consideráveis mudanças. O eu lírico sempre se diferençava do eu empírico e real, embora em Goethe e, depois, em Dilthey, esteja em cena a ideia da vivência ou experiência vivida (Erlebnis), da sinceridade do poeta, portanto. Rimbaud é o poeta que inaugura a poesia do “eu como o outro”. O eu impessoal domina a cena da poesia moderna. Mas o “eu lírico” sofre também seus reveses entre os modernos. Não se trata mais e apenas de ver o eu do poema como diverso do eu real, mas sim de vê-lo como uma identidade problemática do sujeito refletida na identidade problemática do discurso. A significação do sujeito lírico se encontra com a do sujeito empírico sem confundir-se com ela. Estão ligadas por um processo metonímico ou sinedóquico. Mas o sujeito lírico não é o “sujeito trans-cendental” do idealismo filosófico. Não é uma pura forma.

3 A partir daqui registraremos entre parênteses o número da canção em românico e o do verso em arábico.

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O sujeito lírico não ignora o sentimento, entendido como afeição, como ethos ou pathos. É um sujeito sensível em que o sentimento toma um valor universal. O sujeito lírico se cria em e pelo poema, ele não existe, só se cria.4

A linguagem lírica, segundo Kayser, é a manifestação de uma emoção em que o objetivo e o subjetivo se com-penetraram. Este que fala na “Canção...” é um indivíduo, o poeta, mas universalizado. Fala de um outro, chamado apenas “alguém”. Há alguma diferença entre este eu e o seu alguém? Entenderemos melhor se pensarmos que o eu não pode se conter em si mesmo, projeta-se num outro, indefinido, que é a espécie humana. Vemo-nos, assim, dentro daquela atitude épica presente na lírica de que fala Kayser, segundo quem na lírica encontramos uma atitude básica, que ele chama “enunciação lírica”. Aí o eu está diante de um “ele”, de um “ente”, e o capta e o expressa, existe aí de certo modo uma atitude épica, conforme Kayser (1970, p. 446).

Mas cabe deixar agora mais claro como uma certa dimensão utópica está ligada a essa atitude épica.

O enigmático da nossa canção está em que o poema se furta à racionalidade dominante. Não que enigmático seja sinônimo de irracional (tudo menos isso, sobretudo se tratando de um poeta cientista como Joaquim Cardozo). Enigmático é projeção de uma racionalidade outra que não se deixa tragar pela dominante. Como veremos, esta questão é decisiva para a “Esperança no que nunca se espera” (II, 18).

Mas, na luta para se furtar à racionalidade dominante, não há como impedir que ela se imiscua no poema: lutar contra ela significa reconhecê-la. A lógica está em uma espécie de imposição expressa por frases negativas que terminam afirmando uma constante determinística da vida humana. Tentemos entendê-la.

Alguma coisa vem para ficar, e isto é uma fatalidade. O não saber o que vem não é exclusivo de ninguém, nem mesmo do poeta. “Carro” traz consigo a ideia de movimen-to; horizonte também, mas mais claramente de mudança.

4 Sobre isso, ver COMBE (1999).

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“Horizonte” é palavra cara à filosofia e à literatura mo-dernas. “Horizonte” é a extensão daquilo que é visível e perceptível, aquilo que demarca um espaço, estabelece as lindes. O que existe para mim, ou para nós, é o que vemos ou percebemos, o que cai na nossa percepção. O que po-demos nos propor porque podemos resolver.5 Daí o sentido de dar a ver: “Vem até mim o carro do horizonte”.

Outras metáforas, além de carro, põem o leitor diante da máquina do mundo. Se o carro do horizonte vem até o eu é porque lhe é franqueada a sua visão.

Imagens de tempo e de espaço dão visibilidade a deslocamentos e ao mesmo tempo, paradoxalmente, imo-bilidades. A planície do terceiro verso é lugar e também tempo. Aí onde se encontra o eu é um tempo-espaço sem mudanças, daí plano, sem altos e baixos, o tempo-espaço do mesmo, e é tão extenso que não se vê o seu fim (o “espaço longo”, II, 7). “[...] O olhar alonga a vista” (II, 6). O que vem para ficar demora. A aurora, o movimento da aurora, o seu carrossel, passa longe.

O eu (ou o alguém) espera, mas não nos diz o quê. O eu fala de si mesmo como um outro, vê-se em situação (“se fica”). É uma figura que se demora no limiar. A demora não é, assim, apenas de algo, mas desse alguém. Ele se demora esperando “[...] que volte o que não foi”. Lança sua vista por sobre as lindes por onde passa o carro do horizonte.

Apesar do enigma, o longo poema de 84 versos se constrói dentro dos limites (lindes) bem claros do decassí-labo. Aí se repetem as afirmações/negações, com algumas variações. O poema se demora em si mesmo, se alonga. E se repete, mas não de modo descabido. O seu movimento se aguça: o que não veio “Em planta se tornou, não floresceu/ Em árvore se fez, anoiteceu.” (II, 44/45).

Na planície, ou planura, aí onde a (des)esperança fez morada, estão “[...] as almas esquecidas/ Talvez sumidas numa noite escura.” (II, 27/8). Aquele alguém, o eu, é uma dessas almas esquecidas. Aí até onde não vem o “carrossel da aurora” é um lugar de som noturno, o umbral de uma porta que não é transposta.

5 Ver, sobre isso, ALTHUSSER (1969, p. 29 et seq).

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O carro do horizonte e o carrossel da aurora reapa-recem primeiro como navio (saudade e nostalgia), depois como trem (notícia, lembrança) e, por fim, como avião (lentidão). Navio, trem, avião são metáforas e, como tal, transportes, transposições do sentido próprio ao figurado. Os significantes a partir dos quais se dá o transporte de-signam já por si mesmos meios de transportes.

São várias as imagens de meios de transporte e locomo-ção. Revemos aqui a aeronave e a roda e de certa maneira também a nuvem de “Canção para a nuvem da aeronave”. Entre carro, navio, trem, aeronave, a similaridade é muito clara. Mas não é a mesma coisa com relação à roda, que se liga por contiguidade a carro ou trem. E é ainda menos com respeito à nuvem, posto que não é um meio humano de locomoção e trans-porte. As canções vão criando um universo semântico metafórico que aponta para os meios de locomoção, transporte e mensagem.

Por fim, cabe dizer que a portadora da mensagem é propriamente a canção. Não esta ou aquela mensagem específica, mas a da própria poesia tomada como mensa-gem por si mesma, não pelo seu conteúdo, portanto: uma mensagem humana, mas também cósmica. A canção fala de si mesma, de sua trajetória, da espera que há nela, da demora. Ela cria o seu mundo – onde há plantas, avião, carrossel, etc. –, mas move-se dentro do mundo que não é criado por ela. Daí a demora.

Mas essas máquinas, a princípio, não são ensurdece-doras nem aterrorizadoras. São nostálgicas, saudosas ou lentas. São, diríamos, poéticas, no sentido comum da pala-vra. Metaforizam a própria poesia que encontra dificuldade para se realizar no mundo, se debate contra a “rigidez da pedra e do carvão” (II, 66).

Se não vem o “carrossel da aurora”, entretanto, vêm os rumores do mundo, e são “Atroadas de máquinas, motores/ Estrugidos que vão se decompondo/ com fumigações e seus vapores” (II, 36/38). A percepção se aguça para ouvir as máquinas do mundo. A aliteração do /r/ empresta aos versos o som de máquinas que rangem. Este /r/ vem já

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de “carrossel da aurora”, “carro do horizonte”, “E espera a espera da esperança morta”, “figura confrangida [...]”. Mas agora é um som de máquinas em que inutilmente se procurará um sentido. São ruídos ensurdecedores, aterro-rizadores. O mundo das máquinas.

Em que as máquinas nostálgicas se diferenciam e em que se assemelham a estas outras máquinas? Pertencem todas ao mundo das máquinas, ou à máquina do mundo. Em princípio, pertencem todas ao mesmo universo. Quem sabe aqui está a diferença entre a canção – que também é nuvem, aeronave, roda, navio, etc. – e as outras figuras dos poemas. Voltaremos a isso por ser algo central nas canções.

A nossa questão, então, é a da presença no poema daquilo mesmo a que o poema quer se furtar – o mundo e sua lógica.

“Alguém” transforma-se primeiro em planta, árvore, depois em estátua “Esculpida e gelada para sempre” (II, 48). Mas não porque cessou de esperar, mas sim porque é a condição mesma para que continue esperando.

A partir do verso 67, o poema se precipita e ganha um tom mais argumentativo. A argumentação nada tem das incertezas do começo. Os “não se sabe”, os “quem sabe?” cedem lugar a juízos afirmativos. Os versos “Todos nós de uma célula nascemos/ Que se vai desfazendo em chão de terra” compõem aquela mitologia que reaparece nas outras canções.

O chão de terra se expande indefinidamente tragando a esperança e o esquecimento. A racionalidade dominante, entretanto, se impõe. Aí no chão, os desejos e as ambições esperam “Numa espera sem fim dentro da terra” (II, 76).

O homem não está só e não é apenas humano. É parte, ainda que parte especial, de uma ordem maior, cósmica. Sofre com as forças não humanas e não terrestres. As má-quinas são humanas, mas sua matéria-prima não é apenas humana. A visão da máquina do mundo confunde-se com a do mundo das máquinas. E o homem, de certa maneira, expia alguma culpa. Esses elementos revelam alguma forma

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de poder, poderes tectônicos, cósmicos e humanos, a que damos o nome de mitologia.

A culpa não pode nem deve ser vista apenas como uma condenação fora do tempo e do espaço. Ela tem sua história. Atroadas e estrugidos são sons ensurdecedores porque desprovidos de sentido. As fumigações e seus vapo-res são ações das máquinas, que são ameaçadoras e de fato cumprem sua ameaça: impedem que a canção se efetive.

Em seguida, leiamos a “Canção que vem por um caminho”:

Aberto sulco de um caminhoProfundo, vazado, extravasado;Caminho cavado, cansado,Perto da levada;5 – Perlongando este canalVem um canto ligeiro, vem lon-gínquo.Canção que vem por um caminho!Perto das águas límpidas, serenasDentro do escoar sutil10 De líquidas serpentes.

Canção que vem por um caminho,Pelo acompanhamento da levada,Dá um tom mais feliz e mais fre-qüente,Cria uma orquestra inexplicável15 cujo som não direito se percebe;As folhas e os galhos do arvoredoQue bordejam o caminho profundo,Nos fazem esquecer muita lem-brançaMuita saudade que já não existe.

20 Perlongando este caminhoSe ouve o som das águas perlus-tradas,Em tonações sutis e mensageiras,Dessa canção que vem por um caminho.

Vem de largas e de longas e de lentas estradas25 E se comprimem e se refazem num caminho só

Cada vez mais aprofundando o vale,O vale e a várzea que se estende inerte.Macios cantos se ouvem continua-menteIndicando os relevos entre arpejos30 Acentuando os efeitos musicais.Sob as palmas das palmeiras, on-dulantes,Comunicando a canção e seu quartetoComunicando a canção que vemQue vem pelo caminho.

35 Canção acompanhada pela músicaDos capinzais à borda do caminho.Dos capinzais, das folhas de parreiras,Como instrumentos nascidos naturais;No acompanhamento das notas ne-cessárias40 Encantando os que ouvem suave-mente.

Canção, cantada pelos que se vãoLongamente caminhando, o som lavrando,O som que unicamente se percebeNo caminhar da manhã aurorescente45 Sentindo surgir do chão vidas e ruínasDejetos que já se foram há muito tempoPelo fundo sulco que abre este caminhoE onde inda se escuta a voz primeiraPrimeira voz que passou pelo caminho.

50 Canção que vem pelo caminhoE nas curvas e profundas se apagara.

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A leitura de qualquer poema nos coloca uma questão prévia à interpretação propriamente dita: de que fala um poema? Das experiências individuais do poeta? Cada verso, cada palavra está profundamente ligada à subjetividade do poeta. Mas uma experiência individual, como já vimos, não está isolada, liga-se a outras experiências individuais, ainda que em alguns momentos a experiência individual pareça ser a da incomunicabilidade. Na verdade, se é de incomu-nicabilidade que se trata, tal condição não é exclusiva de alguém, será um aspecto próprio de um momento histórico e, portanto, será também uma experiência coletiva.

No cotidiano, dificilmente poderemos ter a percepção da totalidade social, mesmo porque a vida na sociedade capitalista é organizada de maneira a impedir essa percep-ção. A relevância da obra literária está em que ela pode reatar os elementos díspares, permitindo, assim, que o leitor também veja o que se oculta na vida cotidiana.

Assim, um poema é, antes de tudo, uma voz ou um olhar, enfim um locus diferenciado de percepção. Então, não é despropositado dizer que um poema fala sempre de si mesmo. Mas, para entender isso corretamente, numa perspectiva dialética e não formalista, devemos acrescen-tar: o poema, ao falar de si mesmo, fala de uma percepção diferenciada da vida e do mundo que está bloqueada (in-terdita) no cotidiano.

Lukács, na Estética (1972), fala da missão desfetichiza-dora da arte: a percepção que o homem da vida cotidiana tem do mundo é fetichista, ou seja, toma como uma relação entre coisas o que na verdade é uma relação entre homens. Na arte se desfaz a percepção fetichista e é dessa forma que ela cumpre sua função.

Das nove canções sombrias de Joaquim Cardozo, a “Canção que vem por um caminho” parece ser a mais decididamente autorreferencial, isto é, a que mais expli-citamente aponta para o interior do próprio poema. A “Canção...” fala de si própria, de caminhos que são os seus. Afinal, versus é originalmente a ação de voltar o arado no fim do sulco; é também o próprio sulco. Ao mesmo

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tempo, fala também do arado ou outras máquinas como levada. Ao falar de si, o poema fala do trabalho humano e, particularmente, de uma forma especial de trabalho – o poético, o de fazer versos.

Vemos aí o modo primeiro da mimese poética: o poema refere-se a si próprio, ao trabalho poético, antes de referir-se à realidade extratextual. O leitor/crítico deve considerar inicialmente a autorreferência para poder mais consistente-mente entender a referência à sociedade. Preocupado com o ato mimético, o crítico estará interessado em saber como a obra dá a ver a sociedade, ou ainda, como se articulam forma e conteúdo.

Uma referência (o mundo intratextual) leva à outra (o mundo extratextual) pela contradição que há entre elas: a obra quer afastar-se do mundo, muitas vezes quer renegá-lo, mas não pode evitar trazê-lo em si. Procuremos ver como isso se dá na canção de Cardozo.

Seria pouco dizer que ela fala ou trata de um caminho, porque ela própria é o caminho. Esta é a ambiguidade constitutiva da “Canção...”. Observemos o jogo semântico de alguns vocábulos. O sulco que está no primeiro verso é vazado e extravasado. Vazar significa deixar sair o conteúdo de algo, escoar, mas também externar; extravasar é trans-bordar, mas também tornar manifesto. Os dois particípios apontam ao mesmo tempo para o mundo real, onde está o caminho, mas também para o mundo do poema, onde o caminho, aberto pelo sulco, é externado e tornado mani-festo, ou seja, expresso.

A ambiguidade reaparecerá em “levada”. Segundo o Dicionário Houaiss, “leva-da”, do latim levata (aqua), é torrente de água que serve para mover moinhos, fábricas, para irrigar terrenos, alimentar reservatórios. É também queda d’água entre pedras e construção de represa. Mas é também, e isto sem dúvida é particularmente significativo, modo de executar uma melodia ou ainda harmonia. A ambiguidade entre autorreferência (melodia, harmonia, canção de trabalho) e referência extratextual (meios de irrigar terrenos, etc.) se confirma aqui.

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Tomamos a “Canção...” mesma como mensagem, e isto porque ela não cansa de acentuar esta dimensão, como no v. 22 – “Em tonações sutis e mensageiras”. A poesia como mensagem da poesia. Não se veja nisso, entretanto, uma tautologia. A poesia é a mensagem da poesia porque se contrapõe, como trabalho que é, ao trabalho estranhado.

Na “Canção que vai por um caminho”, o que prende o leitor é que, se todas as figuras apontam claramente para o próprio poema, o poema aparece aí como trabalho exercido no mundo. Assim, os sulcos, as águas, as folhas, mas também as lembranças e ruínas são “fatos” internos ao poema sem que com isso deixem de ser “fatos” do mundo. A identidade não é perfeita (canção/mundo), e aí reside também o poder de sedução: a poesia é uma intervenção no mundo: é o que vimos chamando de tentativa de solucionar contradições. Intervir é aí abrir um sulco. Se a intervenção é bem-sucedida é outra questão, a que voltaremos.

“Aberto sulco de um caminho” é o gesto de corte que dá início ao poema. A partir daí já estamos no poema, no mundo que ele instaura. A canção é, pois, o caminho pelo qual flui.

O caminho, ou sulco, não existe por si mesmo, resulta de um trabalho humano intencional. O sulco foi aberto, foi “cavado” e por fim “cansado”. A aliteração da oclusiva velar em “Caminho cavado, cansado” transmite a ideia de uma ação repetida, donde a fadiga. Os muitos particípios dão ideia do trabalho e dedicação despendidos. E já desde então se explicita o cansaço decorrente de tudo isso.

Na “Canção...”, a poesia é, ao mesmo tempo, o que flui pelo sulco aberto e a ação mesma de abrir o sulco. A ação é consumada ao mesmo tempo em que é dita. O que se diz aí é o tipo especial de agir ou trabalhar que é a poesia.

O verso é um octossílabo, com tônicas nas segunda, quarta e oitava. As segunda e quarta sílabas são longas e pausadas, como num movimento que se demora e retarda. Mas, quando o leitor chega ao fim do verso, na palavra caminho, a ação demorada já se realizou.

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Sulcar é cortar e também navegar. É também lavrar. Um gesto de ir e voltar. Na tônica de “sulco”, a vogal /u/ transmite-nos a sensação de um gesto profundo que se completa com a consoante lateral, dando-nos a sensação final da ação de lavrar, ação de um utensílio que vai ao fundo da terra e retorna ao ar livre, ou da língua que se obriga a voltear na boca.

“Aberto sulco de um caminho” é uma ação no presente. O poema se constrói a nossa frente. O particípio “aberto” não nos diz que algo já se cumpriu, que já é um fato, mas sim que a ação é irreversível. Não há como voltar atrás.

O poema inicia como uma reflexão sobre sua própria ação. Agamben, discorrendo sobre as diferenças entre fi-losofia e poesia, diz-nos que a poesia é uma reflexão sobre o acontecer da palavra. A “confrontação” que está sempre em curso entre filosofia e poesia é algo bem distinto de uma simples rivalidade: ambas buscam captar aquele inacessível lugar original da palavra em que assenta, para o homem que fala, seu próprio fundamento e sua própria salvação. Este lugar é, porém, inencontrável (AGAMBEN, 1999).

Talvez coubesse acrescentar às profundas reflexões de Agamben sobre a linguagem que o lugar original da palavra é inacessível porque não pode se colocar fora do processo de reificação, do mundo fetichizado, onde predo-mina o trabalho estranhado. Daí ser necessária e, a nosso ver, imprescindível, a leitura da poesia na perspectiva do trabalho poético.

A linguagem poética é a nostalgia ou mesmo elegia de uma era inacessível e, pior ainda, impossível de ser historicamente comprovada – a era anterior à reificação. Mas, se não podemos comprovar o passado anterior à rei-ficação, podemos seguramente dizer que em toda poesia (e na canção de Cardozo seguramente) deparamos com a memória dela. Memória que, se não é do passado, pode bem ser do futuro.

“Aquele inacessível lugar original da palavra” só o poema recupera: “Aberto sulco de um caminho”. A “Can-ção...” está aí como a dizer: vês? O mundo poético já está

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aí. Mas esta ação não está consumada, está sendo realizada a nossa vista.

Abrir o sulco é operar o corte com a lógica dominante, procurando produzir outra lógica. O mundo do poema não é, portanto, um mundo intransitivo. Ele é um corte com o mundo real, mas não pode ser entendido senão por referência a ele.

O sulco foi aberto perto da levada, aí se encontra o canal. Perlongando (costeando) o canal “Vem um canto ligeiro, vem longínquo./ Canção que vem por um caminho” (IV, 6/7). A canção acompanha a levada que ativa moi-nhos e fábricas. Ao final do poema, o trabalho de lavrar (ligado à água e aos terrenos) mostra-se também como lavrar sons.

Ainda na primeira estrofe, é notável a aliteração da consoante líquida: límpidas, sutil, líquidas. A aliteração é notável porque outra vez o poema se volta sobre si mesmo (ou melhor, acentua o trabalho do poeta). O caminho por onde vai a canção é composto (aberto) por estas palavras por onde, sutis, escoam serpentes. O movimento ondular das serpentes, como das águas e das palavras que fluem pela levada – um movimento ininterrupto.

O sentido de “o som lavrando” nos remete àquela acepção de “levada” como modo de executar uma me-lodia, ou harmonia. Em outro momento, o poema fala da “música dos capinzais” e das “folhas de parreiras” (IV, 35/37). Os capinzais são “instrumentos nascidos naturais” (IV, 38). A canção tem, assim, uma dimensão natural, ainda que – e sobre isto devemos nos entender bem – seja a natureza enquanto apropriada poeticamente, a natureza humanizada. Assim, o trabalho de que se fala e que está sendo realizado à nossa vista e audição (concretamente: a execução melódica da canção) envolve natureza e ação humana sempre numa dimensão poética.

Os instrumentos são harmônicos “No acompanhamen-to das notas necessárias/ Encantando os que as ouvem su-avemente” (IV, 39/40). A canção é uma espécie de música de trabalho, acompanha aqueles que abrem o sulco. Ao

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mesmo tempo – e isso graças à ambiguidade de “levada” –, as águas são aquelas que movem os instrumentos que irrigam terrenos e o locus de onde vêm os sons em “tona-ções sutis e mensageiras”. A música é o próprio trabalho, dos “macios cantos”.

Ao final percebemos que o caminho pode ser a vida mesma de todos e de cada um. A vida à qual não falta a fadiga do trabalho estranhado. Do chão no qual se abre o sulco surgem vida e ruínas. O “fundo sulco” expele dejetos. Ouve-se ainda a voz primeira que passou pelo caminho.

Neste momento será preciso voltar ao início do poema para reler mais detidamente o início da segunda estrofe: “canção”, “caminho” e “levada” devem ser tomados, repetimos, no sentido da contraposição entre trabalho es-tranhado e trabalho poético. Entretanto, a canção – como também é de se esperar da música do trabalho estranhado – “Dá um tom mais feliz [...]” ao que, sem ela, o leitor po-derá entender que ficaria árido por demais. Mas “Cria uma orquestra inexplicável/ Cujo som não direito se percebe;” (IV, 14/15). Parece não haver dúvida de que o que temos aí não é o advérbio “não” modificando “percebe”, e sim o nome do som – o som não.

Se assim é, a canção, que é canção de trabalho, que acompanha o sulco aberto, cavado e cansado, é também uma forma de recusa. Como ação, trabalho, às vezes áspero, às vezes suave, a intervenção poética é uma recusa do mun-do fetichizado. O trabalho cantado não pode sobrepor-se às ruínas, mas, dizendo não, recusando a reificação, recupera o sentido da vida humana.

O gênero humano teve sempre de lutar para superar a dependência das condições naturais e a “Canção...” não deixa de assinalar isso ao se conceber como canção de trabalho. Pela dependência, o homem está preso ao mundo da necessidade. Mas, diferentemente dos outros animais, o homem tem consciência da dependência e com essa consciência traz em si a perspectiva da liberdade, o que o define como gênero. É esta consciência que faz mover “A canção que vem por um caminho”, ou melhor, a canção é

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por si mesma a projeção do mundo da liberdade. Os que vão “o som lavrando” realizam uma espécie de trabalho que é o da própria poesia, mas a poesia que é ação humana, é mais do que simplesmente texto.

O som da canção só se percebe “No caminhar da manhã aurorescente” (IV, 44). Não seria abusivo ler este poema e todos os poemas como o locus em que se acende a perspectiva do mundo da liberdade e, ao mesmo tempo, a percepção das necessidades humanas, das ruínas e do cansaço do trabalho. Sem dúvida, isso assumirá em cada poema particular um tom diferente, e também contradi-tório, que caberá ao crítico detectar.

A manhã aurorescente, entretanto, se apagara nas curvas e profundas. Este último verso da estrofe final, no passado do passado, remete-nos ao primeiro da mes-ma estrofe, cujo verbo é um particípio. Dessa maneira o poema, a ação poética, como que recomeça. Aí, no final, “inda se escuta a voz primeira” (IV, 48). Vemos que de fato o poema é uma ação que “Vem de largas e de longas e de lentas estradas” (IV, 24).

Ao crítico dialético interessa entender essa “orquestra inexplicável” ou, em termos conceituais, a contradição. A orquestra não pode ser explicada, como vimos, porque harmoniza o desarmônico. Do trabalho poético resulta a orquestração que se oferece ao leitor/crítico nos elementos formais da obra.

“O interior da matéria”: o conjunto das “Canções sombrias”

Agora procuramos abordar as canções como conjunto em que se sobressai a ideia de movimento: “Esta canção que canto/ Traga-me a noite no escuro” (VI, 48/49). O movimento das canções encontra obstáculos, humanos e/ou cósmicos. O tom sombrio dá-nos mesmo a sensação de uma derrota, o que tem seu quê de verdade. Mas o poeta continua a cantar, e as canções a serem feitas. O movimen-to que as rege esbarra em algo. Isto nos leva a pensar que

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os obstáculos têm a ver com a natureza das canções. Elas são o sonho da arte, este que não pode ser realizado, mas que, exatamente por isso e só por isso, continua vivo.

Ouvimos aqui falar de tempo, movimento e ciclos humano e cósmico. Assim também de trajetória, que é, antes de tudo, das próprias canções se fazendo à nossa vista. Ao mesmo tempo, porém, ouvimos falar de chão, planície, espera e demora acompanhada de certa paralisia e torpor. Daí a estátua em que alguém se converteu.

A ânsia de se desligar do mundo (“Para além dos astronautas” – VIII, 35) é o gesto inicial constitutivo das “Nove canções sombrias”, de Joaquim Cardoso. No mesmo gesto, contudo, uma força gravitacional faz com que o poema retorne ao mundo de que quer se apartar. As canções não versam sobre alguma coisa em particular. Em vez disso, elas descrevem o movimento que, repetimos, é o das próprias canções, mas que também não é outro senão o de sair e retornar ao mundo desejado/indesejado. Tudo se dá dentro da órbita, dos cinturões da atmosfera. E, mesmo quando saem do mundo humano, as canções permanecem no mundo físico, das estrelas, cefeides e galáxias. Estamos no “interior da matéria”.

Ouvimos falar também de rodas, aviões e outras má-quinas. Como numa viagem no espaço e no tempo “para além dos astronautas” (VIII, 35).

Primeiro procuremos entender os jogos de linguagem que desenham a ambiguidade já nos títulos. Em número de nove, as canções aparecem sempre determinadas, e a marca da determinação está no conectivo que se lhe segue: I – “Canção para um fim de abril”; II – “Canção de uma espera sem fim”; III – “Canção para a nuvem da aeronave”; IV – “Canção que vem por um caminho”; V – “Canção para os que nunca irão nascer”; VI – “Canção para que a noite chegue”; VII – “Canção de um rio que naufragou nas águas”; VIII – “Canção que veio de um sonho negro”; IX – “Canção de um tempo sem tempo” (os grifos são nos-sos). Os conectivos “para” (quatro vezes), “de” (três vezes), “que” (duas vezes) determinam as canções com a ideia

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de finalidade, posse e restrição. Evidentemente, isso não significa que o poeta crie sua canção com esta ou aquela finalidade, nem que a canção seja exclusiva de um rio ou uma espera, nem tampouco que a adjetivização restrinja o sentido poético. Daí que, em vez de determinações, con-vém falar de situação. As canções estão situadas.

As nove canções giram em torno de algumas poucas situações que se repetem e se renovam: ao lado das palavras já citadas, outras, como nuvem, chuva, água, asa, aerona-ve, rio, caminho, terra. Canções que poderíamos chamar cósmicas porque cantam o mundo humano terreno como parte do mundo cósmico, em que o homem é uma poeira. O destino do homem é parte do destino cósmico. Além dessas observações iniciais, vale recordar que as canções são claramente metaliterárias, além de se reportarem umas às outras. Assim, como simples exemplo, o rio que naufragou do título da VII reaparece em IX, 23. Mais do que isso: as canções vão formando um corpus único que tende a desconcertar o leitor. Ao mesmo tempo, porém, a referência cruzada nos permite tratar o enigmático, sem desfazê-lo.

Assim, o rio que naufragou da canção VII ressurge na canção IX, e sempre numa referência cruzada à própria canção. O eu da II e o seu perdão que não chega ressur-gem mais decididamente em VII: “Por aqui passei um dia/ Beirando sem pensar o fugidio/ Correr das águas.” (VII, 1/2). As canções são, assim, também a história de um eu, suas desventuras, seus desejos e esperanças. O eu lírico, como já vimos, mantém uma relação metonímica com o eu empírico. A história de um poeta e de suas canções. Da sua ação no mundo, como agente do trabalho poético.

Aí se fala de “Um ciclo que está sempre revindo/ Numa simples circulação solar” (IX, 47). Todos os signos enunciados e repetidos parecem convergir na concepção de movimento, ou caminho. Movimento do homem na terra e no cosmos; caminho que é também o ritmo das canções.

O movimento das canções que são humanas e também cósmicas é o do tempo (“Existe a música do tempo” – IX,

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5). As ações humanas estão interligadas com as ações do universo. O tempo não tem fim, a espera não tem fim. Tudo tarda. As distâncias são insuperáveis, no tempo e no espaço. Tempo é espaço, espaço é tempo. A canção se ouve na planície, nos ares, nos rios, na rua.

As canções IV e VII parecem uma o desdobramento da outra. A levada da canção IV – com a ambiguidade da palavra “levada”, que significa ao mesmo tempo queda de água e melodia – reaparece, embora sem a palavra, na canção VII. “Beirando o sulco no chão deixado/ Ouço a canção que vem de longe” (VII, 11/12). A canção que vem de longe é IV, embora não seja apenas ela, pois agora assinalam-se as elegias, os cantos frígios, que vêm de mais longe ainda. Na canção IV fala-se de um caminho aberto pelo sulco, na verdade pela canção. Agora o rio “Naufragou nas águas que ainda havia” (VII, 21). O rio, ou ainda o caminho, naufragou, mas espera uma ressurreição.

A canção IX, que fecha o ciclo, enuncia mais clara-mente a natureza do conjunto: “Esta canção é mais do que poesia/ Além de verso e ritmo” (IX, 26/27). Diríamos: é vida e morte. Todo esse movimento é o das canções. A canção, sim, é água, rio, caminho, planície, rua e aeronave. O poeta é o inventor de mundos, mas a sua invenção é um trabalho (o de abrir sulcos ou fazer o sol nascer). A sua ação se dá num mundo sombrio, escuro, negro.

Assim, a qualidade metaliterária está numa forma de questionamento da literatura, questionamento (e, algumas vezes, recusa) da literatura como instituição.6 Não se trata, portanto, da poesia fechada em si mesma, autotélica ou intransitiva. As canções são o mundo com seus rios, chão, planícies e aeronaves.

Tomaremos aqui, para terminar, uma linha de in-vestigação: a da duplicidade homem/cosmos, mas mais especificamente procurando observar as marcas de pessoa explicitadas ou não pelos pronomes pessoais.

Em I se fala da profunda melancolia que se apodera de dois seres (ela e ele). Alguma coisa se perdeu para sempre. Os dois seres carregam um luto, mas “Vão de braços dados”

6 Sobre o tema do autoquestionamento literário, ver BASTOS (1998).

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(I, 10). A rua é triste, mas eles caminham e caminham juntos. Nos dois primeiros versos, a aliteração do /s/ reforça a sensação de desânimo. Os dois estão de cabeça baixa, o que também pode dar ideia de vergonha ou culpa: “Por que vão passando/ de cabeça baixa?” (I, 23/24).

Centrada na história dos dois seres, a canção inclina-se mais para o humano do que para o cósmico. São dois seres, mas estão sós, não há outros e, sem os outros, eles não podem viver. Faltam-lhes os outros, como lhes faltam as asas para voar. São “aqueles/ Que estão entre quazais.” (V, 26/27).

Eles nada dizem, o que retira a canção do reino de qualquer história que possa explicar a situação vivida. A situação vale por si mesma, não tem razão nem motivo explícito. É como se fosse algo de caráter ontológico e, neste sentido, algo mais que humano.

Contudo, se eles nada falam, “Ela traz no rosto/ A velha pergunta/ Sem poder dizer-lhe/ – Ele que resposta/ Poderá lhe dar?” (I, 62/66). Se não há pergunta, não há resposta, ou então se trata de uma pergunta essencial que já não pode ser formulada. Com isso, a dimensão histórica retorna. A situação é ontológica, mas também histórica.

Ela e ele são puras sombras: “Se são só dois desenhos/ De cabeça baixa./ Se são duas sombras,/ Desenhadas, frias” (I, 73/76). Existem tão somente pela mão do poeta que os desenha. Seres vazios que não têm mais valor: “Como roupas velhas/ – Tristes agasalhos;” (I, 94/95). Na solidão, na ausência dos outros, eles não têm serventia nem razão de ser.

São dois seres em um, que perderam seus limites. Os limites, que normalmente tomamos como limitações, entretanto, aqui parecem ser algo positivo cuja falta pa-ralisa e desmotiva a existência. Eles seguem “Para o fim do mundo”.

Alguém poderia supor que aí se trata de uma história da humanidade iniciada após a queda, com o casal na condição pós-edênica. Não cremos, entretanto, que isto seja assim. Ainda que se faça essa leitura, isto nada dirá

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da ação poética que dá origem ao mundo figurado. Fala-se aí de um fim de abril ou ainda do fim do mundo, mas o de que se fala primordialmente é da canção, da “Canção para um fim de abril”.

O “para” do título traz a ideia de “canção dedicada a”, dedicada a cantar um fim de abril. Qual o sentido do tom elegíaco? Só poderemos responder a isso um pouco mais à frente.

Nas canções II, III e IV, ela e ele ressurgem como os que se vão. Na canção IV os que se vão lavram o som e o solo. É preciso considerar que a canção I é menos metali-terária, mas isso não compromete o nosso esquema porque as canções que se seguem são, na verdade, um desdobra-mento dela ou, o que é ainda mais verdadeiro, todas são desdobramentos umas das outras.

Na canção V, os personagens retornam, são “aqueles que nunca irão nascer” (V, 2), “os que ficarão somente almas” (V, 130), “crianças que não mais virão ao mundo” (V, 21), etc. O eu também retorna, agora, como o que cantará “para eles que estão entre quazais” (V, 26/27). O eu, a quem “chega o carrossel da aurora” (II, 5), define-se agora como o cantor, aquele que faz as canções que lemos e ouvimos e cuja existência é interna às canções.

Apesar da forte presença humana, não é menor a dimensão cósmica. Mas outra vez é da canção que se fala: “Essa canção é única, é de puro silêncio” (V, 7). Os que nunca irão nascer são os que ficaram presos na impos-sibilidade de existir. Serão sempre almas, ou desenhos, “sombras/ desenhadas, frias” (I, 76/77). Eles nunca irão nascer, mas existem, uma vez que para eles o cantor canta sua canção e eles “Pelas ondas de rádio a minha voz escu-tarão” (V, 28).

Os que nunca irão nascer “Talvez ficaram nos gases das esferas/ Invólucros das líquidas estrelas.” (V, 21/22). O sentido aqui é aparentemente bem diverso daquele que vínhamos vendo. Agora se fala de seres sem voz e mesmo sem forma. Contudo, não são muito diferentes de “ela” e “ele” de I. O que é mais importante, porém, é que em V o

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cantor se comunica com as crianças do “íntimo das negras nebulosas” (V, 74).

O poeta cientista fala agora de quasar, de elétron e pó-sitron e de ondas hertzianas. A canção se propaga em ondas magnéticas e pelo rádio pode se tornar compreensível ao ouvido humano. Outra forma de transmissão de mensa-gens, que se acrescenta ao conjunto já extenso de navio, trem, avião, aeronave, roda e nuvem. Estamos diante de um longo poema sobre a comunicação humana e cósmica. Sobre a comunicação e sua contraparte: a incomunicação. A canção é um tipo especial de comunicação ou mensagem, ressalvadas as observações feitas anteriormente.

O enigma está em que a canção se faz para dizer talvez o indizível. Mas, ao se fazer canção, torna-o dizível. Como não pode ser visto, não é de fato um enigma externo ao poema, mas da natureza mesma da canção. É, sem dúvida, um gesto de extrema coragem, o da canção que canta a si mesma para romper com a racionalidade dominante. A sua é uma orquestra inexplicável.

Em VI, o poeta pede a todos que o ajudem. Diz ele: “Esta canção que venha/ No início da tarde-noite/ E num viajar de pássaro/ Antes do sol da manhã” (VI, 41/43). O viajar de pássaro deve ser acrescentado à nossa relação de portadores de mensagem, como a nuvem. Vemos, assim, que podem ser humanos (máquinas) e “naturais” (nuvem, pássaro, queda d’água). A divisão é só aparente porque os “naturais” são efeitos do trabalho das canções.

O início de VI traz-nos à mente rituais de purificação ligados à água: “Nas ondas que as chuvas dançam/ Águas esparsas me banhem” (VI, 3/4). A água e as chuvas inun-dam praticamente todas as canções. Em IV, o caminho se abre junto à levada “Perto das águas límpidas, serenas” (IV, 8). Os rituais de purificação indicam que o movimento das canções dá-se numa esfera mítica. Porque não há ritual sem mito, como bem observa Meletinsky (1995, p. 28): “O rito e o mito são inseparáveis, representam as duas faces do mesmo sistema; em termos históricos engendram-se mutuamente”.

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Para terminar nossa leitura, digamos que a conexão literatura/sociedade se evidencia na configuração de uma mitologia. O conjunto das canções é sustentado por uma mitologia que se configura em torno dos cinturões da atmosfera, dos gases das esferas, dos elétrons, das líquidas estrelas, cefeides e ondas hertzianas, mas também das aero-naves, dos aviões, dos trens e da roda. Aí estão o tempo e o espaço, e a música da esfera e música do tempo. As crianças que nunca irão nascer também aí estão, e poderão escutar a canção pelas ondas de rádio. Por mitologia entendemos, repetimos, não o irreal ou simplesmente o fantasioso, mas uma organização dos poderes que, sendo real nas canções, pode, entretanto, evidenciar uma tentativa de estabilizar o necessariamente instável que é o próprio poema. Em outras palavras, a mitologia é como uma racionalização de que o poeta lança mão para conciliar o inconciliável.

É preciso, então, dizer que a mitologia das canções não se confunde com elas. É parte delas. Não está nelas como uma excrescência; não é também um apêndice. Será, antes, uma estilização das canções. Ela se faz presente em todas as canções, basicamente nas historietas aí narradas.

Neste universo mitológico, o poeta é como um herói que faz chegar a sua voz às crianças que nunca irão nas-cer. Nas ondas ele se purifica, ondas que são da água, mas também do rádio. A voz do poeta feito herói percorre todo o universo, no corpo da matéria.

Aqui chamamos inconciliável a máquina do mundo estilizada pela mitologia. As atroadas e os estrugidos ensur-decem aqueles que poderiam ouvir as canções. É isto que as canções não têm como conciliar e que terminam por ser estilizadas. Com isso, as canções se resolvem, digamos, conciliam o inconciliável, embora apenas dentro delas mesmas, donde o seu caráter elegíaco.

Em VIII, a mitologia se formula mais sistematicamente. Aí se fala de um sonho negro em que a atmosfera não pode difundir a luz. Por efeito dos movimentos da atmosfera, o sol nascerá na escuridão. Mais ao final aparecem as cintas de Allen, que levam o nome do físico norte-americano

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James Alfred Van Allen, que realizou pesquisas sobre física nuclear, radiação cósmica e física atmosférica. A ele se deve a descoberta da existência de duas zonas de radiação de alta energia que envolvem a Terra, chamadas, em sua homenagem, cinturões de Van Allen, cuja origem está provavelmente nas interações do vento solar e dos raios cósmicos com os átomos constituintes da atmosfera.

Em VIII, fala-se da ameaça de uma aurora atômica, um sol tão forte que tudo pode destruir e uma “noite eterna para sempre escura” (VIII, 27). O sonho negro “É poluição na atmosfera” (VIII, 17). Mas o mal pode não vir e “Talvez as duas cintas se confundam/ Numa nova atmosfera” (VIII, 37/8).

A ameaça da destruição nuclear coexiste nas canções com o sonho utópico de “nova atmosfera”. O inesperado das canções é que elas se fazem apesar do sombrio que as acompanha. Permanecem como ameaça e também como sonho.

O sujeito lírico não fala apenas de si mesmo, fala do destino da humanidade. O trabalho poético faz a mediação entre subjetividade e objetividade que, assim, se fundem. As canções se autodesignam como orquestra inexplicável, ou música que não se deixa apreender pela racionalidade dominante. Acentuam, assim, o papel decisivo que têm na História e nas lutas por um destino outro.

Mas tudo isso é vivenciado nas canções como contra-dições que não podem ser resolvidas. Paradoxalmente, a grandeza da poesia está nesta falha: resolvendo-se inter-namente como obras de arte, elas, entretanto, insistem em que no mundo, no extratexto, as contradições perma-necem. A sua grandeza está também em manter acesa a percepção dessas contradições, e fazê-lo se constitui como mais uma contradição.

Referências

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Poesia itinerante do Trem da Serra

Antônio Marcos V. Sanseverino*

resumo: O presente artigo analisa a obra Trem da Serra (1928), de Ernani Fornari. O ponto de partida é o problema das dife-rentes manifestações modernistas no Brasil, na década de 20. A leitura da obra parte de outras expressões de poesia itinerante, que incorporam trens ou automóveis. Questiona-se, então, o olhar do eu lírico que, desde o trem, harmoniza o imigrante europeu e o habitante local, a modernidade e a tradição, a urbanidade e a vida rural.

palavras-chave: Trem da Serra; Ernani Fornari; poesia mo-derna.

abstract: The present article analyses Ernani Fornari’s work, Trem da Serra – Sierra Train – (1928). The starting point is the problem of the different manifestations of the modernists in Brazil, in the 20s. The reading of this work begins in the other expressions of itinerant poetry, that incorporates trains or au-tomobiles. It is questioned, then, the lyrical look that, since the train, harmonizes the european immigrant e the local habitant, the modern and the tradition, the urban and the rural life.

keywords: Trem da Serra; Ernani Fornari; modern poetry.

Abertura

Em 1928, Ernani Fornari (1899-1964) publica o Trem da Serra pela editora Globo em Porto Alegre. É um livro que traz as marcas da poesia moderna, na linguagem coloquial, no verso livre adotado, no aproveitamento da tecnologia como tema e como ponto de vista. Hoje, no entanto, quando lemos Trem da Serra, provavelmente per-demos o impacto e a novidade de que estava impregnado

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto de Literatura Brasileira, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras.

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nos anos 20. O trem parece que se transformou em peça de museu, que sobrevive de modo residual como marca turística de outro tempo. A própria viagem de Porto Ale-gre às cidades serranas (Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias do Sul) encurtou-se. Não se faz mais por trem. O passeio perdeu a função de transporte para ser passeio turístico. Parte do processo de integração entre a região colonial e Porto Alegre, o trem cumpriu um papel modernizador relevante. Os poemas parecem trazer, no entanto, promessas de outro tempo: uma modernidade lírica, a integração do imigrante e do sul-rio-grandense, a harmonização com a natureza... Essas promessas parecem que se distanciam e se esfumaçam no tempo.

De que modernismo estamos falando?

Donaldo Schüler escreve Poesia modernista no Rio Grande do Sul, em que sistematiza a produção poética dos anos 20. Para isso, constrói uma divisão entre poesia refe-rencial, não referencial e ontológica, que, esquisitamente, tem como único representante Augusto Meyer. Dentro da primeira categoria, divide em subseções, a partir da região representada: campeira, serrana, litorânea, urbana, amazô-nica, negra e de exílio. As análises das obras e dos poetas trazem, eventualmente, alguma contribuição para o estudo da poesia sul-rio-grandense. A necessidade da divisão e as categorias, além de discutíveis, criam uma falsa impressão de divisão do grupo. Tirando poucas exceções, talvez ape-nas o isolado Tirteu Rocha Viana, os outros escritores se relacionavam em um grupo que se encontrava em livrarias, cafés, bailes, saraus em Porto Alegre.

Guilhermino César, completo conhecedor das letras do Rio Grande do Sul, aponta o ano de 1928 como o mais signi-ficativo para o nosso Modernismo. Nesse ano apareceram Saco de Viagem, de Tirteu Rocha Viana, Novena à Senhora da Graça, de Theodemiro Tostes, Colônia Z, de Rui Cirne Lima, Rodeio de Estrelas, de Ornelas, Gado Xucro, de Vargas

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Neto, Trem da Serra, de Ernani Fornari. Augusto Meyer, que em 1928 lança Giraluz, precede todo com Ilusão Querida (1923) e Coração Verde (1926) (SCHÜLER, 1982, p. 10).

O grande número de obras publicadas no mesmo período não é gratuito. Ao contrário, o final da guerra civil em 23, a repercussão dos eventos de São Paulo, a polêmica de Paulo Arinos (Moyses Vellinho) e Ruben de Barcelos, a visita de Guilherme de Almeida, o lançamento da revista Madrugada são alguns acontecimentos que criam condições para esses livros de poesia. Observe-se, então, na lista a quantidade de livros surgidos no mesmo período, a afinidade quanto a um problema comum, ao modo como a poesia dialoga com a modernidade enfrentada na cidade de Porto Alegre. É de dentro de uma cidade em processo de modernização que esses intelectuais discutem os pro-blemas da identidade do gaúcho e da poesia moderna. Mais, é dentro de um circuito forte que publica, critica e debate a produção que vai surgindo e que se articula com a geração anterior de poetas, como Eduardo Guimarães, e de críticos, como João Pinto da Silva.

Lígia Chiappini Leite (1972) publicou um conjunto de entrevistas com os escritores que participavam do grupo modernista de Porto Alegre. Alguns, como Athos Damasceno Ferreira e Augusto Meyer, afirmam que houve modernismo, mesmo com traços peculiares do Rio Grande do Sul. Outros, como Carlos Dante de Moraes e Moysés Vellinho, dizem não ter havido um modernismo como o de São Paulo. Nos anos 20, primeiro nas páginas do Correio do Povo e depois nas do Diário de Notícias, Fernando Callage publica as Crônicas Paulistas, dando notícias do andamento da literatura em São Paulo e publicando entrevistas com figuras como Menotti Del Pichia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e Guilherme de Almeida, que veio a Porto Alegre dar uma conferência no Clube Jocotó, a convite de Mario Totta. Desses dados, temos alguns pontos relevantes, como a relação entre a produção gaúcha e paulista. Além disso,

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para os próprios personagens da história, não havia uma definição do que estavam vivendo.

Ao discutir a relação entre o modernismo de São Paulo e do Rio Grande Sul, Luís A. Fischer questiona a posição que põe a Semana de Arte Moderna no centro do processo histórico da literatura brasileira moderna.

Trata-se de uma visão muito parcial das coisas – e pior ainda, uma visão inepta (além de ser uma subserviência mental acachapante), porque ao pensar assim deixa de ver o movimento específico das coisas no Rio Grande (e noutras partes do país, falando nisso), deixa de entender como é que as coisas se passaram, como é que os escritores negociaram, dentro das circunstâncias históricas específi-cas, as condições, os temas, a linguagem, enfim aquilo que constitui a literatura (FISCHER, 2004, p. 74-75).

Parece-me, então, que a grande questão está na po-sição dada à produção paulista. Não se trata de negar a contribuição de Mário, Oswald e Bandeira, ou de outros artistas modernistas. O que talvez não seja possível, nos anos 20, é afirmar a existência de uma literatura brasileira homogênea, com um sistema articulando todas as regiões em uma unidade cultural e literária. Há vários lugares de produção literária, mas não conjunto organizado. Pode-se colocar que a Semana de 22, e depois Mário de Andra-de, tiveram o papel de catalisar um processo. É o que se evidencia quanto ao modo como foram repercutindo os avanços do modernismo paulista. Foi aquela substância que acelerou uma transformação que já estava ocorrendo. Os três dias da Semana de Arte Moderna não tiveram o poder de mudança que muitas vezes lhes é atribuído, nem muito menos seus personagens são heróis fundadores de uma nova literatura, como sugere a expressão de fase heroica. Não podem ser vistos como homens que se sacrificaram na destruição dos antigos moldes para que uma nova forma fosse criada em nome da nação brasileira.

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Se fosse o caso de se pensar em causas, deveríamos pensar na crise europeia do final do século XIX e início do século XX, quando surgem as vanguardas, e a arte é posta em xeque. A autonomia da arte é questionada, seu papel civilizatório é confrontado com a barbárie com que convive, sua linguagem é revelada como convenção vazia. Seja pelo olhar agônico do expressionismo, seja pelo olhar eufórico do futurismo italiano, impunha-se um debate sobre novas formas de expressão estética. Assim, em São Paulo, a Semana de 22 repõe no quadro desagregado da cultura brasileira um problema já existente. E Mário se tornou, como mostra sua vasta epistolografia, um deba-tedor fundamental com aqueles que se defrontavam com problemas semelhantes.

O limite não está posto, parece-me, nos acontecimen-tos históricos, mas na forma de dispô-los na historiografia literária. De modo sumário, o equívoco talvez esteja em dispor de modo linear, e numa relação de causa e efeito, o modernismo paulista como fundação de uma nova li-teratura que rompeu com o parnasianismo e se realizou plenamente a partir dos anos 20. De modo constelacional, para realizarmos o desenho da literatura brasileira dos anos 20, teríamos de abandonar a necessidade de haver o centro determinante e causador das expressões periféricas, ou pelos menos teríamos de ver como algumas expressões centralizadoras lutaram para dominar o conjunto e para organizar a literatura brasileira para além das circunstâncias específicas das várias regiões. Em outros termos, talvez seja interessante pensar os diferentes lugares ideológicos, esté-ticos e regionais a partir dos quais os escritores construíram suas obras. Mais, os diferentes lugares a partir dos quais se construiu a imagem da literatura brasileira.

Assim, para citar brevemente, no âmbito da poesia, deveríamos considerar as tensões dos seguintes pontos: a produção de Mário de Andrade, na passagem de Paulicéia para Clã do Jabuti; Oswald e a poesia de Pau Brasil e do Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade; Manuel Bandeira e sua formação poética, independente e

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autônoma, de Cinza das horas a Libertinagem; a produção de Cecília Meireles; Menotti del Picchia; Drummond e o grupo mineiro; Ascenso Ferreira... As referências são sumá-rias e não esgotam a produção dos anos 20, mas, em todo caso, não permitem sua uniformização a uma única forma de responder ao problema de ser moderno ou de se tornar modernista. Ainda talvez seja importante pôr a questão de que estamos lidando com processos que ocorrem de forma simultânea, com raízes diferentes e que convergem em alguns momentos e divergem em outros.

Desse modo, o desenho específico da cena sul-rio-grandense impõe desde o início uma especificidade: o modernismo gaúcho não veio da ruptura, típica da van-guarda europeia, mas da continuidade do simbolismo e da discussão de uma identidade gaúcha (FISCHER, 1992; 2004; ZILBERMAN, 1980; SCHÜLER, 1984; GOLIN, 2006). Para ficar com um exemplo específico, temos a revista Madrugada, uma publicação de apenas 5 números em 1926, que, na declaração de Augusto Meyer, teria sido “criada com intenção de reunir a vanguarda mesmo” (LEITE, 1972, p. 230). É o grupo renovador da literatura sul-rio-grandense, a nova geração, que pede a palavra. No seu corpo aparecem as antologias de poesia de Cruz e Souza, de Alphonsus Guimarães, de Antonio Nobre e as traduções de Baudelaire feitas por Eduardo Guimarães. Assim, ao lado dos desenhos de Sotero Cosme e de poemas de Augusto Meyer, Rui Cirne Lima, Vargas Netto e outros, temos a reverência à poesia simbolista. Antes de prosse-guir, vale apenas outro espaço importante de debate dessa geração, a página literária, do Diário de Notícias.

Quanto à identidade gaúcha, temos um problema vivo nos anos 20. Augusto Meyer diz, no Fenômeno Mario Quintana, que o poeta foi alguém que saiu do padrão do modernismo gaúcho, que “resultou de uma simples trans-formação do Regionalismo” (MEYER, 2005, p. 46).

Faltava criar, fora daqueles moldes tradicionais, uma poesia sem compromissos, mais subjetiva, de visão mais ampla e

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direta, livre também das peias dialetais. É em tal sentido que devemos interpretar a maioria das obras que então gritavam o seu título nas vitrinas da Livraria do Globo (MEYER, 2005, p. 46).

Meyer estabelece um caminho pertinente para a leitura de Mário Quintana. Ele cria uma poesia sem compromissos, que escapa ao modelo de escola ou de uma poética articula-da a um grupo ou a uma geração. Não nos interessa entrar aqui na discussão da poesia de Quintana, que participava do mesmo grupo nos anos 20 e que publica sua primeira obra apenas em 1940. Interessa apenas observar que, mesmo para lermos a obra de um poeta preocupado com o individual, devemos considerá-la a partir do afastamento da tradição. A Rua dos cataventos poderia servir como in-teressante ilustração do problema da relação ambivalente entre modernidade e tradição. Ao mesmo tempo, há incor-poração da tradição do soneto e os poemas trazem a marca moderna da dicção coloquial e da cena prosaica. Assim, na visão de Meyer, o modernismo gaúcho traz a marca da continuidade também no que tange ao regionalismo. Na prosa, temos No galpão, de Darcy Azambuja; na poesia, temos Tropilha crioula e Gado xucro.

Interessa também recuperar a polêmica entre Paulo Arinos (Moises Vellinho) e Ruben de Barcelos sobre a leitura de Alcydes Maya. Sem detalhar os termos de cada um dos contendores, podemos dizer que o núcleo do debate ocor-rido em 1925 está na existência ou não do gaúcho. Paulo Arinos defende que, mesmo com os novos termos da mo-dernidade, o caráter e os valores do gaúcho permaneceriam vivos, mesmo confrontados com um modo de vida diferente do seu: “as cidades estão cheias de guascas urbanizados, aplicados não só a delinqüência, como entendem os seus difamadores, senão ainda nos misteres mais pacíficos do convívio humano” (ARINOS in CHAVES, 1979, p. 100). Rubens de Barcelos diz que “o progresso material, com a sua teia de forças mecânicas e interesses econômicos, ini-migo implacável das antigas formas de heroísmo gaúcho,

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circunscrevendo-lhe e limitando-lhe a ação, manietou-o e venceu-o. Não, não é mesmo rio-grandense de agora e o de antanho. O passado não se faz presente.” (BARCELOS in CHAVES, 1979, p. 94)

Como se vê, estamos lidando com o problema da iden-tidade do gaúcho. No trecho citado, a entrada em cena da modernidade e de novas formas de produção que alteram as condições de existência no Rio Grande do Sul, que não permitem a existência do gaúcho, cavaleiro livre, guerreiro que resolvia na ponta do facão os problemas da honra. Valeria debater o pressuposto da existência desse gaúcho, mas no caso ficamos apenas com a questão debatida nos anos 20. Ambos os autores partem do mesmo problema, mas divergem quanto à possibilidade de permanência dos valores do gaúcho. Como mostra Carla Vianna (2007), eles deixam de lado os novos sul-rio-grandenses, os filhos imi-grantes, que não aparecem como matéria de literatura. No caso específico, este é um problema com que se confronta Ernani Fornari quando escreve o Trem da Serra.

Para finalizar a descrição do caminho ambivalente do modernismo gaúcho, é interessante mostrar o trecho final de um manifesto, escrito em 1930:

Manifesto ultra-passadista: vamos fazer um soneto[...] Os poetas modernistas do Rio Grande do Sul, na época do escoamento do lago Nemi, da reconstituição das ruínas de S. Miguel e das escavações do Egito e em Sagunto, pro-clamam e aceitam, por meu intermédio, o dia glorioso do Átila Matuzalem da poesia – Dom Soneto XIV.Assim, daado uma demonstração pública d indômita bravu-ra e poder ressuscitante, afrontando, mesmo, a cólera mile-nar de todos os Tutankamons, desenterramos as múmias.Ei-las! A superstição basbaque que se delicie agora, e que a nós nos reserve vida, ante tanta temeridade paleontológica, um destino menos trágico que o do desventurado passadista Lord Carvanon e de sua abelhudíssima comitiva. p. p. Ernani Fornari (FORNARI, 1930, p. 23)

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Walter Spalding (1967, p. 57-58) narra que Ernani Fornari teve a ideia de escrever o manifesto em conversa com o grupo que se reunia da Revista do Globo: Augusto Meyer, Rui Cirne Lima, Sílvio Soares e outros. Foi publi-cado a seguir na Revista, dirigida por Mansueto Bernardi, apresentando doze sonetos, dos seguintes autores: Ernani Fornari, Rui Cirne Lima, Augusto Meyer, Sílvio Soares, Waldemar Vasconcelos, Athos Damasceno Ferreira, Da Costa e Silva, Theodemiro Tostes, Vargas Neto, Pedro Vergara, Paulo Correa Lopes e Manoelito de Ornelas. O manifesto tem teor humorístico, de tal modo que afronta a proibição modernista do soneto, forma tradicional e par-nasiana, por meio de sua revitalização. O tom de humor e paródia não aparece nos sonetos. Ao que indica a leitura dos sonetos, os autores brincaram na redação do manifesto, mas levaram a sério a tarefa de compor um soneto. Esse episódio, do qual participaram “os poetas modernistas do Rio Grande do Sul”, ajuda a compreender a condição ambivalente que a renovação ganhou no modernismo sul-rio-grandense. O tom humorístico do manifesto, que tenta ressuscitar o dom soneto, parece vir do desrecalque da tradição reprimida; a realização, no entanto, aparece como afirmação e repetição da forma consagrada, sem releitura ou problematização mais acentuda.

O poeta anda de trem... de carro...

Trem da Serra, segundo livro de Ernani Fornari, é bas-tante diferente da expressão de cunho simbolista do primeiro livro, Missal. Organizado como uma viagem de trem à serra gaúcha, a partir de Porto Alegre, cada poema é um registro desse retorno ao cenário da infância e primeira juventude. Não se trata, então, de uma mera antologia de poemas, mas de um conjunto articulado a partir de um princípio domi-nante. A própria disposição indica que há um fio cronológico que articula a sequência dos poemas. Não há articulação de ação, de causa e efeito. Em outros termos, não é um poema épico, mas registros poéticos e descontínuos.

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Antonio Candido, ao analisar Louvação da tarde, de Mário de Andrade, descreve o poema a partir “da relação dinâmica, na qual o emissor do discurso se movimenta, configurando o que poderíamos chamar poesia itinerante” (CANDIDO, 1998, p. 261). Candido ainda chama atenção para o fato de que, ao contrário da deambulação pedes-tre, o poeta vai de automóvel e designa o veículo por um diminutivo, tratando-o como ser vivo (p. 265). Por fim, o crítico paulista coloca que

Trata-se portanto de um meditação itinerante entrosada na era da mecanização, e tanto quanto sei é a primeira onde o deslocamento no espaço se faz por este meio. É claro que há poemas anteriores nos quais o automóvel aparece, mas não conheço outro onde esteja em contexto semelhante, isto é, do poema-meditação (CANDIDO, 1998, p. 265).

Não há interesse aqui em retomar a análise de Antonio Candido de Louvação da Tarde, de Mário de Andrade, escri-to em 1925 e publicado apenas em 1930. O que importa é o que há em comum com Trem da Serra, que, apesar de ser composto de vários poemas, tem sua unidade construída pela viagem de trem. No automóvel, solitário, o eu lírico de Louvação anda entre os cafezais e constrói sua reflexão.

No mesmo período dos anos 20, também Fernando Pessoa escreve um poema meditativo em que articula o automóvel e a reflexão. No caso, trata-se de um poema de 1928, sob heterônimo de Álvaro de Campos, “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Trata-se de poesia itinerante, pois o eu lírico simula falar enquanto se mo-vimenta, desloca-se no espaço. No caso, a peculiaridade está no fato de que esse poema traz o deslocamento em um carro emprestado. O deslocamento é fundamental para a compreensão do poema, pois o eu lírico está entre Lisboa e Sintra, para onde se dirige. Há nessa meditação itinerante a mecanização (novidade moderna), uma integração entre eu lírico e veículo que conduz. Essa nova realidade ganha forma de poema.

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A oposição entre as duas cidades dá a medida da inquietação do sujeito que se põe entre Lisboa e Sintra. Quando está em uma, quer estar na outra e vice-versa. Essa oposição é elevada à condição simbólica de expressão de si (vida ou sonho). A inquietude traz a instabilidade que leva o eu lírico a admirar aqueles que estão parados. O contraponto é o casebre, simples, à beira da estrada. Ao final, a aproximação de Sintra marca o cansaço da imaginação e uma reflexão se movimentou que se dis-tanciou da compreensão de si: cada vez menos perto de mim... O que vemos é que a articulação entre pensamento (meditação ou devaneio) e movimento não se dá mais no ritmo humano, do corpo, nem de sua integração com o animal, a cavalo, por exemplo. Estamos lidando, tanto em Mário de Andrade quanto em Álvaro de Campos, com a incorporação da máquina, da aceleração à poesia. Não se trata de estabelecer uma linhagem entre os três poetas, mas apontar uma coincidência temática que indica um problema comum: de que modo a percepção e a reflexão se alteram quando o homem integra-se à máquina, quando adere ao movimento do carro?

O poema mais próximo, também do mesmo período, é Lanterna mágica (Alguma poesia), de Carlos Drummond de Andrade. É um poema publicado em 1930 que traz a sucessão de cidades pelas quais o trem passa. A diferença mais marcante é que Ernani Fornari organizou toda a obra a partir da viagem do trem de Porto Alegre para a Serra, mas é comparável a articulação entre tecnologia e poesia, entre o deslocamento de trem e as impressões do viajante lírico.

No Trem da Serra

O trem da serra foi uma expansão do trajeto que ligava Porto Alegre a Nova Hamburgo, que passa a alcançar as cidades de colonização italiana da Serra. Com o fortaleci-mento das regiões coloniais (de origem alemã e italiana), uma nova realidade e novos agentes passam a se integrar

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ao cotidiano e à história do Rio Grande do Sul. Trata-se da produção agrícola, da urbanização e da industrialização que põem novidades para um contexto dominado pela criação de gado e pelo charque. Assim como em São Paulo, aos poucos, os italianos foram entrando na literatura, com Juó Bananere ou Antônio de Alcântara Machado, Ernani Fornari investe na novidade do tema.

No Trem da Serra, o eu lírico oscila entre diferentes perspectivas, ora captando o que está fora de si, ora vol-tando para seu universo interior, quando as imagens que figuram a interioridade ganham também movimento, passando rapidamente de uma para outra.

A “Mallet”é um flete puro-açoesfaimado de distância,com um olho na testa e a dentuça de fora, puxado pelas rédeas compridas das paralelas...

Por meio da relação analógica, o trem ganha vida e se transforma em cavalo puro-aço, com o qual o poeta vai se integrar. Existe uma integração entre a imagem moderna, do trem, e a tradicional montaria do gaúcho, o cavalo. Esse primeiro poema dá o tom da poesia de Ernani Fornari, no sentido de que, além da captação serena da tecnologia moderna, há o esforço de integração entre a máquina e o homem, assim como há entre a tradição e a modernidade. Não há disputa entre o cavalo e o trem, não substituição de um pelo outro, mas há sobreposição criando uma imagem integradora de ambos.

Vesperal infantil dos meus olhos de homem feito!

Aboletado no banco vascolejantedo meu cinema ambulante,fico olhando para a “tela” Pathé-baby da vidraça,onde a paisagem dispara, assustada, para trás.

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No poema acima citado, Cinematógrafo, o ponto de vista é de quem está dentro do trem e vê a paisagem pas-sar rapidamente. Fisicamente está parado, sentado, mas é levado pela máquina. Para representar o que vê, o poeta usou a analogia com o cinema. Assim, quem está parado é observador e o movimento está na tela. No caso, o que se movimenta é a paisagem que ganha vida e se transforma em terra-zebu, que corcoveia. Voltado para a janela (tela), o sujeito chama a atenção do interlocutor (olha) para as semelhanças descobertas: o morro que parece um crânio negro, queimado; outro parece um chico-bóia, um homem gordo, que caminha lentamente ao fundo, distante. A ilu-são ótica é reforçada: os postes, bem próximos dos trilhos, passam velozmente; os morros a seguir corcoveiam e os que estão mais distantes demoram mais para desaparecer da vista.

Não é demais lembrar que a pintura figurativa foi pensada como uma janela para o mundo, simulando uma terceira dimensão, por meio da perspectiva, que dotava a tela de profundidade. No caso, ao espectador era dado contemplar, de modo estável, uma paisagem natural ou uma cena urbana, mas o quadro daria a ilusão de uma composição estável.

Observe-se ainda que se trata de sessão de cinema infantil para os olhos de homem adulto. Essa marca indica a novidade dessa experiência, de andar de trem, que implica uma nova forma de se olhar para a paisagem. Essa é também uma marca recorrente entre os modernistas que reencon-tramos aqui. Está, por exemplo, na expressão “primitivos de uma nova era”, com que Mário de Andrade, no prefácio interessantíssimo, tenta descrever a experiência moderna da cidade. Em Oswald, é o pai que aprende com o filho:

3 de maioAprendi com meu filho de dez anosQue a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi

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Fica evidente que o adulto deve valorizar a sabedoria da criança e ter humildade para aprender com o próprio filho. Que tipo de aprendizado? A criança ainda não atingiu o universo adulto, ainda não se inseriu no âmbito das res-ponsabilidades do trabalho, ainda não entrou plenamente no tempo do relógio, nem lhe é ainda exigido um compor-tamento produtivo... Esse olhar da criança pode apontar para o mundo incongruências da vida adulta ou ensinar o afastamento de preconceitos. Na infância, não haveria pre-conceitos quanto à fantasia, ao jogo, à brincadeira. O tempo da brincadeira está fora do tempo do trabalho, marcado pelo relógio. Sem deixar de lembrar a disponibilidade para brincar com as palavras ou para inventar jogos verbais, encontramos o desejo de regressão a um tempo pueril, como forma de afastamento da condição presente e atual, em que o poeta é infeliz no tempo do trabalho, na responsabilidade adulta, na cobrança da coerência e da lógica. No caso específico do Trem da Serra, temos o poeta que vê a paisagem que se movimenta para trás, e seu olhar passa a brincar com o que vê (morro queimado), criando uma analogia brincalhona com um “enorme crânio encarapinhado de tio mina”.

Esse mesmo processo está posto no poema seguinte, Segunda parte.

Com um estrondo de ferragens uma ponte nos engoliu...

Passou um rancho correndo... correndo...

(Rancho que bicho te mordeu?)

Capões... Sangas... Cascatas anônimas na geografia... Árvores respeitáveis, de longas barbas veneráveis, Abanam as barbas para o trem...

Agora, os primeiros pinheirose uma carroça, ali embaixo, atolada no barreal...

Agora, uma choupana triste, sem horta, sem chiqueiro,

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com paredes de taquara e barro formando barriga:– casa cai-não-cai de índio verminado...

Agora, um chalet muito claro, muito fresco,com telhado novo, num cenário de fartura,– lar de colono que compreendeu toda bondadedo chão que a gente pisa sem carinho...

Agora,uma tapera – esperança que falhou...

Na repetição do advérbio “agora”, o eu lírico mostra que está captando uma imagem depois da outra, ou um fotograma depois do outro (Cf. FISCHER, 2004, p. 76). De forma objetiva, poderia parecer apenas um registro da matéria bruta da realidade. Há cuidadosa seleção, que justapõe a carroça atolada, depois a choupana triste do índio verminado, a seguir o chalé claro do colono e por fim a tapera, a ruína que fica definitivamente para trás. Carla Viana (2006) chama atenção para o uso do termo Tapera, título do livro de Alcydes Maia que suscitou a polêmica entre Paulo Arinos e Ruben de Barcelos sobre a identida-de do gaúcho. A par do debate, Fornari estaria deixando essa imagem para trás, e, nessa sobreposição, é na casa do colono (do imigrante) que aparece a descrição positiva e saudável de integração com a natureza.

Por fim, cabe salientar que a paisagem natural (ve-getação, morro, etc.) e a cultural (casa, chalé, choupana, etc.) sucedem-se ante o olhar dado pelo movimento do trem. No deslocamento próprio da viagem, a composição do poema vai indicando rápida mudança da natureza vista, bem como das diferentes intervenções humanas, diferentes expressões culturais. Não temos aqui um pregão turístico, nem um poema cartão postal.

Uma questão recorrente em trem da serra é o problema da identidade do imigrante. Felicidade é um poema que pode servir de exemplo.

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Mas, eis que eu, andarengo e triste,de súbito estremeço vendo, lá embaixo,na aba de um serro todo penteado, à por ta da casa que roseiras tentaculam de flores,um casal de colonos lavradores enlaçadosacenando, acenando para o trem...

Que ingenuidade naqueles gestos simples!Quanta bondade sem interesseNaquele “boa viagem” que eles dizem com as mãos!...

Pureza... Tranqüilidade... Saúde... Solidão...

Sinto um desejo louco de sair gritando:– Achei-a! Achei-a! Ei-la – a Felicidade!

No poema citado, o casal de colonos, parado e acenando para o trem, passa a ser a imagem da Felicidade. O uso da maiúscula reforça a ideia da personificação do conceito no casal. O trem passa sem parar, “onde mora a Felicidade não há estação: a gente passa sem parar”. Essa explicação final, uma espécie de chave de ouro, de certo modo fragiliza o poema, mas essa fragilidade ajuda a compreender a força da imagem dos imigrantes, que trabalham a terra, da agricultura tradicional do colono que se integra à natureza. Na descri-ção do casal de “lavradores enlaçados”, temos ingenuidade, bondade, pureza, tranquilidade, saúde, solidão. Há o contraste com o eu lírico, “andarengo e tristes”, identificado ao trem e à modernidade, que passa sem a possibilidade de parar nem de se integrar ao quadro visto.

O contraste ganha um pouco mais de complexidade quando consideramos o poema Pobre nativo, em que o italiano, que faz a refeição dentro do trem com seus oito filhos e traz um embrulho com o Diário de Notícias, em que aparece a manchete a economia é a base... Podemos aproximar essa família do casal de colonos. Novamente é uma cena da qual o eu lírico não faz parte, observa-a de fora. A partir desse quadro, o eu lírico estabelece o seguinte contraste:

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Aqueles risos de saúde, fechos os olhos para ver,lá atrás, lá longe, onde o trem deixou esquecida,a casa cai-não-cai do índio verminado...

Quando abro os olhos, tenhos rasos d´água...

Ao fechar os olhos, o eu lírico passa a ver a imagem oposta do que está presenciando no momento presente. Seus olhos se voltam para trás, para longe, para o que o trem deixou esquecido: a casa do índio verminado. O contraste revela que os colonos, trabalhadores e saudáveis, têm famí-lias felizes, enquanto os outros são doentes e vivem numa casa cai-não-cai, marcada pela precariedade da condição miserável. Não bastasse isso, ao abrir os olhos, a emoção brota espontânea nas lágrimas. Cabe, então, comentar o gesto solidário, a pena sentida pelo índio verminado. Há o caráter louvável da solidariedade com aquele que está fora do trem. Há, no entanto, a afirmação do modelo do qual o eu lírico parte, a Felicidade materializada no casal de colo-nos. A outra imagem, diferente, não é para ser admirada, nem é o lugar em que o eu lírico desejaria desembarcar, pois traduz o estado de quem é digno apenas de pena, por estar abaixo, uma condição infeliz a ser alterada.

Um poema mais adiante no livro, Domingo lírico, mos-tra o quanto há de idealização na vida do imigrante:

O domingo na colônia é líricoporque é o dia da purificação...

Sapatos besuntados de banha,lenço de seda ao pescoço, calças com frisos dos lados,depois da missa,os colonos vão para as vendas da vilaquebrar o jejum. [...]

De guarda-sol aberto, e alma aberta ao sol,vão grupos cantando uma toada dolentetrazidos pelos pais da pátria distante.“E la violetta... lá và... lá và...

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lá và... – lá vàààààà...”Vão com os olhos banhados de luzVão com a alma cheinha de Deus.

Talvez seja possível apontar um transbordamento do eu lírico, que extravasa intensa emoção a partir da cena vista. No retorno à serra, vindo no trem, ele reencontra uma vivência rotineira, o dia de domingo, que ganha uma dimensão sublime. Inclusive, uma imagem prosaica, sapatos besuntados de banha, é vista pela lente lírica. Esses filhos de imigrantes cantam na língua dos pais da pátria distante, e esses grupos têm os olhos iluminados e a alma cheia de Deus. Não temos a forma poética de Manuel Bandeira, que olha para o cotidiano e desentranha o sublime escondido; ainda assim, temos algo similar, de alguém que encontra o brilho poético na colônia. Pode-se referir, inclusive, o uso do diminutivo com que fecha o poema: a alma cheinha de Deus. É uma forma recorrente da dicção modernista para elevar o objeto pela aproximação íntima e sentimental, que se torna mais valioso na maior familiaridade com que é tratado.

A força dessa imagem é reforçada no poema narrativo Conquista da Serra. Temos o gringo [que] veio do mar, e a china que estava na terra. A narrativa tem ritmo mar-cado pelo contraponto que estabelece o contraste entre os personagens até que acontece o encontro amoroso. Observe-se que a china idealiza como o deus de seus avós, que milagrou o chão que era só pedra. Essa idealização leva à entrega. A cena recupera o teor mítico do encontro do europeu (conquistador) com o americano (nativo). É possível identificar resquícios do encontro entre Martim e Iracema, do português com a índia. O que muda subs-tancialmente é que o elogio é posto não mais no guerreiro, mas no trabalhador agrícola que realiza o milagre de fazer a terra frutificar. A relação continua desigual. Ernani Fornari constrói a imagem da nativa que olha com admiração e desejo para o imigrante loiro, que transforma a terra pelo trabalho para deixá-la semelhante a si. Note-se que a china gostou tanto da maciez e da cor do milho que quis

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se deitar sobre ele e adormecer. É um encontro amoroso, de integração harmônica.

Há ainda outra peculiaridade nesse poema. Não se trata de uma cena vista a partir do trem. Também não é memória infantil suscitada pelo reencontro com a cidade natal. Temos aqui uma narrativa construída pelo olho da imaginação. De certo modo, por essa característica, esse poema é singular no conjunto do livro. Mais do que registrar o cotidiano do imigrante ou recordar o passado pessoal, o poema reelabora o passado coletivo pelo teor mítico, legitimando a integração do imigrante à cultura sul-rio-grandense.

Em outro poema, Estação de parada, o eu lírico volta para o registro objetivo. Vejamos:

Burburinho. Lufa-lufa. “Com licenças” apressados...Alemães, italianos, rio-grandenses,fundindo ao sol um idioma novo e singular,com que todos se entendem:– Cigalê alemoa tafuleira!– Varda, Angelin, quela toz li!– Mein liebchen, wie bist du mager!

Harmonia... colorido...

Tenho o corpo doído, os membros lassos,os olhos abertos como bocas sequisiosasquerendo beber todos os aspectos de uma vez.

Agora, neste poema, temos a sobreposição de três per-sonagens diferentes, três falas em línguas diferentes que se fundem em um idioma novo e singular. A diferença de idio-mas não impede que eles se entendam. É interessante de se observar a forma como Fornari incorpora esses elementos ao poema. A convivência entre os diferentes imigrantes e os rio-grandenses era um fato presente nos anos 20, e o poema poderia ser visto apenas como elevação à categoria literária da realidade bruta. Parece-me, no entanto, que há algo mais, há o apagamento dos traços negativos. Não

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há incompreensão, nem conflito, nem ao menos tensão na cena: apenas harmonia e colorido.

Outro núcleo importante no Trem da Serra é a viagem da memória. A viagem funciona também como retorno à terra natal. A identificação com o veículo moderno, o trem, implica diferença e afastamento do eu lírico da realidade admirada. No poema Bento Gonçalves, do qual foi tirada a citação acima, a estratégia que dá unidade ao poema é brincadeira de roda. A cidade ganha vida e com suas casas muito brancas, brinca de roda à roda do vale profundo. O eu lírico olha para elas, que supostamente diriam:

Quem será aquele poeta que vem lá tão longeAo redor de nossas terras, mangerão, tão, tão?

O estranhamento é reforçado pelo não reconheci-mento: é você? O poeta entra na roda no momento em que descobre que Anunciata estava casada.

Podemos, então, passar agora para o poema Garibaldi, pátria das minhas “primeiras vezes”, construído a partir da simulação de uma conversa entre o eu lírico, sentado no coreto da praça, e Dona Memória. Ela recorda para ele momentos de seu passado que o deixam emocionado. São cinco partes diferentes que têm como recorrência a pas-sagem do tempo (a galope, tró-troque, tró-troque) e a marca da primeira vez como final de cada lembrança (aqui... pela primeira vez!).

VMais anos passaram,a todo galope, tró-troque. tró-troque...Que vieste aqui tu agora fazer?Por ventura, poeta, ainda esperas da vidamais uma “primeira vez”?Desiste, que já nada mais tens na vida que possas estre-ar...Que vieste então fazer nesta terra,pela quarta vez?...

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Eu ia responder uma coisa muito grave e séria,troço de arrepiar (parece que era de Morte...)quandoouvi um comentário que me encabulou:– Sujeito maluco, falando sozinho!...– Ostia!Será que não terei mesmo mais “primeira vez”?...

Neste final, temos o encontro entre o tempo que pas-sou (apresentado pela Memória) e o presente (poeta que retorna): que vieste aqui tu agora fazer? Pode-se observar que as expressões grifadas – aqui e agora – deixam o verso de tal modo truncado, que a pergunta se faz em um modo de dizer pouco usual. A expectativa é ainda ter mais uma primeira vez. Pode-se dizer que há, nesse movimento de retorno ao passado, um desejo de superação. Não há meramente nostalgia na recordação, nem há desejo de voltar às cenas do passado. Não se trata de uma situação melancólica em que o olhar se prende e chora as ruínas do passado. Ao contrário, a interrogação final mostra que o eu lírico se projeta para o futuro. O desejo está posto na forma de viver, em querer experiências novas, novo amor, nova aventura e, até mesmo, nova surra. Em todo caso, o foco não está posto no conteúdo vivo apenas, mas princi-palmente na forma, na aventura de viver algo novo.

O final do poema traz uma queda humorística quando um passante puxa o indivíduo para o presente quando aparece o comentário: que sujeito maluco, falando sozinho! Quando o eu lírico dialoga com a Memória, ele se desdo-bra para dialogar com o próprio passado. É um mergulho dentro de si, em que reencontra suas lembranças. Nesse mergulho, processo intenso de isolamento e de individu-ação, a realidade externa e presente é esquecida para que as camadas interiores sejam reveladas. Em fenômeno mais típico de pequenas comunidades, quando alguém chama atenção para sua aparência estranha, o eu lírico é trazido para o presente e para a realidade externa. Esse movimento traz a marca do humor.

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A força de um livro

Como se trata de analisar a poesia de Ernani Fornari, não vamos trazer para a discussão sua experiência posterior a 1928, quando inicia no teatro. Observa-se, então, que o Trem da Serra é a única obra poética que vale um co-mentário mais detido. O livro anterior e o outro posterior não têm a mesma qualidade do Trem. Inclusive, a segunda edição, publicada em 1984, traz uma tentativa de reescrita do mesmo livro que se mostra muito inferior à primeira edição. O que temos em o Trem da Serra, na edição de 1928, é um acontecimento único, que traz as marcas do grupo modernista de Porto Alegre, exprimindo seus impasses e questões, e ao mesmo tempo traz algo novo: a tematização do imigrante italiano na literatura sul-rio-grandense. Não temos aí uma etapa de formação de Fornari como poeta, mas um fato isolado.

Podemos contrastar com a formação de Manuel Ban-deira, cuja trajetória é importante para se pensar a moderna poesia brasileira. Quando lemos Itenerário de Pasárgada, ve-mos a força do poeta que trabalhou muito, que leu a poesia europeia (dos simbolistas aos modernos), portuguesa (de Camões a Antonio Nobre) e brasileira (dos românticos aos modernos) e que estudou a natureza do verso. E, na relação com a explosão modernista, não encontramos o poeta des-lumbrado com a moda, mas alguém que dialogava de modo autônomo com tendências diversas: Mário de Andrade, Ribeiro Couto e Gilberto Freyre. Para ficar apenas num exemplo, ao lermos Ritmo Dissoluto, publicado em 1924, temos um poeta de 38 anos, que já havia deixado para trás dois livros (Cinza das horas, 1917, e Carnaval, 1919). Não foram apenas fatos isolados, mas momentos importantes da sua formação poética até alcançar a conquista da dicção simples, do linguajar prosaico, do verso livre adequados à forma como encontrava o lirismo no cotidiano. Isso não apaga contradições e ambivalências na relação entre Ban-deira e a tradição, mas mostra a diferença de pensar uma obra com um ponto numa trajetória.

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Voltando a Ernani Fornari, chama atenção a moder-nidade poética do Trem da Serra, como é destacada em várias leituras (Cf. FISCHER, 2004; ZILBERMAN, 1980; SCHULER, 1982; KÖRBS, 1984; VIANA, 2006), mas igualmente espanta seu isolamento e a pouca consequ-ência de sua publicação nas próximas gerações. A edição não circulou, não houve reedição, aparentemente não influenciou outros poetas. Na trajetória pessoal do escritor, ficou como experiência de juventude. Talvez uma pista para se compreender o insulamento dessa obra seja dada pela comparação entre um poema da primeira edição e da segunda edição, quando foi reescrito.1 Talvez não seja exagero dizer que as alterações trouxeram apenas prejuízo para a qualidade da obra. Vejamos um exemplo:

1ª edição (1928)Vinha musical A Sotero CosmeA montanha está pautadade vides entrelaçadas em aramados de cinco fios.

As vinhas são partituras da Alegriaescritas na pauta verde das fileiras iguais.

E os cachos negros, e os cachos brancosdessas uvas,que a clave de Sol amadurece,são as notas musicais, são as notas das cançõesque o seu vinho generoso há de pôr na boca aflita dos que bebem para não sofrer...

As brancas – são as semibreves;as negras – são as semifusas...

A montanha é um Conservatório,o vinhateiro – o professor.

2ª edição (1987)Vinhas musicais (Desenho animado) A Sotero CosmeBebo os horizontes fugidios...Há por tudo uma música inaudívelque embriaga pelo olhar e que, quase visível,sobe do chão cortado de torrões macios,enchendo-me a boca de sonoridades.

É que as montanhas estão pautadasde vides entrelaçadas em aramados de cinco fios.Esses vinhedossão partituras da alegria que entontece,escritas nas pautas verdes das fileiras iguais.

E os cachos negros, e os cachos brancos dessas uvas,que a clave de Sol amadurece,são as notas musicais,são as notas das cançõesde que seu vinho generoso irá enchera boca aflita dos que bebem para não sofrer,e o coração dos que bebem por prazer.

As brancas, por serem leves, são breves e semibreves;as negras, por mais profusas,são fusas e semifusas...

E o meu olhar divinatório,Embrigado de sons, de luz, de cor,Cada montanha é um coreto,E cada vinhateiro – um maestro compositor.

1 Ao comparar as duas edições, é possível observar uma série de mudanças muito significativas. Temos alteração de palavras, acréscimo de versos, alteração de título dos poemas, inserção de subtítulos... Na abertura, Elvo Clemente declara que os originais da segunda edição chegaram a sua mão por meio de Íris Körbes. Não há, no entanto, cotejo entre as duas edições, nem há, infelizmente, indicações mais precisas de quando foram feitas as alterações. Considerando tais aspectos, principalmente o grande número de alterações (e atualizações), o presente artigo tomou apenas como objeto de estudo a primeira edição, de 1928.

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Como se pode ver pela indicação posta, o grande nú-mero de alterações poderia nos levar a dizer que se trata de um novo poema que Ernani Fornari escreveu antes de sua morte, nos anos sessenta. Comecemos pelo acréscimo da primeira pessoa na segunda edição, quando aparece um eu lírico que bebe e se embrigada, enchendo a boca de sonoridades. Essa inserção elimina o teor de objetividade cinematográfica, em que cada cena se constrói na frente do leitor. O observador discreto da primeira edição, que se revelava apenas nas metáforas construídas, agora se expõe de modo explícito. Além disso, o poema passou a ter forte teor explicativo, como se mostra de modo quase óbvio no significativo número de acréscimos ou no uso de “é que...”. Isso parece decorrer da necessidade de explicar a relação entre pauta musical e vinhas. A semelhança deixa de ser uma metáfora que se impõe como imagem e passa a ser uma comparação organizada e exposta na intervenção direta do eu lírico.

A construção de predicações preenche as lacunas e desfaz os pontos de indeterminação. Além de novamente evidenciar a perda do corte cinematográfico, tal atitude do poeta nos mostra um afastamento da atitude moderna presente na primeira edição. O tipo de linguagem elíptica e objetiva é substituído pelo lirismo sentimental. Há um movimento de regresso às formas mais tradicionais da lírica.

Essas alterações indicam que Ernani Fornari foi um poeta modernista na década de 20, quando esteve integra-do ao grupo da livraria do Globo. Ele encarnou e traduziu, na primeira edição do Trem da Serra, as ambições formais e temáticas do seu momento. De certo modo, os problemas de inovação formal da poesia e de discussão identitária do gaúcho ganham forma na viagem à serra, no tipo de corte cinematográfico e na introdução do imigrante na cena poética. Parte de sua experiência e realiza o desrecalque da matéria nova do cotidiano dos imigrantes no Rio Grande do Sul, do homem simples... Parece que essa linhagem

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poética, que aí se descortinava com o Trem da Serra, ficou insulada na geração dos anos 20.

Pelo olhar poético de Fornari, pelo tom da poesia, é que a modernidade tecnológica aparece como promessa de integração entre diferentes culturas, de um trânsito por diferentes espaços. Ao mesmo tempo, a identificação com o trem implica um afastamento da identidade e do vínculo com a comunidade. Assim, a alteração da paisagem traz junto a dor por quem fica para trás e a promessa de integração. Para finalizar, pode-se colocar que o índice de transformação dado pelo trem da serra é visto pelo ponto de vista de um eu lírico emotivo, que solidariza com as pessoas simples, sente pena da tapera e idealiza uma in-tegração com a natureza pelo trabalhador rural. A fatura moderna do poema está posta (principalmente na edição de 1928), mas vem junto com o esforço de manter o lirismo apaziguador que permite pensar a integração do imigrante europeu com os habitantes locais. Assim, essa obra isolada põe em xeque o problema da identidade do gaúcho pela entrada em cena do imigrante, como integração harmô-nica. O conflito, quando aparece, está dentro do sujeito que se vê desenraizado das tarefas rurais.

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Impasse e conciliação: a posição do homem livre pobre

em O tronco do ipê

Fernando C. Gil*

* Universidade Federal do Paraná.

resumo: Este trabalho discute a presença do homem livre pobre no romance O tronco do ipê (1871), de José de Alencar, e sua figuração como personagem em trânsito conflitivo na condição de dependente social.

palavras-chave: O tronco do ipê; José de Alencar; romance rural.

abstract: This paper aims to discuss the presence of the free poor man in the novel O tronco do ipê (1871), by José de Alencar, and his representation as character in conflictive position in his status of social dependent.

keywords: O tronco do ipê; José de Alencar; rural novel.

Gostaria de iniciar este artigo com a transcrição de uma série de passagens a respeito da condição do indiví-duo pobre e dependente presente no romance O tronco do ipê (1871), de José de Alencar. O foco de atenção desses trechos é o protagonista da história, Mário Figueira e, secundariamente, sua mãe, D. Francisca.

Passagem 1

Nesse momento Alice aproximou-se de volta da corrida, e ouvira as últimas palavras da amiguinha (Adélia):- Mário não dança.O menino lançou-lhe um olhar frio:- Com certas pessoas!- Comigo, não é?- Principalmente.- Muito obrigada, respondeu Alice com um sorriso.

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- Está bom; não vão brigar, acudiu Adélia com mei-guice.- Não tenha susto, Adélia! Eu não me zango com ele.- Não vale a pena.Não se pode exprimir a amarga ironia com que Mário pronunciou estas últimas palavras. Sua mão crispada por um movimento de cólera, caiu sobre o tronco de um arbusto e espedaçou-o (ALENCAR, 1980, p. 13)

Passagem 2

Alice quis por força trepar em uma árvore de goiabeira para colher um cacho de uvas da alta parreira. Houve desta vez uma oposição geral à travessura.- Nhanhã, isto são modos? Tomara que sinhá saiba, exclamou Eufrosina.[...]- Não trepe, Alice; não é bonito; estraga as mãos e pode romper o seu vestido, disse Adélia.Mário limitou-se a sua habitual ironia:- Ora!... Deixe trepar não faz mal! É filha de barão... não cai... tem muito dinheiro!... (ALENCAR, 1980, p. 16)

Passagem 3

[Uma conversa entre Mário e Adélia, pouco depois da cena acima transcrita, em que também se encontra Alice:]

- Ora não se lembra; e há bocadinho, quando ela quis trepar na goiabeira?... Você também ralhou com ela; e depois fez muito pior. Daquela altura pendurou-se em risco de morrer.- Nada se perdia! disse Mário com desdém.- Mas então você não pode falar de Alice.

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- Ela é rica, tem seu pai e sua mãe, que havia de chorar muito se qualquer cousa lhe acontecesse; há de ter uma vida feliz. Mas eu!... Um pobrezinho, que já não tem pai e vive à custa dos outros, que faz neste mundo? (ALENCAR, 1980, p. 19-20)

Passagem 4

[Cena em que Alice e Mário entregam presentes, respectivamente, a “tia” Chica e ao preto Benedito , ambos escravos da fazenda:]

- Não é capaz de ser tão rico nem tão bonito como o meu! replicou a tia Chica. - Mais!...- Não, Benedito, você não tem razão. Eu sou pobre; não posso dar presentes ricos, como a filha de um barão! (ALENCAR, 1980, p. 25)

Passagem 5

[Em conversa com o escravo Benedito, Mário lamenta a sua condição de protegido:]

- O que me desespera é viver à custa dos outros. Ninguém sabe o que a gente sofre; então mamãe, coitada! Não se queixa, mas chora às escondidas, que eu bem sei (ALENCAR, 1980, p. 37).

Passagem 6

[Comentário do narrador sobre a situação de D. Fran-cisca, mãe de Mário:]

O suplício de viver da compaixão alheia [no caso, a do barão], comendo o pão saturado com as lágrimas da humilhação, esse martírio, padecia-o ela a todas as horas e a todos os instantes. Mas a dor cruciante

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desse crivo d’alma já não lhe deixava sensibilidade para sofrer com o pungir de cada espinho (ALENCAR, 1980, p. 49).

Passagem 7

[Cena em que Mário resiste aos rogos de sua mãe para ir aceitar os agradecimentos do barão, depois que o menino salvou Alice do afogamento do boqueirão:]

- Não tenho nada que fazer lá! O Sr. Barão pode guar-dar seus agradecimentos, que eu passarei muito bem sem eles. Se cuida que lhe prestei algum serviço, está enganado. Quis mostrar-lhe que um pobrezinho, às vezes, vale mais do que os ricos barões (ALENCAR, 1980, p. 67).1

É provável que nunca estivesse tão presente, no romance rural do XIX, de modo explícito, sistemático e recorrente, o mal-estar que a condição de dependente representa para este tipo de personagem, como se percebe n’O tronco do ipê. Com modulações variadas de sentimentos e expressão em face do problema, que passa pelo sarcasmo, toca a autocomiseração e o constrangimento, chegando muitas vezes ao ressentimento, certos aspectos que cercam a posição de Mário como dependente são a linha de força que movimenta significativamente a primeira parte do ro-mance de Alencar. Como n’O sertanejo e em Til, romances do mesmo autor, temos como protagonista um dependente de um grande proprietário. Entretanto, do ponto de vista da narrativa, enquanto Arnaldo Louredo (O sertanejo) e Berta/Jão Fera (Til), sobretudo estes últimos, transitam de modo inconsciente na relação de dependência, Mário, ao contrário, enuncia não somente o lugar que ocupa na fazenda Nossa Senhora do Boqueirão, como protegido do barão da Espera, como também o mal-estar que tal situação representa para ele. Observe-se que, das sete passagens destacadas, seis são intervenções feitas diretamente pelo

1 Grifos meus.

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protagonista, e apenas numa, a sexta, é o narrador que se põe na perspectiva do personagem inserido em tal con-dição. Esta maneira de o romance formular um dos nós centrais terá consequências expressivas no plano narrativo, como se tentará mostrar mais adiante.

A primeira parte do romance, que a bem dizer preen-che quase que simetricamente a sua metade, é tomada de tom nervoso, crispado. Uma estridência tensa que tende a ser amainada, ou mesmo parece querer se confundir ou se misturar à própria natureza juvenil das situações apre-sentadas, já que as idades dos personagens centrais, Mário, Alice e Adélia, giram, nesse momento, em torno de 12 a 15 anos. Num certo sentido, é como se estivéssemos apre-ciando a estrepitosidade juvenil dos personagens em geral, mesclada e interposta à estridência desgostosa, insatisfeita e irritadiça de Mário diante da condição de dependente que ocupa. Em O tronco do ipê, os acontecimentos do passado familiar de Mário vão determinar o todo da narrativa, ou seja, a caracterização do protagonista, a sua posição social e o andamento da intriga.

Mário Figueira, desde menino (período este da vida do protagonista que corresponde à primeira parte do ro-mance), carrega a suspeita de que Joaquim Freitas, o barão da Espera, esteja ligado ao destino fatal de seu pai, José Figueira, morto nas águas do boqueirão, bem como à posse inesperada da fazenda. Em flashback, nos capítulos X e XI, intitulados “Dois amigos” e “Desastre”, o leitor toma co-nhecimento de que José Figueira e Joaquim de Freitas foram amigos de infância. Pobre e órfão de um administrador de fazenda, este se torna protegido do comendador Figueira, pai de José, o qual o ajuda a montar “uma pequena casa de negócio”. Vendo no casamento “toda a esperança, todo o futuro; era a riqueza tão ardentemente ambicionada” (ALENCAR, 1980, p. 39), é, todavia, com a posse da pro-priedade que Joaquim de Freitas enriquece. Com a morte do comendador e a enigmática morte de José Figueira no boqueirão, sabe-se, de modo surpreendente para os envolvidos, que ele se tornara um dos principais credores

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do comendador, “a quem estava hipotecada a fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão no valor de cem contos de reis” (ALENCAR, 1980, p. 42). A partir desta situação, torna-se dono da propriedade; em seguida, pleiteia e obtém, em troca da soma de doze contos de réis “doados” ao hos-pício de Pedro II, o título de barão; e também por gratidão e generosidade ampara agora em suas terras a viúva e o filho de José Figueira, D. Francisca e Mário.

A passagem de Joaquim de Freitas de homem livre pobre a grande proprietário2 reconfigura a posição social de Mário no presente da intriga, que de potencial proprie-tário passa a protegido e dependente. Parodiando a famosa expressão de Sérgio Buarque de Holanda, Mário é um expropriado em suas próprias terras. Deriva desta situação, mais sentida do que refletida por parte do protagonista, o sentimento de que “todas as pessoas da amizade do rico fazendeiro incorriam na antipatia do menino” (ALENCAR, 1980, p. 67). Dentre elas, Alice, a filha do barão da Espera, será, a princípio, alvo central do ressentimento de Mário, destilado por um sarcasmo e por um pretenso desprezo dos privilégios que cercam a menina por ser filha de proprie-tário “nobre” e rico. A afronta contínua e sistemática à posição da garota não vai sem uma dose ambígua de desejo oculto de admiração, não só pela condição social que, ao que tudo indica, gostaria de ver como sua, mas também pela própria figura feminina de Alice. Esta, por sua vez, sempre tolerante com o rapaz, atribui o caráter irritadiço de Mário a seu “temperamento forte”.

Sob este aspecto, a perspectiva admirativa da menina não deixa de, em boa dose, coincidir com a do narrador. A posição precária de Mário e a expressão (ressentida) que isso toma não invalidam o caráter positivo que o narrador atribui ao protagonista. Ao contrário, este é assumido com todas as letras, como se pode notar:

Quando se observava aquele menino e via-se o meneio altivo com que ele atirava a cabeça sobre a espádua, o gesto frio e compassado, a ruga precoce que lhe sulcava

2 Com relação à ascensão do barão, é pouco clara, ao longo da história, a maneira como este se tornou o grande credor do comendador, bem como suspeita e ambígua também a atitude de Freitas, que se encontrava no boqueirão quando da morte do pai de Mário.

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o sobrolho e a expressão desdenhosa do lábio crespo, não se podia o observador eximir a um sentimento de repulsa. Parecia que essa criança de quinze anos já se julgava com o direito de desprezar o mundo, que nem conhecia, e os homens de que ele era apenas um projeto.Entretanto com a continuação do exame aquele sentimento de repulsa diminuía. Havia nessa fisionomia um quer que seja que atraía, malgrado; adivinhava-se na fronte larga uma inteligência vigorosa; e vinha como um vago pressen-timento, de que a expressão estranha de seu rosto não era outra cousa senão o confrangimento dessa alma superior (ALENCAR, 1980, p. 14).

Alma superior e confrangimento, uma disjunção que constitui o personagem pela ótica do narrador. O gesto frio, a ruga precoce, a expressão desdenhosa – tudo isso com-pondo “a expressão estranha” do rosto de Mário – seriam fruto do confrangimento de sua alma superior, observa o narrador, a quem o leitor não pode deixar de ter vontade de perguntar: o que atormenta, oprime e constrange o protagonista? e, por outro lado, o que o torna uma alma superior? Mário é superior por quê? superior a quem? su-perior para quê?

Quanto à primeira questão, ela parece estar respondi-da nas seis passagens transcritas que abrem esta parte do trabalho e no comentário parcial que esbocei. No entanto, situar o personagem na órbita da dependência é de suma importância para o nosso raciocínio, mas não é tudo. Tínhamos observado rapidamente acima que as situações que expressam o “sentimento de confrangimento” do per-sonagem formulam-se predominantemente por meio do discurso direto. Ou seja, é a própria consciência do perso-nagem que enuncia o mal-estar sobre a sua posição social, em situações de interlocução. Estrategicamente, digamos, o narrador fica à sombra das observações do personagem, e os comentários daquele se tornam menos enigmáticos se atentarmos para a divisão de perspectiva que compõe a caracterização do personagem como um todo. Esta resulta numa multiplicidade de pontos de vista da qual o narrador,

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em relação ao protagonista, se resguarda de comentários e juízos diretos sobre a condição social de Mário e seu significado. Não se pretende, neste artigo, aprofundar o sentido estratégico da posição do narrador alencariano; deixaremos isso para outro momento. Interessa destacar, por ora, o fato de a narrativa se compor por uma espécie de divisão de pontos de vista envolvidos na tarefa de caracte-rização do protagonista. A este, como se mencionou, cabe enunciar o lugar social precário que ocupa e o sentimento disso derivado; ao narrador cumpre fazer comentários algo abstratos referentes a esta situação, apenas indiretamente vinculados a ela, e também, e sobretudo, tecer comentá-rios e juízos positivos e elevados em face do caráter e da personalidade do protagonista.

Esta é uma divisão de perspectivas que, com outros objetivos ficcionais, já está presente em outros romances de Alencar, como O sertanejo. Aqui como lá, está na ins-tância narrativa a resposta à segunda questão, como já se pode perceber. Mas se n’O sertanejo o narrador punha a sua voz a serviço da configuração de um herói de histórias romanescas, aquele que fica a meio passo do mito e do homem, em O tronco do ipê, o narrador trata mesmo de homens. Mário não pode ser visto como herói no sentido que se atribui a Arnaldo Louredo, encarnação da figura nacional, ao menos em uma das suas facetas. No caso de Mário, o caráter elevado e positivo do personagem é chancelado pela autoridade do narrador. (E aqui nos aproximamos da segunda parte do nosso questionamento.) Caso se possa falar no aspecto “heroico” do personagem, este deve se referir à identidade que a instância narrativa expressa e mantém em relação às suas virtudes e qualidades morais e sociais. São caracterizações abstratas e genéricas (“inteligência vigorosa”, “alma superior”, etc.), em face de certas situações concretas vividas por ele, que alçam Mário à esfera elevada ao imputar uma espécie de aura de dignidade, de reputabilidade, de nobreza e de correção. Ao mesmo tempo em que definem a sua essência em relação a si mesmo, elas o fazem na diferenciação diante dos outros

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personagens. Estes, se podem ter alguma respeitabilidade social e de caráter, não se inscrevem no mesmo nível do protagonista. Assim, pode-se dizer que Mário é um herói na medida em que é exemplar e ilustrativo do homem elevado no que pode se considerar o contexto prosaico do mundo rural alencariano, enquanto Arnaldo, por sua vez, em seu viés positivo, sintetiza o aspecto heroico da particularidade nacional no contexto mítico-aventureiro do mundo rural alencariano.

Estas observações respondem apenas parcialmente, por ora, às perguntas da segunda parte de nosso questio-namento (o que torna Mário uma alma superior? ele é superior por quê? superior a quem? superior para quê?). Para dar conta integralmente delas e dimensionar a sua importância, temos de seguir os caminhos do protagonista ao longo da intriga.

Voltando à primeira parte do romance, é possível per-ceber que ela se organiza em torno de um único episódio. O passeio das crianças à cabana do escravo Benedito, que vai redundar no afogamento de Alice no boqueirão e seu salvamento por Mário. O incidente com a filha do barão da Espera ocorre coincidentemente no mesmo dia da morte do pai de Mário naquele lugar. A cena é primorosa tanto como composição quanto na variação e na oscilação do narrador em lidar com a sua matéria e com seus protagonistas.

Antes do acidente com Alice, tia Chica, escrava da fazenda e mulher de Benedito, conta para as “crianças da casa-grande” a história da mãe-d’água, a princesa das águas que, em razão dos maus tratos que sofrera seu filho, de tempos em tempos, “vem à terra para afogar a gente, e todo o menino que entra no rio, ela agarra para servir de criado ao filho” (ALENCAR, 1980, p. 28). Situação nar-rativa contada quase como um “causo”, ela busca algum grau de mimetização da oralidade, muito embora Alencar não faça marcação de registros linguísticos distintos. É pela voz da escrava preta que se firma esta espécie de história dentro da história, muito comum n’O tronco do ipê, em que o inaudito, o insólito se faz também presente. O inaudito

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surge a partir de personagens que se situam numa dupla periferia: na periferia social, todos eles são escravos e, claro, na periferia da história narrada, pois são persona-gens secundários. É como se o mágico, o extraordinário, o inexplicável somente pudesse se manifestar nas frinchas, à margem do mundo social. Os protagonistas alencarianos, Mário e Alice, destacadamente, por terem intenção à se-riedade, estão fora desse circuito, ou melhor, não se deixam esgotar ou se explicar nos termos do insólito. Como se a sua inserção neste âmbito pudesse ameaçar certa postura elevada que Alencar sempre guarda para seus personagens centrais.

A cena do afogamento de Alice é inicialmente apre-sentada como espécie de projeção do causo há pouco relatado por Chica, pois a aproximação e o contato inicial que a menina tem com o lago nos são apresentados como se das suas águas emergisse uma entidade, no caso a mãe-d’água, a seduzir a menina para que esta se lance às águas. Sedução traiçoeira, como não poderia deixar de ser. A cena vale transcrição para situar com precisão o contraste que queremos apontar:

Alice viu a moça [a mãe-d’água] acenar-lhe docemente com a fronte, como se a chamasse. A princípio não quis acreditar, tomou por uma ilusão, mas tantas vezes o movimento se repetiu, tantas vezes a moça lhe acenou graciosamente com a cabeça, que não pode mais duvidar.A mãe-d’água a chamava; e ela teve desejos de atirar-se em seus braços. Mas a fada estava no fundo do lago; sua mãe podia chorar; as outras pessoas sabendo ficariam com medo. Ela não tinha medo. A moça lhe sorria com tanta doçura e bondade!...Em vez de querer-lhe mal, havia de fazer-lhe tantos cari-nhos, contar-lhe cousas muito bonitas do reino das fadas e dar-lhe talvez algum condão, que a protegesse, que obrigasse Mário a lhe querer bem e a não ser mau para ela.Não ouvira mais nada, nem se apercebia do lugar em que estava. O lago, o rochedo, as plantas, tudo desaparecera, ou antes se transformara em um palácio resplandecente

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de pedrarias. No centro elevava-se um trono que tinha a forma de um nenúfar do lago; mas era de nácar e ouro. Aí sentada em coxins de seda, a moça abria os braços para apertá-la ao seio.A menina teve um estremecimento de prazer. Hesitou contudo por um melindre de pejo; mas o vulto de Mário perpassou nos longes daquela miragem arrebatadora; e a moça do lago outra vez sorriu-lhe, através daquela imagem querida. Então, Alice, atraída pelo encanto, foi se embeber naquele sorriso como uma folha de rosa banhando-se no cálice do lírio que a noite enchera de orvalho (ALENCAR, 1980, p. 34-35).

Até aqui, a passagem é deliciosa, porque soa como uma pequena fábula, prenhe de insinuações e ambiguida-des sensuais, apresentada com certa leveza de dicção, que nos remete a algo próximo a algumas formas das narrativas orais. Distante, portanto, do tom sério e grandiloquente com que Alencar faz caracterizar, comumente, os seus protagonistas, no qual as implicações morais saturam a linguagem, como bem notou Roberto Schwarz, em agudo estudo sobre o romance de José de Alencar (SCHWARZ, 2000, p. 43). Mas aqui o narrador, encravado nos fatos narrados, colados a ele e contando de sua poesia, suspende o juízo sobre o mundo narrado.

Logo em seguida, porém, o encanto mágico da cena é quebrado pela voz do narrador, que explica “racional-mente” o que, afinal de contas, ocorreu com Alice, nos seguintes termos:

Alice, debruçada sobre o parapeito de pedra, não percebera que fronteira a ela havia na rocha uma face côncava coberta de cristalizações que espelhavam o seu busto gracioso, do qual só a parte superior se refletia diretamente nas águas.Esse busto refrangido pela rocha e reproduzido pela tona do lago, representou aos olhos de Alice a sombra ainda vaga da mãe-d’água. Depois, quando uma réstia de sol esfrolou-se em espuma de luz sobre a fronte límpida da menina, e um raio mais vivo cintilando nas largas folhas úmidas da taioba,

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lançou reverberações da esmeralda sobre os louros cabelos, o busto se debuxou e coloriu.Tudo o mais foi o efeito da vertigem causada pela fascinação. O torvelinho das águas produz na vista uma trepidação que imediatamente se comunica ao cérebro. O espírito se alucina, e sente a irresistível atração que o arrasta fatal-mente. É o magnetismo do abismo; o imã do infinito que atrai a criatura, como o pólo da alma humana (ALENCAR, 1980, p. 35).

Para além do aspecto um tanto estapafúrdio da ex-plicação – o que, por si, evidencia ainda mais a eficiência estética da passagem anterior –, interessa anotar como a ação de Alice não pode ser considerada sob a cifra do mágico, do estranho. A sua conduta e caracterização, ao contrário dos personagens socialmente à margem, devem alçar-se a um grau de inteligibilidade do qual o narrador é o seu próprio fiador, ao preço de perder a dicção desata-viada e espontânea, que submerge à perspectiva armada do narrador no fluxo da matéria narrada. Diante de seus heróis, o narrador repõe a “dignidade” e a elevação do tom, admitindo apenas circunstancialmente – e como ilusão – que estes se subsumam à matéria estranha.

E é neste contexto reposto que também surge a ação heroica de Mário, que, com coragem e desprendimento, salva da morte a única filha do barão. O gesto de salvação empreendido por Mário não é menos significativo do modo de caracterização do personagem, na medida em que a cena apresenta o dilema que o protagonista traz em si e que define a sua trajetória durante toda a história. O trecho é longo, mas penso que vale a transcrição:

Mário, conhecendo a força de atração do abismo, imagi-nou que Alice ia precipitar-se; o seu primeiro impulso foi chamá-la e preveni-la; mas ele tinha às vezes instintiva repugnância por essa menina, a quem envolvia na aver-são que votava ao barão e a quanto lhe pertencia.

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Nisto, por um fenômeno muito natural nos momentos de emoção, as impressões atuais se travaram e confundiram com as recordações do passado, produzindo uma espécie de ninho moral, meio visão, meio realidade. Desenhou-se em sua imaginação, como um lampejo, a cena da morte do seu pai, tragado pela voragem, enquanto o barão em pé, na margem sorria com orgulho. No fundo desse quadro, como que lhe disputando a tela e transparecendo através da primeira cena, a fantasia do menino via Alice por sua vez tragada pelo boqueirão; na margem, o barão sucumbindo ao peso de tamanha desgraça, e ele, Mário, em pé sobre o rochedo, sorrindo-se como o anjo da vingança.Nesse momento ouviu-se o soluço profundo da onda. Alice, atraída pela vertigem, acabava de precipitar-se.O abalo que sofreu Mário vendo desaparecer o corpo de Alice, espancou de seu espírito a visão, para mostrar-lhe a realidade. Havia nesse menino um coração precoce como seu espírito, já capaz dos grandes ódios, como dos rasgos de heroísmo.3

Diante da catástrofe ele se esqueceu quem era a vítima, para só lembrar-se que uma vida corria perigo. A idéia de vingança, que afagara em um instante de cisma, agora o enchia de horror. Como pudera associar uma memória querida à desgraça de outrem?Por isso o nome de seu pai lhe viera aos lábios, como um grito de perdão e ao mesmo tempo uma santa invocação, no momento em que ele se arrojava no remoinho para salvar Alice, ou talvez morrer (ALENCAR, 1980, p. 57).

A passagem é muitíssimo significativa, pois ela dra-matiza o núcleo central do conflito do protagonista com todos os elementos e personagens envolvidos presentes na encenação, direta ou indiretamente. Ela se inicia com o sentimento que temos destacado como dominante nesta primeira parte do romance e que lhe dá o tom: “a instin-tiva repugnância por essa menina, a quem envolvia na aversão que votava ao barão e a quanto lhe pertencia”. Tal aversão faz com que, a princípio, Mário refreie seu gesto de salvamento de Alice. No passo seguinte, num tour de force alencariano muito expressivo, Mário, no momento de

3 Grifos meus.

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salvação, imagina em sua mente uma dupla sobreposição de imagens: uma que encena a desconfiança em relação ao que houve com o seu pai no passado e outra que dá forma ao desejo de retaliação. Na primeira cena, tem-se o seu pai sendo “tragado pela voragem” das águas do boqueirão, com barão próximo, regozijando-se com a tragédia; na outra, simétrica oposta da anterior, Alice é que é devorada pelo boqueirão, enquanto seu pai sofre vendo o fato, e Mário sorri como “anjo vingador”.

A imagem projetada pelo menino, no momento de risco iminente, formula a equação do seu dilema, que começa no passado e se estende ao presente: o seu pai e o barão compõem o binômio do passado, enquanto Mário/Alice/barão repõem o problema no presente. A costurar ambos os tempos num tecido comum, real e/ou imaginário, está um dos eixos principais que norteiam as relações dos personagens no romance rural, a noção de morte travestida em diversas formas. Enquanto a primeira cena está susten-tada em fatos ocorridos no passado, centrada na morte do seu pai com a culpa ou não de Joaquim Freitas (a suspeita só vai encontrar alguma explicação quando do retorno de Mário da Europa, adulto, na segunda parte do romance), a segunda emerge, durante toda esta primeira parte, como uma potencial atitude a ser desferida, o gesto que está du-rante todo o tempo contido e expresso no ressentimento do menino, mas que não se cumpre de fato. Todavia, é um desejo reprimido que pode ter a sua contraface simbólica expressa sem meias tintas, como nesta passagem. Real ou imaginada, ocultada pelo passado ou potencializada pelo presente, a morte é moeda comum a ligar os dois tempos. N’O tronco do ipê, ela não se presentifica como episódio, como forma de ação violenta propriamente dos persona-gens, mas paradoxalmente ela paira no ar e tem a força determinante de, por um lado, ser expressão psicológica do protagonista e, por outro, estar diretamente relacionada ao destino do personagem e à armação do enredo.

De outra parte, é interessante notar que a dupla imagem que formula o impasse do personagem vem emol-

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durada entre as duas perspectivas narrativas antes men-cionadas, e que, por isso, foi destacada na transcrição. A repugnância a Alice, ligada que está à aversão que Mário devota ao mundo do barão, é enunciada pelo narrador, mas a perspectiva é a do personagem. Mesmo em discurso in-direto, o trecho poderia fazer companhia às sete passagens iniciais transcritas, com a diferença fundamental de que o trecho incide menos diretamente sobre a posição social do protagonista e mais sobre os sentimentos e impulsos que bolem com Mário em face da suspeita com relação à morte de seu pai. Pode-se dizer que se trata de uma referência indireta ao que está em jogo naqueles trechos. Isso mostra que o foco de apreensão de Mário diante de sua condição de dependente tende a oscilar entre a enunciação objetiva e direta do mal-estar causado por tal posição (como nas sete passagens) e a trama das relações pessoais que definem a natureza social do estado de subordinação. A primeira é parte constituinte do enredo; a segunda o compõe – mas, repita-se, a fonte a partir da qual se articula esta matéria é parte da consciência do próprio personagem.

O que não parece acontecer na parte de baixo da moldura, que é toda ela juízo do narrador sobre o prota-gonista: “Havia nesse menino um coração precoce como seu espírito, já capaz dos grandes ódios, como dos rasgos de heroísmo”. Se os ódios ficam por conta do personagem, os rasgos de heroísmo do menino, quem nos convence deles é o narrador. A parte inferior da moldura, que guarda a voz do narrador, parece ser também estratégica, pois ela neutraliza a imagem perversa projetada por Mário, pois, ao fim e ao cabo, este se eleva pela avaliação feita pelo narrador, confirmada pelo desprendimento com que vai realizar o salvamento de Alice logo a seguir.

Mas Mário se sente traído pelo seu próprio gesto; após o salvamento, imagina poder usar o feito como um pequeno trunfo, um pequeno débito do proprietário em face do dependente. Assim acredita Mário; todavia, é o contrário o que ocorre: “Praticando o seu ato de heroís-mo, cuidara esmagar o barão sob o despeito de lhe dever,

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a ele um coitadinho, a vida de sua filha. Entretanto era o barão que o esmagava com sua nobre e suntuosa genero-sidade” (ALENCAR, 1980, p. 75). Mário continua a se ver como “coitadinho”, e o barão, se antes o “esmagava” pela indiferença e por sua posição social, agora também o esmaga por sua gratidão e consideração. Uma aproximação que o protagonista repudia e procura se distanciar como pode. Irônica e paradoxalmente (?), a sua fuga à gratidão patriarcal redunda no reforço, na confirmação e na evidên-cia da relação de dependência à qual Mário se encontra submetido. Embora assim não se configure, a princípio, à consciência do personagem e muito menos à do narrador, o modo de “escapar à incomoda posição” é aceitar mais proteção e favores, que consistem em estudar na corte e depois em Paris com o beneplácito do generoso barão da Espera. Isso corre subterraneamente, está presente sem que seja necessário ser enunciado por alguma instância; emerge como ponto cego em meio àquele duplo andamento já apontado, entre o mal-estar ressentido do protagonista, consequência da sua posição social precária e o elogio/elevação do narrador às inclinações do personagem. Pois, antes de ver como aspecto das relações de dependência, o narrador comenta a viagem de estudo de Mário como elemento que cai como uma luva, não na mão, mas na índole e no espírito do mancebo. Do peso que a gratidão da salvação de Alice criara para ele a ponto de chegar “a arrepender-se de seu impulso” (expressão de sentimento pouco nobre para um herói), a prosa logo a seguir faz o balanceio oposto a partir da perspectiva do narrador, como se percebe na passagem:

[...] Mario era também movido por esse estímulo nobre (o ardor pelo estudo). Havia no seu espírito a ardente curiosidade de saber, que revela as energias de uma inteli-gência precoce. O segredo das grandes vontades, como dos grandes talentos, não é outra senão a intuição da incógnita (ALENCAR, 1980, p. 75-76).

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Do resultado da sua atitude de coragem e desprendi-mento, que o empurra ainda mais a sua incômoda posição social, fazendo perseverar o seu rancor aos da casa-grande, ao elogio do narrador às suas inclinações, a viagem de es-tudo é vista, por um lado, como desafogo pelo personagem e, por outro, como complementar à “natureza” talentosa do rapaz pelo narrador. Em nenhum dos casos, e espe-cialmente por parte de Mário, por ora, ela é vista como elemento derivado da condição social de dependência em que se encontra.

De outra parte, quando se diz que o feito de Mário é o núcleo dramático central da primeira parte, a grande e principal bifurcação da narrativa, para se usar a expressão de Franco Moretti4 (2009, p. 826), ela o é tanto simboli-camente (Alice, não nos esqueçamos, foi salva pelo rapaz no mesmo dia e lugar em que o seu pai morreu) quanto na articulação do enredo, na medida em que é ela o fator que prepara a mudança da intriga.

A saída de Mário da fazenda Nossa Senhora do Bo-queirão até o seu retorno representa uma elipse temporal de sete anos. A segunda parte do romance narra a sua volta à propriedade do barão. A supressão desse intervalo de tempo é carregada de significados. De um modo geral, a mudança é o que caracteriza, a princípio, este segundo momento do romance. Não só porque os protagonistas se tornaram adultos, mas, sobretudo, porque Mário volta transformado, ou assim quer acreditar. Do menino turrão, rancoroso, sarcástico, perverso, rude, tosco e algo vingativo do mundo rural brasileiro, ele se faz o adulto sóbrio, pon-derado, educado, refinado e cosmopolita. Mário reaparece como um gentleman, respeitado por todos e tendo muito a contar sobre as coisas do mundo, após fazer o seu pre-paratório no Rio de Janeiro e estudar letras e engenharia em Paris. O rapaz toma verdadeiramente um banho de civilização – mais do que nunca o clichê funciona para o personagem alencariano.

Não menos significativa também é a modificação que incide sobre o tom da prosa decorrente da ideia de

4 Para Franco Moretti, “a bifurcação é um ‘possível’ desdobramento da trama”, a põe em movimento e modifica o seu curso; ao contrário do preenchimento, que é aquilo que “acontece entre uma mudança e outra”.

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que o tempo ausente trabalhou sobre todas as coisas, os indivíduos e seus humores. Ela se distensiona, se arrefece em relação à primeira parte, que é toda crispada, nervosa, irascível. É feita de pequenas escaramuças e expectativas amorosas, intrigas casamenteiras, conversas afáveis, encon-tros e festividades sociais e algum senso de humor irônico em várias situações. O próprio olhar do narrador como que se destrava e se espraia pelo mundo rural, captando as coisas de modo ameno, mais atento, detalhado sobre os personagens, a fazenda e as relações (não menos amenas) que ali ocorrem.

Este distensionamento no núcleo conflitivo abre es-paço para algo que já estava presente na primeira parte: uma espécie de plasticidade social, de diversidade social, na medida do possível em que esta diversidade possa estar presente nos limites do mundo patriarcal brasileiro. Não se trata propriamente de uma diversidade que tenha, de todo, efetividade na dimensão social do enredo.5 A variedade de tipos sociais, já presente na primeira parte, se amplia e em muitos momentos toma o primeiro plano da cena narrativa, todavia, o peso da condição social de cada personagem tem papel coadjuvante no desenrolar dos acontecimentos centrais. É uma presença sem peso no desenvolvimento das ações centrais, embora expressiva no nível da composição, uma vez que representa mudança de tom e de dicção de registros nesta, ao mesmo tempo em que fala muito da dimensão do olhar social de José Alencar para a sociedade brasileira.

Esta plasticidade social que põe em movimento os primeiros onze capítulos da segunda parte está presen-te, por exemplo, no modo engraçadíssimo e não menos mordaz como o narrador nos descreve a figura do parasita Domingos Pais, talvez o primeiro agregado apresentado explicitamente como tal na ficção brasileira, e da figura não menos cômica que é o poetastro padre Carneiro. Neste mesmo quadro se inserem os festejos natalinos na casa-grande e o batuque dos escravos na senzala, este mais referido do que apresentado.

5 Para uma comparação contrastiva, penso na formulação de Franco Moretti quando diz que Balzac cria o “romance de complexidade”. Nos termos do crítico italiano: “A primeira novidade da Paris de Balzac – e ela salta aos olhos, se se pensa em Sue, ou Hugo – é a diversidade social de seu enredo: velha aristocracia, nova riqueza financeira, comércio de classe média, demi-monde, profissionais, jovens intelectuais, escriturários, criminosos... Todos esses grupos sociais – segunda novidade – interagem todo o tempo, em muitas direções e em combinações sempre novas” (MORETTI, 2003, p. 115-116).

6 Assim nos é apresentada a figura de Domingos Pais: “Este curioso personagem ocupava na casa do Barão da Espera o emprego de compadre. Muitas vezes talvez ignorem a natureza e importância deste cargo, que existe em quase todas as casas de ricos

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Domingos Pais, curiosamente, surge de maneira indi-reta e oblíqua como uma complementaridade antitética a Mário. Enquanto o dilema de Mário se expressa no pro-fundo incômodo e mal-estar em se encontrar asfixiado nas teias da dependência e do favor, Pais, ao contrário, busca esta estratégia como forma de sobrevivência. A descrição cômica que o narrador faz do personagem, no final ainda da primeira parte, expõe com clareza a consciência de Alencar sobre a presença desta figura na sociedade brasileira do sé-culo XIX.6 O que vale destacar é a diferença de tratamento dada a cada um dos personagens. Um herói como Mário, do ponto de vista alencariano, será sempre um sujeito que pede um tom elevado e sóbrio para ser circunscrito numa aura de seriedade e dignidade; tal tratamento diferenciado nos remete de algum modo à clássica divisão dos gêneros e da natureza social dos personagens a serem representados. Só que aqui estamos diante de personagens que a princípio ocupam a mesma faixa social – a da dependência –, o que os diferencia é, portanto, não a sua condição de classe, mas a função que exercem na narrativa – a qual se traduz numa hierarquização no interior da estrutura narrativa que poderíamos chamar, de um modo um tanto impreciso, de estamental. Significa dizer que a relevância de Mário advém de sua posição como protagonista da história, de seu campo de atuação central na estrutura da narrativa, posição esta que não admite a blague, o comentário jocoso por parte do narrador. Sequer o comentário deste como um agregado, conforme ocorre com Domingo Pais.

Se quisermos fechar o cerco ainda mais a respeito do modo como a dependência é central n’O tronco do ipê, que, se não emerge como consciência social objetiva primeira no plano da narrativa, é corrente subterrânea que de modo oblíquo e indireto atinge todos os elementos da estrutura narrativa – se quisermos fechar este cerco, não seria equi-vocado dizer que o romance se constitui numa espécie de relação concêntrica fundada de algum modo nas relações de dependência. De Mário, passando pelo barão da Espera, até Domingos Pais, é a relação de proteção, dependência e

fazendeiros. Um compadre não é parente, nem hóspede, nem criado; mas participa destas três posições; é um ente maleável que se presta a todas as feições e toma o aspecto que apraz ao dono da casa; é um apêndice da família da qual ele se incumbe de suprir quaisquer lacunas, e de apregoar as grandezas. Há na casa outros compadres, mas são conhecidos por seu nome: o compadre por excelência, o compadre da família, aquele que não precisa de outro qualificativo, é ele, o homem de todas as ocasiões, o comensal efetivo, pronto sempre para conversar, andar, jogar e comer, conforme a veneta do protetor a quem anexou-se. [...] Nenhum compadre acumulou jamais tão várias e importantes funções como o Sr. Domingos Pais. Era recado vivo para os vizinhos e bilhete de convite para as festas ou banquetes. Servia de parceiro do solo, sendo preciso; fazia de carrancho no voltarete; jogava o gamão com a baronesa, e o burro com as crianças que não terminavam sem deitar-lhe duas orelhas de papel. Fazia dançar as velhas e feias que não achavam par; estava sempre disponível para padrinho das crias da fazenda; ajudava a missa; e finalmente, além de muitas outras incumbências, paroquiava as bonecas de Alice, isto é, celebrava os batizados e os casamentos de brinquedo” (ALENCAR, 1980, p. 74).

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favor que marca a trajetória destes personagens. Neste caso, não se deve perder de vista a situação do barão: Joaquim de Freitas, depois da morte de seu pai, tornou-se protegido do comendador Figueira, avô de Mário, “fazendeiro respei-tável, sabedor do desamparo em que ficara o menino, da amizade que lhe tinha o seu José (pai de Mário)” e que por isso o acolhera. Com esta mesma proteção, ele abre na vila uma pequena casa de negócios, e é desta relação também que deriva a possibilidade de se apropriar de modo obscuro e escuso da fazenda e, por consequência, enriquecer.

Como já se disse, o que diferencia os três personagens é a relevância que eles têm na hierarquia da economia do romance e, correlativamente, o tratamento discursivo dado a eles. Se Mário e Domingos Pais se apresentam como casos extremos, que vão do sério-elevado ao jocoso, com o barão passa-se por uma espécie de zona intermediária em que se combina e se fazem presentes ambas as dicções. O narrador faz ironia “severa” sobre a maneira como Joaquim de Freitas obteve o seu título de barão do mesmo modo com que, em tom de blague, descreve o dedo defeituoso do personagem que aponta para si mesmo, indício de autodenúncia invo-luntária do seu envolvimento com a morte do pai de Mário. Nem por isso, contudo, ao personagem deixa ser atribuída uma aura de respeitabilidade e de espírito nobre, a qual atinge seu ponto máximo no desenlace do enredo quando abre mão da fazenda, passando-a para Mário, num misto de sentimento de quem quer livrar-se do peso do passado suspeito e de desprendimento.

Observe-se, portanto, que as formas da dependência definem e põem em movimento o núcleo conflitivo da intriga, que tem a sua origem no passado e se projeta no presente. Como elemento nuclear do conflito no presente, elas têm desdobramento e se revestem de seriedade (no caso de Mário), entremeada com algum tom jocoso que diz respeito à posição precária e instável daqueles que provêm das relações de dependência, mas que não são propria-mente o protagonista do entrecho (no caso do barão). Já como elemento que se espraia também pelas franjas da

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narrativa, as formas da dependência, nesta quadra, não têm desenvolvimento nem desdobramento no plano do enredo, caracterizando pequenas situações e cenas narrati-vas, que são apresentadas com uma linguagem espontânea de tonalidade humorístico-satírica (no caso de Domingos Pais e também do padre Carneiro).

Retomando nosso comentário sobre a segunda parte do romance, com a atenuação do núcleo conflitivo e seu deslocamento momentâneo para um canto da narrativa, as cenas satírico-humorísticas ganham em destaque jun-tamente com comentários e situações que adquirem um ar de crônica, de fait divers sobre o mundo rural.7 Mas o arrefecimento da tensão está estreitamente ligado à mudança do protagonista acima mencionada. O Mário adulto, refinado e civilizado procura por inteiro tomar o lugar do Mário-menino, acreditando poder fazer com que o Mário do passado, ranheta e ressentido, fosse um, e o Mário do presente, outro. Assim se refere a si ao falar com Alice: “– Você está moça. E eu devo tratá-la por todos os títulos com respeito que não sabia ter quando menino. Mas desculpe aquele roceirozinho atrevido e malcriado que lhe fez derramar tantas lágrimas. Era uma crian-ça doentia!...” (ALENCAR, 1980, p. 93).8 Num outro momento, também numa destas conversas que vão aos poucos tornando Mário e Alice mais íntimos, a ponto de transformar o sentimento fraterno do protagonista pela moça em sentimento amoroso, sempre correspondido por parte dela, que o admira desde a infância, Mário fala sobre o passado e como pretende se ver distante dele:

Mário parou um instante como se hesitasse ainda:- Mas essas recordações me faziam mal! (As de infância, quando já adulto, na corte e em Paris.)- Saudades? perguntou Alice com ternura.- Oh! Não! A saudade é uma doce tristeza, e a minha amargava. O que me deixavam aquelas cismas não era o enlevo do passado, mas um tédio inexprimível desse tempo que não desejava ter vivido. Sempre, depois disso, ficava-

7 Não é para menos que, no ensaio instigante sobre Alencar em que declara a sua absoluta admiração pelo autor de Iracema, Gilberto Freyre formula o principal do seu comentário sobre O tronco do ipê, o qual se coloca numa visada geral da obra alencariana, a partir de observações do narrador e dos personagens que expressam a plasticidade social que estamos procurando indicar nesta segunda parte inicial da narrativa (ALENCAR, 1951).

8 Grifos meus.

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me por muitos dias a alma toldada, como a água daquele córrego, quando agitam o lodo que está no fundo. A razão do homem julgava as ações do menino, e condenava-o como uma criança ingrata e perversa!- Ah! Mário, que severidade! - Mas, balbuciou o moço com voz surda, o mais cruel era que esse menino louco se indignava contra o homem, chamava a razão de cobardia, a gratidão de cobiça!..Observando a sombra que estas palavras lançavam no rosto da menina, ele sofreou o impulso de suas recordações.- Esse menino louco, eu o consegui enterrar bem longe daqui... felizmente. Esqueça estas palavras, Alice, e deixe-me esquecer o meu triste passado. Suponha que nos conhecemos anteontem [quando do seu retorno ao Brasil]. Como se eu fosse um irmão nascido em terra estranha, que depois de tantos anos de exílio, voltando à pátria, encontra uma linda maninha, a quem não co-nhece, mas ama de todo o coração!9 (ALENCAR, 1980, p. 110)

Enterrou? Esqueceu? Veremos mais adiante que não de todo. De qualquer maneira, o abrandamento da tensão conflitiva se faz possível porque Mário retorna com a in-tenção de se desembaraçar de vez do seu “triste passado”. Tal fardo faz o protagonista fantasiar a ideia de ter nascido em terra estranha, sem nem por isso, curiosa e contradi-toriamente, deixar de voltar à pátria e, mais que tudo, de retornar como quem retorna à família. Neste sentido, na duplicidade em que o personagem se percebe constituído – entre a razão do adulto que julga o menino e o condena por sua ingratidão e perversidade e o menino louco que ainda desponta indignado chamando a razão de covardia e a gratidão de cobiça – neste sentimento duplo e contra-ditório, Mário busca sentir-se, compreender-se e ver-se como um sujeito integrado à casa-grande e, por extensão, à família do barão, a uma posição que ali lhe corresponde e o estivesse aguardando desde sempre, sem o ônus do pas-sado – se isso fosse possível. O desejo de se desenraizar (do passado) para ocupar uma posição prestigiada no presente

9 Grifos meus.

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sem sombras para si mesmo, ou, dito pelo avesso, já que o movimento é reversível, o desejo de se enraizar no presen-te da casa-grande e da família fazendeira jogando para a sombra o passado, é o que caracteriza a transformação de Mário, permitindo, ao mesmo tempo, do ponto de vista da composição, que esta se abra para um quadro social mais plástico e diverso do que o retesamento constitutivo que centraliza as ações do núcleo conflitivo, especialmente na primeira parte do romance.

Um parêntese importante aqui. É interessante assi-nalar que é nesse instante em que se percebe e se sente adaptado aos privilégios que a casa-grande representa que Mário tece com desenvoltura comentários “ajuizados” e “esclarecidos” sobre o Brasil. Numa conversa de salão com o conselheiro Lopes, na qual este faz observações ao agrado dos fazendeiros da roda visando a sua reeleição, o rapaz também dá a sua opinião sobre a escravidão:

- Eu queria, disse ele [o conselheiro] concluindo, que os filantropos ingleses assistissem a este espetáculo, para terem o desmentido formal de suas declarações, e verem que o proletariado de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso escravo.- É exato, disse Mário. A miséria das classes pobres na Europa é tal, que em comparação com elas o escravo do Brasil deve considerar-se abastado. Mas isso não justifica o tráfico, o repulsivo mercado da carne.- Utopias sentimentais!...- Perdão; eu compreendo que nos primeiros tempos de colonização o tráfico fosse uma necessidade indeclinável. A sociedade humana não é uma república de Platão, mas um ente movido pelos instintos e paixões dos homens de que se compõe. Eram precisos braços para explorar a riqueza da colônia; o europeu não resistia; o índio não sujeitara-se; compraram o negro; mais tarde o tráfico tornou-se um luxo, e produziu um mal incalculável porque radicou no país a instituição da escravatura (ALENCAR, 1980, p. 113).10

10 Penso não ser de todo equivocado dizer que esta conversação tem muito da posição de José de Alencar sobre a escravidão, particularmente na posição “ilustrada” de Mário. O tom, a abordagem do problema e toda a carga ideológica são muito semelhantes às Cartas políticas de Erasmo (1867), sobretudo a segunda e a terceira cartas (ALENCAR, 2008). Também Gilberto Freyre, no ensaio antes mencionado, chama atenção para a passagem ao destacar a posição alencariana muito próximo à sua tese sobre a sociedade patriarcal brasileira dos meados do XIX, escrita em inglês e apenas há pouco traduzida para o português. A identificação de Freyre com Alencar, entre outras razões, se deve ao fato de que, para o autor de Casa-grande e senzala, José de Alencar não se deixava “dominar por uma sistemática oposição a tudo que fosse patriarcal, escravocrata e quase feudal na sociedade brasileira de então para enxergar belezas de organização social e encantos de cultura na Europa triunfalmente burguesa ou nos Estados Unidos igualmente burgueses nos seus modos nacionais de ser” (FREYRE, 1951, p. 31).

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Escravista ma no troppo, Mário fala com o desembaraço de um homem liberal, como quem sabe o seu lugar certo na vida.

Voltando ao ponto anterior, se prestarmos um pouco mais de atenção, talvez se possa compreender que o anseio de apagamento do passado tem apoio e configuração forte no próprio modo de estruturação da narrativa. Mais parti-cularmente naquele movimento de trânsito de passagem da primeira para a segunda parte que já se havia comen-tado. Como procedimento literário, a elipse temporal que caracteriza a passagem entre esses dois momentos, se traz em si a transformação de Mário, não deixa de traduzir um efeito de silêncio sobre o passado do personagem. Isso porque a matéria suprimida, por assim dizer, diz respeito enfaticamente aos elementos da transformação, ao novo modo como o Mário adulto, cosmopolita, ressurgirá aos olhos do leitor, e não aos resíduos do passado que talvez tenham permanecido no espírito modificado.

E serão estes, no entanto, que reaparecerão na segunda metade desta parte da obra. Com isso, os elementos que até então davam forma, vida e movimento ao afrouxa-mento da narrativa voltam a se recolher, e o retesamento do núcleo dramático se impõe novamente como eixo dominante, embora não exclusivo. A cena que rompe as comportas do passado se situa no final do capítulo X, mas os seus efeitos serão apresentados nos capítulos seguintes. A “gota de fel” e a “cortesia glacial” (embora não mais a rudeza anterior, dos tempos de menino) que regressam ao espírito do personagem são disparadas no momento em que o barão reforça a insinuação de algumas mucamas sobre um possível casamento entre Mário e Alice. O agora enge-nheiro se sente como se o seu destino já estivesse planejado previamente pelas mãos e vontade daquele que gostaria de não mais sentir e imaginar como fiador de sua vida social. Ato contínuo, Mário se afasta de Alice quando estava se fazendo próximo e íntimo dela, sem que a moça se “atine com a causa da súbita mudança de Mário” (ALENCAR, 1980, p. 116). A voz sardônica e algo cafajeste que Mário

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escutava em si (e de si),11 e que a sua estada na Europa fez aplacar pouco a pouco por lá, volta a ser ouvida com toda a intensidade pela consciência do personagem. É o mal-entendido da situação, pois a afirmação do barão se dera ao acaso dos comentários feitos pelas lépidas escravas domés-ticas, que faz ver que a alma do menino “ficara em hiberna-ção” tão somente. Civilizado e partido, assim ressurge este “terceiro” Mário, síntese que contém o passado ressentido e o presente que se quer autossatisfeito na dependência e no interior da casa-grande. Nesta situação, como diz o narrador ao final do capítulo intitulado significativamente como “Ressurreição”, Mário acorda como “o jovem doutor chegado ultimamente da Europa” e dorme como “o órfão de outrora com todas as suas paixões” (ALENCAR, 1980, p. 120). Assim, a segunda metade desta parte do romance se caracteriza pela dramatização da consciência cindida de Mário, a qual tem o seu correlato no vaivém no plano das ações. Estas se referem à tentativa de esclarecimento dos acontecimentos do passado para Mário e ao desfecho da relação amorosa com Alice, a qual somente se torna possível com acerto (acerto?) de contas com o passado. Talvez não seja exagero dizer que esta narrativa de Alencar seja a única que encene a sério, no romance brasileiro do século XIX, a consciência por assim dizer traumática do de-pendente; ou se quiser, de um virtual proprietário tornado protegido, agregado. A encenação da sua posição pode se apresentar numa conversa à mesa durante o jantar junto a outros convidados, quando é instado a falar sobre o seu futuro, comentar sobre a possibilidade de emprego na corte ou sobre a permanência na fazenda. Depois de Mário dizer que um sujeito como ele, que não tem mais família para prender a alma em algum canto da terra, pode viver bem em qualquer lugar por dever ou interesse, o seu interlocutor sugere que ele esteja gracejando ao insinuar que “não se pertence”. Ao que ele responde, numa conversação em que também Alice se manifesta:

11 A voz “íntima” assim fala com/para Mário quando este se encontra em tour civilizatório: “– Chamas inveja à repugnância que a virtude experimenta pelo crime; grosseria, às repulsas da dignidade ultrajada; loucura, às angústias e tribulações de uma criança, forçada pelo desamparo a aceitar a subsistência da mão que talvez assassinou-lhe o pai, e receber como esmola humilhante as migalhas de uma riqueza que talvez lhe foi roubada? Não há dúvida! O Sr. Mário Figueira civilizou-se! Adquiriu essa admirável ciência que ensina ir com o mundo; a aceitá-lo como ele é realmente, e não como o sonham os moralistas. O barão, alma de têmpera antiga, tipo raro de amizade, lembrado dos benefícios que devia a José Figueira, se desvela em proteger o filho do seu amigo. É essa a realidade da situação. Por que pois o Sr. Mário Figueira não há de afagar um tão nobre e generoso patrono, e tirar dele todo o proveito possível enquanto não aparece coisa melhor? Se no futuro se descobrir que o barão espoliou com efeito a seu amigo, melhor, porque restituirá o que roubou, se nada se descobrir, ao menos não perdeu tudo!” (ALENCAR, 1980, p. 118)

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- Sua duvida é que me parece um gracejo. Pois há neste lugar quem ignore isso? Um homem que desde o berço viveu e educou-se à custa de outro, representa um capital alheio; é o título e a garantia de uma dívida.- Não diga isso, Mário! atalhou Alice ressentida.- Se é a verdade! O dono do papel em que se escreveu, pode julgar-se autor do livro? Que somos nós ao nascer, que era eu principalmente, eu, pobre órfão, senão uma página em branco? Algum valor que porventura eu tenha hoje, e que não teria se me abandonassem, pertence a quem me deu os meios de adquirir.- Mas ninguém de certo aqui pretende esse direito, Mário! exclamou Alice. Posso assegurar-lhe que todos ao contrário o respeitam. - Não impede essa generosidade que eu cumpra o meu dever. Considero-me preso a esta casa e à vontade de seu dono, pelo vínculo de uma dívida. Não poderia retirar-me daqui por meu alvitre sem espoliar a outrem de sua pro-priedade (ALENCAR, 1980, p. 123).

O sujeito meio escravista meio liberal que, páginas atrás, falava com desenvoltura sobre a escravidão, como se nada disso dissesse respeito a si, agora se percebe como um emparedado social. Repõe-se, noutro tom, o mal-estar inicial para o qual se chamou atenção páginas atrás. A investidura civilizatória e esclarecida com que Mário ima-ginou driblar a sua precariedade social é instrumento frágil e esborracha-se no ar a um simples comentário em que o personagem sente abalada a sua fantasia de autonomia individual. À aspereza sardônica e ressentida do menino tomam lugar a comparação metafórica e, sobretudo, os termos da “racionalidade” de uma transação mercantil na qual se vê como “capital alheio”, sendo ele mesmo “o título e a garantia de uma dívida”; e a sua própria reputação está em não infligir danos ao proprietário. A ironia existente – algo na surdina – traja, agora, a seriedade dos negócios do mundo dos adultos de que Mário é parte e objeto.

Em meio às palavras do barão sobre o destino do prota-gonista e o estreitamento das relações entre Mário e Alice,

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Mário, torturado, decide deixar a fazenda e reconstruir a sua vida.12 Vislumbra, com esta atitude, enterrar de vez o passado. Numa espécie de solilóquio, assim reflete Mário a respeito da sua situação nesse momento:

- Está morto o passado: o homem que fui, lancei-o ao nada, como um despojo inútil. Renasço agora outra vez, e como a primeira, para a pobreza e para a luta; porém levo demais a razão, e de menos o remorso. Sim, o remorso, a flagelação da vítima a receber o benefício da mão assassina! (ALENCAR, 1980, p. 137)

Pensa consigo que a sorte enviou as riquezas de que não poderá usufruir – a do barão e a da sua relação com Alice, faces da mesma moeda. Esta ventura, segue refle-tindo,

trazia no seio um verme que havia de devorar. Poderia eu jamais arrancar de meu coração esta suspeita que o conta-mina como uma lepra? A todo instante, entre os enlevos de amor de Alice, no meio dos gozos da riqueza, não ouvira o riso estridente e sarcástico da consciência, a escarnecer a felicidade, que fora o salário pago pelo crime à vil impiedade do filho?... (ALENCAR, 1980, p. 137)

Esta tensão que se rearticula no espaço interior do personagem e na relação com os demais personagens diretamente envolvidos não é, por assim dizer, levada às suas últimas consequências. As ações do desenlace tendem pouco a pouco a neutralizar o espírito cindido do personagem. O problema das relações de dependência vai sendo relegado a segundo plano no nível da consci-ência do protagonista e da narrativa em geral, e a sua preocupação se desloca sobremaneira para a tentativa de dimensionar o grau de envolvimento do barão na morte de seu pai. Enquanto as consequências da morte de José Figueira se mostram vinculadas à posição social precária de Mário, o romance ganha em tensão no nível da história e num certo grau de complexidade na carac-

12 Mário assim explica para Alice a sua retirada da fazenda: “– Alice, acredite. Se há algum meio de unir-nos algum dia, é essa ausência. Minha vida aqui é uma vertigem, uma alucinação; cada pensamento é um desespero, senão uma loucura; cada instante um perigo. E se fosse só para mim! Mas para aqueles a quem amo. Longe daqui, talvez eu possa esquecer; talvez que a fatalidade canse...e... eu volte um dia. Senão...” (ALENCAR, 1980, p. 137). Na verdade, Mário não explica nem esclarece nada àquela que agora já é a mulher de seu coração. Alice, aliás, nunca saberá do passado que envolve o barão e a família de Mário. Ambos protegerão a moça dos “infortúnios” desse momento. Alice toma conhecimento apenas do mal-estar do rapaz, sem pressentir os seus motivos mais profundos.

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terização social do personagem. Todavia, na medida em que estes dois aspectos se descolam, o romance perde o seu chão social, ou por outro lado, este parece se tornar já um falso problema.

O desenlace d’O tronco do ipê se resume, por um lado, na tentativa de Mário em descobrir a verdadeira parti-cipação de Joaquim Freitas na morte do seu pai a partir de algumas informações casuais recebidas e também por intrigas, e, por outro, no esforço do barão em realizar a felicidade de sua filha, fazendo-a casar com o rapaz. Para convencê-lo a isso, utiliza-se de vários expedientes, da tentativa de suicídio – no boqueirão... –, como forma de não se tornar um obstáculo ao casamento, até a transfe-rência de toda a sua riqueza para o protagonista, fazenda do Boqueirão inclusa. A suspeita de crime, do gesto ilícito que até então se misturara e ficara em segundo plano em face da posição instável e precária de Mário se torna, no momento do desenlace, o centro do impasse, deslocando com isso também a natureza do problema, que passa da percepção e sentimento da constrição social para o da instância moral.

Em carta do próprio barão dirigida ao protagonista e também pelo negro Benedito, que presenciou a cena da morte de Figueira a distância, Mário fica sabendo que Joaquim Freitas esteve, de fato, envolvido no episódio da morte do seu pai. As versões que se apresentam são obs-curas ou, para dizer o mínimo, ambíguas para se atribuir responsabilidade direta e plena a Joaquim sobre a morte de José Figueira. Nas duas versões fala-se de medo, e assim o barão se explica: medo de morrer junto com o amigo no boqueirão, de ser levado pelas águas; foi o sacrifício que ele não fez. O crime que ele se reputa é o de manter indevidamente a riqueza da família Figueira, mas isso teria sido feito em nome do amor, argumenta o barão. Algo da imprecisão dos acontecimentos é possível que tenha função estratégica importante. O lusco-fusco das verdadeiras intenções de Joaquim de Freitas o resguarda da desqualificação moral mais profunda para a história

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e também aos olhos dos leitores da época. Entretanto, e em princípio, por qualquer das razões que seja, o crime está configurado aos olhos e ao coração do protagonis-ta. A alternativa que vai se vislumbrando para Mário é perdoar ou não o barão, qualquer que tenha sido a sua participação efetiva no imbróglio. Neste ponto, é a voz do narrador que pontifica novamente as virtudes do rapaz, vendo nestas a força capaz de reverter a “situação infame”. Note-se como se anuncia aqui a mudança que se confirma logo a seguir:

Justamente naquela hora da revelação; quando ouvira pela primeira vez a história da catástrofe que lhe arrebatara seu pai; quando as suspeitas que desde a infância haviam tor-turado seu espírito, de chofre se transformavam em certeza para sopitar os escrúpulos da consciência; quando todo o seu pensamento devia concentrar-se na memória querida; pois justamente nesta hora uma voz solicitava seu coração para a compaixão e o esquecimento.A súplica final da carta do barão tinha vergado a inflexível rijeza desse caráter. Sua alma nobre, que sufocara um tama-nho amor para ter o direito de responder com desprezo a proteção do rico benfeitor, sentiu-se fraca ante a humildade do réu que lhe entregava as provas de seu crime e submetia-se resignado a punição.

Elevando-se ao nível dessa abnegação, o mancebo consumira, lançando-as ao fogo, as provas do crime. Repe-lia a vingança, e absolvia o crime, não só da pena corporal, como dessa outra pena mais cruel, a infâmia (ALENCAR, 1980, p. 147).

Assim, em nome da “alma nobre” e do “caráter magnâ-nimo” do rapaz, do amor romântico do casal e também da “tenacidade de pai, contra qual se chocava a inflexibilidade do seu caráter (do barão)” (ALENCAR, 1980, p. 147-148), todo o impasse e o aspecto cindido do personagem esvanecem. Do ponto de vista ideológico da narrativa, o “bom coração”, as virtudes morais dispersam desconfianças e, mais do que tudo, se sobrepõem aos ressentimentos de

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classe.13 A conciliação final entre o grande proprietário e o ex-dependente, o qual não somente tem de volta as terras que haviam sido de sua família como também recebe em forma de juros a mão da bela Alice, não guarda em si – e muito menos pretende fazê-lo – nenhum resíduo ou vestígio das contradições e de certo caráter convulsionado que estas infligem ao protagonista por causa da sua posição social-mente precária e dos fatos que levaram a isso. Trata-se, é verdade, de uma conciliação espremida, tendo em vista a sua articulação como acontecimento, que ocorre e se resolve nas duas últimas páginas, de afogadilho. Previsível pelo que se mostra no desenrolar da narrativa como um todo (pelo caráter virtuoso e positivo do herói alencaria-no a despeito de sua alma atormentada e eriçada; pelo coração romântico e sincero da mocinha apesar de sofrer a falsa indiferença do seu objeto de desejo; pelo caráter nobiliárquico, dedicado e justo do grande proprietário ainda que paire a dúvida sobre as suas ações no passado), a acomodação final não deixa de ter algo de um deus ex machina. Espécie de solução fácil na transigência necessária aos valores dominantes e convencionais aos quais se per-filava a literatura de Alencar ocorrida no interior de uma crispação ideológica e social que não deixa, por sua vez, de dar forma e sentido expressivos à experiência figurada no romance rural.

Referências

ALENCAR, José. Cartas a favor da escravidão. (Org. Tâmis Parron) São Paulo: Hedra, 2008.

_____. O tronco do ipê. 4. ed. São Paulo: Ática, 1980.

FREYRE, Gilberto. José de Alencar, renovador das letras e crítico social. In: ALENCAR, José. O tronco do ipê. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

MORETTI, Franco. O século sério. In:_____ (Org.). O romance: a cultura do romance. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

13 É muito interessante notar que Mário, num dos seus momentos de oscilação entre infâmia e a cumplicidade, entende que o menino que ele foi, com um potencial explosivo de ódio ao grande proprietário, seria um sujeito com todas as virtualidades em resolver o seu conflito por meio da violência. (Também neste sentido Mário Figueira expressa posição de classe muito típica do dependente no romance rural, que tende a reparar os seus impasses por meio da violência, utilizando-a ou sendo vítima dela.) Ao mesmo tempo, reconhece que foi a paga do favor que o distanciou desta alternativa: “Que não daria então, para repelir de si quanto recebera daquele homem (o barão)? Ficaria reduzido a um labrego sem educação; e vingar-se-ia como costuma gente dessa condição, com um tiro ou uma facada” (Alencar, 1980, p. 128).

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_____. Atlas do romance europeu: 1800-1900. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000.

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A trajetória dos migrantes nordestinos em Graciliano Ramos,

Dias Gomes e Ivan Ângelo

Belmira Magalhães*

Lígia dos Santos Ferreira**

resumo: Neste artigo, a partir do romance Vidas secas, de Graci-liano Ramos, do texto dramático A invasão, de Dias Gomes e do romance/contos A festa, de Ivan Ângelo, analisamos a trajetória dos nordestinos, dentro da realidade brasileira, desde a década de trinta. Seguimos teoricamente a perspectiva de Antonio Candido quando relaciona realidade e ficção e dos teóricos da estética Lukács e Bakhtin, que, por caminhos diferentes, compreendem que a função da crítica é permitir a chegada, sempre a partir do texto ficcional, aos dados da realidade contidos na forma literária escolhida pelo escritor, compreendendo assim que realidade e ficção compõem um todo impossível de ser desligado, sob pena de se excluir a humanidade da obra artística. Procuramos mostrar como esses ficcionistas, por meio de formas de narrar diferentes, refletem sobre o lugar/não lugar dos migrantes nordestinos na história brasileira.

palavras-chave: Literatura e sociedade; realidade brasileira; representação literária; migrantes nordestinos.

abstract: This paper analyses the path taken by Brazilian Northeasterners within Brazil´s reality since the nineteen thir-ties. The starting points to the study are the novel “Vidas Secas” by Graciliano Ramos, the drama “A invasão” by Dias Gomes, and the novel/short stories “A Festa” by Ivan ângelo. Theoreti-cally, we rely on Antonio Candido´s perspective regarding the relationship between reality and fiction, among others. Besides Candido, Lukács and Bakhtin give support to the study. Al-though proceeding from different routes, these Esthetics theo-reticians understand that the function of criticism is to allow, always based on the fictional text, reaching data from the reality held in the literary form chosen by the writer, thus entailing the notion that reality and fiction constitute an entirety impossible

* Professora/pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

** Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

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to be separated, on pain of excluding humanity from the work of art. Our analysis seeks to display how these fictionists, through different narrative forms, express the space/non-space of the northeastern migrants within Brazilian history.

keywords: Literature and society; Brazilian reality; literary representation; Brazilian northeastern migrants.

Introdução

Adotar uma posição interpretativa dialética marxis-ta em um momento histórico que afirma a primazia do mercado e a busca do consenso, do efêmero e o fim das contradições de classe, pressupõe ocupar um lugar marginal na crítica literária contemporânea, fundado hegemonica-mente em análises literárias que se caracterizam pela ênfase de uma visão fragmentária da realidade e uma crítica às teorias ontológico-totalizantes.

Nessa perspectiva crítica, a forma de analisar o texto literário procura mostrar a particularidade da representa-ção literária, que carrega componentes estéticos, mas que é essencialmente social, como afirma Georg Lukács na Estética (1966-1967). Perspectiva corroborada na crítica brasileira, a nosso ver, por Antonio Candido quando rela-ciona realidade e ficção, permitindo a chegada, a partir do texto ficcional, aos dados da realidade exterior, mas que só se realizam quando a representação literária tem coerência, peça fundamental para estabelecer a especificidade do texto ficcional, superando a relação, por vezes enganosa, entre verossimilhança e verdade:

Conclui-se que a capacidade que os textos possuem de convencer depende mais da sua organização própria que da referência ao mundo exterior, pois este só ganha vida na obra literária se for devidamente ordenado pela fatura. Os textos [...] suscitam no leitor uma impressão de verdade porque antes de serem ou não verossímeis são articulados de maneira coerente (CANDIDO, 1993, p. 11).

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Sendo nesse sentido que a fatura se refere à forma encontrada pela autoria para refletir sobre a realidade e sobre a existência humana, formando a totalidade contida em cada obra de arte (LUKÁCS, 1966-1967).

A crítica de arte, então, deverá percorrer o caminho escolhido pelo autor para se expressar sobre uma deter-minada realidade histórica, captando a relação dialética explicitada na obra, que necessariamente apresentará po-sicionamento de um sujeito particular e, ao mesmo tempo, expressará uma possibilidade da humanidade em relação à resolução das questões selecionadas pelo autor. Como afirma Antonio Candido (1993, p. 9):

O meu propósito é fazer uma crítica integradora, capaz de mostrar (não apenas enunciar teoricamente, como é hábito) de que maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tornarem aspectos de uma organização estética regida pelas suas próprias leis, não as da natureza, da sociedade ou do ser.

Essa aparente contradição entre ficção e cotidiano só se efetiva quando se separa a representação artística do conjunto de práticas do ser humano, isolando-a como algo fora da realidade. Quando se concebe que a função social da arte é prioritariamente a realização do questionamento da realidade a partir das necessidades da generidade huma-na, estas, sim, contraditórias, não há contradição, mas um lugar privilegiado de se refletir sobre a realidade. Toda vez que a humanidade precisou questionar seu tempo e propor novas formas de sociabilidade, a arte já havia antecipado essa busca humana. Como exemplo, as tragédias gregas que discutem as formas de os homens se desvencilharem do destino dado pelos deuses, ou, pelo menos, de tentar caminhar sem estar inteiramente à mercê das vontades divinas.

Por outro lado, a particularidade como categoria cen-tral da estética lukácsiana nos permite considerar o papel relevante da arte na constituição subjetiva do homem.

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Na superação da universalidade e singularidade. Na par-ticularidade sobressaem as determinações que compõem o conjunto necessário do reflexo estético: o período, o gênero, a individualidade do artista.

Cabe pontuar que toda discussão de Lukács acerca do reflexo estético situa-se na discussão das relações entre sujeito-objeto, relações estas postas a partir do trabalho que institui não só a presença de um objeto diante de um sujeito, mas necessariamente de um sujeito diante de um objeto. Nas palavras de Tertulian (2008, p. 199):

A autoconstituição da subjetividade, o desenvolvimento das aptidões e capacidades humanas estão em relação de concrescência com os atos de manipulação e de dominação da realidade objetiva. Poder-se-ia dizer que cada uma das propriedades da subjetividade está marcada pela continui-dade dos atos práticos que lhes deram origem. A lembrança de tais verdades elementares era necessária, já que a subje-tividade estética não representa senão um caso-limite da re-lação sujeito-objeto, uma forma evoluída e especificamente modificada da relação primária sujeito-objeto.

O autor deixa claro que a esfera estética constitui um nível específico do desenvolvimento da subjetividade humana, que a partir de então é capaz de desfrutar, por meio do reflexo estético, de todo o processo de evolução espiritual alcançado pelo gênero em seu conjunto. O me-canismo específico que permite à arte fazer essa mediação entre indivíduo e gênero é esclarecido por Lukács (1978, p. 222-223) ao se referir ao movimento do reflexo rumo à particularidade que a grande arte proporciona:

A especificidade do reflexo artístico da realidade é a repre-sentação desta relação recíproca entre fenômeno e essência, representação, porém, que faz surgir diante de nós um mundo que parece apenas composto de fenômenos, mas fe-nômenos tais que, sem perderem sua forma fenomênica, seu caráter de “superfície fugidia”, aliás precisamente mediante sua intensificação sensível em todos os seus momentos de

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movimento e imobilidade, permitem sempre que se perceba a essencialidade imanente ao fenômeno. A particularidade, que como centro do reflexo artístico, como momento da síntese de universalidade e singularidade supera estas em si, determina a forma específica de generalização do mundo fenomênico imediato, a qual conserva suas formas fenomê-nicas mas as torna transparentes, propícias à ininterrupta revelação da essência.

Ao realizar uma síntese impossível dentro da esfera da cotidianidade, e consequentemente mais concentrada do que a experiência da vida; ao tornar a essência dos fatos humanos imediatamente reconhecível; ao permitir o aces-so, também pela sensibilidade, das questões essenciais para a humanidade, a arte permite um contato único entre a personalidade individual e os destinos do gênero humano em seu conjunto, ampliando a percepção e a experiência individual de um modo absolutamente peculiar:

A obra, com sua generalização artística no particular, eleva por certo a matéria representada, depurando-a de tudo o que ela contém de cotidiano, e lhe empresta uma vida própria fundada aparentemente sobre si mesma [...]. Mas esta elevação do mundo cotidiano a uma esfera autônoma é uma pura aparência – ainda que seja uma aparência exis-tente – na medida em que ela é o verdadeiro pressuposto para o retorno da arte à vida, para sua ativa eficácia na realidade social. De fato, somente através desta elevação na esfera da generalização artística (do particular, do típico) das figuras e dos eventos, de sua perspectiva, de sua causa, somente assim a obra de arte torna-se uma reprodução da vida na qual os homens encontram a si mesmos e aos seus destinos, explicitados mediante uma profundidade, uma compreensividade e uma clareza que não podem ocorrer na própria vida. Apenas de uma forma elaborada sobre esta base podem as obras de arte extrair sua apaixonante eficácia que ocorre, em primeiro lugar, porque no mundo representado pela arte os homens revivem e reconhecem, com emoção, a si mesmos, aos seus destinos típicos, à sua direção, e que, por isto, o pressuposto indispensável dessa

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eficácia, na representação do típico é a justeza do conteúdo [...] (LUKÁCS, 1978, p. 234-235).

Lukács é bastante claro em afirmar que o simples deleite estético pode restringir-se apenas à admiração formalizante dos resultados obtidos pelo artista ao realizar uma obra determinada. Afirma ele, porém, que tal desfrute não alcança o status de desfrute propriamente estético, pois neste seria impossível separar a assimilação da obra às experiências pregressas do indivíduo a ponto de causar uma identificação imediata com a totalidade do gênero humano. Ainda, para ele, esta seria a prerrogativa de toda grande realização artística, isto é, daquele que alcançou a particularidade estética.

Resulta desse encontro entre indivíduo e generidade humana o inevitável enriquecimento da personalidade do indivíduo. Lukács atenta, também, para o fato de que tal enriquecimento opera exclusivamente no nível da personalidade individual, sendo seus efeitos ao mesmo tempo amplos e restritos. Amplos no sentido de que, nesse processo, o indivíduo pode reestruturar todo o escopo de sua experiência sensível em função de uma determinada experiência estética, no sentido de tornar indeléveis os efeitos espirituais de tal experiência. Restritos no sentido de que não é possível afirmar que a experiência estética tenha o alcance de modificar diretamente um ser humano em um ser humano totalmente novo, posto que nenhum homem, nem mulher, apresenta-se como receptor me-ramente passivo da obra de arte, da experiência estética participam todas as suas experiências precedentes. Toda a bagagem cultural, a vinculação de classe, as memórias, todas as instâncias que constituem o sujeito como estrutura psicossocial continuam operantes no momento do prazer estético e incidem sobre os seus efeitos.

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Realidade brasileira e ficção: Vidas secas, Invasão e A festa

Reservamos para esta parte do artigo a realização daquilo que sempre foi apregoado por Candido em suas obras, ou seja, demonstraremos como três narrativas de autores brasileiros, de gêneros diferentes, refletem sobre um aspecto da realidade brasileira, tendo como uma de suas temáticas a situação dos migrantes nordestinos.

Na década de 1930, o alagoano Graciliano Ramos, representando a realidade do latifúndio nordestino, em seu romance Vidas secas, conclui que só há saída na busca de novas sociabilidades. O Brasil iniciava sua industrialização, o “Sul” se apresentava como o “paraíso” para os trabalha-dores sem terras.

Na década de 1960, Dias Gomes, na peça A invasão, relata a situação do migrante nordestino, no Rio de Janeiro. Não há mais emprego, só formas aviltantes de ocupação. Para os homens, a informalidade; para as mulheres, em-prego doméstico e a prostituição; para as crianças e os idosos, o esmolar.

Ivan Ângelo, em 1970, reflete sobre o tratamento dado aos migrantes nordestinos quando chegam a Belo Horizonte, cidade berço das primeiras manifestações de apoio ao golpe militar de 64, mostrando que essas pessoas não eram bem-vindas aos grandes centros e deveriam ser imediatamente mandadas de volta para seus lugares de origem, a fim de continuarem a conviver com o latifúndio e a seca.

Graciliano Ramos, em 30, deixa Fabiano, sinhá Vitória e os filhos no meio da estrada que conduz a uma realidade existente, mas ainda não alcançada pelos personagens, que possibilitaria a sinhá Vitória conseguir a cama de lastro de couro, como a de seu Tomás da bolandeira, com que tanto sonhou e que tanto desejou ao longo de todo o romance do escritor alagoano.

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Na década de 30, princípio da revolução industrial brasileira, a busca de novas formas de existência parecia aos nordestinos, e também para grande parte dos intelectuais, uma forma de superar as contradições de uma sociedade que seguia a lógica do capitalista expressas exemplarmente pela exploração da monocultura latifundiária, que mantém o trabalhador em um nível de vida próximo ao da anima-lidade, mas, como afirma Candido (1992, p. 45) em sua análise sobre Vidas secas, não consegue abolir a humani-dade dos personagens, pois não confunde desumanidade com forma primitiva de relacionamento social:

De qualquer modo, é o último dos seus livros de ficção e contrasta com os anteriores por mais de um aspecto. [...] quis oferecer da vida uma visão, sombria, é verdade, mas não obstante limpa e humana. Fabiano é esmagado, pelos homens e pela natureza, mas o seu íntimo de primitivo é puro.

Como afirma Candido (1992), fazendo uma correla-ção direta entre primitivo e puro, não há desumanidade no sentido de uma igualização à animalidade, mas um estágio primitivo de relacionamento social, único possível, segundo a autoria, nessa realidade representada: “Ora, o drama de Vidas secas é justamente esse entrosamento da dor humana na tortura da paisagem. Fabiano ainda não atingiu o estádio de civilização em que o homem se liberta mais ou menos dos elementos” (p. 47).

O narrador de Vidas secas, ao fazer o cruzamento de uma realidade que explora a mão de obra de forma pré-capitalista e, ao mesmo tempo, lança mão de formas de mando que estão na origem do Estado moderno,1 discute como o poder precisa moldar as subjetividades para a per-petuação do mando.

Repetia que era natural quando alguém lhe deu um em-purrão, atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por

1 A colonização brasileira e a forma de relações sociais impostas ao país pelo colonizador foram alvo de grande discussão pela historiografia; no entanto, hoje já existe consenso sobre a não existência de um regime feudal, mas sim da convivência de formas pré-capitalistas de exploração numa sociedade que tem o lucro como fonte propulsora da riqueza. Para análise desse tema, ver, entre outros, Mazzeo (1988); Boris Fausto (1972).

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cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxean-do, com os talões de recibo debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cascas de fruta; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; sinha Rita Louceira retirou-se (p. 28-29).

Naquela praça estão a polícia, o cobrador de impostos e a Justiça,2 faces modernas do poder; está ainda o rudimento da urbanização, expressa pela feira, pelo acendedor de lam-piões e pelo coletor de lixo, está também a Igreja, que não consegue ser afastada do poder em regiões subdesenvolvi-das, e, no centro da cena, um trabalhador surrado no chão, sentindo vergonha e raiva, mas rendido antecipadamente pela situação social (MAGALHÃES, 2001).

Graciliano Ramos apresenta as formas de poder ins-titucional usadas para domesticar um homem da mesma forma que se subjuga um animal. Em Memórias do cárcere (1994), o narrador autobiográfico desvenda o porquê da surra sem sentido que Fabiano leva do soldado: “Mas surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão do mato. [...] em seguida o aviltamento. É assim na minha terra, especialmente no sertão” (v. 1, p. 141).

O autor lembra que a explicação para o ato não está relacionada com o delito, mas com o sistema, que precisa aplicar uma tatuagem na alma para que não haja possibi-lidade de esquecimento das hierarquias, dos mandos.

Não há necessidade de se esconder a dominação, por isso os narradores de Graciliano Ramos, quando ocupam uma posição de mando, o fazem em primeira pessoa, como Paulo Honório e Luiz da Silva, embora este último não consiga a objetividade e clareza do primeiro, porque se encontra numa fase de decadência. Embora o liberalismo apregoe que todos são iguais, todos sentem que não são.

Acompanhando o pensamento de Antonio Candido, pode-se afirmar que a humanidade é a marca desse roman-ce, e é justamente a clareza da autoria sobre o estágio de

2 Ver A reprodução, de Lukács (1994), que mostra o Direito como uma criação da sociedade de classe para a manutenção das desigualdades.

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desenvolvimento em que se encontram seus personagens que norteia a tomada de posição sobre a impossibilidade de um salto dessa fase para uma conscientização que per-mitiria a crítica das relações sociais e a consequente ação para modificá-la, o que mantém a coerência de Vidas se-cas. Esses são os ensinamentos desse crítico para a crítica literária: realidade e ficção, partes de um todo impossível de ser desligado sob pena de se excluir a humanidade da obra artística.

A invasão, de Dias Gomes

Essa mesma problemática também será discutida por Dias Gomes na peça A invasão, tendo como espacialidade a cidade do Rio de Janeiro, que representa os fabianos que continuaram a migrar em busca de solução para a vida precária do Nordeste brasileiro.

O focus espacial da narrativa de A invasão é todo concebido no interior de uma construção inacabada, aban-donada, que gradativamente está sendo ocupada por famí-lias e pessoas sem condições de ter uma moradia própria, nem mesmo de alugar um imóvel nos diversos morros que constituem as favelas que marcam a paisagem da cidade do Rio de Janeiro, capital do país até a última década dos anos cinquenta. Assim como Candido (1993) salientou em sua crítica sobre O cortiço, de Aluísio de Azevedo, o esqueleto (nome como ficou conhecida a construção inacabada) vai ganhando vidas novas e mantendo velhas problemáticas.

Os primeiros ocupantes do esqueleto se assustam com a chegada de outras pessoas, sempre receosos de que a polícia acabe por desalojá-los.

LINDALVA – Tu ouviu? Tem gente aí!BOLA SETE – Será o guarda?...LINDALVA – Não é um só, é muita gente!BOLA SETE – Deve ter chamado a Rádio Patrulha... te manca aí que eu vou dar uma olhada...

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LINDALVA – Espera, desgraçado! Deixa eu me vestir primeiro[...]BOLA SETE – Polícia coisa nenhuma. É o pessoal lá do morro.LINDALVA – Do Morro?BOLA SETE – Sim, gente que ficou sem barraco, como nós.(p. 2, 3, 4).

Esse espaço se relaciona com o restante da cidade por meio do ir e vir de personagens, que trazem a fala de fora para dentro do esqueleto, explicitando de que forma aquele lugar ocupado por homens, mulheres e crianças faz parte de uma sociabilidade maior que reproduz a existência de grupos humanos desprovidos de qualquer dignidade para sobreviver.

Nesse sentido, o que se enfatiza nessa conexão entre dois mundos é o mesmo que se quer enfatizar entre as noções de centro e periferia. Ambas fazem parte de uma mesma totalidade. Por essa razão, para a compreensão de uma faz-se necessária a compreensão da outra em suas interconexões.

A estrutura desse texto dramático pode ser dividida em núcleos que se entrelaçam durante toda a narrativa, não podendo nunca ser vista sem esse inter-relacionamento, mas apresentando ao mesmo tempo singularidade sobre a discussão que a autoria está travando com a realidade do seu tempo e com as formas de enfrentamento de uma sociabilidade adversa para a maioria da população brasilei-ra, principalmente para os nordestinos, que são obrigados, muitas vezes, a abandonar seu lugar de origem e a se em-brenhar numa viagem sem rumo e sem volta.

A terceira família apresentada na peça teatral, e que será objeto de nossa análise neste momento, é composta por cinco pessoas que chegam e se alojam no esqueleto. Rita (tem 14 anos, mas aparenta ter muito menos, por seu raquitismo, sua desidratação – p. 7), uma moça de 18,

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Malu (Sob seu linfatismo, percebem-se alguns traços de beleza irregular, uma beleza triste, doentia, sem cor e sem vida, que não chegou a se afirmar por falta de proteínas – p. 8), os pais Santa e Justino ( [...] dá a impressão de uma força interior difícil de explicar – p. 3), o filho Tonho e um menino de colo. No começo da narrativa, todos estão desempregados e devendo muito.

Procuramos desvelar a forma como a narrativa é construída para contar, a partir do entrelaçamento da história dessas famílias, as relações de exploração que dão suporte ao tipo de desumanidade que o texto mostra. Pa-ralelamente, pela fala do personagem Lula e dos diálogos que ele estabelece com os outros ocupantes/invasores do esqueleto, verificamos como a autoria discute as saídas para o avanço desta situação de opressão.

A autoria faz com que se encontrem histórias de vida que têm marcas de especificidade, nas quais prevalece a marca universal que une todas as histórias: são pessoas exploradas por uma estrutura de classe que se apoia na exploração máxima do trabalhador pelo uso da forma mais tradicional da exploração capitalista, que agrega formas pré-capitalistas de exploração à exploração própria da lógica do capital, a extração da mais-valia,3 fazendo com que a expropriação do trabalhador se dê de forma aviltante e brutal, como já alertará Graciliano Ramos.

Lula é o único personagem que é operário;4 os ou-tros, quando têm ocupações, são atividades consideradas à margem da lógica própria de uma sociedade moderna: lavadeiras, empregadas domésticas, biscateiros.5 Articu-lando todas estas, a atividade de esmolar, que mantém a caridade como marca fundamental das pessoas que pre-cisam aliviar a consciência6 para não buscar a explicação das disparidades sociais.

Como vimos, Graciliano Ramos já enfatizara o papel fundamental das religiões na manutenção da exploração e na construção de uma ideologia de resignação, tanto para aqueles que recebem como para aqueles que encaram as diferenças entre as classes sociais com algo posto e imutável

3 Para desenvolver esse tema, ver Marx (1978).

4 Esse personagem será o único que contestará com sua prática a situação de todos os moradores do Esqueleto, indo ao encontro do que apregoa, explicação de Marx, sobre a possibilidade de uma revolução socialista a partir de um sujeito revolucionário.

5 Ver em Marx a discussão sobre trabalho produtivo e improdutivo (Manuscritos).

6 Em São Bernardo, de Graciliano Ramos, a personagem Dona Glória mostra formas diferenciadas de se esmolar, no sentido de ficar refém dos favores dos poderosos. Roberto Schwarz desenvolveu a categoria do agregado para mostrar como essa forma de relação pré-capitalista, num país capitalista, é capaz de montar um emaranhado de interpelações tão importante para as formas políticas do capitalismo periférico.

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e veem na caridade uma forma de amenizar o sofrimento alheio e acalmar os nobres corações.

JUSTINO – [...] Nunca pensei que a gente tivesse que chegar a esse ponto... Pedir... estender a mão... (vem a frente como se estivesse deprimido só em contemplar o fruto da mendicância). Mas é capaz de vocês terem razão. (Como se procurasse convencer a si mesmo). Pedir não é crime (p. 32).

Crime é reivindicar e não se conformar com a situação. Esta é a família que mais sofrerá as consequências daquela realidade adversa, experienciada desde o lugar de origem desses sofredores. É importante relatar que a autoria não idealiza as relações no campo, nem mostra a cidade como a panaceia onde tudo pode ser resolvido.

Nesse espaço a vida da célula primária de repro-dução da sociabilidade capitalista, a família burguesa, que cria uma individualização tendente a afastar a solidariedade entre os sujeitos que não fazem parte do seu núcleo, tem algumas especificidades, dependendo das condições que fundamentaram sua constituição.

A família dos migrantes é mais temerosa em re-lação aos poderes constituídos, principalmente no que se refere ao aparato policial, pois, como vimos, a memória social daqueles que são expulsos da seca, na representação que Graciliano Ramos faz da situação do campo: Fabiano se rende ao soldado amarelo e apanha sem nem saber por quê.

No desenrolar da narrativa dramática ficamos sa-bendo que a criança de colo não sobreviveu à fome e que não há um sentimento de perda pela criança morta, mas de alívio por não ter de experimentar o sofrimento a ela destinado:

Isabel (mãe) Foi melhor para ele. (Vai recolocar a criança no caixote, em meio a um respeitoso silêncio) [...] (Depois de longa pausa.) Precisa ficar todo mundo com cara de

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palerma. (Apanha a panela) Cadê o Tonho que não vem com essa água? (p. 34-35).

Nessa realidade, qual o destino das duas mulheres jo-vens da família nordestina? Serão empregadas domésticas ou prostitutas. O filho homem começa a tentar arranjar trabalho na construção civil. Para os mais velhos não existe trabalho. A mulher acaba esmolando, e o homem aceitan-do qualquer serviço. Há uma desestruturação da família, que não pode manter os mesmos valores e acaba por não poder manter sequer o mesmo espaço. Principalmente para as mulheres, é ressaltado que, na cidade ou no campo, a vida da maioria delas se resume a ser mantida por algum coronel ou político da cidade.7

Para as filhas das famílias camponesas, como as que migraram e estão no esqueleto, em Dias Gomes, está re-servado o mesmo destino de suas mães, feito de sofrimento e trabalho, ou, se forem bonitas, o de serem usadas pelos coronéis ou por qualquer um que possa tê-las como objeto de prazer, como bem demonstra Jorge Amado:

Descobria, quase sempre em sua própria fazenda ou nos povoados, uma caboclinha simpática, mandava a anterior embora. Algumas iam parar nas casas de prostituição, outras voltavam para as roças, uma viajara para a Bahia, levada por um caixeiro-viajante (p. 107).

Dessa forma compõe-se o quadro do poder capitalista/patriarcal, no que diz respeito às relações entre os sexos. A nordestina de Dias Gomes é a senhora pobre, de respeito, que conseguiu casar: a sinhá Vitória, de Graciliano Ramos, e a mãe da família do esqueleto, que tem como destino procriar filhos que morrerão ou seguirão um destino prati-camente predeterminado: as mulheres amásias de coronéis ou políticos, empregadas domésticas sofrendo humilhações e abusos sexuais dos patrões e de seus filhos, tanto no campo como na cidade; os filhos constituirão a mão de obra sem qualificação tão necessária a um país que tenta

7 Jorge Amado, em muitos de seus romances, mas principalmente naqueles que têm títulos de nomes femininos, discute com primazia o espaço reservado às mulheres de famílias pobres do campo e da cidade que têm algum atributo físico considerado charmoso pelo discurso dominante sobre a sexualidade feminina. Em Gabriela cravo e canela, o destino reservado às mulheres é representado de forma exemplar; os papéis que cabem à mulher estão claramente demarcados.

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uma consolidação industrial. Neste sentido, justifica-se que a peça apresente um quadro inteiro dedicado à relação “amorosa” entre Lula e Malu.

No quarto quadro da narrativa de Dias Gomes, a au-toria, por meio do diálogo entre um operário apaixonado e uma moça bonita que fugiu da seca, discute as possibili-dades futuras das famílias pobres. Malu resiste ao assédio de Lula, que argumenta dizendo que o amor pode superar tudo e propõe que se amem e se juntem para morar em um espaço vazio que ainda resta no terceiro andar do esque-leto. A fala de Malu é dura e retrata a vida das mocinhas do campo, definida acima:

A vida é feia, muito feia, pra gente querer resolver tudo com palavras bonitas. Antes de nós entrarmos na fila dos retirantes, o coronel mandou me chamar na casa dele. Disse que se eu quisesse, não precisava ir embora... ele arrumava uma casa pra mim, na cidade e garantia o meu futuro... e quis me agarrar à força. [...] mandei ele à merda e fugi. [...] Tou arrependida até hoje (p. 134).

Uma outra forma de acompanhar o destino dos reti-rantes deixados por Graciliano Ramos a caminho do sul nos anos 30 é apresentada por Ivan Ângelo no romance/contos A festa.

No primeiro capítulo, na noite de 30 de março de 1970, um grupo de flagelados está acampado numa praça e espera a resolução do governo sobre seu destino. A ordem dada é para que retornem ao lugar de origem num trem cedido pelo poder público. Quando sobem nos vagões, há um incêndio que provoca enorme confusão. A polícia intervém, um grupo mais organizado e armado enfrenta os policiais. Destacam-se do grupo “um nordestino more-no de 53 anos, Marcionílio Mattos, e o repórter Samuel Aparecido Fereszin, de um matutino da capital” (p. 15). O grupo consegue, em sua maioria, escapar, mas o nordestino é preso e o repórter some.

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O narrador começa apresentando um nordestino e oi-tocentos flagelados; quando há a revolta, todos são tratados como nordestinos. O fato se deu, segundo a narrativa, seis anos após o golpe de 1964, durante a vigência do gover-no do general Médici, momento de maior repressão dos governos militares. O acontecimento é público: “Quem estivesse no hotel Itatiaia, de frente para a estação, veria avançar...” (p. 16); por esse motivo, possível de ser visto e apropriado por diversos sujeitos. Essa é a lógica que o autor quer imprimir; não importa se historicamente aconteceu, o que importa é que, nas condições em que se encontrava o Brasil naquele momento, este ou quaisquer outros fatos semelhantes eram perfeitamente possíveis.

O Narrador mostra, por meio de um item que deno-mina “Flash-Back”, composto de citações de viajantes, de sociólogos, de autoridades públicas e de escritores, a formação da estrutura social brasileira, que, desde tempos remotos, se baseou na exploração do trabalho humano em níveis de barbárie.

Não creio, não creio absolutamente que sem o trabalho escravo esses canaviais dum só senhor possam ser cultiva-dos... Em regra ele é rendeiro, agregado, camarada ou o que quer que seja; e então sua sorte é quase a do antigo servo da gleba (p. 16-17).

Numa formação social desse tipo, é sempre possível, ainda segundo a voz do narrador que orienta a colagem dos textos, o surgimento de formas de interferência, no real, de tipo messiânico. A ausência da racionalidade necessária para a compreensão do próprio cotidiano leva essas populações a se agrupar em torno de líderes que, embora ofereçam muito pouco em relação à sobrevivência diária, são capazes de criar, a partir das formas mágicas e/ou religiosas, a esperança de um futuro melhor. Como o beato de A invasão, que merece toda a respeitabilidade dos ocupantes do esqueleto.

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O narrador de Ivan Ângelo utiliza-se de trechos de outro romance para mostrar o tipo de liderança dos grupos “rebeldes” e a intensa violência que o poder constituído utiliza para sua erradicação, mesmo quando são tão efême-ros os sonhos de mudança. Nessa busca, o narrador chega ao cangaço. A figura de Lampião é exaltada para, logo em seguida, ser mostrada por meio da adjetivação da palavra espantalho, também como uma forma de luta fracassada. “E, em 1917, ingressou Virgulino na vida guerrilheira, tornando-se, em pouco tempo, o espantalho dos sertões (p. 18).” Esse é o enredo no qual se insere o personagem que acaba de nascer. Enquanto Lampião entrava no can-gaço, Marcionílio nascia e os russos realizavam a revolução socialista.

O texto é preciso, tanto em relação ao tempo como ao espaço onde transcorre a trama. Estamos, agora, na madrugada de 31 de março de 1970, numa praça em Belo Horizonte. Existe um acontecimento que foi narrado com precisão, com olhos de quem assistiu a, ou mais ainda, participou dele. É o momento fixado: Brasil 1970, seca, flagelados, tortura, ditadura. O entendimento dos fatos narrados só é possível a partir da compreensão da história que possibilitou tal momento. O autor percorre, então, a história deste país, não contando cronologicamente, mas congelando determinados fatos, entrecruzando-os com o dizer de um romancista/narrador. Mostra a visão do cam-ponês ingênuo, que chama de flagelado e que é tocado para dentro do trem pelos policiais: não precisa usar a comple-mentação de gado sendo recolhido ao curral, basta o uso da palavra tocado para declarar sua intenção.

Mostra, também, o enfrentamento dos policiais por um grupo que rapidamente se organiza; mostra, ainda, o fanatismo e a necessidade de um líder por parte dessas populações, tanto para enfrentar policiais numa fuga como para fazer frente a um exército, como ocorreu em Canudos. Consegue, com a forma narrativa adotada – a colagem de citações, cujas fontes são datadas e nomeadas −, relacionar a miséria de um povo com a dominação sem

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limites que recai sobre esse povo; enfatiza a demagogia dos governantes que percebem a miséria, falam dela, prometem solução – principalmente em campanhas eleitorais – e nada fazem para atenuá-la.

Por meio das vozes de que se apropria, o narrador explicita níveis de conscientização, de subjetividade, que vão desde a mais ingênua relação com a realidade, em que não há nenhuma ultrapassagem do cotidiano, como é o caso dos flagelados e dos adeptos de Antônio Conselheiro; passa por um nível de consciência que tenta o desloca-mento do empírico, mas não o alcança, caso do próprio Marcionílio e, mais tipicamente, de Lampião; chega, enfim, a momentos de plena elaboração consciente das condições sociais, como é o caso de Rui Facó, Euclides da Cunha e Francisco Julião.

Mas, acima de tudo, por meio de uma narrativa en-trecortada, mostra a impossibilidade, mesmo em 70, de resolução dos problemas dos migrantes nordestinos, com a lógica instituída desde a colonização, de transformar o campo em grandes latifúndios e tratar a mão de obra da atividade agrícola no nível da animalidade oriunda da escravidão.

Aqueles que em 30 pensavam em melhorar de vida construindo um novo Brasil e se instalam nas regiões de desenvolvimento têm como forma de sobrevivência, em meados do século XX, um esqueleto para morar e formas aviltantes de conseguir a sobrevivência para, finalmente, com a instalação do regime ditatorial, serem tocados como gado.

Conclusão

O entendimento da conexão entre centro e periferia pressupõe, como já foi dito, o entendimento da totalidade que gerou essa dicotomia. A forma como se estabelece a relação entre o Centro-Sul e o Nordeste está inteiramen-te ligada à forma como o Brasil se insere no capitalismo

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internacional; cada região do país reagirá diferentemente ao poder centralizador.8

Analisar Graciliano Ramos, Dias Gomes e Ivan Ângelo é perceber claramente essa conexão e poder entender que, embora por caminhos diferentes, as repostas têm de levar em consideração sempre a historicidade e a totalidade. Famílias que se deslocam e que não mudam a realidade, apenas aprendem a se “virar”, dentro da nova realidade. Aqueles que em 30 tinham o sonho da cidade grande continuam em 60 no mesmo lugar, apenas com formas de sociabilidade diferentes; e em 70 são banidos de volta para suas terras secas, sem nenhuma oportunidade, pois a nova fase do capitalismo periférico não necessita mais de sua força para o trabalho, e eles também não são mais os mesmos, que se submetem sem reação.

Referências

ÂNGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Vertente, 1976.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 3. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec, 1993.

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_____. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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FAUSTO, Boris. A revolução de 30. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972.

GOMES, Dias. A invasão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

LUKÁCS, Georg. Estética: la peculiaridad de lo estetico. Barcelona/México: Grijalbo, 1966-1967. 4 v.

_____. A reprodução. Tradução de Sérgio Lessa. Maceió, 1994. mimeo._____. Introdução a uma estética marxista. Tradução de Carlos

8 Ver Candido em Literatura e subdesenvolvimento, e Schwarz em Um mestre na periferia do capitalismo, citados nas referências.

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Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 1978.MAGALHÃES, Belmira. Da impossibilidade da festa à festa possível. Maceió: Ufal, 2007.

MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia politica. (GRUNDISSE) 1857-1858. México: Siglo XXI, 1978.

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. Belo Horizonte: Oficina, 1988.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1995.SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1991.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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Melodrama e alegoria em Valêncio Xavier

Ângela Maria Dias*

resumo: A relação paroxística no modo melodramático entre a metáfora do gesto arrebatado, no âmbito do tableau (quadro mudo) e a ênfase da palavra exaltada, em busca de um sentido excessivo, pode ser comparada à estrutura da alegoria barroca que “traz a essência para a própria imagem, apresentando-a como escrita, como legenda explicativa, que nos livros emblemáticos é parte integrante da imagem representada” (WB). A obra de Valêncio Xavier, em sua compleição poética, associando o texto à força evocativa das imagens, numa rede de sentidos intrigante e provocadora, constitui um sedutor experimento para a reflexão desta confluência. Por outro lado, sua sádica urgência de “tudo dizer”, acompanhada do efeito de “estética de almanaque” dos livros-objetos resultantes, caracteriza a apropriação do melo-drama e a intenção alegórica da obra, ao dialogar com motivos e enredos mórbidos e antiquados para caracterizar o que vige na contemporaneidade.

palavras-chave: melodrama; alegoria; cinema.

abstract: The paroxistic relation inherent to the melodramatic mode between gesture and rhetorical excess can be compared to the structure of baroque allegory, which “drags the essence of what is depicted out before the image, in writing, as a caption, such as, in the emblem books, forms an intimate part of what is depicted” (WB,185). Since the work of Valêncio Xavier associa-tes the evocative power of images to the text organized through poetic and iconic effects, it constitutes a seductive experiment to the investigation of inter-semiotic confluences. Besides, its sadistic urgency in saying everything, as well as its almanac aesthetic, characterizes the appropriation of melodrama and the allegorical intention of the object-books produced. The morbid and old fashionable characters and plots suggest in an oblique

* Professora Associada da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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way the gap of our current time, perplexed by the constant and startling technological transformations in our quotidian life due to the magic of digital means of communication and cybernetic effects throughout the globalized world.

keywords: melodrama; allegory; cinema.

Crimes à moda antiga constitui um livro muito mais alusivo e provocador, em relação às angústias do mundo contemporâneo, do que, à primeira vista, parece. Ao tematizar um conjunto de oito crimes ocorridos no início do século XX, entre 1906 e 1930, em suas motivações e circunstâncias, e, sobretudo, na repercussão pública que mereceram, esta coletânea de tenebrosas narrativas aborda, de maneira enviesada, o mal-estar e a ansiedade atuais diante do descompasso entre as incessantes trans-formações tecnológicas e as expectativas existenciais das coletividades urbanas.

O feitio alegórico deste conjunto sugestivo de relatos e a respectiva abertura do sentido ao inusitado e ao in-certo se apoiam, de início, na estrutura narrativa híbrida e transemiótica que combina imagens e palavras num entrecruzamento capaz de conjugar de maneira surpreen-dente e cinemática as imagens e o texto escrito. Trata-se de um dispositivo em que a “técnica do desenho decalcado nas fotos de jornal”1 não apenas ilustra a narrativa, mas constitui com ela uma espécie de intrigante montagem em que o cruzamento de significações prolifera entre o “quadro mudo” dos elementos visuais – reproduções da imprensa e de outras fontes, além de variados perfis de objetos e de pessoas, em diferentes padrões – e o texto compósito – também produzido por meio da justaposição entre distintas variantes gráficas e sinais desconcertantes, dispondo o decalque plural das vozes envolvidas na re-constituição dos fatos.

Assim, a construção deste livro-objeto põe em cena o emblemático da alegoria que “traz a essência para a pró-pria imagem, apresentando-a como escrita” (BENJAMIN, 1984, p. 207), e também a sua origem barroca, na medida

1 Declaração do autor em entrevista colhida no site http://www.mondobacana.com/edicao-31-cure/valencio-xavier.html, consultado em maio de 2011.

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em que a história das catástrofes privadas em cena tem a fisionomia alegórica da natureza-história que só está ver-dadeiramente presente como ruína e constitui um processo de inevitável declínio (BENJAMIN, 1984, p. 199). Aliás, o próprio contexto do início do século XX, ao gestar a es-tética do Expressionismo, segundo Benjamin, aproxima-se do século XVII, pela “busca de um estilo linguístico vio-lento, que esteja à altura da violência dos acontecimentos históricos” (BENJAMIN, 1984, p. 77). Nessa dimensão, as tramas perversas de crime e luto desfiadas, ou os “con-tos verdade”, constituem, por si mesmas, o horizonte do Trauerspiel (drama barroco) e manifestam, em seu conjunto sensacionalista, o mesmo desconforto diante de um mundo em transformação – em que “o poder da tecnologia está muito além do que qualquer outro século jamais sonhara” (SEVCENKO, 1998, p. 514) – vivenciado, hoje em dia, no universo do capitalismo avançado.

A intertextualidade inerente à natureza da alegoria “manifesta-se tanto no elemento lingüístico como no figural e no cênico” (BENJAMIN, 1984, p. 214), e igual-mente constitui a vocação dos textos reunidos em Crimes à moda antiga, que, em sua linguagem de um rebuscamento exagerado e melodramático e em suas imagens mórbidas e ameaçadoras, concretiza “o nexo entre o espetáculo pro-priamente dito e a alegoria” (BENJAMIN, 1984, p. 215) e aponta para o horizonte do melodrama.

O melodrama, embora constitua um gênero histori-camente situado, será encarado aqui preferencialmente, conforme a lição de Brooks, “as a mode of conception and expression, as a certain fictional system for making sense of experience, as a semantic field of force”2 (BROOKS, 1995, p. xvii). Ou ainda, também será tratado, segundo Singer, como “a complex cluster of elements”, capazes de serem combinados em variadas configurações, características de diferentes espécies de melodrama: “strong pathos, heighte-ned emotionality, non classical narrative mechanics, moral polarization, and spectacular sensationalism”3 (SINGER, 2001, p. 290).

2 “como um modo de concepção e expressão, um certo sistema ficcional para dar sentido à experiência, e/ou um semântico campo de força” (Este trecho e todos os demais citados no texto foram traduzidos pela autora).

3 “uma complexa associação de elementos” [...] “o intenso pathos, a extrema emocionalidade, o mecanismo narrativo não clássico, a polarização moral e o sensacionalismo espetacular”.

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O melodrama tradicional, mais de acordo com suas ori-gens na década de 1790, durante o processo da Revolução Francesa, que Singer denomina de “blood-and-thunder or sensational melodrama”4 (SINGER, 2001, p. 290), combina os cinco elementos, mas requer, sobretudo, os dois últimos: o maniqueísmo ético e o sensacionalismo.

No alvorecer da modernidade, num período próximo à virada do século XX, em função das profundas transfor-mações tecnológicas sofridas no âmbito do capitalismo – o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, a eletricidade, o telefone, os mecanismos de reprodução mecânica –, alguns teóricos observam um radical aumento dos estímulos nervosos, do estresse e da sensação indiscri-minada de perigo físico (SINGER, 2001). A imprensa de modo geral e, sobretudo, a ilustrada oferecem um vívido testemunho da fixação cultural na intensidade sensória da modernidade (SINGER, 2001) pela frequência com que invocam os temas da violência e da morte, em decorrência do trânsito e da agitada vida na cidade. O conjunto de pressões da modernização, decorrentes da racionalidade instrumental e do individualismo competitivo, num uni-verso radicalmente transtornado pela mobilidade social e pela circulação de mercadorias e informações, obriga o homem moderno a desenvolver uma percepção fraturada e polivalente das circunstâncias espaço-temporais, numa perspectiva instantânea de estímulos simultâneos. Nesse sentido, Benjamin, em consonância com reflexões anterio-res de Simmel e de Kracauer, aponta mudanças no modo da percepção subjetiva prevalente na experiência urbana que estariam refletidas na criação do cinema (SINGER, 2001):

A associação de idéias do espectador é interrompida ime-diatamente, com a mudança de imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspon-dente aos perigos existenciais mais intensos com os quais

4 “melodrama de sangue e trovões ou melodrama sensacional”.

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se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente (BENJAMIN, 1985, p. 192).

Mas não só as imagens ilustradas da imprensa manifes-tam uma espécie de fascinação com o horrível, o grotesco e o extremo da imaginação distópica da modernidade. Desde a década de 1890, a correlação estreita entre o hiperes-tímulo da metrópole e o sensacionalismo espetacular nos divertimentos populares vem sendo observada pelos críti-cos. Como anota Singer, os parques de diversões foram um invento da década, assim como o vaudeville, no ecletismo de suas performances bruscas e ostensivas. O melodrama, plasmado há praticamente um século, naquele momento, sofre profundas transformações. Troca o pathos e o exibi-cionismo moralizante das vítimas inocentes e seus heróis salvadores pelas performances violentas e pelos “exciting spectacles of catastrophe and physical peril based on elaborate mechanical stagecraft”5 (SINGER, 2001, p. 93).

O sublime tecnológico vem, então, substituir a forma tradicional do sublime melodramático inerente à exaltação moral, antes expressa nos tableau, na palavra grandiloquen-te e enfática e na música melodiosa. E este novo tipo de sublime, por atuar “além dos limites da escala, da força e da percepção humana” (SEVCENKO, 1998, p. 582), só pode ser perverso e ameaçador. Assim, neste novo melodrama, a tecnologia desempenha um papel central: está tanto no palco quanto atrás dele, na engenhosidade dos arranjos inerentes à ação ostensiva dos enredos hiperexcitantes. No palco, as últimas maravilhas da idade maquínica aparecem ao vivo, como emblemas da época: automóveis, balões, botes a motor, pontes suspensas, etc. Fora dele, eram ne-cessários efeitos cênicos especiais para a representação de forças naturais – erupções vulcânicas, tempestades de neve, explosões, incêndios, tornados, terremotos – desencade-

5 “espetáculos de catástrofe e perigo físico baseados em complexos mecanismos cenográficos”.

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adas no desenvolvimento das tramas espetaculares. Toda essa mecanização correspondia, então, a uma maturidade, em termos de racionalização econômica, que transformava o melodrama numa espécie de indústria, apoiada em “new structures of oligopoly control, product standardization, mass production, and efficient distribution”6 (SINGER, 2001, p. 12).

Nesse momento, como observa Singer (2001), o melo-drama teatral será varrido por uma nova onda de mudança tecnológica e racionalização comercial: o cinema, como nova sensação do mercado das audiências de massa. Em torno de 1907/1908, a meteórica ascensão do “nickelodeon”7 (SINGER, 2001, p. 12) transportou os heróis, heroínas e todos os efeitos especiais de sua peregrinação para as telas. Embora, na época, muitos autores tenham enfatizado a maior capacidade dos recursos cinematográficos para forjar cenas grandiosas e incríveis, a partir de uma perspectiva de realismo ilusionista, o fato é que, com muita propriedade, Singer argumenta que o melodrama jamais consistiu ape-nas num “botched proto-cinema”8 (SINGER, 2001, p. 291). Muito ao contrário, sempre produziu um tipo de estética altamente teatral e excessiva e, neste sentido, exuberante em seu anti-ilusionismo. Por isso mesmo, o crítico (2001) termina por privilegiar a variante econômica como fator central na súbita migração do melodrama do palco para as telas. Afinal, a versão cinematográfica “cost only one-tenth to one-quarter as much as stage melodrama”9 (SINGER, 2001, p. 12) e a vitória irretorquível do cinema mais uma vez confirma a descontinuidade cultural, como um traço característico da modernidade.

Todo este histórico sobre as relações hereditárias entre o melodrama e o cinema e sobre as origens intertextuais da mídia cinematográfica tem a ver com o contexto de Crimes à moda antiga. Os seus oito episódios se estendem de 1906 a 1930, ocorridos, em sua maioria, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, excetuando-se a última história, que se passa no sul, entre Curitiba e Porto Alegre. As referên-cias às versões cinematográficas dos crimes são pontuais, e

6 “novas estruturas de controle oligopólico, na estandardização dos produtos, na produção em massa e na eficiência da distribuição”.

7 “a máquina cinematográfica movida a níqueis”.

8 “proto-cinema anêmico”.

9 “custava de um-décimo a um-quarto do preço da apresentação teatral”.

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vários deles migraram das páginas dos jornais para as telas dos cinemas, produzidos e apresentados no calor da hora, em pleno desenrolar da sequência de investigações e do julgamento dos envolvidos.

No Brasil, entre o final do século XIX e o início do século XX, quando ainda consistia numa sociedade agrária e escravocrata e com rarefeita urbanização, a indústria do melodrama tecnológico não chegou a desenvolver-se. Entretanto, a par da importância das comédias de costu-mes, o teatro do romantismo também ofereceu “dramas e dramalhões copiosos que comoveram largas platéias”, nas obras de autores como “Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, Luís Antônio Burgain, Gonçalves Dias e Francisco Adolfo de Varnhagen” (HUPPES, 2000, p. 157). Além das criações nacionais, também tivemos a encenação de inúmeros dramas e melodramas franceses de sucesso,10 além de boas atuações performáticas, emblematizadas na figura de João Caetano.

As inúmeras ilustrações do livro de Valêncio Xavier, por serem inspiradas em fotografias e imagens dos jornais pesquisados, não desmentem o sensacionalismo imperante na imprensa da época. O caráter episódico da narração e sua natureza alegórica estão fortemente marcados desde o início de cada um dos relatos, em que, ao título, sucede imediatamente uma imagem francamente impressiva que supostamente pretende adiantar ao leitor algo do que será apresentado.

A disposição em títulos sucessivos que encabeçam os fragmentos justapostos e formadores das diversas narrati-vas – não necessariamente dispostos em ordem causal ou cronológica – dá a esta uma natureza fortemente descritiva que, na maioria dos casos, leva a um desfecho inconclusivo. A narração dos eventos criminais, com suas diferentes etapas, se tentarmos compreendê-la segundo a diferencia-ção clássica de Luckács, no artigo Narrar e descrever, não tem efetivamente uma qualidade realista, manifestando, a par do tom melodramático e da ênfase mórbida em de-talhes pouco explicativos da situação global, uma feição

10 Como anotam as tradutoras de Thomasseau, Claudia Braga e Jacqueline Penjon, podemos citar alguns títulos: “Os mistérios de Paris”, “O velho cabo da esquadra”, “A torre de Nesle”, “Richard Darlington”, “Os sete pecados capitais”, “As duas órfãs” e muitos outros.

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naturalista que, aliás, combina-se bastante bem ao feitio alegórico adotado.

Assim, a visão racional e totalizante de Luckács e seu entusiasmo pelo realismo como forma de represen-tação mais perfeita para dar conta das complexidades do mundo burguês – em sua versão coerente e unificada dos conflitos da intriga –, embora não o tenham deixado surpreender as qualidades da estética naturalista, nem por isso impediram-no de captar nela aspectos fundamentais. Em relação à importância alegórica assumida pelos objetos, ou “adereços cênicos” (BENJAMIN, 1984, p. 156), que, na acepção de Benjamin, encarnavam a natureza das paixões dominantes nos personagens, o ponto de vista luckácsiano é implacável:

Hebbel discerne aqui, agudamente, o outro perigo fun-damental que é imanente à descrição; o perigo de que as particularidades se tornem autônomas. Com a perda da verdadeira arte de contar, as particularidades deixam de ser portadoras de momentos concretos da ação, os pormenores adquirem um significado que não depende mais da ação ou do destino dos homens que agem. Com isso, perde-se toda e qualquer ligação artística com o conjunto da composição. [...] A autonomia dos pormenores tem efeitos bastante diversos, se bem que igualmente deletérios, sobre a repre-sentação da vivência dos acontecimentos pelos homens (LUCKÁCS, 1978, p. 72).

De fato, a versão ficcional dos crimes narrados, por meio dos desenhos em que se apoia e das inúmeras alusões a detalhes, em princípio desprovidos de interesse para o conhecimento mais profundo das motivações dos persona-gens, privilegia bastante os objetos, numa explícita adesão à representatividade alegórica, em que o virtuosismo do adereço cênico ocupa o primeiro plano das intrigas, suge-rindo a “precisão com que as próprias paixões assumem a natureza desses adereços” (BENJAMIN, 1984, p. 156).

Assim, desde a primeira história, “Os estranguladores da Fé em Deus”, as ilustrações ganham um papel muito

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importante, na medida em que transmitem ao leitor o clima moral de crueldade e loucura dos assaltantes. A ambigui-dade do título desliza entre a interpretação inicial e literal do sintagma “Fé em Deus” e seu significado contextual, esclarecido num dos fragmentos da narrativa, também assim intitulado, que explica que “Fé em Deus” é o nome da barca na qual a primeira das vítimas foi assassinada. O conto narra a morte violenta de dois irmãos adolescentes, funcionários da joalheria do tio, em outubro de 1906, no Rio de Janeiro, por motivo de roubo. Logo abaixo do título, dispõe-se a ilustração assustadora de um rosto lombrosia-no de homem, com os olhos esbugalhados de espanto ou fanatismo, numa espécie de máscara facial da maldade, de bandido de folhetim. As demais figurações apresentam a corda com a qual ambos os rapazes foram enforcados e as várias joias roubadas da joalheria.

Os títulos dos fragmentos são altamente indicativos do que vão tratar, uma espécie de motes, que funcionam como legendas para as glosas dispostas numa linguagem enfática e frequentemente piegas, com farta adjetivação, voltada para a exploração dos motivos e detalhes torpes e violentos. Temos, por exemplo:

Latrocínio

O crime revestia-se da mais repugnante intenção: um assassinato para roubar. Ladrões cruéis sacrificaram uma vida feliz e fizeram mão baixa na vitrina da joalheria, escolhendo as pedras mais preciosas e os objetos de maior valor, deixando de lado as de menor valia. Levaram as jóias e ceifaram uma preciosa vida, a de um menino de quinze anos (XAVIER, 2004, p. 8).

Por seu lado, os personagens são planos e estereotipa-dos, e encarnam paixões sem nenhuma ambiguidade, como é o caso de um dos assassinos, que, de início, confessou o crime, para depois resolver negá-lo: “Rocca termina de contar os detalhes de seu crime e declara: – Eu sou um monstro! Se tivesse uma arma agora, me matava”

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(XAVIER, 2004, p. 11). Aqui, como no drama barroco, os objetos se identificam com as paixões que levam à sua utilização (BENJAMIN, 1984, p. 156) e só a corda, que aparece com destaque no fragmento “A trama sinistra”, explica a violência do assassinato.

O último fragmento, “O filme do fim”, situado tempo-ralmente mais de um ano depois, já concluído o julgamen-to, refere, então, “o extraordinário filme Os estranguladores, do hábil operador cinematográfico Alberto Leal, que vem sendo exibido com sucesso, desde agosto, nos cinemas da cidade (XAVIER, 2004, p. 24)”. O narrador conta então já ter assistido ao filme mais de uma vez, e curiosamente comenta que o realizador, periodicamente, retira-o de cartaz para refazê-lo, “conforme novas verdades que vão surgindo sobre os crimes de Rocca e Carletto” (XAVIER, 2004, p. 8). O filme é apresentado como uma obra aberta, em andamento, de acordo com outras possíveis revelações sobre os criminosos, e a aproximação entre arte e vida valoriza a expressão “contos verdade”, que é o subtítulo do livro. O final inusitado tematiza a crença naturalista na reprodução precisa do real e, nesse sentido, aponta para uma suposta incompletude do filme, até que tudo finalmente se esclareça:

Sendo assim, o filme nunca estará terminado e se tornará cada vez tão real quanto a própria vida. [...] Se o Sr. Alberto Leal persistir em sua empreitada, daqui a uns 96 ou mais anos teremos um filme com várias horas de duração, onde estarão registradas as imagens, depuradas pela sabedoria do tempo, destes filmes que tanto marcaram nossas vidas e que, por certo, marcarão também as vidas daqueles que irão nos suceder (XAVIER, 2004, p. 24, 25).

O final, ironicamente, pressupõe um filme cuja con-fecção, estendida em quase um século, replica a incon-clusividade acerca do sentido das ações humanas, sempre passíveis de oferecer novas perspectivas aos que buscam compreendê-las.

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O curioso acerca deste relato é que o “operador cine-matográfico” referido – a expressão refere-se à forma como eram chamados os antigos fotógrafos – não era Alberto, conforme o registrado, mas Antonio Leal.11 Durante um período, dedicou-se ao gênero de filme muito popular, na época, os filmes sobre crimes, em sua maioria, baseados em fatos verídicos. Foi então que, em 1906, encarregou-se da fotografia de Os estranguladores, com direção de Francisco Marzullo, a partir da peça teatral A quadrilha da morte, de Rafael Pinheiro e Figueiredo Pimentel, que recontou o crime de Carletto e Rocca. A produção, de quase quarenta minutos, grande para a média dos filmes da época, contou com a participação de nomes importantes do cinema bra-sileiro daquele período e foi um grande sucesso de público (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 319, 320). Hoje em dia, é considerado “o primeiro longa nacional” (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 250). O filme, produzido pela Foto-Cinematográfica Brasileira de José Labanca e Antonio Leal, foi a primeira adaptação cinematográfica de uma peça teatral séria e de assunto melodramático e inaugurou “uma série de filmes policiais marcadamente documentais” (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 241).

Antonio Leal ainda fez a fotografia de um outro filme, igualmente de longa extensão, como o anterior, e também narrado, como episódio, em Crimes à moda antiga, “A mala sinistra”, de 1908, sobre o assassinato e esquartejamento de Elias Farhat, cometido por Michel Traad, que colocou a vítima numa mala e tentou jogá-la ao mar, de um transa-tlântico. Mas este capítulo do livro de Xavier não menciona o filme que será citado num outro posterior, também sobre um crime semelhante: “O outro crime da mala”. O primeiro assassinato é construído como uma espécie de narrativa pluralizada com várias vozes, incluindo supostos solilóquios do criminoso, além de pequenos extratos de seus escritos passionais e poéticos, conjugados aos blocos da narração. Este relato é dos mais engenhosos da coletânea, finalizando com um comentário sobre o inusitado e o misterioso das motivações e comportamentos:

11 Português de nascimento, chegou ao Brasil ainda criança, trabalhou na imprensa carioca e iniciou suas atividades cinematográficas em 1905, girando em torno de acontecimentos de impacto na opinião pública do Rio de Janeiro. Atuou como fotógrafo em extensa filmografia sobre fait divers e diversas comédias.

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O que concluímos de tudo isso? Tarefa dolorosa, na ver-dade, porque não estamos aqui para defender, nem para confortar, mas para buscar a verdade, para podermos formar uma convicção.

Com tudo o mais, o próprio tempo vai passar; porém, se mantivermos em nossa memória o registro destes aconte-cimentos e ficarmos atentos observando o desenrolar do tempo ao nosso redor, talvez no futuro tenhamos explicação para estes fatos que nos inquietam, e, que neste precioso momento, já começam, lenta ou rapidamente, a pertencer ao passado (XAVIER, 2004, p. 88, 89).

Além do primeiro episódio, mais duas narrativas se concluem com referência a filmes. A segunda consiste num rumoroso crime ocorrido em torno de 1919, provavelmente contratado e assessorado por uma rica latifundiária do café paulista, a Rainha do Café, dona Íria Alves Ferreira, estabelecida em “Cravinhos, perto de Ribeirão Preto” (XAVIER, 2004, p. 92). Trata-se de uma vítima desco-nhecida que, segundo o relato dos colonos na propriedade, estaria hospedada na própria casa-sede da Fazenda Pau Alto. Desta feita, o objeto contemplado com uma larga ilustração é a lanterna que, supostamente, foi utilizada pela “Rainha do Café” para iluminar o local do crime. O assassinato escabroso, feito com requintes de crueldade, mereceu ampla cobertura nos jornais paulistas, tendo sido mencionados pelo narrador o jornal O Estado de São Paulo, onde ocorreram polêmicas e desafios da acusada contra os seus detratores, e o “semanário Parafuso, de Benedito de Andrade” (XAVIER, 2004, p. 103). Até mesmo o escritor Monteiro Lobato é citado, pelo comentário surpreendido que teria feito, por ocasião em que, episodicamente, a fazendeira esteve presa. Em consonância com a imensa repercussão do crime, comenta, então, o narrador no fragmento intitulado “O filme”:

O público paulista consome tudo o que se diz e se escreve sobre o crime de Cravinhos. Os jornais, no segundo semestre

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de 1920, diariamente trazem reportagens, editoriais, notas e matérias pagas sobre os acontecimentos. O semanário Parafuso, de Benedito Andrade, é um dos mais virulentos, exigindo a punição dos culpados; suas edições se esgotam rapidamente. O público quer saber toda a verdade sobre os crimes da “Rainha do Café”.

Um filme sobre o assunto, O Crime de Cravinhos, produzido por Gilberto Rossi, Arturo Carrari e o delegado Fiorini Silva, é lançado a toque de caixa no Cinema Avenida, na elegante avenida Brigadeiro Luiz Antônio. No dia da estréia, com a casa apinhada, a polícia apreende o filme, por ordem da família Junqueira. Os produtores entram com uma ação de reintegração de posse e conseguem reaver a cópia, que passa a ser exibida com bastante sucesso. O filme, que custara vinte contos de réis, rende quase quinhentos, isso numa época em que uma boa casa era vendida por sete ou oito contos. Os Junqueira continuam tentando impedir a exibição do filme (XAVIER, 2004, p. 103, 104).

O diretor do filme, Arturo Carrari, dedicou-se espe-cialmente a documentários e, depois de realizar este filme, em 1919, com a fotografia de Rossi, chega a montar a Es-cola de Artes Cinematográficas Azzurri, “misto de escola e empresa de cinema, que forma vários futuros atores e cineastas do cinema paulista dos próximos anos”. Faz ainda mais alguns filmes policiais, como “Um crime no parque Paulista” e “O misterioso roubo dos 500 contos”. Mais adiante, chega também a realizar melodramas, como “Amor de mãe” (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 94).

O crime de Cravinhos, embora nunca tenha sido to-talmente esclarecido, constitui o único caso da coletânea em que o poder político entra como variável e interfere pesadamente nas investigações. Todas as demais histórias – com exceção da “Aí vem o Febrônio”, que é sobre um cruel psicopata dos anos de 1920 – guardam uma estranheza em relação às motivações mais íntimas dos personagens, como se as razões mais aparentes não dessem suficiente conta

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delas e os sujeitos heterodirigidos se assistissem durante a atuação criminosa.

“O outro crime da mala”, especialmente, é uma narra-tiva em que o móvel do marido José Pistone para matar a mulher Maria Féa não se define porque, embora ele alegue a presença de um estranho no apartamento e uma suposta infidelidade, o fato é que a zeladora o desmente. O nar-rador introduz a nova história da mala pela recapitulação da anterior, quando se reporta aos três filmes brasileiros de 1910 inspirados pelo primeiro caso: “A Mala Misteriosa, de Paulino Botelho; A Mala Sinistra, de Marc Ferrez, e A Mala Sinistra, de José Labanca.” (XAVIER, 2004, p. 139). O novo assassinato, acontecido vinte anos mais tarde, tam-bém impressiona a opinião pública e inspira, por sua vez, dois filmes, o primeiro “dirigido por Francisco Madrigano” e o segundo por Antônio Tibiriçá (XAVIER, 2004, p. 140). O entrecho melodramático do episódio, com a vítima, tida como inocente, grávida de seis meses, e a condenação por trinta anos do marido culpado tem um desfecho ambíguo. No último fragmento da sequência, denominado “Julgar os mortos”, o narrador expõe dois destinos contrastantes. De um lado, José Pistone, uma vez libertado, casa-se novamente com uma viúva, mãe de sete filhos, e, prestes a morrer, em 1958, convoca os filhos de Francisca, sua segunda mulher, para confessar que “o homem que vira saindo do quarto na manhã do crime era um seu amigo” (XAVIER, 2004, p. 153). De outro, após reconhecer que, uma vez considerado este fato, o desenlace do julgamento poderia ter sido mais “complacente”, o narrador estampa na página seguinte a reprodução de duas notícias de jornal, nas quais é reportada a fama de milagreira da falecida Maria Féa, em junho de 1978, pelo Notícias Populares:

VÍTIMA DE CRIME DA MALA FAZ MILAGRES

ESQUARTEJADA POR JOSÉ PISTONE EM 7 DE OUTUBRO DE 1928, MARIA FÉA ESTÁ CURANDO NOSEU TÚMULO EM SANTOS. VERDADEIRAS ROMA-

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RIAS DE DOENTES À PROCURA DE MILAGRES (XAVIER, 2004, p. 155).

Já o caso de Febrônio, ao contrário deste último, não deixa margens a dúvidas. Mulato bem escuro, nascido “na miserável Zona da Mata, em Minas Gerais”, fez lenda nos anos da década de 1920, no Rio de Janeiro, e foi enca-minhado para o hospício, de onde fugiu, com uma folha corrida bastante diversificada: “37 prisões por vadiagem, roubo e chantagem [...] nove processos nas costas, com oito entradas na Casa de Detenção e três condenações, duas por vadiagem e uma por roubo” (XAVIER, 2004, p. 118).

Sua fama devia-se a razão bem mais séria: depois de estuprar, ele matava os menores que conseguia enganar com falsas histórias e promessas de emprego. O narrador narra a progressão de sua loucura, entremeando a narrativa com extratos de textos seus, expostos em itálico, e depoi-mentos variados sobre seus feitos assustadores. O mulato arvorava-se em médico e santo, fazia curas tenebrosas e era dado a experiências “científicas” em sua falsa “profissão” de dentista (XAVIER, 2004, p. 118). A repercussão de seus feitos era tão grande que o narrador resolve criar três fragmentos que intitula de “A voz do povo” para entremear versões populares, correntes na época dos acontecimentos, com a sua narração. O primeiro recolhe, por exemplo: “É, fica andando por aí na rua, fora de hora, pra ver o que te acontece: O Febrônio te agarra, te enraba e te mata!” (XAVIER, 2004, p. 117). No segundo, uma suposta tes-temunha relata:

Queria violentar tudo que era rapaz que via. Aqui mesmo no xadrez, na minha vista e dos outros que estavam na cela, quis agarrar um preso que tentou resistir. Pra quê?! Ele bateu tanto e tanto e ainda ficou pulando em cima da barriga do coitado, que no outro dia amanheceu morto” (XAVIER, 2004, p. 124).

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Mas a versatilidade do demente era grande e ele escreveu um livro inspirado por suas visões místicas, “As revelações do príncipe do fogo”, do qual o narrador repro-duz o quadro estampado na primeira página, que mostra um “Anjo da Guarda protegendo uma criança na travessia de uma ponte sobre o abismo” (XAVIER, 2004, p. 124). Em inúmeras ocasiões, Febrônio vagava peripatético pelos recantos da cidade, quando então travava conhecimento com os meninos que violentava.

No fragmento “Grande sadista”, o narrador comenta que, “pelos crimes que lhe atribuem, Febrônio é compara-do a Giles de Rais, Marquês de Sade e Jack, o Estripador” (XAVIER, 2004, p. 133). O personagem é transformado então em tema de controvérsia entre importantes psiquia-tras da época que discutem a sua patologia, dividindo-se entre distintos diagnósticos, sem chegarem a um acordo. Finalmente tido como “de alta periculosidade e irrecupe-rável”, recebe, em 1928, a visita do “escritor francês Blaise Cendrars, quando de uma de suas vindas ao Brasil” (XA-VIER, 2004, p. 134). O contato rende ao poeta um artigo, publicado na França, que, segundo o narrador comenta, neste episódio, consiste numa “curiosa mistura do que saíra sobre o caso nos jornais cariocas com as cativantes idéias do escritor” (XAVIER, 2004, p. 134).

Ainda em 1972, Febrônio persiste como alvo de inte-resse público. O cineasta Carlos Augusto Calil, por ocasião da filmagem de Acaba de chegar ao Brasil o bello poeta fran-cez Blaise Cendrars, “consegue permissão para entrevistar Febrônio no Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro, onde se achava internado havia 45 anos” (XAVIER, 2004, p. 135). O conto se encerra com a notícia do falecimento do “preso mais antigo do Brasil” (XAVIER, 2004, p. 136), em 1984, com 89 anos de idade, além de um último fragmento que dispõe ao final, uma suposta frase do criminoso indiciando o caráter de desígnio religioso que atribuía aos próprios atos: “Qual o maior poder: ELE, Lúcifer, ou a Luz? Resposta: Devo ser verdadeiro, ape-

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sar de ser uma de suas inúmeras vítimas”12 (XAVIER, 2004, p. 137).

O último episódio do livro, “Gângsteres num país tro-pical”, conta uma história passional em que dois bandidos estrangeiros, o húngaro Rudolph Kindermann e o alemão João Papst, assaltantes e assassinos bem equipados e com-petentes, são traídos pela amante do primeiro, a alemã Martha Schamedeke. Uma vez sabedora da verdadeira profissão do amante, a mulher, ainda apaixonada por um “conhecido e rico futebolista de Curitiba” (XAVIER, 2004, p. 163), o denuncia “ao jovem desportista” (XAVIER, 2004, p. 170), cujo nome não é esclarecido pelo narrador. Depois de presos na Penitenciária do Ahú, em Curitiba, enquanto aguardavam julgamento, os dois bandidos co-mandam uma revolta no presídio que, imediatamente, encontra ressonância na exibição de dois filmes. Um norte-americano, denominado A revolta no presídio, e o outro produzido no calor da hora por João Batista Groff13 que, segundo o narrador, além da insurreição dos presos, tam-bém dedica-se especificamente a documentar a situação dos bandidos estrangeiros e de Martha. O proprietário da Groff Filmes (XAVIER, 2004, p. 174), hoje em dia, nome de rua em Curitiba, celebrizou-se por seus documentários sobre as cidades do Paraná e, mais especificamente, pela autoria de “Pátria redimida” sobre a Revolução de 1930, no Brasil.

O intrigante desta triste história – que termina com a morte na prisão dos dois ladrões e a volta de Martha para a Alemanha – é justamente o motivo pelo qual esta últi-ma resolve delatar o amante que lhe havia confiado seus segredos, como prova da maior devoção e do mais genuíno amor. Mais uma vez, os impulsos passionais apontam para uma espécie de “sublimidade” das razões, jamais enun-ciada, mas apenas aludida pelas imagens e pela ênfase da retórica inflamada. A esse respeito, o penúltimo fragmento narrativo do relato é eloquente. Sob o título “No cubículo de Kindermann”, o narrador, descrevendo o sofrimento do assaltante, ferido durante a rebelião no presídio, num mo-

12 A marcação em negrito é do autor.

13 Os principais registros hoje disponíveis sobre a Curitiba do início do século XX são de autoria de João Baptista Groff (1897-1970), artista curitibano que atuou como fotógrafo, cineasta, editor e pintor. Foi em meados da década de 20 que Groff produziu o seu primeiro filme, depois de conhecer e se encantar com uma câmera filmadora. Seu primeiro desafio foi filmar as Cataratas do Iguaçu e as Sete Quedas, desbravando muitos trechos daquela região. Groff vendeu as imagens para a produtora americana Walt Disney e elas passaram a integrar o documentário “Maravilhas da natureza”. Depois passou ao registro dos acontecimentos políticos e estreou, em 1930, o filme “Pátria redimida”, sobre a passagem das tropas revolucionárias de Getúlio Vargas pelo Paraná. (Disponível em: <http://www.paranaonline.com.br/editoria/almanaque/news/105543/?noticia=GROFF+EXPOE+IMAGENS+DE+CURITIBA>. Acesso em: 03/05/2011).

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vimento cinematográfico de câmera, detém-se na parede da cela, para revelar o seu emblema alegórico:

Penetremos na cela de Kindermann. O bandido está deitado em seu catre, geme de dor [...] Levantemos nossos olhos para a parede da célula. Vemos um desenho em tamanho grande feito por Kindermann: é seu auto-retrato com a ganga azul listrada de presidiário. No gorro o número 195. No desenho Kindermann está abraçado com Martha, a amante que o traiu. Cercando o par de namorados, uma grossa corrente de ferro; por baixo, escrita em alemão dentro do desenho de um cadeado, a legenda: EPÍLOGO DE UM AMOR (XAVIER, 2004, p. 177).

É bastante curioso sublinharmos o contraste entre o caráter calculado e tecnológico do latrocínio praticado pelos bandidos estrangeiros, “gângesteres”, como no título, e a natureza do vínculo romântico e desinteressado entre Kindermann, o líder da dupla, e sua Martha.

A ação instantânea e a prontidão violenta dos ladrões ao roubarem, matarem e fugirem são anotadas pelo narra-dor, em comparação com o caráter pacato e provinciano da polícia, despreparada para entender e coibir tais espécies de crimes: “A polícia paranaense nunca se vira às voltas com um crime assim: um latrocínio planejado nos míni-mos detalhes, com utilização de armas de fogo, furto de automóvel e sem que os criminosos deixassem qualquer pista, parecendo obra de quadrilha organizada” (XAVIER, 2004, p. 158).

O conjunto de relatos, comentados a partir do entre-laçamento entre as estéticas do melodrama e da alegoria, é, sem dúvida, anacrônico e bastante sugestivo de certo mal-estar de uma época marcada pelo hiato entre os costumes e expectativas pré-capitalistas e a irreversível transformação das paisagens urbanas, açodadas pelas tecnologias de transportes, comunicação e reprodução técnica. É significativo que, nos dois crimes da mala, a aposta seja feita na mobilidade do meio de transporte de

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alcance internacional como estratégia de dispersão da prova-chave, o corpo da vítima: no primeiro conto, “o grande transatlântico Cordillère” (XAVIER, 2004, p. 69), no segundo, o “navio Massilia” (VX, 150), ambos saindo de Santos, o maior porto do Brasil, na época.

É bastante revelador o poder do cinema, como ins-tância de repercussão, discussão e divulgação dos grandes problemas e desafios do momento. No caso específico do crime histórico atribuído à “Rainha do Café”, o papel di-fusor e democratizador dos costumes políticos agenciado pelo novo invento áudio-visual delineia-se com nitidez, pela própria resistência que gera da parte dos advogados da latifundiária, envolvidos intensamente no impedimento das projeções do documentário.

Hoje em dia, um século depois, em função do torveli-nho de crescentes mudanças tecnológicas que nos envol-ve e inunda o nosso cotidiano, “vivemos um tesarac”.14 Segundo constata o jornalista Pedro Doria, em seu artigo “Bem-vindos ao tesarac”:

A palavra está no vocabulário básico dos publicitários. Os mais afiados gostam de suspirá-la entre palestras. Peter Drucker, o primeiro guru de administração, já falava em tesarac nos últimos anos de sua vida. Assim como vivem de citá-lo os sociólogos que, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) estudam o impacto da tecnologia em nossas vidas. Tesarac quer dizer mudança profunda. Daquelas tão profundas que nos tiram o norte. [...] Tesa-rac, o neologismo, foi criado pelo poeta americano Shel Silverstein. [...] Tesarac, para o poeta que cunhou a palavra, era isso: um vácuo. Um evento tão brutal e aterrador que transforma a vida. [...] Durante um tesarac, sabemos que o mundo antigo já passou, mas o novo ainda não existe. As regras se perdem. Em algumas décadas, a sociedade se reorganizará. Haverá novas instituições, novas idéias políticas, outra estrutura social [...] Vivemos um tesarac. O mundo está mudando profundamente e sabemos disso. Sabemos também que o causador da mudança é a tecnologia

14 Trata-se de um artigo de Pedro Doria, publicado na seção Digital & Mídia, n’O Globo, Caderno Economia, de 12/04/2011, p. 26.

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de comunicação. Só o que não sabemos é em que o mundo se transformará (DORIA, 2011, p. 26).

Crimes à moda antiga, com seus “contos verdade”, ao falar do tesarac vivido no início do século XX, mesmo num país como o Brasil, ainda periférico, delineia as matrizes do nosso atual mundo globalizado, e esboça a violência dos seus rumos imprevistos e, nem sempre, pródigos.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasil-iense, 1984.

_____. Obras escolhidas. Magia e técnica. Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1, p. 165-196.

BROOKS, Peter. The melodramatic imagination Balzac, Henry James, melodrama and the mode of excess. 1. ed. de 1976. New Haven and London: Yale University Press, 1995.

DORIA, Pedro. Bem-vindos ao tesarac. O Globo, Caderno Econo-mia, Digital & Mídia, p. 26, 12 abr. 2011.

LUCKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. In:_____. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 47-99.

HUPPES, Ivete. Melodrama. O gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê, 2000.

RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe A. de (Orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.

SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3, p. 513-619.

THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. Trad. e notas de Clau-dia Braga e Jacqueline Penjon. São Paulo: Perspectiva, 2005.

SINGER, BEN. Melodrama and modernity. Early sensational cinema and its contexts. New York: Columbia University, 2001.

XAVIER, Valêncio. Crimes à moda antiga. Contos verdade. Il-ustrações de Sérgio Niculitcheff e Valêncio Xavier. São Paulo: Publifolha, 2004.

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Pareceristas

Alexandre Pilati

Benito Martinez Rodriguez

Eduardo de Assis Duarte

Hélio Seixas Guimarães

Jaime Ginzburg

José Américo Miranda

Luís Bueno

Luiz Carlos Simon

Marilene Weinhardt

Mario Luiz Frungillo

Raquel Illescas Bueno

Silvana Oliveira

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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos

• Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: [email protected]

• Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, ende-reço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords.

• O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo.

• Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência:

- Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos);

- Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com mai-úscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;

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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10;

- Palavras-chave – dar um espaço em branco após o re-sumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave;

- Abstract – mesmas observações sobre o Resumo;

- Keywords – mesmas observações sobre as palavras-chave;

- Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver;

- Parágrafos – usar adentramento 1 (um);

- Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração;

- Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor;

- Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.

- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.

- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: so-brenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-

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Normas da revista 245

nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé.

- Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publi-cação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários.

- Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

alguns exemplos de citações

• Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confron-to entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens

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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992)

• Citação de citação e citação com mais de três linhas

Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

alguns exemplos de referências

• Livro

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Para-doxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

• Capítulo de livro

BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.

• Dissertação e tese

PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004.Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas, Universidade de São Paulo.

• Artigo de periódico

GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma bre-ve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.

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Normas da revista 247

• Artigo de jornal

TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais

CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Ma-ria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet

FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Dis-ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009.

observação final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).