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ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661 | Caderno de Doutrina | DIREITO EM DEBATE É necessária a criminalização da “corrupção privada”? Conrado Almeida Corrêa Gontijo - SIM ___2 William Terra - NÃO __________________3 16 medidas contra o encarceramento em massa Bruno Shimizu ______________________4 A perpetuação da violência policial pelo sistema de Justiça de São Paulo: a tortura blindada Rafael Custódio e Henrique Apolinário __________________ 5 Não-obrigatoriedade e acordo penal na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público Vinicius Gomes de Vasconcellos _________7 Os equívocos de Dória sobre o grafite: um olhar a partir da criminologia cultural euan Carvalho Gomes da Silva ________9 Dos delitos e das penas: seria mesmo uma obra sobre a humanização do sistema de controle e de punição? Francisco de Assis de França Júnior _____11 Precisamos realmente nos socorrer à Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil? Tiago Caruso Torres e Ana Luiza Gardiman Arruda ____________________________13 A cultura do encarceramento e a periculosidade social do agente como prognóstico de reiteração delitiva Felipe Dezorzi Borges ________________15 COM A PALAVRA, O ESTUDANTE A distinção entre femicídio e feminicídio no debate acerca da lei nº 13.104/2015 e suas implicações para indivíduos transexuais David Campos Castro ________________18 | Caderno de Jurisprudência | JURISPRUDÊNCIA ANOTADA Superior Tribunal de Justiça ___ 2053 Fiabilidade da prova e a cadeia de custódia: um imperativo democrático Yuri Felix __________________ 2053 | O DIREITO POR QUEM O FAZ Tribunal de Justiça do Estado do Paraná _________________ 2054 | JURISPRUDÊNCIA Supremo Tribunal Federal ____ 2056 Superior Tribunal de Justiça __ 2059 Tribunais Regionais Federais ___2059 Tribunais de Justiça __________2060 EDITORIAL Mais uma vez, a redução da maioridade A pauta da redução da maioridade penal está, novamente, em debate no Congresso Nacional. Senadores e Deputados dão seguimento à tramitação de propostas punitivistas de forma apressada e sem levar em consideração as inúmeras manifestações contrárias à aprovação da matéria por parte de profissionais da área, movimentos sociais e organismos de proteção de direitos humanos nacionais e internacionais. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2012, de autoria do Senador Aloysio Nunes, cria uma nova figura no ordenamento brasileiro, o “incidente de desconsideração de inimputabilidade penal”. Tal incidente seria promovido de forma privativa pelo Ministério Público, em cada caso concreto, para possibilitar a imputação penal de adolescentes com menos de 18 e mais de 16 anos, em casos de reincidência do delito de roubo qualificado, além de homicídio doloso, estupro e outros crimes específicos. Em resumo, o incidente teria o fim de atestar, a partir de um laudo feito de forma unilateral e inquisitiva, a capacidade de um/a adolescente compreender o caráter criminoso de sua conduta, levando em conta seu histórico familiar, social, cultural e econômico, bem como de seus antecedentes infracionais. Esse incidente seria usado, em tese, para casos excepcionais. Porque, sim, delitos graves cometidos por adolescentes são exceção. Entretanto, não se pode deixar de pontuar que no Brasil, quando uma pessoa imputada é uma pobre, negra e de periferia, a exceção vira regra. As e os adolescentes brasileiros selecionados pelo sistema de justiça provêm de camadas populacionais sem acesso à ampla defesa e ao contraditório, e seguirão como clientes preferenciais dessas instituições perversas e desiguais. As justificativas do parecer do Senador-relator Ricardo Ferraço abordam, de forma geral, o argumento de que o desenvolvimento mental de jovens dos dias atuais é muito superior ao de décadas atrás, principalmente em virtude da revolução tecnológica nos meios de informação. Utiliza, em sua fundamentação, a obra de Tobias Barreto, “Menores e Loucos em Direito Criminal”, datada em 1884. Tal obra, escrita sob a influência do paradigma etiológico da Escola Positiva da Criminologia, adota critérios biológicos para explicar as causas da criminalidade, o que há muito já foi superado pela Criminologia e pelo Direito Penal contemporâneo. É importante ressaltar que os debates sobre a capacidade de discernimento são travados e avançam há mais de um século. E que, a partir da Doutrina da Proteção Integral, assumida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), (1) não se nega que adolescentes com mais de 16 anos tenham capacidade de compreender as consequências e os efeitos lesivos de atos infracionais. Inclusive, considerar as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos é afirmar sua capacidade de compreender o mundo, compreender-se e expressar-se nele. Todavia, no último século, a infância e a adolescência foram distinguindo-se cada vez mais da idade adulta. Com o passar do tempo, foi-se fazendo mais tardio o acesso ao trabalho e à educação, o que se relaciona com a necessidade de maior formação educativa e consolidação de alguns direitos próprios à infância e à adolescência. Por isso, o que foi levado em consideração nesse campo é que esta parcela da população merece atendimento especializado em razão de sua condição de pessoa em desenvolvimento, perspectiva adotada pelo Brasil e pelos principais organismos internacionais que recomendam para crianças e adolescentes a existência de um sistema de justiça especializado para processar, julgar e responsabilizar jovens autores de delitos. Tendo em vista a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro, precário, insalubre e dominado por facções criminosas, parece óbvio que reduzir a maioridade penal, em vez de constituir uma forma de enfrentamento à violência, não passaria de um elemento a mais para agravar o problema da insegurança no país. Como ensinou Foucault, (2) a prisão, desde o início de seu surgimento, é apontada por diversos estudiosos como instituição incapaz de oferecer o que promete, como “escolas do crime” e lugares que reforçam o vínculo com a criminalidade das pessoas segregadas. Existe um sistema especializado para trabalhar com adolescentes em conflito com a lei: o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE). Ele pode ter seus problemas, mas está buscando se adaptar a novas metodologias de trabalho socioeducativo, como as resoluções alternativas de conflitos. Entretanto, em vez de apostar no aprofundamento desse trabalho, construído desde a consolidação do ECA, parlamentares visam aprovar uma legislação cruel e com claros objetivos eleitoreiros. Jogam com a vida de centenas de adolescentes que terão suas trajetórias de vida marcadas pelo sistema penal de forma permanente e irreversível. O óbvio ainda precisa ser dito: a proposta é uma medida que visa criminalizar ainda mais a juventude pobre, colaborando para a manutenção de uma ordem social violenta e desigual. A luta a ser travada é contra o populismo punitivo que se refere, especialmente, a uma mudança de mentalidade, buscando superar a desinformação que leva à percepção de que jovens não recebem punição suficiente pelo sistema de justiça juvenil. É preciso refletir sobre o lugar-comum de que leis penais, inflição de dor e punição severa poderiam amenizar o problema da insegurança na sociedade brasileira. Problemas complexos requerem bem mais que a aprovação de leis. E a juventude brasileira merece mais do que punição para se afastar dos delitos. Reafirmamos a necessidade de implementar o ECA e o SINASE em sua integralidade, com esforços de fiscalização para fazer cumprir o que já se encontra em legislação especial, normativa suficiente e pendente apenas de políticas públicas adequadas para tratar toda a população, sem exceção, de forma humana e digna, como prevê a Constituição Federal. Notas (1) Lei 8.069/1990. (2) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

EDITORIAL | Caderno de Doutrina Mais uma vez, a redução ... · Precisamos realmente nos socorrer à ... importante texto internacional sobre a ... coibir situações nas quais a

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ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661

| Caderno de Doutrina | DIREITO EM DEBATE

É necessária a criminalização da “corrupção privada”?Conrado Almeida Corrêa Gontijo - SIM ___2William Terra - NÃO __________________3

16 medidas contra o encarceramento em massaBruno Shimizu ______________________4

A perpetuação da violência policial pelo sistema de Justiça de São Paulo: a tortura blindadaRafael Custódio e Henrique Apolinário __________________ 5

Não-obrigatoriedade e acordo penal na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério PúblicoVinicius Gomes de Vasconcellos _________7

Os equívocos de Dória sobre o grafite: um olhar a partir da criminologia culturalTheuan Carvalho Gomes da Silva ________9

Dos delitos e das penas: seria mesmo uma obra sobre a humanização do sistema de controle e de punição?Francisco de Assis de França Júnior _____11

Precisamos realmente nos socorrer à Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil?Tiago Caruso Torres e Ana Luiza Gardiman Arruda ____________________________13

A cultura do encarceramento e a periculosidade social do agente como prognóstico de reiteração delitivaFelipe Dezorzi Borges ________________15

COM A PALAVRA, O ESTUDANTEA distinção entre femicídio e feminicídio no debate acerca da lei nº 13.104/2015 e suas implicações para indivíduos transexuaisDavid Campos Castro ________________18

| Caderno de Jurisprudência

| JURISPRUDÊNCIA ANOTADA Superior Tribunal de Justiça ___ 2053Fiabilidade da prova e a cadeia de custódia: um imperativo democráticoYuri Felix __________________ 2053

| O DIREITO POR QUEM O FAZTribunal de Justiça do Estado do Paraná _________________ 2054

| JURISPRUDÊNCIASupremo Tribunal Federal ____ 2056Superior Tribunal de Justiça __ 2059Tribunais Regionais Federais ___2059Tribunais de Justiça __________2060

EDITORIAL

Mais uma vez, a redução da maioridade

A pauta da redução da maioridade penal está, novamente, em debate no Congresso Nacional. Senadores e Deputados dão seguimento à tramitação de propostas punitivistas de forma apressada e sem levar em consideração as inúmeras manifestações contrárias à aprovação da matéria por parte de profissionais da área, movimentos sociais e organismos de proteção de direitos humanos nacionais e internacionais.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2012, de autoria do Senador Aloysio Nunes, cria uma nova figura no ordenamento brasileiro, o “incidente de desconsideração de inimputabilidade penal”. Tal incidente seria promovido de forma privativa pelo Ministério Público, em cada caso concreto, para possibilitar a imputação penal de adolescentes com menos de 18 e mais de 16 anos, em casos de reincidência do delito de roubo qualificado, além de homicídio doloso, estupro e outros crimes específicos.

Em resumo, o incidente teria o fim de atestar, a partir de um laudo feito de forma unilateral e inquisitiva, a capacidade de um/a adolescente compreender o caráter criminoso de sua conduta, levando em conta seu histórico familiar, social, cultural e econômico, bem como de seus antecedentes infracionais.

Esse incidente seria usado, em tese, para casos excepcionais. Porque, sim, delitos graves cometidos por adolescentes são exceção. Entretanto, não se pode deixar de pontuar que no Brasil, quando uma pessoa imputada é uma pobre, negra e de periferia, a exceção vira regra. As e os adolescentes brasileiros selecionados pelo sistema de justiça provêm de camadas populacionais sem acesso à ampla defesa e ao contraditório, e seguirão como clientes preferenciais dessas instituições perversas e desiguais.

As justificativas do parecer do Senador-relator Ricardo Ferraço abordam, de forma geral, o argumento de que o desenvolvimento mental de jovens dos dias atuais é muito superior ao de décadas atrás, principalmente em virtude da revolução tecnológica nos meios de informação. Utiliza, em sua fundamentação, a obra de Tobias Barreto, “Menores e Loucos em Direito Criminal”, datada em 1884. Tal obra, escrita sob a influência do paradigma etiológico da Escola Positiva da Criminologia, adota critérios biológicos para explicar as causas da criminalidade, o que há muito já foi superado pela Criminologia e pelo Direito Penal contemporâneo.

É importante ressaltar que os debates sobre a capacidade de discernimento são travados e avançam há mais de um século. E que, a partir da Doutrina da Proteção Integral, assumida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),(1) não se nega que adolescentes com mais de 16 anos tenham capacidade de compreender as consequências e os efeitos lesivos de atos infracionais. Inclusive, considerar as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos é afirmar sua capacidade de compreender o mundo, compreender-se e expressar-se nele.

Todavia, no último século, a infância e a adolescência foram distinguindo-se cada vez mais da idade adulta. Com o passar do tempo, foi-se fazendo mais tardio o acesso ao trabalho e à educação, o que se relaciona com a necessidade de maior formação educativa e consolidação de alguns direitos próprios à infância e à

adolescência. Por isso, o que foi levado em consideração nesse campo é que esta parcela da população merece atendimento especializado em razão de sua condição de pessoa em desenvolvimento, perspectiva adotada pelo Brasil e pelos principais organismos internacionais que recomendam para crianças e adolescentes a existência de um sistema de justiça especializado para processar, julgar e responsabilizar jovens autores de delitos.

Tendo em vista a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro, precário, insalubre e dominado por facções criminosas, parece óbvio que reduzir a maioridade penal, em vez de constituir uma forma de enfrentamento à violência, não passaria de um elemento a mais para agravar o problema da insegurança no país. Como ensinou Foucault,(2) a prisão, desde o início de seu surgimento, é apontada por diversos estudiosos como instituição incapaz de oferecer o que promete, como “escolas do crime” e lugares que reforçam o vínculo com a criminalidade das pessoas segregadas.

Existe um sistema especializado para trabalhar com adolescentes em conflito com a lei: o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE). Ele pode ter seus problemas, mas está buscando se adaptar a novas metodologias de trabalho socioeducativo, como as resoluções alternativas de conflitos. Entretanto, em vez de apostar no aprofundamento desse trabalho, construído desde a consolidação do ECA, parlamentares visam aprovar uma legislação cruel e com claros objetivos eleitoreiros.

Jogam com a vida de centenas de adolescentes que terão suas trajetórias de vida marcadas pelo sistema penal de forma permanente e irreversível. O óbvio ainda precisa ser dito: a proposta é uma medida que visa criminalizar ainda mais a juventude pobre, colaborando para a manutenção de uma ordem social violenta e desigual.

A luta a ser travada é contra o populismo punitivo que se refere, especialmente, a uma mudança de mentalidade, buscando superar a desinformação que leva à percepção de que jovens não recebem punição suficiente pelo sistema de justiça juvenil. É preciso refletir sobre o lugar-comum de que leis penais, inflição de dor e punição severa poderiam amenizar o problema da insegurança na sociedade brasileira.

Problemas complexos requerem bem mais que a aprovação de leis. E a juventude brasileira merece mais do que punição para se afastar dos delitos.

Reafirmamos a necessidade de implementar o ECA e o SINASE em sua integralidade, com esforços de fiscalização para fazer cumprir o que já se encontra em legislação especial, normativa suficiente e pendente apenas de políticas públicas adequadas para tratar toda a população, sem exceção, de forma humana e digna, como prevê a Constituição Federal.

Notas(1) Lei 8.069/1990.(2) Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.

22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661

O estudo da doutrina e da legislação estrangeiras relativas à corrupção e aos instrumentos dos quais dispõem as ordens jurídicas para enfrentá-larevela que, nos últimos decênios, operou-se verdadeira cruzada para fazer frente ao fenômeno.(1) A título exemplifi cativo, a Organização das Nações Unidas, em 2003, aprovou a Convenção de Mérida, mais importante texto internacional sobre a matéria, na qual se reconhece “a gravidade dos problemas e as ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança das sociedades”.(2)

Foram previstos, no bojo do referido documento internacional, preceitos normativos voltados a assegurar que os Estados-membros da entidade aprimorassem o tratamento jurídico dispensado à corrupção pública, à corrupção de funcionários públicos estrangeiros, ao peculato, à lavagem de capitais etc. Ademais, acompanhando tendência verifi cada nos países e organismos supranacionais europeus, que sinalizam para a necessidade de que a corrupção seja combatida a “360 grados”,(3) em todas as suas facetas, a Convenção da ONU previu necessário que os países avaliassem a possibilidade de sancionar o suborno no setor privado.

No Brasil, de igual maneira, constata-se ter havido, por parte do legislador ordinário, o direcionamento de esforços para que se conferisse maior efetividade às investigações voltadas à apuração de corrupção e maior rigor na aplicação de respostas sancionatórias. Do início dos anos 2000 até hoje, foi tipifi cada a corrupção de funcionários públicos estrangeiros, foi exasperada a pena prevista para os pactos sceleris celebrados por funcionários públicos, foi criada a Lei Anticorrupção, dentre outras medidas com o mesmo fi m.

Tal cenário atesta que, por aqui, toda a atenção orientada ao combate ao fenômeno da corrupção recai sobre as hipóteses de corrupção no setor público, inexistindo iniciativas por parte do legislador para também coibir situações nas quais a celebração de acordos ilícitos vincula apenas agentes da esfera privada.

Desatende-se o artigo 21 da Convenção da ONU, segundo o qual os Estados signatários do documento deverão considerar “a possibilidade de adotar medidas (...) para qualifi car como delito” a corrupção privada. A bem da verdade, a celebração de pactos sceleris entre particulares, que a doutrina reconhece ser recorrente,(4) está inserida em campo de irrelevância penal no Brasil. Por conseguinte, fossem os fatos apurados na “Operação Lava-jato” praticados não nas Diretorias da Petrobrás, mas de companhias privadas (Vale, Itaú, Bradesco, Tam etc.),(5) o Direito Penal não poderia incidir. Afi nal, entre nós, inexiste a tipifi cação do crime de corrupção no setor privado.

Dada essa circunstância, seria salutar fosse criado, no plexo normativo nacional, fi gura delitiva que sancionasse a celebração de acordos corruptos entre particulares. Isso porque, a prática dessa modalidade de conduta tem o condão de afetar múltiplos bens jurídicos dotados de dignidade penal, dentre os quais, o patrimônio e a concorrência.

O fenômeno em questão tem natureza pluriofensiva, e os dados concretos disponíveis revelam causar impacto negativo relevante no regular desenvolvimento socioeconômico. Veja-se que são numerosos os escândalos de corrupção empresarial, noticiados no Brasil e alhures, nos quais são celebrados acordos corruptos, geradores de distorções

graves no ambiente concorrencial, e de prejuízos para aqueles aos quais a atuação do corrupto deveria favorecer.(6)

É fator que também justifi ca a criminalização da corrupção privada a constatação de que os mecanismos normativos extrapenais que incidem sobre tal fenômeno, comprovadamente, são insufi cientes para coibi-lo. Embora seja possível acionar na esfera civil os agentes que paguem ou recebam subornos no setor privado, sendo admitida, na seara trabalhista, eventual demissão por justa causa, tais remédios não têm se mostrado efi cazes no enfrentamento das práticas corruptas na esfera privada.(7)

Por fi m, a corroborar o entendimento de que é elementar a tipifi cação da corrupção entre particulares, destaque-se que tal providência pode ser importante no incremento da consciência social relativa à gravidade da celebração de pactos sceleris, seja entre particulares, seja com o envolvimento de funcionários públicos. Com efeito, estruturalmente, tanto em um caso, quanto no outro, a corrupção é caracterizada pelo exercício egoístico do poder, de modo a que o corrupto priorize os seus interesses em detrimento do ente em benefício do qual deveria atuar(o particular ou o Estado).

Assim, um sistema jurídico que não contenha normas aptas a coibir os atos de desvio de poder na esfera privada, permitindo a sua disseminação, acaba por favorecer a corrupção de funcionários públicos, pois as práticas ilícitas transitam de um setor ao outro, dando ensejo ao surgimento de verdadeiro mercado da corrupção.

Destarte, para que possamos efetivamente dispensar ao fenômeno da corrupção um tratamento jurídico que possa contribuir para que se alterem os paradigmas atualmente vigentes no Brasil, não raro identifi cado como país do jeitinho,(8) é essencial que além da sancionamento da corrupção pública – não ao arrepio dos direitos e garantias fundamentais, como se tem visto – seja desenvolvido modelo típico que proscreva a realização de análogas condutas no setor privado.

Notas(1) GIlI PaScual, Antoni. Bases para la delimitación del ámbito típico en el delito

de corrupción privada: contribución al análisis del art. 286 bis del Código Penal según el Proyecto de Reforma de 2007, p. 246.

(2) Preâmbulo da Convenção.(3) DE la cuESta, José Luis; BlaNco coRDERo, Isidoro. La criminalizzazione della

corruzione nel settore privato: aspetti sovranazionali e di diritto comparato. In: acQuaRolI, Roberto; FoFFaNI, Luigi (Eds). La corruzione tra privati: esperienze comparatisthiche e prospettive di reforma. Milano: Giuffrè, 2003.

(4) olIVEIRa, Willian Terra. O problema da corrupção no setor privado: perspectivas e situação no Brasil. In: Revista Penal.

(5) Referências meramente exemplificativas.(6) GoNZÁlEZ, Pilar. Corrupción entre particulares. In: Eunomia, nº 3, setembro de

2012/fevereiro de 2013, p. 176.(7) MuÑoZ coNDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. 18ª ed. rev. Valencia:

Tirant lo Blanch, 2010, p. 529.(8) RoSENN, Keith S. The Jeito: Brazil’s institutional by-pass of the formal

Comparative legal system and its developmental implications. In: The American Journal of Law, vol. 19, 1971, p. 515.

É necessária a criminalização da “corrupção privada”?

Conrado Almeida Corrêa GontijoDoutorando e mestre em

Direito Penal pela USP.Advogado.

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ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661

A criminalização da corrupção no âmbito privado é um tema muito relevante e atual, ademais de muito polêmico. Sobre essa matéria, pondero que o momento atual requer reflexão e cautela. O avanço dos delitos econômicos e dos crimes relacionados com a corrupção é uma realidade evidente na atualidade, não somente no Brasil como em quase todos os países. Esse fenômeno teve impulso na segunda metade do século passado e maior protagonismo com as recentes crises econômicas que eclodiram na última década. Tais crises tiveram como característica uma estreita relação entre o poder público e o mundo dos negócios, evidenciando que o Estado influi decisivamente nos mercados que, por sua vez, alteram o cenário político, econômico e as relações de poder global.

Existe uma tendência internacional direcionada a promover a sanção da corrupção no setor privado e, assim, punir a infidelidade nos negócios e a infração de deveres que possam atingir bens jurídicos como a livre concorrência nos mercados, o normal fluxo econômico, as relações laborativas e a confiança nas relações comerciais. No entanto, sob nosso ponto de vista, ao menos no momento histórico nacional, a expansão do Direito Penal nesse campo não seria a melhor opção. Existem sérios problemas na sistematização do Direito Penal brasileiro. São baixos os índices de efetiva punibilidade e cumprimento de pena no campo dos delitos econômicos e relacionados com a corrupção. Melhor seria a aplicação de instrumentos penais por equiparação, como a extensão do conceito de funcionário público ao setor privado, ou a utilização de fundamentos dogmáticos relacionados com a infração de deveres de garantia, sempre dentro de parâmetros de razoabilidade. A corrupção no setor privado se aproxima dos delitos de infração de deveres, de violação de uma fidelidade ou incolumidade para com o bem jurídico em questão, razão pela qual os instrumentos punitivos que já possuímos (aqueles previstos na Parte Geral do Código Penal quando trata das infrações do dever de garante, ou mesmo da omissão) são suficientes para enfrentar parte dos crimes nesse âmbito.

O Brasil segue critérios utilitaristas, pois a funcionalidade de tipos penais é um atributo perseguido pelo legislador como um valor intrínseco da norma penal, por meio de fi guras penais de alto teor simbólico e forte carga preventiva genérica. Existe uma tendência expansiva que defende a pura e simples criação de novos comportamentos delitivos, com o abandono de instrumentos penais e extrapenais que já existem e poderiam ser aperfeiçoados ou utilizados de forma inovadora. Uma revisão do acervo de respostas regulatórias e punitivas no âmbito administrativo, civil e extrapenal, ao lado de uma efetiva fi scalização do mundo dos negócios, teria evitado, com absoluta certeza, a desastrosa crise econômica mundial que surgiu na última década. Argumentos relacionados com a “lesividade” ou ofensividade de condutas não justifi cariam a ampliação do espectro da norma penal. Se fossem efetivamente empregados os tipos penais de que já dispomos (no Brasil é longa a lista de delitos especiais, de fundo econômico, administrativo, laboral etc...), talvez não fosse

necessária a criação de novos crimes. Trata-se da efetividade material das normas penais vigentes em confronto com uma ânsia expansiva do Direito Penal. Mesmo nos casos de macrocriminalidade, temos hoje no Brasil um marco regulatório muito desenvolvido e capaz de oferecer respostas aos principais problemas. É questionável a criação pura e simples de delitos especiais, em detrimento do aprimoramento de outras vias de controle social. Ademais, a falta de dados empíricos e estatísticos acerca dessa categoria de delitos torna questionável a efi cácia normativa dos almejados futuros tipos penais de corrupção no campo privado. O incremento de normas penais pode levar a uma ampliação de deveres e obrigações de vigilância e garantia, a exemplo do que ocorre nas normas relacionadas como a prevenção e repressão dos crimes de lavagem de dinheiro e fi nanciamento do terrorismo (acarretando uma inversão de papéis, atribuindo ao particular a assunção de deveres de polícia e fi scalização próprios do Estado, e cominando sanções penais para comportamentos que antes eram apenas infrações civis ou administrativas). Por outro lado, o bem jurídico protegido nos delitos de corrupção no setor privado possui várias faces. A linha divisória entre o que signifi ca efetiva lesão ao bem jurídico e uma mera exposição a perigo hipotético é muito tênue e ainda imprecisa segundo a doutrina, fazendo com que essa categoria de delitos possa ser utilizada em larga escala e para uma série de situações, gerando certo grau de insegurança jurídica material. O debate poderia analisar a defi nição da natureza do bem jurídico central a ser protegido. Convém estudar como fi caria o tema das “categorias de autor”, em que as fi guras de “funcionário”, “empregado”, “diretor” ou “empresário” são protagonistas, e enfrentar a intrincada questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica (todo um universo ainda a ser desbravado).

O Brasil, por força de compromissos internacionais, e por sua importância geopolítica e econômica, recebe esse impacto expansivo de maneira sensível e necessita pensar sobre o problema. Diferentemente de outros países (a maioria influenciados pela common law), no Brasil a corrupção no setor privado não é adotada. Talvez estejamos atendendo ao cumprimento de compromissos internacionais assumidos para o combate da corrupção (em qualquer um de seus níveis ou sob qualquer forma que se apresente). Ainda existem muitas indagações acerca da conveniência da criminalização de condutas no país. Sancionar penalmente a corrupção no setor privado seria uma opção que ainda não está suficientemente debatida no cenário nacional. A ampliação simbólica do espectro da norma penal (mais delitos, mais penas) marcada por objetivos de prevenção geral, com o abandono de outras vias, implica a expansão de um sistema punitivo que já é bastante complexo e confuso. O adiantamento da barreira protetora da norma penal exige muita reflexão e cautela. Uma vez que o Direito Penal avança, seu recuo é incerto e contribui ainda mais para o descrédito social na capacidade do Estado de oferecer respostas ao problema social que é o delito.

É necessária a criminalização da “corrupção privada”?

William Terra Doutor de Direito Penal pela UniversidadeComplutense de Madrid.Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo.

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ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661

16 MEDIDAS CONTRA O ENCARCERAMENTO EM MASSABloco VI: Execução penal e medidas de segurança

O processo de encarceramento em massa da pobreza no Brasil vem sendo demonstrado por todos os dados ofi ciais e pesquisas sobre o sistema prisional brasileiro. De acordo com o Relatório do Infopen de 2014, último produzido pelo DEPEN, naquele ano, o Brasil já havia atingido a marca vergonhosa de 622 mil pessoas presas, alcançando a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que, dentre os países com a maior taxa de encarceramento, o Brasil era o único cuja análise da série histórica demonstrava tendência ainda maior de crescimento.

A situação insustentável que atingiu a prática do encarceramento no país tem como uma de suas maiores causas a inefi ciência das Varas de Execução Criminal, ainda não informatizadas e sobrecarregadas, tratadas com desídia por boa parte da administração da justiça.

Os lapsos de progressão e reconhecimento de demais direitos na execução são invariavelmente desrespeitados, na medida em que a tramitação dos pedidos normalmente arrasta-se por meses.

A medida 16 tem como escopo a racionalização da execução penal, garantindo efi ciência na tramitação dos expedientes de execução. Por outro lado, contempla a necessidade de adequação dos processos de execução à Constituição Federal de 1988, prevendo o devido processo legal na apuração de faltas graves.

Em síntese, o projeto engloba cinco grandes eixos: (i) adequação da sistemática de apuração e punição de faltas disciplinares à Constituição Federal; (ii) ampliação das hipóteses de prisão domiciliar, em caso de comprovado risco à vida e à saúde, e adequação do sistema progressivo; (iii) garantir a efi ciência do sistema progressivo do cumprimento de pena; (iv) efetivação dos institutos do indulto e da comutação, mediante respeito à separação dos poderes; e (v) adequação da execução das medidas de segurança à Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/01) e à Política Nacional de Atenção à Pessoa com Sofrimento Mental.

Com relação ao primeiro eixo, a proposta visa adequar o procedimento de apuração de falta disciplinar de natureza grave à Constituição de 1988 e à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que se pacifi cou no sentido de que a ausência de instrução judicial provoca a nulidade da imposição de sanção disciplinar por falta na execução. Busca evitar, ainda, condenações injustas por falta disciplinar na execução, na medida em que, em unidades prisionais, é comum que sentenciados sejam forçados a admitir a prática de falta para evitar a responsabilização de outra pessoa. As faltas disciplinares na execução não constituem meras infrações administrativas, na medida em que podem provocar o aumento no tempo de encarceramento e a postergação da progressão de regime, concessão de livramento condicional e indulto. Assim, devem ser tratadas como infrações penais, sendo obrigatória a obediência ao contraditório e ao devido processo legal.

Com relação ao segundo eixo, considera-se necessária a criação de hipóteses de prisão domiciliar para pessoas gestantes, mulheres com fi lhos pequenos e pessoas com defi ciência severa ou doença grave, fora dos casos de regime aberto, visando a reduzir o índice de mortalidade nos presídios e o rompimento de vínculos familiares. Além disso, pretende-se adequar a Lei de Execução Penal ao marco legal da Primeira Infância (Lei. 13.257/2016). Busca-se ainda evitar a regressão a regime fechado de pessoas condenadas por fatos pouco gravosos, respeitando-se o limite da sentença condenatória. Ademais, pretende-se efetivar a adequação da Lei de Execução Penal à Súmula Vinculante 57.

Com relação ao terceiro eixo, objetiva-se a otimização do sistema de progressão de regimes de cumprimento de pena, evitando-se a excessiva morosidade na apreciação de pedidos de progressão, que frustra a implementação de direitos já adquiridos pelos presos, gerando descrédito na execução penal, revolta entre os sentenciados e contribuindo para a instabilidade do sistema prisional.

Com relação ao quarto eixo, entende-se que os institutos do indulto e da comutação são ferramentas político-criminais potentes no combate ao encarceramento em massa, sendo instrumento largamente utilizado em países como EUA e Rússia no sentido de reduzir a população prisional. No Brasil, contudo, os institutos são desprestigiados, sendo comum que os juízes impeçam a implementação do perdão de penas concedido pelo Presidente da República, criando requisitos não previstos nos decretos de indulto. Dentre as alterações principais, propõe-se a exclusão da necessidade de parecer do Conselho Penitenciário para a concessão de indulto e da comutação, apontado como uma burocracia infrutífera e que atrasa a declaração do direito.

Finalmente, com relação ao quinto eixo, é essencial que a legislação penal e de execução penal adeque-se ao paradigma de atenção à saúde mental já positivado desde a edição da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2011). A Lei da Reforma Psiquiátrica veio alterar por completo a forma como o Estado brasileiro enxerga e trata a situação dos pacientes psiquiátricos, reorientando o modo de atenção a esse público. Nesse sentido, a internação psiquiátrica, tida anteriormente como forma prioritária de abordagem do transtorno mental, passa a ser entendida como medida extrema e necessariamente breve, a ser evitada sempre que se contate a presença de recursos extra-hospitalares adequados ao caso clínico do paciente. Nesse sentido, a Lei da Reforma abole do plano normativo a internação manicomial, ao vedar expressamente a colocação de pacientes psiquiátricos em estabelecimentos asilares. Contudo, no que diz respeito à pessoa com transtorno mental criminalizada (“em confl ito com a lei”), a subsistência do modelo das medidas de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, bem como a eleição do conceito de “periculosidade” como fundamento da medida, afastam o tratamento desse público dos parâmetros mínimos de atenção à saúde mental disponíveis, ao menos em tese, a toda a população. Não se pode admitir que o tratamento do dito “louco” que foi selecionado pelo sistema de justiça continue se dando a partir de paradigma ultrapassado, apontado pela comunidade científi ca como inadequada, iatrogênica e, até, ensejadora de tortura. Assim, é premente que a política pública de atenção à saúde mental da pessoa em confl ito com a lei passe a ser integrada pelos parâmetros do Sistema Único de Saúde, buscando a atenuação do sofrimento psíquico do paciente e sua inserção saudável em seu meio social, o que comprovadamente não se atinge por meio da aposta na internação manicomial.

Acreditamos que tais medidas, apesar de pontuais e, de certo modo, tímidas, surtiriam um efeito sem precedentes na efetivação de direitos na execução e no ganho de efi ciência pelas Varas de Execução, colaborando com a mitigação do processo de encarceramento em massa da pobreza e com a redução do atual descrédito da Justiça, que vem falhando na garantia de direitos, especialmente quando o jurisdicionado é alguém pobre e marginalizado, que foi criminalizado pelas instâncias punitivas do Estado.

Bruno ShimizuDoutor e Mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.

Membro da Diretoria Executiva do IBCCRIM (Biênio 2017/2018). Defensor Público do Estado de São Paulo.

PL 3722/2012 (Desarmamento): nota técnica do IBCCRIMPL 3722/2012 (Desarmamento): nota técnica do IBCCRIMO IBCCRIM manifestou discordância ao Projeto de Lei que visa facilitar a aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo e munições.

O projeto representa um retrocesso ao Estatuto do Desarmamento ao facilitar acesso a armas de fogo. Para ver a íntegra da nota técnica, acesse: <https://<https://goo.gl/JPZV6i>goo.gl/JPZV6i>.

PEC 14/2016 (Polícia Penal): nota técnica do IBCCRIMPEC 14/2016 (Polícia Penal): nota técnica do IBCCRIMO IBCCRIM se manifesta contrário à transformação da carreira de agentes penitenciários em carreira policial, proposta pela PEC 14/2016.

O Instituto reconhece os graves problemas enfrentados pelas servidoras e servidores no exercício de suas funções, contudo entende que a criação da polícia penal somente reforçaria os problemas da carreira penitenciária ao invés de enfrentá-los. Para ver a íntegra da nota técnica, acesse: <https://goo.<https://goo.gl/LhgcNT>gl/LhgcNT>.

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A perpetuação da violência policialpelo sistema de Justiça de São Paulo:a tortura blindadaRafael Custódio e Henrique Apolinário1. Introdução

Previstas no artigo 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos,(1) as audiências de custódia começaram a ser implantadas no Brasil apenas em 2015, por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Provimento Conjunto 03/2015.(2) A partir daí, tornou-se obrigatório, pelo menos na Capital,(3) que toda pessoa detida em fl agrante fosse apresentada em até 24 horas a um juiz competente para realização de audiência com o objetivo de avaliar a legalidade e as condições do fl agrante e auferir eventuais torturas ou outros TCDD (Tratamentos cruéis, desumanos e degradantes) sofridos no momento da prisão.

A iniciativa, pioneira e inédita, foi então seguida pela Resolução nº 213/2015(4) do Conselho Nacional de Justiça, que determinou a implantação das audiências em âmbito nacional. Até agora, todos os Estados brasileiros já realizam as audiências de custódia, ainda que em qualidade variada e que não tenham, todos, atingido por ora todas as suas respectivas circunscrições judiciárias.(5)

É nesse contexto que a Conectas Direitos Humanos(6) realizou monitoramento presencial de audiências de custódia realizadas no Fórum Criminal da Barra Funda, nos períodos entre julho e novembro de 2015 (etapa de observação) e dezembro de 2015 a maio de 2016 (etapa de acompanhamento das denúncias de violência narradas pelos custodiados), com o objetivo de identifi car o modo como relatos de violência policial surgem nas audiências; e, a partir disso, quais as respostas das instituições do sistema de Justiça – Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e o Instituto Médico Legal – a eles.

Os resultados desse monitoramento geraram o relatório Tortura blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia,(7) lançado em fevereiro de 2017 pela Conectas, analisado neste artigo.

1.1 MetodologiaA pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologia de estudo de

caso e foi realizada na fase inicial das audiências, quando estavam em implementação. Assim, o foco foram as audiências de custódia realizadas entre julho a novembro de 2015, no Fórum Criminal da Barra Funda, na cidade e Estado de São Paulo, acompanhadas de seus desdobramentos no período de dezembro de 2015 até maio de 2016.

As estratégias de pesquisa foram (i) o monitoramento das audiências, assistidas presencialmente pelas pesquisadoras;(8) (ii) a análise dos atos formais e procedimentos para implementação das audiências em São Paulo; (iii) a análise dos documentos aos quais o Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública têm acesso no momento da realização da audiência de custódia (boletim de ocorrência e auto de prisão em fl agrante, entre outros); (iv) a análise dos laudos do Instituto Médico-Legal (IML), quando solicitados pelo juízo após a audiência de custódia; (v) a análise dos procedimentos abertos para apuração de relatos de tortura em audiência de custódia no DIPO 5; (vi) a realização de reuniões com integrantes do sistema de justiça criminal e segurança pública; e, por fi m, (vii) a análise das respostas das instituições do sistema de justiça criminal e segurança pública sobre pedidos de informação apresentados.

Importante ressaltar que o foco das audiências assistidas pelas pesquisadoras eram aquelas em que havia indícios de que o apresentado sofrera tortura ou maus-tratos em algum momento entre sua prisão e sua apresentação à autoridade judicial. Quando as pesquisadoras assistiam audiências em que esse requisito não era atendido, o formulário de coleta de dados não era preenchido. Desta forma, o universo da pesquisa, de 393 casos, diz respeito apenas a casos em que houve relato de tortura ou outros TCDD em audiência, ou então havia sinais(9) de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes contra o preso. Dos 393 casos, em 363 o relato de violência foi feito em audiência de custódia; em três, ocorreram as denominadas “audiências-fantasma” (em que não há a apresentação da pessoa presa em virtude de estar hospitalizada); e, em 27, as pessoas presas apresentavam sinais de agressão, mas não relataram a violência em audiência.

2. Resultados da pesquisaAs audiências de custódia envolvem, em regra, a atuação da

Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública (ou advocacia particular) durante o momento da audiência, e, posteriormente, a atuação do Instituto Médico-Legal, na averiguação das marcas físicas e/ou psicológicas da tortura ou outros TCDD. Assim, a pesquisa desenvolvida pela Conectas apresenta seus resultados por instituição. Abaixo, apresentamos os principais pontos e questões identifi cados:

2.1 A Atuação da Magistratura: “Eu quero saber se teveporrada!”(10)

A Magistratura é a primeira instituição a se manifestar nas audiências de custódia, e também a responsável pela condução da mesma. À época da pesquisa, os onze juízes do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital) se dividiam na realização das audiências.

Aqui, é importante notar a falta de padronização na atuação desses juízes nas audiências. Enquanto, por exemplo, alguns magistrados questionavam o réu acerca de eventual violência no momento da prisão em todas as audiências que conduziam, outros nunca fi zeram esse questionamento.(11) Da mesma forma, enquanto alguns magistrados encaminharam denúncias de tortura ou outros TCDD em audiência para investigação em 100% das vezes, outros o fi zeram em apenas 48% das vezes.

Se analisarmos o momento após um relato de violência, os dados não são melhores. Em 25% dos casos, os juízes não fi zeram qualquer intervenção diante da denúncia apresentada. E, nos casos em que há intervenção, nota-se, por exemplo, que, embora 29% das perguntas sejam no sentido de buscar mais detalhes do ocorrido (o que, frise-se, não confi gura bom índice, dado o papel do juiz no combate à tortura),(12) há quantidade expressiva de perguntas “negativas”: 7% delas, por exemplo, eram no sentido de insinuar que o acusado estaria mentindo; e 6% no sentido de naturalizar a agressão.

Os resultados encontrados quanto à atuação da Magistratura se tornam ainda mais graves se considerarmos a importância que poderia exercer no combate à tortura nas prisões em fl agrante – isso porque, em quase 60% dos casos, a denúncia de tortura ou outros TCDD surgiu após pergunta feita pelo juiz.

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2.2 A Atuação do Ministério Público: “Se não estivesse roubando, não estava apanhando...”(13)

Dos dados obtidos acerca da atuação de cada instituição envolvida nas audiências de custódia, pode-se dizer que os relativos ao Ministério Público são os mais preocupantes. A instituição é a segunda com a palavra nas audiências. Começa-se notando que, excluídos os casos em que o acusado relatou espontaneamente violência, e os casos em que o magistrado já havia questionado, o Ministério Público apenas averiguou a eventual ocorrência de tortura ou outros TCDD em 9% dos casos.(14)

Por outro lado, quando houve relato de violência em audiência, a instituição interveio em apenas 20%. Isso signifi ca, em outras palavras, que em 80% dos casos em que o acusado relatou ter sofrido tortura ou outros TCDD, o MP não fez qualquer tipo de intervenção.

E, nos casos em que o Ministério Público fez alguma intervenção, choca observar que 60% delas foram, exclusivamente, para deslegitimar o relato do preso, com perguntas que tentavam, por exemplo, justifi car a agressão narrada ou insinuar que não seria verdadeira.

Esse comportamento do Ministério Público refl ete nos dados relativos aos encaminhamentos dados aos relatos de violência. Em 88% dos casos em que houve denúncia de tortura ou outros TCDD, a instituição não requereu qualquer encaminhamento no sentido de apurar a denúncia. E, nos casos em que houve qualquer solicitação de apuração, eram majoritariamente pedido de encaminhamento ao DIPO 5 ou um pedido genérico de encaminhamento para apuração do relato.

E aqui, da mesma forma como ocorre na Magistratura, é possível observar a potencial importância que o Ministério Público poderia exercer no combate à tortura: 93% dos pedidos de apuração das denúncias feitos pela instituição são acatados pela Magistratura.

Esses dados demonstram não apenas a difi culdade do Ministério Público em exercer efi cazmente seu papel constitucional de Controle Externo da Atividade Policial (CEAP),(15) como também o possível prejuízo na qualidade da ação penal exercida posteriormente pelo órgão. Para além da persecução penal simples de policiais suspeitos, a função confere ao parquet a possibilidade de instaurar procedimento investigativo próprio ou requisitar à policial judiciária que o faça, sob sua supervisão próxima. Ao mesmo tempo, a análise do serviço público relacionado ao policiamento exige a atuação estrutural do Ministério Público emitindo recomendações para as práticas e padrões de atuação policiais. Dentre os órgãos analisados, o Ministério Público é o único que aparenta não estar construindo qualquer banco de dados relativos à violência policial narrada em audiências de custódia.

2.3 A Atuação da Defensoria PúblicaA Defensoria Pública é a última instituição do sistema de justiça

criminal a falar nas audiências de custódia. Por isso, é interessante notar que foi a responsável por fazer a “primeira pergunta” acerca de ocorrência de violência no momento da prisão em 23% dos casos, comprovando a falta de interesse das outras duas instituições, sobretudo do Ministério Público. Além disso, ressalta-se que a instituição foi a única a fazer perguntas relacionadas à existência de testemunhas ou outras provas que dessem suporte à denúncia de violência; e também a única a não fazer perguntas no sentido de insinuar que o preso estaria mentindo.

Ainda assim, os defensores deixaram, em muitos casos, de confrontar a Magistratura e o Ministério Público quando estes tentavam deslegitimar o relato dos custodiados – muitas vezes, de modo agressivo e desrespeitoso. Notou-se uma certa apatia por parte da instituição no que toca à reação ao comportamento de juízes ou promotores, especialmente diante de decisões dos juízes de não apurar os relatos de violência.

Outro dado importante é que defensores intervieram em 49% dos

casos em que houve relato de violência. Os defensores do DIPO reagiram a relatos de violência em 67% dos casos, enquanto os designados, em apenas 32% das vezes – o que demonstra a importância da capacitação e conhecimento dos defensores para atuação na custódia.

2.4 A Atuação do Instituto Médico-Legal: “Informou que sofreu queda da própria altura.”(16)

O Instituto Médico-Legal, em São Paulo, é órgão subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado. É ele que está encarregado de realizar os exames de corpo de delito no Fórum Criminal da Barra Funda depois das audiências de custódia; à época da pesquisa, numa sala improvisada e estreita. Além disso, as pesquisadoras observaram que policiais militares fi cavam acompanhando a realização do exame durante todo o tempo na porta da sala, o que poderia inibir a reprodução do relato do custodiado ao médico perito.

Dos laudos aos quais as pesquisadoras tiveram acesso, observou-se que, em 73% das vezes, os custodiados pareciam reproduzir, de maneira mais ou menos similar, a denúncia de violência feita em audiência de custódia. No entanto, nota-se que, em 16% dos casos, o relato foi reproduzido com nível de detalhamento muito menor, e, em outros 16%, sequer foi reproduzido. Isso pode estar relacionado ao ambiente de realização do exame, que, como explicado acima, não garante privacidade.

Observação importante é a de que nenhum dos laudos analisados investiga a ocorrência de violência psicológica, ainda que esses relatos tenham surgido em audiência. De fato, nos casos em que o custodiado narrou “apenas” a ocorrência de violência psicológica, o laudo do exame de corpo de delito indica que “nada foi informado”. Isso se torna especialmente grave em violências de gênero, que não necessariamente deixam marcas de lesão visíveis; tipo de delito também de difícil constatação pela ausência de peritas mulheres no Fórum.

3. Conclusões e EncaminhamentosOs magistrados não tomaram qualquer tipo de providência em

26% dos casos em que houve denúncia de violência policial. Quando decidiram pela apuração, o procedimento é burocrático e não resulta em verdadeira resposta à violência institucionalizada: enviam o procedimento ao DIPO 5, que se limita a encaminhar os relatos às corregedorias das próprias instituições policiais, demorando, em média, mais de 60 dias para essa primeira determinação de investigação. Em 14% dos casos, esse envio pelos juízes foi equivocado (para o órgão errado). No caso da PM, os próprios batalhões onde estava lotado o policial denunciado era o encarregado de apurar os fatos.(17) Em apenas 1 dos 393 casos, o juiz determinou abertura de inquérito policial, em caso que não analisava a responsabilidade de policiais responsáveis pelo fl agrante.

Vale ressaltar, por fi m, que os custodiados estão sempre algemados, antes, durante e após as audiências – até mesmo aqueles que têm a sua prisão revogada pelo Judiciário. Além disso, há sempre ao menos um policial militar acompanhando o custodiado em todos os momentos. Esses elementos, adicionados à postura de enfrentamento por parte de atores do sistema de justiça – particularmente juízes e promotores de justiça – tornam o ambiente das audiências de muita pressão e intimidação ao acusado que pode ter acabado de sofrer uma das violências mais graves num Estado Democrático de Direito, a tortura.

Em conclusão, a rotina das audiências de custódia é completamente incompatível com as normas administrativas, processuais e constitucionais que devem se aplicar ao procedimento, mas principalmente com o propósito que orientou a criação do instituto e a sua implementação no Estado. A audiência de custódia, pensada para inserir na persecução penal um procedimento adequado à garantia de direitos, tem dado ensejo à desconsideração das normas de prevenção e combate à tortura que

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“não cabem” na rotina das autoridades que lhes determinam a forma, especialmente do Ministério Público, órgão com atribuição de “fi scal da lei” e de controle externo das polícias.

Diante de vasta documentação colhida, Conectas Direitos Humanos requereu, no início do ano, providências da Corregedoria do TJSP e da Procuradoria Geral de Justiça no sentido de avaliar se as condutas de alguns dos seus integrantes eram compatíveis com as normas que regem as carreiras. Incrivelmente, ambas as instituições arquivaram as representações alegando, em síntese, não haver nada a ser corrigido ou apurado.

As condutas dos juízes e membros do Ministério Público estão sendo agora levadas pela organização ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público por meio de novas representações, para que sejam tomadas providências quanto aos fatos documentados.

Notas(1) Artigo 7. Direito à liberdade pessoal: 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de

um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

(2) Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Corregedor Geral da Justiça. Diário da Justiça Eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. São Paulo, SP, ano VIII, edição 1814, 27 jan. 2015. Caderno Administrativo, pp. 1-2. Disponível em: <https://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=9&nuDiario=1814&cdCaderno=10&nuSeqpagina=1>.

(3) De acordo com o cronograma do TJSP, o prazo final para implementação das audiências em todas as circunscrições judiciárias do Estado tem início em outubro. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/Download/Pdf/Comesp/Resolucoes/Resolucao740-2016.pdf>.

(4) Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059>. (5) A implantação e o funcionamento das audiências pode ser acompanhada em:

<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil>.

(6) <http://www.conectas.org>.(7) Relatório completo disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/

files/Relato%CC%81rio%20completo_Tortura%20blindada_Conectas%20Direitos%20Humanos(1).pdf> e Sumário Executivo disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Suma%CC%81rio%20executivo_Tortura%20Blindada_Conectas%20Direitos%20Humanos.pdf>.

(8) Nina Capello e Carolina Diniz.(9) Foram considerados sinais: lesões e curativos recentes, roupas ensanguentadas,

relatos de testemunho de agressão dado por outra pessoa presa no mesmo flagrante ou a demonstração clara de desconforto reagindo a perguntas sobre agressão.

(10) Frase dita por juiz ao custodiado após relatado de ter sofrido violência policial.(11) Da mesma forma, outra observação importante é a de que, em 25% dos

casos em que o réu apresentava sinais físicos de violência, mas não a relatou espontaneamente, os juízes não fizeram questionamento algum.

(12) Conforme prevê a Recomendação 49/2014 do Conselho Nacional de Justiça (13) Frase dita por membro do Ministério Público após o custodiado relatar ter sofrido

inúmeras agressões por parte de policiais no momento de sua prisão.(14) O número corresponde a dez casos. Em três destes casos, ainda, a Defensoria teve

que refazer a pergunta para que o acusado compreendesse. (15) Constituição Federal, Artigo 129, VII. (16) Após o preso relatar ao perito que policiais o jogaram no chão e por isso as

marcas em seu corpo, o médico atesta que o preso “informou que sofreu queda da própria altura”, diminuindo, portanto, a gravidade do fato.

(17) Vale destacar que o batalhão militar recebe, nesses casos, nome e endereço do denunciante e o vídeo da audiência, permitindo sua identificação e aumentando exponencialmente sua vulnerabilidade a represálias.

Rafael Custódio Coordenador de Violência Institucional da Conectas Direitos

Humanos.Advogado.

Henrique ApolinárioAssessor de Violência Institucional da Conectas Direitos

Humanos.Advogado.

Não-obrigatoriedade e acordo penal na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério PúblicoVinicius Gomes de Vasconcellos

No dia 07 de agosto de 2017, foi expedida a Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público brasileiro, regulando a “instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público”.(1) Além de questões gerais referentes à possibilidade de investigação direta pelo MP, declarada constitucional pelo STF, um ponto está sendo objeto de imediatas discussões doutrinárias: o capítulo VII (art. 18) de tal resolução regula um “acordo de não-persecução penal” em termos e amplitude claramente inéditos no Brasil e inexistentes na legislação atual.

Diante disso, este artigo pretende expor, introdutoriamente, tal regulamentação, questionando sua legitimidade constitucional e sua conformação com a teoria dogmática do processo penal.(2) Assim, enfocar-se-á nos seguintes problemas: 1) os espaços de não-obrigatoriedade são legítimos na dogmática processual penal?; 2) eles

podem ser introduzidos no processo penal por meio de disposições distintas de lei federal e sem a delimitação específi ca de suas hipóteses?; e, 3) um acordo em tais termos pode ser realizado entre as partes sem controle judicial?

A inovação aqui analisada é mecanismo de justiça criminal negocial, por meio do qual, “nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado um acordo de nã o-persecuç ã o penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento” (art. 18, caput). Desse modo, o investigado aceitaria a imposição (cumulativa ou não) de “sanções” como reparação do dano à vítima, renúncia a bens e direitos, prestação de serviço à comunidade e pagamento de prestação pecuniária, por exemplo.

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Portanto, tal acordo seria possível em qualquer crime sem violência ou grave ameaça à pessoa, salvo se (art. 18, §2o) for cabível transação penal, o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou “o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição”. Além disso, tampouco seria possível o pacto nos casos regulados no art. 76, §2o da Lei 9.099/95, como se o investigado tenha sido condenado defi nitivamente à pena privativa de liberdade por um crime ou a medida não se mostrar necessária e sufi ciente conforme os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente.

Embora não se ignorem (e se concorde com) as inúmeras e relevantes críticas que devem ser direcionadas à justiça criminal negocial,(3) pensa-se que, se houver ponto positivo na introdução de acordos no processo penal, isso se dá com a redução do encarceramento. Portanto, em uma primeira análise, a introdução de hipóteses de não-obrigatoriedade ao acusador público é bem-vinda desde que não contribua para o aumento da quantidade de aprisionados. Nesse sentido, o “acordo de não-persecução penal” da Res. 181/2017 do CNMP traz como ponto positivo a impossibilidade de imposição de sanção privativa de liberdade, pois regula somente medidas alternativas como “penas” consensuais ao investigado.(4)

Há muito, a doutrina processual penal tem desvelado que a “obrigatoriedade da ação penal”, a qual impõe um dever de acusar sempre que houver elementos sufi cientes de um crime,(5) é um mito, completamente inoperante na prática, marcada pela seletividade inerente ao direito penal e intensifi cada por tal concepção irreal do sistema de justiça criminal.(6) Já se concluiu que: “é insustentável uma ideia de obrigatoriedade absoluta, pois na prática ela não é realizável e acaba por ocasionar violações à própria premissa de igualdade de tratamento aos cidadãos (que paradoxalmente é uma de suas principais fundamentações), pois a decisão sobre acusar ou não fi nda por se tornar individual e potencialmente arbitrária por cada representante do MP”.(7)

Portanto, o ideal seria que, quando legítimos, esses espaços de não-obrigatoriedade fossem implementados sem a necessidade de imposição de sanções alternativas, reconhecendo-se que o Direito Penal não é instrumento possível e adequado para a tutela de condutas de menor gravidade e relevância.(8) Assim, deve-se distinguir, por um lado, os espaços de não-obrigatoriedade em que o acusador público fi nda por simplesmente não iniciar a persecução penal a partir de razões de política criminal e, por outro, os casos em que há um acordo entre acusação e defesa para imposição de uma pena reduzida ou alternativa a partir da conformidade do acusado, como o regulado pelo art. 18 da Res. 181/2017.

Contudo, a introdução de tais espaços de não-obrigatoriedade por meio de uma resolução do CNMP acarreta evidente violação à legalidade estrita que deve orientar (e limitar) a incidência do poder punitivo estatal. Inclusive no processo penal, a legalidade é uma fundamental premissa, de modo que somente a Lei pode alterar a sua normativa. Assim, primeiramente, há clara inconstitucionalidade, por violação do art. 22, I, da CF.(9)

Alguns argumentos favoráveis à referida resolução se mostram fragilizáveis.(10) Primeiramente, o fato de o STF reconhecer que resoluções do CNJ (e, por essa lógica, do CNMP) possuem caráter normativo primário para expedir atos regulamentares (ADC 12 MC e MS 27621) não autoriza que assim se introduzam mecanismos contrários ao ordenamento jurídico vigente e violadores de direitos fundamentais. De modo semelhante, a regulamentação da audiência de custódia por resolução do CNJ é situação distinta, pois visa a consolidar um direito fundamental (convencionalmente previsto), de aplicação imediata, no ordenamento brasileiro. Ao contrário, o art. 18 da Res. 181/2017 introduz espaço de redução e potencial violação a direitos fundamentais. Por fi m, a autorização para celebração do referido acordo é norma de matéria processual, pois aborda a realização

ou não da persecução penal, além de acarretar uma renúncia da defesa ao contraditório e ao devido processo legal, permitindo a realização antecipada da jurisdição penal (aplicação de sanções pelo Estado), ainda que ausente o controle judicial. Portanto, tal inovação normativa está submetida e viola a reserva legal.

Além disso, entre outros inúmeros questionamentos que podem ser apontados, neste artigo pretende-se atentar aos seguintes pontos problemáticos no regime previsto pelo art. 18 da Res. 181/2017: a) imprecisão dos critérios de cabimento e aparência de inadmissível discricionariedade do MP; e, b) ausência de controle judicial.

Embora tal diploma trace alguns requisitos para autorizar o oferecimento da proposta de “acordo de não-persecução penal”, percebe-se que não há em seus dispositivos uma delimitação clara dos casos em que o acusador público deve utilizar ou não o mecanismo. Pensa-se que os critérios que regulam a aplicação da não-obrigatoriedade “devem ser regulados de um modo a poderem ser generalizáveis e controláveis, com pressupostos objetivos e taxativos, assim respeitando a necessidade de igualdade de tratamento entre os cidadãos”.(11)

Assim, pela ausência de critérios claros e pela redação confusa do caput do art. 18 (que aparenta determinar uma discricionariedade do MP ao utilizar o termo “poderá propor”), a hipótese da barganha introduzida pela Res. 181/2017 também deve ser criticada por violar a segurança jurídica e a igualdade de tratamento. Pensa-se que, se for permitido um acordo entre acusador e imputado, isso deve se caracterizar como um direito da defesa, se atendidos os requisitos previstos legalmente para seu cabimento.(12) Ou seja, não pode se tratar de uma opção discricionária do MP.

Por fi m, juntamente com a imprecisão dos critérios de cabimento, o art. 18 da Res. 181/2017 não prevê qualquer controle judicial sobre o mecanismo negocial proposto. Por óbvio, o judiciário precisa ser o órgão de controle e limitação dos acordos entre as partes no processo penal, consolidando a sua função de garantidor de direitos fundamentais e limitador do poder punitivo estatal. Assim, eventual consenso para aplicação imediata de sanção criminal precisa, invariavelmente, ser submetido à verifi cação judicial, visando-se, essencialmente, a evitar abusos e violações a direitos fundamentais do imputado.(13)

Diante do exposto, retomando-se os problemas que orientaram este artigo, conclui-se que: 1) a introdução de espaços de não-obrigatoriedade ao dever de acusar é opção legítima e recomendável na dogmática processual penal, com o objetivo de tentar racionalizar a seletividade penal na atuação do MP e direcionar a persecução penal para infrações relevantes, desde que não sirva para a expansão do encarceramento; 2) contudo, tal inovação somente pode ser aceita se realizada com respeito à legalidade estrita que precisa orientar o direito processual penal, de modo que o art. 18 da Res. 181/2017 do CNMP é inconstitucional por violação do art. 22, I, da CF; ou seja, somente uma alteração legislativa feita pelo Congresso Nacional poderia introduzir instituto semelhante no processo penal brasileiro, regulando os critérios para seu cabimento, ainda que, posteriormente, permita-se a especifi cação das hipóteses de não-obrigatoriedade por normativas internas ao MP; 3) um acordo penal, nos termos regulados pela Res. 181/2017 não pode ser aceito sem qualquer controle judicial, como uma fase de homologação para verifi cação de seus requisitos e do respeito aos direitos fundamentais do investigado.

É interessante notar que o §5o do art. 18 da Res. 181/2017 autoriza a realização do acordo no próprio momento da audiência de custódia. Trata-se de evidente distorção das fi nalidades e das premissas da audiência de custódia, conforme apontado e previsto em publicação anteriormente publicada neste mesmo Boletim: “o principal risco da não vedação ao ingresso no mérito do caso penal durante a audiência de custódia é a sua total desvirtuação e transformação em instrumento para obtenção de condenações antecipadas por meio de coações e abusos arbitrários”.(14)

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Notas(1) Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/ED.169_-6.9.2017.pdf>.

Acesso em: 18 set. 2017.(2) Importante apontar que tal resolução tem sido questionada inclusive internamente

no Ministério Público, como em Minas Gerais na Recomendação Conjunta PGJ CGMP N. 2, de 13 de set. 2017, a qual recomenda que os promotores e procuradores de justiça de MG se abstenham de celebrar os acordos previstos no art. 18 da Res. 181/2017 do CNMP. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/mp-mg-proibe-acordo-ignorar-acao-penal.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017.

(3) Sobre isso, ver: VaScoNcElloS, Vinicius G. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p. 143-208.

(4) De modo distinto, os mecanismos negociais previstos nos projetos de novo CPP (PL 8.045/12) e CP (PLS 236/11) devem ser criticados por introduzir a possibilidade de punição restritiva de liberdade por meio de acordos entre acusação e defesa.

(5) Na doutrina, ver: aRMENta DEu, Teresa. Criminalidad de bagatela y principio de oportunidade: Alemania y España. Barcelona: PPU, 1991; JaRDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998; GIacoMollI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

(6) Sobre isso, ver: BINDER, Alberto M. Legalidad y oportunidad. In: BaIGÚN, David et al. Estudios sobre justicia penal: homenaje al Profesor Julio B. J. Maier. Buenos Aires: Del Puerto, 2005. p. 205-209. Sobre mitos na construção teórica do processo penal, ver: caSaRa, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 85-87.

(7) caPPaREllI, Bruna; VaScoNcElloS, Vinicius G. Notas sobre a perene crise do princípio da obrigatoriedade da ação penal no ordenamento italiano. Revista Eletronica de Direito Processual, Rio de Janeiro, ano 11, vol. 18, n. 1, p. 118-149, jan.-abr. 2017. p. 143. https://doi.org/10.12957/redp.2017.27994

(8) “A oportunidade (ou não-obrigatoriedade) se caracteriza em oposição à

obrigatoriedade, visto que autoriza o não oferecimento da denúncia ou a suspensão do processo penal conforme opção do órgão acusador estatal (em regra sob a anuência da defesa) com fundamento em critérios utilitários, político-criminais, econômicos, etc., em situação cujo lastro probatório é suficiente para atestar a materialidade e a autoria de um crime. Tais parâmetros decisórios podem ser taxativamente previstos em lei, em um cenário de atenção ao princípio da legalidade, ou flexíveis à ampla discricionariedade do acusador. Por certo que somente a primeira opção é aceitável no processo penal democrático.” (VaScoNcElloS, Vinicius G. Barganha e justiça criminal negocial, p. 48-49).

(9) Nesse sentido, há notícia de que a OAB ingressará como ADI contra a Resolução aqui em análise. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/noticias/2017/09/oab-vai-ingressar-com-adi-contra-resolucao-no-181-do-cnmp-1.11965>. Acesso em: 24 set. 2017.

(10) Sobre isso, em visão favorável à resolução, ver: <http://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-criado-cnmp>. Acesso em: 24 set. 2017.

(11) caPPaREllI, Bruna; VaScoNcElloS, Vinicius G. Notas sobre a perene crise do princípio da obrigatoriedade da ação penal no ordenamento italiano, p. 143.

(12) VaScoNcElloS, Vinicius G. Barganha e justiça criminal negocial, p. 135.(13) Sobre a função do julgador na justiça negocial, de modo semelhante em relação

à colaboração premiada, ver: VaScoNcElloS, Vinicius G. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: RT, 2017. p. 94-103.

(14) VaScoNcElloS, Vinicius G. Audiência de custódia no processo penal: limites cognitivos e regra de exclusão probatória. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 24, n. 283, p. 5-6, jun. 2016. p. 5.

Vinicius Gomes de Vasconcellosorcid.org/0000-0003-2020-5516

Doutorando em Direito pela USP. Editor-chefe da RBDPP e editor-assistente da RBCCRIM.Professor das Faculdades Integradas Campos Salles (SP).

Os equívocos de Dória sobre o grafi te: um olhar a partir da criminologia cultural� euan Carvalho Gomes da Silva

O início da gestão Dória Júnior na cidade de São Paulo fi cou marcado, dentre outros, pelo controverso programa autodenominado “Cidade Linda”. Referido programa constitui diversas ações – que mais lembram higienismo do que política pública – de “zeladoria urbana”, tais como cobrir de cinza grafi tes e pixos(1) dos muros da cidade. No último dia 4 de fevereiro de 2017, em entrevista concedida a uma rádio, o prefeito afi rmou que “todos os pixadores são bandidos”, informando que, desde 1º de janeiro de 2017, a Guarda Civil Metropolitana teria conduzido mais de 32 pixadores a distritos policiais, com fundamento no questionável art. 65 da Lei 9.605/98. No entanto, diferentemente do que crê a gestão municipal da capital, a Academia, através dos estudos da Criminologia Cultural, já demonstrou o equívoco dessas ações repressoras. Ao contrário do que pensam os empreendedores da moral,(2) pesquisas empíricas demonstram que, na verdade, a conhecida war on graffi ti não é capaz de alcançar seu objetivo declarado, provocando efeito contrário do pretendido.

Com efeito, a Criminologia Cultural como atualmente é conhecida teve início, sobretudo, a partir de meados da década de 90, legatária da Criminologia Crítica, principalmente do paradigma da reação social, das teorias do labelling approach e das teorias da subcultura. Pesquisadores como Jeff Ferrell, Clinton Sanders, Keith Hayward, Mike Presdee, Jock Young etc. passaram a investigar o “crime e as agências de controle como produtos culturais – como construções criativas. Como tais, devem ser lidas nos termos dos signifi cados que carregam”.(3)

Muito embora seu início tenha se dado em países como Estados Unidos e Reino Unido, já se desenvolvem no Brasil pesquisas sobre as relações entre crime e cultura, como aquelas conduzidas por Álvaro Oxley da Rocha, Saulo Furquim, Salo de Carvalho, Fernando Piccoli, José Linck, Larissa Frade, Guilherme Böes, Mateus Vieira da Rosa, dentre outros e outras.

Com efeito, a questão do método se mostrou central para pesquisas da Criminologia Cultural. Para melhor captar os objetos culturais, era preciso também romper com aquilo que Ferrell chamou de tédio criminológico.(4) O autor afi rma que naquele momento as pesquisas criminológicas estadunidenses e britânicas estavam aprisionadas nas metodologias abstratas e estéreis, restritas a surveys, mapeamentos da criminalidade e produção estatística de índices voltados para o controle.(5)

Por sua vez, Salo de Carvalho também identifi cou esse tédio criminológico no Brasil. O autor destaca que quando a Criminologia era ensinada nas faculdades se resumia ao estudo linear e sucessivo das escolas criminológicas, começando pela clássica ou positivista, culminando na radical ou crítica como o fi m da história, representando a Criminologia como ciência auxiliar (crítica ou não) à dogmática penal.(6)

Repensar os métodos foi o que possibilitou uma signifi cativa abertura de horizontes para as pesquisas criminológicas. Iniciou-se, então, uma tradição de pesquisas etnográfi cas, principalmente a partir da obra Crimes of style: urban graffi ti and the politics of criminality (1993), que também marcou o surgimento da Criminologia Cultural – muito embora,

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naquele momento, fosse denominada como Criminologia Anarquista por Ferrell. Para Oxley da Rocha, a Criminologia Cultural possui “um forte interesse pelo primeiro plano, ou pelo momento experiencial do crime; nesse sentido, a Criminologia Cultural se preocupa com o sentido localizado da atividade criminosa”.(7)

A saber, o grafi te está inserido num movimento maior, que é o hip hop. O movimento hip hop surgiu em meados da década de 60, e o Bronx, em Nova Iorque, costuma ser considerado seu berço de nascimento. Além do grafi te, o hip hop é composto por mais outros quatro elementos: o break (dança), o mestre de cerimônias (MC ou rapper) e o disc jockey (DJ). Foi o DJ estadunidense Afrika Bambaataa (Kevin Donovan) que sistematizou o hip hop dessa maneira, somado de seu um quinto elemento transversal a todos os outros: o conhecimento.(8) Por ser o hip hop expressão historicamente ligada ao movimento negro e a denúncia de iniquidades, sua expressão popular sempre foi politizada e contestadora da ordem vigente. Exemplo disso é que a crítica e contestação social são elementos comuns nas letras de rap e nos murais de grafi te.

Debruçando-se sobre a questão do grafi te propriamente dita, Ferrell, em Crimes of style, faz uma incursão etnográfi ca num famoso grupo de grafi teiros da cidade de Denver, Colorado (EUA), conhecidos como Syndicate. O recorte da pesquisa se restringiu ao estudo dos grafi tes conhecidos como taggers ou writers, mais comum entre os grafi teiros do hip hop.(9) Esse estilo era bastante popular naquela época entre os bairros de cultura negra nos EUA. Contra essa disseminação da cultura periférica, os empreendedores da moral promoviam criminalizações e campanhas contra o grafi te. A imersão e a vivência junto ao grupo de grafi teiros permitiram ao pesquisador captar signifi cados, sentidos e emoções relacionados ao momento da experiência do grafi te. É com base nessa experiência que Ferrell conclui que:“[...] grafi teiros grafi tam e pixam tanto para conseguir a emoção, o ‘rush de adrenalina’ da criatividade ilícita, como deixar marcas duradouras ou imagens. A escrita de grafi te ocorre, então, num contexto que provoca, desafi a e até celebra a ilegalidade do ato - um contexto que só pode ser exacerbado pelos duros esforços dos ativistas antigrafi te”.(10)

Reforçando a importância da experiência, Rasta 68, um grafi teiro de Denver, afi rma que“Pessoalmente, eu quero atingir as coisas da cidade, como pontes ao invés de propriedades de outras pessoas. Eles constroem as porcarias mais entediantes por aí, então por que não embelezá-las?”.(11)

Chaka, um grafi teiro da Carolina do Sul, por sua vez, foi preso por grafi tar o elevador do fórum enquanto visitava o ofi cial responsável por fi scalizar seu probation(12) decorrente de prévia condenação por grafi tagem.(13)

No mesmo sentido, pesquisa conduzida com grafi teiros de Porto Alegre/RS também destaca a importância da experiência transgressora, da questão da adrenalina. Em sua pesquisa de mestrado, valendo-se do método etnográfi co, Fernando Piccoli se inseriu em “rolês” com um grupo de grafi teiros da capital gaúcha. Um dos pixadores gaúchos, de codinome Kavera, afi rma: “Eu nunca cheirei, só fumo maconha, mas sou dependente de adrenalina, de pichação”.(14) Reforçando a questão da adrenalina sentida e buscada pelos pixadores e pixadoras, Fernando Piccoli transcreve em seu trabalho um trecho da música de MC Papo, intitulada “Eu pixava sim”:

“Antigamente a noite caiaEu saia de roléPulava o portão de tala na mãoTu sabe como que éUm rolo de trinta, cheio de tintaEu rasgava as madrugadasSubia no teto, e no viaduto tá ligado na paradaPM pegava, me esculachavaPintava minha cara e me humilhava

Mais eu não parava, eu continuavaPor que alguma coisa me hipnotizavaMoleque nervoso, periculosoMe divertia de montãoHoje eu parei, mais tá na memóriaOs momentos dessa zoação!”

A diversão em rasgar as madrugadas com um rolo de tinta na mão para pixar viadutos é relatada como diversão hipnotizante. MC Papo destaca que nem mesmo a polícia não o intimidava, ainda que tomasse alguns “esculachos”. Com efeito, a questão da adrenalina e do prazer parece ser intrínseca ao fenômeno do grafi te. Ferrell afi rma que “grafi teiros relatam consistentemente a mim e a outros que sua experiência de taggear é defi nida pela excitação incandescente, a precipitação da adrenalina, que resulta de criar sua arte em um ambiente perigoso e ilegal”.(15)

De outra banda, o papel das autoridades e atores institucionais tem contribuição relevante na dinâmica da grafi tagem e da pixação. Em Urban graffi ti: crime, control and resistance, artigo prévio que depois serviu de base para o livro Crimes of style, Ferrell levanta a questão da resistência às autoridades.(16) É a partir desses questionamentos que o autor destaca o papel das autoridades no combate ao grafi te, através de projetos, campanhas e criminalizações. Nesse cenário de excitação ilegal, a pressão sofrida pelos grafi teiros por parte das autoridades acaba retroalimentando a adrenalina e o prazer sentido pelos grafi teiros. Ou seja, o papel dos empreendedores da moral reforça a conduta tida como desviante, resultando numa estranha dança entre autoridade e resistência, que amplifi ca a intensidade da atividade que deveria ser suprimida.(17)

Em outras palavras: se Dória quer “acabar com o grafi te e o pixo”, ele se equivoca ao aumentar a repressão contra grafi teiros e pixadores, pois é exatamente isso que produz o rush de adrenalina que os move, conforme sustenta Ferrell e outros pesquisadores. Com efeito, essa proposição parece se confi rmar também no caso paulistano. Isso porque, logo após apagar, pessoalmente, os grafi tes da Av. 23 de Maio, no dia seguinte, o nome do prefeito apareceu pixado repetidas vezes ao longo da mesma avenida.(18) No Estádio Municipal do Pacaembu, em letras garrafais, também foi pixado “Chora Dória”.

Guardando paralelo com o cenário da cidade de São Paulo, Ferrell relata que já em 1987 os empreendedores da moral lançavam campanhas contra o grafi te e o pixo. A mais famosa campanha foi batizada de Keep Denver Beautiful, também conhecida como Clean Denver.(19) As propostas de Dória Júnior guardam bastante relação com o que já se tentou fazer – sem sucesso – pelo mundo. Vale citar os absurdos que os estadunidenses já propuseram para acabar com o grafi te:“Um membro da assembleia da Califórnia apresentou uma lei exigindo que as crianças condenadas por grafi tar sejam publicamente palmeteadas; E em St. Louis, um vereador propôs chicoteadas em público (Bailey, 1994, Gillam, 1994, Henderson, 1994). Outros ativistas contra o grafi te em Los Angeles e Denver aclamam as sugestões de arrancar as mãos e falam em pendurar, disparar e castrar (Colvin, 1993a, p.4), bem como pintar com spray publicamente os genitais dos grafi teiros (Kreck, 1993, Martin, 1992).”(20) De mais a mais, a questão da pixação também já foi objeto de interessante pesquisa conduzida em Santa Maria/RS. Por lá, foram defl agradas duas operações da Polícia Civil com objetivo de “combater o grafi te”. A primeira, denominada Cidade Limpa, e, a segunda, denominada Rabisco, defl agradas respectivamente em 2012 e 2013. A análise da pesquisa objetivou alcançar os discursos dos atores sociais e institucionais que se relacionavam com a prática e a repressão ao grafi smo urbano. Para tanto, a pesquisa adotou o método qualitativo de análise do discurso de entrevistas semiestruturadas conduzidas com um grafi teiro, um psicólogo, um magistrado do TJRS, o responsável pela secretaria que coordena a Guarda Civil local e um parlamentar da Assembleia Legislativa gaúcha. Amparada pelo referencial teórico

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de Bourdieu, uma das conclusões da pesquisa foi de que os discursos dos atores institucionalizados “acaba por realizar, de forma arbitrária, uma análise criminalizadora do conteúdo estético de uma intervenção urbana”.(21)

Outro ponto levantado pelos pesquisadores de Santa Maria se refere à questão da seletividade dos processos de criminalização que, no caso em testilha, parece ser reforçado pela limitação da compreensão de arte como àquilo que os empreendedores da moral entendem por arte. Essa posição parece encontrar eco na voz dos grafi teiros paulistanos Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos e reconhecidos internacionalmente como “Os Gêmeos”. Em publicação feita através de rede social, os irmãos postaram uma foto de um grafi te recente com os dizeres “Parabéns São Paulo!! Ganhamos mais uma vez o desrespeito com a ARTE!!”.

Parece ser bastante evidente o equívoco da política adotada pelo prefeito de São Paulo. A tentativa de criminalização e uso do aparato de repressão estatal contra o grafi te e o pixo não é capaz de alcançar os objetivos que anuncia. Aliás, conforme os resultados encontrados nas pesquisas que se debruçaram sobre essa questão, além da experiência em outros lugares ao redor do mundo, a repressão apenas amplifi ca o movimento que pretende combater. Mais uma vez, ao que tudo indica, além de não solucionar a questão, a atuação repressora do Estado vai atingir, como sempre, a juventude periférica.

Notas(1) É importante destacar que não há consenso quanto à diferenciação entre

grafite e pixo. Nos EUA, por outro lado, não há esse problema, já que a palavra graffiti representa tanto o grafite quando o pixo. Parece ter razão Carvalho et al. quando diz se tratar de uma “falsa dicotomia”. In: caRValHo, S. et. al. Op. cit. p. 81

(2) Cf. BEcKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Zahar, 2009. p. 119

(3) No original: “crime and the agencies of control as cultural products – as creative constructs. As such they must be read in terms of the meanings they carry.” In: HaYWaRD, Keith; YouNG, Jock. Cultural criminology. In: MaGuIRE, Mike. The Oxford handbook of criminology. London: Oxford Press, 2013, p. 138

(4) FERREll, Jeff. Tédio, crime e criminologia: um convite à criminologia cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 82, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 339

(5) Ibid. p. 344(6) Nesse sentido: caRValHo, Salo de. Das subculturas desviantes ao tribalismo

urbano (itinerários da criminologia cultural através do movimento punk). In: lINcK, José Antônio et al.. Criminologia cultural e rock. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Vale destacar, todavia, que nos últimos anos têm surgido no Brasil diversas criminologias pós-críticas, como as criminologias queer, feminista, cultural e racial, por exemplo.

(7) oXlEY Da RocHa, Álvaro Filipe. Crime e controle da criminalidade: As novas perspectivas e abordagens da criminologia cultural. Revista Sistema Penal & Violência, v. 4, n. 2, 2012.

(8) SIlVa, Rogério de Souza. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown. Tese (Doutorado). UNICAMP. Campinas: 2012. p. 27

(9) FERREll, Jeff. Crimes of style. Boston: Northeastern University Press, 1993. p. 5

(10) Ibid. 148(11) FERREll, Jeff. Urban graffiti: Crime, control, and resistance. Youth & Society,

v. 27, n. 1, p. 73-92, 1995. Disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0044118X95027001005>. Acesso em: 06 fev. 2017. p. 35

(12) Instituto semelhante ao livramento condicional.(13) Ibid. p. 37(14) PIccolI, Fernando. Riscos rebeldes: notas etnográficas e criminológicas sobre a

pichação. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul. p. 88

(15) FERREll, Jeff. Urban graffiti: crime, control, and resistance. Youth & Society, v. 27, n. 1, p. 73-92, 1995. Disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0044118X95027001005>. Acesso em: 06 fev. 2017. p. 37

(16) Ibid. p. 35(17) Ibid. p. 37(18) G1. Muros da Av. 23 de Maio são pichados com nome de Doria após

Prefeitura cobrir grafites Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/muros-da-av-23-de-maio-sao-pichados-com-nome-de-doria-apos-prefeitura-cobrir-grafites.ghtml>. Acesso em: 4 mai. 2017

(19) FERREll, Jeff. Crimes of style. Boston: Northeastern University Press, 1993. p. 130

(20) FERREll, Jeff. Urban graffiti: Crime, control, and resistance. Youth & Society, v. 27, n. 1, p. 73-92, 1995. Disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0044118X95027001005>. Acesso em: 06 fev. 2017. p. 36

(21) caRValHo, Salo de; WEBER, Luiza Damião; KESSlER, Márcia Samuel. Da margem ao centro: estudo sobre o controle punitivo dos grafismos urbanos em Santa Maria/RS. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n. 58, p. 65-84, jul./set. 2015. p. 77

� euan Carvalho Gomes da SilvaMestrando em direito pela UNESP.

Especialista em direitos humanos pela USP. Pesquisador do grupo de pesquisa NEPAL/UNESP.

Dos delitos e das penas: seria mesmo uma obra sobre a humanização do sistema de controle e de punição?Francisco de Assis de França Júnior

São muitos os responsáveis pela invenção daquilo que convencionamos chamar de direitos humanos. É especialmente no século XVIII que a expressão surge mais nitidamente no vocabulário do iluminado pensamento sócio-político que assumia protagonismo. Nesse contexto, de alegada racionalização do manuseio do sistema de controle e de punição, a década de 1760 foi prodigiosa. Da perspectiva histórica mais difundida, tem-se apresentado a França, sobretudo com Montesquieu, Rousseau, Voltaire, dentre outros, como o berço principal desse processo dito civilizacional.(1)

Mas é especialmente a partir da Itália que o impacto dos argumentos

contidos em um livrinho – recheado de um discurso contra-hegemônico –,faz-se sentir até os dias de hoje em praticamente todos os continentes. É com base nisso que o opúsculo de Cesare Bonesana, intitulado de Dos delitos e das penas, continua tão atual quanto as refl exões de Luigi Ferrajoli,(2) outro italiano cuja obra atualmente é também bastante conhecida (e utilizada, embora nem sempre lida) em terrae brasilis.

Eis ali o marco de defl agração de um período conhecido como clássico no desenvolvimento de teses atinentes ao Direito Penal, ao Processo Penal, à Política Criminal e, é claro, à Criminologia. Era um momento de reestruturação da sociedade e, por consequência, das

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instituições ofi ciais. Ao estudarmos aqueles acontecimentos históricos, nos deparamos com uma acentuada transição rumo ao Estado de Direito (dito) Liberal.(3) É inegável a contribuição de Cesare Bonesana nesse processo de enfraquecimento(4) de determinadas práticas persecutórias. Procedimentos absolutamente aviltantes, avessos a limitações, e geralmente justifi cados (?) pela busca da verdade,(5) eram manuseados despudoradamente pelos mandatários de plantão. No entanto, não muito diferente do que ocorre na atualidade, esse maquinário degradante procurava manter em sua alça de mira preferencialmente os economicamente desvalidos. Uma classe que, curiosamente, não era a de nosso iluminado autor, tendo, portanto, produzido sua obra-prima abrigado nos andares de cima.

Por que será, então, que um jovem aristocrata que ostentava o título de Marquês de Beccaria teria se incomodado tão dedicadamente com aquele estado de coisas autoritário? Com que fi nalidade teria se arriscado ao publicar críticas tão incisivas ao sistema de forças até ali vigente? São poucos os que se atrevem a tentar desvendar o que estaria por trás de uma obra tão difundida e festejada. Até mesmo porque, passados mais de dois séculos de sua publicação, e com tão poucas informações sobre sua vida cotidiana, qualquer tarefa nesse sentido seria de uma complexidade praticamente insuperável. Logo, é bom que registremos, sem rodeios, que não se constitui um de nossos objetivos a resolução dessas questões. Importa-nos, na medida do possível, a elaboração de uma refl exão essencialmente crítica a respeito, partindo-se das provocações foucaultianas, que poderíamos resumir da seguinte forma: afi nal, estaria mesmo Beccaria preocupado com a humanização do sistema de controle e de punição?

Ocorre que as informações, quase sempre muito elogiosas, a respeito de Beccaria, galgaram um grau tão profundo de naturalização que qualquer refl exão crítica mais atrevida pode acabar sendo encarada com alguma repulsa.(6) Convém, portanto, começarmos a nos explicar para que não apareçamos, nesse primeiro momento, como o “chato de plantão”. Já o deixamos antever, aliás, que não se colocará em dúvida a contribuição do autor milanês ao processo de arrefecimento do apetite estatal na espetacularização dos suplícios. Muito menos se tratará aqui da defesa do tradicionalismo até ali vigente, como o fez Pierre-François Muyart de Vouglans, um dos poucos a aceitar o desafi o de, por escrito, criticar publicamente Beccaria.(7) Parece-nos, portanto, muito justa sua inclusão no rol dos reformadores que levaram à suavização dos castigos adotados ofi cialmente pelos governantes. Nossa sucinta refl exão não tratará disso, nem se apegará, o que tem sido muito comum quando sobre ele se escreve, às questões da dogmática jurídico-penal, mas das razões que teriam impulsionado sua célebre publicação em 1764.

Aquele era um período conturbado, de insurgências, de deposições, de revoluções, das quais pode-se tomar como mais destacado exemplo o movimento – já infl uenciado pelas ideias ínsitas ao contrato social –que eclodiu na França, em 1789, exigindo de seus governantes o respeito à liberdade, à igualdade e à fraternidade. Mas, o que incomodava tão profundamente esse povo deveras insatisfeito e disposto ao enfrentamento? Dito bem resumidamente: a concentração absurda de poder nas mãos de tão poucos. Não é difícil concluirmos que essa concentração de poder em uma classe privilegiada (aquela mais próxima dos governantes) implicava na quase inexistência de limites ao exercê-lo e, claro, numa espécie de proteção mútua. Afi nal, quem vigiaria os vigias? Tanto é assim que Lynn Hunt(8) traduz as aspirações de Beccaria da seguinte maneira: “Contra o poder absoluto dos governantes, a ortodoxia religiosa e os privilégios da nobreza, Beccaria propunha um padrão democrático de justiça: ‘a maior felicidade do maior número’”.

Os movimentos de contestação, por óbvio, não deixaram os governantes alheios aos acontecimentos. A insatisfação popular com as arbitrariedades praticadas na dinâmica de funcionamento do sistema de controle e de punição, aliada à falta de segurança jurídica, cujas regras,

no fi nal das contas, dependiam do humor dos governantes, sobretudo nas questões mercadológicas que pulsavam com todo o vigor naquela época, acabaram provocando uma onda de indignação sem precedentes. Dadas as circunstâncias, era imperioso se adaptar, promover algumas mudanças, distribuir poderes, desconcentrar o núcleo de determinadas decisões, caso contrário, era muito provável que o resultado fosse o que a sabedoria popular vaticinaria mesmo hoje: “nem o mel nem a cabaça”. Os interesses dos governantes precisavam se readequar à nova e ameaçadora realidade, era preciso identifi car o que poderia ser útil para que se permitisse continuar a exercer com algum desembaraço o poder. Os mecanismos de controle e de punição passaram então por um processo estratégico de cálculo utilitário.

Aquela humanização, apregoada sobretudo a partir de Beccaria, disse Michel Foucault,(9) “é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos”.

Beccaria que, apesar de formado em Direito, era mais economista do que propriamente um jurista,(10) alguém versado, portanto, em cálculos, parece ter antevisto esse quadro, oferecendo seus préstimos para uma gestão mais racional (mais útil) do poder. Não estaríamos diante de um processo de ruptura preocupado com penas mais humanas, mas de uma necessária adaptação pela sobrevivência daqueles que ainda não haviam sido despojados do poder. É nesse sentido que Foucault(11) aduz que “a reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir”, uma iniciativa que tornaria o exercício do poder mais estável, regular, duradouro e efi caz. Mais do que resultado da mudança na sensibilidade das pessoas, a moderação na aplicação das penas fazia parte de um cálculo que permitiria “não punir menos, mas punir melhor”. Esse poder punitivo não poderia depender mais “de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórios da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público”, com o qual, aliás, nosso autor mantinha boas relações, tendo atuado como professor de economia (a partir de 1769) e, dois anos após, como funcionário da administração milanesa.(12)

Perceba-se que não é a humanização uma prioridade, uma fi nalidade em si mesma, um imperativo categórico, se quisermos, mas parte de uma estratégia, lastreada no utilitarismo, para que se permitisse arrefecer a exaltação social que ameaçava fazer ruir toda uma estrutura de poder concentrada nas mãos de poucos privilegiados. As reformas, portanto, não foram pensadas a partir da necessidade de sermos mais humanos, sensíveis e respeitosos para com o próximo, embora isso surgisse como uma de suas consequências, mas de questões relacionadas ao exercício do poder, questões mercadológicas e de segurança jurídica especialmente. Isso nos parece tão verossímil que, em seu celebrizado opúsculo, não se pode dizer que Beccaria tenha defendido a abolição completa de penas aviltantes. Os atentados contra a existência, ou seja, contra a vida humana, sustenta o iluminado autor, “devem ser castigados com penas corporais”;(13) os atentados à tranquilidade pública, com banimento;(14) as injúrias, com infâmia;(15) o roubo, com escravidão.(16) E mais: ele não renega em absoluto a pena de morte, colocando-a como uma opção à mão, caso fosse “o único freio que possa obstar novos crimes”.(17)

Mesmo com a defesa de penas que desconhecem a dignidade humana, embora formulada a proposta para que fossem utilizadas mais comedidamente e igualitariamente distribuídas entre todas as classes sociais, para a mentalidade vigente naquele período, aquelas refl exões críticas apareciam como um completo absurdo. Como alguém se atrevia a sustentar que o soberano deveria observar limites em seus domínios? Como poderia o sistema de controle e de punição ofi cial tratar a todos e todas com igualdade? Daí que Beccaria tem sido apontado como um dos primeiros formuladores da doutrina garantista.(18) Não se pode negar, repise-se, que suas propostas prestaram-se ao estabelecimento de parâmetros de segurança jurídica que infl uenciaram positivamente uma geração inteira de códigos, inclusive o Código Criminal do Império, de 1830, primeiro adotado pelo Brasil. Se na história do sistema de

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controle e de punição os suplícios acabaram sendo alcançados pelo pudor estatal, é impossível não lembrarmos de Beccaria como um de seus responsáveis. Mas, convém insistirmos, quais as razões disso?

Já registramos que nossas refl exões não teriam o condão de oferecer respostas defi nitivas sobre os questionamentos que nortearam o presente estudo. O referencial teórico com o qual trabalhamos traz-nos uma hipótese que nos parece coerente, mas não se recomenda apontá-lo como portador de uma verdade. O presente artigo constitui-se na nossa perspectiva dos fatos, essencialmente crítica, como desde o início deixamos à mostra. No entanto, cumpre-nos reconhecer, há outras interpretações majoritariamente não concordantes com a que expusemos. O que quisemos enfocar é que o alegado processo de humanização do sistema de controle e de punição, no qual se destacou Beccaria, talvez não tenha ocorrido por razões sinceras de sensibilidade, de altruísmo, de empatia ou de aguçado senso moral, como costuma ser reverberado nas inúmeras resenhas (a)críticas dedicadas ao tema. Todos esses sentimentos talvez até estivessem presentes naquele contexto de ebulição social, mas as pistas deixadas pelo caminho dão-nos subsídios para leituras um pouco menos românticas (e até mesmo menos pragmáticas) dos acontecimentos.

Notas(1) HuNt, Lynn, A invenção dos direitos humanos – uma história. Trad. Rosaura

Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.(2) FERRaJolI, Luigi. Direito e razão — teoria do garantismo penal. 4. ed. Trad. Luiz

Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2014.(3) aNDRaDE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica – do controle

da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 45.

(4) Pensamos em utilizar a expressão “desaparecimento” ou “abolição”, mas logo nos apercebemos de nossa ingenuidade, que, aliás, ficaria patente no olhar do leitor mais atento e ambientado com a dinâmica da segurança pública brasileira. Mesmo na atualidade, não é difícil nos depararmos com práticas que são tão aviltantes quanto aquelas naturalizadas no período enfocado. Para uma melhor reflexão sobre a recorrência de práticas antidemocráticas, especialmente no Brasil: olIVEIRa, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno – uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009.

(5) KHalED JR., Salah Hassan. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

(6) Situação semelhante foi constatada por Luciano Oliveira no que diz respeito à obra de Michel Foucault, e especialmente com Vigiar e punir: olIVEIRa, Luciano. Relendo Vigiar e Punir. Revista Olhares Plurais – revista eletrônica multidisciplinar, vol. 1, n. 4, 2016, p. 6-30. Disponível em: <http://revista.seune.edu.br/ index.php/op>. Acesso em: 12 mai. 2017.

(7) HuNt, Lynn. Op. cit., p. 93.(8) Idem, p. 81.(9) Foucault, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,

2005. p. 77.(10) Enquanto seu lado jurista nos legou Dos delitos e das penas, o lado economista

do autor resultou numa série de escritos econômicos (sobre moedas, minas, pesos e medidas, manufaturas, comércio, feira, mercado etc.), o que o teria levado a ser chamado de o “Adam Smith italiano”. Foucault, Michel. Nascimento da biopolítica. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010. p.78-79. A propósito desse lado jurista, Luiz Luisi destaca que “não tem Beccaria a postura do jurista dogmático em face do Direito Penal. Não preocupou o jovem lombardo o estudo dos textos, das normas, ou mesmo dos costumes penais do seu tempo, no sentido de interpretá-los singularmente e de organizá-los em sistema”. luISI, Luiz. Sobre Cesare Beccaria. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66472/69082>. Acesso em: 14 mai. 2017.

(11) Foucault, Michel. Vigiar e punir. Op. cit., p. 69.(12) Foucault, Michel. Nascimento da biopolítica. Op. cit. p.78-79.(13) BEccaRIa, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo:

Martin Claret, 2005. p. 74.(14) Idem, p. 59.(15) Id., p. 77.(16) Id., p. 80.(17) Id., p. 52.(18) FaRIa coSta, José de. Beccaria e o direito penal – três estudos. Coimbra:

Coimbra, 2015. p. 15.

Francisco de Assis de França JúniorMestre em Direito pela Universidade de Coimbra

Professor de Direito Penal e de Criminologia no Centro Universitário CESMAC.

Advogado.

Precisamos realmente nos socorrer à Teoria da cegueira deliberada no Brasil?Tiago Caruso Torres e Ana Luiza Gardiman Arruda

A willful blindness doctrine pretende dar o devido enquadramento jurídico-penal para as situações em que o sujeito ativo de um delito renunciou voluntariamente a adquirir o conhecimento de determinados pressupostos que, caso deles tivesse conhecimento no momento de se realizar o tipo, haveria uma imputação por dolo.(1)

Contudo, essa teoria exige critérios para sua correta aplicação no caso concreto: (i) o sujeito deve criar, de forma consciente e voluntária, barreiras ao seu conhecimento; (ii) o sujeito deve saber que essas barreiras facilitarão a prática de infrações penais; e (iii) deve existir, no caso concreto, alta probabilidade, ancorada em elementos objetivos, de que ocorrerá determinada infração penal.(2)

Aproximar essa teoria ao dolo (eventual) da dogmática continental não é uma tarefa fácil. De saída, essa teoria não substitui o conceito de dolo eventual, nem pode ampliá-lo, mormente porque, embora todo dolo eventual possa ser enquadrado no que se entende por cegueira deliberada, o inverso não é verdadeiro.(3) Por isso, apesar da sua recorrente utilização na jurisprudência nacional,(4) é preciso verifi car

se essa teoria é mesmo necessária para a correta solução dos atuais casos concretos da realidade brasileira.

O presente artigo pretende expor, de forma não exaustiva e bastante despretensiosa, algumas difi culdades iniciais que se impõem à aplicação imediata e adequada dessa teoria para resolver os nossos atuais problemas concretos.

Primeira difi culdade: o Brasil adota o sistema jurídico civil lawA Teoria da Cegueira Deliberada encontra seus primeiros

precedentes na Inglaterra, em 1861, e nos Estados Unidos, em 1899.(5)

Desde então, as dogmáticas anglo-saxã e norte-americana vêm desenvolvendo e aperfeiçoando essa teoria no contexto da common law.

Diante disso, o principal obstáculo reside no fato de que o modelo anglo-americano admite quatro formas de imputação subjetiva, ao passo que o modelo germânico – o qual o Brasil integra – admite apenas duas. Enquanto a seção 2.02.7 do Model Penal Code estadunidense defi ne

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quatro formas distintas de atuação subjetiva do sujeito (purposefully –propósito; knowingly – conhecimento certo do resultado delitivo; recklessly – desconsideração ou como irresponsabilidade frente aos efeitos do risco criado; e negligently – negligência),(6) o Brasil prevê apenas duas formas no artigo 18 do Código Penal (dolo ou culpa, com extensões para dolo eventual e culpa consciente).

Além disso, a wilfull blindness foi desenvolvida a partir do conceito de recklessness,(7) inexistente no direito penal brasileiro, e levando em consideração que o requisito de conhecimento do sujeito estaria satisfeito apenas e tão somente com o conhecimento de alta probabilidade.(8)

Como a cegueira deliberada foi pensada para uma realidade de common law, ela, de forma imediata, já não se encaixa bem ao nosso direito penal, que adota outro sistema jurídico.

Segunda difi culdade: o nosso Código Penal já defi niu de modo expresso o conceito de dolo

Independentemente da teoria que se adote sobre o dolo, não há dúvidas de que o dolo exige, no mínimo, conhecimento.(9) No Brasil, desde 1940 (art. 15, da redação original do CP e atual art. 18, inciso I, do CP),(10) há uma expressa defi nição legal de dolo. Mas é o art. 20 do CP que não deixa dúvidas de que essa categoria requer sempre a presença do elemento cognitivo, sob pena de ser excluída.

Equiparar a Teoria da Cegueira Deliberada ao nosso dolo eventual é viabilizar que, nos casos em que claramente não há o conhecimento do agente sobre o fato criminoso ocorrido – daí porque a teoria foi intitulada de cegueira diante dos fatos –, seja aplicado o mesmo reproche dos casos em que se exige esse conhecimento do agente – pois, do contrário, o sujeito estará em erro de tipo.

Não parece existir outra solução para esse problema que não seja a relativização do elemento cognitivo do dolo.(11) Contudo, para tanto, esbarra-se em outra difícil tarefa que é re-signifi car o conhecimento do sujeito em razão da gravidade da sua ignorância, transformando esse desconhecimento em algo tal que seja capaz de receber o mesmo tratamento como se conhecimento fosse,(12) ainda que falte ao sujeito o domínio sobre a realização do fato criminoso.(13)

Além disso, seria preciso enfrentar a re-signifi cação do próprio princípio da culpabilidade enquanto necessidade de responsabilidade subjetiva do sujeito. Por esse motivo, tem-se apontado a necessidade da criação de uma terceira categoria de imputação, para além do dolo ou da culpa.(14) Todavia, essa alternativa terá de explicar como seria possível uma categoria ao mesmo tempo independente, mas que sempre parece estar de alguma forma atrelada ao dolo – ao menos em sua carga de reprovação –; mas esse é um problema de lege ferenda.

Terceira difi culdade: essa teoria evidencia uma tendência de expansão do Direito Penal

Como a cegueira deliberada pretende tratar igualmente casos em que não é clara a presença do elemento cognitivo, a sua aplicação equiparada ao dolo (eventual) permitiria driblar o desconhecimento do sujeito, ainda que em sentido psicológico, e imputar a ele um reproche mais gravoso, o que, nitidamente, representa uma tendência expansionista do Direito Penal, através da fl exibilização dessa categoria de imputação subjetiva.(15)

Contudo, além de o dolo eventual já apresentar boas soluções nos casos em que se pretende aplicar essa teoria, a nossa lei já tratou expressamente das situações em que falta o conhecimento do sujeito no art. 20 do CP. Mesmo que na prática exista certa difi culdade de se provar o efetivo conhecimento do agente, uma teoria não pode servir para suprir esse défi cit processual, mesmo porque, quando há dúvida razoável, o Direito Penal pátrio já determinou ser caso de absolvição do sujeito. De fato, não parece compreensível punir por dolo a conduta daquele que não sabia que realizava um fato típico.

Quarta difi culdade: a falta de uniformidade no uso dessa teoria no Brasil

A jurisprudência atual do STJ(16) demonstra a aplicação da teoria da cegueira deliberada a partir de 2015 como sendo um indicador de que o sujeito age, no mínimo, com dolo eventual. Os poucos casos que chegaram a esse Tribunal referem-se à lavagem de dinheiro (quando há apenas indícios de que o sujeito sabia da procedência criminosa da quantia) e ao tráfi co de arma de fogo (quando o agente se nega a saber a natureza da carga que transporta).

Em todos eles, embora a punição tenha sido por dolo eventual, o fundamento é sempre a willful blindness norte-americana; e, esta, desenvolvida de acordo com a realidade jurídica dos países de common law, equipara a cegueira deliberada à recklessness, modalidade de imputação que, para parte da doutrina, corresponde ao dolo eventual e, para outra parte, à culpa consciente. Ou seja, não se descarta que a utilização dessa teoria no Brasil possa vir a tender também à imputação na modalidade culposa, o que representaria uma difi culdade ainda maior pois esbarraria no árido campo dos deveres de informação e arrastaria a discussão para os limites do dever de cautela do sujeito.

Essa obscuridade quanto aos critérios exigidos para a aplicação da teoria também é verifi cada, por exemplo, na Espanha, onde a teoria é adotada desde 2002. Nas decisões dos Tribunais Superiores desse país, se percebe que, apesar de, no início, ter-se entendido ser necessário, para a confi guração típica, que o sujeito tenha se benefi ciado com a conduta, hoje esse requisito é claramente dispensado.(17)

ConclusãoEssas quatro difi culdades iniciais precisam ser bem resolvidas antes

de importarmos de vez a teoria da cegueira deliberada para o Brasil. Há sérios problemas dogmáticos a serem enfrentados e, na prática, ela já se mostrou de difícil aplicação, mesmo que ainda tenha sido adotada aqui em poucos casos, o que ameaça a segurança jurídica. Além disso, os casos em que essa teoria é utilizada já são resolvidos com o dolo eventual, o que parece torná-la desnecessária para nós.

Equiparar essa teoria ao dolo (eventual) é negar vigência à lei penal que impede essa modalidade de punição quando falta ao agente o conhecimento da realização do tipo. Entender o contrário é permitir a punição pela mera suspeita, o que parece incompatível com um direito penal que não trabalha com meras presunções.

Notas(1) Cf. RaGuÉ S I VallES, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal.

Barcelona: Atelier, 2007, p. 22.(2) Tais requisitos são inspirados nas doutrinas brasileira, espanhola e

estadunidense. Apesar de não serem critérios pacíficos, se apresentam como um bom caminho para se aplicar, com um mínimo de adequação, a referida teoria. Nesse sentido, BottINI, Pierpaolo Cruz. A cegueira deliberada no julgamento da Aç ã o Penal 470. Disponí vel em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470>.

(3) SIlVEIRa, Renato de Mello Jorge. Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. Boletim IBCCRIM. n. 226, Maio/2013.

(4) O primeiro caso de que se tem notícia do uso desta teoria no Brasil foi na Ação Penal n. 2005.81.00.014586-0, que tramitou perante a 11ª Vara Federal da Subseção de Fortaleza, no caso que ficou conhecido como “Assalto ao Banco Central”. Depois, há menções à willful blindness doctrine na AP 470, que tramitou no Supremo Tribunal Federal, o chamado caso do “Mensalão” e, mais recentemente, em diversas sentenças proferidas no âmbito da denominada “Operação Lava Jato”, como no caso dos autos da Ação Penal n. 026212-82.2014.4.04.7000, que tramitou perante a 13ª Vara Criminal Federal do Paraná. Todavia, como vivemos em um país de dimensões continentais, em que proliferam um sem número de decisões judiciais diariamente, é provável que existam outras menções ao uso dessa teoria em tempos ainda mais pretéritos.

(5) Cf. RaGuÉ S I VallES, Ramon. Op. cit., p. 65-68.(6) Idem. p. 70.(7) Ibidem. p. 72-74.

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(8) SIlVEIRa, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. RBCCRIM. v. 122, Agosto/2016.

(9) Há um bom panorama sobre as principais teorias sobre o dolo em RoXIN, Claus. Derecho penal, parte general. T. I. Madrid: Thomson e Civitas, 2008, p. 414-456. Nesse sentido, Herzberg é incisivo ao afirmar que “não interessa se o autor levou a sério um perigo conhecido, o que interessa é se ele conhece um perigo que deveria ser levado a sério”. Em: PuPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. São Paulo: Manole, 2004, p. 79.

(10) A redação de 1940 foi repetida na reforma da parte geral do Código Penal de 1984, mantendo-se “diz-se crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

(11) GREco, Luís. Comentario al artículo de Ramon Ragués. Discusiones XIII. Ignorancia deliberada y derecho penal, 2014, p. 76-77.

(12) PuPPE, por seu turno, defende que cegueira deliberada e dolo são institutos absolutamente distintos, podendo até existir um reproche próprio diante de uma situação de cegueira deliberada, o qual não se equipara ao reproche do dolo de realização do tipo. PuPPE, Ingeborg. Op.cit., p. 88-89.

(13) GREco, Luis. Dolo sem vontade. In: SIlVa DIaS e outros [coords.]. Liber Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 885-905.

(14) Cf. RaGuÉS Y VallES, Ramon. Op.cit. p. 209.(15) O termo ‘expansão’ é utilizado por Silva Sánchez para retratar uma tendência

dominante nas legislações, que pode ser percebida através da “criação de novos ‘bens jurídico-penais’, ampliação dos espaços de riscos jurídicos penalmente

relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia”. Em: SIlVa SÁNcHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, p. 21.

(16) A escolha pelo STJ se deu pela dificuldade da pesquisa jurisprudencial em todo o território nacional e em razão do presente artigo se limitar a traçar panoramas gerais sobre a viabilidade do uso adequado da cegueira deliberada no Brasil.

(17) Cf. RaGuÉS Y VallES, Ramon. Op.cit., p. 23-29.

Tiago Caruso TorresMestrando do Núcleo de Pesquisa em Direito Processual

Penal da PUC/SP. Pós-graduado em Compliance pela GVLaw/FGV.

Advogado.

Ana Luiza Gardiman ArrudaMestranda do Núcleo de Pesquisa em

Direito Penal da PUC/SP. Bolsista do CNPq.

Advogada.

A cultura do encarceramento e a periculosidade social do agente como prognóstico de reiteração delitivaFelipe Dezorzi Borges

Está previsto no Código de Processo Penal que a prisão preventiva poderá ser decretada em “garantia da ordem pública”. A alusão normativa, descrita no artigo 312 do Código de Processo Penal, não apresenta qualquer suporte conceitual, possivelmente tolerando que seja o juiz o protagonista da conceituação, conforme o caso concreto.(1)

Ocorre que esse protagonismo tem dado margem a interpretações descoladas da estrita legalidade, e um sem número de prisões arbitrárias são justifi cadas em suportes vários, como: para “garantir a paz social; credibilidade da justiça; periculosidade do réu; clamor público; indignação da opinião pública; repercussão do crime; garantir a integridade física do réu e seus familiares”,(2) ou seja, desprovidos de indicação de elementos concretos à prisão e, inúmeras vezes, amparados em meras ponderações sobre a gravidade abstrata do crime.(3)

A toda sorte, o que se apresenta hoje na prática é a segregação do indivíduo, com amparo na necessidade de garantir-se a “ordem pública”, termo que, segundo retratado por Paulo Queiroz, é “vago e generalíssimo, e, pois, incompatível com o princípio da legalidade das penas, que exige o máximo grau possível de certeza da linguagem técnico-jurídica e a máxima precisão semântica dos conceitos jurídico-penais, razão pela qual tem sido justamente criticada por servir de pretexto para as mais arbitrárias prisões”.(4)

Uma outra verdade é a compreensão, entre os doutos magistrados, de que a periculosidade social do agente pode ser evidenciada pela prática de crimes anteriores, a justifi car, por decorrência, a segregação cautelar como garantia da ordem pública,(5) prevenindo-se o risco de reiteração na senda delitiva.

Acredita-se, entretanto, que a adoção do termo periculosidade social, por si só, denota a aplicação desmedida e banalizada do artigo 312 do Código de Processo Penal, a corroborar a deterioração do sistema carcerário nacional. É possível constatar que os aplicadores do Direito não estão sabendo interagir com as normas penais, de modo a saturar o sistema prisional com medidas constritivas desarrazoadas e criações interpretativas que alargam, cada vez mais, a necessidade de encarceramento do indivíduo. Desconsidera-se que, ao se ponderar a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de cautelar até o ponto de transformá-la em medida de segurança pública.(6)

A história brasileira registrou, em seu passado, a caça aos “inimigos da nação” com sustentáculo na suposta periculosidade social de indivíduos e de grupos sociais. Nesse período, também a tortura foi justifi cada, operacionalmente, como uma forma de punir, enfraquecer as convicções políticas e dar segurança para a parcela da sociedade (pretensamente majoritária) que apoiava o regime. O que caracterizava este “inimigo” não era um juízo de culpabilidade, mas uma análise de periculosidade do autor da ação, compreendendo-se o seu total desarranjo com o comportamento normal e conformista, de ordem hegemônica, exigido por parte dos demais cidadãos.(7) O termo periculosidade foi adotado, em seu nascedouro, por regimes totalitários, apartados do Estado Democrático e de Direito, não sendo crível, pois, a sua adoção no período democrático.

Não obstante, a rubrica periculosidade, a sustentar um juízo acerca

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do risco de reiteração delitiva, é amplamente acolhida por nossos tribunais, que, apesar da alta carga de abstração do termo e de sua constitucionalidade discutível, valem-se para decretar e chancelar inúmeras prisões.(8)

Em sentido oposto, no entanto, entende a Corte Interamericana de Direitos Humanos. No caso Fermin Ramirez Vs. Guatemala, sentenciado em 20 de junho de 2006, acolheu-se a violação ao artigo 9 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, caso em que se avaliou o disposto no artigo 132 do Código Penal da Guatemala, o qual continha elemento subjetivo relativo à possibilidade de punição, justamente por se tratar a periculosidade como um elemento vago e indeterminado. In verbis:

“(...) 94. En concepto de esta Corte, el problema que plantea lá invocación de la peligrosidad no sólo pude ser analizado a la luz de las garantias del debido processo, dentro del artículo 8 de la Convencion. Esa invocación tiene mayor alcance y gravedad. Em efecto, constituye claramente una expresíón del ejercicio del ius puniendi estatal sobre la base de las características personales del agente y no del hecho cometido, es decir, sustituye el Derecho Penal de Acto o de hecho, próprio del sistema penal de uma sociedade democrática, por el Derecho Penal de Autor que abre la puerta al autoritarismo precisamente em uma matéria em la que se hallan em juego los bienes jurídicos de mayor jerarquia.

95. La valoración de la peligrosidad del agente implica la apreciación del juzgador acerca de las probabilidades de que el imputado cometa hechos delictuosos en el futuro, es decir, agrega a la imputación por los hechos realizados, la previsión de hechos futuros que probablemente ocurrirán. Con esta base se despliega la función penal del Estado. En fi n de cuentas, se sancionaría al individuo – con pena de muerte inclusive – no con apoyo en lo que ha hecho, sino en lo que es. Sobra ponderar las implicaciones, que son evidentes, de este retorno al pasado, absolutamente inaceptable desde la perspectiva de los derechos humanos. El pronóstico será efectuado, en el mejor de los casos, a partir del diagnóstico ofrecido por una pericia psicológica o psiquiátrica del imputado.

96. En consequencia, la introduccion em el texto penal de la peligrosidad del agente como critério para la califi cación típica de los hechos y la aplicación de ciertas sanciones, es incompatible con el princípio de legalidade criminal, por ende, contrario a la Convencion.”

Aduziu a Corte Interamericana que a periculosidade do agente não pode ser presumida. Logo, a mensuração de valores subjetivos do próprio indivíduo e das características pessoais do agente constituem uma violação ao princípio da legalidade previsto no artigo 9 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

“Artigo 9. Princípio da legalidade e da retroatividade

Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso benefi ciado.”

Pode-se inferir, pois, que a análise da suposta periculosidade social do agente implica, à luz do sistema Interamericano de Direitos Humanos, um juízo hipotético quanto às características e ao histórico do indivíduo, o que importa um direito penal do autor, que se contrapõe ao direito penal do fato, em violação ao artigo 9º. da Convenção.

Por certo não é possível defender a existência da periculosidade do agente como predeterminação do indivíduo ao crime e/ou a probabilidade de que voltará a delinquir, tampouco há possibilidade de se mensurar essa determinação.

Flávia Ávila Penido, ao retratar os vieses do exame criminológico na Lei de Execução Penal,(9) assenta conclusão dada pela Conselheira Valdirene Daufemback, no sentido de que inúmeros fatores podem contribuir para a prática do crime, tais como escolaridade, situação econômica, relações familiares, capacidades desenvolvidas, entre outros. Ao fi m, conclui que “diante dessa diversidade de situações que podem levar ao crime, a análise de apenas alguns deles não seria capaz de precisar a possibilidade da ocorrência ou não de outro fato criminoso”. Vale dizer, tampouco a análise dos aspectos da vida do apenado contribui à avaliação das possibilidades de reiteração na senda delitiva.

Em verdade, é impossível aferir a periculosidade do agente ou a sua predeterminação à reiteração delitiva, por certo que também é impossível prever o comportamento humano; logo, soa desarrazoado garantir-se, por decisão judicial, a probabilidade de que alguém reiterará na senda criminosa ante um juízo acerca da sua periculosidade e um padrão de comportamento anterior.

Nesses termos, sustentar-se a prisão na periculosidade do agente, antevendo-se a reiteração delitiva, com suporte, ainda, em um histórico delitivo, revela uma indevida retórica argumentativa. O juízo próprio a antecipar a prisão do indivíduo, como garantia da ordem pública, deveria encontrar balizas em elementos concretos do fato, não podendo o Magistrado valer-se da rubrica periculosidade social.

Esse silogismo, ademais, foi adotado por Zanoide de Moraes, que propôs em sua obra a aceitação de três requisitos cumulativos, tendo como eixo central o ato ocorrido, para que se aceite a prisão provisória com base na ordem pública, notadamente: a) a pena prevista para o crime imputado; b) as circunstâncias e a forma demonstrada de cometimento do suposto crime; c) a relação temporal entre o conhecimento da autoria e o instante de determinação da prisão.

Vale dizer, partindo-se do ato ocorrido, as justifi cativas à medida coativa extrema da prisão devem seguir as consequências materiais do fato sucedido e não os crimes anteriormente praticados. É esclarecedora a conclusão do Professor:

“Não se pode buscar o seu fundamento nas características pessoais do imputado, ou em outros atos atribuídos ou atribuíveis a ele, pois a se permitir que o legislador defi na e o julgador extraia razões para decidir de pontos estranhos e alheios ao ato imputado, abre-se a fresta sempre usada ao ingresso de análises impregnadas de subjetivismos e preconceitos, todas inconstitucionais”.(10)

A prisão cautelar, por se tratar de um fato jurídico,(11) que advém de um fato processual, deve justifi car-se em um fato concreto, em dados reais, não sendo legítima quando lastreada em meras conjecturas acerca da periculosidade social do agente e do risco de que persistirá na senda criminosa.

E mesmo que se queira assegurar o juízo do risco de reiteração delitiva(12) a sustentar a prisão processual do indivíduo, a custódia somente poderia ser lastreada após aferida a relação concreta entre o crime praticado, a real gravidade dos delitos anteriormente cometidos e a sua contemporaneidade, sob pena de não se ter formado um prognóstico mínimo de reiteração.

Logo, deduzir-se a necessidade de prisão com amparo em sugestões de crimes cometidos, sem fundamento específi co e sem lastro em certidões de antecedentes criminais, implica verdadeiro assombro.

Se para o exame do risco de reiteração, como querem as Cortes nacionais, o magistrado não pode prescindir dos registros históricos da vida delitiva do agente, também é certo que se faz necessária a observância de pressupostos a estabelecer um limite a esse juízo, sob pena de arbitrariedade.

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Não poderia ser outra a cautela, porquanto a rubrica reiteração delitiva nada mais é que criação jurisprudencial, ou seja, um corpo estranho no que tange aos requisitos autorizadores da prisão preventiva.(13)

Logo, é mister exigir-se, como fundamento à prisão cautelar, a avaliação concreta da predisposição delitiva com amparo em elementos sólidos, com base na prova da gravidade de delitos dolosos anteriormente praticados(14) e a sua contemporaneidade ao ato ocorrido.(15) Vale ainda dizer, a prisão antecipada, como medida de prevenção especial negativa,(16) com amparo no suposto risco de reiteração de futuras infrações penais, não se apresenta justifi cada quando o silogismo do decreto de prisão amparar-se em crime anterior que não apresenta qualquer gravidade e não haja contemporaneidade ao ato do qual se inferiu o dano.

Não se pretende aqui aferir aludidos parâmetros, mas apenas sugerir uma nova postura ao decreto e/ou chancela da prisão cautelar, de modo a contribuir para um melhor controle da legalidade das segregações antecipadas, prevenindo-se prisões ilegais e desarrazoadas.

Faz-se mister, no atual cenário, que se aportem medidas aptas a impedir que se alastre a cultura do encarceramento, então responsável pelos resultados do recente diagnóstico de pessoas presas no Brasil, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional, com dados colhidos até 30 de junho de 2014.(17) Decorre do estudo a população total efetiva de 607.731 encarcerados (sem considerar a população carcerária em prisão domiciliar), em um sistema penitenciário com a capacidade de até 376.669 vagas, o que gera um défi cit de 231.062 vagas. O Brasil é o 4º país no mundo em número de pessoas presas, perdendo apenas para Estados Unidos, China e Rússia. Dentre estes, o Brasil possui a maior taxa de ocupação de presos sem condenação (41%); por conseguinte, de cada 10 pessoas presas no Brasil, 4 ainda aguardam julgamento.

Acredita-se que a aplicação abusiva e banalizada do artigo 312 do Código de Processo Penal pode ser revertida por meio de critérios concretos e objetivos, a corroborar o resgate do sistema carcerário nacional.

Sob esse viés, sugere-se a impropriedade de um juízo amparado na periculosidade social do agente a sustentar a prisão antecipada; e, caso se insista em adotar um prognóstico de reiteração delitiva, é imprescindível que se relacione o risco de reiteração ao ato ocorrido, a gravidade do crime anterior e a sua contemporaneidade. Entende-se que outra avaliação do debate, que não esteja calçada nesses vetores, não pode ser considerada válida para efeito de sustentar a prisão, porquanto não ampara a necessidade da prevenção especial negativa em desfavor da liberdade do agente.

Notas(1) NuccI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. 4ª. ed. rev. e atual. – Rio de

Janeiro: Forense, 2014, p. 88.(2) SaSaKI, Igor. A inconstitucionalidade da garantia da ordem pública como

pressuposto da prisão preventiva. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6296>. Acesso em: maio de 2017.

(3) No Superior Tribunal de Justiça, vide: RHC nº 72.252 - MG (2016/0155605-9); RHC nº 73.467 - AL (2016/0190259-7); RHC nº 54.529 - MG (2014/0331806-

9), RHC nº 56.175 - MG (2015/0019722-8), RHC nº 66.018 - PI (2015/0302013-0), HC nº 388.376 - RR (2017/0031242-0). No Supremo Tribunal Federal, vide: HC 113.945/SP; HC 112.896/SC; HC 129.351-SP; HC 132.615/SP.

(4) Disponível em: <http://www.pauloqueiroz.net /prisao-preventiva-e-temporaria-2>. Acesso em: maio de 2017.

(5) A garantia da ordem pública é colocada por parte da doutrina na categoria de inconstitucional, dado o grau de imprecisão, vagueza e indeterminação de seu conteúdo, mas tem encontrado no Poder Judiciário as balizas de aplicação, utilizado, no mais das vezes, nas seguintes situações: prevenir o risco concreto de reiteração delitiva; fazer cessar a atividade de organização criminosa; reparar a gravidade concreta do delito (Excerto do voto-vista do Exmo. Sr. Ministro Felix Fisher, no RHC/STJ 63.855/MG, Terceira Seção, julgado em 11/05/2016, DJe 13/06/2016).

(6) loPES JR, Aury; Da RoSa, Alexandre Morais. Crise de identidade da “ordem pública” como fundamento da prisão preventiva. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva>. Acesso em: maio de 2017.

(7) PaulINo, Andrea de Souza Silva; BatISta, Gustavo Barbosa de Mesquita. O conceito penal do inimigo durante a ditadura militar brasileira. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/viewFile/27994/15031>. Acesso em: março de 2017.

(8) No Superior Tribunal de Justiça, vide: HC 381.402 - SP (2016/0320647-1); HC 390.979 - SP (2017/0047923-8); RHC 82.689 - MG (2017/0073363-2); HC 391.604 - SP (2017/0052016-9). No Supremo Tribunal Federal, vide: HC 137131/RS, HC 128.779/SP, HC 141170/SP, HC 140215/RS, HC 117.090/SP, HC 125695/SP.

(9) Disponível em: <ht tp://revistas.unibh.br/index.php/dcjpg/article/view/1176/692>. Acesso em: abr i l de 2017.

(10) DE MoRaES, Maurício Zanoide. Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 390/399.

(11) NuccI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. 4ª. ed. ver. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 105.

(12) Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa assentam que, “no que tange à prisão preventiva em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal (Crise de identidade da ‘ordem pública’ como fundamento da prisão preventiva)”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva>. Acesso em: abril de 2017.

(13) Em artigo sobre a prisão preventiva no Direito Alemão, Luís Henrique Alves Machado assenta que a prisão com amparo no perigo de repetição também representa um elemento apartado de seu contexto, porquanto “não tem a função de assegurar o processo de investigação, tampouco de garantir a execução da pena, mas, pelo contrário, atua como medida de caráter preventivo” (MacHaDo, Luís Henrique Alves. A prisão preventiva sob a perspectiva do Direito Alemão. Disponível em: <https://jota.info/artigos/prisao-preventiva-sob-perspectiva-direito-alemao-24022015>. Acesso em: março de 2017).

(14) Paulo Queiroz afirma que a garantia da ordem pública deve ser entendida num sentido restrito e preciso: evitar a reiteração de crimes dolosos graves (CPP, 282, I). Disponível em: <http://www.pauloqueiroz.net/prisao-preventiva-e-temporaria-2>. Acesso em: abril de 2017.

(15) v. HC 137728/PR, rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2.5.2017.

(16) Paulo Queiroz. Idem.(17) Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-

relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>.

Felipe Dezorzi Borges Defensor Público Federal de Categoria Especial.

DIRETORIA EXECUTIVAPresidente: Cristiano Avila Maronna1.º Vice-Presidente: Alexis Couto de Brito2.ª Vice-Presidente: Eleonora Rangel Nacif1.º Secretário: Renato Stanziola Vieira2.º Secretário: Carlos Roberto Isa1.º Tesoureiro: Edson Luis Baldan2.º Tesoureiro: Bruno ShimizuDiretor Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: André Adriano Nascimento e SilvaAssessora da presidência: Jacqueline Sinhoretto

Fundado em 14.10.92

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CONSELHO CONSULTIVOAndre Pires de Andrade KehdiCarlos Alberto Pires MendesHelios Alejandro Nogués MoyanoMariângela de Magalhães GomesSérgio Salomão Shecaira

OUVIDORRogério Fernando Taffarello

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Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 25 - Nº 299 - OUTUBRO/2017 - ISSN 1676-3661

COM A PALAVRA, O ESTUDANTE

A distinção entre femicídio e feminicídio no debate acerca da lei nº 13.104/2015 e suas implicações para indivíduos transexuaisDavid Campos CastroIntrodução

O artigo em questão visa tratar a distinção entre femicídio e feminicídio, de forma a facilitar a investigação da situação dos indivíduos transexuais frente à qualifi cadora implantada pela Lei nº 13.104/2015. Faz-se uma breve análise sobre a subjetividade das transexuais com base na teoria existencialista e em tópicos da teoria queer(1) para compreender a formação do sujeito no mundo. A partir desta fundamentação desenvolve-se a questão da qualifi cadora do feminicídio e de como os tribunais têm interpretado a condição transexual em outras ocasiões, como forma de agregar pontos de vista ao debate.

A construção do sujeito transexualJean-Paul Sartre, no núcleo-duro de sua teoria existencialista,

denunciava que a existência precede a essência e que, por isso, é preciso partir da subjetividade para compreender esta condição humana donde, consequentemente, o ser humano será aquilo que se tornar, e nada mais.(2) Desta mesma linha, retira-se o pensamento de outra teórica existencialista, Simone de Beauvoir, que, em seu magnum opus,(3) disserta sobre a condição da mulher enquanto Outro,(4) enquanto categoria totalmente dominada pelo conceito de homem. Para Beauvoir, a mulher deve opor-se a tal dominação referencial e deve, também, se tornar, se reivindicar enquanto sujeito, não esquivando “o risco metafísico de uma liberdade que deve inventar seus fi ns sem auxílios”.(5)

De acordo com a narrativa existencialista, o ser humano tem sua existência (surge no mundo) antes de se defi nir e, dessa forma, ao projetar-se no mundo, desenvolve, no exercício de sua liberdade individual, seus fi ns. Essa liberdade se funda, com efeito, no total desamparo em que o ser humano se encontra, sem que possa instar recurso a nenhuma entidade metafísica que não sua própria subjetividade.

De tal sorte, podemos fundar as bases de nosso argumento nessa linha de pensamento, visto que a condição descrita é importante ferramenta para a construção do discurso existencial do sujeito transexual.(6) Discurso este que parte da contingência das defi nições de gênero, jocosamente fl agradas, como denuncia Judith Butler, em referência às drag queens: “Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência. Aliás, parte do prazer, da vertigem da performance, está no reconhecimento da contingência radial da relação entre sexo e gênero diante das confi gurações culturais de unidades causais que normalmente são supostas naturais e necessárias”. (Grifo da autora)(3)

Tal contingência revela a existência de uma condição cultural de gênero, que se encontra sujeita à historicidade, à geografi a, à estrutura social e outros fatores. Dessa forma, pode-se conceber que a tradicional forma binária de categorização de gênero representa uma normatização do existir, capturando-lhe a fl uidez.

Com base nesses fundamentos, é seguro afi rmar que este grupo de indivíduos transexuais se depara, no processo da sua construção identitária, com o constante ataque de uma espécie de legislação não-voluntária de sua identidade,(8) tal que representa grande óbice ao exercício de sua liberdade individual e ao seu reconhecimento enquanto corpo humano existente.

Tal legislação involuntária, sobre a qual não há acordo, advém do fato de sua existência representar um confl ito com a ordem vigente, cuja reforma transcende a capacidade individual(9) e, por conta disso, representa um problema de ordem estrutural, sistemática. Diante desse confl ito, no entanto, a opção por construir sua identidade enquanto mulher se mostra ainda mais desafi adora para as transexuais, visto que o reconhecimento desse status também carrega consigo, além da constante disputa pelo próprio corpo, espécies singulares das mazelas históricas às quais a mulher esteve longamente submetida.(10)

Femicídio e FeminicídioDiante deste quadro, é de grande relevância a inserção da

pauta transexual no debate acerca da qualifi cadora incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 13.104/2015, que prevê o feminicídio como circunstância qualifi cadora do crime de homicídio, por meio do acréscimo do inciso VI no § 2º no art. 121 do Código Penal, além de incluí-lo no rol dos crimes hediondos. Entretanto, para o prosseguimento de tal debate é de suma importância a distinção entre femicídio e feminicídio, distinção esta que ensejou a produção deste artigo, pois permeia a complexa relação da qualifi cadora com as transexuais.

Enquanto o femicídio se caracteriza pelo simples assassinato de uma mulher (“fêmea”), desatrelado do contexto político de gênero, o feminicídio, preconizado pela lei, categoriza o assassinato de uma mulher com lastro na estrutura patriarcal de organização social, ou como afi rmado pelo doutrinador Rogério Sanches Cunha: “(...) pressupõe violência baseada no gênero, agressões que tenham como motivação a opressão à mulher. É imprescindível que a conduta do agente esteja motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.”(11)

Segundo o entendimento da lei,(12) considera-se que há as referidas razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Enquanto a primeira hipótese já possui espaço no ordenamento brasileiro, por conta da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a segunda fi gura como o aspecto central e inovador da norma, tendo caráter subjetivo e, por conseguinte, dependendo da interpretação do juiz aplicador.

Dessa forma, a importantíssima distinção aqui realizada tem o intuito de acender o debate sobre a possibilidade da existência desta “condição de sexo feminino” em se tratando das transexuais, tendo em vista que, acordando com tal diferenciação, a lei visa abarcar não só o assassinato de “fêmeas”, mas de indivíduos localizados socialmente no “lugar” feminino. Quanto a esse debate, a jurisprudência brasileira recente pode acrescer a discussão e ajudar a iluminar alguns pontos a respeito da categorização das transexuais.

Ainda que esclarecida a premissa de que no Direito Penal, via de regra, não existe analogia in malam partem, acredita-se valoroso registrar como tem sido tratada a questão transexual por lei semelhante, a supracitada Lei Maria da Penha, e quais os seus desdobramentos jurisprudenciais. Nas palavras da juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, em decisão no Tribunal de Justiça de Goiás, por exemplo, vislumbra-se

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BOLETIM IBCCRIM - ISSN 1676-3661COORDENADOR-CHEFE: Fernando Gardinali Caetano Dias.COORDENADORES ADJUNTOS: Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi.EDITORES IBCCRIM: Adriano Galvão, Eduardo Carvalho, Taynara Lira e Willians Meneses. CONSELHO EDITORIAL: Acacio Miranda Filho, Amélia Emy Rebouças Imasaki, Anderson Bezerra Lopes, André Azevedo, André Felipe Pellegrino, Andre Ricardo Godoy, Antonio Baptista Gonçalves, Arthur Sodré Prado, Átila Machado, Beatriz Jubilut, Bruno Salles, Carlos Garcete, Carlos Viveiros, Christiany Pegorari, Clara Masiero, Daiana Ryu, Daiane Ayumi Kassada, Daniel Del Cid, Daniel Leonhardt, Daniel Nicory, Dayane Fanti, Décio Franco David, Edson Roberto Baptista de Oliveira, Emília M. Giuliani, Evandro Camilo Vieira, Fernanda Carolina de Araújo, Fernanda Vilares, Frederico Manso Brusamolin, Gabriel Huberman Tyles, Gabriela Gama, Guilherme Suguimori Santos, Henrique Buhl Richter, Hugo Leonardo, Hugo Leonardo Rodrigues Santos, Jacqueline Valles, Jamil Chaim Alves, João Anhê Andorfato, Jorge Nader, Jose Carlos Abissamra Filho, José Roberto Coêlho de Almeida Akutsu, Lévio Scattolini, Luan Nogués Moyano, Luana Oliveira, Luis Gustavo Sousa, Luiza Gervitz, Luiza Guedes Pirágine, Manoel Alves da Silva Junior, Marco Aurélio Florêncio Filho, Mariana Chies, Matheus Pupo, Milene

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a postura favorável ao enquadramento das transexuais, nos ditames da referida lei, que tem sido adotada nos tribunais: “Destarte, não posso [...] ignorar a forma pela qual a ofendida se apresenta perante a todas as demais pessoas, não restando dúvida com relação ao seu sexo social, ou seja, a identidade que a pessoa assume perante a sociedade. Somados todos esses fatores (a transexualidade da vítima, as características físicas femininas evidenciadas e seu comportamento social), conferir à ofendida tratamento jurídico que não o dispensado às mulheres (nos casos em que a distinção estiver autorizada por lei), transmuda-se no cometimento de um terrível preconceito e discriminação inadmissível, em afronta inequívoca aos princípios da igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual, da dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual [...]”.(13)

Partindo de análise da decisão, tem-se por evidente a grande relevância atribuída à identidade social da vítima por parte da juíza aplicadora, que arguiu a conexão intrínseca entre esse atributo e alguns princípios constitucionais norteadores do ordenamento, como a igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade sexual. Princípios estes que, nas palavras da magistrada, possibilitariam a adequação do sujeito transexual à dita condição feminina requerida pela lei. Esta avaliação encontra-se, pois, em harmonia com a fundamentação fi losófi ca apresentada anteriormente, na medida em que confere valor em si à construção identitária e de gênero do sujeito, desatrelando-a do seu sexo biológico. Preza-se pelo que o indivíduo decide tornar-se, pelo que constrói de si mesmo, ou seja, tudo que possui.

Tendo em vista que essa decisão representa, em grande parte, o posicionamento da jurisprudência brasileira sobre o tema,(14) é de grande valor para o debate sobre o feminicídio e sobre a “condição de sexo feminino” tal entendimento acerca da predominância da identidade social diante do sexo biológico, visto que este não refl ete a condição dos sujeitos dentro da estrutura social.

ConclusõesSendo assim, resta reiterar, a título de conclusão, que o ato de se

tornar mulher, seja no sentido empregado por Beauvoir, seja no sentido de construção de identidade no sujeito transexual, tem imanente a si o peso de superar a negação histórico-social da existência feminina e a relegação do reconhecimento feminino enquanto corpo social. Tornar-se mulher é um empreendimento complexo, pois implica contestar estruturas sociais fortemente enraizadas ao longo da história e disputar espaços de poder há muito estabelecidos.

Dessa forma, é importante frisar que a luta das transexuais pelo reconhecimento enquanto sujeitos perpassa, necessariamente, a discussão acerca do patriarcado e da condição feminina, pois este reconhecimento está material e existencialmente ligado a esses temas, não podendo ser diferente no jogo de linguagem do Direito, que é, por si,

um espaço de poder em constante disputa. Sendo assim, a relação das transexuais com a Lei 13.104/2015 tem como pedra de toque a distinção conceitual entre femicídio e feminicídio, assim como a investigação a respeito do que representa essa “condição de sexo feminino”.

Notas(1) Corrente que desenvolve o conceito de gênero enquanto constructo social,

investigando sobre a normatização de gênero a partir da vivência em sociedade. Aqui encontra-se representada na figura da filósofa Judith Butler e nos estudos de Miskolci e Pelúcio.

(2) SaRtRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes, 2012.(3) BEauVoIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,

1970.(4) Categoria empregada por Emmanuel Levinas, em Le temps et l’autre e utilizada

por Simone de Beauvoir em sua obra. (5) BEauVoIR, Simone de. Op. cit., 1970.(6) O recorte para o grupo das transexuais foi feito em adequação ao formato e

proposta do artigo, mas a teoria queer (de onde advém parte dos fundamentos aqui utilizados) abrange amplo espectro de identificação de gênero, como travestis, drag queens, transexuais etc.

(7) ButlER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 196.

(8) ButlER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.(9) MISKolcI, Richard; PElÚcIo, Larissa. Fora do sujeito e fora do lugar: reflexões

sobre performatividade a partir de uma etnografia entre travestis. Gênero, Niterói: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero, UFF, p. 255-267, 2006.

(10) BEauVoIR, Simone de. Op. cit., 1970.(11) cuNHa, Rogério Sanches. Lei do feminicídio: breves comentários. Disponível em

< http://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/172946388/lei-do-feminicidio-breves-comentarios >. Acesso em: 09 outubro 2016.

(12) BRaSIl, Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015.(13) BRaSIl. Tribunal de Justiça de Goiás. Despacho nos autos de nº 201103873908

– Goiás. Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães. Pesquisa de Jurisprudência, Despachos, 02 de junho de 2016. Disponível em < http://www.tjgo.jus.br/index.php/consulta-atosjudiciais >. Acesso em: 09 de outubro de 2016.

(14) tRIBuNal DE JuStIÇa Do acRE, Decisão inédita assegura medida protetiva de urgência a transexual vítima de violência doméstica. Disponível em: < http://www.tjac.jus.br/noticias/decisao-inedita-assegura-medida-protetiva-de-urgencia-a-transexual-vitima-de-violencia-domestica/ >. Acesso em: 10 de outubro de 2016.

David Campos CastroOrientando em projeto de iniciação científi ca (PROIC – UnB)

do prof. Dr. Alexandre Araújo Costa.Estudante do curso de Graduação em Direito da Universidade

de BrasíliaMembro do Centro de Pesquisa em Direito

Constitucional Comparado da UnB.

Page 20: EDITORIAL | Caderno de Doutrina Mais uma vez, a redução ... · Precisamos realmente nos socorrer à ... importante texto internacional sobre a ... coibir situações nas quais a

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Toda a renda obtida pela venda do livro será revertida para

o fortalecimento institucional do IBCCRIM.

O livro está disponível nas

lojas e no site da editora D’Plácido.

NO ANO EM QUE COMEMORA SEUS 25 ANOS, O IBCCRIM LANÇOU UMA PUBLICAÇÃO ESPECIAL,

COM ARTIGOS CIENTÍFICOS QUE REVISITAM TEXTOS DE DESTAQUE DA HISTÓRIA DA REVISTA BRASILEIRA DE

CIÊNCIAS CRIMINAIS - RBCCRIM

NÃO SE ESQUEÇA!

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VEM AÍ: FESTA DE 25 ANOS DO IBCCRIM

52anosI B

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Cinco lustros. Um quarto de século. Cinco quinquênios. Uma geração de juristas. Muitas vidas. Muitas perdidas. Muitas ganhas. Em um país onde,

em tempo de paz, se mata mais do que em muitas guerras, 25 anos significam muito mais do que, por exemplo, um europeu imaginaria. A

transformação da vida nesse período foi muito significativa.

Os vinte e cinco anos de IBCCRIM têm um significado marcante para os primeiros sócios. Tempos românticos aqueles de uma salinha alugada

na Rua Tabatinguera; de uma única funcionária a secretariar, pagar contas, cobrar e receber; de um computador cedido por alguém para confecção

dos primeiros boletos de pagamento; de mesa e cadeiras antigas (ninguém lembra de onde elas vieram) para um Instituto recém-fundado. A sede era tão apertada que, em dias de reunião, pedíamos à única funcionária

que fosse ao banco, pois sua cadeira era necessária para alguém utilizá-la. Quem imaginaria que o sonho dos fundadores seria cumprido?

O S A U T O R E S

Beatriz Vargas RamosDavid Marques

E. Raúl ZaffaroniFabio Roberto D’Avila

Geraldo PradoHelena Regina Lobo da Costa

Jacinto Nelson de Miranda CoutinhoJacqueline Sinhoretto

Liana de PaulaLuis Fernando Niño

Luís GrecoMarcos Zilli

Mariana Chies Santiago SantosMariângela Gama de Magalhães Gomes

Mauricio Stegemann DieterRaquel Lima Scalcon

Renato de Mello Jorge SilveiraSérgio Salomão Shecaira

1. TRATAMENTO PENAL DE DROGAS NO BRASIL: PERMANÊNCIA DO PROIBICIONISMO E VIOLÊNCIA DO SISTEMA DE CONTROLE

Beatriz Vargas Ramos

2. EL DERECHO PENAL ANTE LOS RIESGOS DEL TOTALITARISMO CORPORATIVO

E. Raúl Zaffaroni

3. CONSTITUIÇÃO E DIREITO PENAL. NOVOS E VELHOS PROBLEMAS À LUZ DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

Fabio Roberto D’AvilaRaquel Lima Scalcon

4. PROVAS ETICAMENTE INADMISSÍVEIS NO PROCESSO PENAL: EM MEMÓRIA DE ADAUTO SUANNES

Geraldo Prado

5. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA: UM PANORAMA SOBRE SUA APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Helena Regina Lobo da Costa

6. HASSEMER E OS “LÍMITES DEL ESTADO DE DERECHO PARA EL COMBATE CONTRA LA CRIMINALIDAD ORGANIZADA” (GLOSAS)

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

7. SEGURANÇA PÚBLICA E ESTADO DE DIREITO, 25 ANOS: DIÁLOGO PRAGMÁTICO COM WINFRIED HASSEMER

Jacqueline SinhorettoDavid Marques

8. ADOLESCENTES E CRIMINALIDADE NA CIDADE DE SÃO PAULO: VELHOS E NOVOS PROBLEMAS

Liana de PaulaMariana Chies Santiago Santos

9. GLOBALIZACIÓN Y DERECHO PENAL: EXPANSIONISMO PUNITIVO Y SELECTIVIDADE

Luis Fernando Niño

10. COMENTÁRIO AO ESTUDO DE SCHÜNEMANN “O DIREITO PENAL É A ULTIMA RATIO DA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS! – SOBRE OS LIMITES INVIOLÁVEIS DO DIREITO PENAL EM UM ESTADO DE DIREITO LIBERAL”

Luís Greco

11. NO DUCOR DUCO. AINDA SOBRE OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL

Marcos Zilli

12. A IMPORTÂNCIA DOS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DE CRIMES E COMINAÇÃO DE PENAS

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

13. A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA DO DIREITO PENAL DE ALESSANDRO BARATTA: CAMINHOS PARA UMA DOGMÁTICA PENAL CRÍTICA

Mauricio Stegemann Dieter

14. A RECORRENTE BUSCA DA DESPENALIZAÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: A ATUAL LEITURA SOBRE A POSSÍVEL TERCEIRA VIA ENTRE O CRIME E A INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA

Renato de Mello Jorge Silveiraeditora

ISBN 978-85-8425-xxx-x

Textos que revisitam

artigos de destaque nos

25 anos da RBCCRIM