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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 93, ago. 2001 EDITORIAL A proximadamente há duas semanas, saiu a nova lista de proibições que o Taliban – que governa o Afeganistão desde 1996 – impõe à população daquele país. A interpretação primitiva das leis do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, já havia imposto a proibição da dança, da música, da diversão, além do trabalho e estudo para as mulheres. Re- centemente, o mundo assistiu perplexo a destruição de duas imagens gi- gantescas de Buda, erguidas há mais de 1500 anos e a destruição de 70% do acervo do Museu Nacional de Cabul. Da nova lista de proibições cons- tam, além dos bichinhos de pelúcia, jogos de xadrez, a fotografia e o ba- tom! Todavia, na mesma semana, vinha à luz, pelas lentes de um fotógra- fo, as imagens da resistência do povo afegão a esse obscurantismo medi- eval; as fotos de uma alegre festa de casamento, com música, dança e belas roupas que, após a festa, eram escondidas pelo cinzento burqa – o manto obrigatório que cobre as mulheres da cabeça aos pés. Mas o que isso tem a ver com a psicanálise, com a APPOA ou com este número do Correio? Esse episódio revela uma das paixões dos hu- manos: a imagem e nossa relação com ela, de fascínio e de desconfiança. A dialética entre a imagem e a palavra costuma opor o visível ao invisível. Desconfiar do visível ou alienar-se nele são os equívocos mais comuns onde nos metemos, esquecendo que há caminhos possíveis entre a ce- gueira do verbo e a concretude da imagem. É sobre essa mediação possí- vel que Evgen Bavcar, filósofo e fotógrafo cego, vem nos ensinar com seu trabalho. O que é ver? Desde onde e como nosso olhar recorta e recorda o mundo que nos cerca? Inspirado pelas questões que Evgen Bavcar levan- ta com sua arte, Alfredo Jerusalinsky aponta no texto “O cego no espelho” a importância do shifter na constituição da imagem e do sujeito. Edson de Souza parte do elemento sombra, que recorta os objetos e lhes dá novas visibilidades “para dentro”, atualizando memórias do que talvez nunca vi- vemos a não ser, claro, em nossos desejos. Élida Tessler, artista plástica, João Frayze-Pereira, Patrícia Balestrin e Benjamin Foulkes, psicanalistas, trazem-nos seus testemunhos do que o encontro com a obra de Evgen Bavcar os fez produzir.

EDITORIAL A · que o Taliban – que governa o ... o livro sagrado dos muçulmanos, já havia imposto a proibição da dança, ... Mas o que isso tem a ver com a psicanálise,

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 93, ago. 2001

EDITORIAL

Aproximadamente há duas semanas, saiu a nova lista de proibiçõesque o Taliban – que governa o Afeganistão desde 1996 – impõe àpopulação daquele país. A interpretação primitiva das leis do Corão,

o livro sagrado dos muçulmanos, já havia imposto a proibição da dança,da música, da diversão, além do trabalho e estudo para as mulheres. Re-centemente, o mundo assistiu perplexo a destruição de duas imagens gi-gantescas de Buda, erguidas há mais de 1500 anos e a destruição de 70%do acervo do Museu Nacional de Cabul. Da nova lista de proibições cons-tam, além dos bichinhos de pelúcia, jogos de xadrez, a fotografia e o ba-tom! Todavia, na mesma semana, vinha à luz, pelas lentes de um fotógra-fo, as imagens da resistência do povo afegão a esse obscurantismo medi-eval; as fotos de uma alegre festa de casamento, com música, dança ebelas roupas que, após a festa, eram escondidas pelo cinzento burqa – omanto obrigatório que cobre as mulheres da cabeça aos pés.

Mas o que isso tem a ver com a psicanálise, com a APPOA ou comeste número do Correio? Esse episódio revela uma das paixões dos hu-manos: a imagem e nossa relação com ela, de fascínio e de desconfiança.A dialética entre a imagem e a palavra costuma opor o visível ao invisível.Desconfiar do visível ou alienar-se nele são os equívocos mais comunsonde nos metemos, esquecendo que há caminhos possíveis entre a ce-gueira do verbo e a concretude da imagem. É sobre essa mediação possí-vel que Evgen Bavcar, filósofo e fotógrafo cego, vem nos ensinar com seutrabalho.

O que é ver? Desde onde e como nosso olhar recorta e recorda omundo que nos cerca? Inspirado pelas questões que Evgen Bavcar levan-ta com sua arte, Alfredo Jerusalinsky aponta no texto “O cego no espelho”a importância do shifter na constituição da imagem e do sujeito. Edson deSouza parte do elemento sombra, que recorta os objetos e lhes dá novasvisibilidades “para dentro”, atualizando memórias do que talvez nunca vi-vemos a não ser, claro, em nossos desejos. Élida Tessler, artista plástica,João Frayze-Pereira, Patrícia Balestrin e Benjamin Foulkes, psicanalistas,trazem-nos seus testemunhos do que o encontro com a obra de EvgenBavcar os fez produzir.

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NOTÍCIAS

CARTÉIS NA APPOA

Divulgamos a lista parcial dos cartéis inscritos no Quadro de Ensinoda APPOA. Pedimos aos colegas que ainda não registraram seus grupos,que nos informem por e-mail, aos cuidados de Ligia Víctora.

A CLÍNICA DA MELANCOLIA E AS DEPRESSÕESTema: Chamado carinhosamente de “cartelão”, por reunir um grande número departicipantes, este grupo dedica-se ao estudo do tema e à preparação da jornadade setembro na APPOA.O roteiro completo dos encontros, assim como a bibliografia indicada e os textos játrabalhados, encontram-se na Secretaria.OBS.: O “cartelão” é aberto a todos os interessados. As reuniões são quinzenais,na 2ª e 4ª quintas-feiras de cada mês. Horário: 20h30min, na sede da APPOA.

CARTEL DO INTERIOR O Cartel do Interior constituiu-se na APPOA, há vários anos atrás, como um espa-ço privilegiado de encontro e discussão das questões pertinentes ao trabalho psi-canalítico fora de Porto Alegre, pois a maioria de seus componentes reside e exer-ce sua prática em outras cidades do RS e de outros estados. Reúne-se em médiaa cada dois meses, na sede da Associação (a não ser no Relendo Freud e Conver-sando sobre a APPOA, em Canela). Este ano o cartel tomou como eixo de trabalho o tema da Melancolia e das Depres-sões, abrindo espaço para a produção e a interlocução de seus membros sobreesta temática nas diversas nuances com que a escuta clínica se depara, nos con-sultórios e nas instituições. O cartel geralmente se reúne aos sábados, acompa-nhando, sempre que possível, outras atividades da APPOA (Exercícios Clínicos,Jornadas e outros eventos). É um cartel aberto a todos que estiverem interessadosnestas questões.

A ESTRUTURAÇÃO PSICÓTICATema: Leitura de textos relacionados à questão da estruturação subjetiva e, maisespecificamente à estruturação psicótica. Relatos de experiências do trabalho rea-lizado nas distintas instituições pelas participantes do cartel. Discusão sobre aspeculiaridades da clínica psicanalítica em instituições que visam atender crianças,adolescentes e/ou adultos psicóticos.

Os limites da visão, sua indefinição, seus escuros podem inauguraroutros modos de ver, assim como os tropeços da língua desvelam verda-des insuspeitas, desmontando nossas falácias. É verdade que vivemossob o império da imagem, mas é sua banalização e proliferação no merca-do das novidades a consumir que pode ser empobrecedora, superficial,produzindo esquecimento e o apagamento do sujeito. Que não precisariaconstruir nada com o que lhe é oferecido ver. A exposição à luz, a visibili-dade caricata, o alardeamento ostensivo dos saberes e suas credenciaismascara e cega, mas também evidencia sua estrutura de segredo, comonos demonstra Lacan com sua leitura de “A carta roubada” de Poe. Mas acondenação do visível, do belo, da experiência estética, só pode vir dequem sabe a força da imagem e pretende para melhor dirigir e alienar osoutros, saber qual é a imagem verdadeira para cada coisa. Esse é o enga-no do Taliban, pretendendo cegar seus compatriotas. Mas, como pode-mos ver nas fotos proibidas, sob um cinzento burqa, brilham a seda rosade um vestido e os olhos de uma noiva. A música que acompanhou aentrada da bela noiva, segundo o ousado fotógrafo, era a proibidíssima“My heart will go on”, tema de Titanic (o que, aqui entre nós, poderia dizeralgo sobre o futuro deste casamento...)! Estaríamos trocando uma aliena-ção por outra? Aí depende de quem olha! Pode-se ver Vermeer, o pintordo século XVII que, segundo especialistas, usava uma câmara escura paradomar a entrada da luz que bordaria a cena a ser pintada, antecipando afotografia. Aliás, ele gostava de retratar mulheres absortas em tarefas co-tidianas, como ler uma carta ou servir um leite. Absortos ficamos nós, to-cados em nossas memórias, por esses olhares.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Textos já trabalhados: CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial daspsicoses. AUGLANIER, P.C. Observações sobre a estrutura psicótica. CALLIGARIS,C. Perversão - Um laço social? CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica psicana-lítica. FREUD, S. Luto e melancolia. Participantes: Márcia Goidanich, Maria Lúcia Baldasso, Maria Mônica Poli, SimoneKasper e Tatiane Reis Vianna.OBS.: No momento o grupo já está constituído, mas futuramente é possível abrirpara novos participantes. 

FIGURAÇÕES DO FEMININO NA PSICANÁLISETema: O estudo da feminilidade.Participantes: Deborah N. Pinho; Diana L. Corso; Gerson S. Pinho; Maria LúciaMuller Stein; Marianne M. Stolzmann; Marieta L. M. Rodrigues e Simone M. Rickes.OBS.: É um cartel que funciona, no momento, em caráter fechado.

ESTUDO SOBRE O SEMINÁRIO DE JEAN BERGÈSParticipantes: Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Conceição Beltrão,Adão Costa.OBS.: Até o momento, o grupo trabalha em caráter fechado.

GRUPO DE ESTUDO E TRADUÇÃO DOSEMINÁRIO DE J. LACAN – O OBJETO DA PSICANÁLISE

Tema: este grupo interinstitucional, visa ao estudo e à tradução do Seminário XIII -O objeto da psicanálise, de J. Lacan.Participantes:– de Porto Alegre: Ana Maria Gageiro, Beatriz Kauri dos Reis, Denise Gick, EsterTrevisan, Francisco Setineri, Ligia Gomes Victora, Lucia Serrano Pereira, MariaMarta Heinz, Marilda Batista, Otávio Augusto W. Nunes, Rosane de Abreu e Silva;– de Paris: Ângela Jesuíno-Ferretto, Celina Ary Mendes Garcia, Gilles Garcia, LuizAlberto de Farias, Roneide Gil, Patrícia Ramos;– do Rio de Janeiro: Ana Cristina Manffroni, Dionysia Rache de Andrade, FranciscoLeonel Fernandes, Valmir Sbano, Maria Idália de Góes, Antônio Carlos Rocha,Luíza Ribeiro;– de Recife: Letícia Patriota da Fonsêca.OBS.: É um cartel aberto, para “franco-lusofônicos”.

Reuniões quinzenais, na APPOA. Contatos pelo tel. 3224.3232, com Ligia Víctora.

A ÉTICA PSICANALÍTICA NAS INSTITUIÇÕES Tema: Dando continuidade a este Cartel, que tem por objetivo pensar as diversasinserções da psicanálise nas práticas institucionais, através do conceito de Éticado Desejo, proposto por Lacan, a leitura central deste semestre será o próprioSeminário 7 “A ética da psicanálise”. A partir desta leitura, dois objetivos forampropostos para este ano pelos componentes do Cartel: 1) dar continuidade à dis-cussão de textos produzidos por aqueles que, de uma ou outra forma, se engajaramem trabalhos institucionais e possuem interessantes depoimentos e questões paraque possamos examinar à luz do Seminário da Ética; 2) reunir as produções exis-tentes, desde aquelas iniciadas pelo Fórum, sobre questões relevantes e freqüen-tes dentro das práticas institucionais, como: questão de pagamento e transferência“anônima”, até as produzidas por instituições convidadas no Ciclo organizado peloFórum em 1999: “A Clínica Institucional em Debate”. O objetivo é revisar estasproduções, junto com seus autores, numa articulação com o Sem. 7, para quepossamos pensar numa publicação que reúna nossas principais questões quantoao laço institucional e as possibilidades de práticas analíticas.Participantes: Luciane Loss, Ubirajara Cardoso, Márcia Goidanich e GardêniaMedeiros.OBS.: O cartel é aberto, e funciona quinzenalmente na sede da APPOA, sextasfeiras, às 16h30min. Contatos pelo tel.: 3311.5028, com Luciane Loss.

ESTRUTURAS CLÍNICASTema: O Cartel Estruturas Clínicas, que vem se reunindo desde o segundo semes-tre do ano 2000, tem se ocupado do tema das identificações, trabalhando o Semi-nário IX de Jacques Lacan.Tem como proposta atual, a leitura dos seguintes textos: “ L’identification spéculaire “ – Stéphane Thibierge “ Du corps à la lettre “ – Jean Bergès e Gabriel BalboParticipantes: Ricardo Vianna Martins, Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Reginade Souza Silva, Maria Elisabeth da Silva Tubino, Ana Paula Stahlschmidt.OBS: Sempre que nos propomos à leitura e ao estudo de textos em francês, solici-tamos a presença de uma professora da língua, para facilitação da tradução dosmesmos.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

O Cartel está aberto aos interessados, sendo novos integrantes benvindos.

A PESQUISA PSICANALÍTICAParticipantes: José Luís Caon, Marta Regina de Leão D’agord, Ubirajara Cardosode Cardoso, Felippe Pezzi, Maria Cristina Solé.OBS.: Cartel aberto aos interessados.

PSICANÁLISE DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIAParticipantes: Ieda Prates da Silva, Larissa Scherer, Joene Martins, Maria SandraCamerini, Marilaine Mariano, Marilene P. dos Santos, Helen M. Brenner, Adriana X.de Almeida e Maria Inês Weissheimer. Tema trabalhado: Este ano estamos trabalhando o Seminário IV de Lacan: As Re-lações de Objeto, indo aos textos de Freud ali referidos, e cotejando com o nossotrabalho com a infância e a adolescência no consultório e nas instituições.OBS.: É um cartel aberto: o grupo reúne-se quinzenalmente, às terças-feiras, das19h30min às 21h, em Novo Hamburgo.Contatos pelos tel.: 582.9572 e 9987.9576, com Ieda Prates.

SUJEITO E CULTURAParticipantes: Edson A. L. de Souza, Lucia S. Pereira, Ana Maria Cos ta.OBS.: No momento, trabalhando em caráter fechado, podendo ser aberto no segun-do semestre.

IDENTIFICAÇÃO E TOXICOMANIASParticipantes: Clarice Sampaio Roberto, Marta Conte, Tatiane Vianna e OtávioAugusto Winck Nunes.OBS.: Cartel aberto. Reuniões quinzenais, sextas-feiras, às 16h30min, na APPOA.

DEBATE: FRATERNIDADE

A APPOA convida seus associados e alunos do Percurso para umdebate sobre Fraternidade com Maria Rita Kehl e Jean-Jacques Rassial.Cabe lembrar que esta discussão teve início a partir da publicação do livroorganizado por Maria Rita Kehl, intitulado Função fraterna (ed. RelumeDumará). Desde então, tem sido alvo de discussões e eventos em lugaresdiversos, ocasiões de relançamento do debate acerca da noção de Fun-ção Paterna e do reconhecimento da singularidade do sujeito através desua inserção no coletivo.

Dia: 25 de agosto – SábadoHorário: 9h30minLocal: sede da APPOAVagas limitadasInscrições antecipadas na Secretaria da APPOA

GRUPO TEMÁTICO: “DIAGNÓSTICO DA ESTRUTURAÇÃO SUBJETIVA EM SEUS PRIMÓRDIOS”

Esta é uma proposta para realizar um trânsito pela leitura clínica daestruturação do desenvolvimento do recém nascido, do lactente e do bebê nosseus aspectos diacrônicos e sincrônicos. Será efetuado tanto o deciframento da

produção dos bebês “ditos normais” quanto à leitura dos valores sintomáticos dasalterações na inscrição e na constituição desejante, assim como, também, do valorsintomático das alterações orgânicas.

Na leitura, feita a partir da análise dos registros escritos e de filmagens deproduções dos recém nascidos, lactantes e bebês no laço parental, abordaremos:1) a formação do fantasma a partir:

a – da sexuaçãob – da identificação primáriac – da filiação

2) a formação do sinthome: modos de produção de artifícios para suportar a cone-xão com a realidade (sintomas de estrutura).

Coordenadores: Silvia Molina e Ana Marta MeiraFreqüência: quinzenalHorário: 20 às 21h 30Início: 06 de agosto/2001

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DO LAÇO FAMILIAR AO LAÇO SOCIAL:O ADOLESCENTE E SUAS INSTITUIÇÕES

O Programa de Pesquisa e Extensão Adolescência e Experiênciasde Borda do Instituto de Psicologia/UFRGS, há um ano e meio, tem serevelado um fértil campo de discussões e de pesquisas que tematizam aadolescência. Além disso, preocupado com a socialização de tais produ-ções, tem desenvolvido cursos de extensão e eventos dirigidos a profissi-onais e estudantes. Visa, assim, a reunir pesquisa e extensão, como pos-sibilidade de interação Universidade/Comunidade.

Parte da premissa de que a adolescência, mais do que um momen-to cronológico, é um trabalho psíquico. Trata de pensá-la como uma pas-sagem do sujeito de um lugar na família a um lugar no social. Momentodecisivo no processo de subjetivação, se entendido como um abandonoda posição de assujeitamento à posição desejante na relação ao Outro.

Sabe-se, a partir da psicanálise, que, paradoxalmente, é no coletivoque o sujeito busca o reconhecimento de uma singularidade. Mas, qualseria a diferença quando esse coletivo não é mais o laço familiar e sim osocial?

A aposta é de que a adolescência contenha a chave para tal interro-gação. Enquanto posição discursiva, ela é produto da modernidade e pa-rece constituir um paradigma de muitos dos sintomas sociais da atualida-de. O adolescente, ao empenhar-se na construção de um lugar a partir doqual possa afirmar-se, questiona o instituído, seja este familiar, social,parental, conjugal, etc. E, nesta medida, a adolescência toma o caráter deuma experiência de borda, marginal, onde o dentro/fora, a exclusão/inclu-são, vê seus limites interrogados, transgredidos e subvertidos.

Portanto, a passagem adolescente supõe uma torção peculiar entreo espaço público e o privado. E, para o adolescente e para quem se ocupadele, estes espaços se interpenetram, colocando questões que atraves-sam a todos.

O Programa tem sido testemunha disso ao acolher, sob a forma decurso de extensão, um número considerável de demandas de profissio-

nais que atuam em diferentes âmbitos: consultórios psicanalíticos; institui-ções municipais e estaduais encarregadas de adolescentes, incluindo-seaí servidores de nível superior de áreas diversas, bem como os de nívelmédio, tais como monitores de instituições asilares. Em comum, todos elestrazem muitos interrogantes acerca da adolescência e expectativas de re-fletir sobre suas práticas com o sujeito adolescente.

Contudo, o Programa busca não somente fazer chegar à comunida-de os resultados da pesquisa universitária, mas, sobretudo, acredita que aprática desses profissionais possa trazer novas indagações às teoriasconstruídas na Universidade.

E é com esse espírito de interação Universidade/Comunidade, queconvida todos aqueles que se vêem interpelados pelo tema a participaremdeste diálogo, na modalidade de uma mesa-redonda intitulada “Do laçofamiliar ao laço social: o adolescente e suas instituições”.

MESA-REDONDA

* Ana Maria Medeiros da Costa – Coord. do Programa de Pesquisa e ExtensãoAdolescência e Experiências de Borda/ Instituto de Psicologia/UFRGS, Doutoraem Psicologia Clínica (PUC/SP),psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre;

* Jean-Jacques Rassial – Coord. da Unité de Recherche Psychogénèse etPsychopathologie/Université Paris XIII, Doutor em Psicopatologia Clínica (Univer-sidade de Provence), psicanalista;

* Guilene Salerno – Coord. da Secretaria Geral de Políticas Sociais/Prefeitura Mu-nicipal de Porto Alegre, Especialista em Saúde e Trabalho (UFRGS), psicóloga;

* Marta Conte – Coord. da Política de Saúde Mental (PAISMENTAL)/Secretaria daSaúde/Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Doutora em Psicologia Clínica(PUC/SP), psicanalista.

Dia: 23 de agostoHorário: 20 horasLocal: Salão 2 da Reitoria da UFRGS – Av. Paulo Gama, s/nºInscrições:

* SOP/Instituto de Psicologia/UFRGS – Rua Ramiro Barcellos, 2600, térreo – 09 às18h.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

* APPOA – Rua Faria Santos, 258 – das 13h30min às 21h.

* No local do evento – dia 23/08 – das 19 às 20h.Taxa de inscrição: R$ 15,00 (profissionais)

R$ 10,00 (alunos da UFRGS)Promoção:– Programa de Pesquisa e Extensão Adolescência e Experiências de Borda/Insti-tuto de Psicologia/UFRGS– Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

Apoio: PROREXT/UFRGSPROPESQ/UFRGS

EXERCÍCIOS CLÍNICOS – 30/06/2001

No último dia 30, realizou-se na sede da APPOA mais um encontrodos “Exercícios Clínicos”, desta vez tendo como proponente a colegaAnalice de Lima Palombini e como debatedores Rosane Monteiro Ramalhoe Ester Trevisan. O tema proposto ao debate – “Poder e transgressão narelação psicanalítica – Sobre o concreto, o céu aberto, o fora” –, apresen-tava uma reflexão sobre o trabalho de Acompanhamento Terapêutico (AT),desenvolvido por um grupo, sob sua coordenação, na Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul.

Como o próprio título coloca, o tema trazia um debate da psicanáli-se com autores de outras linhas de pensamento: Foucalt e Deleuze. Nãopor acaso o grande público participante do encontro, e que ativamentetrouxe questões, reflexões e depoimentos de experiências próprias, eracomposto por pessoas de diversas áreas como psicomotricidade, terapiaocupacional, além da psicanálise.

O AT foi situado como uma intervenção possível na clínica das psi-coses. Estando em um outro lugar que não a família, nem a instituição naqual se realiza o tratamento, o AT expande os limites trazidos por um“setting” clínico tradicional, propondo-se emprestar algo do seu “eu” noatendimento a sujeitos presos numa ordem própria, que os coloca fora doslaços sociais simbolicamente determinados.

A dificuldade no exercício desta – função realizada por estudantesdo quinto semestre da graduação em psicologia –, o quanto ela modificaas percepções futuras no exercício profissional, o quanto ela se deslocada palavra para trabalhar com o que concerne à imagem, ao corpo, à di-mensão estética de uma experiência foram, entre outras, questões trazidasdurante a manhã. Para enfatizar a questão da imagem e do som, foi apre-sentado por Analice um vídeo realizado pelo grupo de pesquisa em AT,reconhecido como um trabalho gerador de novas narrativas sobre a expe-riência em curso.

Maria Mônica Candal Poli

PUBLICAÇÕES EM DEBATE

A APPOA tem se mostrado particularmente rica em publicações.Além do Correio, que nos atualiza mensalmente veiculando notícias e tex-tos, temos ainda a Revista, que duas vezes por ano vem enriquecer nossoacervo com trabalhos sintonizados com as questões que vem sendo trata-das na instituição. Alem, é claro, das publicações aperiódicas. Pensandoem tornar ainda mais produtivo o espaço de publicar, estamos propondouma atividade nova: Publicações em Debate. Este seria o momento emque poderíamos, como o próprio nome diz, debater nossas publicações,estabelecendo uma interlocução mais direta entre os leitores daquilo queproduzimos. Serão convidados dois ou três leitores para debater a publi-cação em questão e, além deles, esperamos contar com a participação detodos os interessados pelo tema. Para inaugurar mais este espaço naAPPOA, convidamos a todos para o debate em torno da Revista 21 – “Aclínica da melancolia e as depressões”, que deverá acontecer no dia 18 deagosto, Sábado, às 9 horas. Nossos convidados serão Bárbara Conte eMaria Ângela Brasil.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Dias 24 e 25 de agostoColóquio “As imagens possíveis”Local: Auditório da Fundação Católica de MedicinaRua: Sarmento Leite 245, Porto AlegrePromoção: PPG Artes Visuais – Instituto de Artes UFRGS

PPG Psicologia Social e Institucional – UFRGSPró-Reitoria de Extensão – UNICULTURAPró-Reitoria de PesquisaPró-Reitoria de Pós-GraduaçãoSecretaria Estadual da Cultura – Casa de Cultura Mário QuintanaSecretaria Estadual do Trabalho e Ação Social

Apoio: Associação Psicanalítica de Porto AlegreFaders

Inscrições: Casa de Cultura Mário Quintana, tel.: 3221.7147PPG Artes Visuais, Rua Sr. dos Passos, 248, tel.: 3316.4313PPG Psicologia Social, Ramiro Barcelos, 2600, tel.: 3316.5149

Valores: R$10,00 EstudantesR$15,00 Profissionais

Inscrições LimitadasCoordenação do evento: Elida Starosta Tessler (Instituto de Artes – UFRGS)

Edson Luiz André de Sousa (Instituto de Psicologia –UFRGS/APPOA)

PROGRAMASexta-feira – 24 de agosto19h – Conferência de Evgen Bavcar: “O olhar ferido de Eros”

Sábado – 25 de agosto9h – Mesa redonda “Imagens possíveis e o inconsciente ótico”João-Frayze-Pereira (SP), Adauto Novaes (RJ), Edson Sousa (RS)

14h – Mesa redonda “As imagens de Bavcar”Benjamim Foulkes (México), Rubens Machado Junior (SP) e Elida Tessler (RS)

17h – Conferência de Evgen Bavcar “O corpo, imagem do infinito”

EVGEN BAVCAR EM PORTO ALEGRE

Dia 23 de agosto – Quinta-feiraAbertura da exposição “A noite, minha cúmplice”Local: Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGSHora: a partir das 19h(Nesta exposição Bavcar mostrará uma série de fotos inéditas que fezrecentemente em Minas Gerais)

CARTEL DO INTERIOR No dia 14/07/01, realizou-se uma reunião do Cartel do Interior na

APPOA.  A partir de informações iniciais sobre algumas jornadas que es-tão sendo organizadas em várias cidades, abriu-se uma importante dis-cussão sobre a transmissão da psicanálise, a formação analítica e suasvicissitudes nas cidades do “interior”. Esta discussão apenas começou ecertamente voltaremos a ela nas próximas reuniões. Logo a seguir, SilviaCarcuchinski Teixeira apresentou um histórico sobre seu trabalho insti-tucional em São Gabriel, levantando uma série de questões e reflexõesque animaram um caloroso debate sobre as dificuldades, os impasses eas possibilidades do trabalho analítico nas instituições públicas. Discuti-mos, por exemplo, a precariedade da função simbólica nas instituiçõesque lidam com a infância abandonada (ou em situação de risco), a perpe-tuação da miséria, a ameaça constante de um fim (que paira sobre o tra-balho) - questões que nos aproximam do tema da melancolia. De outrolado, a polaridade como mecanismo de funcionamento das instituições, ea necessidade do analista se colocar ali na posição do terceiro, rompendocom este discurso da dualidade.

Sentimos a necessidade de avançarmos nesta discussão, o queficou combinado para a próxima reunião do Cartel, que se realizará em 24de agosto, às 18h, na sede da APPOA.

 Coordenação do Cartel

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NOTÍCIAS

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UM VÔO INTERROMPIDO: NORBERTO IRUSTA

Em vinte e oito de junho próximo passado, um vôo foi interrompidopelo que de mais real e certeiro acomete os seres humanos.

Norberto Carlos Irusta, fundador e presidente da Biblioteca Freudianade Curitiba, falece em meio a um projeto, dentre tantos por ele empreendi-dos, de mais um ponto de consolidação da instituição que conquistou res-peito e reconhecimento devido a incontáveis golpes da boa mestria quelhe eram próprios.

As primeiras transmissões e difusões do discurso freud-lacanianoem Curitiba e no Paraná deveram-se principalmente a ele que, vindo deuma formação na Argentina esculpida por Oscar Masotta, José Rafael Paz,Hugo Bleichmar e Raul Sciarretta, retirou a psicanálise do campo da psi-quiatria onde estava situada até então. Inquieto diante das delicadas ques-tões relativas a formação de analistas, criou um dispositivo de formaçãochamado Lugar: clínica – teoria – instituição onde os passos de formaçãoencontram testemunhos permanentes.

Dentre os inumeráveis artigos que escreveu, encontrava-se interes-sado ultimamente no tocante aos impasses que a clínica analítica apre-senta em nossa contemporaneidade, e destacam-se aqueles relativos àclínica de borda. Quanto à psicanálise em extensão, seu recente empe-nho na idéia, organização e produção no Congresso Internacional de Éticae cidadania foi notável sua capacidade de interrelação com as diferentesáreas do conhecimento e sua contribuição na reflexão sobre o momentohistórico em que vivemos. Ética é o termo com que podemos identificarsua clínica e seu proceder institucional, sempre movidos pela sua habili-dade para transformar os vendavais em ventos favoráveis e as tempesta-des em boa água para os frutos.

O vôo interrompido deixa para aqueles com quem o intercâmbio erafrutífero, um vácuo. Sua ausência talvez seja o último ensinamento, afinalsão os buracos os organizadores dos laços simbólicos, e cabe-nos saberfazer agora com isso.

Jandyra K. Menjazellip/ Biblioteca Freudiana de Curitiba

Há uma frase de Kafka que Evgen Bavcar gosta de repetir: “o que épositivo está dado, é então preciso descobrir o negativo”. Comeste número do Correio, inspirado na obra de Evgen Bavcar, pro-

curaremos abrir algumas trilhas neste percurso do negativo. Bavcar, deorigem eslovena e naturalizado francês, perdeu a visão com 12 anos e,desde então, vem desenvolvendo um fascinante trabalho de reflexão so-bre o estatuto da imagem na contemporaneidade. Intelectual renomado,doutor em filosofia com tese sobre estética, escritor sensível com inúme-ros textos publicados, ele vem desenvolvendo há muitos anos um trabalhofotográfico que efetivamente nos convoca a pensar.

Todos nós teremos a oportunidade de conhecê-lo mais de perto,pois estará em Porto Alegre na última semana de agosto trazendo umasérie de fotografias que fez recentemente em Minas Gerais sobre o Barro-co. Seu trabalho pode ser lido, de certa forma, como uma luta contra oesquecimento e, neste ponto, ele nos convida a tatear no escuro o contor-no de nossos fantasmas infantis. Sua obra convoca, portanto, a psicanáli-se ao diálogo.

Esperamos que este número possa suscitar em nossos leitores ainterrogação do contorno que cada um faz do possível de uma imagem.

Edson Luiz André de Sousa Maria Lúcia Müller Stein

SEÇÃO TEMÁTICA

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SEÇÃO TEMÁTICA

UM OUTRO OLHAR1

Evgen Bavcar2

Na perspectiva das questões que o problema da visão coloca, dacegueira e do invisível, uma resposta muito pessoal poderia serpretensiosa e pouco convincente. Foi refletindo sobre essas ques-

tões que me retornaram à memória as palavras de um amigo cego que,ainda criança, me dizia outrora: “Sabes, minha situação seria insustentá-vel se não fosse tu, e tantos outros, semelhantes a mim”. No gueto em quevivíamos na época, a solidariedade se impunha para cimentar a unidadede um grupo social etiquetado como “privado de visão física”. Quandohoje repenso nessa reflexão, ela me parece ingênua, mas também maisverdadeira do que parecia em sua formulação simples. Meu amigo sabiaque não se está só; e a primeira prova era minha presença como interlocutor,e depois a dos outros colegas de classe, e a existência de muitos outrosque se sabia cegos, de acordo com as estimativas e as classificações dasestatísticas. Talvez a frase “não estamos sós” designasse inconsciente-mente a presença bem maior das pessoas que sofreram nossa sorte e, demodo estúpido, o destino de cada um.

As figuras míticas oriundas de nossa cultura greco-romana, como oCíclope, Édipo, Ulisses, Tirésias e Argus nos revelam a história do olharem suas formas mais primitivas. Desse modo, o Cíclope, arquétipo da vi-são instintiva mais rudimentar, provido de um só olho, vê de maneiraunidimensional. Para ele, há ainda uma unidade paradisíaca do mundo e,mesmo ouvindo a voz de Ulisses, não pode se liberar desse apego ao tododa natureza para se pôr a olhar de outra maneira. É por isso que, no mo-mento da castração simbólica, quando Ulisses o priva de seu único órgãoda visão, ele continua a ver de modo monocular e cai na armadilha do

1 Tradução de Francisco Settineri.2 Fotógrafo, escritor, filósofo e doutor em estética. Pesquisador do CNRS.

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Exposição “A Noite, minha cúmplice”,Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, agosto/2001.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Nessa perspectiva, Ulisses representa o olhar desligado dodeterminismo arcaico que, no destino de Édipo, vai-se revestir de umaoutra forma, a da cegueira.

O rei, não tendo reconhecido sua mãe, torna-se cego para poderolhar a mulher, ou seja, para superar o pecado original no qual ele cai semo saber. É assim que sua resposta à Esfinge: “É o homem”, encontra seupleno valor. Binocular perfeito, Édipo não sabia que não podia escapar dafatalidade mítica a não ser caindo na tomada de consciência de sua condi-ção de homem; e eis que principia o nascimento do terceiro olho. Édipo,tendo perdido a vista – sua visão dupla –, não pode mais navegar entre oretorno à fatalidade e a separação insustentável de um Ulisses que secontenta com a diferenciação visual entre o nome e a coisa. Privado dessacapacidade, Édipo se dirige para uma terceira possibilidade, ou seja, umavisão que vai além de todo ver mítico e do ver diferenciado de Ulisses,para se voltar para o invisível. Talvez seja para os Ulisses satisfeitos con-sigo mesmos, com sua visão diferenciada, que se endereça a frase deKazantzakis: “Que lástima para nossos olhos de argila, porque eles nãopodem perceber o invisível”.

Em Édipo, trata-se do sacrifício dessa argila, para que o invisível –uma outra forma de existência – se torne objeto de seu desejo. Privado davisão binocular, ele encontra um referente sintético no terceiro olho que,só ele, pode ir para o invisível. Infelizmente, muitas vezes se compreen-deu mal o destino de Édipo, pois os cristãos o consideraram às vezescomo “o monstro grego”, sem admitir que ele representava uma parte de-les próprios. É por isso que a tradição cristã o substituiu pela figura deSanta Luzia, que se dá mais no plano imaginário e, com a acentuaçãoiconográfica da castração simbólica, tenta ocultar, ao mesmo tempo que acastração real, a noção do pecado original. Não podemos também esque-cer todas as grandes injustiças, os preconceitos e os ultrajes que afetamaqueles que, nas imaginações, fazem figura de Édipo, o grupo socialetiquetado de “os cegos”, apesar de seu terceiro olho.

A arqueologia do olhar nos mostra que essa qualidade nova da vi-são humana se exprime ainda melhor no olhar de Tirésias, arquétipo per-

grande astucioso que conhecia a diferença entre forma e conteúdo, entreo nome e a coisa; mais exatamente, para o Cíclope, Ulisses e Ninguémnão passam de um, e como seus irmãos compreendem que ele não foivítima de ninguém, eles não vão socorrê-lo. Sua visão se mantém unidi-mensional e não pode se opor à percepção binocular de Ulisses, que vê,por assim dizer, o nome e a coisa, em paralelo ou separadamente, se issoserve seus planos estratégicos. Com Ulisses, surge o olhar ligado ao sa-ber: ele vê o que sabe, e nada mais. Por certo, ocorre o mesmo para oCíclope, salvo que, à falta de saber olhar, não há um pensamento diferen-ciado; e ele deve, em conseqüência, olhar sempre a mesma coisa, ouseja, a unidade da natureza, o um e indivisível natural, que o conduz a seufim trágico.

No desenvolvimento do “saber olhar” mítico, Ulisses representa oolhar normal, ou seja, a visão comum, a visão natural, reputada perfeita.Ulisses tendo ganho a batalha contra o Cíclope, o olhar monocular éinadaptado quando o olho humano começa a pensar no que vê, e a dife-renciar entre o significante e o significado, entre o objeto e seu signo, apessoa e seu nome. De modo que, em relação ao Cíclope, Ulisses se situano mesmo nível que a criança face ao espelho, face ao objeto que vaifazer nascer nela o olhar diferenciado. Não é por acaso que o olho doCíclope é representado na arte sob a forma de um espelho. Na realidade,a figura desse monstro infeliz remete a nossa própria experiência face aoespelho, que nos obriga a separar a imagem refletida de seu objeto real.

Na realidade, somos todos Cíclopes infelizes, tendo esquecido nos-so destino trágico, certos e convencidos de que o olhar binocular de Ulissesé a única resposta possível à natureza. Isso significa que nossa condiçãode homem encontra, com Ulisses, a distância que nos permite pensar omundo, sem cair na fatalidade mítica.

O sacrifício do olhar monocular do Cíclope é necessário para pagaro privilégio de não olhar todo o tempo a mesma coisa, sem apelo e semesperança de ver também por nós mesmos. O olhar monocular é o dafatalidade, que é, afinal de contas, cega, porque ela remete a si mesma,repetindo-se ao infinito, como o fazem os espelhos.

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von Balmoos pensa que mesmo os cientistas que observam o céu estãona posição de cegos, pois, no universo conhecido, comparado a um pianode 53 oitavas, eles só podem ver com seus próprios olhos uma única pe-quena oitava. Nesse caso, talvez não se deva fiar-se apenas no olhartecnológico da ciência, se nossa língua, nossa representação interior, nãosão capazes de segui-lo. É preferível, como diz um provérbio russo, “acre-ditar em seu próprio olho, mesmo se ele é vesgo”.

No domínio da ciência moderna, não seria abusivo conferir maisvalor a nosso terceiro olho, o da representação interior, voltado para oinvisível.

Nosso mundo moderno tornou-se evidente, pois na aparência tudonele é transparente e reconhecível. As câmaras que nos perscrutam apartir do céu, mas também as que são instaladas em nossas moradasterrestres, são a expressão de um Argus tecnológico, que voltou seus inu-meráveis olhos para o interior, ou seja, para a auto-satisfação narcísica doolhar sobre si.

Nos observamos, tendo esquecido de que esses olhares já são ma-nipulados e não nos permitem nos vermos tal como realmente somos. Aesse respeito, poder-se-ia evocar as pessoas de televisão, que são vistassem poder ver; mas ocorre o mesmo para cada um: o fato de ser visto sempoder olhar torna-se uma prática universalmente disseminada. Ocorre-meàs vezes pensar que meu colega cego, na escola elementar, falava mes-mo a verdade, quando constatava que não se estava só. Seria preciso,pois, definir verdadeiramente de outra forma a cegueira, em relação aomundo dos videntes, que acreditam tudo ver, mas que esqueceram quepassar por Édipo ou Tirésias é nosso destino comum. Plotino dizia: “Se oshomens não tivessem qualquer coisa de solar, não poderiam perceber osol”. Provavelmente o tenhamos esquecido, recusando a nossos olhos,que participam da essência das estrelas, seu direito às origens, seu direitoa olhar para o infinito.

Entretanto, em cada época da história dos homens existiu um infini-to, para além do horizonte de nosso olhar físico. O infinito, como aspiraçãoa ir além do visível, foi sempre a vontade de ver as coisas exteriores por

feito do olhar desligado dos fundamentos míticos. Tirésias nos propõe, dealgum modo, os olhares limites, isto é, as visões que jamais aceitam omundo tal e qual, mas tal como ele poderia ser. Sua interpretação da frasedo oráculo: “É preciso se defender dos persas atrás dos muros de madei-ra”, não se satisfaz com o significado contido no enunciado simples, masprocura ultrapassar os nomes como “muros”, “madeira”, até criar a sínteseem um terceiro termo: “os navios”. O resultado de sua visão é assim umprocesso criador, que a libera do determinismo contido nas palavras “mu-ros” e “madeira”.

O olhar de Tirésias leva, pois, mais longe que a visão dos simplesmortais que vêem, que tomam, pois, em primeiro grau a resposta do orá-culo: “É preciso se defender atrás dos muros de madeira”.

Poder-se-ia acrescentar também, a esse processo dos olhares quenos liberam os arquétipos míticos, o olhar de Argus, que pode muito bemver sem ser visto. Por certo, isso nos levaria demasiado longe na arqueo-logia da visão. Entretanto, é verdade que o mundo moderno, com suasinumeráveis câmaras, visíveis e invisíveis, põe-se a sonhar com o poderde Argus, quando, às vezes, em sua cegueira generalizada, ele perde aconsciência de poder ser visto. Poder olhar sem ser visto é o anseio de ummundo policial que não se pensa mais a si mesmo, mas se crê absolutoem suas visões aparentemente ilimitadas. Na época do todo visual, quecomeça a nos fazer esquecer a importância do verbo e da narração, so-mos obrigados a nos interrogar sobre os fantasmas de Argus, para nãoesquecer de que, por perfeito que seja esse Argus, que constitui a técnicada ótica moderna, os olhos de argila, que não podem sempre ir para oinvisível, são seu suporte real.

Quanto mais se estende o mundo visível, mais se alarga, também,pela mesma lógica e na mesma proporção, o do invisível. Para quê ser-vem todos os satélites de observação, Argus do espaço, se não sabemosmais olhar além de nosso pequeno quotidiano visível? Mesmo os cientis-tas mais sérios sabem que a extensão de nossa visão é bem pequena, emrelação ao que as máquinas podem apreender do real. O astrofísico Peter

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galerias interiores, onde às vezes convidados insólitos me fazem compa-nhia em meus olhares para o invisível. Essas silhuetas não me dão maismedo como outrora, quando a decisão de outrem, bem mais que minhaprópria experiência, fazia de mim um cego.

Se me defino como iconoclasta exterior e iconófilo interior, é paratentar reconciliar os dois modos de visão possíveis, e sobretudo pararevalorizar o olhar do terceiro olho. Penso que, desde os gregos, este foiesquecido ou ocultado pelo progresso de uma visão que pretende tudo versem nada saber e sem se representar o que viu.

Comunicando a outrem as imagens de meus próprios algures, façode minha fotografia uma espécie de diálogo que lhe assegura uma exis-tência interativa. De resto, contento-me com luminosidades frágeis, queclareiam meus espelhos interiores e dão um sentido às imagens dos so-nhos. Pois, o que se esquece com muita freqüência, os sonhos tambémprecisam de esclarecimento e de ícones aos quais endereçar nossas pre-ces noturnas. Por fracas que sejam, as imagens de sonho são sempre aexpressão de uma natureza outra que, à banal transparência do quotidia-no, opõe as frágeis visões esclarecidas do interior, ou seja, por si mesmas.Pode-se, pela mesma lógica que fazia Plotino dizer que o olho humanonão poderia perceber o sol se ele próprio não tivesse qualquer coisa desolar, afirmar que o dia que nos ofusca não nos daria a menor imagem, senosso olho não fosse para ele preparado pelos sonhos noturnos. E, se àsvezes somos obrigados a observar o mundo de olhos fechados, é sobretu-do para conservar o caráter frágil dos sonhos que nos levam aos espelhosdo invisível.

nossa interioridade também, e de dar assim a nosso olhar exterior a capa-cidade de ultrapassar as visões mais imediatas. No olhar humano de hoje,reflete-se a memória de todos aqueles que, antes de nós, queriam olharcom seus próprios olhos, e que nos legaram o dever de prosseguir suamissão, nas dimensões temporais e nos espaços do universo que sãonossos.

É por isso que devemos levar a sério essa missão transmitida portantos olhares que, apesar de um fraco apoio tecnológico, descobriramnovos mundos e realidades celestes inéditas. Isso significa também quenão devemos nos contentar com o céu estrelado pelas câmaras que nosperscrutam, mas que devemos tentar sempre olhar com nossos própriosolhos, por frágeis que sejam.

São os cegos que recusam não ver senão através do unidimensionaldo olhar, e que acreditam na necessidade mítica da passagem pela ce-gueira para aceder a uma nova visão do mundo. Não posso imaginar umavisão nova que não tivesse origem no ponto cego que dá ao olho humanoa possibilidade de distinguir entre a luz e as trevas. Aceitar a cegueira éadmitir o mundo dos objetos que manifestam sua materialidade por meiodas sombras que lhe asseguram uma realidade tangível, para além datransparência absoluta do todo-visível.

Não podemos nos tornar reféns da luz, fugindo da fatalidade míticaque nos priva da fusão feliz com a natureza, para nos permitirmos tomarnossas distâncias e compreender o enigma da Esfinge. É por isso que nãoquis jamais considerar a cegueira unicamente no plano individual, ou seja,no gueto de um grupo social ao qual pertenço, mas sempre no contextomais amplo da experiência universal.

Para mim, os cegos representam o único grupo que ousa olhar o soldiretamente nos olhos. Como as antigas vítimas propiciatórias, imoladasaos cultos solares, eles aceitam o sacrifício, a fim de que um outro sol selevante. Esses Narcisos sem espelho e esses pintores privados de ima-gens jamais constituíram, para mim, uma categoria à parte, na qual a his-tória ocidental teria querido dispô-los, mas são humanos integralmente. Eencontro freqüentemente arquétipos da cegueira, quando erro em minhas

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la cidade que, em 1957, Bavcar viu uma última imagem: a de um tramwayque seguia seu curso. Sim, a memória é a matéria-prima deste fotógrafo-artista-filósofo-poeta.

Bavcar pode enxergar até a idade de 11 anos, quando o destino en-carregou-se de retirar-lhe este bem precioso: a visão. Foram dois aciden-tes consecutivos que o feriram fatalmente, primeiro um, depois o outroolho. Durante o intervalo entre os dois acontecimentos, Bavcar diz ter ob-servado o mundo apenas com um olho. Experiência monocular, aprendi-zado de miradas certeiras, talvez. Em seus escritos, ele nos conta: “Eunão fiquei bruscamente cego, mas pouco a pouco, com a passagem dosmeses, como se se tratasse de um longo adeus à luz. Desta forma, tive eutodo o meu tempo para dar conta do vôo dos objetos mais preciosos, asimagens dos livros, as cores e os fenômenos do céu, e lhes carregar comi-go em uma viagem sem retorno. Talvez tenha sido uma sorte que istotenha se passado lentamente. Talvez tenha sido somente o cinismo dodestino que tratava deste retardamento. Espero não ser nunca obrigado aresponder estas questões de modo preciso3.”

Atualmente, Evgen Bavcar vive em Paris, em uma tradicional aveni-da do bairro 14. Em frente à porta de entrada de seu prédio, encontra-se,estrategicamente bem colocada, uma saída de metrô. A poucos passosdali, uma rua destinada somente para pedestres, repleta de cafés, peque-no comércio, feira permanente de frutas, legumes, frutos do mar e outrasespeciarias perfumadas. Talvez Bavcar alimente-se também desteburburinho. Ele o freqüenta com uma naturalidade impressionante. Olhan-do suas fotos, percebemos o quanto elas traduzem de sua percepção domundo.

Ele foi naturalizado como francês em 1981 e trabalha até hoje comopesquisador junto ao CNRS. Sua formação profissional compreende estu-dos de filosofia e estética. Sua tese de doutorado intitulou-se “Arte e soci-

3 BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Paris: Seuil, 1992, p. 8.

PARADOXOS QUASE INVISÍVEIS1

Elida Tessler2

Desde que ouvi falar pela primeira vez em Evgen Bavcar, fiquei com-pletamente intrigada por sabê-lo fotógrafo e cego. Eu, como pro-vavelmente muitas outras pessoas que tomaram contato com o

seu trabalho, custei a aceitar a possibilidade da associação entre um ho-mem que não vê e a produção de imagens. Esta primeira dificuldade tra-duz um estado de ignorância latente que devemos combater quando esta-cionamos muito rente ao meio fio da calçada da obviedade, principalmen-te quando queremos abordar assuntos referentes às artes visuais. Os olhosnem sempre estão dispostos a nos fazer ver para crer.

Devo ao próprio Evgen Bavcar a coragem de enfrentar meus limitese me lançar em uma aventura que ainda não terminou. A partir da leiturade seus escritos; da análise da produção de outros artistas, principalmen-te da francesa Sophie Calle; da leitura de “Ensaio sobre a cegueira” deJosé Saramago; de alguns filmes cujos diretores são muito sensíveis aotema da percepção através do olhar; e, de modo definitivo, olhando asfotografias realizadas por Bavcar, em sua casa numa tarde quente de ve-rão (1997), onde pudemos conversar, creio que posso me autorizar a te-cer algumas reflexões em torno de nossas cegueiras cotidianas.

EVGEN BAVCAREvgen Bavcar nasceu em 1946, na Eslovênia. Nasceu cego? Não.

Evgen Bavcar pode vislumbrar muitas paisagens, principalmente aquelasde Ljubljana, as quais ele guarda com carinho em sua mente e as retrabalhaa cada imagem que produz. Foi através das janelas de um hospital daque-

1 Uma primeira versão mais ampliada deste texto foi publicada na Revista Porto Arte, Revistado PPG em Artes Visuais, UFRGS, v. 9, nº 17, 1998.2 Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS.

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PAUTAS MUSICAISO silêncio é, sabemos, uma grande pausa. O silêncio é componente

essencial da música. É o branco da página para o poema; é o espaçoentre uma forma e outra de uma produção em qualquer uma das categori-as das artes visuais.

O silêncio nasce, para Evgen Bavcar, no momento em que ele es-pera algum retorno de suas batidas na madeira do caixão onde repousa ocorpo de sua mãe, momentos antes do enterro. Como resposta, nada alémde um som ôco. “Era a sua última mensagem”, conta-nos o autor “Sempalavras. Sim, o silêncio, a palavra que eu procurava em vão em todos osdicionários e em todas as línguas vivas ou mortas, se fez calada4”.

“O Silêncio” é também o título do filme de diretor iraniano MohsenMakhmalbaf. Um filme que me fez mergulhar mais uma vez nas fotografiasde Evgen Bavcar e, através delas, em todo o universo misterioso da ce-gueira. Assistir ao filme, uma, duas, três ou quantas vezes for necessárioeqüivale simplesmente a colocarmo-nos diante de uma questão essenci-al: quais são as nossas maneiras de nos relacionarmos com o mundo aonosso redor, o pequeno mundo que nos faz existir? O que fazemos com osnossos sentidos? Ou ainda mais diretamente falando, como lidamos coma nossa cegueira habitual?

O filme inicia com os sons da rotina matinal do personagem Khorshid,um menino de cinco anos, cego, que ajuda o orçamento familiar emprega-do como afinador de instrumentos musicais em uma loja da região. Sãoquatro batidas ritmadas e insistentes na porta da casa, anunciando a pro-ximidade do dia do pagamento do aluguel. São os zunidos de uma abelha,bichinho de estimação do menino, com a qual ele mantém diálogos fasci-nantes. “Não vá se perder” orienta o rapaz, que parece sofrer deste mal,pois se perde freqüentemente, quando se dirige ao trabalho, todos os dias,fazendo o percurso de ônibus.

4 BAVCAR, op. cit., p. 76.

edade nas estéticas francesas contemporâneas”.

SILÊNCIOSEvgen Bavcar produziu algumas séries de fotografias separadas em

três seqüências, sob um mesmo título: “Silêncio”. Temos a seqüência I, II,e III. Em seu livro, ele nos faz ver algumas destas imagens, acompanha-das, cada uma, de um breve ensaio sobre as suas experiências. Ao ler-mos seus escritos, não temos mais nenhuma dúvida em relação à origemdeste silêncio. Trata-se da elaboração de uma perda, de umairreversibilidade absoluta: a morte de sua mãe. São muitos os detalhesampliados pelo texto e pelas fotografias. O principal deles constitui-se deum acender de velas. “Disseram-me que as velas brilhavam”, inicia Bavcar,abrindo o texto da primeira seqüência. A partir deste breve depoimento,Bavcar permite-se fazer associações acerca dos momentos de sua infân-cia nos quais velas eram acesas por sua mãe. Ele chega a descrever osom, o ruído do arranhar do palito na lixa da caixinha de fósforo. São suaslembranças que brilham no lume das velas acesas, e é uma estranha luzque faz possível o surgimento de uma fotografia em preto e branco: “Ícone”é o título da foto que apresenta um móvel antigo, talvez pertencente à suamãe. Na imagem, ele aparece como sombra luminosa centralizada emfundo totalmente escuro, chapado. O contorno branco é vazado pelos es-paços pretos, apresentando um aspecto fantasmático da memória. Pode-ríamos dizer que se trata, neste caso, de um esboço de imagem. A primei-ra sensação assemelha-se àquela que experimentamos ao estar diantede uma das formas moles do artista americano Robert Rauschenberg.

Desta primeira seqüência, fazem parte também duas fotografiasintituladas “Nostalgia” e uma outra cujo título anuncia a lembrança: “Paisa-gem da infância eslovena”. Torna-se aqui necessário dizer que EvgenBavcar não se contenta em apenas ampliar a imagem gravada em super-fície sensível do filme fotográfico. Sobre o negativo revelado, ele arranha,desenha com instrumento pontiagudo, inscreve, grafita, produz tambémseus ícones: coqueiros, barcos, pautas musicais.

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Melhor entregar-mo-nos ao devaneio e perder-mo-nos no caminho.Em uma outra de suas publicações, “Images d’ailleurs” encontra-

mos a seguinte imagem de abertura: a ampliação de um negativo com umretângulo centralizado horizontalmente, com a mesma pergunta, inseridana forma geométrica. Da maneira como se encontra, mantém uma familia-ridade com os conhecidos quadros do artista contemporâneo francês BenVautier.

ESPELHOS“- O que é isso?

- Um espelho.- Para que serve?

- Para se olhar.- Eu também apareço?... Onde estou nele?

- Este é o seu rosto... Estas são suassobrancelhas... Este é você, Khorshid!”

Este é mais um pequeno fragmento do diálogo entre o menino cegoe a sua acompanhante, em um momento de repouso na beira de um lago,que, por si só, já seria um espelho. A menina possui um espelhinho demão, e admira-se nele, após enfeitar-se com cerejas nas orelhas, feitobrincos, e pétalas de flores nas unhas, manicure infantil. Como não evocaros espelhos quando queremos apontar a complexidade do mundo dasimagens?

O espelho também é um objeto caro a Evgen Bavcar, que tem ohábito de usar um como broche na lapela, a fim de que seus interlocutorespossam encontrar o retorno de seu olhar ao conversar com ele. Pois comoum cego poderia fazê-lo melhor? Na casa do fotógrafo, encontramos es-pelhos dos mais diferentes formatos, colocados em vários locais não mui-to habituais. Na parede, em alturas diversas, nas prateleiras de livros, nacabeceira da cama. Neste último local, também podemos ver uma ou duasbonecas, com o rosto de borracha voltado para a parede. Evgen pede-meque não as fotografe, e muito menos que as toque. Ele diz que somente

O filme “O silêncio” provocou-me uma série de associações e lem-branças, fazendo-me refletir ainda um pouco mais sobre o silêncio de EvgenBavcar, permeado de lembranças da infância. Em suas descrições, en-contramos sempre uma cor definida para o céu (um dia azul, outro maiscinza), a terra marrom. Do cortejo de seu pai (Bavcar tinha sete anos deidade quando seu pai faleceu), ele retém a cor escura do vestido de suamãe e o silêncio das montanhas. Para Khorshid, o som da abelha era umporto seguro. Para Bavcar, o canto de uma cigarra, segundo seus própriosdepoimentos, foi capaz de sossegar um pouco a angústia do momento deescrever suas narrativas para a segunda seqüência de fotos denominada“Silêncio”. Assim comenta o autor: “Perto da janela da cozinha, escutáva-mos sempre uma cigarra cantar infinitamente longos adeuses. Ao longe,reconheci o ruído do córrego, enquanto que o sopro do Loire nas casta-nheiras enganava o silêncio. No ar, ressentia sempre o hálito familiar dooutono que, vindo, me esmagava com um sentimento doloroso de solidão.Como sempre, eu caminhava sob as janelas da casa. Eu espera escutar,no silêncio, da janela mais alta, a tosse de minha mãe, sua tranquilizadorapresença. Mais isto me fazia curvar cada vez mais em direção à terra5”.

Uma relação muito forte para Bavcar é aquela entre sua mãe e aEslovênia. Mãe e terra natal. Útero e berço. Toda a série da terceira se-qüência de fotografias de “Silêncio” é dedicada à Eslovênia. A primeiradelas, reproduzida em seu livro, retrata uma moça que sorri, braços cruza-dos e rosto excessivamente iluminado, no interior de uma residência. Naparede, bastante visível, um mapa emoldurado tal como o vemos, segui-damente, nas telas de pintura do pintor holandês Vermeer, com a seguintepergunta escrita no alto: Slovenija. Where is it?

Esta mesma pergunta encontraremos escrita, manuscrita, arranha-da no negativo de algumas outras fotografias, cujas imagens não são evi-dentes, isto é, não são óbvias. O que vemos? Não sabemos ao certo.

5 BAVCAR, op. cit., p. 84.

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SEÇÃO TEMÁTICA

A exposição “SOPHIE CALLE, À SUIVRE....” constituía-se de váriassalas, separadas por “assuntos”, digamos assim, onde encontrávamos sé-ries de fotografias apresentadas em moldura e vidro, como quadros. Oraem preto e branco, ora em cores, as dimensões variavam bastante. Emtodas as situações, dependíamos da distância em que nos colocávamospara “ver”. Este dado é inerente a todo contexto de apreciação das artesvisuais. Porém, esta exposição deixou-me também em reticências, comosugerido em seu título. Desde o início do percurso, tive a sensação deestar penetrando no universo íntimo da artista. Através de suas fotografi-as, podia-se ver o que ela viu, sorrateiramente. De uma sala à outra domuseu, tínhamos a oportunidade de testemunhar um acontecimento, sejade pessoas dormindo em uma cama comum, por exemplo, seja uma via-gem de trem, através de um compartimento ocupado por duas pessoas,seja ainda instantâneos em quartos de hotel, na ausência de seu habitan-te. Diante de mim, encontravam-se as imagens enquanto provas.

A fotografia, de modo geral, é documento. Ela registra uma realida-de. Ela congela um instante. Ela amplia um gesto. Não estaríamos exage-rando se disséssemos que a fotografia é uma memória materializada. Masestará ela sempre ligada ao real? Até que ponto podemos acreditar emnossos olhos?

Em um primeiro momento, a exposição de Sophie Calle parecia es-tar querendo contar uma história. As imagens foram justapostas em se-qüência, como uma história em quadrinhos. Havia até mesmo legendas,textos breves ao lado da cena ou interagindo com os objetos e/ou pesso-as fotografados. Não temos dúvidas quanto à intenção da artista de nosfazer testemunhar algo. Existe uma vocação narrativa inerente à fotogra-fia. Porém, o certo é que a situação onde fomos colocados não era nadaconfortável: ou voyeurs ou sujeitos enganados. Jamais descompromissadostrauseuntes.

A ARMADILHAA imagem de um rosto. A transcrição de um depoimento. A fotogra-

fia da cena, da paisagem, do objeto ou pessoa descritos no texto. Eis os

ele, em sua intimidade absoluta, pode “ver” os olhos delas. Detalhes desua maneira de viver que nos indicam que o seu pensamento está muitoalém do de um fotógrafo cego, como é geralmente classificado pelos que oconhecem a partir da mídia.

Pois os espelhos também o ajudam a fazer com que seu interlocutorassuma um outro ponto de vista. Esther Woerdehoff nos faz conhecer umfato elucidativo: um dia, uma senhora manifestou seu desejo de ser foto-grafada por Bavcar. Por quê alguém se preocuparia em se fazer bela paraser mirada por um homem que não vê? Bavcar então lhe pede que seaproxime de um dos inumeráveis espelhos de seu apartamento, se olhe ese enquadre ali. Pede também que o pegue pelas mãos, o conduzindopara diante da imagem. “Mostre-me a mulher que você reconhece no es-pelho!”. É a sua última demanda. Entre o “olhe-me” provocativo da mulherque se oferece como modelo e o “olha-te” irônico do fotógrafo, encontra-mos a justa medida das implicações contidas no complexo enredo de nos-sa perplexidade preconceituosa.

Mostre-me a mulher que você é, Sophie Calle.A artista plástica Sophie Calle6 tentou encontrar-se com Evgen Bavcar

e, sem intenção, tornou-se eixo central de suas contestações face ao pre-conceito em relação aos cegos. Vejamos porque seu trabalho contribuipara as nossas reflexões em torno deste tema tão complexo.

Há algo de comovente na constatação de uma impossibilidade. Aocontemplarmos o que falta ao outro, sucumbimos às lacunas que nos ha-bitam silenciosas. De nossos olhos, pode vazar a sensação úmida de umentendimento súbito: olhar não eqüivale a ver; ver não eqüivale a saber (averdade).

UMA EXPOSIÇÃO

6 Sophie Calle nasceu em 1953, em Paris, onde vive atualmente. Seu trabalho e sua persona-lidade são um dos pontos que trata Evgen Bavcar, em entrevista publicada no v. 9, n. 17, daRevista Porto Arte. A referida exposição tinha por título “Sophie Calle, à suivre...” e foi realiza-da no Museu de Arte Moderna da cidade de Paris, em 1991.

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dessem às respostas fornecidas. Porém, algumas formulações desejadasnão chegaram a existir, isto é, Sophie Calle gostaria de ter ouvido algunsdepoimentos que não foram ditos. Coube a ela, nestes casos, inventarrespostas, forjar fisionomias, criar as cenas. É sabido que algumas res-postas são verdadeiras e poucas entre elas são falsas. Mas quais? Nin-guém sabe. Ninguém?

Pois foi justamente o projeto deste trabalho que fez com que SophieCalle marcasse, por telefone, um encontro com Evgen Bavcar. Ela gosta-ria de fotografá-lo e entrevistá-lo. Foi logo dizendo: “Eu gostaria de vê-lopara...” Ao que ele respondeu: “Eu também gostaria de vê-la”. O encontrodeu-se no apartamento do fotógrafo, totalmente escurecido feito câmaraobscura. Ali, ninguém poderia ver o que quer que fosse. “Sente-se” disseamavelmente o anfitrião. “Aonde?” – replicou a artista “eu não estou vendonada!”. “Eu também não”, foi a frase final, que imprimiu de uma vez portodas o grau de impossibilidade de tal encontro.

Ao escutar os depoimentos de Bavcar, tive a impressão de que elecompreendeu de maneira muito contundente a intenção da artista, e fezrodar a moeda para que ela caísse em seu reverso. Neste giro, cá estamosnós a tatear o espaço entre os paradoxos da cegueira no campo das artesvisuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Paris: Seuil,1992.BAVCAR, Evgen. Les tentes démontées ou Le monde inconnu des perceptions.

Paris: Item, 1993.BAVCAR, Evgen; BOESCH, Jacques; WOERDEHOFF, Esther. Evgen Bavcar -

L’inaccessible étoile. Un voyage dans le temps. Berne: Ed.Benteli, s.d.SAGNOL, Marc. Evgen Bavcar, iconographe de la mémoire. In: Catálogo da Expo-

sição Evgen Bavcar - Images d’ailleurs. Institut Français de Dresden/InstitutFrançais de Berlin, 1991.

Sophie Calle - relatos. Catálogo da exposição realizada na Sala de exposições daFundación La Caixa - dez/96-jan/97. Curadoria de Manel Clot.

elementos que formavam o conjunto de cada um dos “quadros” de SophieCalle para o módulo intitulado “OS CEGOS” de sua exposição. Associan-do um a outro destes elementos percebíamos que se tratava do imaginá-rio construído por um indivíduo cego de nascimento. A pergunta que teriasido colocada a cada um deles foi a seguinte: “Qual é a sua imagem debeleza?” As respostas constituíram a fonte de todo o trabalho da artista.

Transcrevo aqui algumas das respostas:“A coisa mais bonita que já vi foi o mar, o mar a perder-se de vista”.“O mar, o imagino belo, muito mais do que todas as descrições que

já me fizeram. Eu teria tendência a gostar do azul, porque associo-o aomar. Creio que, se pudesse ver, seria marinheiro.”

“Do belo, tenho feito meu luto. Eu não tenho necessidade da beleza,eu não tenho necessidade de imagens em meu cérebro. Como eu nãoposso apreciar a beleza, eu fujo dela.”

Estes depoimentos são dramáticos. Perto de cada um deles, SophieCalle colocou o retrato, o rosto do indivíduo cego, frontalmente, com seusolhos voltados para o espectador. Junto, encontramos também a fotogra-fia do que estaria sendo descrito: mar, o céu estrelado,... E a ausênciacompleta de imagens perto daquele que foge da beleza. Como disse, ha-via algo de comovente. Acusava-se a falta de um de nossos cinco sentidosàquelas pessoas. Então, víamos alguém impossibilitado de ver. Perversa-mente, gozávamos esteticamente a partir do sofrimento do outro. O enre-do estava muito bem montado. Entretanto, tudo isso não passava de umaarmadilha.

Qual é o problema? Onde está o tropeço? Pois justamente onde háverdade, há mentira. Onde há realidade, há ficção. E onde há visão, hácegueira. Um elemento não descarta o outro, e a inter-relação torna-seponto nodal de todo o processo de criação de Sophie Calle.

Se ficamos emocionados com as frases dos cegos no momento desua leitura, sentimo-nos depois extremamente traídos ao tomar conheci-mento de que nem tudo é verdade. De fato, a artista pesquisou o universodos cegos, investigando peculiaridades de suas vidas. Colocou questões,fotografou seus rostos e procurou, em torno deles, imagens que correspon-

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taram a ele que muitos clientes se queixavam da excessiva obscuridade.Tanizaki, que tinha ido até ali para justamente buscar este prazer da luzdos castiçais, pediu então para que trouxessem um, e se instalou num dosrecantos do restaurante. Passa a descrever a beleza dos objetos em laca,convencido de que a obscuridade é condição indispensável para se poderapreciar a beleza de tais objetos.

Esta subtração de luz delineia um outro contorno ao objeto e certa-mente recupera uma nova configuração do pensamento. Tempo de umamemória imprecisa que nos lança o desafio de remontarmos a cena infan-til, como se voltássemos a ver as peças de nossos brinquedos espalhadasnum espaço que não reconhecemos completamente. Esta é, sem dúvida,uma das condições de nossa cegueira, a de todos, e que por nossa teimo-sia narcísica insistimos em esquecer. É aqui, também, que os sonhos,como estrelas cadentes, pulsam todas as noites nos mostrando que a den-sidade de uma imagem depende do esforço da palavra e o amparo de umtestemunho que reconheça e legitime a experiência do inconsciente.

É, por esta razão, que a obra luminosa de Evgen Bavcar nos inter-pela sobre a condição da visibilidade. Ele é categórico ao afirmar que “nãopodemos conceber uma arqueologia da luz sem considerar a escuridão, esem elucidar o fato de que a imagem não é apenas alguma coisa da or-dem do visual, mas pressupõe, igualmente, a imagem de obscuridade oudas trevas”2. Bavcar vai, então, buscar no quadrado negro de Malevitchum estado primeiro da imagem, como uma borracha que precisa abrir es-paços na folha repleta de traços. Imagine que saímos pela vida apenascom uma folha. Nossa mão trêmula, diante dos acontecimentos da históriaque vamos traçando e na ânsia de registrar a experiência, não encontraoutra saída senão escrever sobre o que já foi escrito e, assim, cada vezmais, o próprio texto funciona como superfície dos novos registros. A

2 BAVCAR, Evgen. O Ponto Zero da Fotografia. Catálogo da exposição na Galeria SoteroCosme – Casa de Cultura Mário Quintana, Porto Alegre, julho 2001, p. 11.

NOITES ABSOLUTAS

Edson Luiz André de Sousa

“Não se percebe nada se não se pode for-mular uma linguagem”

Bavcar

Em 1933, o escritor japonês Tanizaki Junichirô publicou um livrocomovente tentanto dar conta da concepção japonesa do belo1.Sua obra-prima intitulada “Elogio da sombra” narra inúmeras ex-

periências vividas por ele, demonstrando a importância das sombras, dosespaços vazios, do silêncio para captarmos a presença luminosa dos ob-jetos, os quais, como sabemos, funcionam na condição de ventríloquosdas ficções que podemos construir de nós mesmos. Em uma de suas nar-rativas de seu “Elogio da Sombra” relata, por exemplo, sua decepção aochegar num conhecido restaurante de Kyoto, o Waranji-ya, e perceber quehaviam substituído os arcaicos castiçais por lâmpadas elétricas. Argumen-

1 JUNICHIRÔ, Tanizaki. Éloge de l’ombre, Paris: Publications Orientalistes de France, 1977.

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Exposição “O Ponto Zero da Fotografia”,Casa de Cultura Mário Quintana, julho/2001.

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produzidas através da câmara obscura que ele diz ser, desvendam a ana-tomia deste encontro, tentando recuperar “a noite que precede o dia dasfiguras conhecíveis”.

Em uma das fotografias, uma mulher mergulhada na escuridão, tocavioloncelo. Há um foco de luz em seu rosto, em parte de seus braços e noinstrumento musical. O violoncelo parece ser, na fotografia, parte do seucorpo como se ela tirasse o som das cordas de seu ventre. O silênciomusical do ato fotográfico provoca nossa imaginação e damos seqüênciaa melodia, exatamente como propõe Lezama Lima, quando diz que cadaobjeto ferve e entrega sucessão5. O violoncelo/corpo feminino revela por-tanto um estado de nudez, colocando o espectador numa posição de voyeur.A música também funciona como luz. Bavcar no seu livro “O voyeur abso-luto” relata que, ao escutar um músico tocando e cantando em portuguêsalgumas composições da bossa nova, percebeu que a música era tão lu-minosa que quis pintá-la6. No primeiro plano desta fotografia, vemos umrelógio despertador antigo, do qual só nos é dado ver a parte superior,iluminada com um tênue facho de luz. O relógio, ao contrário do violoncelo,parece estar em silêncio, parado, sem ponteiros visíveis, metáfora viva deuma trégua da morte. Lembrei imediatamente de um escrito de Bavcaronde ele fala de seu desejo de suspender o tempo, sobretudo de sua in-fância que teria terminado rápido demais. Descreve de forma comoventecomo costumava desenhar relógios em seus braços, os quais tinham paraele o sentido de um “tempo parado dos meus sonhos”7. Bavcar perdeu avisão em dois acidentes entre os 10 e 12 anos. No primeiro um galho feriuseu olho esquerdo. No segundo um detonador de mina que manipulavaexplodiu e feriu seu olho direito. No segundo olho, foi perdendo a visão

5 LEZAMA LIMA, José. A dignidade da poesia, São Paulo, Ática, 1996, p.127.6 BAVCAR, Evgen. Le Voyeur Absolu, Paris, Seuil, 1992, p.11.7 BAVCAR, Evgen. L’Inaccessible étoile. Um voyage dans le temps, Berna, Editions Benteli,1996, p.91.

superposição embaralha a leitura, mas também nos dá a verdadeira con-dição da história. Bavcar, em muitas de suas fotografias, trabalha comimagens superpostas remetendo o espectador a este tempo de uma sus-pensão do olhar, em que o embaralhamento dos espaços e dos tempostem um sentido que eu chamaria interpretativo. Por esta razão, ele insisteque o “Quadrado negro” de Malevitch traz a esperança de um olhar paraalém do banal onde tudo se nivela. Diz ele:

“É preciso ir agora para trás do quadrado negro, concebendo astrevas não somente como superfície mas sobretudo como um volume, comoum espaço existencial em que podem ainda aparecer algumas estrelasredentoras brilhando por sobre o novo”3.

As fotografias de Bavcar funcionam como imagens de uma utopiaque nos reconduzem a justa medida de uma relação perdida com o mun-do. Seguindo a pista de Roger Dadoun que distingue duas concepçõesopostas de Utopia, trata-se aí certamente da Utopia de um tempo do in-consciente4. Esta concepção de utopia inverte o vetor tradicional que vaido presente para o futuro posicionando o sujeito, justamente, no sentidoinverso. Não se trata de uma forma proposta à espera de realização massim de proposições que nos ajudam a recuperar, em parte, algumas for-mações do inconsciente. Tem, portanto, um sentido muito mais interrogativoe crítico. Funcionaria no meu entender, como uma arqueologia dos “tex-tos” embaralhados diante de nossos olhos. Sabendo um pouco dos con-tornos destes textos poderemos, quem sabe, recuperar os espaços embranco, os espaços de silêncio que podem dar mais visibilidade ao novo.

Acabo de ver uma exposição de Evgen Bavcar intitulada “O PontoZero da fotografia” e que esteve durante o mês de julho na Casa de Cultu-ra Mário Quintana, aqui em nossa cidade. Bavcar demonstra com seu tra-balho o ponto zero do encontro entre o verbo e a imagem. Suas imagens,

3 BAVCAR, Evgen. op. cit. p. 13.4 BARBANTI, Roberto. L’art au xxe siècle et l’Utopie, Paris, L’Harmattan, 2000, p. 24.

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EDIPO FOTÓGRAFO

Benjamín Mayer Foulkes1

 

Evgen Bavcar invoca la figura de Edipo en al menos dos ocasiones.Primera:“El hecho de que la gente me interrogue con tal insistencia acerca

de por qué tomo fotografías, y de que se sorprenda de que efectivamentetenga la capacidad para producir imágenes, es consecuencia de prejuiciospsicológicos, históricos y sociológicos acerca de los ciegos. Si las personasquedan perplejas es porque interviene su propia relación con la ceguera, aveces su temor, a modo del complejo de castración, o de una evocacióndirecta de sus propio complejo de Edipo. Desde la perspectiva de algunos,y esto es algo que comparto con muchos de mis amigos ciegos y que heconfirmado en numerosas experiencias, yo represento una suerte de Edipodespués del hecho”.

Segunda:“Edipo me aporta el testimonio de su mirada ausente y me explica el

itinerario que lleva al tercer ojo”En la primera describe el encuentro de los fotógrafos y los especta-

dores videntes con su obra en particular, y con la figura del fotógrafo ciegoen general. Mediante esta invocación de Edipo, el fotógrafo ciego da cuentadel efecto ominoso que entre los espectadores “videntes” tiene su presen-cia y su producción: al toparse con Bavcar, éstos se hallan intempestivamenteante un otro que les obliga a mirar de nueva cuenta aquello que habríanreprimido, a saber, su ser también “una suerte de Edipo después del hecho”.La segunda invocación que de Edipo hace Bavcar refiere a la genealogíamisma de su obra, una obra cuyo objeto central de elaboración es aquelloque Bavcar llama el “tercer ojo”2. Mediante esta segunda invocación, Bavcar

1 Psicanalista mexicano. Membro da Fundación Mexicana de Psicanálisis. Professor e pes-quisador da Universidade de Anáhuac.2 CFR. Benjamín Mayer Foulkes, “Evgen Bavcar: el deseo de imagen” en: Luna córnea, n. 17,Centro de la Imagen, México, 1999.

lentamente “como um longo adeus a luz”. Passou então a recolher do mundovisível tudo que poderia, num tempo dos detalhes infinitos. Muitas destasimagens guardadas retornam em seu trabalho recuperando algo que, naverdade, é uma condição de todos nós, ou seja, recuperar parte destesfantasmas infantis perdidos.

O relógio “sem ponteiros” observa a mulher que toca. O surpreen-dente é que há uma parede obscura ao fundo que acolhe serenamente assombras das imagens. Vemos, portanto, a sombra desta mulher envolvidapor uma auréola de luz. Este sol noturno mostra a exata circunferênciaque o relógio deixou em suspenso. Ali, a sombra, está completamenteenvelopada por um círculo de luz evocando um tempo e imagem escondi-dos de nosso olhar. É bem visível a mão projetada na parede como umaradiografia da alma já que podemos ver a mão esquerda, a que toca ascordas, num certo estado de suspensão, numa clássica posição de pren-sa. Assim, podemos imaginar o que somos capazes de tocar e segurar e oque podemos, eventualmente, deixar cair de nossos dedos. Movimentoque dá corpo à música que supomos poder ouvir e que embala nossasnoites absolutas. Bavcar com seu trabalho nos ajuda, portanto, a redescobrirnossos pontos cegos, esperança de outras imagens possíveis.

FOULKES, B. M. Edipo fotógrafo.

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plar su patria; quien del mismo día recibe la penumbra de la vida y el destellode la muerte; quien se borra de las profecías sólo para mejor en ellasdibujarse después; quien tiene la mirada más aguda para los enigmas y lamás perdida; quien desde siempre está destinado a ser abandonado porlos dioses, y quien, sin embargo, invoca permanentemente alguno; quiennunca habrá vislumbrado esperanza alguna, y para quien es precisamen-te esa la “chispa de esperanza”. Edipo es quien se turba en la medidamisma en que mira con mayor vehemencia, su noche es el fulgor de todaluz, y su ceguera la intuición profunda de toda percepción. Es decir: Edipoes el ánimo mismo de la fotografía.

Es la tremenda pese. Queda vacía y silenciosala tierra de cadmo y el averno se enriquece

de lamentos, de gemidos terminables. Hijo de la noche, Edipo tiene en ella puesta fijamente la mirada.

Yocasta le da a luz sólo para, “no bien pasados tres días”, entregarlo a lanoche perpetua. Su vida toda es un intento por retornar al lóbrego claustrode su madre: ya su primera expulsión a la “montaña desierta” (asimismoun claustro materno) para eludir los vaticinios de los videntes, no hace sinoreconducirlo al tálamo imperceptible de su madre, transfigurada en espo-sa. De igual forma, su exilio último tiene como fin la recuperación de ciertaobscuridad perdida: como dice, “llevadme a un sitio oculto, dadme la muerte,arrojadme a los mares, o a un sitio tan lejano, donde los hombres no puedanvolver a verme”. El destino de Edipo es, pues, el de sus ojos: “¡Dormid lamuerte de la noche eterna y las tinieblas podrán defenderos de ver lo queno quise ver jamás, y tampoco aquello que tan anheloso ver ansiaba!”. Dela obscuridad, por la obscuridad, A la obscuridad: la ruta de Edipo no essino el abismo umbrío de la ceguera materna.

¿Qué es la ceguera materna? Desde luego, no se trata del punto devista de la madre o la mujer en sentido llano. Como Edipo, la cegueramaterna no es, pero, a diferencia de éste, tampoco aparece. La cegueramaterna consiste, a la vez, en el movimiento estructurante y desestructurantede la mirada. De ser, sería lo incaptable mismo, el ensombrecimiento ter-

da cuenta del impulso mismo de su trabajo, un trabajo que se ocupa deaquello de lo que sería, a su vez, efecto; pues en Bavcar el “tercer ojo” esel nombre, necesariamente fallido, de la simultánea instauración ysubversión de lo nominable, así como de los ámbitos de lo visible y loinvisible, el punctum caecum en que convergen la historia del arte enOccidente y la historia de la destrucción de las premisas de dicha historia;el “tercer ojo” designa, entonces, la simultánea puesta en juego y disoluciónde toda distinción estable y definitiva entre la luz y la obscuridad, la vista yla ceguera, la percepción y la memoria, el autor y el ejecutante, el emisor yel receptor, el original y la copia, esto es, de toda distinción sin más. De ahíque el acto fotográfico de Bavcar nos permita describir las condiciones deposibilidad e imposibilidad de todo acto fotográfico en general, y que sufigura, lejos de resultar excepcional entre los fotógrafos, les sea justamen-te paradigmática.

En seguida ofrezco, pues, una relectura del Edipo Rey que intentareconstruir el “itinerario” que conduce al tercer ojo bavcariano. Su forma esla de una paráfrasis de la tragedia de Sófocles que toma en cuenta, además,la hipótesis de la vista desplegada por Jacques Derrida en Mémoires d’aveugle: l’autoportrait autres ruines3, así como los planteamientos del “Edipovienés” de Néstor A. Braunstein4.

He preferido venir en persona.Aqui estoy. Soy Edipo5

¿Quién es Edipo? Como la propia pregunta por el “tercer ojo”bavcariano, la pregunta por el quién de Edipo resulta finalmente incontestable,porque constituye la posibilidad misma de la pregunta. Edipo no es, sóloaparece: al final, como en su origen, Edipo es desvanecimiento y eclipse.Edipo, el Rey, es quien mira por sus seres amados porque jamás los puedever; quien apela a la imagen de sus padres porque le está vedado contem-

3 Éditions de la réunion des musées nationaux, París, 1990.4 En: Freudiano y Lacaniano, Manantial, Buenos Aires, 1994.5 Os fragmentos do texto “Édipo Rei” cumprem a função de títulos para as seções.

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griega, Citerón, artífice de las apariencias, quien, tras una riña entre Zeusy su amada Hera, y ante el falso rumor de que Zeus había raptado a Plateapara hacerla su esposa, aconsejó al Zeus que deseaba reconciliarse conla primera que modelase una estatua femenina, la cubriera con un manto yla colocase en una carreta tirada por bueyes: al acudir a la escena Hera yver que no se trataba de Platea, sino sólo de una figura de madera, enefecto echó a reír y se reconcilió con su dios marido. Citerón, entonces:sede por excelencia del semblante, hogar del simulacro, eventual Repúbli-ca de las Fotos.

Alce radiante antorcha contra los turbiosnúmenes que nos destruyen,

que sea para todoslos adversos, baldón y oprobio

Pero antes habrá tenido que hacer su entrada estelar la ceguerapaterna. Como dice a Yocasta el mensajero que porta las nuevas de lamuerte de Pólibo, el supuesto padre de Edipo, refiriéndose a éste último:“¡Feliz sea siempre y con felices viva, ya que es tan perfecta consorte deaquél!”. Doble ironía la suya, y clarividente: nunca mejor consorte habrápara una ceguera que otra: salutaciones a la ceguera paterna, que estambién la de todos los hijos; y dichosas las fotografías, luminosa progeniede tal unión...

¿En qué consiste la ceguera paterna? Como advertí para el caso dela ceguera materna, la ceguera paterna tampoco refiere sin más a la pers-pectiva del padre o varón, sino a la función del hacerse-marca de aquélmovimiento originario y originante de la videncia y la invidencia que es laceguera materna. Si la ceguera materna es el incaptable impulso a lacaptación fotográfica, en cambio la ceguera paterna es aquella quecorresponde a la ilusión misma de la captación, al irresistiblemente seductordevenir-captable de lo que la ceguera materna no ve, ni tampoco deja ver:el “golpe a los ojos” efectivamente experimentado y, eventualmente, lamirada del ciego fotografiada cual espectáculo y representación. Desdeluego, esta caracterización de la ceguera materna, como cualquier otra

minal de lo diáfano, la revelación encubierta del permanente encubrimiento.Por eso Edipo jamás habrá podido retratar con su aparato a Yocasta:imposible obtener una instantánea del ojo tras la cámara. Sin embargo,Yocasta y su ceguera son la sensibilidad misma de la película fotográficautilizada eventualmente por Edipo: la obscuridad sin claro, la flama negra,la bruma sin fanal a la vista son, todas, el deseo mismo de la luz. Porquetambién el ocultamiento se oculta; también lo opaco se preña de su propiaopacidad; también lo azabache al trazarse se borra. La ceguera maternade Edipo se despliega, entonces, como la pantalla indistinta en que seránproyectados los vislumbres de aquello que él jamás podrá ver; allí seproyecta, aún en blancos espectrales, la promesa de una vigorosa“antorcha”. No por casualidad es la propia Yocasta quien lamenta: “perdi-dos en un mar de zozobras y temores estamos todos al ver destrozado porel pavor al que de esta ciudad rige el gobernalle”: el clamor por una centralde luz y fuerza, por un rayo, por la puntual irrupción de un farolero, es, porexcelencia, el clamor materno.

Pero, ojo, no porque tal haz orientador hasta el momento haya esta-do estrictamente ausente. Por el contrario, si hasta ahora Yocasta ha en-carnado la noche de todos los días, lo ha hecho como una noche perpe-tua, es decir, como una noche diurna, como la tirana de un imperio que noes el de la ausencia de luz, sino el de un sol negro a todas horas fulguran-te. Como una Gran Fotografía, que anulaba todo disparo fotográfico ennombre de la prefiguración de todo lo captable, Yocasta clama ahora porsu propio deslumbramiento y rasgadura: corto circuito de la Gran Fotografía,fugaz aparición de lo visible invisible aún, fogonazo emanante de lasfotografías, de su abundancia, de su ilusión y su banalidad...

Promesa, entonces, este estrujamiento y esta rasgadura, de unapatria definitiva para Edipo, Rey, y, pronto, fotógrafo. Se trata de Citerón,sitio a donde Edipo fue originalmente expulsado por sus padres, y a dondehabrá de volver tras arrancarse la vista: territorio consentido por Yocasta,pero asignado por su padre Layo; tierra promisoria del desbordamiento dela ceguera materna y de la manifestación de la mirada paterna; lugar porexcelencia del exilio; zona que porta el nombre de ese rey de la mitología

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como sucede entre los esclavos y los profetas, como cuando se lamentaTiresias: “¡Ay, ay: terrible es el saber cuando el que sabe de ello noaprovecha. Bien lo sabía, pero lo había olvidado. De tenerlo presente, acáno hubiera venido!”, o bien, como cuando Yocasta relata a Edipo acercade uno de sus siervos: “Cuando regresó y vio que te habías entronizado, yvio morir a Layo, vino a rogarme besando mi mano que lo dejara ir al cam-po a pastorear rebaños. ‘Así, decía, cuanto más lejos de la ciudad, mejor’”.De ahí que resulte una última ceguera que vemos ocupar una posicióndecisiva, y respecto a la cual se articulan el conjunto de las otras cegueras:la ceguera como vista efectiva y aprehensión de la ver-dad, ceguera antela propia ceguera, como deja ver la afirmación decidida de Edipo, “Mientrasyo claras no mire las pruebas; mientras plenamente apodícticas no seanno puedo dar asenso a las acusaciones que formulan los que aquí hanpregonado los delitos”. Esta última ceguera, la vista efectiva, es la ceguerapaterna por excelencia; ya he subrayado su importancia, que es la de laceguera paterna en, y ante, el campo “feraz” (como dice el texto), y feroz,de la ceguera materna, que halla en la aquélla su propio, y no menosintoxicante, antídoto. Ello explica que la ceguera como vista efectiva noopere sin más como una ceguera entre otras, sino como la propia puestaen juego de la taxonomía íntegra de las cegueras.

Doblemente heredera de la ceguera materna y paterna, la miradade Edipo es todas y cada una de estas cegueras, porque su mirada estásiempre en juego en el mirar de cada una de ellas en dirección de lasotras, sin que, a su vez, se deje reducir a ninguna, ni a la imposible sumadel conjunto. Edipo es, entonces, un personaje, pero su estructura es latragedia toda. Edipo mira y es mirado por su, y sus, propias miradas: suscegueras son siempre caracterizadas desde otras cegueras, lo que develaque la presente caracterización de las cegueras de Edipo es, como cualquierotra caracterización, también edípica. Discursos como el presente noresultan entonces extrínsecos a Edipo Rey sino precisamente intrínsecosa él: también Edipo lee Edipo Rey, también él se sorprende al hallarse, deantemano, imposiblemente retratado en su propio texto...

caracterización de dicha ceguera, es efecto de su propia gestación de laceguera paterna: la ceguera materna como penumbra y pragmatismo recibesu nombre y la delimitación de sus horizontes de aquello mismo que lailuminación y la legislación paternas jamás lograrán saturar: su propiacondición de posibilidad. Lo que ello significa es que la ceguera paterna noes sino el redoblamiento sobre sí de la ceguera materna. La ceguera pa-terna es señal del ocultamiento de ese ocultamiento originario que es laceguera materna. La ceguera paterna es sólo un momento de la cegueramaterna, el momento crucial de su fractura en más-de-una ceguera:despedazamiento del Gran Ojo materno en profusión de invidencias,cegamiento originario, institución primera de la ceguera (incluyendo laceguera-videncia), apertura de su insólita taxonomía.

Se impone reseñar esta taxonomía ya que Edipo Rey nos brindaríade antemano todas las ubicaciones que Occidente asigna a la ceguera.Allí se deja leer, en primer lugar, la inscripción de la ceguera comoobcecación, como cuando Edipo insulta a Tiresias: “...ciego miserable, ciegodel alma, como de los ojos... ciego del oído”, en que el ciego aparece comosu propia metáfora (está ciego, luego es ciego). Una vez así circunscrita,la ceguera es deslizada hacia lo pueril, hacia lo ingenuo y lo cándido comovemos, de nuevo, cuando dice Edipo a Tiresias: “Noche perpetua nutre tuspupilas. Ni a mí, ni a nadie que de ojos disfrute podrás dañar”...”ciego eres,que si ojos tuvieras, afirmaría que tu fuiste y sólo tú quien el delito perpetró”.Posteriormente, la ceguera como inocencia se transfigura casi sin dificultaden su opuesto, en la ceguera como impostura, como constatamos cuandoEdipo replica a Tiresias: “loco y trapacero, pura engañifa, que no buscasino el lucro de sus ojos cegados... Cegados para el uso, pero bien abiertospara el interés”. Y, casi de inmediato, atestiguamos la elevación de laceguera al estatuto de la previsión y la clarividencia, como ilustra el textocuando Edipo dice a Tiresias al darle la bienvenida: “Divino vidente, elúnico de los hombres que de nacimiento tiene el don de la verdad”. Dedonde quizás resulta entonces la ceguera como deseo, como anhelo deno mirar lo que la ceguera efectivamente ha mirado o es capaz de mirar,

FOULKES, B. M. Edipo fotógrafo.

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SEÇÃO TEMÁTICA

pesar o precisamente en virtud de aparecer diferente cada vez. El snapshotno es un acto fotográfico entre otros, sino la simultánea posibilidad eimposibilidad del acto fotográfico en general. Se trata nada menos que delombligo de la fotografía, el punto de mayor ceguera de, y ante, la fotografíacomo vástago de al menos dos cegueras. Todas las vanguardias fotográ-ficas, los realismos tanto como los anti-realismos, las fotografías clásicastanto como las intervenidas y las digitales, hallan en el snapshot unareferencia ineludible: esta es quizás la razón estructural por la que,históricamente, el snapshot es el género fotográfico inaugural. Consumaciónde la ceguera paterna como ceguera ante la ceguera materna, el snapshotconsiste, a la vez, en la negación y en la constatación más patente y másfurtiva de la imposibilidad de la fotografía.

Por eso, una vez que cuenta con el equipo necesario y que haasegurado su ciudadanía en Citerón, si Edipo toma fotos, es porque per-manece a la caza del snapshot como la consumación de su ceguera pater-na. En ello descubrimos el punto de mayor alcance topológico de la cegueramaterna, desde cuyo seno surge en primer lugar la ceguera paterna comosu otredad más radical y más necesaria. De ahí que el snapshot comohorizonte de todo acto fotográfico consigne el Edipo es mi nombre de to-dos los nombres, y el Edipo es nuestro abuelo de todos los linajes.

¡Todo es una apariencia: Brilla, se alza, relucey se abismaen las sombras para siempre!

Entrevemos, entonces, que lo fotografiante es invariablemente unciego o una ceguera, o, mejor dicho, al menos dos ciegos o cegueras. Deotra manera, ¿cómo dar cuenta del deseo de imagen y de luz como elánimo mismo de toda fotografía? Si el acto fotográfico de Bavcar esprototípico de todo acto fotográfico en general, ello se debe precisamentea este hecho. Lo mismo puede sostenerse en relación a su referencia aEdipo para dar cuenta de la ruta que conduce a su obra como elaboraciónen torno al “tercer ojo”: mediante esta segunda referencia a Edipo, Bavcarnos muestra asimismo la ruta que conduce a todo obrar fotográfico en

He afirmado que en el campo disputado de las cegueras, la cegueracomo vista efectiva no es una ceguera entre otras, sino la apertura mismadel campo: detengámonos en ello brevemente para abordarlo en términosde la propia fotografía. En la fotografía esta peculiar ceguera es emuladapor un tipo de imagen que, al igual que aquélla, resulta ser tan ubicuacomo frágil e invisible: el snapshot, según el intraductible vocablo inglésque en castellano corresponde parcialmente a “instantánea”, esa fotografíapopular y masivamente promovida por la industria de la fotografía desdesus inicios. El snapshot es, por excelencia, la fotografía de lo familiar (loheimlich) personal o grupal, la imagen de los paisajes, las mascotas, losrecuerdos de viaje y los amigos. Se trata, en suma, de un icono de lo propio,de lo visto y lo apropiado, razón por la cual con el snapshot se trata siemprede un autorretrato. Desde luego, lo que el snapshot encarna es precisa-mente la ceguera (paterna) ante la ceguera (materna) originaria, razón porla cual siempre se despliega allí precisamente donde asoma lo que per-manece invisible para un punto de vista dado. Cabe recordar aquí que,históricamente, la fotografía se erige en rito de la vida familiar en el mo-mento mismo en que se desploma la institución vigente de la familiaextendida, y también a que la fotografía turística tiene lugar en la medidamisma en que el fotógrafo padece la desorientación que le produce la tierraextraña por la que viaja, de manera que su acto fotográfico viene a certifi-car su experiencia tanto como a negarla6. Así, lo que aparece figurado enel snapshot es siempre secundario en relación a su semblante envolventede diafanidad, y a la ilusión de la supresión del dispositivo fotografiante,para dar plenamente paso a lo fotografiado. Por eso, aunque quienesaparezcan en el snapshot sean seres obcecados, cándidos, impostores,clarividentes, deseosos de enceguecer o ciertos de que ven, en el snapshotlo importante no son ellos mismos, sino el hecho de que aparezcan comotales. Por eso, lo figurado en, y por, el snapshot será siempre lo mismo, a

6 Susan Sontag, “In plato’s cave” en: On photography. Anchor Books, N.Y. p. 8-9

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todos, de una u otra manera, fotógrafos.Por eso, en el marco de dicha fotología, quizás no resulte del todo

descabellado considerar que la gran brújula de las formaciones culturalessea precisamente la relación con la ceguera (en tanto sustituto simbólicode la castración, puntal de la subjetivación y del proceso civilizatorio), y laubicación en que predominantemente se coloca a los ciegos y a lo invisible.díme dónde están los ciegos y te díre de qué cultura se trata... Paraconstatarlo, sólo hace falta echar un vistazo a nuestro entorno...

8 Jacques Derrida, L’écritura ét la différence. Seuil, París, 1967. p. 45.

general.Y si el aliento mismo de todo fotografiar es una ceguera o invisibilidad

originaria, no sorprenderá que, en el campo general de la vista comoceguera estructural, el objeto por excelencia de la fotografía sean otrosciegos y puntos de invisibilidad. De ahí que, para hacer extensivo a lafotografía lo que Derrida señala acerca del dibujo7, la fotografía de un ciegoes la fotografía de un ciego; las fotos en que figuran ciegos son, sin más,las fotografías. Como puede apreciarse tan nítidamente en relación con elsnapshot, el acto fotográfico por excelencia es el autorretrato: se llame ono autorretrato a su producción, el fotógrafo se registra siempre a sí, o a untrozo de sí.

Por eso la actividad fotográfica de un fotógrafo ciego en efecto tiendea la subversión de la fotografía, del snapshot, del autorretrato, precisa-mente porque los confirma. Si, como los demás fotógrafos, el fotógrafociego no puede más que retratarse a sí, desde la perspectiva del fotógrafocrédulo de su propia vista parece que el fotógrafo ciego no podrá jamásretratarse a sí. Sin embargo, como hemos visto, el autorretrato de un ciegoes el autorretrato por excelencia, pues revela que todo autorretrato es enverdad un heterorretrato. Así, el fotógrafo ciego resulta ser, como el propioEdipo, lo más cercano a un vidente de la fotografía como tal.

Las fotografías bloquean el acceso hacia aquello mismo queprometen. El testimonio de Edipo es el testimonio de que la fotografía noes sino la constatación de su propia imposibilidad. Y la mirada de Edipo estodas las miradas; y su ceguera, todas las cegueras. Edipo Rey se dejaleer como la fotografía imposible del fotografiar, el autorretrato imposibledel autorretrato. La gran progenie de Edipo son entonces los fotógrafos: lainvención de la fotografía es un síntoma más de la metafísica Occidentalcomo fotología, un pensamiento y un lenguaje orientados por la metáforade la luz y la sombra, del mostrarse y el ocultarse, impulsados por elcentralismo de lo solar8. Quienes habitamos la fotología occidental somos,

7 Op. cit.

FOULKES, B. M. Edipo fotógrafo.

Exposição “A Noite, minha cúmplice”, Pi-nacoteca do Instituto de Artes da UFRGS,agosto/2001.

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seu limite no orgânico para perceber através da visão as coisas. Por outro,ela fala do limite imaginário no qual seu parceiro se encontra imerso. E,por fim, mais brilhantemente, mostra o quanto as possibilidades da per-cepção podem ser ilimitadas quando o nó do recalque, operado pelo regis-tro do simbólico, afrouxa-se e abre vias diversas para a significação. Tal-vez melhor dito, abre cadeias discursivas para diversas formas de olhar.

E por falar em várias maneiras de olhar, é o mesmo Bavcar que,guiado pela sua paixão em torno do mistério do olhar humano, vem nosdizer com clareza a respeito de que o sujeito busca seu reconhecimentono olhar do Outro. Descrevendo suas fotos, comenta que as pessoas queele fotografa “não se dão a ver da forma habitual” porque não podem ter “acumplicidade com o fotógrafo que lhes confirme no seu narcisismo” 4. Po-rém, fica aqui uma pergunta: como ele sabe que elas posam diferente-mente para um cego e para um vidente? E o olhar imaginário, isto é, oolhar que elas lhe atribuem independente de sua condição orgânica? Oumelhor, e o olhar que lhes captura no seu fantasma e as faz encontrá-loem todo lugar? Será que desaparece, modifica-se diante de um cego? Épossível que não. Afinal, como Bavcar nos diz, suas fotos serão vistas porele através dos olhares de todos aqueles que se depararem com elas. Oolhar do Outro aparece, portanto, ali, no olhar do cego. A recíproca é ver-dadeira. E isto pode ter um efeito de mímesis para ambos. Bavcar defineassim o olhar:

“É, talvez, a soma de todos os sonhos dos quais esquecemos aparte de pesadelo quando podemos nos colocar a olhar de outro modo. Edepois, as trevas são somente uma aparência, uma vez que a vida de todapessoa humana, ainda sombria que seja ela, é feita também de luz. E damesma maneira que o dia manifesta-se freqüentemente com o canto dospássaros, eu estou preparado para distinguir a voz da manhã da voz datarde.” (tradução nossa)5.

4 BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Éditions du Seuil, mars 1992, p. 16.5 Op. cit., p.16.

OLHARES VIRTUAIS 1

Patrícia Rosa Balestrin2

Em 1993, Evgen Bavcar traz um conto em que um psicólogo apaixo-na-se por uma moça cega. Começando a trabalhar numa institui-ção para cegos, ele percebe algumas dificuldades imediatamente:

uma criança lhe pergunta sobre o conceito de longo e o conceito de bran-co e ele se angustia ao não saber como lhe responder. A jovem, comquem ele se relaciona, lhe faz ver que os conceitos se formam de outramaneira que não necessariamente baseados na percepção dos objetosda realidade. Ela lhe diz:

“Meus olhares são somente mais aproximados; tu não podes perce-ber porque tu não percebes as coisas a não ser com a distância do olharque vê as cores, que vê o longo e o branco, o preto e o vazio, o azul e ovioleta. Eu prefiro estar totalmente nas coisas, porque eu as faço tais comoelas são, como por exemplo tua pele, que por toda a parte é infinitamenteoutra, que sente as cores que tu portas no teu olhar, que esconde nela amagia de todas as formas possíveis, descobre-a e recobre-a, a tua ima-gem, quando estás comigo. Tu sabes, não és somente um cone, és tam-bém um redondo e um quadrado, um cilindro e uma superfície, um traço eum ponto. Não podemos medir as coisas. Nós somente as medimos quan-do nós nos amamos, quando nos tornamos uma das formas, quando nostornamos nós dois, quando somos nós dois” (tradução nossa)3.

Podemos notar pelo menos três coisas ao longo desse iluminadoconto, umas delas presente nesse fragmento. Por um lado, a jovem fala de

1 Este texto é um fragmento da dissertação de mestrado da autora, intitulada “Entre-vistas:nós cegos no social”.2 Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Coordena-dora do Serviço Clínico do Centro Louis Braille da FADERS (Fundação de Atendimento aoDeficiente e Superdotado do Rio Grande do Sul).3 BAVCAR, Evgen. Les tentes démontées ou Le monde inconnu des perceptions. Paris: Edi-tora Item, 1993, p.16.

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inaugurar novos processos. Trabalha com a essência, com aquilo que sus-tenta toda a base da criação e põe, na ordem do dia, aquilo que pode ser,mas ainda não está aí. A virtualidade tem um grau de parentesco com oilusório ou imaginário que, como sabemos, é motor para transformaçõesde sentido, para processos novos de desejo. De alguma maneira, Freudtrabalha esta questão ao falar de sonhos e fantasias, que apontam umuniverso enigmático, aparentemente ilusório, mas que tem, na sua cons-trução, todo o movimento desejante.

Então, podemos pensar num olhar virtual do cego? Um olhar quenão é presente do ponto de vista oftalmológico, mas está ali engendrado?Se vivemos a experiência de nos sentirmos olhados por um cego, istopode ser um índice de que, em sua essência, ele olha. Se a virtualizaçãoatinge a constituição do nós, é importante pensarmos o quanto esta atri-buição de olhar ao cego pode empreender uma forma de estar junto comele, deixando-se tomar pela sua maneira de perceber o mundo. O que eletraz é, sem dúvida, um tipo particular de permeabilidade biológica aosignificante que apresenta uma singular forma de ter acesso ao simbólico.

Pode parecer, momentaneamente, que se trata de uma experiênciade outro mundo, interpretada como propriedade de poucos, “os cegos” ou“portadores de deficiências visuais”, mas é uma experiência que pode atra-vessar todo e qualquer sujeito, difícil de se apropriar por aquilo que elaprovoca de estranheza a nós mesmos. Como pensar que um fotógrafocego produz imagens? Como pensar um vidente fechando os olhos paraproduzir imagens? Cegos congênitos aqui reivindicariam, talvez, que sefalasse de sua especificidade, de quem nunca teve acesso a uma imagemvisual. Mas, quem lê as imagens que produzimos?

Quem dá o estatuto de imagem àquilo que construímos pela pala-vra, pela escrita, pelos gestos a não ser o Outro? A leitura do Outro emtorno dos sinais, significantes, símbolos que produzimos é que nos fazreconhecer nossas imagens. O Outro, nosso eterno mediador, apresenta-nos. E assim, construímos a imagem de nós mesmos, a imagem dos ou-tros e as imagens do mundo. A imagem está presente transversalizada

A mãe de um bebê de nove meses fala: “Marina é cega, mas elaolha de uma forma diferente para cada tipo de pessoa”. Essa frase com-porta um “como se”. É como se Marina enxergasse aos olhos dessa mãe.É como se a mãe se sentisse olhada por ela. O “como se” aqui é umainscrição fundamental. É o que permite uma virada sobre o Real. “Comose” é uma ficção, na dimensão de uma possibilidade e, conseqüentemen-te, de uma virtualidade.

Poderíamos dizer que é como o faz-de-conta para uma criança, ondeela elabora suas mais profundas e interessantes questões tratando, apa-rentemente, de uma ficção. “Era uma vez”, a história de faz-de-conta, évirtual, e dá suporte para uma construção possível e singular para as cri-anças. Um exemplo disso é o do menino que vem para uma primeira en-trevista no Centro Louis Braille, portador de glaucoma congênito, perden-do a visão progressivamente e trazendo um prognóstico de cegueira, quan-do, nas suas brincadeiras com o fio de um ferro de passar roupas diz:“aqui tem um nó cego”, ao que escuto “aqui tem um nós cegos”. Ele fala doseu encontro com aqueles que têm uma deficiência visual como ele, falade uma assunção de uma imagem de si e de um lugar simbólico que podeconstruir enquanto cego e me inclui, em transferência, nesta categoria,apontando, também, que a cegueira não diz respeito somente a uma con-dição real. Algo está aí para ele, virtualmente, com um importante efeito,que ele tenta, nas suas construções, poder se situar e se ver reconhecidonuma provável condição. Esta é uma das portas que a questão davirtualidade nos abre e é preciso operar com a força que isso tem para osujeito.

Pierre Levy cita Deleuze: “O virtual possui uma plena realidade, en-quanto virtual.”6 Levy trabalha com a idéia de que a virtualização afeta aconstituição do nós e, assim, as formas de estarmos juntos. A virtualizaçãopercorre o curso de uma mutação; portanto, não cessa de se inscrever e

6 LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 11.

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se concretizar, transforma-se noutra coisa que é, também, virtual. O virtu-al, então, produz vários efeitos por nunca poder se atualizar, isto é, do-bras, contornos, bordas, aberturas e fechamentos, pulsações que adqui-rem forma na linguagem e no corpo, produzindo traços e marcas no sujei-to.

Supor um olhar num cego é transpor, na cultura, um provávelestranhamento que advenha da impossibilidade de se perceber como não-vidente. É transpor a barreira que o corpo impõe, não para pensá-lo comosem limites, mas para percebê-lo na sua relação com o Outro. Isto é, parapercebê-lo armado dentro dos limites e brechas que o Outro oferece; paraexperimentá-lo naquilo que oferece de virtual.

A cultura opera esta função de pensar o cego ou como uma exce-ção ou como um objeto a ser desvalorizado. Qualquer uma dessas posi-ções desvirtuam um possível caminho para o cego advir como sujeito.Porque em qualquer uma delas, fica em suspenso a castração e, por con-seqüência, aquilo que pode viabilizar o ingresso na cultura do cego como“mais um”, mais um sujeito, portador de história e características singula-res. Somos todos iguais na medida em que todos temos nossas diferen-ças. “Igualdade máxima na diferença máxima”, diz José Gil8.

O olhar do cego é, portanto, uma ficção que carrega consigo umaverdade. É uma criação que toma corpo dentro da dimensão de uma con-cepção de sujeito. Se é preciso criar formas para reconhecermos nossaspróprias diferenças, que é aquilo de mais singular e constitutivo que temosenquanto sujeitos, trabalhemos com um corpo que, de uma certa maneira,aberto ao efeito do significante, ao efeito da linguagem, encontra-se sem-pre cego, isto é, sem saber em que caminho poderá chegar em seu per-curso. O único caminho é ir tateando esta travessia.

É assim que uma jovem cega, comentando sobre suas espinhas norosto e questionando sobre as minhas, solicita-me: “deixa eu ver as tuas” e

8 GIL, José. Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2000. P.37.

pela linguagem, que se torna corporificada em nós, fazendo nossa inscri-ção simbólica.

A potência que o virtual coloca em cena provoca novas dimensões,inaugura formas inusitadas, fazendo uma virada de sentido, porque suamaneira de atualizar-se não é concreta, mas no plano das possibilidades,das aberturas propostas naquilo que pode ser, mas ainda não é. A idéia ésempre de um movimento, de passagem, de encadeamento e, portanto,de força desejante. Levy nos explica:

“O virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências oude forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ouuma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atuali-zação”7.

Nó de tendências ou de forças – podemos pensar como aquilo queé a constituição da subjetividade e que permeia toda a questão de se po-der pensar um olhar virtual no cego. É um desprender-se do biológico, docorpo Real, para pensar numa totalidade de corpo que olha, numintrincamento pulsional que erotiza o corpo para contemplar um virtual olhar,para trazer a potência implícita naquilo que a linguagem pode produzirnum corpo. O olhar de que falamos não é um olhar mágico. É um olharcorporal, um movimento do corpo que produz olhar, que engendra ima-gens, que captura e sente a presença das coisas. E, assim, com elas esta-belece relações.

Se nos reportamos ao estádio do espelho, proposto por JacquesLacan como os primórdios da construção narcísica, podemos pensar oOutro sempre como virtual, na medida em que ele oferece para o sujeitouma imagem com a qual possa se identificar e, assim, se transformar as-sumindo algo que ainda não é, mas poderá vir a ser. A caminhada dosujeito é sempre na direção de algo que é virtual, algo que está no horizon-te, num registro de ideal ao qual nunca se alcança, nunca se atualiza por-que sempre está em mutação. Aquilo que estava na via de se construir, ao

7 Op. cit., p. 16.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O CEGO NO ESPELHOACERCA DA IMPORTÂNCIA DO SHIFTER NA

CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM

Alfredo Jerusalinsky

Ainterrogação à respeito de se um nome é ou não verdadeiro nãoencontrará a sua resposta na análise da relação desse significantecom a coisa que nomeia, mas na persistência com que ele repre-

senta essa coisa no âmbito do discurso. O caráter arbitrário do nome –seja ele comum ou próprio – torna logicamente inoperante qualquer inter-rogação sobre o intrinsecamente apropriado ou inapropriado de um nomepara tal coisa – seja ela qual for. Por isso, a questão da verdade referentea um nome (estendendo a função noemática1 à qualquer função substan-tiva), somente pode ser conjugada na relação deste com o discurso.

É na circunstância, estilo e modalização lógica nas quais o sujeito éenunciado pelo outro, que ele encontra os traços primários de seu eu. Apartir dali, ele irá se reconhecer nessa particularidade (unária, porque úni-ca) do olhar do Outro, que vira maiúsculo, em primeiro lugar, porque ad-quire o poder de reconhecer ou desconhecer esse sujeito, e, em segundolugar, porque passa a nomeá-lo – nesses traços enunciativos – de ummodo próprio. Dito de outro modo, esses traços se tornam nome.

Entendemos, por circunstância, a contextualização do nome no dis-curso. Por estilo, o ritmo e prosódia da enunciação. Por modalização lógi-ca, o modo da negação que prevaleça na produção enunciativa. Neste

1 Noemática: em fenomenologia designa o relativo ao objeto nos seus diferentes modos deser : o pensado, o percebido, o imaginado. Uma questão fundamental é se a representaçãodesse objeto na linguagem é uma resultante de uma redução eidética (redução do objeto asua essência desembaraçada de sua existência), onde o primário consistiria na imagem queseria apagada pela representação, ou bem o primário seria o traço lingüístico arbitrário, des-tinado a velar o real da coisa colocando sobre ela uma máscara imaginária. Neste segundocaso, a imagem seria uma resultante da redução da língua e não a língua uma resultante daredução da imagem.

estende suas mãos para tocar no meu rosto. O verbo “deixar” é algo queme chama a atenção. Este pedido de permissão para tocar no meu rosto éum pedido de que a ela seja permitido ver com as mãos. E que isto sejalegítimo enquanto possibilidade de olhar. E que isto tenha força e potênciade olhar. E que no seu toque consiga se perceber olhada.

JERUSALINSKY, A. O cego no espelho...

Exposição “A Noite, minha cúmplice”,Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, agosto/2001.

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marca a sua posição de sujeito no discurso, e não no raio luminoso quebate no seu olho obscurecido.

Que as crianças pequenas cegas congênitas imitem a prosódia eritmo de fala de quem os rodeia, constitui um esforço de apropriação des-se shifter articulado na voz do Outro. Quem o personifica costuma supornisso uma ecolalia (como se fosse equivalente a do psicótico), porqueesquece – ou nega – sua própria dificuldade em sustentar uma inversãoespecular aí onde a ausência de um olhar concreto o leva a supor a au-sência de um saber. Invariavelmente, os pais dos cegos congênitos con-vocam seus filhos muito mais a uma obediência do que a uma indagação.Com isso, inibem o exercício de alguma forma de negação por parte dosujeito, e o constrangem a uma resposta direta à demanda do Outro. Éesse obstáculo imposto à inversão da demanda do Outro o que introduznas crianças cegas congênitas o risco de psicotização, e não sua ceguei-ra.

Quando, além de impedir a inversão da demanda4, se suprimem osindicativos do shifter, a criança cega tende a se autistizar por carecer deum modo de se reconhecer no campo da palavra – que é o campo doOutro. Mas seu isolamento se deve a essa exclusão do que a representano campo da palavra; eis ali que reside o motivo dela evitar o outro: é queela se percebe como evitada ela mesma no discurso, por obra da fala –inconsciente – do outro. Não se trata, como vemos – e ela mesma “vê” –de uma causa centrada na escuridão de seus olhos, embora seja esseimaginário “negro” o que confunde o olhar do outro degradando seusignificante.

A mesma posição forclusiva exercemos quando supomos que umcego não pode endereçar uma lente que “enxerga”, ou que não pode ca-minhar sozinho em função de sua falta de visão. Será que acreditamos

4 Coisa que os que personificam o Outro Primordial realizam de um modo totalmente incons-ciente. A menos que se tratem de educadores behavioristas, em cujo caso realizam isto deum modo sistemático.

último ponto, é necessário lembrar que não há inversão (necessária paraconstituir-se uma língua) da demanda sem alguma forma de negação.

No que diz respeito ao segundo ponto – o ritmo e prosódia – ficaclaro que nos encontramos aqui na “contra-cara” (imaginária) da face dalíngua que denominamos pontuação (do lado lógico-gramatical). E, no quediz respeito ao primeiro, nos referimos à contextualização como a funçãoaprès coup que provoca o deslocamento e a metaforização de todo nomena cadeia significante.

A articulação destas três operações, après coup, pontuação, nega-ção, é o que instala os pontos de arrebite2; lugares de repetição e clivagemonde o sujeito, ao mesmo tempo que re-encontra sua “bússola” (o traçounário onde se reconhece, ainda que alienado ao Outro), pode empreen-der novas direções na sua cadeia significante.

Nada disso se instala na dimensão do ver. Bem pelo contrário: osujeito averigüa para onde olhar pela obra do significante que o orienta.Mais ainda, ele se dá a ver – ou se oculta – de acordo com a disposiçãodiscursiva da partícula da língua que o nomeia. Dito de outro modo, oshifter é o que o orienta para produzir a sua imagem e orientar seu olhar.Não é o olhar o que orienta sua palavra. Não é mais, nem menos, queessa, a razão da cena primária ser traumática. O sujeito é nomeado ali,nessa cena. Ele se atreve, então, a olhar ali, e não se encontra. Trata-seda mesma operação que dá sua razão ao complexo de castração: a for-mação fálica do imperativo de gozar impõe ali, onde nada há, um pênis.Trata-se de uma função enunciativa que se antecipa a qualquer percep-ção. O objeto se demonstra, assim, nada oriundo de uma função noética,mas originado numa operação da linguagem.

Não devemos, então, nos surpreender de que um cego saiba “paraonde olhar”3. O endereçamento de sua percepção reside no shifter, que

2 São os pontos de “capiton” propostos por J. Lacan, e que Ivã Corrêa tem proposto traduzi-los (de um modo muito apropriado, segundo nosso parecer) como “pontos de arrebite”.3 Recomendamos muito especialmente assistir ao curta-metragem “O Branco”, dirigida porLiliana Sulzbach, com produção de Mônica Schmiedt e roteiro de Marcelo Cunha Carneiro.Acerca da percepção das cores por parte de um menino cego congênito.

JERUSALINSKY, A. O cego no espelho...

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SEÇÃO TEMÁTICA

5 Veja-se no Museu do Louvre, de Pieter I, O Velho Brueghel (1525-1569), “A parábola dosCegos”. Esse quadro mostra uma cena onde vários cegos caminham tomados das mãos,como se desse modo pudessem saber por onde e para onde vão. A mesma parábola encon-tramos na obra de Saramago “Ensaio sobre a cegueira”.

saber qual é a imagem verdadeira para cada coisa, ou a direção certa emque todos deveríamos marchar?5

Por acaso a experiência demonstra que os cegos ficam à margemde qualquer estética? Certamente que não.

Exposição “A Noite, minha cúmplice”,Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, agosto/2001.

Exposição “A Noite, minha cúmplice”,Pinacoteca do Instituto de Artes da UFRGS, agosto/2001.

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SEÇÃO DEBATES

modernidade, paradoxalmente valoriza-a por aquilo que, segundo SusanSontag (1981), é compatível com uma “visão ‘realista’ de um mundo ade-quado à burocracia...” (p. 21). Isto é, porque a fotografia fornece informa-ções. No entanto, é nesse mundo dominado pela imagem fotográfica queessa autora resgata um novo sentido da noção de informação. Escreve:“através da fotografia, o mundo torna-se uma série de partículas descone-xas, suspensas, e a história, passado e presente, um conjunto de anedo-tas e variedades. A câmara atomiza a realidade, torna-a dócil e opaca. Éuma visão do mundo que renega a interconexão, a continuidade, mas queconfere a cada momento um caráter de mistério. Toda fotografia contémmúltiplas significações; com efeito, ver algo em forma de fotografia é depa-rar-se com um objeto potencialmente fascinante. A grande lição da ima-gem fotográfica está em poder afirmar: ‘Ali está a superfície. Agora pense– ou melhor, sinta, intua – no que possa estar do outro lado dela, e comoseria a realidade se fosse assim’. A fotografia, na verdade incapaz de ex-plicar o que quer que seja, é um convite inexaurível à dedução, à especu-lação e à fantasia” (p. 22, grifo nosso). Esse texto de Sontag, a nosso ver,aponta para uma questão que circunscreveríamos em torno da palavramistério. Ou seja, a fotografia fragmenta o real – tempo, espaço, matéria;torna-o domável; dá-lhe opacidade. Mas, apesar da condição de fragmen-to (ou graças a ela), o fotografado motiva o trabalho imaginativo de recom-posição de uma totalidade apenas sugerida. O que era visto como ausên-cia por Baudelaire é afirmado agora como estando inscrito na própria ima-gem fotográfica: centro de uma pluralidade de significações, a fotografiaconvida a fantasia a entrar em cena. A fotografia não explica nada. Elafascina.

Ora, a problemática que as reflexões de Susan Sontag nos sugerevai muito além da colocada por Baudelaire. Isto é, bem mais do que discu-tir até que ponto a fotografia é um simples meio técnico de registro exatodo real, pode ser apresentada a seguinte questão: considerando que ondese tem apenas uma superfície sensível vê-se (ou melhor, sente-se, intui-se) a totalidade volumosa do mundo, é a fotografia que doa ao real essemisterioso caráter, ou é o mistério do próprio mundo sensível aquilo que a

AMBIGÜIDADE DA FOTOGRAFIA

João A. Frayze-Pereira1

Ao apresentar a fotografia a seus leitores, no Salão de 1859,Baudelaire deplora o novo invento, pois considera-o cúmplice doCredo reinante na época: “Creio na natureza (...). Creio que a arte

é e não é senão a reprodução exata da natureza (...). Assim, a indústriaque nos oferecer um resultado idêntico à natureza será a arte absoluta”.Nesse sentido, “à medida que a fotografia nos dá todas as garantias dese-jáveis da exatidão (...), a arte é a fotografia” (p. 158). A crítica de Baudelaireincide evidentemente sobre o gosto do público que se diz moderno, públi-co “imbecil”, “adorador do sol e de si mesmo”, cujo desejo maior é “con-templar sua trivial imagem sobre o metal”. Entretanto, mais do que isso, acrítica (que vale como recusa) incide sobre a própria fotografia, um resul-tado da “grande loucura industrial”. E porque a fotografia se põe ao lado dorealismo da visão, e a arte da esfera do impalpável e do imaginário, arelação entre fotografia e arte é de “ódio instintivo”, oposição e antagonis-mo. Falta à fotografia algo que Baudelaire considera essencial à atividadeartística, isto é, a fantasia, “rainha das faculdades”. Nessa medida, entrearte e fotografia a oposição deve se resolver numa relação de subordina-ção: é o verdadeiro dever da fotografia ser “a serva das ciências e dasartes, a serva mais humilde, como a imprensa e a estenografia, que nemcriaram nem supriram a literatura” (p. 160). A fotografia deve se resignar àsua condição de secretária daqueles profissionais que desejam documen-tar, com uma “absoluta exatidão material”, as coisas ou acontecimentospresentes ou cuja sobrevivência se encontra ameaçada. O valor da foto-grafia reside, por assim dizer, em fornecer e registrar informações.

Baudelaire pensa criticamente a fotografia numa época em que elaacabava de aparecer e, se levarmos em conta a posição desse crítico da

1 Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP / Psicanalista do Instituto de Psicanálise daSociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

FRAYZER-PEREIRA, J. A. Ambigüidade da fotografia.

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SEÇÃO DEBATES

A CLÍNICA NA INSTITUIÇÃO PSICANALÍTICA E AQUEDA DOS SEUS MUROS

Luciane da Luz LossOtávio A. Winck Nunes

Nascido com o intuito de atender às demandas de tratamentoendereçadas à APPOA, o Serviço de Atendimento Clínico sofreu,ao longo dos anos, mudanças e adequações refletindo o contexto

institucional, ou seja, sua trajetória espelha a instituição.Se a APPOA tem conseguido inserção e reconhecimento pela sua

produção na articulação da psicanálise freudiana e lacaniana com a cultu-ra, de modo geral, o mesmo não tem sido dito em relação ao exercícioclínico – identificado no Serviço –, pelo menos esta é a posição evidencia-da, tanto nas reuniões da Mesa Diretiva quanto no próprio serviço.

Uma posição discreta foi adotada no trabalho clínico da instituição.Pode-se verificar essa afirmação ao se estabelecer uma relação desde aorigem do Serviço até o trabalho realizado atualmente, discrição manifes-tada tanto dentro quanto fora dos muros institucionais. A aposta institucionalcentrava-se na formação psicanalítica, conforme a própria Ata de Funda-ção.

A partir das últimas reuniões do Serviço e do “Conversando sobre aAPPOA” em Canela, o quadro parece ter se alterado. A APPOA, e nãoapenas o Serviço, passa a ter uma preocupação com a formação de umaidentidade clínica, e as conseqüentes decorrências desta decisão. Dessaforma, cabe-nos uma questão: qual a função do Serviço de AtendimentoClínico da APPOA nesse novo contexto? Parece-nos que, inicialmente,nos compete reconhecer e reafirmar a existência de um trabalho clínicopsicanalítico diferenciado de outros modelos institucionais existentes nacidade. A diferença está no acolhimento singular de uma demanda anôni-ma dirigida à instituição. Portanto, se existe algum padrão de atendimentoa ser seguido, este é orientado pela ética psicanalítica.

fotografia revela? A “grande lição da imagem fotográfica”, apontada porSontag, é uma virtude da própria fotografia ou estaria ela dissimulada emtoda parte do real? Pensar a partir dessa questão é seguir uma certafenomenologia, considerando o campo aquém do constituído, da obje-tivação, das categorias habituais da lógica com as quais tanto a filosofiacomo a ciência tentam reconstituir ou explicar o mundo. E justifica-se aentrada nessa região porque, primordialmente, o problema apontado serefere à dimensão perceptiva de nossa relação com o mundo sensível(dimensão pressuposta pela fotografia), o que nos leva a tocar, atendo-nos à perspectiva aberta por Maurice Merleau-Ponty (1964), na questãodo real. Nessa direção, considerando as idéias de perspectivismo e deinesgotabilidade do ser sensível – tanto no que diz respeito às coisas comoao corpo – transforma-se o sentido daquilo que Susan Sontag chama de“lição da imagem fotográfica”. Ou seja, se há uma pedagogia da imagem,ela parece estar muito mais orientada para uma exacerbação (e não parauma instauração) da ambigüidade, da loucura ou do mistério do própriomundo sensível. Emblemática da percepção, aquilo que a fotografia reve-la, com efeito, “é” e “não é”, “está” e “não está”. Como dissera Barthes(198, p. 159): “imagem louca, tocada pelo real”. Como diz Baudrillard (1998,s.p.), imagem ilusória que se põe além das oposições entre o objetivo e osubjetivo, o verdadeiro e o falso, o real e o irreal, “pois a ilusão não se opõeà realidade, ela é uma outra mais sutil, que envolve a primeira com o signodo seu desaparecimento”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. A câmara clara. Lisboa, Edições 70, 1981.BAUDELAIRE, Ch. Le public moderne de la photographie (1859). In: Curiosités

esthétiques. Paris, Hermann, 1968.BAUDRILLARD, J. Car l’illusion ne s’oppose pas à la realité ... Paris, Descartes et

Cie, 1998.MERLEAU-PONTY, M. L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1964.SONTAG, S. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Ed. Arbor Ltda., 1981.

LOSS, L. da L. e NUNES, O. A. W. A clínca na instituição...

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SEÇÃO DEBATES

posição na cidade. A reflexão realizada sobre a prática psicanalítica, feitapela instituição poderia, quem sabe, amenizar a sua discreta participação,relançado-a, tanto para dentro como para fora dos seus próprios muros,buscando inscrevê-la na cidade com uma participação mais abrangente,sem deixar de se ater às especificidades decorrentes do nosso trabalho.

Desta forma, estamos empenhados em ampliar as possibilidadesde atendimento no Serviço de Atendimento Clínico da APPOA, enfatizandosua função clínica e social junto à comunidade, através de um modeloético de atendimento que proporcione um giro no discurso do sujeito, pos-sibilitando que este se encarregue do seu desejo e o pronuncie singular-mente no coletivo.

Existe, assim, nesta prática clínica, uma constante criação e recria-ção de dispositivos analíticos, o que em um primeiro momento do trabalhonão necessariamente é sinônimo de uma análise strictu senso; é um tipoespecifico de escuta ancorada na formação psicanalítica. Freud (1919)reconhecia as propriedades elásticas de sua criação. No texto “Linhas deprogresso na terapia psicanalítica” coloca que médicos-analistas, analiti-camente preparados, teriam que adaptar a técnica às novas condições,mas a efetividade deste trabalho se daria por tomar os elementos da psi-canálise estrita e não tendenciosa nestas circunstâncias.

A análise propriamente dita poderá se constituir a posteriori desseprimeiro tempo de trabalho, trabalho da análise da demanda anônima aoenlace transferencial dirigido a um analista. Porém, não necessariamenteserá este o desdobramento de um trabalho psicanalítico na instituição.

O trabalho realizado no Serviço é sustentado por cada um de seusintegrantes, pois o desejo do analista é uma formação do inconsciente. Osmembros praticantes estão ancorados na sua própria formação e tambémengajados na proposta de formação de analistas da APPOA, sendo esta aarticulação que revela a impossibilidade da instituição sustentar o desejodo analista bem como garantir o exercício clínico. Ressaltamos, porém,que a instituição tem o compromisso de zelar pela preservação da experi-ência analítica, como estipula a Ata de Fundação da APPOA.

A escolha de integrar o Serviço de Atendimento Clínico da APPOAse pauta por uma preocupação de intervir no que poderia se chamar desintoma social, circunscrito nas demandas anônimas de atendimento auma instituição. Desta forma, sustentar um atendimento nestes moldesnão é apenas uma resposta burocrática da instituição, mas é a implicaçãodo analista na responsabilidade social do seu ato.

A inscrição de uma identidade clínica pode provocar e convocar, paraalém dos muros da instituição, os que se sentem engajados no trabalhoclínico, ou melhor, torna-se necessário precisar o que temos a dizer e aque viemos enquanto uma instituição psicanalítica que se preocupa e seocupa, também, com o atendimento clínico, marcando e definindo uma

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RESENHA RESENHA

Diante destes heróis míticos, cujas histórias se perpetuam na cultu-ra ocidental, não podemos esquecer da cegueira de Homero e do poderinspirador que lhe é concedido pelas Musas.

Aparentemente, no mundo homogêneo das civilizações fechadas,para usar a terminologia de Lukács, em que não encontramos “nem a se-paração entre o eu e o mundo, nem a oposição do Eu e do Tu”2, são astrevas externas que geram a luz interna.

Evidentemente, não iremos nos deparar no texto de Saramago comeste Kósmos fechado e perfeito, em que imperam as leis de uma harmo-nia, às quais estão sujeitos tanto a physis quanto os homens.

No mundo de Saramago, no nosso mundo, já não habitam deusesnem heróis. Há muito já se deu a ruptura entre o eu e o mundo e nada nosresta senão tentar representar esta fragmentação e incoerência estrutural.

É justamente por isso que, em “Ensaio sobre a cegueira”, a ceguei-ra decorre de um “não-saber”. Daí a epígrafe do livro: Se podes olhar, vê.Se podes ver, repara.

Ainda, não se trata de uma cegueira que lança o sujeito na escuri-dão, é “Mais como uma luz que se acende”. Sendo assim, as personagensnão são vítimas das trevas, mas de um mal-branco, uma brancura ofus-cante, altamente contagiosa, que não afeta “um” indivíduo, mas se disse-mina por toda a coletividade.

As personagens são nomeadas a partir de referências aos seus olhos– o oftalmologista, o rapazinho estrábico, o velho da venda preta, a rapari-ga dos óculos escuros... – e é justamente a ausência de nomes e de qual-quer indicação que permita identificar a cidade onde se passa a históriaque criam um efeito universalizante.

Na medida em que o “mal-branco” se alastra, assistimos instalar-seum estado de caos absoluto – a falta de alimentos e de condições mínimasde higiene, o rompimento dos vínculos familiares e sociais, a putrefação

2 LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d., p. 31.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo:Cia. das Letras, 1995.

“já éramos cegos no momento em que cegamos,

o medo nos cegou,o medo nos fará continuar cegos”

Éinevitável que o tema da cegueira nosremeta, de imediato, às histórias deÉdipo e de Tirésias. Em ambos os ca-

sos, no entanto, deparamo-nos com uma ce-

1 SÓFOCLES. Édipo em Colono. In: _____. A trilogia tebana. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989,v. 1970-1973.

gueira que está relacionada a um “saber” e que é decorrente de uma puni-ção – seja esta imposta pelo próprio indivíduo, seja determinada pelosdesígnos divinos.

De qualquer modo, este destino trágico parece ser de alguma formarecompensado. Embora em “Édipo em Colono” o desafortunado rei deTebas transforme-se em um velho mendigo levado pela mão de sua filha-irmã, Antígona, seu desfecho não é desastroso, pelo contrário, é marcadopela reconciliação do infeliz herói com os deuses – segundo o mito, a terrase abriu suavemente e Édipo retornou ao seio materno: “O homem desa-pareceu sem lamentar-se e sem as dores oriundas de doenças, por ummilagre inusitado entre os mortais.”1

Já com Tirésias, a cegueira, em suas diversas versões, é provocadapor uma consciência mântica e compensada por seus dons adivinhatórios,que, assim como suas faculdades mentais, permeneceram intactos mes-mo após a sua morte.

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RESENHA RESENHA

É claro que são inúmeras as leituras possíveis, tantas quanto o nú-mero de leitores, mas, com certeza, não há como em cada uma delas nãoressoarem as palavras:

“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos quevêem, Cegos que, vendo, não vêem.”

Henriete Karam

dos corpos que deixam de ser enterrados e que, embora não possam servistos, exalam o cheiro da morte, que chega até nós.

O narrador onisciente – que tudo vê, que tudo descreve – expõeintencionalmente ao leitor os mais sórdidos detalhes de uma realidade,externa e interna, aterradora:

“Há muitas maneiras de tornar-se animal, pensou, esta é só a pri-meira delas”.

Assim como Édipo é guiado pela mão benevolente de Antígona,que o ampara em sua cegueira solitária, o grupo de cegos que centraliza ahistória também o é, por alguém que vê e que, talvez, tenha sido poupadanão apenas para ser os olhos de que tantas vezes o narrador se serve“para nos fazer ver”, mas por sua capacidade de solidariedade.

Ao explorar a sensorialidade, Saramago nos obriga a “ver” e “sentir”os extremos da desumanização e degradação. As estruturas sociais queparecem sustentar o convívio entre as pessoas se apresentam em toda asua fragilidade. A violência e egoísmo se desmascaram, reinam os instin-tos mais pérfidos e repulsivos, o limite máximo da crueldade, pois

“só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramentesão”.

A alegoria que Saramago constrói neste romance refere-se à alie-nação, à massificação e à perda da individualidade, uma vez que

“Com o andar dos tempos, mais as atividades da convivência e astrocas genéticas, acabamos por meter a consciência na cor do san-gue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemosdos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o re-sultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estáva-mos tratando de negar com a boca”.

Saramago aponta, através da distinção entre olhar e ver, entre otato e o toque, a necessidade de redescobrir-se a solidariedade e o afeto,reaprender a viver, para, então, voltar a ver, já que

“na verdade os olhos não são mais do que umas lentes, uma objeti-va, o cérebro é que realmente vê”.

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher,

Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2001/2002

Presidência - Maria Ângela Brasil1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2ª. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts

1ª. Tesoureira - Grasiela Kraemer2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1ª. Secretária - Carmen Backes2º. Secretário - Gerson Smiech Pinho

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,

Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Liliane Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de Eventos

Reunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Comissão de BibliotecaReunião da Comissão da Home PageReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOA

9h30min

21h20h30min20h30min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

OS NOMES DA TRISTEZA

AGOSTO – 2001

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

01, 08,15, 22e 290913 e 2714 e 280630

N° 93 – ANO IXN° 93 – ANO IX AGOSTO AGOSTO – 200– 20011

AS IMAGENS POSSÍVEISAS IMAGENS POSSÍVEIS

S U M Á R I OS U M Á R I OEDITORIAL 1NOTÍCIAS 3SEÇÃO TEMÁTICA 15UM OUTRO OLHARUM OUTRO OLHAREvgen BavcarEvgen Bavcar 1717PARADOXOS QUASE INVISÍVEISPARADOXOS QUASE INVISÍVEISElida TesslerElida Tessler 2424NOITES ABSOLUTASNOITES ABSOLUTASEdson Luiz André de SousaEdson Luiz André de Sousa 3434EDIPO FOTÓGRAFOEDIPO FOTÓGRAFOBenjamín Mayer FoulkesBenjamín Mayer Foulkes 3939OLHARES VIRTUAISOLHARES VIRTUAISPatrícia Rosa BalestrinPatrícia Rosa Balestrin 5050O CEGO NO ESPELHOO CEGO NO ESPELHOAlfredo JerusalinskyAlfredo Jerusalinsky 5757SEÇÃO DEBATES 62AMBIGÜIDADE DA FOTOGRAFIAAMBIGÜIDADE DA FOTOGRAFIAJoão A. Frayze-PereiraJoão A. Frayze-Pereira 6262A CLÍNICA NA INSTITUIÇÃOA CLÍNICA NA INSTITUIÇÃOPSICANALÍTICA E A QUEDAPSICANALÍTICA E A QUEDADOS MUROSDOS MUROSLuciane da Luz LossLuciane da Luz LossOtávio A. Winck NunesOtávio A. Winck Nunes 6565RESENHA 68“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA” 6868AGENDA 72