8
O vazio acima traduz o silêncio que imperou no Brasil durante os anos de chumbo. Entre 1964 e 1985, militares governaram o país a partir de um golpe contra o governo de João Goulart em 1º de abril, impondo um período de violência, censura e arbitrariedade. Cinquenta anos depois, os brasileiros ainda buscam a verdade e têm o direito de entender os desdobramentos de duas décadas que esvaziaram de sentido a vida de muitos. O Editorial J mergulhou em algumas histórias daqueles tempos de medo e sobressaltos, mas também de resistência. Neste caderno especial de oito páginas, o leitor conhecerá como a repressão montou um aparato de vigilância e perseguição no Interior do Rio Grande do Sul, Estado-chave para o regime conter qualquer possibilidade de reação aos golpistas. O sistema criou filiais do temido Dops em dez municípios gaúchos. Também mostramos como a mídia, de uma maneira geral, aliou- se aos militares e civis que urdiram a derrubada de Jango. Por meio de editoriais e coberturas parciais dos acontecimentos, a imprensa agiu como aliada dos grupos que traçaram o objetivo de afastar do poder o governo legitimamente eleito. Mesmo com o clima político asfixiado pela censura, houve indignação e mobilizações para mostrar que alguma coisa de errado atormentava a normalidade política. Fotógrafos usaram as paredes de prédios nas ruas do centro da Capital para compartilhar imagens vetadas ou que poderiam soar provocativas - um movimento de reação àqueles anos de vazio e silêncio. ABRIL/MAIO 2014 • FAMECOS/PUCRS WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIALJ CADERNO ESPECIAL - 50 ANOS DO GOLPE DE 1964

Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Caderno especial encartado na 14ª edição do Editorial J

Citation preview

Page 1: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

Ovazio acima traduz o silêncio que imperou no Brasil durante os anos de chumbo. Entre 1964 e 1985, militares governaram o país a

partir de um golpe contra o governo de João Goulart em 1º de abril, impondo um período de violência, censura e arbitrariedade. Cinquenta anos depois, os brasileiros ainda buscam a verdade e têm o direito de entender os desdobramentos de duas décadas que esvaziaram de sentido a vida de muitos.

O Editorial J mergulhou em algumas histórias daqueles tempos de medo e sobressaltos, mas também de resistência. Neste caderno especial de oito páginas, o leitor conhecerá como a repressão montou um aparato de vigilância e perseguição no Interior do Rio Grande do Sul, Estado-chave para o regime conter

qualquer possibilidade de reação aos golpistas. O sistema criou filiais do temido Dops em dez municípios gaúchos. Também mostramos como a mídia, de uma maneira geral, aliou-se aos militares e civis que urdiram a derrubada de Jango. Por meio de editoriais e coberturas parciais dos acontecimentos, a imprensa agiu como aliada dos grupos que traçaram o objetivo de afastar do poder o governo legitimamente eleito.

Mesmo com o clima político asfixiado pela censura, houve indignação e mobilizações para mostrar que alguma coisa de errado atormentava a normalidade política. Fotógrafos usaram as paredes de prédios nas ruas do centro da Capital para compartilhar imagens vetadas ou que poderiam soar provocativas - um movimento de reação àqueles anos de vazio e silêncio.

ABRIL/MAIO 2014 • FAMECOS/PUCRSWWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIALJ

CADERNO ESPECIAL - 50 ANOS DO GOLPE DE 1964

Page 2: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

historiadora Evelise Zimmer Ne-ves, se devia, principalmente ao fato de que, na década de 1960, a maioria (55%) da população bra-sileira estava longe dos grandes centros urbanos. No Rio Grande do Sul, essa porcentagem era ainda maior, 62% dos gaúchos estavam na zona rural. “A presen-ça [da repressão] no interior era indispensável”, conclui Evelise. No total, dez Sops foram distribu-ídos de maneira estratégica pelo Estado, nas cidades de Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, La-goa Vermelha, Osório, Rio Gran-de e Santo Ângelo.

Três Passos, onde Dorneles vivia com a família, estava sob acompanhamento do Sops de Santo Ângelo. Mais velho de oito irmãos, ele ingressou na vida po-lítica com a Legalidade e a defesa da posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Na época, era professor e, pelas cidades onde passou lecionan-do, sempre buscou mobilizar a população em prol de melhorias, como escolas, times de futebol, igrejas e até reforma agrária. Sua família, respeitada e influen-te, sempre esteve engajada na política e, por essa razão, eram vigiados de perto.

Em um domingo de abril de 1964, o primeiro mês da ditadu-ra militar (1964-1985), instau-rada no Brasil em 31 de março daquele ano, a casa de Dorneles foi invadida por 41 militares. “Fizeram uma limpa na minha casa. Não fiquei nem com a faca de cozinha. Levaram tudo”, conta. Levaram também seu pai, Euzébio Teixeira Dornelles, preso, acusado de participar do Grupo dos 11 e solto na mesma noite. Na cozinha, abaixo da

A cronologia segundo o @golpe1964

Março, 13 - Comício das Reformas, na Praça da República, no Rio de Ja-neiro, com a presença do presidente João Goulart.

Março, 31 - Gen. Mourão dá início ao golpe em Juiz de Fora (MG), horas antes do combinado. As tropas se dirigem ao Rio de Janeiro.

#Um perfil criado pelo Editorial J no Twitter recontou episódios do golpe. Nas próximas páginas, o jornal publica uma seleção dos principais posts:

#

ABRIL/MAIO DE 20142

O Interior perseguido

P O R Bruna Zanatta (3º sem.) e Júlia

Bernardi (3º sem.)

M uitos preferem esquecer o ano de 1964. Porém, com oito décadas de

vida, Valdetar Antônio Dorneles ainda lembra de tudo. Com o apoio de Leonel Brizola, então exilado no Uruguai, Dorneles convocou um grupo de rebeldes na primeira guerrilha rural con-tra o governo militar, na cidade de Três Passos, a 470 km da Capital. A operação, que contava com 20 homens, acabou fracas-sando. Seus militantes foram cruelmente torturados, e o grupo ficou 11 meses sem qualquer co-municação, encarcerado. Preso por quatro anos, cumpriu pena em cinco prisões e carrega na pele cicatrizes daquele tempo de lutas.

O militante é uma das tantas vítimas da repressão no interior do Rio Grande do Sul, Estado que recebeu atenção especial dos militares, pela resistência à tentativa de golpe de 1961, no movimento que ficou conhecido como Campanha da Legalidade. Já nessa época, segundo a histo-riadora Caroline Bauer, foram criadas as Seções de Ordem Política e Social (Sops), que funcionavam como uma espécie de filial do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e agiam dentro das delegacias regionais de cada cidade, vi-giando de perto a atuação de possíveis rebeldes no Interior. Essa comunicação, porém, não era exclusividade do sistema de repressão gaúcho. “O diálogo entre o Dops, nas capitais, e as delegacias regionais, no Inte-rior, acontecia em todo o terri-tório nacional, porém, no Rio Grande do Sul acontecia através de um departamento especial”,

Dorneles começou a ser perseguido com a atuação no Grupo dos 11

explica Caroline.Esses braços operacionais

elaboravam relatórios diários sobre a movimentação política, ainda que nada de anormal ti-vesse ocorrido na região. Ao fim do dia, um resumo de todas as ocorrências era encaminhado ao Dops, na Capital. Todos os movimentos articulados pela sociedade estavam sob vigilância. Em debates ou discussões nas escolas, os professores e organi-zadores eram minuciosamente

observados, para saber se agiam ou pensavam contra ou a favor do regime militar. Essa era, em suma, a principal função do Sops. Caroline ressalta que a filial tinha a função de vigiar maior até do que a de reprimir. Segundo a dis-sertação de mestrado de Vanessa Lieberknecht, dois fatores eram mencionados com frequência nos documentos: a preocupação com a padronização da informação, para que se pudesse operar de forma mais eficiente e sem erros;

e a diferenciação entre informe e informação. Os informes eram produzidos a partir de fatos con-cretos ocorridos na região, acu-sando um indivíduo específico. Já as informações não tinham uma comprovação efetiva do fato. Era preciso confirmação, por parte do delegado para que a informação (Código INFE) se tornasse um informe (Código INFO). A pro-dução desses informes garantia o controle da população e a repres-são.Toda essa vigilância, para a

COM O OBJETIVO DE CRIAR UMA TEIA DE VIGILÂNCIA, DEZ CIDADES GAÚCHAS TINHAM FILIAIS DO TEMIDO DOPS, QUE ERAM CONHECIDAS COMO SOPS

Guilherme Almeida: (5º sem.)

Page 3: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

Março, 31 - Gen. Ladário é recebido por Jango, que lhe entrega o co-mando do III Exército e o ordena se deslocar para o Sul do país.

Março, 31 - Gen. Kruel apela para Jango se libertar do cerco das forças populares. O presidente se nega.#

Março, 31 - Juscelino avisa a Jango sobre as ações em Minas Gerais. O Pre-sidente não acredita. #

ABRIL/MAIO DE 2014 3

pistola fixada na parede que foi levada pelos soldados, estava uma pasta contendo documen-tos e atas referentes aos grupos. A casa foi revirada, mas a pasta ficou ali. Dias depois, Dorneles, temendo que mais famílias fos-sem prejudicadas, retirou-a do local e ateou fogo. Hoje, ele se arrepende: “Eu podia ter só en-terrado aquela pasta. Aquilo era documento histórico”.

O Grupo dos 11 era formado por colonos de uma região, que se comprometiam a garantir a legalidade constitucional e a con-cretização das reformas agrária e urbana. Apesar de terem sido idealizados por Brizola, não che-garam a ter uma coordenação geral e centralizada. Para alguns setores sociais – militares, inte-grantes de partidos como PSD e UDN e a maioria da Igreja Cató-lica –, essas organi-zações eram vistas como subversivas e integradas ao “mo-vimento comunista internacional”. Em sua tese, Evelise conta que, em al-gumas paróquias no interior do Es-tado, os filhos dos integrantes desses grupos não eram nem batizados.

Segundo a edi-ção de 10 de abril de 1965 da extinta revista Manchete, o número de Grupo dos 11 chegou a 24 mil, em Santa Catarina e Rio Gran-de do Sul. A partir do Golpe de 1964, a perseguição a quem estivesse ligado a esses coman-dos só aumentou. “Na verdade, a acusação de pertencer a essa organização foi um amplo guar-da-chuva sob o qual os novos donos do poder – civis e milita-res – enquadraram toda sorte de inimigo político”, avalia Evelise. Mais tarde, a maior parte dos indiciados foi absolvida por absoluta falta de provas. Ainda assim, naquele momento, para Dorneles, o cenário mudou. “De ali em diante, para o exército, éramos comunistas”, lembra.

No Uruguai, Brizola enviou o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e Albery Vieira dos Santos que, mais tarde, seria acusado de ter se infiltrado e en-

tregado o movimento. Dorneles ficou encarregado de mobilizar os colonos. No total, 23 homens, entre eles, seu pai, Euzébio Tei-xeira Dornelles, e seu irmão Abrão Antonio Dornelles, dei-xaram suas casas para fazerem parte da primeira guerrilha. Ao se despedir da mãe e dos irmãos, o alerta: “Se disserem que eu morri, não acreditem”.

A Guerrilha de Três Passos começou em 25 de março de 1965. Os rebeldes tomaram o presídio e o destacamento da Brigada Militar de Três Passos, levando armas, munição e fardas. Deixaram a cidade sem comuni-cação telefônica, cortando os fios da rede e ainda invadiram a Rá-dio Difusora, onde Odilon Vieira

Bruhn transmitiu para toda a popu-lação um manifesto contra a ditadura militar: “As armas que derrubaram nossos presiden-tes e governadores hoje se levantam para reestruturar a democracia desse país”, explicaram.

No caminhão M e r c e d e s a n o

1939, o grupo pas-sava por cidades pe-

dindo apoio e realizando saques. Escondiam-se no mato. Quando o Exército os encontrou, eles já estavam no Paraná, na ci-dade de Leônidas Marques (PR). As ordens do coronel eram de que não atirassem em ninguém para matar. Ao verem o grupo diminuir de 20 para 10 integran-tes, resolveram se entregar, mas acabaram caindo em uma em-boscada. O grupo foi capturado e preso no Quartel General de Foz do Iguaçu (PR), quartel mais pró-ximo da região, apenas dois dias depois do começo da guerrilha.

No Paraná, começou aquela que Dorneles considera a fase mais dura de sua vida. Nos inter-rogatórios, negou que tivessem tido o apoio de Brizola, e tomou a responsabilidade da guerrilha para si quando o coronel Jef-ferson pensou em se matar. Ele pagou caro por sua astúcia. Por quatro anos, oscilou por prisões

entre Porto Alegre e cidades do Paraná até ser liberto, em 1968. Ele lembra das sessões de tortura pelas quais passou: “Enrolavam uma linha de pescar nos nossos dedos, ‘tu conhe-ce Fulano?’ ‘Não’, e puxavam aquela linha. A linha corta até o osso”. Em Foz do Iguaçu, passou 51 dias em uma sala com 48 homens e apenas um banheiro. O pior momento veio em Porto Alegre. Na sede do 18º Regimen-to de Infantaria, que funcionava na Avenida Padre Cacique, onde hoje se localiza a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), Dorneles passou cinco dias sem saber se era dia ou noite. “O pior castigo que tive, não foi o pau, não foi a corda, nem o enforca-mento. Nada me abalou tanto quanto aqueles cinco dias. Des-ligado do mundo, não se ouvia nada”, lembra.

Alguns não conseguiram resristir tanto. Dorneles conta com pesar, que o ex-sargento da Brigada Militar Albery Vieira dos Santos entregou o grupo. Homem da confiança de Brizola, Santos teria atuado dentro do movimento, como agente do governo militar, e, mais tarde, em interrogatório, entregou todo o esquema da Guerrilha de Três Passos, conforme trechos do seu depoimento que relatam que “dotado de privilegiada memó-ria, menciona grande número de pessoas que estão ligadas ao esquema contrarrevolucionário de Leonel Brizola”. Segundo Dorneles, “muita gente inocente apanhou por causa dele”. O ir-mão de Albery, José Soares dos Santos, foi uma vítima fatal da repressão, morrendo de forma violenta em 1977, também em Foz do Iguaçu. Ao que tudo indica, uma ação de queima de arquivo.

O Dops deixou de existir em 1982, e junto com ele, o Sops. Cinquenta anos depois, hoje advogado, casado, pai de três filhos, Dorneles ainda mora em Três Passos e reafirma seu compromisso com o Brasil: “Se a pátria for ultrajada e preci-sar de um voluntário, eu saio outra vez”.

A conexão da vigília

Informe diário produzido por Delegacias Regionais para o Sops de Lagoa Vermelha

Solicitação do Dops pedindo informação para o Sops de Lagoa Vermelha

Informe do fim da ditadura ainda acusa presença do Grupo dos 11 na região

“Dali em dian-te, para o Exército, éramos co-munistas.”Valdetar Dorneles

Page 4: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

P O R Thamiris Mondin (5º sem.)

A atuação da imprensa nos últimos dias do governo de João Goulart antes do golpe militar de 1964 alinhavou o discurso fervoroso

das classes conservadoras brasileiras, que enxergavam uma ameaça nas reformas de base propostas pelo presidente. A mídia na-cional da época concentrava suas forças nos periódicos impressos, que detinham grande influência sobre a sociedade civil. O esforço pela neutralidade, ainda que superficial, só viria depois. Com as redações pouco pro-fissionalizadas, a opinião naquele período não ficava restrita aos editoriais: as páginas também pingavam ideologia.

A tensão da Guerra Fria e a campanha anticomunista davam o tom da conjuntura histórica de 1964. A imprensa destacava o suposto perigo de uma “cubanização” do Brasil a partir das ideias de transformação social do governo federal. “A mídia da época representava os interesses das camadas mais ricas da população e cumpriu esse papel de reagir às reformas de base de Jango como quem reage diante do medo de perder seus privilégios. Uma mídia de classe, ideologicamente marcada e que se deixou envolver naquela trama da Guerra Fria, acreditando ou fingindo acreditar que o Brasil estava à beira de uma revolução co-munista”, explica o historiador e jornalista Juremir Machado da Silva, autor do livro

A cronologia segundo o @golpe1964

Março, 31 - Gov. Carlos Lacerda é informado que o Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, ordenou um ataque ao Palácio da Guanabara.

Março, 31 - Gen. Zerbini intercepta o Esquadrão Motorizado. O General Aluísio diz que foi forçado a aderir à manobra do Gen. Kruel.

# #Março, 31 - Jango recebe um bilhete do Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, lhe informando da movimentação das tropas em Minas.

#

Conspiração impressa nos jornais Os 50 anos do golpe

que instalou a ditadura militar no Brasil espalham uma sensação de constrangimento pela imprensa brasileira. Nos idos de 1964, os grandes grupos midiáticos assumiram um objetivo claro: derrubar o presidente João Goulart. O Editorial J buscou registros que ilustram a posição dos jornais da época e mostram como a imprensa integrou o conjunto de forças dominantes do país que, temerosas pela postura reformista de Jango, ajudaram a consolidar o golpe de Estado.

1964:golpe midiático-civil-militar .Dos jornais do eixo central do país sur-

gia um discurso replicado por todo o Brasil. Os opositores declarados do governo Jango eram essencialmente os diários paulistas Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo e os cariocas O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa, este de Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara e inimigo político de Getúlio Vargas, de quem Jango foi ministro do Trabalho e herdou o posicionamento refor-mista. Os editoriais do Correio da Manhã de 31 de março e 1 de abril de 1964, intitulados de “Basta!” e “Fora!”, foram o marco da atu-ação da imprensa na construção do golpe. Com um discuro imperativo, clamavam pela saída do presidente.

As propostas de Jango, apesar do viés social, propunham movimentação eco-nômica e consequente manutenção do sistema capitalista. Mesmo assim, ele era diariamente associado aos ideais soviéticos. Destacado como imprudente e ignorante, o presidente, que era um social democrata, foi pintado nos jornais como uma personali-dade fraca e influenciada pela aproximação com o comunismo. Estas acusações susten-taram a ideia do contragolpe, que legitimava a intenção de derrubar um governante

eleito democratica-mente em nome da preservação da lega-lidade. Uma esqui-zofrenia política hoje tão evidente, que deixa dúvidas sobre a ingenuidade dos jornalistas que parti-ciparam do golpe.

Entre os intelec-tuais que empresta-ram suas palavras para vociferar con-tra Jango, a maioria purgou o arrepen-dimento quase ime-diato após o golpe. Muitos, no entanto, se mantiverem fiéis ao regime militar, que ainda apareceria na imprensa como uma revolução lega-lista ou um contragolpe, mesmo depois de 1965, quando os militares não respeitaram o que seria o final do mandato de Jango e permaneceram no poder. “O Correio da Manhã reconheceu imediatamente que ha-via uma ditadura e tentou combatê-la mas

3

1

2

Editorial do Correio da Manhã de 31 de março de 1964 foi um marco da ação golpista

ABRIL/MAIO DE 20144

Page 5: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

Março, 31 - Gen. Assis Brasil, chefe da Casa Militar, pede informações ao Gen. Zerbini, que acredita não possuir forças para enfrentar o II Exército.

Abril, 1 - Gen. Morais Âncora sugere ao presidente deixar o Rio de Janeiro por falta de segurança.

Março, 31 - Kruel emite proclama-ção de que o II Exército aderiu ao golpe para “salvar a pátria, livrando-a do jugo vermelho”.

## #

Conspiração impressa nos jornais ainda assim, sempre que falava do Jango, falava mal. O jornal do Brasil falava mal do Jango e gostava do regime. O Globo também. A Tribu-na da Imprensa se arrependeu porque acreditava que, com a queda do Jango, o governo iria para o colo de Carlos La-cerda, e não foi”, eclarece Juremir. Passados 50 anos, os grandes veículos ten-tam espiar a culpa, destacando princi-palmente o período da censura, mas o estrago foi irreme-diável.

No Rio Grande do Sul, o Diário de Notícias, um braço dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, estampava nos seus editoriais a insatisfação com João Goulart e, especialmente, com o decreto da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), um passo decisivo para a

implantação da reforma agrária. A campa-nha de desmoralização do governo federal condizia com o público do jornal, as classes que se autodenominaram “produtoras” durante a tentativa de golpe de 1961, que encontrou a resistência na campanha da Le-galidade liderada por Leonel Brizola. Rura-listas tinham espaço privilegiado no Diário e acusavam Jango de populista e incoerente, um traidor, já que ele era também um pro-dutor rural. Eles representavam na época a classe mais conservadora da sociedade, em um país predominantemente agrícola e cujo latifúndio era a expressão maior da riqueza.

Embora a imprensa gaúcha não reper-cutisse com intensidade no cenário nacio-nal, era essencial para as forças direitistas que o aparato midiático do Rio Grande do Sul mantivesse a opinião de seu público no caminho da campanha contra Jango, para evitar insurreições como a de 1961. “O Rio Grande do Sul sempre foi muito vi-sado pelo regime em função do eleitorado trabalhista e pelos simpatizantes de Jango e Brizola”, explica o historiador e pesqui-sador de ditaduras de segurança nacional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Enrique Padrós. Apesar da atmosfera midiática predominantemente contrária ao governo Jango, houve também

resistência dentro da imprensa. O jornal Úl-tima Hora, do carioca Samuel Wainer, era o respiro janguista no país, em especial na sua versão gaúcha, por se tratar de um veículo com trajetória fortemente ligada à Getúlio Vargas. Sufocado pela censura, o periódico se desfez de suas sedes regionais e encerrou as atividades definitivamente em 1971.

João Batista Melo Filho era redator da Agência Nacional em 1964, a agência de notícias oficial criada durante o Estado Novo como um braço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Por se posicionar a favor do governo de João Gou-lart, como boa parte dos funcionários, foi demitido em 5 de março de 1964. “ Eu fui incluído entre os afastados porque esta era a minha posição, depois de ter acompanhado muito de perto o movimento da legalidade em 1961”, lembra Batista. Na época Batista também trabalhava como diretor de telejor-nalismo na TV Piratini. A sua demissão foi solicitada ao diretor da emissora, que recu-sou. Mas o nome de Batista não apareceria nos créditos do telejornal até 1977. Para ele, não é possível dissociar o golpe de Es-tado dos interesses da mídia da época. “Os grandes veículos eram das famílias conser-vadoras, passavam de geração para geração. Com as imagens das marchas da família com Deus, o papel fundamental da impren-sa foi transmitir a sensação de que toda a nação estava contra o governo”, conclui.

4

5

1 Artigos do Diário de Notí-cias, de março de 1964, atacam Jango, acusando-o de entravar o desenvolvimento brasileiro.

2 Correspondente do O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, em edição de 6 de abril de 1964, fala sobre os louvores da Argentina à participação da imprensa brasileira no Golpe.

3 Capa do O Globo, de 3 de abril de 1964, exalta a Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade como “Marcha da Vitória”.

4 Nota do jornal O Estado de S. Paulo, de março de 1964, desqualifica João Goulart, destacando-o como inculto e ironizando seus conhecimentos políticos.

5 Notícia do O Estado de S. Paulo, de 3 de abril de 1964, anuncia o primeiro Ato Institu-cional.

Roteiro de ataques

Editorial do Correio da Manhã de 31 de março de 1964 foi um marco da ação golpista

ABRIL/MAIO DE 2014 5

Page 6: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

A cronologia segundo o @golpe1964

Abril, 1 - Jango informa Raul Ryff, seu assessor de imprensa, que está indo para Brasília.

Abril, 1 - Jango debate com seus aliados se deve permanecer em Bra-sília ou se deslocar para o Rio Grande do Sul.

#Abril, 1 - Leonel Brizola visita o Gen. Ladário e sugere uma requisição das emissoras de rádio e TV, para fazer propaganda da Legalidade.

#

ABRIL/MAIO DE 20146

Retratos da ditaduraFOTÓGRAFOS ORGANIZARAM MOSTRA LIVRE QUE APROXIMOU REPORTAGENS

DA POPULAÇÃO E ENFRENTOU REPRESSÃO DO REGIME MILITAR

Jorge Aguiar registrou agressão truculenta de policiais militares contra estudantes

P O R Caroline Ferraz (5º sem.)

A Rua da Praia já foi um local para dar voz a fotojornalistas, quando as redações

se calavam em apoio à ditadura e esqueciam temáticas sociais. Por quase dez anos e com o ob-jetivo de democratizar o acesso à arte fotográfica, um grupo de profissionais organizou a Mostra Livre de Fotografia. Para alguns fotógrafos, foi um meio de dar visibilidade ao seu trabalho. Para outros, uma forma, aberta ao público, de contestar o momento em que se vivia. Iniciou em 1976 com exposições de profissionais e, como era livre, contava até mesmo com a participação de arquivos pessoais daqueles que passavam pela Praça da Alfânde-ga, em Porto Alegre.

Já na primeira edição, em 1976, na Praça da Alfândega, a exposição foi marcada por vendaval e chuva, situação que deixou registros na memória daqueles que participaram. Mas o evento ocorreu mesmo com as fotos molhadas e as imagens no chão. No segundo ano, a Empresa Porto Alegrense de Turismo (Epatur) ofereceu uma área coberta, para evitar o pro-blema. Quem passava pela Rua da Praia acompanhava de perto o material exposto, os quais, segundo os participantes, não tinham exclusivamente um viés de denúncia.

Ricardo Chaves, o Kadão, por muito tempo editor de Fo-tografia de Zero Hora, fala de uma série de imagens que fez em Londres, no Speak Corner, em que há um grande número de pessoas com as mais variadas ideologias e expressam suas opi-niões. Para o fotógrafo, mostrar estas fotos era uma contradição

com a situação do Brasil. “Expus pra mostrar que em algum lugar do mundo as pessoas podiam dizer o que queriam e não eram punidas”, explica.

A escolha do local não ocor-reu por um motivo qualquer. Além de ser um ponto de grande circulação diária, era próximo à Companhia Jornalística Caldas Júnior, empresa em que traba-lhavam boa parte dos fotógrafos que expunham seu material. En-tre eles, Baru Derquin, apontado como um dos idealizadores da Mostra Livre. Junto a Baru, Juan Carlos Gomez, um uruguaio que saiu do país por causa da ditadu-ra e foi recebido no jornal Zero Hora para trabalhar como repór-

ter fotográfico. Eles organizaram a primeira edição. A intensão de trazer os trabalhos para a Rua da Praia foi de aproximar a fotografia do público. “O que pretendíamos ali era conseguir um espaço para mostrar nosso trabalho, não apenas com cunho militar, mas de opressão social”, esclarece Gomez. Havia diver-sidade nas fotografias, pois elas não reportavam apenas ações dos órgãos de repressão.

Seu caráter livre também deu suporte a uma pluralidade de interesses. Daniel de Andrade integrou-se à mostra na década de 1980. Ele conta que foi uma forma de dar maior visibilidade ao seu trabalho como fotojorna-

lista, uma vez que a exposição já estava consolidada. Com a colaboração da Epatur, foi criado um prêmio que elegia as melho-res fotografias a cada ano. Os vencedores recebiam um valor de 10 mil cruzados. Ao mesmo tempo em que atraiu partici-pantes, a premiação também afastou idealizadores, como Luiz Abreu. Ele participou da primei-ra edição e afirma que eleger a melhor fotografia não era a ideia inicial. “Não me agradou. Estava quebrando o espírito original da mostra, por que estava propon-do um tema e com prêmio em dinheiro. Já não seria tão livre assim, alguns botariam lá por-que queriam ganhar o prêmio da

Epatur”, explica.Abreu também participou da

concepção da Mostra, a partir de um conceito “anárquico, que dentro do período e da proposta era coerente com o que a gente pensava e com o momento em que a gente vivia”. O termo livre ligado à exposição dizia respeito à igualdade entre aqueles que colocavam suas fotografias no varal. Havia consenso sobre a necessidade de tornar democrá-tica a arte fotográfica. “A gente renegava a ideia de galeria por que era muito elitizado. Achava que o espaço verdadeiro para a foto deveria ser a rua, onde o público podia olhar”, completa Abreu.

Page 7: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

A mostra na Praça da Al-fândega ocorreu até meados da década de 1980. Para Eduardo Tavares, repórter que partici-pou de diversas edições, um dos motivos para que ela não continuasse, além do diferentes rumos que tomaram as carreiras dos fotógrafos organizadores, está a abertura política e o fim do regime militar. Trabalhar duran-te o regime militar não foi fácil para os fotógrafos que iniciavam suas carreiras. Enquanto na rua repórteres se arriscavam ao ten-tar fotografias que desafiassem o olhar dos militares, nas redações nem sempre estes trabalhos vi-nham a público.

Tavares, fotógrafo há 40 a n o s , c o n t a que era cha-mado de louco por fotógrafos profissionais q u a n d o c o -meçou, pois ficava em cima da cena com suas lentes, enquanto os outros acom-panhavam de longe com te-le-objetivas. Além disso, ele lembra que, em situações de aglomera-ção de repór-teres , como nas visitas a Porto Alegre do presidente-general João Figuei-redo (1979-1985), os agentes de segurança seguravam pregos para afugentar os jornalistas que tentavam se aproximar da comitiva presidencial.

Como Tavares, diversos fotógrafos eram jovens e ainda mantêm na memória os acon-tecimentos de um período mar-cado pela autocensura e pela censura dos militares no poder. Jorge Aguiar, 58 anos, chegou a publicar materiais sem o seu crédito, pois receava a reper-cussão que poderia ter a divul-gação de fotos que não fossem percebidas pela censura. Em conversa com a reportagem do Editorial J, ele se comoveu ao lembrar de colegas que foram

presos. “Eu me emociono ao falar sobre este assunto, por-que teve colegas que sumiram, foram presos, torturados e perderam suas vidas”, declara.

Luiz Ávila também enfren-tou a censura na Zero Hora, jornal que foi criado em 4 de maio de 1964, após o fecha-mento do diário Última Hora. Ele lembra que, como boa parte dos trabalhos acabavam por não ser publicados, os repór-teres fotográficos expunham seu material em frente à Loja Guaspari, na Avenida Borges de Medeiros. na Capital.

O s t r ê s f o t ó g r a -fos – que mais tarde parti-ciparam da Mostra Livre –

e x p u n h a m seus materiais ali, já no fim d o p e r í o d o considerado de maior re-pressão mili-tar (do AI-5, em 1968, até 1 9 7 4 ) c o m o forma de re-sistência po-lítica. Profis-s ionais com t r a b a l h o d e maior viés po-lítico colavam suas fotos na parede da loja, sem assinatu-ra, e logo se

afastavam para acompanhar as reações do público que passava pela rua. Eles se mantinham afastados, também, porque não tardava para que as fotografias fossem retiradas por militares fardados ou infiltrados entre os transeuntes.

Aguiar lembra que estas ações não tinham data mar-cada para ocorrer, até mesmo porque existia um medo cons-tante de que a espionagem do governo pudesse descobrir e levá-los presos. Outra tática usada, até mesmo para repor-tagens cotidianas, era nunca andar sozinho para que não ocorresse de serem levados para esclarecimentos no De-partamento de Ordem Política e Social (Dops).

Abril, 2 - Ignorando protestos dos deputados janguistas, presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declara vaga a Presidência.

Acesse todos os posts com a reence-nação da derrubada de João Goulart acessando www.twitter.com/ golpe1964:

#Abril, 1 - Jango deixa Brasília rumo a Porto Alegre, usando um avião menor que o planejado. #

ABRIL/MAIO DE 2014 7

Luta com imagens

Luiz Abreu documentou varal, que retratava temáticas variadas

+Acesse o site com o conteúdo do Histórias para Lembrar

+

Ricardo Chaves, o Kadão, expôs imagens feitas fora do país

Coojornal destaca primeira Mostra

Histórias

Relatos sobre a ditadura de 1964

para lembrar

Meio século é pouco para a história de um país, mas é muito tempo para que se corra o risco de perder a memória. Em 2014, completam-se 50 anos do golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil. Ela durou até 1985. Antes que a memória perca o viço, deve-se ouvir e registrar a voz de quem viveu esse período de arbítrio, quando o terrorismo de Estado se impôs. Alguns tiveram atuação no combate ou na manutenção do regime de exceção; outros, viveram o período sem envolvimento direto. Há ainda aqueles que guardam lembranças, mesmo que tenham nascido depois do fim da ditadura.

A memória de um país é coletiva. Ao mesmo tempo, individual. Da singularidade de vidas, surgem narrativas que abrem caminhos para se entender um tempo. Histórias para lembrar se inscreve na perspectiva de dar voz a 31 sujeitos. O militante que combateu e foi preso. Os jornalistas que tentaram contar o que se passava. O rapaz que descobriu que sua mãe foi torturada. O filho do torturador que descreve os traumas de sua família. Há também os entusiastas, que enaltecem o regime de 1964. E quem vive diariamente com a ausência e que, décadas depois, luta para ter o direito de pelo menos sepultar o familiar desaparecido.

Os depoimentos do livro em www.eusoufame-cos.net/editorialj/his-toriasparalembrar

Page 8: Editorial J - Especial 50 anos do Golpe - Abril/Maio de 2014

P O R Anselmo Loureiro (3º sem.)

Jornalista e pesquisador acostu-mado a colecionar polêmicas, Juremir Machado da Silva comprou mais uma. Desta vez, ao lançar um livro que rela-ciona mídia e ditadura militar (1964-1985) no Brasil. Autor de 34 obras, seus dois últimos lançamentos abordam fatos ligados, de alguma forma, aos 21 anos do regime militar no país: Jango: a vida e a morte no exílio, lançado pela L&PM no ano passado, e o mais recente, 1964: golpe midiático-civil-militar, pela Sulina, sobre a forma como a imprensa brasileira apoiou o golpe. O Editorial J conversou com o Juremir sobre suas pesquisas. “Enxergamos de uma manei-ra muito positiva, aqueles (jornalistas) que apoiaram o golpe, como Alberto Dines, Antônio Calado e Carlos Heitor Cony. Depois, eles rapidamente se arre-penderam, mas na época jornalistas e intelectuais caíram no discurso de uma ameaça comunista”, explicou. A seguir, trechos da entrevista:

Editorial J – A reação da im-prensa do Rio Grande do Sul foi diferente da do resto do país?

Juremir Machado da Silva – A reação da imprensa gaúcha não foi di-ferente. O meu livro trata dos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, por uma escolha metodológica.

J – Houve uma mudança de postura da imprensa gaúcha em re-lação aos golpistas entre 1961, com a Legalidade, e 1964?

Juremir – São posturas totalmen-te diferentes, tanto no Rio Grande do Sul quanto fora do Estado. Em 1961, era visto como despropósito, como algo ilegítimo agir contra Jango, que de alguma maneira foi considerado injustiçado. No mesmo ano, o (Leonel) Brizola era governador do Estado e cunhado do Jango. Também os peri-ódicos apoiaram o Jango de maneira geral, com a exceção do O Globo. Três anos depois, a imprensa ficou contra o presidente deposto. Poderíamos dizer que os mais coerentes foram o jornal A Última Hora que em 1961 e 1964 esta-va com ele. Já a Tribuna da Imprensa e O Globo eram contrários a Jango nos dois episódios. Os demais mudaram de posição.

J – Por que quase toda impren-sa apoiou um movimento antide-mocrático?

Juremir – Creio que existiram vá-

ABRIL/MAIO DE 20148

“Todos fomos afetados”Foto: Guilherme Almeida

PROFESSOR DA PUCRS LANÇOU LIVRO SOBRE AÇÃO DA MÍDIA EM 1964

rios fatores. Primeiramente, a situação da Guerra Fria. O mundo estava dividido em dois blocos. O capitalismo, influenciado pelos EUA. A passagem de Cuba para o socialismo assustava a população e a mí-dia da época. Também havia a influência da imprensa estadunidense. Eles criaram essa ideia de que o Brasil estava a mercê de uma ameaça comunista muito concre-ta. Outro fator também é o conservado-rismo exacerbado dos proprietários dos jornais e dos jornalistas. Os jornalistas e os intelectuais caíram em uma ameaça comunista.

J – É possível traçar algum pa-ralelo entre o comportamento da

mídia em 1964 e hoje? Juremir – Hoje não estamos mais

perto de uma ameaça comunista. Atual-mente, é bem mais difícil de se criar esta ideia, embora muitos dos que se opõem ao governo Dilma Rousseff, ao lulismo e ao petismo utilizem uma retórica antico-munista como se eles (Dilma, o lulismo e o petismo) estivessem próximo de Cuba. Tentam mostrar que o PT é, no fundo, marxista e gostariam que o Brasil fosse viver um regime cubano. O que está mais próximo mesmo é o clima de combate ao governo, apesar de o sistema ser de cen-tro-esquerda, tentando fazer crer que é a gestão mais corrupta de todos os tempos. Em 1964, também era assim. Toda vez

que a esquerda está no poder, eles defen-dem a ideia de que são (os componentes da esquerda) corruptos. Na época do Getulio, Jango e agora. Sempre foi assim.

J – Quais são as responsabili-dades individuais do jornalista, em situações como a campanha da imprensa contra Jango?

Juremir – Os jornalistas têm, como todas as pessoas, uma margem de autonomia. Quanto maior o capital simbólico, mais audiência e prestigio e mais ele é reconhecido. O principal problema da autonomia é a ideologia profissional. Em 1964, apoiaram o gol-pe porque acreditavam que era preciso derrubar o Jango. Não foi porque eles eram obrigados, mas sim por adesão.

J – Atualmente, se houvesse uma situação no país como a de 1964, a mídia brasileira seria gol-pista?

Juremir – É especulação, mas pa-rece que sim. Parte de nossa imprensa gostaria de se livrar do governo petis-ta. Não sei se a imprensa iria muito longe. Atualmente, temos um espírito democrático mais consolidado. Na época, todos eram golpistas. Toda hora havia tentativas de golpe. Nos anos 1950 foram muitas. O golpismo estava na mentalidade de todos. Hoje é muito difícil.

J – Quais as fontes que o senhor utilizou?

Juremir – Os jornais da época são fontes primárias. Os livros escritos na época por jornalistas caíram no esqueci-mento. Documentos e bibliografia. Para esse tipo de obra, o fundamental são os periódicos.

J – Por que o senhor se interes-

sa em pesquisar e escrever sobre o Jango e Golpe de 64?

Juremir – Estamos vivendo agora os 50 anos do golpe. Esse assunto sem-pre mexeu como o nosso ego. O período mudou a vida de todos. Pessoas foram exiladas, assassinadas, desaparecidas, torturadas, presas. Outras perderam emprego. Foi uma transformação radi-cal. Todos nós fomos afetados pela di-tadura militar. Cresci nesse momento. Foi uma mudança tremenda na nação e que não terminou, em certo sentido, porque os torturadores não sofreram punições. As comissões da verdade ain-da estão na justiça de transição. O Jan-go é uma figura emblemática. Se ele foi assassinado ou não, ele é o personagem importante da história.

Juremir acredita que jornalistas têm espaço para autonomia