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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 115, jul. 2003 EDITORIAL E ste número do Correio da APPOA vem para nos auxiliar na reflexão sobre o objeto da psicanálise, este “obscuro objeto do desejo”, como um dia filmou Luís Buñuel. Necessidade, falha, saudade, demanda, carência, fissura, vontade, amor, desejo, são nomes para os tantos buracos que constituem um sujeito, paradoxalmente, estranhamente, feito de faltas. Apesar de tudo, insistimos: O que é um objeto? Pelo menos em quatro vertentes podemos pensar, de saída: 1) coisas ou objetos “inanimados” – entre aspas, pois mesmo a estes nós atribuímos alma, vontade própria, por exemplo: “o café cansou de esperar”, “a água está querendo ferver”... 2) objetos de consumo – estes objetos do desejo moderno, dentre os quais incluímos o dinheiro, as drogas (lícitas e ilícitas) e, em alguns casos, até o corpo humano apresentam-se como paliativos para suprir a falta do sujeito humano. 3) objeto da ciência – o Cogito cartesiano é considerado o momento inaugu- ral do sujeito da ciência e podemos considerá-lo também como marco inicial do objeto científico. A partir do Cogito , o sujeito dividiu-se entre: penso, ou sou, o que levou Lacan a pensar na divisão entre o saber e a verdade. 4) objeto a – O objeto causa de desejo e seu resto. A coisa freudiana foi o ancestral do objeto a lacaniano. Uma pequena letra que possibilitou incluir a voz, o olhar e a escuta como objetos pulsionais. Por que, no reino animal, o ser humano é o único a constituir seu desejo, não em torno do objeto que ele mais quer, mas a partir da falta deste? Esta é uma pergunta que também acompanha a filosofia, para nos lembrarmos de Hegel e Espinoza. Para a psicanálise, o sujeito está – como foi dito por Lacan pela pri- meira vez em Função e campo da fala e da linguagem, Congresso de Roma, 1953 – em “exclusão interna a seu objeto”, apresentando a estrutura do pneu, ou toro, como superfície representante do sujeito. A questão de onde situar o objeto do desejo continuou, no Seminário A Identificação, 1961-62, com a topologia básica do sujeito, em que a estru- tura do toro reunia as três dimensões da falta apontadas por Lacan (deman- da, desejo, necessidade) e cujos cortes nesta superfície nos levavam à cinta

EDITORIAL E - APPOA · incluímos o dinheiro, as drogas (lícitas e ilícitas) e, em alguns casos, até o corpo humano apresentam-se como paliativos para suprir a falta do sujeito

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 115, jul. 2003

EDITORIAL

Este número do Correio da APPOA vem para nos auxiliar na reflexãosobre o objeto da psicanálise, este “obscuro objeto do desejo”, comoum dia filmou Luís Buñuel. Necessidade, falha, saudade, demanda,

carência, fissura, vontade, amor, desejo, são nomes para os tantos buracosque constituem um sujeito, paradoxalmente, estranhamente, feito de faltas.Apesar de tudo, insistimos: O que é um objeto?

Pelo menos em quatro vertentes podemos pensar, de saída:1) coisas ou objetos “inanimados” – entre aspas, pois mesmo a estes nósatribuímos alma, vontade própria, por exemplo: “o café cansou de esperar”,“a água está querendo ferver”...2) objetos de consumo – estes objetos do desejo moderno, dentre os quaisincluímos o dinheiro, as drogas (lícitas e ilícitas) e, em alguns casos, até ocorpo humano apresentam-se como paliativos para suprir a falta do sujeitohumano.3) objeto da ciência – o Cogito cartesiano é considerado o momento inaugu-ral do sujeito da ciência e podemos considerá-lo também como marco inicialdo objeto científico. A partir do Cogito, o sujeito dividiu-se entre: penso, ousou, o que levou Lacan a pensar na divisão entre o saber e a verdade.4) objeto a – O objeto causa de desejo e seu resto. A coisa freudiana foi oancestral do objeto a lacaniano. Uma pequena letra que possibilitou incluir avoz, o olhar e a escuta como objetos pulsionais.

Por que, no reino animal, o ser humano é o único a constituir seudesejo, não em torno do objeto que ele mais quer, mas a partir da faltadeste? Esta é uma pergunta que também acompanha a filosofia, para noslembrarmos de Hegel e Espinoza.

Para a psicanálise, o sujeito está – como foi dito por Lacan pela pri-meira vez em Função e campo da fala e da linguagem, Congresso de Roma,1953 – em “exclusão interna a seu objeto”, apresentando a estrutura dopneu, ou toro, como superfície representante do sujeito.

A questão de onde situar o objeto do desejo continuou, no SeminárioA Identificação, 1961-62, com a topologia básica do sujeito, em que a estru-tura do toro reunia as três dimensões da falta apontadas por Lacan (deman-da, desejo, necessidade) e cujos cortes nesta superfície nos levavam à cinta

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NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO V

Os trabalhos propostos nesta jornada possibilitam tornar públicas asmarcas deixadas pelo efeito da psicanálise em cada um de nós.

Ao compartilharmos nossas escolhas, confirmamos que o percursogerou produções singulares; assim, testemunhamos possibilidades de trans-missão.

Tomar a psicanálise como base para o nosso trabalho implica justa-mente o exercício constante da ex-posição. Propor-se a um trabalho e efetivá-lo, tornando-o público, é posicionar-se, pôr-se diante das diversidades.

A imagem de Kandinsky remete-nos às diferentes marcas deixadasem cada um de nós. Registros singulares que se articulam, tal como em umjogo de xadrez que também é evocado pela obra, com os registros da históriapessoal. Nossos textos, nesse sentido, inscrevem-se como tramas que pu-demos tecer a partir dessas marcas. Esses trabalhos, por sua vez, pensa-dos sob a ótica do ato criativo, deixarão marcas que vão para além do quepoderemos expor.

PROGRAMAÇÃO

SEXTA-FEIRA – 04 DE JULHO19h30min Abertura19h45minManuela Lanius – Entrando n’O QUARTO FECHADO: melancolia e gozoLissandra Baggio – Romeu, Julieta e o suicídio em cenaDaniela Frantz – O despertar e a formação de novos sentidos a partir das imagensfotográficas de Evgen BavcarMarina Cabeda Egger Moellwald – O vazio das horasDebatedora: Lúcia Serrano Pereira

SÁBADO – 05 DE JULHO9h30minInajara Erthal Amaral – Corpo: construção mítica do sujeitoAna Lúcia Mandelli de Marsillac – De qual corpo estamos falando?

de Mœbius e ao plano-projetivo ou cross-cap. Estas estruturas, que mistu-ram superfície e corte, fazem-nos compreender que não há uma distinção deorigem que justifique a divisão que estes dois termos conjugam. Posterior-mente, a garrafa de Klein – como um toro revirado, cujo interior se transformaem exterior – veio para tentar dar conta de uma superficie fechada, unilátera,que produzisse esse equívoco entre dentro e fora. Essas superfícies de du-pla-inscrição, em que o direito e o avesso estão em condições de se juntarpor todos os lados, logo, que não têm dentro e fora, só podem ser abordadaspela topologia e realizadas pelas formações do inconsciente.

Além da seção temática1, podemos destacar neste número a Jornadado Percurso, que acontece no início deste mês (cujos comentários estarãona próxima edição), e uma outra jornada, realizada no final do mês de maio:o encontro das instituições brasileiras que convocam a “Convergencia, movi-mento lacaniano para a psicanálise freudiana”. Evento que marcou mais umpasso nesta aposta de construção de um espaço de trabalho efetivo entrediversas instituições que reconhecem a transmissão de Lacan em seu retor-no a Freud e nas suas invenções fundamentais para a psicanálise, assimcomo a responsabilidade dos analistas e suas associações com o real daclínica e da vida institucional.

 

  

1 A Seção Temática foi organizada por Lígia Victora e Henriete Karam.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

JORNADAS DO CENTRO LYDIA CORIAT

O Centro Lydia Coriat convida para as três jornadas comemorativasde seus 25 anos

 05/07/2003 – XXI Jornada de Estudos“Escolarização de Crianças Psicóticas”Alfredo Nestor Jerusalinsky e mesa redondaParthenon Piaza Navona – Av. Independência, 831 – Porto Alegre – RS 

Verónica Pérez – Filhos da AIDS? A invenção de um pai para além da transmis-são verticalDebatedor: Edson Luiz André de Sousa

14h30minRosane Palacci Santos – Uma passagem adolescente na redeLuiz Fernando Ribeiro Moraes – Fragmentos da Psicanálise em um Projeto deEducação FísicaLeandro Dieter – Inscrição de sujeito na Escrita do próprio nomeDebatedora: Diana Corso

16h Intervalo

16h20min Gilson Cândido Oliveira Firpo – (In)versõesFabrício Acosta Gonçalves Rocha – Não existem sujeitos nas organizaçõesDebatedora: Rosane Ramalho

18h Coquetel de Confraternização

Data: 04 e 05 de Julho de 2003Local: Sede da APPOA – Rua Faria Santos, 258 – Porto Alegre – RSFone: 3333.2140Valor: R$15,00

Vagas Limitadas

23/08/2003 – XXII Jornada de Estudos“Educação Inclusiva: O papel do professor na diversidade dos alunos”Stella Mari Caniza PáezAnfiteatro Romildo Bolzan – Tribunal de Contas do EstadoRua Sete de Setembro, 338 – Porto Alegre – RS 23/08/2003 – XXIII Jornada de Estudos“Clínica Interdisciplinar: Estruturar, instrumentalizar, educar”Equipe do Centro Lydia CoriatParthenon Piaza Navona – Av. Independência, 831– Porto Alegre – RS

 Infomações e Inscrições:Centro Lydia CoriatRua André Puente, 415 – Porto Alegre – RSFones: (51) 3311.0091 ou 3311.2243E-mail: [email protected]

CICLO: CONVERSAS DEPOIS DO CINEMA

Iniciativa conjunta da APPOA e da coordenação de extensão cultural,da Pró-Reitoria de Extensão – UFRGS, este ciclo propõe uma discussãosistemática sobre as transformações da cultura e da subjetividade de nossotempo, a partir de filmes clássicos ou realizados recentemente.Primeiro Filme: AS HORASDebatedores:Diana Corso – PsicanalistaLuis Augusto Fischer – Escritor e professor de LetrasMaria Ângela Brasil – PsicanalistaData: 11/07/03 – Sexta-feiraHorário: 20hLocal: Cinema Universitário – Sala Redenção

OBS.: O filme estará em cartaz durante toda semana e no dia 11/07 a sessãoinicia as 18h.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

de um tratamento que não se proponha padrão: uma análise que se prezedeveria estar alerta a qualquer efeito que sugerisse uma padronização dotratamento. Assim, um psicanalista procura, eticamente, direcionar o trata-mento e não o analisante. Este, na maioria das vezes, busca/encontra (comsorte) uma análise porque não consegue orientar-se neste mundo inundadode conselhos, orientações e auto-ajuda para o consumo. Como o real que ointerroga está fora do catálogo dos bens de consumo, uma análise pode seruma travessia destas conhecidas repetições necessárias e insuficientes paraconsumir o impossível.

Os psicanalistas que apostaram em Convergencia se dispuseram aestas e outras questões. Ultrapassar o narcisismo das pequenas diferençasé um exercício de tolerância (e não de complacência) com o diferente. Freudjá havia nos alertado que a relação com o semelhante é uma das nossasprincipais fontes de mal-estar. Enfrentar este mal-estar impossível de sercurado requer um esforço de confiança na persistência de um trabalho queinsiste em dar consequências aos efeitos do discurso do psicanalista. Afi-nal, o que mais nos interessa é produzir um saber a respeito de como cadaum, em cada associação, está lidando com as vicissitudes da formação,transferências de trabalho, particularidades das culturas regionais e suasimplicações na análise. Enfim, se nossa responsabilidade consegue susten-tar o desnudamento das modalidades de gozo que sustentam a relação como Outro. Em maio passado, na Porto Alegre do outonal poente do Guaíba,integrantes de oito instituições brasileiras (das cidades de Florianópolis (SC);Rio de Janeiro (RJ); Cuiabá (MT); Varginha (MG); Brasília (DF); Salvador (BA)e Recife (PE), membros da APPOA, psicanalistas de diversas associaçõese orientações da cidade fizeram este esforço de abertura. Como toda trajetó-ria, ela terá que ser atualizada com o desejo e as singularidades do engaja-mento de cada um.

Robson de Freitas Pereira

PS: a APPOA, desde o final do ano passado, constituiu um cartel aberto paratrabalhar os textos de Lacan acima citados. O trabalho continuará este ano,rumando em direção ao Congresso Internacional de Convergencia que aconte-cerá em maio de 2004, no Rio de Janeiro.

CONVERGENCIA EM PORTO ALEGRECONSIDERAÇÕES PÓS-JORNADAS

Foram dias de intenso trabalho, iniciados na quinta-feira (dia 29/05) ànoite, culminando com a jornada de sexta à noite e sábado “A direção dotratamento analítico”.

Não vamos detalhar os diversos temas e discussões. Somente relembrarque “Convergencia, movimento lacaniano para a psicanálise freudiana” tevesua ata fundacional assinada em Barcelona, 1998, por aproximadamente 50instituições psicanalíticas. Desde então, as diversas associações reunidasnos diferentes países têm trabalhado para que a proposta de Convergenciafrutifique. No Brasil, atualmente, oito instituições sustentam a iniciativa. Es-tas associações, reunidas em uma Comissão Regional de Enlace, entreoutras atividades, promovem uma reunião anual de trabalho. Este ano, oencontro brasileiro de Convergencia aconteceu em Porto Alegre.

Pode parecer corriqueiro fazer uma jornada anual de trabalho. Afinal,os encontros de psicanalistas são cada vez mais numerosos e tematicamentediversificados. Mas quem tem ou teve alguma vivência e responsabilidadeinstitucional sabe o quanto custa (e não estamos nos referindo somente aofinanceiro) sustentar este acontecimento.

Ainda mais, se levarmos em conta que Convergencia propõe uma for-ma de trabalho em que os temas de cada reunião sejam efeito do trabalhoinstitucional interno, articulado com os impasses que cada analista enfrentaem sua prática cotidiana. Assim, tendo como textos de referência “As vari-antes do tratamento padrão” e “A direção do tratamento e os princípios deseu poder”, ambos de Jacques Lacan procuramos articular as questões daclínica e os questionamentos provocados pela responsabilidade com a trans-missão da psicanálise e, consequentemente, com a formação do psicanalista.

Tópicos nada simples, se levarmos em consideração apenas duas outrês “provocações” lacanianas: a primeira coloca as instituições em causa,ao afirmar que as únicas formações que valem são as formações do incons-ciente. Concomitante a isto, “uma análise terminada sempre forma um ana-lista”, o que deixa sem sentido qualquer análise que se proponha como didá-tica antecipadamente. Da mesma forma, ficam questionadas as “variantes”

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NOTÍCIAS

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Las Meninas,Velasquez

ENCONTRO COM MARIE-JOSÉ LÈRÉS

No dia 26 de maio, uma segunda à noite, estivemos reunidos sob otema “Psicanálise e Instituição”, conversando com Colegas de Bonneuil.

Marie-José-Lérès, atual diretora da Escola Experimental fundada porMaud Mannoni, iniciou convocando-nos a que colocássemos nossas ques-tões, para que a partir delas pudéssemos trabalhar num clima de diálogo.

Essa postura foi muito coerente com uma questão chave da discus-são – a da instituição estourada/explodida. Em poucas palavras: a idéia deuma instituição que permaneça experimental após tantos anos de trabalho émais do que um dispositivo de renovação da experiência analítica (o que emsi já é muito), tendo-se tornado um conceito psicanalítico sobre o qual searticula o trabalho em Bonneuil. Assim, há princípios, mais psicanalíticos doque o do funcionamento, que fazem andar o dia-a-dia da escola, a qual estásempre a colocar-se em questão; sem fechamentos, trata-se de abrir.

Uma segunda parte da discussão disse respeito a se o que se faz emBonneuil é clínica. Os argumentos foram vários no sentido de que se há umaposição analítica na instituição é porque há intervenções em ato, e, portanto,efeitos de cura, e, portanto, psicanálise... por outro lado, há um espaço denão interpretação no sentido estrito do conceito, há tratamentos (somente)levados a cabo fora da instituição e um operar que, embora se sustente naanálises das pessoas que ali trabalham, se caracteriza por um “hands on”cotidiano, de cuidado propriamente dito das crianças, com interesse e colo-cação subjetiva a todos os momentos. Enfim, uma daquelas discussões quegostamos de levar adiante para pensar “mas isto ainda é psicanálise?” (éclaro que sim!)

SEÇÃO TEMÁTICA

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O ELEMENTO INFINITO NO NÓ BORROMEANO

Jean-Jacques Tyszler1Tradução de Maria Rosane Pereira-Pinto

Pode parecer paradoxal falar de infinito atual em psicanálise, enquantoos instrumentos topológicos trabalhados por Lacan dão conta dosconstrangimentos formais e dos limites da estrutura.

A reta infinita tomada de empréstimo em Desargues, capital na pers-pectiva do fantasma, talvez não seja o melhor suporte para uma clínica sin-gular que se verifica tanto em Schreber quanto em Cotard ou no transe-xualismo e associando o incessante ao contínuo e ao envelope2.

O infinito propriamente dito, no sentido que lhe é dado por Cantor, éconvocado pela imortalidade e pela enormidade do delírio das negações oconvocam, em uma topologia da asfera, ou da esfera, indicando, qualquerque seja a opção, que é a propriedade do buraco que é aqui colocada emdificuldade; o real do corpo desespecificando o orificial solicita um corte imi-nente e infinitamente distanciado.

Se a reta infinita de Desargues retorna a partir de RSI no nó borromeanoé mais como uma parte aderente ao traço unário.

A abertura dos círculos do nó vem mostrar a efetiva ligação entre osimbólico e o real; se não é o traço ou o falo que “verifica o buraco”, então, oobjeto vem superpor, colar, as três consistências com esta aparente surpre-sa que Desargues antecipa com seus trabalhos sobre os cônicos: voz, olharou pele, o objeto se torna, de certo modo, o mesmo, o envelope de todoobjeto.

A atualidade do infinito na clínica estaria, portanto, mais do lado datransformação de um objeto que se tornou o substituto de uma extremidade.

1 Psicanalista, Membro da Associação Lacaniana Internacional.2 Ver também artigo do mesmo autor, publicado no “Boletim da Association FreudienneInternationale”, Paris, França, set. 1998.

TYSZLER, J-J. O elemento infinito...

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SEÇÃO TEMÁTICA

Trata-se, bem entendido, não de uma percepção, mas de uma cons-trução: o ponto de interseção pode estar a uma distância finita ou a umadistância infinita (conforme artigo de Jean-Jacques Szczeciniarz, no volume“Infini des mathématiques, Infini des philosophes”, Belin Editor). Desarguesestenderá sua hipótese e passará do ponto no infinito à reta no infinito.

Além da classificação dos cônicos (rascunho do projeto de 1639) que,naquela ocasião, somente interessava ao jovem Pascal (aquele que Leibnizdescreve como um gênio isolado, ao mesmo tempo precursor e arcaico),justamente, este interesse de Pascal mostrará que “é possivel tratar a retacomo um círculo” (o que era absolutamente impensável na metafísica deAristóteles, na qual a curva é distinta da reta). É isso o que lembra Lacan em“RSI” e no “Sinthoma”: “se eu falei de retas infinitas, é porque a reta infinita éum equivalente do circulo, é um equivalente do qual um ponto está ao infini-to”3. Com a condição, acrescenta Lacan, de que elas sejam concêntricas…que, entre elas, elas não façam cadeias…

“As meninas” captam, ou melhor, envolvem o espectador, pois a su-perfície aqui construída é um espaço onde planos infinitos se juntam acima eatrás de nós.

Estamos na projeção – em um espaço euclidiano de duas dimen-sões, de um objeto que não pertence a este espaço. Como vocês sabem,esta superfície se chama plano projetivo ou ainda cross-cap; Lacan a chamade asfera no “Etourdit”.

No seminário “A lógica do fantasma”, Lacan serve-se deste objetotopológico para “explorar os efeitos de um corte” simples e, em seguida, deum corte duplo.

Lembremos que a construção do cross-cap, a partir de um buracosobre a esfera (continuamos seguindo o itinerário de Desargues), torna ne-cessário o recorte das superfícies ou ponto de auto-atravessamento. É nolugar da linha de interpenetração das paredes anteriores e posteriores do

3 Seminário “RSI”, lição de 09/03/76.

Assim, a desimbolização, tão freqüentemente evocada, não aparecemais tanto como perda do símbolo, mas, sim, como um privilégio que está deacordo com as metamorfoses do objeto, tais como as adições o realizam.

Se este é o caso, é ainda justamente o corte que deveria guiar oclínico em sua prática, mais do que as posições sintomáticas que ele en-dossa regularmente. Mas qual corte?

As referências a Desargues e a Cantor são numerosas nos semináriosde Lacan, e o interesse pela noção de infinito não é apenas homenagem pres-tada àqueles que mexeram com nossa concepção do espaço e do número.

No momento em que isso que chamamos de matemática modernaparece denegar a importância dos processos que implicam o infinito, a clíni-ca psicanalítica pode nomear configurações em que o termo de infinito atualpropriamente dito encontra certa validação.

Em todo caso, esta é a questão que nos interessa colocar à provaaqui.

DE DESARGUES AO ESTOFO DO FANTASMANo seminário “O objeto da psicanálise”, Lacan comenta longamente o

quadro “As meninas” de Velasquez, e o apoio que ele encontra na perspec-tiva e na geometria projetiva lhe permite pensar o olhar como sendo o resul-tado de uma construção e não como uma simples fisiologia, quer dizer, comofundamentalmente distinto da visão.

O trabalho da perspectiva joga com a colocação em relação de umcomprimento infinito com um comprimento finito.

Desargues (1591-1661) tem em vista a posição de um ponto ao infinitono espaço geométrico, abrindo, assim, a concepção clássica da esfera anti-ga, grega, encerrando o cosmos.

Primeiro corte de importância, uma vez que permite o despregamentode representações imaginárias de um inconsciente dominado pelas catego-rias do dentro e do fora.

O ponto infinito não é materializado, ele não pode ser visualmenteapreendido, mas é definido como uma interseção de retas, assimilando re-tas concorrentes ou secantes e retas paralelas.

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SEÇÃO TEMÁTICA

É preciso dar toda sua importância, em Schreber, às expressões,indicando a marcha de uma globalização, de um envelopamento de toda aextensão do corpo em um processo no qual o contínuo – o conceito decontínuo – chega a dominar a textura.

CANTOR E O CONTÍNUO NA CLÍNICAMantemos presente a idéia de interrogar o laço habitual que o corpo

mantém com o simbólico, o que fura este corpo como real, quer dizer, agen-cia uma certa funcionalidade, uma certa vectorisação ou orientação a seusorificios5.

Em seus “Fundamentos de uma teoria geral dos conjuntos”, publica-do em 1883, Cantor ultrapassa uma etapa completamente singular ao distin-guir “infinito impropriamente dito” e “infinito propriamente dito” ou “infinitoperfeitamente determinado”, e , ao mesmo tempo, nomear números chama-dos de “transfinitos”.

Não me deterei na demonstração de Cantor, simplesmente lembrareiaqui alguns pontos interessantes:

1 – Primeiramente, a questão do número, o pensamento do infinitonão é, para Cantor, unicamente abordável pela reta sem limite ou pelas séri-es infinitas convergentes; ele quer fixar esta noção por números.

2 – Cantor ataca diretamente a rejeição que faz Aristóteles da atuali-dade do infinito, do infinito em ato.

3 – Cantor nomeia outros que, antes dele (de quantos pontos se com-põe uma linha?), se interessaram enormemente pela noção de contínuo,pela estrutura do contínuo, e é nesse esforço que ele descobre númeroscom propriedades novas.

4 – Os princípios de construção desses novos números ou princípiosde engendramento são correlatos a um princípio de parada ou de limitação.

5 Cf. os trabalhos sobre a desespecificação da pulsão, apresentados em Grenoble, verrevista “Le Trimestre psychanalytique”, n. ¾, 1997.

cross-cap que Lacan introduz um primeiro corte, reduzindo a superfície emum disco com um direito e um avesso, o que ele chama de o objeto.

Acreditamos que seja útil indicar aqui o peso enigmático do célebrefantasma de Schreber:

“um dia, enquanto eu estava ainda na cama (eu não sei mais seeu ainda estava meio adormecido ou se eu já estava acordado),tive uma sensação tal que, quando me senti completamentedesperto e que pensei novamente nela, me perturbou da manei-ra mais estranha. Era a idéia de que, de qualquer modo, deveser algo singularmente belo ser uma mulher sofrendo oacasalamento”.

É no capítulo IV de suas memórias que Schreber evoca este enuncia-do, o qual poderia ser escutado como uma escritura do fantasma, se, nesteponto, jogado ao infinito, não se abrisse todo o processo de metamorfoseque conhecemos e que ele mesmo chama de “o milagre de eviração”4.

O devaneio de Schreber não é o efeito de um simples corte, indenti-ficando-o como objeto para um outro. Instala-se toda uma série de transfor-mações contínuas, referentes ao registro da voz pela alucinação e peladissociação dos elementos componentes da linguagem, ao registro da ima-gem e do olhar no processo de feminização, mas, também, (cuja importân-cia eu tentei pontuar no pequeno artigo publicado pelo Boletim da AssociationFreudienne), “designando a pele como suporte desta unificação” da superfí-cie em um gozo ininterrupto que Schreber descreve com muita precisãocomo estruturalmente distinto do gozo fálico.

Temos aí o Real clínico daquilo que Lacan, no esquema R, apresentacomo infinidade móvel de linhas hiperbólicas. “Indício do que o corte produzno lugar em que fracassa.”

Parece-me que o instrumento topológico tem para Lacan este ganchoreferencial com o próprio estofo da clínica, do Real clínico.

4 Referência a Virago.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Novamente, o problema de um corte que não é um corte, mas, sim,uma expulsão, uma ejecção sem limite.

A topologia da asfera, que Marcel Czermak propõe para dar conta dasíndrome de Cotard, mostra o objeto não podendo se desprender por corte.

Marc Darmon propõe uma topologia da esfera sobre a qual a superfí-cie inteira tende a se colabar ou a englobar, completamente, a superfície toda.

Os enunciados paradoxais do sujeito com síndrome de Cotard recla-mam a morte, ao mesmo tempo em que, neles, estes sujeitos se declaramimortais, e a relação complexa entre a síndrome de Cotard e a paranóia, jáassinalada por Séglas, faz com que hesitemos em abandonar a imaginárialinha de autotravessia e o recorte das superfícies, mas, tanto numa opçãocomo na outra (asfera ou esfera), não é mais a linha reta que indica para nóso melhor suporte de uma clínica na qual o infinito toma seu lugar.

Lacan, em “O sinthoma”, faz esta observação: “Não é porque o finitotem limites que uma reta infinita, isto é, em suma, fazendo círculo, bastepara metaforizar o infinito”.

Lacan, em “O momento de concluir”, insistirá sobre a necessidade desuperar o fantasma da linha reta e de conceder sua importância à tecitura,os tecidos tóricos dos quais ele se serve para experimentar os esburaca-mentos e os retornos. Cantor com os números dá um certo tecido à noçãode infinito.

No último capítulo do seminário “RSI”, Lacan fala de Desargues e deRiemann, lamentando que o ponto ao infinito não seja tratado de maneirasatisfatória.

Charles Melman, em seu seminário sobre a neurose obsessiva, dáuma tradução precisa e muito original do laço privilegiado do sujeito com oinfinito quando justamente trabalhado pelo número. Ele evoca, na lição 10, ainsistência na observação do Homem dos ratos do 1 e do ½, e a maneiracomo o obsessivo se esforça para “elevar o ½ à dignidade do 1”.

Charles Melman arrisca-se, em seguida, a propor uma escrituraborromeana, na qual o círculo do simbólico, unido ao do imaginário, apresen-ta-se aberto e forma uma reta ao infinito. É um nó com apenas duas consis-tências, com dois círculos, no qual o real só seria apreensível pelas malhas

É este constrangimento na teoria, este limite, que permite propor os núme-ros infinitos na ordem certa, pois o infinito tem sua ordem.

“revela-se um novo princípio, que toma lugar ao lado dos doisoutros e que eu chamo de princípio de parada ou de limitação:ele tem como efeito [...] que a segunda classe de números [...]não adquire apenas uma potência superior àquela da classe 1,mas precisamente a potência imediatamente superior.”

A atualidade do infinito em clínica, o engendramento de novos espa-ços, de novas configurações, mas em uma certa ordem, fazem-me pensarna síndrome de Cottard ou no delírio das negações, que havíamos largamen-te retomado em 1992.

Neste quadro particular, a questão do infinito encontra sua atualidadeno delírio de imortalidade e no delírio de enormidade.

As idéias de imortalidade e de enormidade vêm apenas como últimoresultado do remanejamento delirante, ou, antes, da falta deste, no momen-to em que o imaginário não consegue mais assegurar nem distância, (sobreo eixo a–a’), nem endereço.

A imortalidade indica que, porque ele não tem corpo, não tem outros,nem nomes: o sujeito com síndrome de Cottard está também fora do tempo.

A infinitude do tempo dá, classicamente, seqüência à infinitude noespaço6.

Aquele que denega pelo desenvolvimento de seu corpo atinge o uni-verso inteiro; de nada, ele se torna o envelope do próprio mundo. Como lem-bra Jorge Cacho:

“Outras vezes, trata-se destas matérias mesmas que, no lugarmicro-maníaco, o doente retinha, não podendo mais expulsá-las [...] os objetos que então se tornaram enormes são, comona forma hipocondríaca do delírio das negações, objetos corpo-rais [...] eles são projetados sobre o mundo exterior com o qualeles se fundem”.

6 Jorge Cacho, “Le delire des négations”, Edições da Association Freudienne Internationale,1993.

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buraco” (buraco situado entre dois círculos dobrados em meia orelha), permi-tindo, como em Joyce, uma práxis do sinthoma.

Nós proporemos uma outra pista para trabalhar com a defecção destetraço unário, suporte princeps da identificação.

O traço unário pode se equivaler à reta infinita porque ele serve devértebra para a superfície, porque ele dá a esta última os esburacamentos eas orientações.

É por este viés que a consistência do nó resta igualmente submetidaao Nome do Pai, mas não como quarto círculo.

Existe uma grande ligação entre a possibilidade do um (aquele dacontagem e não aquele da totalidade) e, digamos, a variedade de buracosque o nó borromeano propõe.

Desargues antecipa sobre os efeitos da foraclusão do Nome doPai quando mostra, em seus trabalhos sobre os cônicos, como ver obje-tos distintos como variação do mesmo fenômeno. A ponta mono-orificialda psicose é o indício desta desespecificação da pulsão e de seu objeto.Mas o declínio do Nome do Pai, do qual freqüentemente falamos, pa-rece rivalizar com outras maneiras de contornar a efetividade do enlaça-mento.

A promoção de um objeto, infinitamente substituível, como nas toxi-comanias permite justapor, colar, as três consistências do nó, cuja proprie-dade borromeana não é, então, mais do que um trompe l´oeil.

Se a pele e uma oralidade desespecificada são igualmente convocadasnas toxicomanias, é porque ali se inventam buracos inusitados.

A atualidade do infinito seria, desta forma, totalmente detectável dolado da transformação contínua de um objeto que se tornou substituto detraço e, de certo modo, sub-produto da degradação do pai.

O declínio do Nome do Pai toca no modo de rechaçar os limites dogozo, privilegiando o engendramento das metamorfoses do objeto, que sepode dizer parcial, mas que se tornou irreconhecível, pois sua borda pulsionalestá despregada de sua representação freudiana: o corte cirúrgico operadono transexualismo instala uma montagem sem precedente. Não é, absolu-tamente, mais o laço que o corpo mantém com o simbólico o que permite

deste simbólico, no infinito – “não se suportaria apenas de valer como infinitono registro do simbólico”. Na última lição de seu seminário, Charles Melmanindica que o inconsciente pode ser estruturado pelos números reais e quecom o 1 e o ½ nós temos o início de uma seqüência convergente ao infinito(1+ ½ + ¼ + ... jamais chegando a 2).

Existe sempre lugar, neste tipo de subjetividade, para uma infinidadede números entre dois números naturais. Estamos próximos das elabora-ções de Cantor.

Creio que o que os matemáticos chamam de “análise não-standard”introduz a concepção de um número compreendido como um halo de núme-ros, espécie de conglomerado que, de halo em halo, tem as característicasdo contínuo. Aqui, mais uma vez, encontramos a inspiração cantoriana.

O TRAÇO UNÁRIO E A RETA INFINITA NO NÓ BORROMEANOEm “RSI”, Lacan procede à abertura do círculo em uma reta infinita

para poder representar a ex-sistência.Ele indica, também, que com duas retas infinitas nós podemos man-

ter a propriedade do nó borromeano, com a condição de que o ponto infinitoseja tal que as duas retas não façam cadeia. Um ano mais tarde, em “Osinthoma”, ele explica que, por causa do nó borromeano, ele deu um outrosuporte ao traço unário, a reta infinita que ele caracteriza por sua equivalênciaao círculo.

A reta infinita apresenta, assim, interesse em participar da construçãode superfícies, onde é o buraco e não mais a extensão que comanda o espaço.

Por outro lado, a possível abertura de um círculo ao infinito é a propri-edade daquilo que dá sua garantia simbólica à identidade, o traço unário.

O Real do nó não é um dos círculos, é a maneira de apresentá-los naforma de conjunto. A partir do momento em que o nó é borromeano, é otraço, também enquanto encarnação do significante fálico, que vem verificar,como diz Lacan no “Sinthoma”, que os esburacamentos e os cortes do nósão verdadeiros.

O infinito, se ele faz círculo, não é, aqui, apenas uma eterna revolu-ção. No seminário, Lacan insiste sobretudo quanto às propriedades do “falso

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LIÇÃO XXIV(OU: O QUE FALTOU NO OBJETO DA PSICANÁLISE)

Ligia Gomes Víctora

Chegamos ao final de mais um ano de trabalho1, e parece que ficoufaltando juntar as pontas desse seminário... – Será que foi o objetoque escapou mais uma vez? Pois a sensação após terminar de ler

“O objeto da psicanálise”2 é de um seminário inacabado! Ora são palavrasque faltam no corpo do texto, ora são falas de participantes que são substi-tuídas por reticências, ou são esquemas que não aparecem, e, para comple-tar, o bate-boca final de Lacan com Conrad Stein, o que parece que atrapa-lhou Lacan, fazendo com que este perdesse o fio da meada... E tanto ficouem aberto, que o último a falar não foi Lacan, foi Stein – isso é incrível! Elenão baixou a crista até o final, e isso parece ter irritado muito Lacan.

Porém, a última lição do “Objeto da psicanálise” (lição número XXIII,de 22/06/66) trouxe esclarecimentos importantes sobre termos de Freud esuas traduções para o francês, como Deckerinnerungen/souvenirs-écrans(lembranças encobridoras – lembranças-telas?), Entfremdung/aliénation/dépaysement/déréalisation (alienação, expatriação – desrealização?),Überarbeitung/re-élaboration/re-travail/fantasme (re-elaboração, re-trabalho– fantasia?) e outros.

Valeu pelo debate de Lacan com alguns analistas presentes, comoMelman, Leclaire, Valabrega, Castoriadis, A. Green, C. Stein. Foi uma dis-cussão muito forte, em que Lacan aproveitou para fazer críticas, pesadas,voando farpas para todos os lados. Valeu também para sentir-se o clima daépoca.

1 Relato de parte do Seminário de Ligia Víctora, dia 22 de novembro de 2002, na AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre.2 LACAN, Jacques. “L’objet de la psychanalyse”, Seminário 1065/66. Edição interna daAssociação Freudiana Internacional. Paris, 1999.

que este corpo seja esburacado como real, é o corpo que força o simbólicoa se dobrar a um imaginário todo-poderoso.

Se tudo isso tem algum sentido, então, são justamente as questõesdos cortes e dos esburacamentos que se encontram interrogadas por aqueleque pratica a clínica, mais do que as posições sintomáticas que ele endossaregularmente.

Em “O momento de concluir”, Lacan se interessava pelos diferentestipos de cortes, aqueles que dissolviam o nó, aqueles que não liberavam otoro a três envolopado por um quarto toro revirado.

Hipnotizados pelo quadro, nós não percebemos que o objeto que ten-tamos detalhar se transformou, como para Cotard, no próprio envelope. É otecido das coisas que se torna para nós infinitamente distante.

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D. Gick – E em nenhum destes lugares, porque ele escapa, como oobjeto que está sempre em outro lugar.

L. Víctora – Concordo com todas essas hipóteses. O analista mudade lugar, desde o ponto de vista do paciente, assim como o objeto a. Na“lembrança-tela”3 de Freud (FREUD, 1899, “Lembranças encobridoras”), oobjeto vai deslizando, primeiro são as flores amarelas, depois, quando amenina consegue o pão, os meninos largam as flores e querem o pão. Flores- amarelo - preto - pão - mulher - grande - faca - corta - rasga - dor... O tecidoque Freud faz com as palavras, em alemão, mostra bem como é pelas le-tras, isto é, pelos significantes, que as lembranças tecem a tela para enco-brir/projetar os sentimentos mais prementes, e mais primitivos, do sujeito.Lacan se/nos questiona: – Por que será que as ditas lembranças“encobridoras” sempre se referem a temas “fortes” como morte, nascimento,dor, sexo? Primordialmente, fome e amor, dizia Freud, aludindo ao verso deSchiller (“Die Weltweisen”). Lembranças sobre a fome e o amor, duas verten-tes do desejo fundador do sujeito, são oferecidas ao analista porque o analis-ta é, no quadro em que o paciente pinta a sua história ou seu romancefamiliar, – o analista, nesta situação, é, do ponto de vista do sujeito, o Outro,que quer escutar, que quer olhar. E essas lembranças só podem ser decifra-das através de sua análise.

Mesmo assim, como disse Freud (“Lembranças Encobridoras”) – pa-rece-me que alguma coisa ainda não está muito certa nessa cena... Por quemotivos algumas memórias são privilegiadas, escolhidas, pode-se dizer, paraserem contadas ao analista? – Fantasias despudoradas – para usar a ex-

3 Uma questão que se apresentou aqui para os que participaram do Grupo de Tradução doSeminário “O objeto da psicanálise”: o título em português – Lembranças encobridoras –não contempla todos os sentidos de tela (Deck). Já os títulos em francês – souvenirs écrans– e em inglês – screen memories – contêm esta outra função, que não é apenas de encobrir,mas também de tela de cinema, onde se pode projetar uma cena, projeção também nosentido freudiano do termo. A solução que Otávio Winck Nunes encontrou foi a de conser-var o “Lembranças encobridoras” entre aspas, quando se referir ao título da obra de Freud,e lembrança-tela ou lembrança encobridora , dependendo da situação em que a expres-são está sendo empregada no corpo do texto.

O que eu proporia a vocês hoje, seria uma segunda volta sobre algu-mas dessas questões.

1LAS MENINAS

Em primeiro lugar, retomando uma das propostas de Lacan nesseseminário, de fazer uma analogia entre o quadro Las meninas de Velásqueze a estrutura do fantasma: com pensar as posições do sujeito e do objeto noquadro? Se o quadro representa, como sugere Lacan, uma análise – ondeestaria posicionado o analista no quadro? Vamos examinar mais uma vez oquadro. Palpites?

Beatriz Kauri dos Reis – Pensei que poderia estar no espelho quereflete a imagem do rei e da rainha: é o lugar do grande-Outro, e o lugar emque os espectadores do quadro se colocam. Pode se pensar que é o lugardo analista no Grafo.

Anna Irma Callegari – Quando eu vi este quadro eu era estudante deartes, então não olhei com olhos de psicanalista. Me chamou atenção oespelho colocado ao lado, do lado direito. O único que não se reflete noespelho é o “visitante” (Nieto Velásquez). Será que o analista não poderiaestar olhando deste lugar?

Denise Gick – Ou, quem sabe, na luz que ilumina os personagens? Aluz vem de fora do quadro, mas está lá dentro também.

Ligia Víctora – Já temos as seguintes hipóteses: no espelho centralao fundo; no espelho lateral; na luz que ilumina o quadro. Outros palpites?Quem sabe na tela virada? Ninguém sabe o que está sendo pintado ali. Ouno cavalete – no suporte da tela? Já que ele é quem dá o suporte para opaciente pintar seu quadro. Ou no lugar do cachorro que dorme? Ele é oúnico que não olha... (já que é para viajar!)

Gilson Firpo – Talvez no lugar do pintor Velásquez?D. Gick – Pode ser, porque o pintor olha para fora, olha para nós que

olhamos o quadro, neste sentido ele nos puxa para dentro...B. Reis – Mas quem sabe ele está em todos estes lugares, depen-

dendo de onde o paciente o coloca?

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Lacan deixou pendente em torno da função do jogo, quando tratou da Apostade Pascal. Se o objeto a é o que está em jogo entre sujeito e Outro (A) (“Oobjeto da psicanálise”, lição de 01/06/66) – $ e (A) não poderiam coexistir, anão ser marcados pela barra: divididos pela própria existência do objeto a.Este é o enigma do sujeito humano: o esquartejamento do seu desejo, sem-pre em busca da falta – ao contrário do que pensa o senso comum – dadesrealização de seu desejo.

3O RETORNO A ÉDIPO

A partir da lição XX desse Seminário (01/06/62), parece que Lacantentava retomar o fio do seminário, abordando o objeto a pelo viés do Édipo.Era, segundo ele, a “segunda volta” do seu retorno a Freud. Era também umretorno a Lacan, como ele mesmo anunciara – era o início da segunda voltana linhagem dos Seminários, depois do corte que ocorrera com o interrom-pido Nome do pai. Nos dois casos há um retorno, mas não uma volta pelomesmo caminho: este “redobramento”, para usar um termo ao estilo Lacan,devia ter uma estrutura mœbiana. Tratava-se de um retorno à questão doÉdipo freudiano, mas com uma abordagem bem diferente das abordagensde seminários anteriores.

Somente para recordar algumas das diferentes abordagens do Édipoao longo do ensino de Lacan:

1 – No seminário “As formações do inconsciente”, de 1957/58, oesquema R foi montado, apresentando uma estruturação “quadrangular” dosujeito. Segundo este esquema, nos preâmbulos da estrutura neurótica, obebê identifica-se com a falta no campo do outro (isto é, com o desejo damãe), posicionando-se no ponto ϕϕ (letra Fi minúscula). A questão, então,está em poder deslocar-se deste ponto ϕϕ, lugar do falo imaginário, até oponto ΦΦ (letra Fi maiúscula), lugar do falo simbólico, que representa o Idealdo eu. O desejo do sujeito passa, para tanto, por um deslocamento namesma direção e sentido do desejo da mãe – ou seja: a mesma trajetóriado olhar da mãe para um outro objeto de desejo.

2 – No seminário “A identificação”, de 1961/62, o Édipo foi apresenta-do com a estrutura de dois toros entrelaçados, nos quais o desejo de um

pressão de Freud. Quem sabe o analista é também este olhar que as tornapossível? Ele representa um lugar, o que supõe um ponto no infinito.

2O OBJETO ENFIM QUESTIONADO

Em segundo lugar, como pensar o sentido do objeto a, nesta relaçãoentre sujeito-dividido e objeto, aqui representada pelo quadro?

O objeto a, conforme Lacan nesse seminário, surge ou se apresenta apartir de quatro vertentes:

1) demanda “ao” Outro: do objeto que eu quero do Outro (o seio);2) demanda “do” Outro, que exige a doação de um objeto do meu

corpo (fezes);3) desejo “ao” (pelo) Outro: que o Outro me olhe (olhar);4) desejo “do” Outro: que eu fale (voz).Nesse seminário, Lacan vai privilegiar a questão do olhar.B. Reis – Interessante que os objetos das demandas são objetos

reais, “palpáveis”, enquanto que os objetos do desejo são abstratos.L. Víctora – Talvez por isso mesmo as demandas sejam conscien-

tes: – “teta” – “cocô”! São pedidos, que podem ser formulados e até atendidos;enquanto que o desejo é inconsciente, e nunca totalmente “realizável”.

O seio, objeto primordial, roubado do campo do Outro – cuja represen-tação primeira é a mãe – passa a incorporar o próprio corpo do sujeito, naamamentação, e, conforme Lacan, presentifica o primeiro objeto a. Será queesse objeto pertence à mãe ou ao bebê? Ele existe como um objeto mes-mo? Ou ele é apenas uma miragem no horizonte, que se apresenta semprepela falta? Pois não é sempre pela falta que o sujeito se constitui? Aí entra o“diferencial” que Lacan introduziu, chamando atenção para a identificação como significante. O sujeito constitui-se identificando-se não com os objetospositivados das demandas, não com o seio ou as fezes. O sujeito vai constituir-se sim com a falta, com o desejo do Outro. Neste ponto compreende-se aimportância que Lacan deu à voz e ao olhar como objetos negativados.

É por esta capacidade do objeto a, de estar em qualquer lugar, quenós podemos reencontrar o fio de meada e amarrá-lo de novo à ponta que

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Ou em espiral, como um fio que se enrola em torno de um toro, infinitamente,com o mesmo trajeto (n+1...). A segunda volta, no meu entendimento, é umasegunda chance, a de recontar o Édipo. Dá-se pela linguagem, na análise,quando o analista deixa o paciente “viajar”, e neste sentido “viaja junto” – oque Lacan chamou de être dupe, ser bobo, deixar-se enganar – mas tambémnem tanto, porque opera a interpretação, não se deixando enganar pelaslembranças encobridoras do paciente, mas escutando o que dizem as letrasde seu discurso. Caso contrário, a segunda volta seria homomorfa à primei-ra, seria a mesma volta.

D. Gick – É incrível como tudo isso é matemático, dá para se escre-ver uma análise com um grafo, ou com as figuras topológicas...

L. Víctora – Não só é matemática a estrutura, como os efeitos daanálise também são reais, isto é, operam mudanças na própria estrutura.Lacan afirmava que a situação analítica é uma situação extremamenteestruturada, articulável no real. A discussão com C. Stein no final da liçãoXXIII do “Objeto da psicanálise” esquentou por isso. A questão em pauta eraa topologia: Stein questionava o rigor de Lacan, não compreendia certaspassagens, como a entre diferentes dimensões, efetuadas por Lacan emsuperfícies, e dizia que as mudanças propostas por Lacan não eram trans-formações matemáticas, mas, sim, mudanças de sistemas de referência.Lacan argumentava que sua topologia não era imaginária, mas que tratava-se da estrutura real, própria ao sujeito humano... Stein não compreendia aestrutura mœbiana, falava, por exemplo, da garrafa de Klein como possuido-ra de um interior e um exterior, o que fez Lacan debochar: – Ele conhece abanda de Mœbius, já? Em certo ponto da discussão, Stein acusa os psica-nalistas de induzirem nos pacientes o mito do paraíso perdido, e Lacan seposiciona: – Sobre isso tomo uma posição. Sou radicalmente contra o quese poderia considerar como introduzir de alguma maneira em nossa teoria, ea fortiori em nossa prática, um mito qualquer dessa ordem! Não é o paraísoque é perdido. É um certo objeto!4

4 Traduções da autora, de parte do diálogo à página 417 do Seminário citado (J. Lacan,“L’objet de la psychanalyse”).

corresponde à demanda do outro, e vice-versa. Observa-se que, aí, a novida-de é que a “demanda” entra no jogo. Trata-se – Lacan explicou – da relaçãoentre uma demanda e um desejo: “a demanda do filho pelo seio da mãe”, e “odesejo do pai pela mãe”. Fica claro que a interdição aqui recai sobre o dese-jo. O que organiza o Édipo seria a função paterna, colocada em forma de lei:“– Não desejarás aquela que é da ordem do meu desejo” (seminário “A iden-tificação”, lição de 21/03/62).

3 – Já no seminário “O objeto da psicanálise” (lição de 08/06/66), ainterdição recai sobre o gozo: a maldição de Édipo foi gozar da, ou com, amãe. Então, o drama edípico não seria apenas por ter assassinado o pai,mas por ter gozado do corpo da mãe. Lacan chama a atenção, também,para uma das primeiras interdições, a do gozo masturbatório: “– Não mexeno pintinho, senão...” e, a partir daí, grandes mudanças no comportamentoda criança, com conseqüências ainda não avaliadas totalmente, mas que sepodem bem supor, como a inibição da criatividade e até do raciocínio lógico-abstrato, que são sintomas que assolam o sujeito pós-moderno.

Voltando à questão de Édipo: ele quis saber sobre sua história – foiele quem foi atrás disso – e, no final, deu-se mal. A cegueira, ou a queda doolhar de Édipo, que simboliza a castração simbólica, foi seu castigo por terquerido “saver” demais. Édipo conheceu o corpo da mãe, no sentido bíblicomesmo. Ele viu demais – o olhar está em jogo, sempre, neste seminário – efoi castigado por isso.

4A SEGUNDA VOLTA NA CURA ANALÍTICA

Como pensar a “segunda volta” em relação à cura ou tratamento ana-lítico? Consideremos como “primeira volta” o Édipo “vivido”, ou melhor, “con-tado”, o quadro que o paciente nos pinta de sua história, o inventário decomo se definiu sua neurose. Se algo rateou nesta “primeira volta” (e rateou,porque, se não, ele não estaria ali diante de nós, sofrendo de angústia, comsintomas, ou querendo saber mais...), a “segunda volta” será de responsabi-lidade do analista. Se o analista não operar um corte, se ficar somente escu-tando, o paciente pode ficar o resto da vida girando em torno da mesma volta!

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A TELA NO QUADRO

Denise Gick1

Le temps vu à travers l’image est un tempsperdu de vue. L’être et le temps sont bien differents.

L’image scintille éternelle, quand elle à dépassé l’être et le temps.2

René Char3

Um dos convites de Lacan, no seminário O Objeto da Psicanálise(1965-1966) é para, através do quadro “As Meninas”, de Velásquez,trabalharmos a questão do olhar e o lugar do analista. Sua referên-

cia ao quadro é muito mais que uma alegoria, já que coloca o Velásquez doquadro como aquele que representa a posição do analista na história dosujeito.

É através da ambientação proposta por Velásquez, um jogo de olha-res, luzes, posições, levezas e cores que o quadro irradia movimentos edeslocamentos que se insinua ao espectador mais desavisado. É pela cap-tura do olhar do pintor Velásquez, retratado na tela, que iniciamos a visita aoquadro e, através do qual Lacan, ao lugar do analista, no seu Seminário XIII.

Diz Lacan (1968):“Quando o analista se interroga sobre um caso... quando se aproxima

e uma vez que ele inicia a análise é como Velásquez está no quadro dasMeninas que o analista está na transferência. ... Ele é o centro , o pivô datransferência... que passa pela sua pessoa...” 4

No quadro, o pintor retratado aparece em um momento de parada, desuspensão, de onde lança um olhar... talvez para dar mais uma pincelada,

1 Psicanalista, fonoaudióloga.2 “O tempo visto através da imagem é um tempo perdido de vista. O ser e o tempo são bemdiferentes. A imagem cintila eterna quando ultrapassa o ser e o tempo.”3 Poeta frances, “Fureur et Mystère”, Gallimard, 1962.4 LACAN, J. “L’acte psycanalitique”, 27 mars, 1968 apud E. Porge, Revue Littoral, France.

5Tentando concluir: são os significantes que interessam, e não a vera-

cidade do enredo em si. O objeto, no quadro, circula no jogo de esconde-esconde dos olhares, que tecem um plano-projetivo invisível. Na análise, osujeito joga uma rede de significantes para tentar encobrir seu desejo, paramantê-lo inconsciente: como um véu, mas que é também um vel, de velar.Cabe ao analista acolher estes significantes, ao escutar o discurso de seupaciente, e desvelar ou desenredar esta rede de nós, ao compreendê-los.Esta segunda volta, na análise, que tem a estrutura do corte mœbiano, reor-ganiza as voltas das demandas conscientes em torno do desejo inconscien-te em sua relação com o gozo e opera a castração simbólica.

GICK, D. A tela no quadro.

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Velásquez que, empertigado frente ao grande cavalete (à esquerda), com umpincel na mão, faz-se o representante de seu metier em ação. É o último emais belo de todos os seus auto-retratos.

O OLHARVários autores importantes tecem comentários sobre essa obra pri-

ma, historiadores da arte, artistas plásticos, filósofos... Picasso pintou umasérie de 40 telas que intitulou “As Meninas” em referência ao quadro deVelásquez. Foucault, em “A Palavra e as coisas”5, dedica-se a uma detalha-da análise do quadro “As Meninas”, sob o ponto de vista epistemológico.

Para alguns autores, Velásquez está olhando em direção aos seusmodelos, o rei e a rainha, que estão localizados fora da tela e que aparecemrefletidos no espelho que aparece no centro do quadro, fazendo pose paramais um quadro. Velásquez, desde os seus 23 anos, havia sido nomeadopintor exclusivo do rei Filipe IV, da Espanha. Essa hipótese é apoiada pelasregras da perspectiva.

Para outros, Velásquez está pintando a Infanta Margarida e suas da-mas de honra, em um dos muitos momentos em que retratou a princesa.Seus pais, apenas, assistem à cena.

Outros autores, ainda, como Campos e Frances apud em Porge(Littoral), apresentam uma outra hipótese, originalíssima, e que tem atuali-zado a discussão sobre o quadro. Para estes, em primeiro lugar, a tela queVelásquez pinta não é a grande tela virada para o espectador, que ocupaquase todo o canto esquerdo do quadro, mas uma outra que não está visívelatrás desta. Isso explica porque Velásquez está tão afastado da tela. Afunção da grande tela virada é servir como uma pantalha e enviar a imagemprojetada do rei e da rainha que aparece refletida no espelho em frente. Aidéia é de que o homem ao fundo, tio(?) de Velásquez, Neto Velásquez acom-panha o pintor numa brincadeira para divertir a Infanta Margarida.

5 FOUCAULT, M. “A Palavra e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas”

talvez para dar o seu primeiro traço, como sugere Foucault. Nesse olhar,Lacan situa o sujeito suposto saber: “É no campo da visão”... que se situa osujeito suposto saber.

VELÁSQUEZConsiderado como um artista exponencial do século XVII, nascido em

Sevilha, Espanha, transcendeu o âmbito do estilo dominante na época, obarroco. Foi no clima intimista de suas criações que os valores do barrocoencontraram aplicação original e se imortalizaram em fagueira beleza.Talentoso para a pintura desde pequeno, aos 12 anos foi estudar no estúdiode Francisco Herrera, pintor que desfrutava de grande reputação em Sevilha.Em poucos meses, passa para o atelier de Francisco Pacheco, cujo méritomaior foi antever o gênio em seu discípulo. Aos 23 anos de idade, é nomeadopintor exclusivo do rei Filipe IV, da Espanha.

Ninguém, no seu tempo, resolveu como ele tantos problemas da re-presentação pictórica. Com grande liberdade de toque, justapôs pigmentosterrosos e obteve tramas palpitantes de cor. Assim, ao examinarmos um deseus quadros maduros, dos quais “As Meninas” é um dos seus representan-tes, apenas percebemos uma mescla difusa, que à distância se recompõe eganha uma aparência sólida.

O QUADRO“As damas de honra” ou “As meninas (318 X 276 cm, 1656), Museu do

Prado, trata-se de um retrato ambientado, quase alegórico, obra-prima deespontaneidade. Velásquez está presente nele, “(...) é a luz, o principal per-sonagem do quadro”, conforme Salinger, (1974).

O ambiente do quadro é o estúdio palaciano onde o pintor trabalhava.A princesinha Margarida ocupa o centro da tela, cercada por duas damas dehonra, um casal de criados, uma anã disforme e uma criança angelical. Emprimeiro plano, um enorme mastim descansa com os olhos cerrados.

Não é um quadro estático, sugere na verdade uma cena em movimen-to. A luz que inunda a tela vem da porta do fundo, onde aparece um cavalhei-ro. E também estão os reis. Onde? Refletidos no espelho, fazendo pose e

GICK, D. A tela no quadro.

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que o quadro é retratado: o pintor está a olhar, com um gesto em suspen-são.

E, por fim, pelo “dar-se a ver’, representado por Velásquez pintando asi próprio, que introduz a função de tela, isto é, de encobrir/mostrar no mes-mo momento. Este “dar-se a ver” inverte a função do quadro, onde o pintorpinta um quadro invisível, exercendo a função de mediatizar da tela ao qua-dro, como o analista na transferência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCHAR, R. “Fureur et Mystère”. Gallimard, France, 1962.FOUCAULT, M. “A Palavra e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas”.

São Paulo, Martins Fontes, 1990b.LACAN, J Séminaire L’objet de la Psychanalyse (1965-1966). Édition de

l’Association lacanniene internationale; Paris 1999.PORGE, E. “L’analyste dans l’histoire et dans la structure du sujet comme Velazquez

dans Les Ménines”. Revista Littoral n° 23.SALINGER, M. “Velásquez” Department of Paintings -The Metropolitan Museun of

Art, New York, 1974.

Através desse jogo de luzes e espelhos, projeções e reflexos, ele fazaparecer a imagem dos pais da menina refletida no espelho no centro datela. Imagem esta formada a partir de uma imagem escópica e não da reali-dade. Essa mistura de perspectivas geométricas e escópicas, entre perso-nagens e planos é que nos mostra a genialidade de Velásquez. Lacan reto-ma, através dessas leis da perspectiva, – o suporte da montagem pulsionaldo “sujeito escópico” – relevando a atualidade do quadro, no seu duplo sen-tido, de atual e de efetivo.

A TELAPara Lacan, “As Meninas (...) é o quadro dentro do quadro o que nós

vemos”, diz ele no Seminário XIII. Já no Seminário do RSI, apresenta tam-bém a proposta de Campos e Frances (apud em Porge, Littoral) e acrescen-ta que o que Velásquez representa nessa tela é o objeto intocável, invisível,aquele que se depreende do campo visível. Diz ele no O Objeto da Psicaná-lise: “Velásquez não pinta a realidade, ele pinta o ato de pintar” , isto é, o atoanalítico.

O domínio de Velásquez na utilização da perspectiva mostra a suagenialidade. A impressão é de que “As Meninas” é um quadro em três dimen-sões, em direção ao exterior da tela, que o classifica como barroco. O quetemos é que Velásquez trabalha com várias perspectivas no seu quadro,geométricas e escópicas, múltiplas e parciais; que se harmonizam entre si ecom a perspectiva frontal do quadro, que o unifica . Essa harmonização devárias perspectivas é o que nos dá a impressão de um certo equívoco na ocupa-ção do espaço, das dimensões e dos lugares ocupados pelos personagens.

Lacan, ao analisar o quadro, precisa posições e lugares constituintesdo sujeito, privilegiando o lugar do analista, através dos vários olhares pre-sentes no quadro.

Neste sentido, o olhar, primeiramente, ocupa uma função de apelo,isto é, de objeto de desejo do Outro, pela captura de nossa atenção, o lugardo sujeito suposto saber.

Em segundo lugar, pela intervenção no tempo lógico (o instante dever), onde espaço, lugar topológico e tempo se conjugam, no instante em

GICK, D. A tela no quadro.

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da existência de Deus. Encontramos, como exemplo, as bordas que delimi-tam nossos corpos e a ausência delas em Deus. O que estabelece umarelação, que, em certo sentido, revela-se pouco promissora aos humanos, jáque, frente ao infinito, o finito nada valeria. Admitiríamos, assim, a existênciaDivina tão simplesmente como um ato de fé, pois conhecemos o infinito,sem saber qual a sua natureza. Na verdade, a posição humana é efêmera,frente à potência divina não ameaçaríamos em nada ao Outro.

Lacan, na verdade, refere-se a outra problemática presente nesse pe-queno texto de Pascal, Deus existe ou não? Faça a sua aposta, já quenesse jogo não é permitida outra alternativa.

Estamos face a face à relação do ser (âncora do sujeito da ciência) eda existência, bem como entre o saber e a verdade. Problemas que podemencontrar como solução, em relação a Deus, na fé, pois a razão não poderiaresponder a tal questionamento. Justifica-se essa posição não somente poruma simples oposição entre a fé e a razão, mas, para Pascal, essa assertivasustenta-se pela fé, esta escolha é feita na medida em que se abdica darazão. Aí está o valor da aposta, do puro ato, indicando que nessa aposta,nesse jogo, o medo seria daquilo que estamos apostando, do quanto seempenha no jogo.

Assim, para Pascal, em seu texto, há o imperativo da escolha, nãointeressando qual seja ela, mas ela precisa ser feita. A explicação pascalianaé pródiga, mesmo ingênua, dizendo que o fato de se fazer uma escolha – e,assim, empenharmos algo – não significa que iremos necessariamente per-der. Seguindo seu raciocínio, encontramos o seguinte exemplo: quando seaposta uma vida finita contra duas vidas, também finitas, não perderíamosnenhuma, já que, para além da primeira vida delimitada, poderíamos ter ou-tra, assim cumpriríamos uma passagem finita, a qual se apostaria só parater uma segunda vida, também, finita. Existindo portanto uma infinidades devidas finitas, se perdêssemos uma, já a teríamos vivido, e assim não perde-ríamos nada. Ele fala, portanto, de uma infinidade de vidas infinitamente feli-zes, e não de vida eterna!

Na verdade, o que Pascal nos apresenta, e que será retomado porLacan, é que estamos, sempre, em relação ao Outro, e o ato de apostar

A APOSTA DE LACAN

Otávio Augusto Winck Nunes1

Este saber não sabendoÉ de tão alto poder,

Que os sábios discorrendoJamais o podem vencer,

Que não chega o seu saberA não entender entendendo,

Toda a ciência transcendendo2.

Lacan, no seu seminário XIII3 – O objeto da psicanálise (1965-1966) –,fez uma retomada de um dos textos mais conhecidos de Blaise Pascal,filósofo e matemático francês: Infinito-nada: a aposta (“Infini-rien: le

pari”). Lacan anuncia na lição de 26 de janeiro de 1966 que apresentará, nasaulas que se seguirão, a sua leitura do texto de Pascal para situar a funçãodo objeto a na psicanálise. E assim, ao mesmo tempo, a função do sujeitodo desejo.

Isto é, após haver tomado o cogito cartesiano, Penso, logo existo,para indicar o próprio da divisão constitutiva do sujeito, Lacan parte para umaoutra vertente, complementar a esta, a constituição subjetiva. A saber, afunção do desejo promovida pelo estatuto do objeto a. Para chegar a esseponto, utiliza-se, então, de a Aposta de Pascal.

Pascal, no início de seu texto, estabelece uma relação entre a exis-tência humana e a divina, ou seja, entre a finitude da nossa vida e a infinitude

1 Psicanalista, membro da APPOA, professor na UNISC, doutorando na Universidade deAmiens/França.2 Glosa sobre um êxtase de alta contemplação, texto de São João da Cruz, traduzido pelasCarmelitas Descalças do Convento de Santa Tereza e de Fátima.3 Seminário que se encontra em fase de tradução para o português, num projeto que incluiquatro instituições psicanalíticas: Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Tempo Freudiano/RJ, Associação Lacaniana Internacional/Paris e Centro de Estudos Freudianos/Recife.

NUNES, O. A. W. A aposta de Lacan.

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talvez não seja necessária a mesa redonda, nem o feltro verde, ou um blocopara anotar os pontos. Mas uma disposição de lugares é necessária.

Sabemos, de um lado, que o analista se encontra na suposição deum saber pelo analisante; de outro lado, o analisante que nada sabe do seudesejo. Qual seria a sua verdade?

Uma aposta que comporta um sério risco seria, justamente, a de oanalista assumir essa posição e acreditar ser o portador do saber da verdadedo seu analisante, ou seja, promover a superposição de duas categorias quese colariam, o que, sem dúvida, poderíamos qualificar como um grande ble-fe.

A aposta do analisante, a partir de uma disposição de saberes, pode-ria ser a tentativa de fazer os significantes se abrirem. Todos os naipes ejogos na mesa, quem sabe em um deles a sua verdade pode se revelar...Seria esta a aposta de Lacan? Ainda mais, tendo o objeto a como curinga...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASLACAN, J. Séminaire L’objet de la psychanalyse (1965-1966). Paris: Édition de

l’Association Lacanniene Internationale, 1999.PASCAL, Blaise. Infini-rien: le pari. In: _____. Œuvres complètes. Paris: Pleîade.

desvenda a relação estabelecida pelo sujeito, com o Outro e com o objeto a.Ou seja, entre Deus existe/não existe, finito/infinito há uma barra que interdi-ta o campo do Outro. Coloca-se em suspenso o Ser e a existência, como nafórmula de Lacan, S de A, indicando a existência de uma falta no campo doOutro.

A Aposta de Pascal entra no seminário de Lacan no momento em queele apresenta sua topologia do cross-cap, onde se pode ver que os doiselementos do fantasma funcionam a partir de um corte. Corte que revela queo objeto a encontra-se em posição de ser a causa de uma inapreensíveldivisão do Outro, o próprio sujeito.

Essa questão é central na medida em que, nesse seminário, Lacantrabalha com a perspectiva de que o sujeito, sobre o qual a psicanálise estáengajada, não é outro que o sujeito da ciência. Sujeito topológico, o quesignifica dizer que a dupla interior/exterior da fita Mœbius é, de fato, umamesma superfície. Ou, como diz Lacan na primeira lição deste seminário, “osujeito é, se assim pode-se dizer, em exclusão interna a seu objeto” (p. 14).

Retomando a idéia acima, Lacan diz que a aposta de Pascal só searticula na medida em que sua jogada está baseada na existência do parcei-ro. Então, quando se aposta, se empenha algo, está-se na crença que oinfinito se abre, isto é, de que falta alguma coisa no Outro, nos significantes.Ou seja, desfaz-se a máscara de uma completude imaginária e o desejoirrompe.

Nesse sentido, o sujeito da psicanálise está ancorado na função dafalta, onde o indefinido disfarça o infinito, já que a falta não encontra nuncaum objeto que a satisfaça.

Mas seria oportuno retermos a imagem do jogo tal qual proposto porPascal e retomado por Lacan. Na verdade, o que está em jogo em umaaposta? Pois vemos que, no jogo, estabelecemos, também, uma relaçãoentre o saber e a verdade do sujeito, que pode se tornar acessível e definidano engajamento da experiência subjetiva. Afinal: o que se está disposto aempenhar?

Podemos, talvez, imaginar o que ocorre numa situação analítica, umparalelo entre um jogo em que a aposta é uma condição exigida. Muito bem,

NUNES, O. A. W. A aposta de Lacan.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Iniciou o tratamento psicoterápico com uma colega, que por motivosfamiliares, retornou ao país de origem, com urgência, sem falar com o meni-no.

Chamava a atenção, nas sessões, a atração que ele demonstrava,insistentemente, irresistível, pela figuração gráfica, como se em cada novatentativa pudesse encontrar a solução para seu conflito, resgatando algoperdido no tempo.

Esta configuração é um texto a decifrar. É um texto falado.Enquanto desenhava, explicava seus desenhos, montava estórias de

piratas, bruxas, monstros e me convidava a seguir o roteiro, onde quasesempre havia uma via larga, como se fosse uma via principal, direcionadapara um centro. No cruzamento dos trajetos, fazia uma marca, dizia: “É aquinesta encruzilhada que é o lugar perigoso, onde se encontram as bruxas eos monstros, guardando um tesouro. Estão aqui. Eles sabem tudo”.

Solicitado que me falasse sobre “o quê eles sabem”, explicou: É comonas estórias de piratas. O tesouro está escondido num caixão: dinheiro,ouro, jóias e o segredo. Encenava ser ele o pirata. Tapava um olho, pegavaalgo para ser uma arma e parecia lutar.

Questionado com quem ele estava lutando, respondeu: Com os mons-tros e bruxas. Eu vou vencer! Estão lá na encruzilhada, para não deixarpassar ninguém. Mas eu vou lutar, vou passar, e vou descobrir o segredo queeles guardam. Eu vou matar os monstros e bruxas.

A. – Quem poderiam ser? Alguém que tu conheces?P. fica irritado, olha fixo para mim, avança e me dá uma gravata. Eu

não conseguia nem falar, nem me movimentar.A seguir lhe disse:A. – Parece que queres me mostrar que tens muita força, não é?P. – Tu é uma bruxa. Bruxa mesmo. Bruxa!...A. – Bruxa? Que faz a bruxa?P. – Adivinha as coisas. Sabe o que vai acontecer. Tu fala muita coisa

como a bruxa que sabe, adivinha tudo.A. – Não são coisas que gostaria de saber? Não é isto que estás

procurando, querendo saber?

ESCREVER É PRECISO!...

Anna Irma Callegari1

Escrever... parecia ser a ocupação e preocupação constante de P.,menino adotado, de oito anos, que repetia, insistentemente, em qua-se todas as sessões, através de figurações gráficas, encontrando

sua expressão, especialmente, em círculos que, em geral, retornavam aoponto de partida, e numa passagem enigmática, cercada de monstros ebruxas, que significavam para ele “fonte de poder e saber, que guardavam osegredo e o tesouro”.

Seria este grafismo testemunho de um saber inconsciente?Não seria a forma que P. encontrou para expressar seu sintoma...

sintoma que representa o sujeito diante de um saber que escapa a ele.Nesta travessia procura um ponto de ancoragem. Poder-se-ia afirmar queprecisa escrever... para garantir os efeitos de linguagem que se inscrevemcomo verdades (Lacan, 1982). Verdade que lhe é negada pelos pais: - sabersobre sua filiação.

A montagem fantasmática que faz em seus relatos e as repetições deseus desenhos seriam a tentativa que faz para construir o próprio nó, deacordo com sua história. O nó é uma escritura. Ainda mais a escrita é umtraço que se lê, um efeito de linguagem. O nó deve-se escrever. É precisopara daí tirar alguma coisa (Lacan, 1982).

Vejamos alguns dados de P. Filho adotivo de um casal que perdera oprimeiro filho ao nascer. Escolheram um menino, “para substituir o filho mor-to”. Foi adotado logo após o nascimento. O casal teve mais um filho, quandoo menino tinha mais ou menos quatro anos.

Posteriormente, os pais se transferiram para outro estado. P. perma-neceu em Porto Alegre com os avós. A pedido da escola, os avós procura-ram tratamento neurológico. A queixa era de que o menino “era agressivo enão parava um instante na sala de aula”.

1 Psicanalista, membro da APPOA.

CALLEGARI, A. I. Escrever é preciso!...

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SEÇÃO TEMÁTICA

A. – Irmãzinha? Como é mesmo, me fala...?P. – É, irmãzinha. Só que ela não é filha de meus pais, não é minha

irmã. Não nasceu da minha mãe.A. – Não nasceu da mãe?P. – As crianças antes de nascer estão na barriga da mãe. Ela não.

Pegaram ela no hospital. É uma menina.A. – E a mãe da menina?P. – Não é minha mãe. A mãe dela é outra mulher. Eu não sei quem é.

Mas agora a menina é minha irmã.A. – Ela vai saber que ela não nasceu da mãe?P. – Não. Nunca. Eu mato quem falar.A. – Então, também é um segredo, como aquele que tu querias des-

cobrir?Fica em silêncioA. – Se fosse tu... gostarias que te dissessem?P. – Não. Nunca. Não quero saber nada. Acrescenta: – Ela não vai

saber nunca, nunca.Assim, a resposta que ele recebeu dos pais adotivos, a respeito dele

mesmo, foi adotando outra criança. Em vez de palavras, há um engano, umatapeação. É uma resposta em ato.

A questão fundamental para o menino poderia se situar: de onde vêmas crianças? A resposta que lhe é dada é enganosa, mentirosa (por que elepergunta de onde venho eu?) Os pais respondem em ato “as crianças vêm dohospital”, adotando a menina. Mas em relação a ele, a verdade lhe é negada,porque a questão, de onde vêm as crianças, implica a questão sobre osignificante pai.

Face às figurações gráficas e as explicações que faz sobre seus de-senhos, poderíamos pensar, como hipótese, uma estrutura tórica.

A construção topológica de um toro supõe um outro toro como seucomplemento que com ele faz cadeia, onde se enlaçam o toro do sujeito e otoro do Outro.

Como hipótese, para ilustrar o caso, escolhemos as figuras 1 e 2 dotexto de Lacan (L’identification, 1961-1962, p. 185).

P. fica quieto. Chega perto e me tapa a boca com as mãos.Em outra sessão, retomando a figuração gráfica, localizando os mons-

tros e bruxas, certamente buscando nesta repetição dar sentido àquilo que opreocupa, eu lhe digo:

A. – Estás muito preocupado com os monstros e bruxas?P. – Estou mesmo. Quero descobrir, saber o segredo bem escondido,

que eles guardam e cuidam para que ninguém chegue lá.A. – Então eles sabem que segredo é?P. – É. Acho que sim. Mas eu vou descobrir.A. – Não será que o pai e a mãe não poderiam saber?Como que apanhado de surpresa, se vira rapidamente e grita:P. – Tu é bruxa, bruxa mesmo. Não quero que fales mais.Repetia também desenhos de bússolas, pontos cardeais e insistia na

pergunta: – Onde fica o Norte?A. – Não gostarias de me falar o que é mesmo que queres descobrir?P. explica: – A agulha da bússola marca o norte, mas eu não sei... Eu

preciso saber o norte para chegar onde está o tesouro e descobrir o segredo.Em outra sessão me faz seguir o itinerário que traça e explica, assi-

nalando no papel. Aqui na encruzilhada estão os monstros e as bruxas e poraqui se vai a São Paulo (é o traço mais forte e a via larga). A bússola vaiajudar, mas eu não sei onde fica o Norte.

A. – Pensas que eu poderia ajudar?P. concorda, repete: – Quero saber o Norte.O menino busca mesmo um norte, uma direção para se constituir

como sujeito e de certa maneira “sabe” que o tratamento poderia ajudá-lo, eme pede isto.

Mas, se pelo tratamento ele vislumbra uma saída, um caminho quepoderia levá-lo ao deciframento do enigma de sua origem, de sua filiação,isto lhe é barrado, pois os pais resolvem levá-lo para outro estado.

Numa das últimas sessões verbaliza sua preocupação com a adoçãoe de como nascem as crianças.

Relata que os pais vêm buscá-lo para passar as férias...Repentinamente, me diz: Sabe que vou ter uma irmãzinha?

CALLEGARI, A. I. Escrever é preciso!...

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especificamente, como essa dialética da demanda e do desejo é produzidapor efeito de linguagem. Também pelo fato de que essa demanda passa pelodesfiladeiro da linguagem, se desdobra entre necessidade e desejo.

A construção topológica de um outro toro nos permite supor o objetode desejo, círculo interno do primeiro toro sobre o círculo cheio do segundoque constitui um anel.

Em outras sessões, repete os círculos, onde verbaliza demandas e“possíveis desejos”, por exemplo: saber sobre a adoção, a filiação, o Norte,matar as bruxas e os monstros (no lugar dos pais). O objeto “a”, que organi-za a montagem do desejo, está sempre escondido. Ao menino, criança ado-tada, falta-lhe as referências ancestrais e ainda está no lugar do morto. Éprivado da nominação simbólica que inscreveria ele e seu pai na linhagem.

É possível que se defronte, por efeitos de inibição, com sentimentosambivalentes de amor e ódio, em vista dos abandonos (mãe, mãe adotiva,terapeuta) e receia ser abandonado novamente.

Vejamos a possibilidade de assinalar a presença de demandas nodizer de P.

Quê quer este menino?- Encontrar os monstros e bruxas...- Lutar contra eles e vencer...- Matar...- Encontrar o tesouro.- Saber o segredo.- Saber o Norte.Não seriam algumas das demandas?Na montagem imaginária do desejo, o objeto “a” que a organiza está

escondido.Tentaremos supor alguns desejos que poderíamos encontrar na fala

do menino.Deseja:– saber do tesouro que perdeu...– saber da filiação...– saber de sua origem...

Então, baseada no que faz (traçados esquemáticos) e diz (efeitos delinguagem), de forma limitada, com pouca fundamentação teórica, tomare-mos isto como suporte.

Inicia a desenhar sempre ao pé da folha.Começa, traçando primeiro uma via larga que vai para um centro e

termina num círculo.Diz: – Esta via larga vai para São Paulo.Seria para o Outro?

Finaliza o círculo assinalando o centro: – É aqui que estão as bruxas.Retorna a desenhar no mesmo ponto do primeiro círculo e faz o mes-

mo trajeto. Ao cruzar o “centro”, desenha uma marca e diz: “É aqui queestão as bruxas e os monstros, o tesouro, o segredo...”.

Continua o traçado circular no interior do círculo.Podemos considerar o que Darmon assinala: “Lacan utiliza o toro para

simbolizar a dialética da demanda e do desejo” (1994, p. 128), sublinhando,

Toro do Sujeito

Toro do Outro

CALLEGARI, A. I. Escrever é preciso!...

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pelo discurso dos pais, o luto não elaborado, a palavra não dita, continuandoa produzir seus efeitos ao nível do sintoma e é no sintoma que P. manifestao seu dizer.

Não seria saber sobre sua filiação, que lhe daria o norte que tantobusca e insiste?

As figurações gráficas e as verbalizações não seriam uma tentativa dedesvendar o enigma que o envolve?

Ou, ainda, resgatar algo perdido no tempo, saber de suas origens?Ao menino lhe fica proibido o desejo de saber. Suas questões não são

escutadas, mas respondidas por evasivas e engano.A P. a verdade lhe é vedada.Assim, é no dizer de seu sintoma que ele encontra a possibilidade de

expressão, ficando alienado num discurso que não é o seu.

* * *

DEBATE – Ligia Gomes Víctora

Podemos tomar a fala e os desenhos de P. como significantes – querepresentam o sujeito para outros significantes. Como na narrativa de umsonho, suas palavras delatam e ao mesmo tempo escamoteiam pontos dedificuldade entre suas demandas e seu desejo inconsciente.

Parece que, para P., a “Via Larga” seria o caminho para encontrar osaber sobre os mistérios do seu nascimento, que lhe é omitido. Nesta via, a“encruzilhada” representa seu encontro com o Outro.

– O que será que P. busca? O saber ou a verdade sobre sua história?Como Anna Irma salientou no discurso de P., “saber do tesouro, saber dafiliação, saber de sua origem...” – o que P. quer é saber. No entanto, elerecusa a verdade!

O Outro para P., é representado imaginariamente por seus pais deadoção. As demandas de saber de P. não poderiam ir no sentido oposto dodesejo que P. supõe dos pais – o desejo de serem eles os seus pais reais.

Lembrando que a estrutura do tipo mœbiano é a única capaz de darconta da relação consciente/inconsciente, substituindo o ponto “capiton”,

– articular sua própria história...– matar o pai...Poderíamos, ainda, assinalar que a inscrição topológica permite dar

conta da essência do significante que é ao mesmo tempo descontinuidade ediferença. Importante é também o fato de que o mesmo significante, por serrepetido, se inscreve como diferente de si mesmo (Darmon, 1994, p. 131).

Sem entrar em muitas escolhas, destaquemos o significante “encru-zilhada”, termo que repete nas sessões e que muito o preocupa.

Numa versão, a encruzilhada é o lugar perigoso onde estão os mons-tros e bruxas, guardando o tesouro...

Em outra versão, que se inscreve como diferente, P. se acha de fatonuma encruzilhada. Não sabe o Norte. Receia enfrentar a realidade e pedeajuda.

Estes itinerários imaginários, que ele insiste em reproduzir, repetesessões após sessões, seria a tentativa que faz para dar articulação desentido e significação, para descobrir o segredo guardado por monstros ebruxas. Que segredo seria este? Não seria, justamente, saber de sua ori-gem, de sua filiação, sua genealogia? Não é este um tesouro? Ancestrais,tradição, filiação, genealogia, enfim, toda cadeia simbólica que liga à famíliade origem... Mas este tesouro é um segredo guardado por monstros e bru-xas, que o menino está disposto a enfrentar, para descobri-lo. Não se pode-ria pensar que ele está articulando uma possibilidade de encontrar uma saí-da diante do enigma em que está preso? Enigma este acrescido também porum fato anterior perdido no tempo e espaço que é a morte do filho dos paisadotivos, indicando, para ele um não-lugar, pois está no lugar do morto, con-tido no discurso que antecede a sua adoção. Ele é o representante de umaperda, objeto pelo qual os pais tentam obturar imaginariamente a falta de umluto a ser feito.

O Norte que busca com tanta insistência, persistência, repetição nãoseria uma palavra norteadora em relação a sua origem, demanda endereçadaao pai, para ele poder articular uma outra história a partir dos pais adotivos?

A adoção de outra criança, traz para o plano da realidade a preocupa-ção do menino, pois de certo modo permanecia inscrito no inconsciente,

CALLEGARI, A. I. Escrever é preciso!...

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SEÇÃO TEMÁTICA

OS BOMBEIROS DA ALMA!O QUE RESTA DA DEMANDA

FACE ÀS DEMANDAS DA INSTITUIÇÃO CARCERÁRIA1

Celina Garcia2

No presente texto, gostaríamos de ressaltar algumas consideraçõesrelativas a esse lugar de escuta “psi”, bem como o que pode vir a serelacionar com essa rubrica dita “terapêutica”, por sinal, muito co-

mum no nosso cotidiano. É então, com base em algumas observações fei-tas num serviço médico-psicológico (SMPR) numa prisão (op. cit.) que ten-taremos evocar alguns problemas. O que faz sua “especificidade”, se tanto éque existe uma, e seus impasses? Fora os riscos próprios do trabalho eminstituição carcerária, as questões que seguirão ultrapassam a especificidadedesse serviço, evitando criar uma nova especialidade.

Nesse sentido, seria interessante interrogarmos se um trabalho deescuta do sujeito, tal como a psicanálise o considera, seria possível. Emque lugar “psi” nos situamos quando nos encontramos na “prisão”? Essaquestão somente se justifica se levarmos em conta alguns aspectos relevan-tes dessa prática terapêutica numa instituição penitenciária. Essas interro-

1 Esse texto toma como base reflexões advindas a partir de um trabalho de atendimento numserviço de psiquiatria no interior de uma prisão. Em 1977, foram criados na França os CMPR(centro médico-psicológico regional), posteriormente (1986) denominados SMPR (serviçomédico-psicológico regional). Inicialmente ligados ao Ministério da Justiça, tais serviçosdependem, atualmente, do Ministério da Saúde e definem-se por uma dupla tutela : a adminis-tração penitenciária assegura o quadro carcerário, ao passo que a administração de saúdepública intervém com a equipe psiquiátrica que o SMPR comporta (educadores, assistentessociais, psicólogos e psiquiatra). Esse serviço depende de um centro hospitalar especi-alizado, constituindo um setor extra-hospitalar. Seu funcionamento consiste, essencialmen-te, em entrevistas terapêuticas, e isso a partir da demanda do detento. Além disso, existemcasos de internamento em hospital psiquiátrico para os casos de doença mental, cada vezmais presentes no meio carcerário.2 Celina Ary Mendes Garcia é psicóloga e reside na França: 23, rue du Dr. Potain – esc-E –75.019 – Paris.

proposto por Lacan, que fazia uma prega entre as duas dimensões, umahipótese: no encontro entre a superfície do toro que representa o sujeito como toro do Outro (A), por desejar o desejo do Outro, o desejo do sujeito “entra-ria” no toro do Outro, sendo assim subsumido pelo Outro.

Formar-se-ia, assim, uma borda de evaginação, onde a primeira estru-tura – os toros entrelaçados – que é a estrutura do Édipo “normal”, transfor-mar-se-ia em uma estrutura de Klein2 , cuja “entrada” – a “Via Larga” – levariapara onde? Para seu interior/exterior! Na tentativa de encontrar-se com oOutro, P. cai em um paradoxo: querer saber, mas não desejar a verdade.

* * *

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCALLIGARIS, Contardo. Hipótese sobre o fantasma. Porto Alegre: Artes Médicas,

1986.DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médi-

cas, 1986.LACAN, Jacques. Livre XX, Encore. Paris: Seuil, 1972-1973._____. L’identification. Seminaire 1961-1962. Ed. Association freudienne

internationale (Publication hors commerce)._____. L’Etourdit (1972). El atolondra dicho. In: Ornicar? Escansion. Buenos Aires:

Paidos, 1984.

2 Estas operações surpreendentes, que Lacan apresentou em seus seminários, podem serjustificadas pela teoria das Categorias – Eilemberg e Mac Lane (1945) –, criada comodecorrência de trabalhos em topologia algébrica e que tem influenciado muitas áreas (prin-cipalmente a computação), como uma forma revolucionária de abordagem e de raciocínio.

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gações tocam diretamente a questão da responsabilidade penal, levando emconta o aumento do número de psicóticos na prisão, e conseqüentemente, ararefação da impronúncia psiquiátrica.3 Sem falar os riscos de um deslizeem direção a uma juridicidade que atribui à sanção penal um valor terapêuticodentro de um discurso vitimário ambiente.

As discussões advindas ao longo dessa jornada permitem situarnotadamente o “processo” no qual medicina e justiça encontram-seimbricadas. As conseqüências provindas de uma suposta confusão devido auma permutabilidade de lugares e funções no par justiça/medicina serãoevocadas ao longo deste texto, sobretudo porque o SMPR concentra taisquestionamentos sem saber. Um dos efeitos perversos da medicina psiquiá-trica na prisão (com o surgimento dos SMPR desde os anos 70) seria o defamiliarizar o mundo judiciário com a idéia de que a psicopatologia não seriaincompatível com a detenção. Podemos, então, paradoxalmente, perguntar-nos se a criação dos SMPR não viria a favorecer o aumento de psicóticos naprisão, ao mesmo tempo em que verificamos a redução de leitos psiquiátri-cos, num movimento que tenderia a supor a destruição da psiquiatria. Comoa realidade o atesta, o critério de “avaliação” da loucura vem sendo objetivadosegundo a incidência da periculosidade do doente, num âmbito que privilegiao simples ponto de vista consensual. Vale salientar que a prática maisidealizável não se encontra isenta de qualquer constrangimento social. Queexistam impedimentos e dificuldades próprios ao funcionamento da peniten-ciária, como em qualquer outra instituição, isso não impede, todavia, algunsquestionamentos.

Somos nós, os “psis”, os escolhidos a levar a “boa fé” a uma popula-ção de excluídos, decaídos sob a barra da justiça, e a quem a sociedadedemanda reparação? Essa demanda social provoca a alternativa seguinte:ou se trata de uma proposta dissimulada por uma nova ortopedia ocasionan-

3 Isso foi objeto de discussão numa jornada organizada pelo Jornal Francês de Psiquiatria(JFP): “Faut-il juger et punir les malades mentaux criminels?”, “É preciso julgar e punir osdoentes mentais criminosos?” (No Centre Henry Rousselle -Paris - setembro/2001).

do uma desresponsabilização do sujeito; Ou, antes, estaríamos efetivamen-te num lugar que atribuiria à pessoa que demanda, nesse caso, o preso, deengajar-se, “se ele o deseja”, num trabalho subjetivo centrado na fala?

Certamente, existe um leque de situações variadas nas quais somoschamados, e do qual depende o modo de intervenção próprio do trabalhoinstitucional. Algumas situações de urgência, a informação de um detentoque descompensa, um outro que ameaça incessantemente com atos suici-das, outros menos “clássicos”, relevando um estado de aflição aguda, mastodos testemunhando, em suma, um modo de apelo, o qual valeria a penarefletir sobre a modalidade da “resposta”. Ora, se utilizamos esse termo“resposta”, precisamente para ilustrar o lugar no qual nos achamos atual-mente, uma vez que se trata, nesse “apelo”, de apagar o fogo com umapresença “psi”, acabaríamos tornando difícil, quando não impossível, essademanda suposta terapêutica. Daí a necessidade de uma reflexão sobreesse lugar “psi”, sobre a ética de uma prática do sujeito, em detrimento dosquais deslizamos em direção a uma prática/método de negociação de ur-gências. Os lugares tornam-se permutáveis segundo as pessoas de plantãonesse dia, como o jogo do cubo, em que o deslocamento do lugar vazio éfeito pelas peças vizinhas no sentido de eliminá-lo, a fim de que possampermanecer unidas, formando um bloco bem soldado

Além disso, esse tipo de procedimento não é somente próprio à insti-tuição carcerária. Notamos, atualmente, um movimento crescente no social,onde o que importa é responder o mais rápido possível ao sinal de alarme.Os “psi” não se tornaram cada vez mais presentes nas cenas das catástro-fes que proliferam no nosso cotidiano? Somos os novos bombeiros da alma?

A possibilidade de um trabalho de escuta do sujeito, segundo a psica-nálise, necessita de um operador: a demanda na instauração da transferên-cia. Mas, então, o que é uma demanda na medida em que não haveria aconfundir-se com a necessidade?

Não há demanda que não passe pelo desfiladeiro do significante, umavez que este último define-se por oposição radical. De igual maneira, a molada demanda supõe um endereçamento por meio de um significante destina-do ao Outro. “A demanda é por si mesma tão relativa ao Outro, que o Outro

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7 Tradução pessoal do texto do Lacan “Ouverture de la section clinique”, in Ornicar, n. 9, de5/11/77.

4 Tradução pessoal do seminário V “As formações do Inconsciente” de Jacques Lacan.(“Livre V, Les formations de l’inconscient”, Seuil, p. 87).5 Como foi sublinhado pelo Sr. Lemoine na sua apresentação na jornada que anteriormentemencionamos, e que intitulara “obssessão do tratamento” (faremos nossa própria tradu-ção): “não terá escapado à ninguém que se trate, caso bem deseje fazê-lo, e que se nãoquiser tratar-se, que não se trate, e, ainda assim, quando acompanhado de dois guardaspara ir ver o psiquiatra, os resultados não são garantidos”.6 Em francês, os presos utilizam frequentemente o termo affaire para falar do ato criminal(mon affaire), o que não elimina o contexto no qual esse significante se encontra proferido.

se encontra imediatamente na postura de acusar o sujeito, de repeli-lo, aopasso que, evocando a necessidade, ele o autentica, o assume, o homolo-ga, o traz para si, já começa a reconhecê-lo, o que é uma satisfação essen-cial. O mecanismo da demanda faz com que o Outro, por natureza, se opo-nha a ela; poder-se-ia também dizer que a demanda exige, por natureza,para ser sustentada como demanda, que a ela haja oposição”4.

A respeito das consultas no SMPR, muitas vezes são os juízes deexecução penal que induzem o preso, quando não o obrigam, a procurar um“psi”. Nesse aspecto, confrontamo-nos diretamente com a caricatura quepode tomar a demanda nesse contexto de tratamento5. Trata-se de umaconfusão, nesse caso, entre demanda e necessidade, e isso com vistas auma avaliação eficaz, pronta para confortar a sociedade no seu pedido dereparação levado ao extremo, de forma que nenhuma falha venha a se insta-lar. O discurso ambiental considera que haveria esperança, que o risco dereincidência se acharia em baixa desde que os detentos pudessem se bene-ficiar dos espaços “psi”. E por que não? O fato é que a potência com a qualalguns profissionais acreditam obter resultados nessa ilusão de tratamento,em nome de um relativismo comportamentalista, levaria a crer que, nesselugar dito “psi”, haveria um “conselheiro-amigo” com quem o paciente pudes-se se confessar. Sem que a questão do sujeito seja realmente colocada,tudo deve permanecer numa objetividade cada vez mais transparente: “é isso”!Efetivamente, nesse contexto terapêutico ocorre ao detento dizer algo refe-rente ao seu “negócio”6. No entanto, certos “detentos-vítimas”, devido aomecanismo unindo demanda terapêutica a permissões de saída, acabam

eles mesmos impondo suas próprias apreciações a respeito do seu affairepessoal, sem que possam submeter-se às condições, às regras que umtrabalho clínico exige. Mais que um mecanismo, trata-se de uma engrena-gem. Freqüentemente, certos juízes propõem aos presos uma visita ao “psi”,com vistas a uma remissão da pena, de tal maneira que haveria um tipo decontrato por meio do qual o juiz delega seu poder (a remissão da pena) ao“psi” que aliviaria a pena do detento!

De quem vem a demanda? Da Justiça. Demanda do quê? Não seriade poder livrá-la de uma angústia ligada, ao mesmo tempo, ao insuportávelinduzido nessa relação ao criminoso e ao risco ao qual o social se encontraexposto? A prescrição terapêutica tem como dever dar um sentido ao buracodeixado por qualquer ato criminal. “Não é preciso ‘terapiar’ o psíquico: Freudtambém pensava isso. Ele pensava não ser preciso apressar-se em curar.Não se trata nem de sugerir, nem de convencer”7. Nesse serviço já mencio-nado anteriormente, tanto o juiz de execução penal quanto o “psi” desempe-nham suas funções, mas podemos, todavia, notar um ganho do terreno judi-ciário sobre o terapêutico. Como se pudesse existir uma espécie de clínicajudiciária especializada em criminologia disponível ao uso do social! Oterapeuta encontra-se duplamente manipulado, ao mesmo tempo pela justi-ça e pelo paciente (o preso), que espera uma resposta à sua demanda impe-rativa, concernindo diretamente a um insuportável do qual gostaria de livrar-se, para ficar aliviado. O criminoso permanece colado ao seu ato, sem ne-nhuma interrogação no tocante à questão do seu desejo. O terapeuta encon-tra-se, então, instrumentado por uma arma judiciária, fazendo valer sua forçaatravés de um ultimato decisivo: a prescrição terapêutica! “A Psicanálise foidesprezada não apenas por aqueles que demandam, como, também, pelospróprios clínicos. Tais profissionais são solicitados a intervir com um ato aoinvés da fala. Chegar a um fim através de um ‘pôr em ação’ rigorosa da

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12 Tradução pessoal do livro do H. STANGERUP, “L’homme qui veut être coupable”.

8 Tradução pessoal do livro de H. Frignet, sobre o transsexualismo, no qual o autor se refereao que está em jogo nessa complexa relação terapêutica, inserindo muitas vezes o profis-sional numa emboscada (“Le transsexualisme”, Desclée de Brouwer, p. 141).9 J. LACAN, Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia, in “Escritos”, J.Zahar, p. 139.10 Idem, ibidem, p.137.11 “Elas arrancam os olhos como castravam as Bacantes. A curiosidade sacrílega queconstitui a angústia do homem desde as priscas eras, é ela que as anima quando desejamsuas vítimas, elas acossam em suas feridas hiantes o que Christine mais tarde, perante ojuiz, devia chamar em sua inocência, o ‘ mistério da vida’”, (J. LACAN, Primeiros escritossobre a paranóia, in “ Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, Foren-se, 1987, p. 390).

vontade daquele que demanda. Sua avaliação consiste em não mais atenuarum sintoma, aliviar ou acalmar um sofrimento psíquico. Essa atitude excluiqualquer interrogação sobre a articulação da demanda e a posição subjetivadaquele que demanda, anula radicalmente a subjetividade desse a quem elase destina. O médico ou cirurgião, respondendo nesse ponto à demandaatravés de um ato, certamente entrega logo ao paciente o objeto que supõeque possa satisfazê-lo, mas aceita, por aí mesmo, ser reduzido ao papel deinstrumento daquele que o solicitou”8.

Freqüentemente, o apelo feito à psicanálise se reduz a uma técnicade significação ao alcance de todos, como se se tratasse de um contratoestabelecido com o inconsciente, a fim de fixar todos os atos cometidosnum determinismo individual e absoluto, sem deixar de acrescentar uma“concepção sanitária da penalogia”9. O que Lacan quis dizer quando ele afir-mava que a psicanálise resolve um dilema da teoria criminológica: “(...) aoirrealizar o crime, ela não desumaniza o criminoso. Mas ainda, pela mola datransferência, ela dá acesso ao mundo imaginário do criminoso, que podeser para ele a porta aberta para o real”10. Lemos essa frase tendo em vista aquestão da causa e do desejo. Com efeito, o irrealizado do crime seria daordem do não-realizado, da outra cena onde jaz o desejo. O inconscienteconsiste nessa hiância que somente pode ser dita pela lei do significante. Éo meio pelo qual o sujeito pode humanizar-se, falando algo sobre seu ato quevem responder a esse x do desejo11.

A relação entre o desejo do sujeito e o ato cometido não implica ne-nhuma continuidade. O fato de simplesmente colar o ato ao criminoso con-sistiria numa reconstituição de fatos, próprios de uma enquete policial, indu-zindo uma fixação na qual o sujeito se satisfaz da cristalização de seu crimerespondendo a interrogação mais elementar: quem? como? por quê? Nessesentido, não há mais lugar para a dúvida, para o fracasso, e, por conseqüên-cia, nenhum obstáculo ao que possa vir a sustentar o pensamento enquantotal. Além disso, podemos parafrasear a injunção de Lacan – “Não é precisoterapiar…”– para não cair no través inverso, a saber, que também não épreciso psicanalisar o motivo dos atos criminais dos presos. A questão dodesejo nas irmãs Papin não é um paradigma de criminologia, não obstante,ela permite antecipar a relação entre o desejo e a lei do significante a fim demensurar os efeitos disso sobre o sujeito criminoso. Seguindo essa mesmalinha de pensamento, evocaremos a passagem de um livro cujo título susci-taria por si só a curiosidade do leitor: O homem que quer ser culpado12. Seriainteressante citar o prólogo:

“Um homem mata com selvageria sua mulher. Atualmente o negócioseria considerado como uma crônica policial banal. Mas encontramo-nosem alguma parte da Europa, num mundo de pedra, acolhedor e glacial ondetudo é normalizado. Não há mais culpados. Dessa forma, Torben, o assassi-no, é tratado como deve: confiado aos psiquiatras e em seguida posto emliberdade. Ele continua a reivindicar, portanto, sua culpabilidade. Contra aopinião dos peritos da nova ordem social, sociólogos, educadores, ele de-manda a ser julgado. Dispõe-se então de todos os meios para suprimi-lo:drogas, sessões de anti-agressividade, internamento psiquiátrico. Com efei-to, ele representa uma grave ameaça para uma sociedade onde tudo é obri-gatório, até mesmo a felicidade”.

As entrevistas psiquiátricas que se seguem após o assassinato desua mulher ocorrem num tipo de atmosfera, em suma, amistosa, onde paci-

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13 Educadores, psicólogos e sociólogos.14 J. LACAN, Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia, in “Escritos”, p.128.

ente e psiquiatra partilham o mesmo gosto literário. Torben, uma vez libera-do, inicia uma busca desenfreada para obter o reconhecimento de sua culpa-bilidade, mas, que pena, essa palavra foi banida do código da língua. Algunsorganismos encarregados em assegurar o controle da sociedade, entregamo CAF (certificado de aptidão familiar) àqueles aptos a exercer o papel depais. Outros, tal como o INSTRAL (Instituto nacional de racionalização dalinguagem), tomando como referência o texto de Orwell, filtra ou até mesmoelimina qualquer palavra portadora de ambigüidade, permitindo exprimir arealidade de maneira mais habilidosa.

Desde então, podemos ressaltar a existência de um sistema decodificação metalingüística onde o desaparecimento de uma palavra amputao sujeito do sistema de referência significante que poderia vir a restituir suaposição subjetiva. O personagem do romance citado encontra-se “liberado”,embora punido pela impossibilidade de poder recuperar seu filho, e tudo isso,em nome de uma regra de conduta. As palavras tais como culpabilidade,castigo, não existem mais. Ao invés de culpado, Torben obtém o estatuto dedesequilibrado! “Os colaboradores”13, ocupados em assegurar o bem-estarsocial, operam um policiamento mental numa paranoização da vida cotidia-na.

Se retornamos à questão da culpabilidade, em que aspecto podería-mos pensá-la como sendo a mola da responsabilidade do sujeito? “Todasociedade, por fim, manifesta a relação do crime com a lei através de casti-gos cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assen-timento subjetivo”.14 Que o sujeito diga “estou pagando minha dívida (…) souresponsável (…) lamento o que fiz”, isso não é suficiente para liquidar aquestão da culpabilidade. Ela somente se coloca quando o sujeito se engajanuma via segundo a qual seu desejo o situa enquanto dividido. A dívida sim-bólica e a culpabilidade não se reduzem a uma simples confissão enquantodespojo subjetivo. Antes, elas suscitam os impasses do desejo para o sujei-

to numa confrontação com a castração. Ainda que evocar a dívida simbólicana sua articulação com a culpabilidade mereceria algumas precisões quan-do se trata de um sujeito psicótico, neurótico ou perverso, cuja relação àcastração difere radicalmente.

É nesse sentido que tentamos tecer alguns comentários por demaisgerais acerca da demanda nesse serviço acima mencionado, com o intuitode demarcar a distinção entre demanda e necessidade. É apenas a partir dademanda que surge o sujeito desejante. Para a psicanálise, a responsabili-dade interessa diretamente ao sujeito na sua relação com a castração. Afórmula lacaniana – o significante é o que representa o sujeito para um outrosignificante-implica uma determinação do sujeito pelo significante. O queconta é o aspecto heterogêneo da linguagem em oposição à idéia da lingua-gem enquanto instrumento do pensamento. Ora, a referência a esse roman-ce ilustra diretamente essa vontade de transparência, em que uma palavradeve forçosamente implicar uma certeza da ordem do é isso! E se assim for,poderíamos ainda supor algo do sujeito, nesse ponto onde constatamos umverdadeiro ataque ao significante?

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afirmação, a de que não se pode escrever a relação sexual, e por isso, elanão existe. Segundo ele, “(...) nunca superaremos a relação entre essesfalasseres que nós sexuamos como homem e esses falasseres quesexuamos como mulher. (...) sobre esse ponto, não há nenhuma chance deque isso dê certo algum dia; quer dizer, que tenhamos uma fórmula, umacoisa que se escreva cientificamente. De onde a abundância dos sintomas,porque tudo se liga a isso. É nisso que Freud estava certo ao falar do quechama de sexualidade. Digamos que a sexualidade, para o falasser, não temesperança”.

Um observação sobre a escritura do sintoma. No texto A terceira,Lacan localiza-o na cadeia borromeana em um lugar diferente do que apre-sentaria um mês depois, na primeira lição do seminário RSI. Neste, o sinto-ma apresenta-se como efeito do simbólico no real, enquanto que lá, sintomaé o que vem do real, e localiza-se no campo do simbólico. Estaria aí adiferença entre o sintoma clínico (symptôme) e o sintoma estrutural (sinthome)2.

Em outra passagem, a profecia: “Dentro de 10 anos, meus Escritos,mesmo na Itália, mesmo traduzidos do jeito que estão, lhe parecerão ninha-ria, lugares comuns. Porque há algo que é no entanto bastante curioso, éque até mesmo textos, que são textos muito sérios, tornam-se finalmentelugares comuns. Dentro de muito pouco tempo, o senhor verá, se encontraráLacan em todas as esquinas! Assim como Freud! No fim, todo mundo pensater lido Freud, porque Freud está em toda parte, está nos jornais, etc. Issovai me acontecer, a mim também, o senhor verá, assim como poderia acon-tecer a qualquer um que se aplicasse a isso – se se fizessem coisas umpouco rigorosas, é claro, rigorosas em torno de um ponto bem preciso que éo que chamo de sintoma, ou seja, o que não funciona”. Acertou na mosca:chegaram os tempos do Freud explica! Profético ou não, uma coisa é inegá-vel, – o discurso de Lacan em Roma continua provocando.

Uma observação ainda, e em especial, para o rigoroso trabalho depesquisa do grupo de tradução, para encontrar uma tradução justa, com o

2 Sobre essa questão, ler o artigo de Sandrine Malem, Sintoma ou Sinthoma, in: Correio daAPPOA, junho 2002.

A TERCEIRA1

LACAN, Jacques. Cadernos Lacan II. Trad. de ÂngelaJesuino Ferretto; Celina Ary Mendes Garcia; Eri Perrusi;Ester Trevisan; Gilles Garcia; Luiz Alberto de Farias; Ma-ria Roneide Cardoso Gil; Patricia Chittoni Ramos (Grupoinscrito na Association Freudienne Internationale).

É uma posição insustentável,a do psicanalista.

J. Lacan, A terceira

Aterceira retorna: ela volta, fazendo vol-tas, fazendo nós, fazendo discos. O dis-curso de Lacan retorna para nós, desta

vez legível em português. Se suas palavras fluíam em seu francês, rico echeio de trocadilhos, elas agora deslizam também em português, trazidaspela excelente tradução dos colegas que habitam em Paris, mas não perde-ram a escuta e a prática da língua materna. Nesta mesma edição, de pre-sente aos leitores dos Cadernos da APPOA, a entrevista de Lacan à impren-sa, no Centro Cultural Francês, e a abertura do Congresso da EscolaFreudiana de Paris, em Roma, que foi onde Lacan proferiu a conferência ATerceira, a 1° de novembro de 1974.

Nessa conferência, Lacan reafirma sua convicção, sustentada nosSeminários, de que somente pela linguagem matemática – e então pormatemas ou pela topologia – se tem acesso ao Real. Essa conferência nosesclarece: o Real é o que não cessa de se escrever, e, ao mesmo tempo, eleinsiste sobre uma impossibilidade estrutural do sujeito. Pois o Real, o realreal, o verdadeiro real, como disse Lacan, é o enigma que está na origem doser humano: o da impossibilidade da relação entre os sexos. Lacan usaparte das anunciadas 66 páginas dessa conferência para esclarecer essa

1 Título original: La Troisième § In: Lettres de l’Ecole Freudienne de Paris, 1975, n.16, p. 177-203.

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OS CAMINHOS ENTRE APSICANÁLISE E A LITERATURA

WILLEMART, Philippe. A educação sentimental em Proust:leitura de “O caminho de Guermantes”. Trad. de ClaudiaBerliner. São Paulo: Ateliê, 2002. 221 p.

Lançado no final de 2002, A educação sen-timental em Proust: leitura de “O cami-nho de Guermantes” é o segundo livro que

Philippe Willemart dedica ao estudo da obraproustiana. Em 2000, publicou, pela mesma edi-tora, Proust, poeta e psicanalista, no qual a aná-lise recai sobre o texto No caminho de Swann.Já em A educação sentimental em Proust,como o próprio subtítulo indica, o autor examina o texto do terceiro volumeda Recherche, O caminho de Guermantes.

As pesquisas de Crítica Genética configuram profícuo campo deintersecção da Psicanálise com a Literatura, pois duplamente benéfico: in-vestigar os processos de criação, na tentativa de desvendar os nexos pre-sentes nas instâncias da escritura, não só oferece releitura mais ampla,consistente e rica da obra literária como, também, possibilita, às formula-ções psicanalíticas, outras direções na compreensão das relações psíqui-cas implicadas no ato criativo.

Os estudos psicanalíticos em Crítica Genética vêm desenvolvendo etrabalhando pressupostos distintos daqueles adotados pela crítica biográficaou psicobiografia, em que prevalece a concepção de escritura como formade expressão das pulsões ou do desejo do artista. Como afirma Willemart,na Introdução desta obra, a “escritura ou qualquer outra forma de arte defineum contexto ou um Simbólico no qual o artista entra e é moldado [...] o quefaz com que a escritura não forneça ao leitor apenas as fantasias do escritor,mas muito mais as de seus contemporâneos e o simbólico em que todosestão imersos” (p. 20).

mínimo de referência aos termos em francês. Só assim, podemos sentir amusicalidade do discurso de Lacan nas onomatopéias e na cadência res-guardadas no “português brasileiro” atual. Um exemplo, entre muitos: a fa-mosa expressão de Descartes – Penso, logo sou (je pense donc je suis) –Lacan subverte: je pense donc je jouis. A solução encontrada foi: penso,logo gossou. Outro exemplo foi o conceito de lalangue, traduzido como alíngua(“Alíngua não é para ser dita viva porque está em uso. É antes mesmo amorte do signo que ela veicula. Não é porque o inconsciente é estruturadocomo uma linguagem que alíngua não tenha que jogar contra seu gozar, jáque ela se fez desse próprio gozar.”)

Esperamos poder em breve contar com outras traduções corretas comoessa, que nos aproximam de obras fundamentais para nossa formação.

Ligia Gomes Víctora

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AGENDA

PRÓXIMO NÚMERO

RELENDO FREUD: “UMA NEUROSE DEMONÍACA DO SÉCULO XVII”

JULHO – 2003

Reunião da Comissão de AperiódicosReunião da Comissão de Eventos

Reunião da Comissão do Correio da APPOAReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de BibliotecaReunião da Comissão da Revista da APPOAReunião da Mesa Diretiva Aberta aos Mem-bros da APPOA

8h30min16h30min

20h30min20h30min21h20h15min16h15min21h

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

04 e 1807, 14,21 e 2807 e 2108 e 221010 e 2411 e 2524

Em outros trabalhos1, Willemart realiza a análise dos resultados obti-dos pelo confronto dos manuscritos com a versão publicada do texto, dedi-cando-se especialmente a obras de Flaubert, e elabora uma teoria da gêne-se da escritura, na qual adquirem destaque os conceitos de “scriptor” e de“inconsciente genético”.

Ampliando e aprofundando sua construção teórica, em Educação sen-timental em Proust, Willemart seleciona 11 fragmentos de O caminho deGuermantes e examina-os na “busca” de identificar os mitos individuais apre-sentados pelo texto. No entanto, embora focalize especialmente passagensdeste volume, face à temática e à própria estrutura narrativa da obra proustiana– em que se observa a ausência de linearidade, provocada por rupturas espácio-temporais, e a fragmentação dos episódios, apresentados como conteúdosda memória que emergem voluntária e involuntariamente – Willemart estabe-lece articulações dos temas examinados com o todo da obra, além de ofere-cer ao leitor reflexões sobre a bibliografia crítica que recentemente tem seproduzido na França sobre a obra de Proust.

Para essa tessitura, contribuem as habilidades do pesquisador e dopsicanalista, e dela resultam pontos de aproximação entre algumas das cons-truções do texto proustiano e a teoria psicanalítica.

É com essa perspectiva que, partindo da importância que a temática do“nome” adquire na obra proustiana, Willemart aborda as relações entre o nome,a imagem idealizada e a realidade, examina o modo como o olhar opera noregistro do Real e do Imaginário e o lugar dos “lugares da lembrança” no desejoproustiano, indica a estruturação de um conceito de “fantasma” e de uma carto-grafia do desejo na obra de Proust e constata a construção de mitos individuaismediante a harmonização de objetos banais – o pião, o capacho, o nome, osexcrementos, a boneca interior, a fronteira imprecisa, o “eu” proustiano, o rosto,a pereira anjo e árvore... – que constituem um campo intermediário entre oimaginário e o real, de forma a comprovar o “saber” que a escritura revela e oconhecimento das paixões da alma que a arte nos oferece.

Henriete Karam

1 Cf. as seguintes obras de Willemart: Universo da criação literária, Edusp, 1993; e Bastido-res da criação literária, Iluminuras, 1999.

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2a Tesoureira: Luciane Loss JardimMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, Ângela Lângaro Becker,Carmen Backes, Clara von Hohendorff, Edson Luiz André de Sousa,

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Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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N° 115 – ANO XN° 115 – ANO X JULHO JULHO – 200– 200 33

O OBJETO DA PSICANÁLISEO OBJETO DA PSICANÁLISE

S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 3

SEÇÃO TEMÁTICA 9O ELEMENTO INFINITOO ELEMENTO INFINITONO NÓ BORROMEANONO NÓ BORROMEANOJean-Jaques TyszlerJean-Jaques Tyszler 1111LIÇÃO XXIV (OU O QUE FALTOULIÇÃO XXIV (OU O QUE FALTOUNO OBJETO DA PSICANÁLISE)NO OBJETO DA PSICANÁLISE)Ligia VíctoraLigia Víctora 2121A TELA NO QUADROA TELA NO QUADRODenise GickDenise Gick 2929A A APOSTAAPOSTA DE LACAN DE LACANOtávio Augusto Winck NunesOtávio Augusto Winck Nunes 3434ECREVER É PRECISOECREVER É PRECISOAnna Irma CallegariAnna Irma Callegari 3838

SEÇÃO DEBATES 47OS BOMBEIROS DA ALMA!OS BOMBEIROS DA ALMA!Celina GarciaCelina Garcia 4747RESENHA 56“A TERCEIRA”“A TERCEIRA” 5656“OS CAMINHOS ENTRE A“OS CAMINHOS ENTRE APSICANÁLISE E A LITERATURA” 59PSICANÁLISE E A LITERATURA” 59

AGENDA 61