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Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática: Cultura e Comportamento Vol. 5 nº 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0 Internacional Editorial Este número da revista Iniciação Científica Tecnológica e Artística da área de Cultura e Comportamento traz em sua abertura o artigo “Análise do figurino masculino de Orgulho e Preconceito (2005)”, de Yana Eugênio, artigo derivado do trabalho que foi o ganhador do prêmio de melhor trabalho do 1º Congresso Brasileiro de Iniciação Científica em Design e Moda, que ocorreu durante 0 10º Colóquio de Moda, realizado na Universidade Federal de Fortaleza (setembro de 2014) e organizado pela Abepem (Associação Brasileira de Estudos e Pesquisa em Moda). Também relacionados ao campo da moda e da indumentária, temos o artigos “Os modos de vestir e a influência francesa na Belle Époque carioca”, de Raísa Amaral Mendes e Agda Carvalho, que nos apresenta uma perspectiva sobre a moda no Brasil e sua particular relação com a moda francesa no início do século XX; o artigo “Design de moda e brasilidade: da indumentária colonizada à expressividade de Zuzu Angel” de Mariana Tagé Verissimo Ribeiro e Cristiane Mesquita, que por sua vez aborda a discussão sobre a da identidade cultural brasileira presente na obra da estilista Zuzu Angel e, finalmente, o artigo “Desenvolvimento de uniforme escolar funcional infantil”, de Camila Citton Puccini e Tatiana Laschuk discute o importante papel dos uniformes escolares na sua relação com a aprendizagem. Em “A Dança e a Cidade: um estudo comparativo entre Pelotas e São Paulo”, de Thiago Silva de Amorim Jesus, somos apresentados a duas experiências relacionando o corpo e a cidade, constituídas por meio da dança, em estudo comparativo entre um grupo da cidade de Pelotas (RS) e outro de São Paulo (SP), ambos tendo o espaço público como palco para suas coreografias. Todo o último bloco da revista é dedicado à imagem. A relação entre fotografia e memória está no centro das discussões dos artigos “Fotografia digital: reconfiguração do recurso de memória da família contemporânea de Vitória da Conquista (BA) ”, de Layse de Sousa Lucena; Pedro Matos Rosa e Leatrice Ferraz Macário e em “Fotografias e memórias: uma folia” de Karina Alves de Sousa e Tatiana Pontes, sobre a tradicional festa da Folia de Reis e seu registro. Finalizando esta edição da revista, temos o artigo “Documentários de divulgação científica em tempos de redes sociais e cibercultura” de Sebastião da Silva Vieira e Marcelo Sabbatini, importante discussão sobre as novas formas de divulgação científicas e sua relação com as mídias consideradas mais tradicionais. Gostaria de ressaltar a diversidade de temas e enfoques que são apresentados nesses artigos, bem como a participação de autores de instituições de ensino de várias partes do Brasil, cumprindo com aquele que é uma das nossas mais caras diretrizes que é o de dar a conhecer a extensa e muito qualificada produção científica dos cursos de graduação das várias regiões do país. Quero agradecer a todos os autores e seus orientadores por sua participação neste número e também muito especialmente aos avaliadores que se dispuseram generosamente a nos ajudar a qualificar esta publicação.

Editorial - Senac São Paulo · médico. Jane Austen morreu no dia 18 de julho de 1817, aos 41 anos, em Winchester, e deixou todos os bens os quais possuía à sua irmã e confidente,

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Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática: Cultura e Comportamento Vol. 5 nº 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

Editorial

Este número da revista Iniciação Científica Tecnológica e Artística da área de Cultura

e Comportamento traz em sua abertura o artigo “Análise do figurino masculino de

Orgulho e Preconceito (2005)”, de Yana Eugênio, artigo derivado do trabalho que foi

o ganhador do prêmio de melhor trabalho do 1º Congresso Brasileiro de Iniciação

Científica em Design e Moda, que ocorreu durante 0 10º Colóquio de Moda, realizado

na Universidade Federal de Fortaleza (setembro de 2014) e organizado pela Abepem

(Associação Brasileira de Estudos e Pesquisa em Moda). Também relacionados ao

campo da moda e da indumentária, temos o artigos “Os modos de vestir e a influência

francesa na Belle Époque carioca”, de Raísa Amaral Mendes e Agda Carvalho , que

nos apresenta uma perspectiva sobre a moda no Brasil e sua particular relação com

a moda francesa no início do século XX; o artigo “Design de moda e brasilidade: da

indumentária colonizada à expressividade de Zuzu Angel” de Mariana Tagé Verissimo

Ribeiro e Cristiane Mesquita, que por sua vez aborda a discussão sobre a da

identidade cultural brasileira presente na obra da estilista Zuzu Angel e, finalmente,

o artigo “Desenvolvimento de uniforme escolar funcional infantil”, de Camila Citton

Puccini e Tatiana Laschuk discute o importante papel dos uniformes escolares na

sua relação com a aprendizagem.

Em “A Dança e a Cidade: um estudo comparativo entre Pelotas e São Paulo”, de

Thiago Silva de Amorim Jesus, somos apresentados a duas experiências relacionando

o corpo e a cidade, constituídas por meio da dança, em estudo comparativo entre um

grupo da cidade de Pelotas (RS) e outro de São Paulo (SP), ambos tendo o espaço

público como palco para suas coreografias.

Todo o último bloco da revista é dedicado à imagem. A relação entre fotografia e

memória está no centro das discussões dos artigos “Fotografia digital: reconfiguração

do recurso de memória da família contemporânea de Vitória da Conquista (BA) ”, de

Layse de Sousa Lucena; Pedro Matos Rosa e Leatrice Ferraz Macário e em

“Fotografias e memórias: uma folia” de Karina Alves de Sousa e Tatiana Pontes, sobre

a tradicional festa da Folia de Reis e seu registro.

Finalizando esta edição da revista, temos o artigo “Documentários de divulgação

científica em tempos de redes sociais e cibercultura” de Sebastião da Silva Vieira e

Marcelo Sabbatini, importante discussão sobre as novas formas de divulgação

científicas e sua relação com as mídias consideradas mais tradicionais.

Gostaria de ressaltar a diversidade de temas e enfoques que são apresentados nesses

artigos, bem como a participação de autores de instituições de ensino de várias

partes do Brasil, cumprindo com aquele que é uma das nossas mais caras diretrizes

que é o de dar a conhecer a extensa e muito qualificada produção científica dos

cursos de graduação das várias regiões do país.

Quero agradecer a todos os autores e seus orientadores por sua participação neste

número e também muito especialmente aos avaliadores que se dispuseram

generosamente a nos ajudar a qualificar esta publicação.

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática: Cultura e Comportamento Vol. 5 nº 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

Meus agradecimentos também a toda equipe técnica que tornou possível mais uma

edição desta Revista Iniciação.

Boa leitura a todos e aguardamos a sua contribuição para os próximos números.

Maria Eduarda Araujo Guimarães

Editora – Edição Temática Cultura e Comportamento

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática: Cultura e Comportamento Vol. 5 nº 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Análise do figurino masculino de orgulho e preconceito (2005).

Analysis of the Male Costume Design in Pride and Prejudice (2005).

Yana Eugênio Universidade Federal do Ceará - UFC Instituto de Cultura e Arte - Bacharelado em Design - Moda

{[email protected]}

Resumo. O final do século XVIII e o início do século XIX foram permeados de

revoluções e mudanças, inclusive nas relações sociais e na moda. Uma das pessoas que

contribuíram para o conhecimento dessas mudanças foi a autora Jane Austen por meio

de seus livros, os quais possuem características românticas e realistas, escolas literárias

vigentes à época. Uma das adaptações desta obra para o cinema, o figurino

especificamente, será o objeto de comparação entre a indumentária vigente no período e

o vestuário masculino utilizado no filme, objetivando conhecer a veracidade deste e a

utilização deste conteúdo para estudos. Além de ajudar na compreensão das vestes do

protagonista ao longo do filme.

Palavras Chave: Orgulho e Preconceito; Figurino; Roupa e Filme.

Abstract. In the end of the 18th century and in the beginning of the 19th century,

revolutions and changes happened, including in the social relations and in the fashion.

One of the people who contributed for the knowledge of these changes was the author

Jane Austen via books, which have romantic and realistic characteristics, literary schools

of that time. One of the adaptations of her books for cinema, the costume design

specifically, is the subject of comparison between the clothes of the epoch and the male

costume design of the movie, expecting to know the veracity of it and the use of this

content for studies. Besides, it helps to justify the use of the clothes by the main

character during the movie.

Keywords: Pride and Prejudice; Costume Design; Clothing and Movie.

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1. Introdução

Jane Austen, como escritora, inspirou milhões de meninas e meninos de todas as idades,

desde o século XIX, com seus romances irônicos e realistas da sociedade britânica. A

autora encontrou na escrita um modo de traduzir para a sua realidade o que lia nos livros

da biblioteca do pai.

A história de Orgulho e Preconceito é tão envolvente, que, atualmente, ainda é um dos

livros mais lidos do mundo (SEIXAS, 2011). Tamanho o interesse do público jovem no

enredo, foi diversas vezes adaptado tanto para o cinema, como para o teatro e a televisão.

A indumentária do homem utilizada à época é retratada no filme. Portanto, o objetivo

deste artigo é comparar a indumentária masculina do período com a adaptação

cinematográfica de 2005 do livro de Jane Austen e verificar a sua veracidade em relação

ao vestuário do momento por meio do protagonista, Mr. Darcy (Matthew Macfadyen),

entendendo também como a veste ajuda a compreendê-lo.

Esta pesquisa é de natureza documental, pois avaliou o figurino do filme Orgulho e

Preconceito (2005) e bibliográfica. O motivo da escolha desse tipo de pesquisa é a

permissão para avaliar qualquer tipo de documento, podendo ser gravações, pôsteres,

vídeos, dados e até mesmo um filme (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009). A análise

foi feita da seguinte forma: assistir ao filme, anotar a indumentária usada pelo

protagonista e comparar com as roupas utilizadas no período, depois de um estudo

bibliográfico do indumento utilizado à época; analisar cores e modelagens usadas pelo

personagem que mostrem a mudança do protagonista ao longo do filme.

2. A vida de Jane Austen

Biografia

Jane Austen nasceu no dia 16 de dezembro de 1775 em Hampshire. Filha de Cassandra

Leigh Austen e de George Austen foi criada entre oito irmãos, sendo ela a sétima filha.

Seu pai era reverendo e isso lhe permitiu conviver com pessoas da Alta sociedade

britânica, tendo grande referência em seus romances e personagens os costumes e os

hábitos de tal classe.

Jane passou poucos anos de sua vida na escola. Por volta de 1785, ela foi mandada a um

internato em Abbey para aprender a ler (ZARDINI,2013). Sua educação se baseou,

prioritariamente, na biblioteca de casa, onde também aprendeu a desenhar, a bordar e a

tocar piano. Seu primeiro romance foi escrito entre os anos de 1796 e 1797 e tinha como

nome Primeiras Impressões, porém não conseguiu publicá-lo à época. No futuro, se

tornaria o seu mais famoso romance, chamado Orgulho e Preconceito. Em seguida, Jane

fez a tentativa de iniciar sua carreia literária com o romance Susan, que foi comprado por

um editor em 1803, porém só foi publicado anos mais tarde, após ser revisado e ganhar

o título de A Abadia de Northanger.

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Antes mesmo de conseguir publicar seu primeiro livro, Jane perdeu sua grande

incentivadora e mentora, em 1804, Madame Lefroy, esta foi tia do nobre pelo qual Jane

se apaixonou, em 1795, e que a persuadiu a desistir do romance, pois acreditava que não

era vantajoso para o sobrinho contrair matrimônio com uma moça sem posses, nem

posição social como Jane, inclusive enviou-o para morar longe da moça. Depois, Jane

perdeu o pai, que morreu em 1805, deixando ela, sua mãe e a irmã mais velha com quase

nenhum meio de sustento. Desse modo, elas começaram a viver na casa de um irmão

mais abastado, que as ofereceu um chalé para moradia (ZARDINI,2013).

Jane teve seu primeiro romance publicado com o título Razão e Sensibilidade em 1811.

No mesmo ano, Austen começou a escrever Mansfield Park e finalizou Orgulho e

Preconceito, o qual foi publicado em 1813. Jane escreveu Emma em 1815 e Persuasão,

que foi seu último romance, publicado em 1818, após sua morte. Em 1817, começou a

escrever Sanditon, porém não conseguiu terminar, pois, no mesmo ano, começou a

adoecer e, devido ao agravamento de sua doença, teve que se submeter a tratamento

médico. Jane Austen morreu no dia 18 de julho de 1817, aos 41 anos, em Winchester, e

deixou todos os bens os quais possuía à sua irmã e confidente, Cassandra (SEIXAS, 2011).

Austen nunca se casou e passou toda a vida ao lado de sua mãe e de sua irmã. As três

eram financeiramente auxiliadas pelo irmão, pois não tinham dinheiro para o próprio

sustento. Segundo Seixas (2011), apesar de ser reconhecida como escritora ainda em

vida, Jane não ganhava o suficiente para se sustentar. Além disso, era mal vista pela

sociedade, pois era uma escritora solteira, apesar de esta ser uma profissão comum entres

as mulheres nessa condição. Por isso, publicava seus romances sob um pseudônimo.

Figura 1. Representação de Jane Austen

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Austen, Restrições Sociais e Personagens

Jane Austen viveu em uma época na qual as mulheres sofriam duras restrições impostas

pela sociedade, e, em seu primeiro romance, Orgulho e Preconceito, ela retrata isso por

meio das personagens e das dificuldades encontradas durante a vida. Em Orgulho e

Preconceito, Jane vai além da óbvia crítica às relações de poder, pois tem em Elizabeth

Bennet uma mulher confiante e forte, diferente de seus outros personagens. Elizabeth não

tem apenas um lado, ou sensível, ou forte, ela encontra um meio termo entre os dois, o

que acaba criando uma personagem sensata e destemida, mesmo em meio aos inúmros

tabus.

Austen teve uma existência marcada pelas diferenças sociais tanto entre homens e

mulheres, quanto entre classes mais altas e mais baixas. Isto era visível pelas pressões

exercidas pela sociedade sobre o casamento, o sustento da mulher deveria ser provido

por meio de um bom enlace e a estabilidade e liberdade financeira demonstrada pelos

homens de sua época (SEIXAS, 2011). Portanto, em seus romances, Jane expressa

claramente não apenas um sentimento romântico de uma visão de casamento e felicidade,

há, na verdade, a crítica e o desagrado pela sua própria maneira de viver e de sua vontade

de mudança. Entretanto, como ocupava um lugar na classe média, Jane podia perceber

com clareza e transcrever em suas obras questionamentos morais e sociais a respeito das

divisões tanto dos mais pobres, quanto dos mais ricos.

3. Contexto Histórico

A história de Orgulho e Preconceito é permeada pela influência dos acontecimentos do

final do século XVIII e início do século XIX. Por meio da história, é possível entender as

mudanças de comportamento e da moda do período, auxiliando na compreensão do

enredo do filme.

Revolução Francesa

Os principais acontecimentos dessa época foram a Revolução Francesa e a ascensão e a

derrota de Napoleão Bonaparte. A Revolução Francesa iniciou no final do século XVIII,

mais precisamente no ano de 1789.De acordo com Coggiola (2013), a atmosfera da França

durante esse período era de inconformidade com a realidade, pois a camada mais pobre

da sociedade era a única que sustentava toda a riqueza do clero e da nobreza. Assim, a

Revolução representou uma busca de liberdade dessas camadas de todas as diferenças de

tratamento as quais estavam submetidas.

Com a Revolução Francesa, a nobreza da época foi destituída do seu lugar na sociedade e

foi criada a Assembleia Constituinte, a qual estava dividida em terceiro estado (camada

mais pobre) pelos jacobinos e em alta burguesia pelos girondinos (GARCIA; SEVEGNANI,

2011). A mesma alta burguesia foi representada no poder por Napoleão Bonaparte que

tinha como objetivo controlar a instabilidade social.

Um evento de destaque durante o Império Napoleônico foi o Bloqueio Continental, o qual

proibia todas as nações aliadas da França a fazerem comércio com a Inglaterra

(SOARES,2003). Dessa forma, a nação britânica ficou isolada, de modo que não recebia

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística - Vol. 5 no 2 – novembro de 2015 Edição Temática: Cultura e Comportamento

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influências francesas para seu vestuário e para o seu comportamento. Com a derrota

definitiva de Napoleão, veio ao poder uma união do Partido Radical e do Partido Moderado.

Esses acontecimentos do século XVIII influenciaram no comportamento do século XIX,

pois, por meio da Revolução Francesa, o estilo francês foi propagado em toda a Europa.

Por conta dessa difusão, o requinte deste Estado foi muito copiado em todos os outros

países. Pelo o comportamento, os franceses divulgaram duas correntes, o Neoclassicismo

e o Romantismo.

Neoclassicismo e Romantismo

O Neoclassicismo foi um movimento que não influenciou só as artes, como também o

comportamento e a moda. De acordo com Oliveira, Faria e Navalon (2010), essa

organização pregava a reutilização dos componentes estilísticos do mundo antigo, greco-

romano, como a simplicidade das formas e das linhas, entrando em conflito com o exagero

do século XVIII presente nas roupas e nas artes.

Não só de forma visual, os neoclassicistas defendiam a dedicação aos sentimentos e às

ideias puras. O conceito de pureza foi muito estudado nessa época, portanto os costumes

familiares e tradicionais estavam sendo bastante observados.

Nascido do Neoclassicismo, o Romantismo tinha ideais similares. A principal diferença era

que o Romantismo buscava as características mais sábias por meio da introspecção

bucólica. Essa Escola conflitava com a rigidez intelectual, ou seja, buscava que o ser

humano fosse mais subjetivo e original e dizia que a forma para a qual ele alcançasse esse

subjetivismo fosse por meio da natureza e da convivência com o puro (OLIVEIRA; FARIA;

NAVALON, 2010).

O hedonismo, o ceticismo e a ociosidade eram criticados, de forma que eram considerados

costumes não puros. Esses pensamentos em busca do ser melhor foram além do

comportamento, tanto que a arte e a moda se tornaram bem mais simplistas. A ideologia

simplista era uma forma de contestar a anterior, a ostentação da nobreza, a fim de reforçar

o ideal da Revolução.

4. Vestuário Masculino no Final do Século XVIII e Início do Século XIX

Para João Braga (2007), os homens passaram pela revolução do dandismo, que, além de

ter causado modificações no vestuário, era um estilo de vida. Nele, adereços e enfeites

foram excluídos e deram lugar a uma roupa impecável e favorável à sobriedade. As cores

usadas eram preto, azul, verde, cinza, ... tonalidades mais escuras e terrosas, dando um

aspecto mais sério aos homens que os usavam. As roupas dos dândis eram casacos de

golas altas, coletes abotoados e de golas altas, calças compridas ou calções de camurça

(breeches) de corte perfeito, sem rugas. Boucher (1987) afirma que as camisas possuem

colarinho alto e, no pescoço, usavam o plastron, um tipo de lenço, no qual poderia ser

feito nós bem complicados. Toda essa roupa demonstrava a empáfia do homem dândi.

Acessórios e Cabelo

A cartola era o chapéu utilizado na época e as botas de montaria eram os sapatos usados

pelos homens. João Braga (2007) afirma ainda que os cabelos utilizados eram mais

naturais. Os homens usavam o cabelo “à moda Tito” ou “à ventania”, de aspecto levemente

desgrenhado.

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Figura 2. Roupa típica do homem dândi.

5. Mr. Darcy

Mr. Darcy é um homem muito rico, orgulhoso e desagradável, julgando os outros pela

beleza ou etiqueta. Daí, a utilização, no início do filme, de roupas mais escuras e justas.

O personagem costuma usar casacos azul escuro ou preto; calças pretas, marrons, cinzas

ou beges; coletes pretos; camisas e plastrons brancos; cartolas e botas de montaria

pretas. O cabelo é “à ventania”. Nota-se, então, a equidade entre o vestuário da época e

o figurino do filme. As roupas são bastante concordantes com o estilo dândi e dão a ele

um tom sério pela paleta de cores (BELLANTONI, 2005).

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Figura 3. Mr. Darcy no início do filme

Porém quando ele apaixona-se por Elizabeth, seu preconceito esvai e ele tenta conquistá-

la de várias formas. Nota-se que o figurino do rapaz segue a lógica do crescimento do

amor por Elizabeth. À medida que seu amor aumenta e seus sentimentos pérfidos

diminuem, as roupas seguem o mesmo padrão, pois o homem busca na vestimenta a

expressão do seu ser (BUSO; LOPES, 2010).

Assim, ele vai usando diferentes tipos de corte de casacos e cores sóbrias, porém mais

claras. O plastron, símbolo da arrogância do dândi (BRAGA, 2007), deixa de aparecer. Até

que ele culmina o filme usando apenas um casaco azul desabotoado, uma calça bege, uma

blusa branca e botas pretas, simbolizando o despir do seu orgulho em favor do amor da

protagonista, por isso, ele usa cores mais claras, como o branco, simbolizando a pureza

dos seus sentimentos (BELLANTONI, 2005).

Figura 4. Mr. Darcy no final do longa metragem.

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6. Conclusão As mudanças ocorridas na história, no final do século XVIII e início do século XIX, na

sociedade, na arte e na política, influenciaram um estilo de vida masculino chamado

dandismo. Neste, as roupas masculinas davam a eles um ar sóbrio e sério. Conclui-se que

a pesquisa feita pela figurinista foi completa, pois os modelos são bastante compatíveis

aos do período. O espectador é posto, na época retratada, por meio das roupas, podendo

o filme tornar-se uma ferramenta de estudo histórico. Porém, de forma mais abrangente,

podemos perceber que a personalidade e os sentimentos do personagem são mostrados.

Então, nota-se a utilização de tons mais escuros e terrosos e de roupas mais sérias e

presas ao corpo, como se o personagem estivesse algemado a sua arrogância no início do

filme. Ainda usando cores terrosas no final, porém, mais claras, e roupas de modelagens

mais abertas e soltas, vemos a diferença do protagonista por meio de suas vestes, que

mudou o seu caráter devido ao amor pela heroína do longa metragem.

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Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática em xxx Vol. 5 n° 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Os modos de vestir e a influência francesa na Belle Époque carioca

The dress mode and the French influence at the Rio’s Belle Epoque

Raísa Amaral Mendes, Professora Doutora Agda Carvalho Universidade Anhembi Morumbi- UAM Escola de Artes, Arquitetura, Design e Moda- Bacharelado em Negócios da Moda {[email protected], [email protected]}

Resumo. Trata-se de uma pesquisa que observa o final do século XIX e começo do século XX, durante o período da Belle Époque, dos anos de 1889 até 1914, no Rio de Janeiro. Levantamos algumas relações entre os modos de vestir e os modos de falar, observando a influência das palavras de origem francesa no contexto brasileiro. Selecionamos as palavras maillot e tailleur, ambas foram absorvidas pela sociedade, mas permanecem no cotidiano brasileiro de diferentes formas. O maiô mantém a fonética e modifica-se ortograficamente e o tailleur mantém a sua característica fonética e ortográfica. É importante destacar que estas palavras tratam da maneira de vestir no período da Belle Époque, momento no qual identificamos uma significativa influência da cultura francesa.

Palavras-chave: Design de moda, Belle Époque, vestir, falar.

Abstract. It treats about a research project that observes the final of XIX century and

the beginning of XX century, during the Belle Epoque epoch, at the years of 1889 until 1914, at Rio de Janeiro. We raise some relations between the dress modes and the ways of speaking, with the observation of the influence of the words of French origin at the Brazilian context. Here we select the words maillot and tailleur, both were absorbed for society, but remain at the Brazilian daily life in different ways. The swimsuit keeps the phonetic and changes orthographically and the tailleur keeps its phonetic and orthographic characteristic. It is important highlight that those words it is about the Belle Epoque’s dress way, moment that we identify a significant influence of French culture.

Keywords: Fashion design, Belle Epoque, dress, speak.

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1. Introdução

A moda é um hábito ou estilo geralmente aceito e variável no tempo, resultado de determinado gosto e influências do meio (LIPOVETSKY,1987), como também um fenômeno social, cultural e complexo; fenômeno que surge no final da Idade Média, junto com a ideia de sujeito como individuo, a moda nasce como um fenômeno social para distinguir classes sociais (BUENO E CAMARGO, 2008, p.162 apud CRANE).

O intuito da pesquisa é detectar a influência de outra cultura no contexto brasileiro, neste caso, palavras de origem francesa. Para tanto, ocorreu um levantamento das aproximações entre os modos de vestir e os modos de falar. Os modos de falar são referenciados por meio de pesquisas no Museu da Língua Portuguesa1, enquanto os modos de vestir são referenciados a partir de levantamentos de imagens do período.

A moda do Ocidente não possui um conteúdo próprio, mas é um dispositivo social caracterizado por uma temporalidade particularmente breve, por reviravoltas mais ou menos fantasiosas, podendo, por isso, afetar esferas muito diversas da vida coletiva (LIPOVETSKY,1987, p. 24).

Segundo Freyre (1986, p.96), a moda é moldada conforme o clima e ecologia do país, ou seja, as roupas e tecidos devem ser adaptadas a cada lugar de acordo com seu clima. A moda é no final das contas, uma forma de arte visual, uma criação de imagens, com o eu visível enquanto meio de expressão (WILSON,1989,p.21). "Segundo Gilles Lipovestky, o conceito de moda como hoje se apresenta para as sociedades urbanas tem apenas 100 anos" (CHATAIGNIER, 2010, p.23). Este conceito quando se refere ao Brasil, é recente e está em constante mudança.

Em meados do século XIX, as vestes no Brasil eram confeccionadas com a mistura de elementos externos e da cultura local. A moda era identificada como roupa e só possuía algum sentido para a corte e para os imigrantes estrangeiros; era impossível definir a moda brasileira, visto que o país estava em construção. A miscigenação cultural trouxe para o vestuário influências francesas, portuguesas, indígenas e africanas. Não se pode omitir o papel dos estrangeiros, que passaram pelo Brasil desde seu descobrimento até o século XIX, com suas missões artísticas, destacando-se a Missão Artística Francesa (CHATAIGNIER,2010).

Esta Missão, um grupo de artistas franceses liderados por Joachim Lebreton e apoiados por Dom João VI, desembarcou no Rio de Janeiro, em 1816, pois Dom João estava preocupado com o desenvolvimento cultural do país e com a fundação de uma instituição de ensino em artes visuais na nova capital, a Academia de Belas Artes2, na

1 O Museu da Língua Portuguesa está localizado no centenário prédio da Estação da Luz em São Paulo, marco histórico da cidade, com sua arquitetura inglesa do início do século XX. É dedicado à valorização e difusão do idioma, patrimônio imaterial, apresenta uma forma expositiva diferenciada das demais instituições museológicas do país e do mundo, usando tecnologia de ponta e recursos interativos para a apresentação de seus conteúdos. Tem como objetivo mostrar a língua como elemento fundamental e fundador da cultura, valorizar a diversidade da cultura brasileira e favorecer o intercâmbio entre os diversos países de Língua Portuguesa. Pode-se ver também a grande influência de países europeus na cultura brasileira, nos falares e vestires, um dos países que proporcionou tal influência foi a França (Museu da Lingua Portuguesa). 2 A Academia de Belas Artes inaugurou no ano de 1826 no Rio de Janeiro, trazendo para o Brasil o ensino das artes, com referências das academias de artes européias (Itaú Cultural).

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qual os alunos poderiam aprender as artes e ofícios artísticos. Os artistas da Missão pintavam, esculpiam, desenhavam e construíam à moda europeia. Revolucionou-se o panorama das Belas Artes no país ao ser introduzido o ensino superior, fortalecendo assim o Neoclassicismo, como também uma renovação das artes no Estado do Rio de Janeiro.

Ainda que a França não tenha exercido grande influência na economia ou política do Brasil, ela contribuiu na mudança dos hábitos culturais cooperando na construção da identidade brasileira e na reestruturação das artes.

Logo, o estilo que mais influenciou o Brasil na moda em meados do século XIX foi o parisiense, pois propagava seu estilo de vida e modos de vestir. O estilo Império usado pelas francesas tornou-se um modelo típico para as cariocas, que o usavam para diversas ocasiões, desde passeios simples até para festas religiosas; essa foi a primeira manifestação de moda no Brasil (CHATAIGNIER, 2010, p. 77) usada por mulheres brancas de todas as idades. Mesmo seguindo a moda francesa, também era possível ver a interferência da cultura africana nos adornos das vestes.

2. Belle Époque Carioca

Surge então um período artístico, cultural e político no país, a Belle Époque, com grande influência da cultura europeia, principalmente da francesa e da inglesa; que apresentava novos conceitos nas belas-artes, cultura e também na moda, apresentando a silhueta em S (momento quase final do espartilho), que apresentava destaque às curvas, busto realçado, os quadris arqueados e ventre contraído, se concretizando como uma silhueta antinatural.

O Brasil estava se influindo no estilo dos franceses de formas diretas e indiretas no decorrer do século XIX, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão, foram muito influenciadas, inserindo em suas roupas adornos usados pelos franceses como as rendas, leques e joias, o que trazia um papel simbólico de comunicação e um papel estético (WILSON,1989, p. 13).

Foi um momento cultural muito celebrado pela moda, arquitetura, decoração, pelo mobiliário e pelas artes em geral, sendo interpretado por alguns como transgressor, boêmio e enlouquecedor (CHATAIGNIER,2010, p.94).

Esse período teve início por volta de 1880 até 1914 na França, ficou conhecido como La Belle Époque (A Bela Época), tendo como características o luxo e a extravagância da classe alta, ostentação e o bem viver (MOUTINHO, 2000). Enquanto a Belle Époque carioca, conhecida também por Belle Époque Tropical, iniciou-se no ano de 1898, com a entrada de Campos Sales no cargo de presidente da República; este ano se caracterizou por uma recuperação da tranquilidade e uma mudança na política, o que acabou afetando o meio cultural e social. As condições para a estabilidade e para uma vida urbana elegante estavam de novo ao alcance das mãos (NEEDELL, 1993, p. 39). A classe alta da época buscava expor através de seus artigos luxuosos e vestuário, sua superioridade sobre a classe trabalhadora, composta em sua maioria por negros.

A belle époque carioca pode ser considerada quer como o apogeu de tendências específicas de longa duração, quer como

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fenômeno inédito, assinalando uma fase única da história cultural brasileira. (NEEDELL, 1993, p. 19, grifo do autor).

Segundo Needell (1993) a França e a Inglaterra, no século XIX, eram localidades que tinham muito a oferecer, a França se apresentava à sociedade através de sua experiência e ensino; com isso, os brasileiros passaram a trazer para o seu cotidiano características da cultura europeia. As mudanças estavam presentes em vários aspectos, que perpassavam desde os alimentos consumidos até ao vestuário, pode-se observar principalmente a influência cultural francesa na arquitetura, nos modos de comer, comportar, pentear, vestir e até mesmo de falar (CORRÊA, 2013); segundo a revista da época, Fon-Fon!, “no largo da Carioca a gente vê um canto de Paris actual, na estação Central, Paris de 1830” (Fon-Fon!, 1907).

A elite carioca teve seu maior crescimento durante este período, foi um dos grupos mais afetados pela cultura francesa, principalmente com relação ao vestuário e a fala, a vontade por estar “em dia” com a moda europeia tornou-se quase tão feroz no Rio quanto na Europa (NEEDELL, 1993, p. 192).

Figura 1 – Moda da Belle Époque no Rio de Janeiro em 1907. Disponível em <http://www.nasentrelinhas.com.br/noticias/pano-pra-manga/060/entrevista-luis-andre-do-

prado-conta-a-historia-da-moda-no-brasil/> Acesso em: 23/09/2015

Era perceptível nos trajes da época a influência francesa de elegância e bom gosto, os cariocas se empenharam para reproduzir o estilo de vida francês em seu cotidiano, o que se tornava moda na França automaticamente virava moda no Brasil. Mas o clima francês não era condizente com o clima da Belle Époque Tropical, as roupas oriundas da Europa eram apropriadas para um clima mais frio, ao contrário do calor intenso vivido pela sociedade carioca presente na maior parte do ano, por mais desconfortáveis que as roupas fossem para os europeus, elas se tornavam ainda mais desconfortáveis para os cariocas, mostrando muitas das vezes uma inadequação de roupas (NEEDELL, 1993, p. 199); sendo assim os tecidos teriam que ser adaptados, assim como a moda deveria seguir as situações predominantemente tropicais (FREYRE,1986).

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Para atualizar a sociedade sobre as novidades originárias da França na Belle Époque, foi criada a revista Fon-Fon!, periódico que circulou na primeira metade do século XX, entre 13 de abril de 1907 até agosto de 1958, aos sábados, onde se registrava a vida sociocultural brasileira durante o período; a revista se apresentava como “semanário alegre, político, crítico e esfuziante, noticiário avariado, telegrafia sem arame, crônica epidêmica” (ZANON,2005).

Figura 2 – Logotipo da revista Fon-Fon!,1907

O nome da revista era proveniente de uma onomatopéia, o barulho produzido pela buzina dos automóveis, símbolo da industrialização e do desenvolvimento econômico no país, representado também pelo logotipo da revista.

Fon-Fon! foi considerada como uma das melhores revistas ilustradas da época, seguia os modelos europeus e seus autores buscavam apresentar um meio de comunicação ágil e moderno, com novas formas de agir, pensar e a propagação de ideias (MACENA,2010). Um de seus objetivos, como já dito, era mostrar as novidades do maior centro de elegância do mundo da época, Paris, e com elas os galicismos3, mas também, o periódico mostrava a moda, o cotidiano, os costumes, estilos, e a vida privada brasileira, influenciando o comportamento da elite com seus registros cômicos (ZANON, 2009). Sendo assim, as revistas tiveram uma grande importância para o Rio de Janeiro no começo do século XX.

Os leitores francófilos4 do periódico, também se deparavam com charges políticas e sociais que buscavam representar a elite, e como a língua francesa estava em alta nos primeiros anos do século XX, Fon-Fon! possuía uma seção, Frimousses et Binettes, que era totalmente na escrita em francês (ZANON, 2009, p. 229, grifo do autor).

A moda era falar francês, muitos buscavam ser o mais fiel possível com a elegância francesa, tamanha era a atuação dessa cultura na sociedade brasileira que chegou a ser cogitado o francês como idioma oficial (CORRÊA, 2013, p. 20), o que não passava despercebido pelo periódico em suas publicações.

3 Galicismo ou francesismo é uma palavra ou expressão de origem francesa, possuindo ou não sua grafia original. 4 Pessoa que possui interesse ou admiração pela cultura francesa.

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Este frequenta o Lyrico; assiste aos espectaculos da divina Duse e aspira pela chegada do Coquelin que... pelo menos fala francez, que é lingua que todos nós comprehendemos”. (Fon-Fon!,1907)

O galicismo estava sendo empregado pelos cariocas em vários quesitos, principalmente em peças do vestuário, mas nem sempre com o mesmo significado aplicado na França, portanto, não seria de admirar que se vivesse, vestisse e escrevesse conforme os franceses. Muitas das palavras de origem francesa apresentadas pelo Fon-Fon! funcionavam como um código e um elo entre os membros do grupo social que utilizavam a língua e a cultura francesa (ZANON, 2005).

3. Influência francesa no vestuário e na fala

Segundo Chataignier (2010) a língua da moda era o francês, expressões típicas da língua eram usadas pela sociedade, as brasileiras achavam que somente as cariocas eram capazes de lançar e carregar a moda, possuíam um jeito peculiar de falar, com uma entonação um tanto dramática. O Rio de Janeiro se parecia a uma filial de Paris, nos modos de falar, nos modos de vestir, na elegância e na moda.

Tanto os modos de vestir, como os modos de falar, tiveram influências de diversos países, mas a França foi uma das essenciais, principalmente com relação ao Rio de Janeiro (CHATAIGNIER,2010), que apresentou esta influência em diversos setores culturais, mantendo resquícios de tal participação na cultura brasileira até os dias atuais.

As vitrines cariocas estavam repletas de artefatos de origem francesa, roupas, calçados, perfumes e tecidos. Entre os tecidos preferidos estavam o crepe da China, o chiffon, a mousseline de soie (musselina de seda), além do tule (MOUTINHO, 2000, p. 33, grifo do autor). Os tecidos finos surgiram com a prosperidade social, entre eles estava a lã, as melhores eram provenientes da Inglaterra e de Porto Alegre.

As mulheres utilizavam muito o francês para indicar as peças do vestuário, sendo assim, muitos trajes e palavras relacionadas à moda e arte, tiveram seus nomes provenientes da língua francesa. Para exemplificar esta influência serão citados dois trajes que tiveram seu auge na Belle Époque, o maiô e o tailleur. Estes dois trajes ingressaram na cultura carioca graças aos franceses, pois os cariocas queriam viver exatamente o que os franceses viviam ao usar tais trajes.

O tailleur surgiu como um traje para a prática de esportes, como equitação e golfe, as mulheres usavam casacos e saias compridas de tecidos grossos, que geralmente eram confeccionados por homens, com o passar dos anos, esse traje deixou os esportes para se incorporar ao vestuário das mulheres.

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Figura 3: Roupa de montaria para as mulheres em 1890. Disponível em <http://ffw.com.br/noticias/moda/arte-do-vestuario-museu-mostra-como-se-usava-a-moda-

nos-seculos-passados/> Acesso em: 02/08/2014

Figura 4: Roupa do século XIX para equitação, com corpete sob medida e saia. Disponível em <http://ffw.com.br/noticias/moda/arte-do-vestuario-museu-mostra-como-se-usava-a-moda-

nos-seculos-passados/> Acesso em: 02/08/2014

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A vida da mulher de classe média começou a mudar, elas começaram a ingressar no mercado de trabalho, como em escritórios; a partir de então passaram a surgir novas necessidades sobre os modos de se vestir, como também novos modismos. A saia e a blusa viraram uniformes, foi então que o tailleur como conhecemos hoje foi criado pelo costureiro John Redfern no final do século XIX, com base no terno masculino, ganhando destaque e se popularizando durante a Belle Époque. O modelo de corte masculino era confeccionado para mulheres que necessitavam de roupas práticas para desempenhar suas funções no trabalho (MOUTINHO, 2000); o traje também era muito usado pelas mulheres que viajavam de automóvel e pelas ciclistas.

Diferente dos dias atuais, o tailleur possuía modelos para o inverno, feito de lã e em cores escuras, já no verão eram feitos de algodão com blusas de mangas curtas; nos dois modelos as saias eram nos tornozelos.

Figura 5: Charles A. Wilson 1909 e Pauline Chase 1910 com tailleur da Belle Époque. Disponível em < http://www2.anhembi.br/html/ead01/historia_moda/aula05/p04.htm> Acesso em:

02/08/2014

O termo tailleur é originário da língua francesa e seu significado é alfaiate, tal qual o conjunto de saia e casaco. A palavra foi incorporada ao vocabulário das brasileiras, não sofrendo mudanças na fala e ortografia do original.

Já o maiô surgiu no final do século XIX, quando tem início a prática de banhos de mar, anteriormente eram realizados somente por enfermos, o que acabou dividindo a opinião do público. Com o passar do tempo se tornou motivo de diversão e lazer, e com isso surgiram os primeiros trajes de banho. Os primeiros modelos cobriam praticamente todo o corpo, podendo ser de lã ou sarja, eram usadas toucas e até mesmo calçados, tamancos ou botinas, o que é inapropriado para banhos.

Os trajes de banho entraram logo na moda: semelhantes a vestidos e indo até às canelas, possuíam calções compridos e

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justos; a lã era o material e as listras davam seu charme. Para completar o traje praiano, touca e galocha (CHATAIGNIER,2010, p.89).

Figura 6: Maiô Amplo de algodão que cobriam as pernas (CHATAIGNIER,2010,p.88)

Figura 7: Maiô do começo da Belle Époque. Disponível em < http://www2.anhembi.br/html/ead01/historia_moda/aula05/p04.htm> Acesso em:

02/08/2014

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Os trajes eram os mesmos para ambos os sexos, e uma das regras sociais determinadas era que homens e mulheres ficassem em lados opostos durante a prática de lazer, as mulheres usavam um saiote para diferenciação. Já no início do século XX, os maiôs começaram a ficar menores, o que permitiu a criação de trajes mais adequados e confortáveis.

O termo maiô foi adaptado ao português do original francês maillot, o que pode ser usado como exemplo como muitas outras peças referentes à moda que tiveram seu termo original modificado, como no caso do tricot e bustier, que se adaptaram ortograficamente e ficaram como tricô e bustiê.

Figura 8: Trecho da revista Fon-Fon!,1908.

Durante todo o período da Belle Époque, a França era o modelo a ser seguido, segundo Moutinho (2000) não havia uma moda genuinamente brasileira até o início da Primeira Guerra. Ou se importava de Paris, ou se copiava de Paris, ou se viajava até Paris para comprar artigos da moda.

4. Considerações finais

A partir da pesquisa de campo realizada no Museu da Língua Portuguesa, foi possível identificar a influência de diversas culturas, principalmente da europeia no Brasil.

Dentre essas culturas que surtiram algum tipo de interferência na cultura brasileira, foi escolhido o período do final do século XIX e começo do século XX, anos esses que a Europa teve uma participação maior na cultura brasileira. Países como a Inglaterra e a França foram os mais influentes durante o período escolhido, portanto através da pesquisa de campo percebeu-se que a França teve uma grande interferência quando relacionada ao vocabulário e a moda.

O decorrer do século XIX foi marcado por muitos acontecimentos no Brasil, foi uma época a qual muitos imigrantes estavam desembarcando no país, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, que encantava aos olhos dos estrangeiros. Em meio a tantos

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acontecimentos ocorreu a Missão Artística Francesa, a partir de então a arte começou a ser revista, assim como o fascínio pela França por parte dos cariocas começou a surgir.

Por volta de 1880 surgiu na França a Belle Époque, que chegou ao Brasil anos mais tarde em 1898, período classificado como luxuoso e extravagante, teve grande importância em muitos estados brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro, onde ficou conhecida como Belle Époque Tropical.

O estado estava passando por algumas reformas, entre elas nas áreas da política e arquitetura, podendo citar o caso da Avenida Central que seguiu os modelos europeus e pode ser considerada como a expressão da Belle Époque carioca.

A França estava presente no cotidiano de todos os cariocas, todos estes queriam viver e fazer exatamente o que os franceses faziam no período. Uma das maiores interferências francesas foi com relação à moda carioca da época, pois a maioria das vestes estava influenciada pela moda originária de Paris.

Percebendo a necessidade da população ficar informada sobre os últimos acontecimentos e também sobre as novidades de Paris, surgiram alguns periódicos, dentre os quais o mais importante do período, o Fon-Fon!. O periódico foi de grande importância para o estudo da influência da França com relação aos cariocas, foi possível analisar a importância da cultura e da civilização francesa no período da Belle Époque, época em que a sociedade carioca estava em formação.

Por meio do periódico foi possível identificar a grande influência que a língua francesa teve no vocabulário da época, algumas das muitas palavras podem ser vistas até os dias de hoje, muitas delas adaptadas ortograficamente ao português. Apesar de várias palavras de origem francesa estarem presentes na cultura, foi apresentado o caso do maiô e do tailleur, que apresentam elementos que justificam a sua identificação; a primeira mantém a fonética e altera a gramática e a segunda está presente sem alterar as características fonética e ortográfica; ambos os trajes atingiram seu auge ao serem incorporados no vestuário feminino no período da Belle Époque.

Por muito tempo a Europa era quem determinava os modos de vestir dos brasileiros, mantendo a França como parâmetro primordial e o que se mantém até os dias de hoje, pois a França, com a capital Paris, se concretizou como uma das referências mais importantes para o contexto brasileiro, no período da Belle Époque, causando influências no modo de vestir e no de falar. É importante destacar que os modos de falar, que se referem ao vestir, ainda são utilizados.

Referências

BUENO e CAMARGO, Cultura e Consumo: estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

CORRÊA, Carolina Giacomini. O desenvolvimento cultural, artístico e a moda no Brasil após a chegada da corte portuguesa. UFJF. Minas Gerais: 2013. Disponível em:<http://www.ufjf.br/posmoda/files/2013/05/MONOGRAFIA-CAROLINA-GIACOMINI.pdf >

CHATAIGNIER, Gilda. História da Moda no Brasil. São Paulo: Estação das letras e cores, 2010.

FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1986.

LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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MACENA, Fabiana Francisca. Madames, mademoiselles, melindrosas: 'feminino' e modernidade na revista Fon-Fon (1907-1914). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade de Brasília. Brasília, 2010. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5947/1/2010_FabianaFranciscaMacena.pdf>

MOUTINHO, Maria Rita. A moda no século XX. Rio de Janeiro: SENAC, 2000. p. 24-64.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical – Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Tradução: Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

WILSON, Elizabeth. Enfeitada de Sonhos, Moda e Modernidade. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.

ZANON, Maria Cecília. FON-FON! – Um registro da vida mundana no Rio de Janeiro da Belle Époque. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.1, n.2, 2005. p. 18-30. Disponível em: <http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/18/418>

ZANON, Maria Cecília. A sociedade da Belle Époque nas páginas do Fon-Fon!. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.4, n.2, jun. 2009. p. 217-235. Disponível em: <http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/178/510>

Fon-Fon!. Todos os periódicos. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm>. Acesso em: 10/06/2014

Academia de Belas Artes. Instituto Itaú Cultural. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=332> Acesso em: 24/07/2014

Museu da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.museulinguaportuguesa.org.br/>. Acesso em: 15/09/2013.

Recebido em 24/09/2014 e Aceito em 13/10/2015.

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática em Cultura e Comportamento Vol. 5 n° 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/

E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Design de moda e brasilidade: da indumentária colonizada à

expressividade de Zuzu Angel

Fashion design and Brazilianness: from the colonized clothing to the

expressiveness of Zuzu Angel

Mariana Tagé Verissimo Ribeiro, Cristiane Mesquita Escola de Arte, Arquitetura, Design e Moda – Bacharelado em Negócios da Moda {[email protected], [email protected]}

Resumo. Este artigo aborda aspectos do período colonial do Brasil no século XIX e

as influências europeias e colonizadoras que afetam os modos de vestir. Investiga

algumas manifestações artísticas como a Semana de Arte de 1922 e o Manifesto

Antropofágico que buscaram uma representatividade permeada pela cultura

brasileira. Apresenta o trabalho da designer de moda Zuzu Angel que, na década de

1970, produziu coleções expressivas em relação à cultura e à realidade do país. Nesse

sentido, articula três momentos históricos em relação à conservação e expressão de

brasilidade.

Palavras-chave: Colonização. Design de Moda. Brasilidade. Zuzu Angel.

Abstract. This article boards aspects about the Brazil’s colonial period in the XIX

century and the European colonizing influences that affects the ways of dressing. It

investigates some artistic demonstrations as the Art Week of 1922 and the

Antropophagic Manifest that looked for a representativeness permeated by the

Brazilian culture. It presents the work of the fashion designer Zuzu Angel, in the

decade of 1970, produced expressive collections regarding the culture and the reality

of the country. In this sense, it articulates three historical moments regarding the

conservation and expression of brasilianess.

Keywords: Colonization. Fashion Design. Brazilianness. Zuzu Angel

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1. Introdução

Este artigo tem como fio condutor os modos de vestir em diferentes períodos da

história do Brasil, no intuito de relacionar a vestimenta com momentos que envolvam

aspectos sócio-econômicos, políticos e culturais no país. A pesquisa contou com uma

investigação bibliográfica sobre aspectos históricos, manifestações artísticas e design

de moda, com a intenção de abordar o vestuário como expressão de valores culturais.

O estudo teve como ponto de partida o ano de 1808 e a chegada da família real

portuguesa ao Brasil com o desembarque de europeus, que entraram em contato

com a colônia e passaram a influenciar e impor seus costumes como parâmetros de

civilidade. A permanência da família real no país foi de significativa importância, pois

acarretou em uma readequação de espaços, de estruturas, ou seja, de todo um

contexto que contemplava os costumes da aristocracia portuguesa, bem como suas

raízes no modelo europeu.

Esta imposição afetou os primórdios da constituição da identidade cultural brasileira

variável que anos mais tarde, seria questionada a partir de movimentos artísticos

tais como: a Semana de Arte Moderna de 1922 e o Manifesto Antropófago de 1928.

Ambos buscaram delinear novas perspectivas para a cultura e as artes brasileiras a

partir de diferentes propostas.

No início do século XX estas manifestações artísticas tinham como ideal romper com

os modos implementados no período colonial. A Semana de Arte Moderna de 1922

refletiu a insatisfação dos intelectuais e artistas da época em relação à falta de

iniciativas culturais originalmente brasileiras, com o objetivo de mudar e renovar o

contexto herdado do Brasil colônia.

Esse anseio por uma tradução do que fosse considerado “nacional” passou por

readequações e culminou no ápice do movimento, intitulado de “Manifesto

Antropófago”, que propunha uma apropriação de conceitos e propostas de modo a

extrair das influências estrangeiras aquilo que fosse propício à criação de valores

brasileiros.

Neste artigo a agitação antropofágica de 1928 é abordada no sentido de pontuar um

momento no qual havia uma brasilidade ainda incipiente. Entretanto, em relação ao

vestuário ao vestuário não são notadas manifestações que revelem aspectos de

originalidade.

Décadas mais tarde, desponta como exemplo de expressão da cultura brasileira o

trabalho da designer de moda Zuzu Angel. Nos anos 1970, a designer contribuiu para

uma maior representatividade cultural do país no cenário da moda, com a exploração

de atributos que expressavam o “genuinamente brasileiro” e conferiu a ela uma

singularidade, como profissional da área. Angel traduziu em design de moda não

apenas os aspectos culturais de um país repleto de riquezas e exuberantes fontes de

inspiração, mas também a realidade sócio-política de uma nação marcada pela

ditadura militar.

2. Aspectos da indumentária brasileira no contexto colonial

O estudo da indumentária brasileira assim como da própria história do Brasil

apresenta grande parte do seu conteúdo vinculado ao período de colonização do país.

Sendo assim, este artigo contempla alguns dados posteriores à chegada da família

real portuguesa. Segundo Braga, para se compreender questões da moda

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contemporânea faz-se necessária a sua fundamentação na História à qual está

vinculada (BRAGA, 2006).

No início do século XIX, os principais países europeus ainda estavam em guerra e

ameaçados pelo imperialismo francês, sob o comando de Napoleão Bonaparte. Um

conjunto de fatores que resultou em uma indisposição da França em relação à realeza

portuguesa. Devido à eminente ameaça francesa, a corte de Portugal optou por

deixar o seu país e se fixar nas novas terras brasileiras (ARRUDA; PILETTI, 2011). A

partir dessa decisão, o Brasil até então uma colônia de exploração, passou a ser a

nova sede da corte portuguesa. Assim sendo, precisou de mudanças estruturais para

se adequar aos parâmetros europeus comuns à nobreza recém-chegada (FARIAS,

2008).

Como uma das transformações ocasionadas no período pontua-se o incentivo à

cultura, devido as medidas tomadas por Dom João VI, tais como a Missão Artística

Francesa no Brasil que estimulou o desenvolvimento das artes em nosso país, a

criação do Museu Nacional, da Biblioteca Real, da Escola Real de Artes, além de outras

ações que também alavancaram o desenvolvimento da economia nacional (SLEIMAN,

2008). A adoção de posicionamentos que auxiliassem o desenvolvimento cultural do

Brasil eram chamados de “empreendimentos civilizatórios”. Estes foram elaborados

para a promoção da cultura europeia, na tentativa de implementar traços do

refinamento e do bom gosto europeus na colônia, sob a óptica de uma visão

eurocêntrica, afim de tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia (GOMES, 2008).

Por conta da permanência da corte em terras brasileiras houve a necessidade de se

adequar o país às demandas do contingente populacional real, que contribuiu para

acentuar o fenômeno de distinção social e a urgência para a elaboração de novos

acordos políticos e econômicos. Como exemplos dessas medidas, pontua-se a

abertura dos portos às nações amigas de Portugal marcando o final do pacto colonial

que restringia a relação comercial apenas entre a colônia e sua metrópole; a criação

do Banco do Brasil; e o auxílio do desenvolvimento das parcelas sociais mais

abastadas, além de outros aspectos relacionados à estrutura física, que iriam

acompanhar um crescimento repentino e exagerado da população local.

O vestuário da época representava uma forma de reflexo daquela realidade social.

Apresentava-se pautada por um sistema regulado pelo status e pelos papéis sociais,

pois as vestimentas serviam como elementos de constituição das identificações

políticas, econômicas e sociais (CIDREIRA, 2005).

Embora predominantemente pautada pelos modelos europeus, é possível considerar

naquele período uma adaptação dos trajes europeus em solo brasileiro, pois além

das características climáticas de um país tropical onde não se fazia pertinente o uso

dos tecidos pesados da Europa, também havia a questão dos custos para a

importação desses tecidos. Ou seja, para as classes menos abastadas tornou-se

necessário adaptar os modelos europeus inicialmente com a predominância do uso

de tecidos de algodão.

Vale mencionar que, em relação aos trajes femininos, as mulheres “bem vestidas”

eram sinônimo de mulheres “bem panejadas”, especificamente no caso das peças de

seda, que indicavam riqueza, devido ao elevado custo e atributos de elegância

(SOUZA, 2001, p.136).

Na perspectiva da diferenciação de classes direcionada pelas vestimentas, vale

pontuar que os homens vestiam fraques e polainas e as mulheres saias compridas

por cima de inúmeras subsaias, conforme o padrão de elegância francês, embora a

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realidade climática brasileira não fosse condizente com o referencial exportado pela

França (GONTIJO, 1987).

Muitas passagens desse período também exemplificam a relação de status

estabelecida pelo sistema escravocrata, que embora estivesse chegando ao seu fim

no ano de 1888, ainda manteve-se como diferenciador social dentre os “donos de

escravos”. Algumas ilustrações do período revelam que, ao saírem para passear, os

senhores de escravos levavam consigo uma determinada quantidade de negros, com

o propósito de lhe servirem. Entretanto, a forma como os escravos estavam vestidos

variava conforme a importância do serviço prestado. Em outras palavras, eles

deveriam estar adequadamente “panejados”: os que tivessem maior importância

vestiam mais roupas, afim de se assemelhar em proporção às roupas utilizadas pelo

seu dono (GOMES, 2008).

Figura 1- Dono de escravos e sua família indo passear com escravos os acompanhando (Debret, 1817). Fonte: www.martaiansen.blogspot.com.br. Acesso em: 07 de maio de 2014

Descreve-se esse período da moda no Brasil como um momento no qual “a moda

francesa entra em cena” (CHATAGNIER, 2010, p.77), dadas as referências

parisienses nos modos de vestir da nobreza portuguesa e sua subsequente influência

nas parcelas sociais menos abastadas. Nas palavras de Chatagnier:

[...] essa foi a primeira manifestação legítima de moda

no Brasil, logo copiada e usada pelas mulheres brancas

de todas as faixas etárias. Não tardou muito para que as

escravas alforriadas ou aquelas que recebiam roupas de

suas amas também vestissem o traje do momento, o

estilo favorito de nobres e plebeias. (CHATAIGNER, 2010, p.77)

Esta aproximação entre as vestimentas das escravas e plebeias relativiza as camadas

sociais por intermédio da indumentária exemplificando o conceito de “moda de

classe” (CRANE, 2008), estruturado em sentido descendente, ou seja, das classes

superiores para as inferiores, caracterizando um processo de imitação.

Em termos gerais, as roupas foram encarregadas de evidenciar uma diferenciação

social postulada pelos princípios dos “bons costumes” europeus que seriam,

basicamente, os modos e hábitos comuns na Europa, compreendidos como

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“refinados” (GOMES, 2008). Na mesma linha, também outros tipos de expressões,

relacionadas à cultura foram disseminadas no Brasil de modo a revelar uma

predominância das tradições europeias nos costumes locais.

Se é visível a vigência dos preceitos europeus no século XIX, as décadas iniciais do

século XX foram marcadas pelas insatisfações em relação a imposição e adoção

desmedida das tendências europeias. Logo adiante, alguns movimentos tomariam

forma, a partir da iniciativa de intelectuais engajados no processo de reelaboração

dos entrelaçamentos artísticos e culturais entre Brasil e Europa.

3. Os prenúncios da “descolonização”

Em meio aos modos europeus de civilidade instalados pelos “empreendimentos

civilizatórios” trazidos por D. João VI, o Brasil perpassou o período de proclamação

da Independência e da República, com significativas alterações no seu contexto

socioeconômico, político e cultural (GOMES, 2008).

Entretanto, com o despontar econômico do país no decorrer dos anos seguintes e já

com a virada do século XX, os seus ciclos produtivos lhes deram notoriedade mundial

e renderam a inquietação da parcela intelectual brasileira, que enxergava um Brasil

capaz de construir também sua própria reputação cultural mediante à sua postura

tímida e submissa (ARRUDA; PILLETI, 2011).

Os anos entre 1920 e 1940, contemplam um período que é consideravelmente

importante na tentativa de interpretar o paradigma da sociedade colonial brasileira e

da identidade nacional (LAUERHASS; NAVA, 2007). Nessa linha de raciocínio, vale

mencionar que na década de 1920, os anseios pela busca de elementos que

representassem o país e identificassem o seu povo se expandiram por meio de várias

vertentes artísticas, como a música, a literatura e a pintura, culminando na união de

alguns ideais na renomada “Semana de Arte Moderna de 1922”.

Em fevereiro de 1922, na cidade de São Paulo, foi concretizada a “Semana de Arte

Moderna”, como resultado de um grande contingente de ideias inovadoras

apresentadas por artistas brasileiros. De imediato este movimento teve uma reposta

negativa do público, pois tinha como cerne a ruptura dos padrões estéticos vigentes,

justamente aqueles que haviam sido estipulados pelos parâmetros europeus

(GONTIJO, 1987).

Dentre os idealizadores do movimento da Semana de 1922, que representou o marco

inicial do modernismo no Brasil, estavam à frente o pintor carioca Emiliano di

Cavalcanti (1897-1976), o poeta e escritor paulistano Oswald de Andrade (1890-

1954), juntamente com o escritor paulistano Mário de Andrade (1893-1945) e o

maranhense Graça Aranha (1868-1931).

A importância dessa iniciativa refere-se a ações e propostas em prol de

“descolonizar”1 culturalmente o Brasil, a fim de romper com os parâmetros impostos

pela metrópole Portugal, ainda vigentes naquele momento. No entanto, a duradoura

prevalência dos hábitos europeus de civilidade refletidos na elaboração cultural do

país não permitiram que novas direções fossem instantaneamente incorporadas.

Em relação à expressão da moda de vestuário nesse contexto, vale mencionar que

os mesmos representantes que defendiam o propósito de uma identidade cultural

brasileira, vestiam as últimas tendências das coleções francesas de vestuário.

1 O termo “descolonização” é aplicado como o contrário do conceito de “colonização”, que consiste na dominação política, econômica, social e cultural da metrópole sob sua colônia.

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Os reflexos modernistas na moda não foram de singular expressividade, pois as

pequenas aplicações práticas nessa vertente ficavam bem distantes da grandiosidade

dos seus preceitos e ideais tais como a defesa da liberdade da expressão artística e

cultural nacional (ARRUDA; PILETTI, 2011). O movimento marcou presença com a

reprodução de estampas inspiradas em pinturas do movimento, porém, não teve de

fato nenhum profissional do meio agindo diretamente neste sentido (CHATAIGNIER,

2010).

Dentre a busca pelas “raízes culturais brasileiras”, a moda permaneceu com o que

era ditado pela França (GONTIJO, 1987). Um dos maiores nomes do movimento é o

da pintora paulistana Tarsila do Amaral2, “um dos símbolos mais fortes do movimento

brasileiro” (AMARAL, 2004). A artista desponta como exemplo em nosso estudo, pois

em seu próprio casamento usou vestido do estilista francês Paul Poiret3 (ALMEIDA,

2003). Além disso, Jean Patou4 é o criador do icônico “mantô rouge”, ilustrado em

um dos mais emblemáticos auto-retratos de Amaral (figura 2).

Figura 2- Auto-retrato ou "Mantô Rouge" (Amaral, 1924). Fonte: AMARAL (2004, p.16)

Assim sendo, podemos considerar que no que diz respeito ao vestuário do período,

as influências francesas ainda eram facilmente percebidas, especialmente nos trajes

femininos, embora começassem a se diluir conforme as novas necessidades da

mulher brasileira da época5. A inserção de peças inspiradas no guarda-roupa

masculino, como o tailleur ou outras versões do terno, adequadas à nova postura

profissional são adotadas pelo público feminino (CHATAIGNIER, 2010).

2 Tarsila do Amaral (1886-1973) nasceu em São Paulo em uma família de classe alta e tradicional que investiu nos seus estudos artísticos na Europa e ao regressar ao Brasil participou do movimento modernista brasileiro. 3 Paul Poiret (1879-1944) estilista francês, grande incentivador das artes, em especial a moderna, que era o enfoque de muitas das suas criações e também muito conhecido na Moda por libertar as mulheres do uso do espartilho (BAUDOT, 2008). 4 O francês Jean Patou (1880-1936) relacionou-se com o mundo da Moda, por meio das suas criações que buscavam pela pureza de seus traçados, com motivações geométricas e preocupação com a funcionalidade de suas peças (BAUDOT, 2008). 5 Alterações no cotidiano feminino aliadas à emancipação da mulher e ao seu convívio nas cidades. No contexto do final do século XIX, uma parcela das mulheres de classe média passa a se interessar pelo estudo e trabalho fora de casa, daí a necessidade de se adaptar o vestuário para essas novas atividades (SOUZA, 2001).

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4. Movimentação antropofágica e brasilidade

As agitações da semana de 1922 corresponderam à uma busca por “ingredientes

bem brasileiros, como as cores, a luminosidade, as paisagens e personagens da vida

do país” (CANTON, 2002), que pretendiam se libertar do que havia sido imposto pelos

modelos e tendências artísticas europeias6.

Na tentativa de romper com o conservadorismo europeu nas artes, o modernismo

brasileiro enfatizou o anseio por mudanças na arte nacional e desencadeou as bases

para o surgimento de novos padrões culturais e o estabelecimento de uma nova

doutrina estética (GONTIJO, 1987).

Nesse contexto, decorreu a formulação de um movimento posterior, que passou a

ser considerado como o ápice da primeira parte das manifestações modernistas: o

“Manifesto Antropofágico”7, idealizado pelo escritor e dramaturgo Oswald de Andrade

e por Tarsila do Amaral, é considerado como uma “síntese do movimento modernista

brasileiro” (AMARAL, 2004).

O manifesto consistia na ênfase do significado da palavra antropofagia como

sinônimo para o ato de “comer o homem”, no sentido metafórico: uma espécie de

“devoração simbólica” e cultural. Diz respeito à ideia de deglutição da imposição da

cultura europeia, de modo que, após a digestão, restasse apenas aquilo que fosse

relevante para ser absorvido. Segundo Katia Canton:

O movimento da antropofagia [...] pregava a ideia

simbólica de que se deveriam “deglutir” todas as

influências estrangeiras que fossem interessantes e

“digeri-las” junto com os valores das raízes brasileiras. A

ideia era formar uma linguagem inovadora capaz de

retratar a identidade nacional e afinar-se com os projetos

modernos da vanguarda contemporânea. (CANTON, 2002, p.91)

Por mais metafórica que a descrição antropofágica possa ser, ela também era

compreendida como uma crítica aos valores simbólicos condicionados historicamente

no passado colonial do Brasil, que carregava consigo um comportamento mimético

em relação aos modelos europeus. Ou seja, propunha romper com o padrão de

imitação e/ou reprodução dos comportamentos e diretrizes de modo idêntico. A

prática da antropofagia cultural resultaria na absorção seletiva daquilo que estava

imposto. Em outras palavras, ficaria a critério do povo brasileiro assimilar e formatar

o que lhe fosse pertinente, constituindo assim a sua própria identidade, a partir desta

mistura.

Embora ainda fosse um reflexo dos padrões franceses, procurou-se mais criatividade

nas criações nacionais com isto, o estilo da década de 1920 no Brasil usou como

referência os movimentos modernistas. A estamparia e os tecidos como o fustão,

gabardine, algodão florido e sedas leves ganhavam espaço, afim de que prevalecesse

o intuito daquilo que fosse “cem por cento verdes e amarelas” (CHATAIGNIER, 2010).

6 Para um estudo mais detalhado ver AGRA, Lucio. História da arte do século XX: ideias e movimentos. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Anhembi Morumbi; 2006. 7 Disponível em http://nossabrasilidade.com.br/manifesto-antropofago-oswald-de-andrade/. Acessado em 14 de julho de 2014.

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Assim sendo, é possível entender que, mesmo em meio à prevalência das cópias dos

modelos internacionais, começava a se instalar uma necessidade de se “abrasileirar”,

seja por conta de aspectos ligados ao conforto e ao clima tropical, seja por fatores

mais complexos, relacionados à busca pela singularidade no sentido de apontar uma

“cultura brasileira” (CASTILHO; GARCIA, 2001).

No entanto, a representatividade de uma moda dita “brasileira”, despontará apenas

décadas mais tarde, embora, de fato, a questão das referências culturais nacionais

tenha tido diversas reverberações desde os agitos antropofágicos.

No decorrer do século XX, nota-se que um conceito de “brasilidade” vai sendo

atrelado à definição de um modo característico de “ser brasileiro”, como resultado de

fatores referentes à carga histórica da formação do seu povo. Nesse sentido, o termo

envolve necessariamente aspectos de miscigenação cultural e social (FREYRE, 2009).

Considera-se que o termo “identidade brasileira” é melhor interpretado quando

compreendido como resultado de um processo de mestiçagem8, não apenas dos

diferentes povos que compõem o histórico científico do povo brasileiro, mas também

das suas diversas contribuições culturais.

Nesse caso, ao aplicar o termo “brasilidade” no que diz respeito as criações no design

de moda, podemos notar uma alusão ao que se compreende como “ser brasileiro”,

não apenas em termos de referências culturais, mas também no que se refere a

riquezas naturais. Tanto no campo simbólico quanto na seara dos materiais, algumas

singularidades podem resultar em produtos originais e diferenciados, sendo

reconhecidos como reveladores de uma “brasilidade”.

Algumas dessas produções são viabilizadas devido aos recursos disponibilizados no

território nacional9 que resultam em produções peculiares e autênticas (ARTUSO;

MASSAINI, 2012). Outras tantas são fruto do trabalho de designers que, em maior

ou menor grau, trabalham com referências históricas tradicionais ou artísticas

brasileiras, de modo que sua produção revela uma subjetividade reconhecidamente

nacional, ou seja, um conjunto de atributos que pode ser considerado como

reveladores de “brasilidade”.10

8 Para uma melhor compreensão do conceito de mestiçagem, consultar: JÚNIOR, Ludwig Lauerhass e NAVA, Carmem. Brasil: uma identidade em construção. São Paulo: Editora Ática, 2007.

9 Os recursos disponibilizados não somente no território nacional, bem como aqueles produzidos pelas

indústrias têxteis estrangeiras instaladas no país inicia os esforços de abrasileirar a sua produção. Um exemplo é a empresa francesa Rhodia que, nos anos 1960, aprimora a produção de fios sintéticos, a fim de convergir com os interesses do período, que iam ao encontro do sentido mais amplo do que seria a “moda brasileira”. A empresa desenvolve editoriais e desfiles a partir do tema da brasilidade, com o intuito de correlacionar seus produtos ao contexto nacional e realçar um cenário emergente nesta direção, unindo moda e arte. (BONADIO, 2005). Para uma maior compreensão sobre o papel da indústria Rhodia no processo de criação de moda dita “brasileira”, ver BONADIO, Maria Claudia. O fio sintético é um show! Moda, política e publicidade Rhodia S.A. 1960-1970. Tese de Doutoramento em História. Campinas: UNICAMP, 2005. 10 É importante ressaltar que o contexto de criação da moda brasileira dos anos 1960 é permeado por diversas outras ações relevantes, levando em consideração uma abordagem sócio-histórico para o desenvolvimento da ideia de “brasilidade”. Neste artigo, o enfoque se dá a partir do trabalho de Zuzu Angel, embora diversos outros setores estivessem levando em conta questões da nacionalidade brasileira. Um exemplo é o conceituado “movimento sociopolítico-cultural do Brasil” denominado “Tropicalismo”, considerado como uma manifestação singular a favor da valorização da cultura nacional. (FAVARETTO, 2007).

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5. O “genuinamente brasileiro” de Zuzu Angel

No contexto delineado para o termo brasilidade, este artigo enfoca sua

expressividade na moda, por meio da abordagem do trabalho de Zuzu Angel11 uma

das mais emblemáticas estilistas brasileiras. Angel buscou, por meio das suas

criações, observar as raízes do país e enaltecer as riquezas nacionais pouco

exploradas (ESMANHOTO, 2006).

Angel foi considerada “a precursora da brasilidade na moda”12, pois materializava em

suas criações algumas referências culturais brasileiras, tais como o cangaço e a vida

de Lampião e Maria Bonita13 ou os trajes típicos da Bahia (figura 3). A designer

mineira costumava dizer: “eu sou a moda brasileira” (BRAGA, 2014, p.11). Isto

porque sua vida e obra vincularam-se de maneira singular à história do Brasil.

Figura 3 e 4- Coleção Zuzu Angel (1970) - "Maria Bonita e Lampião". Fonte: www.institutozuzuangel.blogspot.com.br. Acesso em: 30 de junho de 2014

11 Zuzu Angel (1921-1976) nasceu em Minas Gerais e atuou como designer de moda no Rio de Janeiro. Casou-se com o canadense Norman Angel Jones com quem teve três filhos (Stuart Angel, Ana Cristina Angel e Hildegard Angel). Ao fim do seu casamento, investiu em sua profissão e abriu uma loja no Rio de Janeiro. Seu trabalho teve repercussão internacional devido a originalidade de suas criações. Sua carreira foi comprometida com questões políticas no Brasil que lhe custaram a própria vida, na busca por justiça pela morte de seu filho Stuart Angel durante o período da Ditadura Militar brasileira. (BRAGA, 2014) 12 Disponível em catálogo da exposição do Instituto Itaú Cultural: Zuleika (2014). 13 A coleção “Cangaço” exemplifica a adoção das temáticas brasileiras e dos referenciais da cultura do Brasil. O Cangaço surgiu aproximadamente em 1889 e era constituído por um grupo de cangaceiros caracterizados por andarem armados e resolverem, fora das leis do governo, as condições de desigualdades no nordeste. De 1920 até 1930, os cangaceiros ficaram em evidência devido ao comando de Lampião (Virgulino Ferreira da Silva) e Maria Bonita, sua esposa. O seu grupo foi morto em uma emboscada no final da década de 1930 planejada pelo governo (ARRUDA; PILETTI, 2011)

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Além das temáticas, sua escolha de matérias-primas e aviamentos, bem como das

técnicas utilizadas na confecção de suas coleções também eram pautadas pela

produção cultural brasileira. As cores, formas, estampas e bordados revelavam sua

admiração pelo cenário natural e pelo folclore brasileiros.

Zuzu tornou-se uma figura emblemática no cenário da moda nacional e internacional,

também pela transição do seu reconhecimento como “costureira”, para “designer de

moda”. Isto se dá mais propriamente, pelos processos criativos que adotava e pela

forma como o planejamento de suas coleções seguiam as etapas de uma linha

produtiva, o que demonstra seu uso de “metodologia de projeto” (ANDRADE, 2009,

p.97), uma das características mais reconhecidas ao se definir o trabalho de um

designer.

Com esse norteamento, Angel foi capaz de tomar iniciativas para se organizar e

tentar estender suas produções com a confecção de peças mais acessíveis, inseridos

no modo de produção que se consolidava em diversos países, nos anos de 1960. A

inserção do prêt-à-porter14 no Brasil tinha como intenção, além de abranger um

público maior, também direcionar o país e a sua produção industrial de roupas para

a competitividade internacional (BONADIO, 2014).

Para uma melhor compreensão do trabalho de Zuzu Angel, é importante dividi-lo em

duas fases: a primeira trata de criações voltadas para as riquezas naturais e

elementos da cultura nacional; já a segunda fase faz menção ao obscuro período de

repressão militar, resultando no que a própria designer chamaria de uma “moda

política”15.

O primeiro momento enfatiza a brasilidade não apenas pelos elementos e formas

anteriormente mencionados, mas também pela utilização de técnicas artesanais e

mão-de-obra de rendeiras da região nordeste do país (SILVA, 2006). Nas palavras

de Braga, “Zuzu Angel foi a primeira profissional de moda no Brasil a se inspirar em

uma temática genuinamente nacional, deixando assim, uma das maiores

contribuições autorais para a moda no país” (BRAGA, 2013, p.86)

Sua inovação no uso de materiais contribuiu para a notoriedade comercial dos

produtos no exterior e também para a economia nacional, especialmente nas regiões

onde suas criações eram executadas. Este era o caso de alguns estados do nordeste

e de cidades no estado de Minas Gerais, de onde vinham grande parte da extração

das pedras aplicadas em seus modelos (ARTUSO; MASSAINI; PORTO; SUTTER 2012).

Sua originalidade esteve orientada por “uma corrente contra a moda colonizada da

época” (ANGEL, 2014). Em outras palavras, Zuzu Angel exaltou fauna e flora

tropicais, personagens da história, aspectos culturais, além de ícones brasileiros, afim

de que suas obras refletissem seus anseios.

14 O termo prêt-à-porter refere-se ao modelo de produção em larga escala que instala-se em diferentes países, após a Segunda Guerra Mundial e consolida-se na segunda metade do século XX. Delineou importantes transformações em termos de fabricação e produção roupas e demais bens de consumo de moda, em escala industrial, a partir da inserção dos criadores na indústria (MESQUITA, 2010). 15 O termo “moda política”, no trabalho de Zuzu Angel, refere-se às criações elaboradas como forma de protesto sobre o contexto da Ditadura Militar no Brasil e a repercussão em sua vida pessoal. A postura de denúncia dos abusos militares passam a ser a temática da designer nas coleções posteriores à morte de seu filho, Stuart Angel, pelos militares do regime. Segundo testemunhas, Stuart Angel foi torturado e assassinado no quartel da Aeronáutica no Rio de Janeiro e o seu corpo nunca foi encontrado (VENTURA, 2014).

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Entretanto, sua vida particular esteve marcada por acontecimentos da ditadura

militar no país. Intitulado como “os anos de chumbo”16, este período rendeu a perda

de um filho e uma reviravolta na temática de suas coleções, que passaram a estar

atreladas às questões políticas do país.

A partir de então, sua produção anteriormente revestida da brasilidade

relativa à natureza e a cultura, passou a refletir o momento político, bem como a sua

dor e revolta. Nas palavras de Ventura, “Em lugar das rendas e dos bordados de

flores, frutos e borboletas as peças exibiram silhuetas bélicas, pássaros engaiolados

e balas de canhão disparadas contra anjos” (VENTURA, 2014), conforme pode ser

observado na figura 4.

Figura 5- Coleção Zuzu Angel (1971) - "Moda Política" Fonte: www.ela.oglobo.globo.com. Acesso em: 15 de junho de 2014

A partir deste fato que transformou sua vida pessoal, a designer não se desvencilhou

mais dos aspectos sócio-políticos em sua produção. Se o nacionalismo marcou seu

primeiro momento, forma as denúncias contra os abusos cometidos no período militar

e a solidariedade em relação a outras famílias na mesma situação que conduziram

suas últimas ações (CHATAIGNIER, 2010).

Assim sendo, consideramos que a história e o trabalho de Zuzu Angel são

emblemáticos da expressão de brasilidade no Design de moda, não apenas pelo seu

pioneirismo, mas também pela amplitude que os referenciais brasileiros ganharam

em sua obra. Sua expressividade singular é significativa de instâncias concretas e de

variáveis simbólicas, materializadas em seu trabalho.

6. Considerações finais

A sociedade brasileira do século XIX, com a imposição dos costumes da metrópole

procurou se equiparar ao refinamento europeu. Entretanto não conseguiu se

16 “Os anos de chumbo” intitulam o período de maior agressividade da Ditadura Militar (1964-1985) no Brasil, que são relacionados ao governo do general Garrastazu Médici (1969-1974). Médici fazia parte da chamada “linha dura” das Forças Armadas, que eram favoráveis a aplicação de métodos de repressão mais agressivos (ARRUDA; PILETTI, 2011).

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desvincular desses padrões mesmo após ter sido burocraticamente desfeito esse laço

com Portugal. A identidade cultural no país nasce a partir de um sentimento de

inferioridade em relação aos parâmetros europeus considerados superiores. Nesse

contexto, a vestimenta também seguia esses referenciais e não apresentava

expressividade significativa, a não ser por algumas adaptações.

No início do século XX, ocorrem movimentos que vão propor uma “cultura brasileira”.

A Semana de Arte Moderna de 1922, representada por artistas e escritores que

demarcaram alguns princípios, entretanto com pouca expressividade na moda.

Nota-se, anos mais tarde, como um exemplo da busca pela presença de uma

temática brasileira o nome da designer mineira Zuzu Angel, que criou e produziu

roupas que expressavam uma “brasilidade”. As diretrizes de seu trabalho foram

permeadas por elementos da natureza, da cultura e do contexto sócio-político

brasileiros.

Dessa forma, compreendemos três momentos pontuais, nos quais o grau de

expressividade cultural por meio da vestimenta e da moda faz-se presente. Nesse

sentido, é possível ampliar um entendimento de campo da moda, como vetor cultural,

alicerçado por preceitos políticos, econômicos e sociais, ao longo da história. A moda

é capaz de traduzir muitos aspectos do momento em que se situa, bem como tornar-

se ela própria um campo de produção cultural.

Referências

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Recebido em 28/08/2014 e Aceito em 05/11/2015.

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Desenvolvimento de Uniforme Escolar Funcionar Infatil

Development of Uniform School Functional Infant

Camila Puccini, Tatiana Laschuk UniRitter Núcleo de Design – Bacharelado em Design de Moda

{[email protected], [email protected]}

Resumo. Este trabalho visa apresentar o desenvolvimento de um projeto de uniforme escolar infantil funcional. O principal motivo do projeto se deve à baixa qualidade dos produtos existentes no mercado atual. Como metodologia projetual, utilizou-se a de Bonsiepe (1984), analisando peças já existentes no mercado. Como resultado final, foi desenvolvida jaqueta e camiseta com tecnologias têxteis de alta-performance e modelagem funcional.

Palavras-chave: uniforme escolar infantil; vestuário funcional; têxteis de alta-performance.

Abstract. This paper presents the development of a functional design child school uniform. The main purpose of the project is due to the poor quality of existing products on the market today. How projetual methodology was used to Bonsiepe (1984), analyzing existing parts on the market. As a final result, jacket and shirt with textile technologies for high-performance and functional model was developed.

Keywords: children's school clothing; functional clothing; high-performance textiles.

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1. Introdução

Os uniformes escolares existem desde o século XIX e sempre priorizavam a padronização, status, segurança e praticidade do dia a dia do estudante (ANDRADE et al, 2010). Para Lonza (2005), o uso do uniforme era uma questão variável, porém, a pedido de alunos e de pais dos alunos, o uso acabou se tornando obrigatório. Um dos principais fatores era a questão econômica, outra função era isentar as crianças de usar trajes “miniaturas” do vestuário adulto. Atualmente, segundo Vieira (2007), a pesquisa realizada pelo Guia do estudante do ano de 2007, feita com 276 colégios, afirma que aproximadamente 83% exige o uso do uniforme. Para o estilista Jum Nakao, em entrevista para Tófoli e Neves (2006), os uniformes precisam ser adaptados a gostos diversos, personalizando a roupa com pequenos detalhes, mantendo a simplicidade e o conforto.

Apesar da obrigatoriedade de uso dos uniformes verificada na maioria das escolas, percebe-se que os uniformes possuem baixa qualidade no que se relaciona aos tecidos utilizados e à fatores ergonômicos. A partir das necessidades observadas no vestuário infantil escolar, verificou-se a oportunidade de aplicar conceitos funcionais ao vestuário infantil em Projeto Acadêmico.1

Segundo conceito elaborado pela turma de Projeto de Moda IV, do Curso de Design de Moda da UniRitter, o vestuário funcional tem como objetivo atender à necessidades físicas (ergonômicas, de proteção, termo fisiológicas e sensoriais), contemplando a interface homem-produto, levando em consideração funções estéticas e culturais dentro de um contexto específico (ORNSTEIN, 2011 e BÜRDEK, 2010).

Sendo assim, o objetivo da presente pesquisa é desenvolver uma jaqueta e uma camiseta funcionais, presentes no uniforme escolar infantil priorizando as necessidades físicas de crianças entre 6 e 11 anos de idade. Para tanto, buscou-se analisar segundo a metodologia de Bonsiepe (1984): (a) as opções de modelos existentes; (b) as cores utilizadas; (c) os materiais empregados; (d) a durabilidade do uniforme e (e) a funcionalidade do uniforme.

A operacionalização do presente estudo tem como base a pesquisa quantitativa, através de entrevistas com os pais dos alunos, do 1º, 3º e 5º ano do Colégio de Aplicação da UFRGS. Como metodologia de projeto, foi utilizado os princípios do Bonsiepe, constituído das seguintes etapas: Problematização, Análise (diacrônica, sincrônica, estrutural e funcional), Geração de alternativas com método 635, Lista de requisitos do produto, Maquete e modelo.

2. Análise Diacrônica - Histórico do Uniforme Escolar no Brasil

Segundo Schemes e Thön (2010) o primeiro uniforme escolar foi utilizado no Colégio Pedro II, em 1850, no Rio de Janeiro, e a inspiração era o traje militar. Os uniformes eram associados à democracia e economia, procurando estabelecer igualdade, nivelar as diferenças entre as condições sociais dos estudantes e garantir a segurança e a disciplina.

1 A disciplina de Projeto IV do Curso de Design de Moda do Centro Universitário Ritter dos Reis tem como objetivo o desenvolvimento de um vestuário funcional. A disciplina é ministrada pela Prof. Tatiana Laschuk.

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O uniforme deve representar a instituição de ensino, demonstrando a tradição, o método e as características pedagógicas, o nível de disciplina e de ensino, além da postura diante da sociedade e outras escolas. A partir da matrícula, os alunos eram responsáveis por respeitar as cores, o nome, a tradição e o símbolo da escola, dentro e fora da instituição (LONZA, 2005). Em 1929, o governo do Brasil publicou um livro que recebeu o nome de “Uniformes Escolares Distrito Federal”, que descreve as normas dos uniformes de escolas públicas (LONZA, 2005).

Já no período de 1930 a 1945, o governo passou a distribuir o uniforme para os alunos mais pobres, dificultando assim a distinção da classe social (SILVA, 2006). Silva (2006) e Lonza (2005) afirmam que, a partir dos anos 1960, os uniformes mudaram quase que totalmente, devido ao surgimento de tecidos produzidos com helanca, facilitando a vida dos estudantes, por serem práticos, de alta resistência, secagem rápida, difícil deformação e encolhimento e a não necessidade de passar a ferro.

Além disso passaram a apresentar um aspecto menos formal. Entretanto, as alunas do colégio Mackenzie, já exibiam um uniforme curto e colado ao corpo na década de 40, assim como as normalistas do Instituto Educação de Nova Iguaçu alguns anos mais tarde, em 1969. Para Schemes e Thön (2010), a moda dos anos 80 foi revolucionária. Os uniformes passaram a transmitir mais alegria, menos seriedade, proporcionar um ar esportivo, de versatilidade e divertidas.

3. Análise Sincrônica – Uniformes existentes no mercado

Levando em consideração os fatores têxteis importantes para o vestuário infantil, citados no capítulo anterior, é importante realizar uma análise sincrônica presente na metodologia de Bonsiepe (1984), para obter conhecimento sobre o que está sendo vendido atualmente no mercado pelas empresas que confeccionam uniformes. Para isso, foram selecionados quatro tipos de jaquetas e blusas, todas as peças unissex.

A composição das jaquetas varia entre poliéster, algodão e poliamida, tendo diversas composições como: 65% Poliéster e 35% Algodão, 83% Poliéster e 17% Algodão, 100% Poliamida, 100% Poliéster. O valor tem variação do mais barato ao mais caro, tendo uma média de 42,00 a 118,00 reais. O processo de costura é simples, tendo máquinas como reta, overloque e galoneira. Segundo informações fornecidas pelas empresas, o produto é totalmente fabricado no Brasil. A modelagem é diferenciada, com recortes que marcam a identidade de cada colégio e cavas raglãs para facilitar a mobilidade, conforme mostra a figura 1.

As camisetas têm composição somente com poliéster e algodão, sendo uma divisão igualitária, 50% Poliéster (PES) e 50% Algodão (CO). O valor varia de 20 a 34 reais, a produção também é feita no Brasil e o processo de costura envolve as máquinas galoneira e overloque. Os tecidos não possuem nenhum acabamento de alta-performance. A modelagem é bem simples, tendo como único diferencial a cava raglã para facilitar a mobilidade, conforme a figura 1.

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Figura 1. Jaquetas e camisetas analisadas.

Numa etapa seguinte, foi realizada uma análise de opções dos modelos existentes na gama de uniformes do Colégio de Aplicação da UFRGS. Foram identificados três modelos de jaquetas e quatro de camisetas, conforme a figura 2. A cartela de cores contém uma variedade ampla contemplando cinco tons de azul, branco, vermelho e cinza.

A composição das peças varia entre 67% poliéster e 33% viscose, 90% poliamida e 10% elastano, 50% algodão e 50% poliéster, e 100% poliéster. O uniforme não possui nenhum acabamento especial nos fios ou nas peças prontas para aumentar a durabilidade, a maioria dos materiais é de baixa durabilidade criando pilling2 em poucas lavagens, se gastando facilmente ou ocasionando manchas permanentes no caso das peças claras em virtude do suor. Quanto à funcionalidade, as peças seguem um padrão normal de vestuário, com cavas simples e sem muitos detalhes.

2 Pilling é o acúmulo de fibras na superfície do fio.

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Figura 2. Jaquetas e camisetas do colégio de Aplicação da UFRGS.

4. Resultados das Entrevistas

A fase de análise de uso da metodologia projetual de Bonsiepe (1984) prevê a coleta de dados a partir da verificação de uso dos uniformes já existentes. Para a coleta de dados neste caso, foram aplicados questionários a pais de 40 alunos de 6 a 11 anos de idade, do 1º ao 5º ano do Colégio de Aplicação da UFRGS, residentes na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os dados coletados e analisados se relacionam à: opções de modelos, estética dos uniformes, cores utilizadas, materiais empregados, durabilidade, funcionalibilidade e modelagem, todos eles avaliados entre péssimo, regular, bom, muito bom e excelente. O custo foi avaliado entre simbólico, baixo, regular, alto e elevado.

O resultado em todas as questões analisadas - opções de modelos, estética dos uniformes, cores utilizadas, materiais empregados, funcionalibilidade e modelagem - é de que metade dos pais considera como bom, e somente o item de durabilidade atingiu maior numeração e se classificou no status regular, conforme a figura 3.

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Figura 3. Gráfico do resultado das entrevistas com os pais sobre questões estéticas e funcionais.

O custo é considerado por metade dos pais como regular e em segundo lugar foi considerado alto, conforme figura 4.

Figura 4. Gráfico do resultado das entrevistas com os pais sobre os custos dos uniformes.

Os pais também foram questionados sobre reclamações ou elogios referentes aos uniformes. A principal insatisfação novamente foi quanto à qualidade e durabilidade das peças, que muitas vezes formam pilling facilmente, o tecido é de péssima qualidade, desbota facilmente, não permite que o corpo transpire, criando como consequência mau cheiro à roupa. Outra questão levantada pelos pais foi a não padronização das combinações das cores e o excesso de opções de modelos dos uniformes, caracterizando falta de padronização.

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5. Desenvolvimento do Uniforme

Foram realizados diversos esboços baseados na técnica de geração de alternativas 635 de Bonsiepe (1984), que consiste em seis pessoas escreverem três possíveis soluções para o problema em até 5 minutos. As respostas são passadas para o participante ao lado, que deve acrescentar mais três soluções e assim por diante. Após analisar os esboços, foram feitos cinco desenhos finais agrupando diversos conceitos. Desses cinco, apenas um foi escolhido e aprimorado, resultando no desenho da peça final.

Teste em Peça Piloto

A peça piloto da jaqueta foi confeccionada no tecido New Span, de composição 96% poliéster e 4% elastano; forro 100% algodão; enchimento de manta acrílica; 100% acrílico e acabamentos 100% poliéster e 100% couro.

A jaqueta se transforma em colete, com a saída das mangas, os bolsos têm corte na diagonal para facilitar a entrada das mãos, as mangas possuem tiras para ajuste nos braços, impedindo a entrada de vento. A camiseta foi confeccionada com malha branca 100% algodão e detalhes em dryfit 100% poliéster.

Peça Final

A peça final da jaqueta foi confeccionada no tecido liquid repellent, 100% poliéster, que proporciona maior facilidade de limpeza e remoção de manchas, menor índice de sujeira, conforto e proteção, ótima transpirabilidade por não ser impermeável, toque macio e acabamento resiste a 50 lavagens. No forro utilizou-se o tecido bangkok, 100% poliéster, com proteção ultravioleta (FPU) 47, proteção antimicrobiana através do acabamento de íons de prata, bioestimulação celular, que produz fortalecimento do sistema imunológico. O enchimento foi duplo de manta acrílica 100% acrílico; os acabamentos da parte de baixo da jaqueta foram feitos em riabana 100% poliéster e reforços em 100% couro aplicados nos ombros e nos cotovelos. A jaqueta contém reforço em couro em cima dos ombros para apoiar a mochila e reforço nos cotovelos; os bolsos possuem abertura diagonal para facilitar a entrada das mãos; as mangas contêm tiras de ajuste para impedir a entrada do vento. A ribana localizada na parte inferior, também protege contra o vento, oferecendo proteção ao corpo e impedindo que a jaqueta suba quando os braços são levantados. A jaqueta também se transforma em colete, com a saída das mangas e contém capuz, conforme figura 5.

A camiseta final foi produzida com malha 100% algodão e detalhes na lateral e nas costas em tecido dryfit, 100% poliéster, facilitando a transpiração do corpo nas áreas onde existe maior efeito de sudação. Para impermeabilização da camiseta, foi aplicado o spray ultra lub que protege contra água e sujeiras em geral. Em ambas as peças a aplicação do logo da escola foi feita por bordado, conforme figura 5.

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Figura 5. Resultado final do protótipo Jaqueta e Camiseta.

6. Conclusão

A partir das análises desenvolvidas com os uniformes de outras escolas e com os uniformes do Colégio de Aplicação da UFRGS, e também as entrevistas realizadas com pais do colégio, conclui-se que a grande maioria dos uniformes disponíveis no mercado atual é de baixa qualidade, sendo compostos de tecidos extremamente comuns, não funcionais e pouco ergonômicos. Existe uma grande variedade de modelos disponibilizados para compra, porém a diferença entre eles é pouca, se limitando a diferenças capuz, gola, bolsos, recortes ou tipos de forro e acabamentos.

Sendo assim, o presente trabalho desenvolveu um novo uniforme funcional infantil, com detalhes e tecidos que vieram a suprir as necessidades de uma criança, quando submetida a atividades escolares. A jaqueta e a camiseta se mostram funcionais devido às múltiplas funções nela aplicadas, no que diz respeito às tecnologias têxteis e a fatores de modelagem.

Ambas as peças foram desenvolvidas para suprir necessidades do público infantil, serem mais funcionais, ergonômicas, esteticamente bonitas, duráveis e facilitar o dia a dia das mães em questões de limpeza e higiene.

Quanto à metodologia utilizada, percebeu-se que a mesma foi ideal para o desenvolvimento deste projeto, apesar da metodologia de Gui Bonsiepe ter sido desenvolvida para o design de produto.

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Recebido em 14/09/2015 e Aceito em 13/10/2015.

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A Dança e a Cidade: um estudo comparativo entre Pelotas e São Paulo

The Dance and the City: a comparative study between Pelotas and São Paulo

Débora Souto Allemand, Thiago Silva de Amorim Jesus Universidade Federal de Pelotas - UFPel Centro de Artes – Dança Licenciatura {[email protected], [email protected]}

Resumo. O presente trabalho é um resumo do Trabalho de Conclusão do curso de Dança Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas e aborda dois processos criativos em dança originados no e com o espaço urbano. O objetivo central do trabalho é analisar e comparar os modos de interação e influência exercidos pelo espaço urbano na produção artística dos grupos ...AVOA! Núcleo Artístico (São Paulo - SP) e Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto (Pelotas – RS), através dos projetos atuais dos mesmos – “Entre-espaços” e “In... Flor... Essência”. A partir das análises de dados em confronto com os referenciais teórico-metodológicos adotados, descobriu-se que os principais motivos que levaram os artistas ao espaço urbano para realizarem seus processos de criação foram a necessidade de afirmação política da arte, a possibilidade de ampliação da forma de fazer e compreender dança e a formação de público para a dança. As diferenças regionais e culturais das cidades onde os grupos fazem parte também ficaram claras nesse processo de leitura do espaço.

Palavras-chave: processos de criação em dança; cidade; corpo-espaço; dança contemporânea; arte de rua.

Abstract. This article is a summary of the undergraduate final paper in Dance done at the Federal University of Pelotas and analyses two creative processes in dance originated in and with the urban space. The goal is to analyze and compare the modes of interaction and influence exercised by the urban space in the artistic production of the groups ... Avoa! Artistic Group (São Paulo - SP) and Contemporary Center Berê Fuhro Souto (Pelotas - RS), through their projects "Entre-spaces" and "In ... Flower Essence ...”. From confrontation between data analysis and the theoretical and methodological frameworks adopted, noticed that the main reasons that led the artists to the urban space to realize their creative processes were the need for art policy statement, the possibility of expanding the way to make and understand dance and training an audience for dance. Regional and cultural differences of the cities where the groups are part also became clear in this space understanding process.

Key words: creative processes in dance; city; body-space; contemporary dance; street art.

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1. Introdução

Uma das características mais marcantes do tempo contemporâneo são a efemeridade, a liquidez e a velocidade das transformações. Os cidadãos da cidade são sujeitos múltiplos, sujeitos sociológicos, que não tem uma identidade fixa (HALL, 2005), em constante troca e reconstituição a partir do contexto em que residem. Somos bombardeados de informações que nos atravessam e nos transformam e empurrados pelo capitalismo para cada vez produzir e consumir mais. A maioria dos habitantes das cidades não tem experiência urbana, apesar de passar grande parte do dia no trânsito indo de casa para o trabalho e vice-versa.

A globalização hegemonizou a maioria das cidades e generalizou seus habitantes. Vivemos em espaços previsíveis, sem a possibilidade da surpresa e da experiência. Paradoxalmente, vivemos em meio à multidão de habitantes das cidades e ao mesmo tempo não temos troca com o outro, porque não temos tempo de parar pra pensar, parar pra sentir. Todavia, as cidades são importantes espaços de subjetivação e deveriam ser espaços de liberdade, de criação, de arte, pensadas e produzidas pelas pessoas e para as pessoas.

Entender o mundo contemporâneo necessita, então, pensar sobre corpo sem separá-lo do contexto em que está imerso, pois esses dois estão em constante troca. Por isso, Miranda (2008) sugere que o corpo do nosso tempo já não seja mais um corpo próprio e que ele torne-se corpo-espaço, em eterno vir a ser. Entender a dança hoje, também implica compreender que as técnicas experimentadas pelos sujeitos ficam inscritas em seus corpos e formam esses sujeitos. Neste caso, arte e vida estão fundamentalmente misturadas (DANTAS, 2004), uma das características da arte contemporânea. Bem como, sujeito e contexto também não podem ser entendidos separadamente.

Este modo de vida da sociedade contemporânea reflete diretamente no modo de fazer arte. Muitas obras artísticas atuais também são efêmeras e podem ser consideradas “obras abertas”, conforme sugere Eco (1991), pois possibilitam múltiplas leituras, a partir dos contextos e referências dos espectadores. A fluidez do nosso tempo tratou de diluir as fronteiras entre as linguagens da arte, entre artista e espectador, entre espaço cênico e espaço da plateia. Os modernistas, a partir da metade do século XX, discutiram sobre a democratização da arte e passaram a utilizar espaços alternativos ao teatro de palco italiano, entendendo que o processo da arte era tão importante quanto o produto.

Os anos 50 marcaram época dos movimentos de vanguarda, que influenciaram e seguem influenciando diretamente no modo de fazer arte hoje. Situacionismo, happening, performance e Judson Church foram alguns deles. Utilizavam a cidade como forma de fazer política e faziam críticas sociais e culturais. Propunham uma fusão entre as artes, rompiam com a arte tradicional e não desvinculavam a arte da vida. Trisha Brown, oriunda da Judson Church, na década de 70 apresentou obras em telhados e paredes e utilizava ações e movimentos diários habituais em suas coreografias. Nessa época, o Teatro de Rua denunciava a cara segregacionista do sistema e propunha uma mudança aos que caminhavam na rua: de simples pedestres a espectadores (CARREIRA, 2007), gerando novas formas de estar na cidade.

A cidade, por ser este lugar de mudança constante, tem grande potência para a criação artística, abrindo possibilidades de diferentes sensações e movimentos e ampliando as formas de fazer e compreender dança. Assim, diversos grupos de arte utilizam a rua como espaço de afirmação política e buscam na cidade inspiração para suas obras. Além disso, a arte de rua faz com que as pessoas percebam sua cidade, que geralmente é desconhecida pelos cidadãos, fomentando uma participação ativa na vida pública e indo de encontro a um estado de inércia das pessoas.

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Assim, a pesquisa aborda a temática do processo de criação artística a partir da relação da dança contemporânea com o espaço urbano. Para isso, proponho-me a um estudo qualitativo de comparação entre os grupos ...AVOA! Núcleo Artístico (São Paulo-SP) e Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto (Pelotas-RS), sendo que escolhidos os projetos atuais dos grupos em questão: Entre-espaços e In... Flor... Essência.

De tal modo, esta pesquisa tem o objetivo geral de analisar e comparar os modos de interação e influência exercidos pelo espaço urbano na produção artística dos Grupos ...AVOA! Núcleo Artístico e Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto. Além do objetivo central, o trabalho tem como objetivos específicos contextualizar as trajetórias artísticas dos grupos em questão, analisar as características dos processos de criação em dança desenvolvidos pelos grupos nos projetos Entre-espaços e In... Flor... Essência e, por fim, comparar as estratégias de composição coreográfica utilizadas, a fim de traçar relações entre dança e espaço urbano.

2. Metodologia

Através das leituras de Gerhardt e Silveira (2009) definiu-se o trabalho como um estudo qualitativo, buscando compreender os processos de composição atuais de dois grupos de dança, “...AVOA! Núcleo Artístico” e “Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto”. Não pretendo generalizar as formas de uso dos espaços urbanos pelos artistas da dança e sim, traçar uma comparação entre os dois casos citados a fim de compreender a relação entre a dança e a rua nos processos de criação Entre-espaços e In... Flor... Essência.

Para isso, foram utilizados principalmente dois instrumentos: entrevistas semiestruturadas com as diretoras e os bailarinos dos dois grupos estudados e observação junto aos grupos. Além desses dois instrumentos, fotos e vídeos serviram como material complementar para compreender as características dos dois trabalhos em estudo.

3. Cenários de Estudo: ...AVOA! Núcleo Artístico e Centro

Contemporâneo Berê Fuhro Souto

Para o estudo de comparação, foram escolhidos dois grupos que trabalham com dança contemporânea e pesquisam as relações entre criação artística e espaço urbano: ...AVOA! Núcleo Artístico, de São Paulo, e Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto, de Pelotas. O ...AVOA! surgiu com o propósito de realizar intervenções em espaços diferentes de palcos tradicionais e o Centro Contemporâneo iniciou suas criações no espaço urbano depois de diversos espetáculos realizados em palco italiano. Como é possível perceber, os dois casos têm diferentes trajetórias a respeito do histórico em trabalhos na rua, o que permitiu traçar relações complementares entre um e outro.

...AVOA! Núcleo Artístico

O ...AVOA! Núcleo Artístico surgiu em 2006 na cidade de São Paulo e busca no espaço urbano um lugar poético e político. Luciana Bortoletto e Gil Grossi iniciaram sua parceria artística em 2001, pesquisando possibilidades de composição no palco ou em espaços alternativos entre fotografia e dança. Em 2006, Luciana Bortoletto e Gil Grossi fundaram o ...AVOA! Núcleo Artístico, e pela dificuldade em encontrar lugares para ensaios e apresentações, o grupo começou a utilizar a rua e espaços alternativos, como uma afirmação política da arte (BORTOLETTO, 2014).

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Ao longo desses anos, o grupo concretizou 12 trabalhos, divididos em dois tipos: de Rua (espaço público) e de Teatro (caixa preta). Ainda que o foco esteja nas pesquisas de movimento a partir da rua e na rua, o grupo também utiliza espaços alternativos e teatro para suas criações. Os principais projetos do grupo são Solo de Rua, Urgência: A Cidade do Avesso e Corpo Coletivo Movente, citados por Bortoletto (2014), todos com características de reflexão sobre e no espaço urbano.

Além dos trabalhos de criação artística, o grupo também é idealizador de ações teórico-práticas de trocas entre artistas independentes, estudantes, grupos de dança e coletivos de arte interessados na rua como território de criação e ação artística, poética, estética e política. Aprofundado essas questões, em 2013 o núcleo foi contemplado com o 14º Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, que subsidiou a pesquisa Corpo Poético, Corpo Político. O grupo tinha o objetivo de desenvolver a possibilidade de prontidão para apreensão das características do espaço urbano, propondo inverter a ideia de “dançar na rua” para a ideia de compreender a rua e, então, elaborar a dança (BORTOLETTO, 2014).

Os trabalhos do grupo buscam uma diluição das fronteiras entre as linguagens artísticas, dialogando com a performance, a poesia haicai, o teatro e as artes visuais. O tema do atual trabalho também traduz em parte o pensamento do grupo, buscando entender as relações, o entre, “não uma coisa ou outra coisa, não a gente nem eles, mas o que tem entre os dois” (SILVA, 2014, p. 107), assim, os papéis de artista e espectador também fica borrado, pois o grupo entende que quem passa no local de uma maneira ou de outra, também faz parte da ação.

“Entre-espaços: Relações possíveis no Encontro com a Rua”: O projeto atual do grupo estuda as relações entre a dança e a rua, através de pesquisas relacionadas à Rua São Bento, no centro de São Paulo, com auxílio do 16º Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo. Surgiu em continuidade ao projeto para manutenção de pesquisa artística Corpo Poético, Corpo Político, mas neste, como projeto de criação (BORTOLETTO, 2014).

Entre-espaços é um projeto para criação coreográfica com foco em espaços públicos, que se propõe a explorar formas e processos relacionais, levantando questões acerca dos encontros entre as pessoas e nas relações entre elas e entre as pessoas e o espaço. O local escolhido para o trabalho foi a Rua São Bento, no centro de São Paulo, porque era trecho do projeto anterior e “surgiram muitas questões ali, apareceram muitas provocações”, além de ser um local com características interessantes, como uma rua muito antiga da cidade, que carrega muitas histórias e memórias (SILVA, 2014, p. 108).

O trabalho ainda está em processo de composição, mas o grupo tem duas ações já consolidadas: as “micro-resistências” e a “caminhada lenta”, as duas surgiram de observações e de fotografias, que é uma metodologia bastante utilizada pelo grupo, tanto que eles utilizam o Edifício Martinelli como ponto de observatório. Assim, o “micro-resistências” serviu como um disparador para o grupo pensar as relações da rua e surgiu como uma metáfora da natureza na cidade – planta que cresce em fachada, raiz de árvore que rompe o concreto e ergue o asfalto – e que as pessoas só percebem quando já está dada. Como se pode reconhecer na figura 1, os bailarinos instauram-se em vãos, como se fossem essas plantas (BORTOLETTO, 2014).

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Figura 1: Grupo em ação nas Micro-resistências, inspirado na imagem da direita, 2014.

Crédito: Gil Grossi, 2014.

E a “caminhada lenta” (figura 2) foi outra forma de observação do local, também convidando as pessoas a olhar, e uma opção de dilatar o tempo daquele espaço, que é uma rua de muitos fluxos (SILVA, 2014). Mas essa ação só funciona dentro de certo contexto, “dependendo do momento que a gente faz, ou do trecho da rua que a gente escolhe” (LIMA, 2014, p.136) e, por isso, eles entendem que as pessoas ao redor também fazem a cena junto com eles.

Figura 2: Caminhada lenta na Rua São Bento, 2014.

Crédito: Gil Grossi, 2014.

Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto

O Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto surgiu em 1990 na cidade de Pelotas-RS. Foi fundado por Berê Fuhro Souto, que já trabalhava com dança e movimento na Estímulo Centro de Arte e Movimento desde 1983 (SOUTO, 2014). Durante esses 24 anos, Berê Souto trabalhou com diversas formações do grupo e apresentou 10 espetáculos. Apesar de o foco do grupo ser de atuações em palco, muitas vezes utilizaram espaços alternativos como forma de ampliar as possibilidades de entender a dança. Como preparação para o espetáculo Nau dos Sentimentos (figura 3), o grupo fez laboratório na rua durante dois anos, com o objetivo de colher material para a composição. Berê Souto explica que “o grande amadurecimento do grupo se deu a partir da rua”, pois o bailarino está “desprotegido” e tem que estar “atento ao que está acontecendo, e ao mesmo tempo concentrado dentro do que está fazendo, porque se não se esvai a energia e foi tudo” (SOUTO, 2014, p. 144).

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Figura 3: Espetáculo “Nau dos Sentimentos”, 2004.

Fonte: CENTRO CONTEMPORÂNEO BERÊ FUHRO SOUTO, 2014.

Nos laboratórios trabalhados no calçadão de Pelotas, o grupo realizava intervenções inusitadas para compreender o que o público compreendia como “loucura”, tema do trabalho. Eles utilizavam equipamentos escondidos para filmar a movimentação que era feita pelas pessoas e o que era falado em reação àquela cena.

Desde 2013, Berê coordena o Projeto Palavra Coreografada, em parceria com Josiane Franken. O projeto conta com apoio da Biblioteca Pública de Pelotas, local onde ocorrem as aulas e ensaios do grupo. Além da preparação corporal, o grupo realiza Seminários de discussão sobre dança, como o Políticas Públicas para a Dança 2010 e o Dança Fora de Si 2013, com o objetivo de abordar a formação de público para a dança contemporânea, interagir e discutir com outras linguagens da arte e difundir as políticas para a dança. Esses momentos de discussão também são importantes para “que o bailarino tenha mais conteúdo” (SOUTO, 2014, p. 144), já que Berê Souto critica a “exteriorização” que muitos grupos de dança adotaram a partir da criação de movimentos em relação a um espelho.

Em virtude disso, a diretora trabalha instigando os bailarinos a criarem movimentações a partir do interior e das sensações que as tarefas dadas por ela significam para cada um. Ainda, Berê Souto busca bailarinos que se compreendam e possam viver melhor, dançar melhor com a vida (SOUTO, 2014). As obras do grupo são construídas de forma colaborativa entre a diretora, que faz a gestão da cena, e os bailarinos. Para Barboza (2014), a diretora também costuma valorizar o repertório pessoal dos bailarinos. Berê Souto pensa a dança como educação, por isso entende que “quem aprende a caminhar, aprende a dançar” e, assim, forma seus grupos com pessoas de diversas áreas e idades, desde que estejam dispostas a dançar (SOUTO, 2014).

“In... Flor... Essência”: O projeto atual do grupo caracteriza-se como uma intervenção urbana de dança contemporânea que propõe um diálogo entre a cidade e os sujeitos. O espetáculo está sendo criado em árvores da cidade de Pelotas, localizadas em sua maioria no bairro Laranjal. O trabalho tem o intuito de aproximar o público da dança contemporânea e de ampliar as possibilidades de espaços para a arte em Pelotas. O grupo propõe uma metáfora entre as flores, a árvore e as relações entre as pessoas, pensando sobre si mesmo através da cidade.

As experimentações e laboratórios nas árvores do Laranjal foram iniciadas em maio de 2014 em consequência da falta de local para aulas e ensaios. O Centro Contemporâneo Berê Fuhro Souto aposta que levar a arte para a rua é torná-la mais democrática e dinâmica, já que o espectador é capaz de interferir na obra. Na figura 4,

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é possível notar que as bailarinas trabalham tanto em cima da árvore quanto no entorno dela, dialogando com o espaço e com as pessoas que passam ao redor.

Figura 4: Utilização da parte superior da árvore e seu entorno, 2014

Crédito: Berê Fuhro Souto, 2014.

4. Processos de Criação em Dança no Espaço Urbano

Com base nos projetos Entre-espaços e In... Flor... Essência, foi possível prospectar alguns aspectos relacionados ao processo de criação em dança e ao espaço urbano. A partir das análises dos dados coletados, juntamente com a minha percepção durante o acompanhamento dos dois grupos em estudo, emergiram três eixos, que são: Intenção, Lócus e Movimento no Espaço. Esses eixos servem como linhas condutoras de análise e posterior comparação dos processos de composição em dança com vistas a compreender de que maneira o espaço urbano pode fomentar o processo artístico.

Primeiramente, é preciso compreender os contextos onde os trabalhos artísticos dos dois grupos estão inseridos, para analisar o tipo de criação artística realizada pelos sujeitos. O ...AVOA! estuda a Rua São Bento, localizada no centro da metrópole de São Paulo (figura 5), cidade mais populosa do país, com 11 milhões de habitantes (IBGE, 2014). Na Rua São Bento, estão localizadas duas estações de metrô e muitos dos grandes Bancos do país, incluindo a Bolsa de Valores, próximo a ela localiza-se a Rua 25 de Março, ponto forte de comércio no local.

Figura 5: Rua São Bento – São Paulo.

Fonte: GOOGLE MAPS e Débora Allemand, 2014.

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Já o Centro Contemporâneo, utiliza a Praia do Laranjal na cidade de Pelotas (figura 6) para seus ensaios. Pelotas é uma cidade localizada ao sul do Brasil, com uma população de 320 mil habitantes (IBGE, 2014) e está à margem da Lagoa dos Patos. Com um ritmo de vida diferente do da população de São Paulo, os habitantes costumam tomar chimarrão e fazer caminhadas no calçadão dessa praia aos fins de semana.

Figura 6: Praia do Laranjal - Pelotas.

Fonte: GOOGLE MAPS e Débora Allemand, 2014.

Após ter estado em contato com ambos ambientes, vale destacar que qualquer comparação entre os trabalhos dos dois grupos deve considerar que os lugares onde os trabalhos acontecem têm qualidades distintas e, por isso, os fatores que influenciam os sujeitos nas criações, provavelmente não serão os mesmos, ainda que o fomentador dos dois grupos para o trabalho na rua tenha sido a dificuldade de obter espaços adequados para ensaios e apresentações. É preciso também levar em consideração que os corpos e os espaços estão em relação e transformação constante (KATZ; GREINER, 2002) e que, assim como os espaços proporcionam certos tipos de trabalhos através dos corpos dos bailarinos, esse trabalho realizado também transforma o espaço.

Os dois grupos encaram o espaço público como um espaço de afirmação da dança, um espaço para fazer política através da democratização da arte. Berê Souto (2014, p. 146) assume: “eu acho que a dança tem o seu lugar, deve ocupar esse lugar na rua, mesmo que não seja de um espetáculo de rua” e Luciana Bortoletto (2014) expõe que ocupar a cidade é uma questão de necessidade, de investigação de como ocupar o local onde se vive. Portanto, nas falas das duas diretoras é perceptível que a dança vai para a rua não somente por falta de espaço, mas também como forma de exigir o direito à cidade.

Os grupos em estudo assemelham-se às propostas do movimento denominado Judson Church Dance Theater na questão de buscar outros espaços para fazer arte, já que na década de 50 ocorreu uma mudança no pensamento sobre os locais pra fazer arte. Na ocasião, os artistas organizaram um recital numa igreja de Nova York, com a intenção de discutir novas formas de arte. Trisha Brown, então, propôs performances na rua com a intenção de atenuar os limites entre a vida e a arte, ideia fundamentalmente política.

Outra característica em comum entre os dois trabalhos, ainda que tenham seus lugares distantes geograficamente, é a temática dos dois projetos. No In... Flor... Essência, bem como no Entre-espaços, a relação entre as pessoas é um fio condutor. Neste último, o ...AVOA! trata da relação dos bailarinos com a arquitetura e com as pessoas que trabalham e passam na Rua São Bento. Segundo André Silva (2014), a

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dificuldade e a potência do seu trabalho é a questão de não estar num lugar bem definido, mas de buscar o que há entre os bailarinos e a arquitetura e entre os bailarinos e os transeuntes. Com isso, o grupo discute o lugar da dança na cidade, entendendo que a dança não está somente no bailarino, mas no jogo, aonde um vai transformando o outro mutuamente a partir da relação.

No processo In... Flor... Essência, a questão abordada pelo grupo pelotense advém da metáfora da (falta de) comunicação entre as flores para pensar sobre a relação entre as pessoas. Berê Souto (2014, p. 149) explana: “a gente tem que se conhecer muito, exercitar muito para ter uma relação verdadeira com alguém” e comenta que esse exercício de experimentação nas árvores pode facilitar na afinidade do grupo, fazendo com que as bailarinas aprendam a criar na relação entre uma e outra, sem deixar de lado as características individuais (figura 7). Nesse trabalho, fica perceptível “a maneira que eu dialogo com a vida” (SOUTO, 2014, p. 147), ou seja, como se dão as relações das bailarinas com as pessoas que fazem parte do seu entorno.

Figura 7: Criações em contato entre as bailarinas.

Crédito: Berê, 2014.

Para ambas as diretoras, os processos de criação no espaço público facilitam a interação entre o grupo. Bortoletto (2014) diz que estar na rua durante todo o processo é fundamental para a conexão e para dar confiança aos bailarinos, deixando cuidar-se e cuidando do companheiro, já que são muitas atividades que acontecem ao mesmo tempo na rua. Além disso, estar todo o tempo exposto, mesmo no momento de experimentação, faz com que o bailarino entre num estado maior de concentração.

Em relação aos múltiplos acontecimentos que a rua proporciona, Luciana Bortoletto (2014) comenta que o bailarino deve ser sensível a ponto de apreendê-los para ser ágil na resposta e fazer com que o trabalho tenha força poética e seja interessante ao público. Esses estímulos, segundo Ostrower (1990, p. 1) podem ser entendidos como catalisadores da criatividade, “questionando o sentido de nosso fazer e imediatamente redimensionando-o”, ou seja, podemos apreender certo fato e entendê-lo como acaso ou não e responder àquilo ou não. A rua proporciona uma infinidade de estímulos ao processo criativo, entretanto, eles só se tornam acasos se os julgarmos importantes para nós naquele espaço-tempo.

Assim como na rua, os acasos também acontecem nos espaços internos e passaram a ser utilizados em cena com destaque por Merce Cunningham. Cunningham e Cage pesquisavam a não-hierarquia entre as artes e propunham que as obras de música, dança e vídeo por exemplo, acontecessem no mesmo momento, mas ao acaso, sem ensaio prévio. Assim, o conjunto só era apresentado no momento da estreia e cada apresentação era uma nova estreia.

O ...AVOA! Núcleo Artístico propõe-se a estar em ação a todo o momento, “o ensaio é a ação” e não tem uma divisão clara entre o momento da cena e o momento em que ela acaba, “não tem uma solenidade” nem a preocupação de estar em cena; para os

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bailarinos é um ato natural (BORTOLETTO, 2014, p. 97 e 98). Tal situação acarreta numa mistura entre a vida e a arte e entre o sujeito e o personagem, o mesmo que propunha Trisha Brown na obra Walking on the wall, onde os bailarinos faziam movimentos cotidianos, mas em situações diferenciadas. As obras de Brown tinham a intenção de ser mais um evento naquele espaço urbano.

Percebe-se a diferença entre os dois grupos pesquisados quanto a esse tema, já que um tem uma trajetória de atividades no espaço da cidade e tem mais facilidade de imergir naquele contexto e outro tem maior experiência de apresentações em palco italiano, onde o próprio espaço proporciona que o início e o término do espetáculo sejam melhor definidos. Possivelmente, é por isso que as bailarinas do grupo pelotense relataram da dificuldade da criação no espaço público, onde se está exposto, e admitiram que isso interfere na sua concentração. Para Mônica Barboza (2014), que por muitos anos dançou balé clássico, o fato de estar exposta é o mesmo que estar em cena e essa linha divisória, nas criações na rua, é difícil de acontecer.

Para facilitar na agilidade da resposta aos estímulos do ambiente, o ...AVOA! aposta em abordagens somáticas, pois entende que os bailarinos devem conhecer a si mesmos para desenvolver a escuta para a improvisação, estando atentos às maneiras de se relacionar com o entorno. É preciso conhecer-se e saber o que se está fazendo para perceber os acasos do processo. “Assim os acasos iluminam espaços vivenciais que se abrem à nossa mente e, à medida em que os ocupamos, o mundo vai se ampliando para nós” (OSTROWER, 1990, p. 7). Quer dizer que se o bailarino não souber o que está buscando, os fatos que ocorrem no espaço urbano podem passar despercebidos.

O ...AVOA! também trabalha com a “linguagem do palhaço”, enfoque que auxilia na prontidão, porosidade e agilidade na resposta aos estímulos que vem. A linguagem do palhaço configura-se como forma de expressão cênica que busca a interação com o público e provocar o riso de alguma maneira. “O palhaço é dono de uma composição gestual que se apoia na contradição, no exagero e na busca de revelar o artista: seu ridículo e seus sentimentos” (MATOS e BELTRAME, 2014). Então, a facilidade em atingir o público é o que interessa da linguagem do palhaço para o grupo paulista.

A seguir, abordarei de modo mais detalhado os quatro eixos elencados para análise dos processos de criação em relação ao espaço urbano:

Intenção

Os dois grupos estudados têm diferentes propostas iniciais em seu surgimento, o que repercute diretamente no processo de realização de seus projetos. O ...AVOA! surgiu com o propósito de realizar intervenções em espaços diferentes de palcos tradicionais; já o Centro Contemporâneo, depois de muitas criações artísticas para palco italiano, começa a criar no espaço urbano. Entretanto, apesar dessa diferença, nas entrevistas realizadas, integrantes dos dois grupos relatam que a intenção de interagir com a rua passa por uma necessidade de ampliar a forma de entender dança, além de aumentar as possibilidades de movimento e de composição cênica. (SOUTO, 2014).

O espaço da árvore possibilita maior número de perspectivas porque ele facilita no deslocamento e troca de lugares do público, já que não tem um único local estipulado para ele, enquanto num palco italiano, geralmente, o espectador assiste de um mesmo local todo o espetáculo. Além disso, na rua, cada espectador vai assistir de uma maneira, dependendo do local em que estiver posicionado, ou seja, esse tipo de espaço provoca outros olhares sobre os trabalhos de dança.

Outra intenção que foi possível perceber através das falas dos integrantes do grupo paulista foi a necessidade de atingir as pessoas que passam na Rua São Bento no momento da ação do grupo, fazendo com que elas possam se tornar o público da ação. Deste modo, são utilizadas diversas estratégias para conseguir essa relação,

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uma delas é o uso de elementos que ativem a memória dos sujeitos, como a sanfona utilizada para criar múltiplas sonoridades. Esse elemento, assim como o jogo feito como aquecimento pelo grupo (Cavalo Marinho), provocam identificações dos imigrantes nordestinos naquela região em relação ao que está sendo realizado. Para Luciana Bortoletto (2014, p. 97), também é importante compreender “que composição que acontece como consequência do acontecimento performativo”, assim, os pedestres tornam-se participantes da ação, pois a postura deles interfere na postura do grupo, numa troca mútua. E quanto mais houver a interação do espectador-transeunte, mais diversificados são os elementos para a composição coreográfica.

Além dessa relação que o público cria com o processo, os dois grupos buscam conversar com as pessoas, ouvir a opinião delas a respeito do trabalho. Isso é feito durante e depois da experimentação, com os que permanecem no local. Segundo André Silva (2014, p. 116), esse retorno serve para refletir sobre o que estão propondo e interessa saber “quais as possíveis leituras ou dramaturgias surgem”, pois isso também faz com que o ...AVOA! “reformule, repense, olhe novamente” sobre o próprio processo. Quanto ao grupo pelotense, a intenção também é explicar o processo de criação para o público, dialogar sobre outro conceito de arte, porque a maioria não imagina que se possa construir arte noutro lugar que não o teatro tradicional, lugar formal.

Para Berê Souto (2014), o In... Flor... Essência também estimulará às pessoas enxergarem a si mesmas através da cidade, descobrirem a cidade e, então, descobrirem a si mesmas, o que confirma, mais uma vez, a compreensão de que corpo e ambiente são co-dependentes (KATZ; GREINER, 2002). A diretora confrontou a experiência de assistir um espetáculo de dança na rua a caminhar na cidade, já que a caminhada proporciona olhar a cidade com mais cuidado, o que pode ser comparado à atividade de caminhar na cidade do movimento Situacionista. Para este grupo, a principal forma de fazer com que a construção das cidades realmente fosse feita pelos cidadãos era com atos de caminhar na cidade.

Com isso, é possível compreender que o grupo de Pelotas tem a intenção de fazer com que os espectadores se apropriem realmente o lugar em que vivem e fiquem atentos à cidade, “a que nós conhecemos e a que nos é desconhecida” (SOUTO, 2014, p. 152). Esta cidade para a qual estamos de olhos fechados e com a qual não nos permitimos ter experiência, cidade em que vivemos e que não sentimos fazer parte de nós.

O grupo ...AVOA! também busca surpreender àqueles que percebem os corpos incrustados das micro-resistências, pois esta ação confunde quem olha, “a pessoa não sabe se aquilo é ficção ou realidade” (BORTOLETTO, 2014, p. 97) e só percebe realmente a ação do grupo quando já está construída. Na figura 8, a bailarina em ação no SESC Ipiranga, busca incrustar-se nos vãos do local da apresentação.

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Figura 8: Bailarina incrustada no vão, SESC Ipiranga, 2014.

Crédito: Gil Grossi, 2014.

A ideia do grupo de colocar-se nos vãos da cidade surgiu de observações das plantas que resistem à cidade edificada e encontram espaços entre um lugar e outro para crescer. A metáfora é utilizada para chamar a atenção dos sujeitos para certas atividades pouco vistas na cidade.

Lócus

Para o grupo pelotense, a escolha do local deu-se principalmente em função da estrutura da árvore e facilidade de subir nela, do que pelo espaço urbano do entorno. Foi escolhido o Bairro Laranjal – praia de água doce - para o trabalho justamente porque é onde tem maior quantidade de árvores na cidade. Além da facilidade de subir e descer, o número de ramificações da árvore também contou, já que quanto mais, maior as possibilidades de interação das bailarinas com o local. Todavia, quando a árvore não facilitava a subida, as bailarinas utilizavam mais as raízes que ficavam para fora da terra e o entorno da árvore.

O grupo ...AVOA! escolheu a Rua São Bento principalmente porque ela fez parte do Projeto Corpo Poético, Corpo Político, realizado em 2013 também no centro de São Paulo. Esta rua foi um dos locais onde surgiram as discussões mais significativas do trabalho e o grupo sentiu-se bem recebido lá, fato que teve importância para a realização do estudo na rua, segundo Simone Lima (2014). Além disso, a imagem da rua vista de cima foi outro dos motivos de escolha do local, já que muitos integrantes têm formação acadêmica em áreas das artes visuais e a “imagem” foi recorrente na fala dos entrevistados. Conforme Luciana (2014, p. 89), há “um grafismo do fluxo de pessoas” quando vista de cima do Edifício Martinelli (figura 9), ponto onde eles se reúnem para observação do local.

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Figura 9: Rua São Bento vista a partir do Edifício Martinelli.

Crédito: Débora Allemand, 2014.

No caso do ...AVOA! Núcleo Artístico, foi realizada uma intervenção fora do local de estudo, o que possibilitou que as potências do trabalho fossem reveladas. Segundo André Silva (2014), a apresentação no espaço do SESC Ipiranga exigiu muito do grupo no sentido de reelaborar a discussão sobre os aspectos mais importantes da pesquisa, para depois adaptar a obra para um local com relações completamente diferentes das relações estabelecidas na Rua São Bento.

As vegetações que surgem nos vãos na rua, por exemplo, são muito diferentes das de um local fechado. A relação de estreitamento do espaço das relações que eles buscam na rua, num lugar interno é muito mais fácil, porque as pessoas foram ao local com o intuito de assistir o grupo, diferente do público da cidade que na maioria das vezes está de passagem e é surpreendido pela ação. A relação de “tensionamento” do tempo, trabalhado na rua São Bento, um local de grande fluxo de pessoas, não foi possível de perceber com a mesma facilidade porque o SESC Ipiranga é um lugar muito mais calmo que a rua em questão, então a “caminhada lenta”, uma das ações realizadas pelo grupo, não funcionava da mesma maneira.

Movimento no Espaço

Em virtude dos diferentes contextos que os grupos fazem parte, foram encontrados diferentes fatores que influenciaram nos processos de criação desses coletivos artísticos. No grupo de Pelotas, os elementos naturais – vento, luz, clima, temperatura, movimento e sons das folhas da árvore – foram os mais recorrentes nas falas das entrevistadas. O vento pode interferir no equilíbrio das bailarinas quando se está no topo da árvore e o frio, por exemplo, faz com que as bailarinas fiquem mais tensas (ROZISKY, 2014). Esse tipo de elemento natural não apareceu nos depoimentos do grupo de São Paulo.

Os equipamentos urbanos que foram mencionados pelas bailarinas do In... Flor... Essência foram banco, lixeira e calçada, além dos carros estacionados, da areia em volta da árvore, onde foram feitos desenhos, e dos indivíduos que passam no local, buscando criar movimentos por entre eles no momento em que as bailarinas saem da árvore (OLIVEIRA, 2014). Neste movimento de encontro aos sujeitos as bailarinas têm a intenção de proporcionar experiência para elas, causar uma desterritorialização, para que os sujeitos saiam do lugar comum e percebam a cidade sob outra perspectiva.

Já para o grupo paulista, do Entre-espaços, o intenso fluxo de pessoas é corriqueiro e fez com que o grupo buscasse uma movimentação contrastante com o ritmo de

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caminhada as pessoas no lugar, “optando por dilatar esse tempo, por tensionar esse lugar, esse espaço-tempo que cada um experimenta”. As pessoas que trabalham na rua, principalmente os que fazem sons para vender produtos, como o “Seu Edson” (figura 10) que vende “Natura e Avon” – produtos de beleza -, também compõem o trabalho na questão sonora, além dos “carros que passam com os apitinhos ligados” (SILVA, 2014, p. 120).

Figura 10: “Seu Edson”. Crédito: Débora Allemand, 2014.

As características do trabalho do ...AVOA! na performance realizada pelo grupo com intervenção do “Seu Edson” assemelham-se às características dos happenings que ocorriam em 1950 e 1960. Nesses eventos, os artistas entendiam que toda pessoa presente participava dele e não distinguiam atores e público, compreendiam que existiam momentos onde os espectadores sentiam-se à vontade e intervinham. No caso do Seu Edson, o grupo o convidou para participar da intervenção da maneira que ele sentisse vontade e ele escolheu falar partes do corpo humano em meio às suas falas de venda dos produtos “Natura e Avon”.

Com relação aos sons, a diretora do ...AVOA! utiliza uma sanfona durante as experimentações, “que tem uma relação com a nossa respiração” (SILVA, 2014, p. 120) e auxilia na “dilatação” do tempo da rua. O Centro Contemporâneo também utiliza esses dois tipos de sons para criar movimentos, imitando os sons externos – o que as pessoas falam, sons do vento e da própria árvore – ou dialogando com as colegas durante o processo, falando a frase sugerida pela diretora e transformando-a, além de pensar sobre o que está fazendo, o que “alimenta o movimento” (BARBOZA, 2014, p. 184).

Para o grupo que pesquisa a Rua São Bento, uma rua estreita e com prédios muito altos, essa característica é utilizada pelo grupo, por ser uma rua diferente da maioria das grandes avenidas de São Paulo. Existe um contraste também entre as muitas pessoas que passam e os vendedores que estão parados ali o dia inteiro. Outro elemento mencionado pelos entrevistados foram as grades, que são elementos que fomentam as relações entre dentro e fora e causa estranhamento de quem passa quando vê o grupo em ação utilizando-as. Para Luciana Bortoletto (2014), as grades com os corpos são uma espécie de uma partitura musical, enquanto imagem.

No caso dos dois grupos, percebeu-se grande utilização de elementos verticais, como a própria árvore e as grades, o que proporcionou maior utilização dos membros superiores e de força principalmente dos braços (figuras 11 e 12). O movimento com as pernas, no caso do estudo do grupo de Pelotas, ficou restrito, porque, no caso das

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bailarinas que deram depoimento, foram elas que deram estabilidade ao corpo, fazendo surgir novos tipos de movimentos.

Figura 11: ...AVOA! Núcleo Artístico em ação nas grades da Rua São Bento.

Crédito: Gil Grossi, 2014.

Figura 12: Bailarinas do Centro Contemporâneo fazendo movimentos de força e com os

membros superiores. Crédito: Berê, 2014.

O desafio à gravidade (figura 13) foi uma das características de movimentação citadas por Lana, em entrevista, o que ela considera interessante, já que normalmente no espaço convencional não é utilizado esse tipo de trabalho. Estar de cabeça pra baixo proporciona uma sensação diferente e permite trabalhar com a questão da acrofobia (medo de ficar em lugares altos). Segundo Mônica Barboza (2014, p. 177), “estar pendurado é muito diferente (...). E isso proporciona sensações diferentes, trocas diferentes, (...) olhares diferentes”.

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Figura 13: Bailarinas do Centro Contemporâneo em desafio à gravidade.

Crédito: Berê, 2014.

Ainda sobre as experimentações do Centro Contemporâneo, a relação com o chão também é outra, já que o “chão é o galho”, o chão não é liso, não é plano. E isso amplia a possibilidade criativa quando se volta ao espaço convencional de aulas e ensaios. As bailarinas também destacaram que o estudo na árvore possibilitou um novo olhar sobre o espaço convencional, prestando mais atenção a esse espaço, a lugares, texturas, objetos que antes passariam despercebidos.

Por outro lado, o grupo de São Paulo trabalha muito mais com movimentos lentos, em pausa (figura 14), encolhidos e em torção, buscando contraponto aos lugares onde estão, uma escolha muito baseada nos desafios de uma grande metrópole, um lugar de muitos fluxos e estímulos. Desta maneira, o grupo escolheu fazer uma crítica à velocidade das cidades e à falta de experiência, buscando “um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: [...] parar para olhar, parar para escutar” (BONDÍA, 2002, p. 24).

Figura 14: Bailarinos em pausa e caminhada lenta.

Fonte: ...AVOA! NÚCLEO ARTÍSTICO b, 2014.

No caso do grupo de Pelotas, a grande quantidade de pessoas não é algo corriqueiro e devido a isso, algumas bailarinas relataram que quando muitas pessoas param para apreciar o trabalho, elas têm mais dificuldade de concentrar-se no processo de criação. Porém, se não estivermos abertos para o acaso que a cidade pode trazer e saber que parte de nós relaciona-se com aquele fato, continuaremos criando para nós mesmos e não ampliaremos o vocabulário de movimentos, é preciso aprender a perceber os acasos do processo e lembrar que todas as atividades que fazemos estão em constante troca com o espaço.

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5. Conclusão

A partir da análise dos dados coletados, foi possível compreender melhor os processos de criação dos dois casos de estudo e notar que os temas iniciais utilizados pelos dois grupos foram, de um modo geral, semelhantes: as dificuldades de relações entre as pessoas. Os temas surgiram de análises da vida da sociedade urbana, assim como no movimento denominado Performance, onde as obras geralmente estavam pautadas na vida social.

Contudo, as diferenças entre uma cidade média no sul do Brasil e uma metrópole no sudeste do país ficaram claras, exaltando as culturas de cada ambiente. Enquanto o motivador para o movimento dos bailarinos paulistas foi principalmente o ritmo das pessoas do local e os sons produzidos por elas, as bailarinas pelotenses foram mais instigadas pelos elementos naturais, como vento, clima, etc. Entendo, assim, que a arte de rua valoriza as cidades onde está inserida, de modo que também as transforma a partir de suas apropriações dos espaços públicos.

Durante as análises, descobri que os dois grupos iniciaram seus processos de criação no espaço público porque descobriram na cidade um lugar de afirmação de seu trabalho, um espaço possível de fazer arte em virtude da falta de investimento público em espaços adequados para a dança. As duas diretoras, assim como os artistas do Judson Church, provaram que fazer arte também é fazer política e que a cidade é o espaço onde as atividades políticas podem e devem acontecer. Desta forma, pesquisar o espaço público em ação prática no local ou de forma teórica, como neste trabalho de conclusão de curso, é modificar a sociedade através de discussões políticas, entendendo que as cidades devem ser locais de apropriação dos cidadãos.

Com a ocupação desse espaço alternativo ao palco italiano, surgem questionamentos acerca dos dualismos criados pela arte tradicional, como a relação entre artista e público, entre vida e arte e entre processo e produto. A arte contemporânea na rua deixa mais clara ainda a diluição entre artista e espectador, própria da contemporaneidade, já que, dependendo da perspectiva do olhar, o público confunde-se com os bailarinos por não existir divisão clara entre palco e plateia, como ocorre no palco tradicional, por exemplo. No caso do ...AVOA! Núcleo Artístico, o grupo considera que a paisagem sonora da Rua São Bento faz parte do trabalho, então o “Seu Edson”, por exemplo, que fica na rua vendendo “Natura e Avon” e falando essa frase, pode ser considerado artista junto com os outros integrantes do grupo.

Pelo fato da arte estar entremeada ao cotidiano da cidade, vida e arte misturam-se, causando confusão nas pessoas que passam e criando novas realidades para aquele ambiente. A arte passa a fazer parte do cotidiano e desfaz-se a ideia de que a vida cotidiana é a realidade e as obras de arte são algo além disso. Aliás, neste caso, não existe um momento único de apresentação da obra, pois o processo de criação é público e estar na rua é estar em estado de concentração e presença cênica. É importante que o bailarino esteja realmente envolvido no processo, para saber o que está propondo e qual sua intenção naquele momento. Isso faz com que, posteriormente, os bailarinos estejam mais preparados e confiantes em cena, pois as sensações experimentadas no espaço urbano tornam-se parte dos sujeitos, já que o meio da dança é o corpo.

Estar num estado de performance em todo o processo de criação aumenta a facilidade de lidar com os imprevistos de um trabalho na rua, pois, nesse espaço, são muitos os estímulos do ambiente. Para os dois grupos, esses estímulos são importantes de ser aproveitados, a fim de que exista a interação real com o espaço e para que o trabalho possa atingir o público de alguma maneira. Os trabalhos artísticos no espaço público são uma maneira de formar público para a dança, já que as pessoas geralmente ficam curiosas com o que está sendo desenvolvido e costumam perguntar sobre o processo.

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A arte de rua facilita no diálogo entre o artista e o público, possibilitando que o artista tenha um retorno sobre o trabalho que está sendo realizado.

Utilizar a cidade para criação artística é pensar a dança a partir de outras maneiras de utilização do espaço, que não só a forma tradicional do palco italiano, onde público e artista estão um de frente para o outro. É admitir novas formas de compreendê-la e aumentar as possibilidades da arte, bem como nas propostas do grupo da Judson Church, que utilizavam espaços alternativos com o mesmo objetivo - discutir novas formas de arte -, indo contra as influências da dança moderna predominantes na época.

Notei que os trabalhos na rua possibilitaram utilização de elementos na vertical, o que é menos comum nos espaços convencionais. Isso fez com que os bailarinos trabalhassem mais com o desafio à gravidade, por exemplo, pois muitos movimentos foram realizados de cabeça para baixo, causando novas sensações nos sujeitos que dançam, o que também proporcionou um novo olhar para os bailarinos, que passaram a prestar mais atenção aos detalhes dos espaços em geral. O processo experimentado no espaço urbano fica gravado no corpo dos bailarinos, já que esse é o meio da dança. Assim, experimentar novas sensações de movimentos faz com que o sujeito tenha maior repertório de possibilidades para criação em dança.

Uma das importantes descobertas do estudo foi a respeito da troca de local para descobrir as características marcantes da obra artística. Apresentar o trabalho em criação no espaço urbano num local diferente do espaço da Rua São Bento, um lugar fechado no SESC Ipiranga, revelou as características do trabalho do ...AVOA! e do local de estudo original. A troca de local exigiu do grupo uma reelaboração da discussão acerca do trabalho e fez emergir as potências do projeto.

Entretanto, detectei que um dos problemas da pesquisa estudar os processos atuais dos grupos foi a dificuldade dos entrevistados afirmarem alguns fatos sobre o trabalho, já que algumas particularidades ainda não estavam definidas, dado o estágio dos processos de criação. Porém, isso permitiu que eu acompanhasse os grupos de forma mais incisiva e garantiu a coleta de alguns dados através da memória recente dos bailarinos, o que talvez não tivesse ocorrido com projetos antigos dos grupos.

Com isso, destaco que os processos artísticos criados em espaços alternativos ao palco italiano e à sala convencional de ensaio são capazes de trazer importantes discussões acerca do tipo de arte que está sendo produzida, do lugar da dança e de contribuir para a formação de público ou, ao menos, de inquietar os cidadãos no contato com a dança na rua. Cidadãos estes, que na contemporaneidade, em geral estão afastados da arte, pois não reservam tempo de seu dia para as experiências sensoriais e trabalham de forma mais racional. Ou seja, facilitar o acesso à arte, levando-a para o espaço público, possibilita que um maior número de indivíduos possa vir a ser espectador dela.

A apropriação das cidades como forma de resistência e de ampliação das possibilidades artísticas é uma maneira de lutar pela sensibilização e aprendizado através da arte-educação. Arte não só como forma de entretenimento e sim arte que realmente seja capaz de produzir pensamentos sobre o mundo em que se vive. Arte capaz de sensibilizar os cidadãos das cidades e, com isso, possibilitar mais e melhores encontros e relações de troca entre as pessoas.

Fazer arte na rua é crescer nas brechas do sistema econômico como micro-resistência, colocando-se contra a hegemonização e racionalização das cidades e possibilitando aos espaços públicos darem lugar à construção de conhecimento através da experiência do corpo na cidade. Levar a dança para a rua é tornar as cidades contemporâneas mais próximas dos cidadãos, transformando lugares neutros em espaços singulares e abrir espaço para a diferença, o imprevisto, a novidade.

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Implicar os processos de criação artística aos espaços públicos é ler a cidade subjetiva e, por consequência, ler a sociedade e a cultura. Fazer arte de rua é tornar visível nos corpos dos artistas as características do lugar e do modo de vida da sociedade, através da corpografia urbana. Além disso, a interação dos cidadãos com a rua produz a cidade a partir de um movimento de mão dupla.

Referências

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Recebido em 26/02/2015 e Aceito em 13/10/2015.

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática em Cultura e Comportamento Vol. 5 n° 2 – novembrode 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Fotografia Digital: Reconfiguração do Recurso de Memória da Família Contemporânea de Vitória da Conquista - BA

Digital Photograpy: Reframing the memory resource of the contemporary family in Vitória da Conquista - BA

Layse de Sousa Lucena, Pedro Matos Rosa, Leatrice Ferraz Macário Faculdade de Tecnologia e Ciência - FTC Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda {[email protected], [email protected], [email protected]}

Resumo. Este artigo tem como base um estudo referente à fotografia e sua etimologia tanto em sua forma mais antiga quanto nos aspectos relacionados à sua evolução, evidenciando um novo modelo para preservação do recurso de memória familiar e apontando os processos evolutivos da fotografia digital comumente presente na sociedade contemporânea. Neste âmbito, o presente artigo, fundamentado numa pesquisa de caráter exploratório, bibliográfico e de campo, objetiva verificar se as famílias contemporâneas da Av. Guanambi do Bairro Brasil, situado em Vitória da Conquista – BA continuam a cultivar o hábito de manter álbuns de fotografias. É perceptível a preferência da maioria das pessoas pela fotografia digital, uma vez que a facilidade no armazenamento é sua maior vantagem. Logo, pode-se afirmar que álbuns de fotografias já não são tão habituais.

Palavras-chave: fotografia digital, memória, família.

Abstract. This article is based on a study about photography and its etymology both in its earliest form as in aspects of its evolution. It also emphasizes the loss of family memory and shows the development of digital photography found in our contemporary society. Given the context, this paper, based on an exploratory, bibliographical and field research aims to verify if the contemporary families residing on Guanambi Avenue, Bairro Brasil in Vitoria da Conquista - BA still maintain the habit of keeping photo albums. Most people’s preference by digital photography is strikingly remarkable, since data storage is one of its main advantages. It can therefore be stated that photo albums are no longer as common.

Key words: digital photography, memory, family.

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1. Introdução

Com a chegada da câmera digital e dos celulares com câmeras embutidas, o mundo se tornou fotográfico. A fotografia se tornou o meio de guardar memórias, criticar, denunciar, reavivar sentimentos e acontecimentos. A fotografia convencional, retratos e álbuns empilhados no armário, deram lugar à praticidade de poder fotografar o que está acontecendo a qualquer hora, em qualquer lugar e compartilhar com seus amigos sem a necessidade de um álbum físico.

A fotografia digital surge com o intuito de facilitar a vida dos que a usam para gravar acontecimentos memoráveis, podendo ser arquivada com facilidade em pen drives, CD-ROOM e cartões de memória, ou excluída quando o resultado não se mostrou como o desejado. Com tanta facilidade no manuseio, a mesma, por vezes perde-se no esquecimento de arquivos de um computador fazendo com que a função da fotografia como recurso de memória também se perca. A forma de compartilhamento também foi modificada, os álbuns de família foram substituídos por fotos digitais em Redes Sociais.

Em consequência, a sociedade passou por uma grande e acelerada formulação em sua estrutura fotográfica, destinando em sua totalidade o foco de armazenamento a plataformas digitais, dispositivos eletrônicos etc., se entregando ao novo modelo fotográfico. Esse processo trata-se da facilidade que a tecnologia fotográfica vem propor aos usuários, que por sua vez passam a utilizar de forma abrangente as novas funções e ferramentas que o mercado apresenta, eventualmente se observa o uso superficial e a perda gradativa do significado da fotografia, é nesse contexto que o presente projeto se apresenta.

Este trabalho tem como objetivo demonstrar se as famílias contemporâneas de Vitória da Conquista – BA continuam a cultivar o hábito de manter álbuns de fotografias, analisando também se a fotografia digital substituiu a fotografia analógica no meio familiar, identificando o que fez modificar o hábito sobre álbuns fotográficos. Por isso, fez-se necessário a realização desta pesquisa para que se pudesse compreender o que motiva uma pessoa a deixar de lado os álbuns de família que perduram por gerações, por fotos compartilhadas na web ou esquecidas em arquivos de um cartão de memória, as mesmas que podem se perder num simples clicar de botão delete.

Acredita-se que tais informações serão importantes no campo da Fotografia, pois contribuirá para que estudantes e profissionais da área entendam as modificações que a Fotografia Digital acarretou no modo como as pessoas registram suas memórias, o qual está incluso em uma realidade social.

2. O que é Fotografia?

Segundo Salles (2008), como o próprio nome diz, fotografia (foto: luz, grafia: desenho) significa “desenhar com luz”, trata-se originalmente de uma técnica para criar imagens usando da exposição da luz e compostos químicos. No entanto, a criação da fotografia não é obra de um único autor. Os pioneiros nesse campo foram: Nicéphore Nièpce (em 1765) e Louis Daguerre (em 1829).

Niépce produziu a primeira fotografia, reconhecida historicamente, em 1826. Utilizando uma placa de estanho coberta por um material fotossensível chamado betume da judéia que secava rapidamente quando exposto à luz formando uma imagem rudimentar. Através das divulgações de suas pesquisas, Daguerre se interessou pelo trabalho de Niépce e os dois começaram a trocar cartas dando início a uma sociedade em busca da reprodução de imagens. Logo após a morte de Niépce,

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Daguerre deu continuidade à pesquisa criando o daguerreótipo, uma forma de revelação que diminuía o tempo de horas para minutos.

Uma das primeiras expressões de fotografia foi a câmera escura. Não se sabe sua origem, no entanto, foi bastante usada nas pinturas Renascentistas e em grande parte dos séculos XVII e XVIII. Daguerre a utilizava em suas pinturas.

Os fundamentos daquilo que veio a se chamar fotografia vieram de dois princípios básicos, já conhecidos do homem há muito tempo, mas que tiveram que esperar muito tempo para se manifestar satisfatoriamente em conjunto, que são: a câmara escura e a existência de materiais fotossensíveis. [...] A câmara escura nada mais é que uma caixa preta totalmente vedada da luz com um pequeno orifício ou uma objetiva em um dos seus lados. Apontada para algum objeto, a luz refletida deste projeta-se para dentro da caixa e a

imagem dele se forma na parede oposta à do orifício. [...] Fotossensibilidade é um fenômeno que quer dizer, literalmente, ‘sensibilidade à luz’. (SALLES, 2008, p. 01-02)

Mas mesmo antes de Niepce e Daguerre, a história humana já demonstra a vontade nata em registrar o real, desde a pintura dos acontecimentos cotidianos nas pinturas das cavernas dos tempos pré-históricos. E as cenas familiares estão entre os registros mais comuns, sejam em pinturas rústicas ou pela fotografia. Para Sontag, “pouca importância têm as atividades que são fotografadas, contanto que se tirem fotografias e que essas sirvam de lembranças”. (SONTAGE, 1981, p. 09)

A fotografia foi popularizada a partir de 1888 com a empresa Kodak e seus filmes em forma de rolo. As câmeras fotográficas em forma de caixão se tornaram mais acessíveis ao público, antes as famílias que precisavam de fotógrafos profissionais para fazer suas fotos passaram a ter suas próprias câmeras. Sabe-se que hoje em dia as câmeras fotográficas fazem parte de todo conjunto familiar, elas têm se tornado um objeto indispensável na vida das pessoas.

Popularmente, a fotografia é o registro de uma determinada imagem, onde também é uma prova de que aquele momento existiu. Não é possível capturar uma imagem idêntica em instantes diferentes, cada história registrada é um momento único que não se repetirá.

Percebe-se que, desde o surgimento da fotografia, a tecnologia tem se feito presente modificando e criando novas formas de fotografar. Com a chegada da foto digital, dos celulares, das webcams e entre outras, a câmera de filme fotográfico tem sido deixada de lado e julgada como relíquia. Antes, tínhamos os álbuns para ativarmos as lembranças, hoje temos os cartões de memórias, notebooks, computadores, mídias; O tátil deu lugar ao digital e tecnológico.

Segundo Martins (2010, p. 16), “muito mais que a simples perpetuação de uma cena, a fotografia é um testemunho, um depoimento silencioso que, assim como a pintura, a escultura ou outras linguagens, carrega a identidade de seu autor.” Portanto, fotografia é a forma de gravarmos e guardarmos momentos vividos, é a forma mais antiga de ativar uma memória ou reviver um sentimento.

3. Fotografia Digital

Surgindo no século XX, a fotografia digital veio para revolucionar a forma convencional de fotografar. As câmeras que antes necessitavam de rolos fotográficos para

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funcionarem, agora só precisavam de um cartão de memória e uma bateria. As fotos digitais podem ser visualizadas e apagadas após o “click” e não se faz mais necessária a revelação. Práticas, compactas e tecnológicas. (FELIZARDO, 2007)

Segundo Machado (2005, p. 01), “este novo sistema denominado ‘Fotografia Digital’ é apenas a evolução do método convencional de obtenção de fotografias”. Porém, na década de 90, seu alto custo, a baixa qualidade de imagem e a necessidade de algum conhecimento técnico para utilizá-la, foram os fatores que a impediam de chegar a todos os públicos. Só a partir dos anos 2000 que se deu o boom da fotografia digital. As câmeras se tornaram mais práticas e o seu custo acessível à maioria.

Com o avanço tecnológico vieram os celulares com câmeras embutidas, a partir daí as câmeras propriamente ditas passaram a não serem as únicas formas de se fazer fotos digitais. Como citado por Oliveira (p.01), “com o surgimento da fotografia digital, qualquer cidadão com uma câmera embutida no celular tem a possibilidade de desempenhar o papel antes reservado aos jornalistas.” É o que acompanhamos atualmente, pessoas registrando com seus celulares cenas de acidentes de trânsito, roubos ou cenas do dia-a-dia e divulgando simultaneamente na web. Este processo que antes demorava semanas, desde as fotos passarem por edição até a publicação das mesmas, hoje em dia é feito em questão de minutos ou até segundos.

Com toda a facilidade que as fotos digitais trouxeram consigo, os aplicativos de edição e manipulação, sem dúvidas, foram os mais polêmicos. O Photoshop, programa desenvolvido pela Adobe, é o mais conhecido e utilizado pelos fotógrafos e designers gráficos. Projetado com ferramentas capazes de modificar totalmente uma foto digital, ele é capaz de tirar uma mancha indesejada ou até “emagrecer” o sujeito da foto. É bastante utilizado em fotografias publicitárias, assim como em fotografias de celebridades causando a impressão de “perfeição” a quem a observa.

Entretanto, não podemos afirmar que o Photoshop seja vilão da história. Assim como a fotografia digital, ele veio pra facilitar o processo de edição, antes mais difícil de ser feito com a foto analógica. Como citado por Sontage (2004, p. 13), “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar, sobre o que temos o direito de observar.”

Em suma, observa-se que, com a foto digital o mundo ficou mais próximo de cada um de nós. Saber o que está acontecendo no Japão ou como está o clima de New York se tornou muito mais fácil quando observamos uma foto compartilhada na web. A fotografia digital não só modificou a forma convencional de fotografar, mas também a forma de observar o que acontece ao nosso redor.

4. A Fotografia como Recurso de Memória

Desde a pré-história, o homem vem buscando meios de contar histórias que falem de sua própria vida; naquele tempo, através das pinturas rupestres nas cavernas. No século XX, pinturas e monumentos eram as formas que as famílias mais nobres utilizavam para falar sobre sua linhagem, de onde vieram e até onde chegaram. Um século depois a ideia de querer congelar momentos permanece; as pessoas continuam gravando suas histórias de vida através da fotografia, dos álbuns, etc.

Subtende-se que a fotografia é usada como recurso de memória. Momentos que não lembramos mais são reavivados ao observarmos uma fotografia. Ela congela e registra para sempre situações que nossa memória por algum motivo deixou se perder.

Este é o grande valor pertencente à fotografia. Com razão, Le Goff

afirma que ela “revolucionou a memória” pois, de imediato, a fotografia pode ativar a memória, falar sobre um passado, permitir revivê-lo no presente, mesmo não sendo ela pertencente ao indivíduo

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que a observa, mesmo não sendo até ela a rememoração de seu passado. (FELIZARDO, 2007, p. 217)

Percebe-se que é de tamanha importância para o ser humano congelar grandes momentos de sua vida, seja através de pinturas, monumentos ou fotografias. A necessidade de memória é o fator mais forte nisso tudo, assim como a credibilidade de mostrar que aquele momento realmente existiu. Olhar para uma fotografia e reviver sentimentos ou poder mostrá-la para amigos como prova, é o que se procura.

Houve um tempo em que ter álbuns de família servia como referência, como citado por Felizardo (2007, p. 213), “a memória fotográfica da família. Essa memória ajuda a dar sentido à nossa existência; ela nos faz tornar cidadãos, compreender melhor o mundo, e a compreender quem somos.”

Porém, é perceptível que essa forma de recordação tem se modificado, uma vez que o hábito de guardar fotografias em álbuns está cada vez mais rara. No entanto, a vontade de registrar esses momentos continua a mesma, tendo a forma de arquivá-las se modificado.

Com o surgimento da câmera digital, computadores e cartões de memórias bem como a própria internet, passaram a ser os locais de arquivamento de fotos. As fotografias que antes eram reveladas e amontoadas em álbuns, agora ocupam megabites (unidade de medida de informática) de espaço em discos rígidos. Com tamanha facilidade na forma de manuseio, recordar um momento vivido através da fotografia ficou a um “click” de distância, assim como os avanços tecnológicos ajudaram para que seu custo ficasse mais acessível a todos os públicos.

Um fator importante para a recordação é a fotografia, pois ela funciona como uma espécie de memória social, capaz de registrar momentos,

pessoas e locais que nunca mais existirão. Desde os anos trinta e quarenta, com o avanço das máquinas fotográficas, que permitiram uma fixação rápida e instantânea das cenas vividas pelos grupos sociais e dos próprios indivíduos, a fotografia passou a registrar imagens que poderão servir de memória. (MONEGO, p. 73)

Portanto, é possível afirmar que a fotografia nos serve como um meio de mostrarmos nossa história de vida, ela reacende sentimentos, revive lembranças perdidas no subconsciente.

Nossas comemorações, conquistas, feitos, datas, descobertas […] Fotografar significa congelar no tempo a nossa memória, atestar e perpetuar a nossa existência. Este é o mais popular e talvez o mais antigo uso da fotografia: parar no tempo e no espaço algo que, para nós, tenha sido provavelmente importante ou simplesmente agradável,

familiar, bonito, atraente. (FELIZARDO, 2007, p. 217)

A memória humana é constituída por fragmentos do cotidiano já vivido. Segundo Le Goff (1990, p. 423), a fotografia “como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.” Dessa forma, o ato de fotografar se tornou o meio de congelarmos pra sempre aquilo que possivelmente se perderia em nossa memória com o passar o tempo.

Se é possível recuperar a vida passada – primeira realidade – e se temos, através da fotografia, uma nova prova de sua existência, há na imagem uma nova realidade, passada, limitada, transposta. (KEIM,

1971, p. 64)

Tal afirmação de Keim é corroborada com o pensamento de Barthes, onde ele afirma afirma que uma fotografia é “uma reconstituição, um fragmento, como a arte

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prodigaliza, mas o real em estado passado: a um só tempo o passado e o real. (...) a fotografia é toda evidência” (BARTHES, 1984, p. 124)

Memória e fotografia caminham juntas, estão contida uma na outra. Não há fotografia que não seja agregada a uma memória, seja ela boa ou ruim. Como citado por Felizardo (2007), “assim como a fotografia, a memória também recria o “real”. Portanto, fotografia é memória e com ela se confunde. É o que nos permite até viver.”

5. Metodologia

Esta pesquisa possui caráter exploratório, bibliográfico e de campo. De acordo com Gil (2002), “um estudo exploratório tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses, tendo como objetivo principal o aprimoramento de ideia e a descoberta de intuições.” Já a pesquisa bibliográfica foi desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos, com o propósito de explorar conteúdos que fazem relação ao tema.

Foi feito também um estudo de campo, ao qual sua principal função foi o de aproximar o pesquisador da realidade do problema da pesquisa.

As pesquisas deste tipo caracterizam-se pela interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja conhecer. Basicamente, procede-se à solicitação de informações a um grupo significativo de pessoas a cerca do problema estudado para, em seguida, mediante análise quantitativa, obterem-se as conclusões correspondentes aos dados coletado. (GIL, p. 50, 2002)

Portanto, este projeto é direcionado à um estudo de natureza quantitativa, sendo assim a utilização de questionário estruturado a alternativa mais eficaz para se obter um resultado contundente, pois “quando os dados são obtidos mediante questionários, os custos tornam-se relativamente baixos;” (GIL, p. 51, 2002). Logo, este projeto buscou compreender se a fotografia digital modificou a forma como as famílias perpetuam suas memórias.

A coleta de dados foi realizada com vinte e seis famílias que habitam a avenida Guanambi, pertencente ao bairro Brasil, situado em Vitória da Conquista – BA. A definição da população da pesquisa foi feita considerando amostragem por conglomerado, pois segundo Gil (2002), “em casos desse tipo, é possível proceder-se à seleção da amostra a partir de "conglomerados", conglomerados típicos são quarteirões, famílias, organizações, edifícios, fazendas etc.”

6. Análise dos Dados

A exposição e análise dos dados foi realizada com o auxílio de gráficos setoriais. Através deste, teremos uma noção do grau de influência que cada alternativa teve em cada pergunta.

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70

69%

8%

23%

0%

Para que você costuma usar a fotografia?

Para Registrar Momentos Importantes Por Profissão Por Hobby Outros

Figura 01

Na Figura 01, 69% afirmam usar a fotografia para registrar momentos e acontecimentos que consideram importantes, 23% usam a fotografia como lazer ou hobby, com mais frequência que os demais. E 8% fotografam por profissão. Segundo Martins (2010, p. 16) “muito mais que a simples perpetuação de uma cena, a fotografia é um testemunho, um depoimento silencioso que, assim como a pintura, a escultura ou outras linguagens, carrega a identidade de seu autor”.

Portanto, o gráfico (figura 01) demonstra claramente o que foi fundamentado até então: as famílias continuam a cultivar o hábito de fotografar aquilo que lhes é importante, fazendo assim da fotografia um meio de reativar a memória daquele acontecimento. Isso não significa que os mesmos indivíduos não fotografem aleatoriamente, já que as funções de uma câmera digital permitem mais fotos que uma câmera de filmes fotográficos, esta que continha um número limite de fotos.

Todavia, “lembrar um fato é buscar no passado lembranças e trazê-las para o presente” (MONEGO, p.75), isto é o que buscam os indivíduos que registram em fotografias momentos que lhes é importante: recordações.

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71

100%

0%

Você prefere fotografias digitais ou revelar filmes fotográficos?

Digitais Filmes Fotográficos

Figura 02

Na figura 02, pode-se observar que todos os entrevistados afirmaram preferir a fotografia digital. Assim, como citado por Oliveira (p.01), “com o surgimento da fotografia digital, qualquer cidadão com uma câmera embutida no celular tem a possibilidade de desempenhar o papel antes reservado aos jornalistas”. Desde o surgimento das câmeras digitais até a sua popularização, a facilidade no manuseio e a possiblidade de visualização instantânea da foto sem dúvidas foram os fatores de maior atração do público para com a fotografia digital. O que antes era impossível de ser feito com a fotografia analógica, com a chegada da digital passou a ser fácil, acessível e com o passar do tempo e avanço tecnológico, também de baixo custo.

O que o gráfico (figura 02) demonstra não é nenhuma surpresa. A fotografia analógica perdeu espaço para a era dos formatos digitais e grandes marcas que antes eram populares no meio analógico como a Kodak, que deu o início a era fotográfica no meio familiar, e a Fujifilm não acompanharam essa evolução tecnológica e perderam sua credibilidade. Já marcas como Canon e Nikon, antes encontradas também em formato analógico, se tornaram popularmente conhecidas só após o boom que se deu da fotografia digital, atualmente usadas principalmente por fotógrafos profissionais.

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72

4%

15%

66%

15%

0%

Como você costuma arquivar suas fotografias?

Em Álbuns CD-ROOM Computador Redes Sociais Outros

Figura 03

Na Figura 03, 66% dos entrevistados afirmaram arquivar suas fotografias em computador, visando a facilidade do armazenamento e busca da imagem, os outros 15%, usam CD-ROOM e as Redes Sociais como forma de arquivar suas fotografias. E 4% afirmaram utilizar álbuns de fotografia. Segundo Felizardo (2007, p. 208), “a fotografia digital, hoje, também trouxe revoluções: a imediata visualização do objeto fotografado – talvez a sua mais nobre característica – os menores custos na produção de imagens, e uma grande facilidade em manipular, editar e transmitir essas imagens”. Assim como a figura 01 demonstra que os indivíduos apenas imprimem suas fotos que consideram com maior relevância, a figura 03 mostra que a grande maioria destas passa por arquivos de computador antes de serem impressas ou até mesmo permanecem somente em formato digital.

7. Considerações Finais

Subentende-se que a fotografia digital vem tomando conta da rotina das pessoas, visto que as mesmas são usadas com muita frequência nas redes sociais. Já a analógica teve uma grande perda de espaço, embora ela faça parte da história da fotografia e também de um trajeto de evoluções tecnológicas.

Uma foto também é um meio de comunicação, pois através dela uma mensagem pode ser passada e entendida conforme a percepção de cada individuo com base em seu conhecimento de mundo. Uma mesma foto pode representar muito para uma pessoa e para outra pode não ter nenhuma importância.

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Portanto, tendo como base os objetivos que deram início a esta pesquisa. Podemos afirmar que, no meio familiar de Vitória da Conquista – BA, a fotografia analógica foi substituída por câmeras digitais e o hábito de manter álbuns físicos foi apenas transformado, passando então a serem arquivados em formato digital em computadores e CD-ROMM, também foi observado que, somente fotos que os indivíduos consideram relevantes são impressas, essas que remetem sentimentos bons ou que apenas lhes agrade os olhos.

Tais modificações se deram por conta da praticidade que a fotografia digital trouxe consigo, sua popularização e baixo custo além das vantagens quando comparada a fotografia analógica, contribuíram para que fosse modificada a forma que as famílias contemporâneas perpetuam suas memórias. Sendo assim, a partir destas informações pode-se afirmar que nossos objetivos foram alcançados.

Em suma, a fotografia analógica ou digital são registros pessoais do modo de ver de cada indivíduo, cada fotografia tem sua beleza, seu olhar, seu modo de ver. Fotografar é expor o que está dentro de si, é ter ao alcance das mãos um pedaço do seu passado, um momento vivido que não voltará.

Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara. Notas sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon

Guimarães. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984

FELIZARDO, Adair. A Fotografia como Objeto e Recurso de Memória. 2007. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/view/1500/1246. Acesso em: 10/09/2012. GIL, Antônio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.

KEIM, Jean. La photographie et l‟homme. Paris, Casterman, 1971

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.

MACHADO, Wilson André. Fotografia digital x analógica: A diferença na qualidade é perceptível? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dpress/v10n4/v10n4a12.pdf. Acesso em: 05/09/2012. MARTINS, Nelson. Fotografia: Da analógica á digital; Senac Nacional; Rio de Janeiro, 2010. MONEGO, Sonia. A Fotografia como Recurso de Memória. Disponível em: http://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/1153/648. Acesso em: 26/11/2014. OLIVEIRA, Erivam Morais. Da fotografia analógica à ascensão da fotografia digital. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/oliveira-erivam-fotografia-analogica-fotografia-digital.pdf. Acesso em: 05/09/2012. SALLES, Filipe. Breve História da Fotografia. Disponível em:

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http://www.sitedaescola.com/aulas_inovadoras/ju/A%20hist%F3ria%20da%20Fotografia.pdf. Acesso em: 10/09/2012. SONTAGE, Suzan. Sobre Fotografia. Companhia das letras. São Paulo, 2004.

Recebido em 01/07/2015 e Aceito em 13/10/2015.

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática em Cultura e Comportamento Vol. 5 n° 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Fotografias e memórias: uma folia

Photographies and memories: one folia

Karina Alves de Sousa, Tatiana Pontes Centro Universitário Senac Departamento de Comunicação e Artes - Bacharelado em Fotografia

{[email protected], [email protected] }

Resumo. Este artigo aborda o tema da Folia de Reis, tendo como suporte a fotografia. Inicia-se o assunto com a intenção de situá-lo no contexto cultural e explorar como o homem lida com conceitos tão poliédricos como cultura e folclore, uma busca por sentido no que se refere a essa expressão do povo brasileiro. A cultura vista não apenas como aquela advinda dos traços do passado, mas aquela que carrega a chama viva do presente, pelas mãos daqueles que a produzem. Também, de passagem, analisa-se a influência do capitalismo contemporâneo, a espetacularização da cultura e a indústria cultural. Em seguida, trata-se do ritual da Folia, suas origens, características, particularidades e transformações no decorrer do tempo. Uma narrativa subjetivista sobre esta tradição que faz parte da família há mais de 40 anos. Permeando estes assuntos, fragmentos de realidade e ficções. Memórias angariadas ao longo do percurso. A Folia de Reis sendo usada como pretexto para apaziguar a dor de uma ausência, um querer que não pode mais ser saciado em razão da finitude do Homem. Uma fotografia que não foi feita, a não ser pelo olhar do coração e da ficção.

Palavras-chave: fotografia, memória, folia de reis, cultura.

Abstract. This work presents the issue of Folia de Reis, being supported by photography. The subject begins with the intent to place it in the cultural context and explore how man deals with very polyhedral concepts such as culture and folklore, a search for meaning about the expression that refers to the Brazilian people. The culture seen not only as that arising from traces of the past, but the one that carries the flame of this moment, by the hands of those who produce it. Also, in passing, is analyzed the influence of contemporary capitalism, the spectacle of the culture and cultural industry. By next I consider the ritual of Folia, its origins, characteristics, peculiarities and changes over time. A subjectivist narrative about this tradition that is part of the family for over 40 years. Permeating these issues, fragments of reality and fiction. Memories acquired along the process. The Folia de Reis being used as an excuse to appease the pain of an absence, a wish that can not be satisfied because of the limitation of man. A photograph that was not made, except by the gaze of the heart and fiction.

Key words: photography, memory, folia de reis, culture.

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1. Introdução

Este artigo foi estruturado a fim de abordar três conceitos inter-relacionados, sendo Cultura, Folia de Reis e Fotografia.

Referente à cultura, a proposta foi dar uma visão sobre a diversidade e complexidade do conceito e situar o leitor neste universo. Sobre a Folia de Reis, cita suas origens e, como um objeto vivo da cultura popular demonstra suas modificações e adequações ao longo do tempo e seu momento atual. Ver, através do tempo, que este folclore ou cultura pode ser considerado, ao mesmo tempo, sagrado e profano, que envolve fé e relações de poder, que ainda move uma significativa parcela das populações locais. Por fim, a fotografia veio unir dois momentos da minha trajetória de vida: o resgate da memória e dos valores culturais vividos na infância e a atual convivência com o universo da Folia de Reis, aliados à prática e à teoria fotográfica.

Além disso, este trabalho é uma luta contra a morte da memória e contra o tempo que a tudo sepulta, já que contra a morte física nada se faz. Este é o propósito deste fazer que encontra amparo nos dizeres de Pierre Bourdieu, quando ele afirma que a principal função da fotografia é ajudar a aliviar a angústia ocasionada pela passagem do tempo, produzindo, desta forma, um sentimento de vencer seu poder de destruição (BOURDIEU, 2003, p. 52).

Importante destacar ainda que, paralelamente ao trabalho fotográfico prático foi realizada a pesquisa teórica, ou seja, ambos constituem o cerne deste estudo e se completam. Serviram, ora um ora outro, de suporte para o desenvolvimento das questões aqui abordadas.

Figura 1. A folia.a Fonte: autoria própria

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2. Da complexidade de conceitos

Faz-se necessário contextualizar a complexidade do que é a cultura, a fim de se saber onde está inserido o objeto deste estudo, a Folia de Reis. Cultura e cultura popular serão, portanto, os assuntos abordados inicialmente.

Cultura, em todos os sentidos, social, intelectual ou artístico é uma metáfora derivada da palavra latina cultura, que, no seu sentido original, significava o ato de cultivar o solo. Os sentidos conotativos da cultura não tardaram a aparecer. Cícero, por exemplo, já usava a expressão cultura anima, cultura da alma, identificando-a com a filosofia ou a aprendizagem em geral. (SANTAELLA 2003, p. 29).

Figurativamente, a derivar do conceito original, é a cultura sendo vista como uma possibilidade de desenvolvimento humano, de que algo pode ser aprendido e manifestado psicológica, material e socialmente, além de criar padrões de comportamento que se adéquam ao ambiente, por meio de processos conscientes, ou seja, estudados com o fim específico de se obter o resultado ou condicionados, por exemplo, através da repetição de uma técnica, usando os materiais naturais disponíveis para atender as necessidades humanas.

O termo cultura, de origem latina, só foi aplicado às sociedades humanas na Europa, no século XVIII, e a partir de então, surgiram tantos outros significados. Nesta proliferação dos sentidos de cultura, Kroeber e Kluckhohn (1952, apud SANTAELLA, 2003, p. 32) afirma que, em estudos realizados por estes antropólogos, chegou-se a 164 definições, que poderiam ser reduzidas a duas categorias:

Uma definição restrita, restritiva mesmo, que utiliza o termo para a descrição da organização simbólica de um grupo, da transmissão dessa organização e do conjunto de valores apoiando a representação que o grupo se faz de si mesmo, de suas relações com outros grupos e de sua relação com o universo natural; e um segundo tipo mais amplo de definição que não contradiz o primeiro, de acordo com o qual a cultura se refere aos costumes, às crenças, à língua, às ideias, aos gostos estéticos, e ao conhecimento técnico, que dão subsídios à organização do ambiente total humano, quer dizer, a cultura material, os utensílios, o habitat e, mais geralmente, todo o conjunto tecnológico transmissível, regulando as relações e os comportamentos de um grupo social com o ambiente. (MARTINON, 1985 apud SANTAELLA, 2003, p. 32).

São muitíssimas as teorias e entendimentos do que é cultura. Talvez mais instiguem um estudo aprofundado e específico do que clareie definitivamente a questão, e, ao penetrar na especificidade de cultura popular e folclore, não se tornam menos trabalhosos. Sem nenhuma pretensão de exaustividade, a intenção é dar ao leitor a ciência dessa complexidade, mas não isentá-lo de ter uma ideia geral de alguns pensadores da cultura, escolhidos para esta bibliografia, sendo importante salientar que, muitos outros autores de renome ficaram fora dessa seleção, por não ser a cultura o coração deste estudo.

Parece haver bastante divergência, também, em relação ao conceito de “cultura popular”. Segundo Arantes (2004, p. 8), podemos analisar a questão sob dois aspectos extremos. O termo “cultura popular” contrastando com o termo “cultura”, que é estudo, saber, uma pessoa culta, informada, com conhecimentos especializados, e que faz uso de técnicas, como a música erudita, por exemplo. No outro aspecto, “cultura popular” como sendo uma ideia romântica da tradição (repetição de tudo o que o homem do povo faz e reproduz), e serve como resistência contra a dominação de classe, enfatizando expressões artísticas como o repente e o cordel.

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O paradoxo parece ser no sentido de que “cultura” significa “saber”, ligado ao intelecto e “popular”, vindo do povo, significa “fazer”, ligado às atividades manuais. Essa ideia oriunda do capitalismo privilegia o trabalho intelectual, dando a ele status de superioridade em detrimento ao trabalho manual e, com isso, cria camadas hierárquicas nas empresas e na própria sociedade - as classes sociais, nas quais um arquiteto é mais importante que um mestre de obras e o primeiro tem poder sobre o segundo (ARANTES, 2004, p. 14).

Figura 2. Mão. Fonte: autoria própria

Para uma melhor compreensão, até esse momento, abordou-se o termo cultura-popular sob o enfoque da cultura como um saber. A partir deste ponto, será analisada a cultura-popular no enfoque da tradição.

Há um grupo de estudiosos que entendem a cultura popular como sendo “folclore, ou seja, como um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo religiosas e estéticas) consideradas tradicionais” (ARANTES, 2004, p. 16). Nesse sentido, as manifestações atuais seriam resquícios derivados de uma cultura que teve o ápice da sua vigência em épocas passadas e, as modificações ocorridas ao longo de sua prática são vistas como adulteradas, desvirtuadas, que perderam seu valor de origem. E, por perderem essa qualidade original, justifica-se que a elite culta faça um trabalho de organização, seleção, limpeza, expurgo e, posteriormente, seja devolvido ao público, reconstruído (ARANTES, 2004, p. 17-18).

É impossível deixar de acrescentar novos elementos e valores, se na reapresentação de uma manifestação cultural, ocorrem mudanças de personagens, alterações de locais, supressão de expressões típicas, etc. Quando aqueles que praticam a cultura popular passam a precisar de patrocínio para o acontecimento do evento, quando os promotores culturais retiram uma festa popular do seu contexto, das ruas (seu local original) e levam-na para o palco, teatro, por exemplo, ocorre uma perda significativa de seus valores, uma descontextualização e torna-se apenas uma representação. Assim, por exemplo, a festa de Folia de Reis, quando levada ao palco para ser

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televisionada, adquire com isso caráter comercial, divulga patrocinadores, visa lucro, promove governos, e, perde seu caráter de procissão, de contato imediato com o povo, de festa profano-religiosa.

Figura 3. Apresentação em praça pública. Fonte: autoria própria

Este é o trabalho da indústria cultural. A cultura deixa de ser algo particular de um grupo, passado através de gerações com todo seu contexto histórico e regional, e torna-se mercadoria, acessível ao grande público e àqueles que têm dinheiro. Para pegarmos um exemplo do assunto tratado, nos encontros de Folia de Reis, feitos nas cidades, é necessário que o devoto de Santos Reis, não morador daquela região, tenha condições de pagar seu deslocamento ida e volta até o local da festa, além de outros gastos decorrentes de passar um dia (ou mais) longe de sua residência, quando, na verdade e em origem, a Folia acontecia na sua própria comunidade, de forma gratuita e com convivência harmoniosa. A indústria cultural tira, inclusive, o sentimento de “pertencimento” do povo. O que lhe era nato, torna-se acessório. Esta forma de cultura mercantilizada, mediada pela indústria, assemelha-se aos bens do capitalismo, com as mesmas regras de produção, distribuição e consumo. E os atos culturais que, num momento foram considerados como atos contra a dominação, tornam-se conformes e passivos.

A Folia de Reis possui um ritual longo, se cantados todos os versos, pode se estender por mais de uma hora. A fim de se evitar a monotonia ou “melhorar a qualidade das apresentações” ou com a desculpa de que “todos precisam se apresentar no palco”, há a interferência dos patrocinadores, modificando aspectos formais da cultura: diminuição no tempo e no espaço de apresentação: cantam apenas trechos das músicas e saem da formação original, ficando empoleirados no palco. Além disso, acrescentam-se itens não usados habitualmente, como amplificadores e microfones, a fim de se conseguir melhor qualidade técnica para transmissão televisiva ou via rádio.

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O distanciamento com as origens acontece quando a indústria cultural toma conta destas práticas, oculta seu teor, e as torna “espetáculos” e não mais um compartilhamento do povo. Transforma em show o que é vivência e a arte, a devoção, a tradição e o ritual caem por terra. Neste sentido, Guy Debord argumenta que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.” (DEBORD, 1997, p. 13). Fruto do capitalismo, o espetáculo, na visão deste autor, é a relação social mediada por imagem, assim, o que passa a ter importância é a representação, a aparência. Uma folia de reis, ao se apresentar no palco, passa a ser aparência. Deixa todo seu caráter de vivência cultural de lado, deixa à margem, inclusive, o caráter de pertencimento do povo que, ao invés de praticar esta tradição, passa a observá-la, seja no palco ou na televisão. Está aí o caráter de espetáculo de Debord. A folia deixa de ser autora de sua própria história para ser dominada pelos meios midiáticos.

Longe de se chegar a um consenso nas duas concepções analisadas, 1)“povo-massa” (em contraposição a “elite”) e 2) “um espaço social onde se deturpam as tradições nacionais” (ARANTES, 2004, p. 21), o que se pretende é dar uma noção de como o termo “cultura popular” é visto entre leigos e especialistas. Parece haver uma visão negativa de como se vê a cultura manifestada pelo povo.

3. Folia de Reis

A Folia de Reis, vista do viés histórico, tem origem nos antigos rituais da Idade Média e remonta as passagens bíblicas de Lucas (cap. 2. Versículos de 1 a 20) e Mateus (cap. 2, versículos de 1 a 12) que conta a visita feita a Jesus por alguns Magos, guiados pela Estrela do Oriente, no seu nascimento, dia 25 de dezembro. Também na Europa Medieval havia representações teatrais da vida dos santos, com o acompanhamento de procissões com cortejos e folias. Conhecido como “Noëls na França, Villancicos na Espanha e Folia em Portugal” (PESSOA, 2003), “‘Folia’ foi uma dança popular, profana, costumeira em Portugal nos séculos XVI e XVII. Uma dança alegre, com homens vestidos ‘à portuguesa’, com guizos nos dedos, gaitas e pandeiros.” (BRANDÃO, 2003, p. 58-59).

O ritual de dançar e cantar vem desde os primeiros séculos do cristianismo. Por muitas vezes, houve conflito entre a permissividade e a proibição de dançar no interior dos templos. As danças foram oriundas das senzalas e terreiros e depois eram praticadas nas festas campesinas e nas ruas, posteriormente, passaram aos salões com a incorporação da música erudita. A compostura na dança ou a falta dela sempre foi tema caloroso dentro da Igreja.

A “Folia portuguesa” foi trazida ao Brasil no século XVII e incorporada às procissões das festas católicas, nas quais desfilavam fantasiados, cantavam, dançavam e representavam a vida dos santos. Estudiosos do carnaval no Brasil afirmam que nascem daí as escolas de samba. Acredita-se que os primeiros registros da Folia de Reis datam do século XVIII e, a partir desta data, tenha se difundido pelos estados brasileiros. Desde o século X, nas festividades do Natal, havia representações com a presença de personagens da Sagrada Família, pastores e anjos. Ao longo dos anos, mais personagens como bichos, soldados, Herodes e os Três Reis do Oriente foram sendo agregados aos rituais. Esses Autos de Natal - documentos em que se registram atos – foram trazidos ao Brasil e incorporados à liturgia pelos jesuítas, que catequizavam durante os cortejos nas ruas com danças e cantos aos santos padroeiros.

A influência da Igreja incorporou as danças e cantos à liturgia a fim de catequizar o povo no Brasil e, aos poucos, entendeu-se pela necessidade de controlar ou proibir as expressões populares dentro das igrejas – medidas purificadoras - devido às inadequações da sensualidade aflorada. Com estes atos, as danças, cortejos festivos e

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cantos populares, passaram do seu interior para os terreiros ao lado da igreja, para as ruas, praças, periferia e, por fim, aos campos.

Ali, entre lavradores caipiras e outros tipos de roceiros, desde muito cedo na Colônia havia festejos que, em escala rural, reproduziam festas de santos padroeiros. (...) Longe da presença e do controle direto de agentes eclesiásticos, o ritual votivo da Folia de Reis constituiu pequenas confrarias de devotos: mestres, contramestres, embaixadores, gerentes, foliões distribuídos segundo seus tons de voz e os instrumentos que tocavam. Com base em uma mesma estrutura cerimonial, ampliaram o circuito das visitações de casa em casa, o “giro da Folia”, introduziram novos personagens, como “palhaços”, “bastiões” ou “bonecos” que acompanham a maior parte das Folias de Reis até hoje. (BRANDÃO, 2003, p. 63-64).

Com a separação da estrutura religiosa (a Folia de Reis passou a dispensar, portanto, a presença de representantes do clero) e migração dos cânticos e danças do interior da igreja, novos elementos foram acrescentados ao modo de vida e à cultura do camponês, bem como a parte profana como a bebida, considerada um elemento a mais na forma de devoção. A Folia de Reis passou a ser uma prática devocional da comunidade, reunindo muitas pessoas, redefinindo símbolos do sagrado e do próprio jeito de se viver do campesino, baseados nas trocas de bens e serviços. Todavia, com exceção do personagem “palhaço”, o rigor de não dançar foi mantido pelos foliões.

Posteriormente, com a chegada da industrialização no país, veio o êxodo rural, nas décadas de 1960 a 1980, e a migração dos camponeses produtores do ritual para a periferia das cidades, assim, fez-se necessário uma readaptação de vários elementos da Folia de Reis, desde a composição dos integrantes do grupo até a estrutura do ritual, a fim de se readaptarem nos centros urbanos.

Novamente, ocorreu uma rivalidade entre os rituais da igreja já estabelecidos e estes grupos de rituais religiosos concorrentes. Alguns agentes eclesiásticos atacam frontalmente tais grupos, outros preferem ignorar e ainda há o setor progressista da Igreja Católica que procura uma reaproximação, numa aliança com o povo, talvez até com o fim de, outra vez, manipular as classes subalternas.

Em hábitos estranhos ao mundo camponês, padres incluem pequenos cânticos de Folia aos ritos litúrgicos, outros acompanham as procissões das Folias, outros modificam as letras e criam suas próprias Folias, e por fim, nascem os “movimentos de foliões”, que promovem encontros de muitas folias e integram práticas político-pastorais de mobilização popular. Extinguem-se assim, praticamente, os giros de folia, a solidariedade da comunidade em torno da folia local, não existe mais o porta-a-porta. Algumas folias se apresentam em programas de rádio, outras na televisão e participam até mesmo de concurso de folias, havendo a aproximação da indústria cultural.

Existem registros de Folia de Reis em diversos estados brasileiros. Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Bahia, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Maranhão, Paraná, Rio Grande do Sul e outros. Foi trazida ao Brasil pelos portugueses, conforme vimos anteriormente.

A Folia de Reis, também conhecida como Reisado em algumas regiões ou Folia de Santos Reis, ocorre, tradicionalmente, no período de 25 de dezembro a 06 de janeiro, que é o dia em que se comemora o Dia de Reis, em homenagem aos três reis que, seguindo a estrela do Oriente, foram ao encontro do menino Jesus, levando-lhe presentes.

Há divergência histórica sobre quantos eram os reis magos e sobre seus nomes, haja vista não haver na bíblia relatos expressos sobre eles. No evangelho de Lucas (capítulo 2, versículo 1 a 20) há referência a “anjos vindos do céu” e no de Mateus

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(capítulo 2, versículo 1 a 12) fala sobre “magos vindos do Oriente”, todavia não cita a quantidade de magos, nem seus nomes. Com o decorrer dos séculos, a Igreja, os pintores e teólogos é que foram definindo as lacunas bíblicas. Pela quantidade de presentes dado ao menino Jesus, ouro (realeza), mirra (humanidade) e incenso (divindade), entendeu-se que os magos eram três, chamados de Gaspar, Baltazar e Belchior.

Figura 4. Três Reis Santos. Fonte: autoria própria

A Folia de Reis, sendo um folclore, busca mais do que simplesmente passar uma informação que requeira imediata verificação, exige sim do leitor uma abordagem intuitiva, pois não há ciência que comprove essa realidade mutante e os fragmentos de realidade aqui descritos. Nessa narrativa há algo de miraculoso, de crendice. Para exemplificar, não há nenhuma passagem na Bíblia que cite o nome dos Reis Magos (Gaspar, Baltazar e Belchior). Por que não foram citados? De onde surgiram estas identidades? “Metade da arte narrativa está em evitar explicações” (BENJAMIN, 2008, p. 203). O fato é que, na fé e no imaginário popular eles existem e, através de narradores-foliões, vem sendo perpetuados.

Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. (BENJAMIN, 2008, p. 201).

4. A fotografia: memórias e o gesto de fotografar

Para falar da memória, e principalmente da memória fotográfica, a fim de contextualizar o assunto, faz-se necessário um breve passeio pela história da fotografia, para que se entenda qual foi a trajetória dos processos fotográficos, sua importância na vida humana enquanto representação, além de desenvolver um olhar crítico sobre o retrato. Ainda, numa outra vertente, procurar entender se o registro fotográfico desta festa popular apresentado aqui pode ter um caráter documental, dentro do recorte proposto. É a tentativa de olhar a fotografia não só pelo seu objeto, seu materialismo, mas também, pela sua representação, pela maneira como podemos ver e pensar o mundo através dela.

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A fotografia nasce, juntamente com o desenvolvimento de outras ciências, na Revolução Industrial e passa a ter importante papel de informação, apoio à pesquisa científica e expressão artística. Com a sua popularização foi possível registrar as formas de se viver do homem e seus costumes, como por exemplo, seus mitos e religiões, os aspectos sociais e políticos, a arquitetura, além dos tradicionais retratos de estúdio (KOSSOY, 2001).

A atividade de “retratar”, numa época anterior a essa, era delegada aos pintores, que atendiam às vontades das elites de se representar, adulando seus gostos pelo registro do próspero desenvolvimento da época, atitude que teve fundamental importância quando da chegada da fotografia, entretanto, nesta, ao contrário da pintura, parecia haver algo de diferente, conforme observa Benjamin:

Se os quadros permaneciam no patrimônio da família, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado. Porém depois de duas ou três gerações esse interesse desaparecia: os quadros valiam apenas como testemunho do talento artístico do seu autor. Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. (BENJAMIN, 2008, p. 93).

A pintura passou a dividir espaço com o daguerreótipo, processo fotográfico apresentado em 1839 por Louis Jacques Mandé Daguerre e, como objeto, era muito singular. O suporte da imagem era uma placa de cobre que, depois de revelada, era guardada em um estojo que permitia muitos ornamentos, fato que acabava por torna-lo oneroso. Além disso, não era possível fazer reproduções dessa imagem a partir do seu negativo e, para que se visse “(...) elas precisavam ser manipuladas em vários sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinza-pálida.” (BENJAMIN, 2008, p. 93). Para tentar solucionar esta última questão, surge o ambrótipo, negativo de vidro, com imagem positiva, mas que também, não permitia ser copiado (MOURA et al., 1983).

Como solução a estes processos de custo elevado, despontam, na França, os carte-de-visite, patenteados por André Disdéri, em 1854 e o invento se populariza e faz com que, da sua multiplicação, implique, pela quantidade e volume, a necessidade de acondiciona-los de uma forma mais adequada do que em cestas ou bandejas, nascendo os álbuns.

Reafirma-se, portanto, a ideia do retrato como cenário e artifício. Trata-se de um jogo que se inicia no estúdio do fotógrafo, prossegue com os retoques e acréscimos pictóricos e termina nos álbuns de família, complemente indispensável à decoração das salas de visitas das residências burguesas. (MOURA et al., 1983, p. 27).

Assim, além da própria fotografia, dois importantes acontecimentos, aliados, fizeram com que hoje se tenha o registro de nossos antepassados. Um deles é o álbum de família que permitiu uma melhor forma de guardar as fotos, e se transformou em um objeto de culto, e outro, ocorrido por volta dos anos 30 no Brasil, foi a difusão do retratismo de caráter amador, com o surgimento de câmeras compactas e mais fáceis de manusear. As fotos do dia-a-dia passaram a ser feitas por um membro da família, enquanto aquelas mais solenes eram, e são ainda hoje, delegadas a um profissional.

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Ele (instantâneo) sugere simplicidade ou ausência de preocupações técnicas. Ele é mais dinâmico do que estático, mais incidental do que formal, mais atento ao efêmero do que ao eterno (NOVAIS, 1998, p. 471).

A fotografia, diferente da pintura, tem aquela aparência de veracidade, uma centelha da vida que foi transmitida para a bidimensionalidade. Sim, sabe-se que a fotografia é fabricada, manipulável, que nela ocorrem omissões, acréscimos e pontos de vistas adulterados pelo autor da foto, tem apenas uma semelhança com o mundo externo. Ainda que possa existir nas fotografias algum caráter documental em razão do contexto histórico - um folião numa festa folclórica - ou, aos estranhos, haja algum “punctum” (BARTHES, 1984, p. 46) que desperte curiosidade, aquela experiência humana, a recordação da vida, parece ter mais força no seio familiar. Há uma proximidade sentimental ativada na memória. Punctum, segundo Barthes é o que atinge e fere o espectador, um detalhe, um interesse subjetivo que se impõe a quem vê a fotografia.

Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem – escolhida e refletida – de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação súbita do incontestável avanço dos ponteiros do relógio: é, pois o documento que retém a imagem fugidia de um instante da vida que flui ininterruptamente. (KOSSOY, 2001, p. 156).

Buscamos sempre a nossa relação com a imagem. Conforme dito por Roland Barthes, o “isso foi”, a fotografia contém um vestígio de que algo realmente aconteceu, todavia, ela não pode ser vista como sendo o espelho exato do real. Serve, portanto, mais como rememoração do que uma prova inconteste daquele fato. Nossas recordações são reavivadas quando olhamos uma fotografia. A perenidade dos fatos e lembranças é despertada ao olhar a imagem fixada. A fotografia, além da qualidade de nos fazer rememorar, tem a função de transmitir um pouco do que aconteceu no passado. Com as imagens e histórias contadas, repassamos às novas gerações um pouco da representatividade que os membros exerceram na trama familiar.

A fotografia se afigura um suporte da memória, quando não a própria história visual da família em que se entrecruzam a celebração da vida e a entronização dos mortos. O ato de revisitar esse tipo de fotografia quase sempre desperta um irrecusável convite à especulação memorativa. (NOVAIS, 1998, p. 457).

Nas palavras de Kossoy (2002, p. 137-138), “Apreciando essas imagens, descongelam momentaneamente seus conteúdos e contam a si mesmo e aos mais próximos suas histórias de vida[...]”.

E, se toda fotografia tem uma história, ainda que mediada pelo filtro cultural que é o fotógrafo, percorrer os arquivos fotográficos é entrar no terceiro estágio da trajetória da fotografia, conforme afirma Kossoy:

Os caminhos percorridos por esta fotografia, as vicissitudes por que passou, as mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que despertou, os porta-retratos que a emolduraram, os álbuns que a guardaram, os porões e sótãos que a enterraram, as mãos que a salvaram. Neste caso seu conteúdo se manteve, nele o tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo, envelheceu. (KOSSOY, 2001, p. 45).

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A conexão entre Folia de Reis e Fotografia para esta autora está justificada pela vida seu avô, que foi capitão de folia e, juntos, compartilharam momentos desta tradição.

A intenção de remexer nos antigos álbuns da família se dá em razão da “presença” do meu avô naquelas fotografias. Apesar de ter vivenciado com ele as experiências da Folia de Reis e tantas outras, a vida (e a morte) não permitiram que eu tivesse tempo para fotografá-lo. A decisão de ser uma fotógrafa ocorreu posteriormente ao seu falecimento, portanto, visitar estes arquivos é buscar, de alguma forma, através do olhar de outros fotógrafos, a imagem que eu não fiz.

No culto da lembrança dos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto das imagens encontra seu último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, nas fotos antigas, pela última vez emana a aura. É isso que lhes empresta aquela melancólica beleza, que não pode ser compara a nada. (BENJAMIN, 1978 apud KOSSOY, 2001, p. 220).

Figura 5. Vô Joaquim e o estandarte. Fonte: autoria desconhecida

Em um dos livros mais difíceis que li (e reli muitas vezes) na procura de entendimento para este trabalho, Georges Didi-Huberman, em seu texto “A imagem crítica” fala de um buraco aberto quando da escavação do passado. E assim me vejo. Indo buscar fotos, arquivos, memórias da família sobre meu avô e toda sua representação paternalista e por que não dizer folclórica. Acho tais objetos, escuto relatos, escavo os buracos da minha real e inventada história. Exijo esse esforço de minhas tias octogenárias, arranco lágrimas de saudade. Está aí o cerne da questão. Para tudo parece haver um preço. O preço de mexer com o passado faz mover toda a terra que o sepultou e, ao ousar remexê-la, vejo o buraco provocado por esta atitude: a ausência. A ausência é o próprio buraco. E, por mais que eu me proponha a escavá-lo a fundo

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na busca de um encontro, só acho a dualidade existente: quanto mais perto me sinto tendo o objeto em mãos, mais longe estou.

A saudade cria outro abismo. É o buraco da escavação que se confunde com o buraco da ausência, saber que não há, nem haverá nada que reponha o meu avô e os que se foram. Talvez o tempo seja a única coisa que, junto com o vento do esquecimento, sirva para jogar novamente toda a terra revolvida de volta ao buraco até que alguém ouse inadvertidamente voltar ao vespeiro da memória. As picadas são de dor, de saudade, de vontade de um abraço, mas esse veneno também inebria, arranca gargalhadas pelas peripécias passadas, faz escutar novamente aquele cavaquinho, entorpece por sentir honra de ter a oportunidade de ter sido criada neste ambiente de amor. Nesse momento, a morte dá uma trégua. Parece ser este um dos ciclos da vida. Vez ou outra alguém resolve oxigenar a terra da memória para que não se petrifique, sedimente. É como lembrar para esquecer.

Por um lado, o objeto memorizado se aproximou de nós: pensamos tê-lo “reencontrado”, e podemos manipulá-lo, fazê-lo entrar numa classificação, de certo modo temo-lo na mão. Por outro lado, é claro que fomos obrigados, para “ter” o objeto, a virar pelo avesso o solo originário desse objeto, seu lugar agora aberto, visível, mas desfigurado pelo fato mesmo de pôr-se a descoberto: temos de fato o objeto, o documento – mas seu contexto, seu lugar de existência e de possibilidade, não o temos como tal. Jamais o tivemos, jamais o teremos. Somos portanto condenados às recordações encobridoras, ou então a manter um olhar crítico sobre nossas próprias descobertas memorativas, nossos próprios objets trouvés. E a dirigir um olhar talvez melancólico sobre a espessura do solo – do “meio” – no qual esses objetos outrora existiram. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 176).

Já Susan Sontag (2003, p. 93) afirma que, de forma dolorosa, a memória é a nossa única relação com os mortos. É através dela que podemos acessar nossos entes queridos e o ato de recordar é intrínseco ao ser humano, que tem ciência da sua morte, em decorrência da passagem do tempo. Parece que queremos presentificar o passado.

Da busca pelos álbuns de família, compreendi, por fim, que o processo de ressignificação das imagens ali presentes é algo quase inevitável. O próprio olhar do presente transforma o sentido dos objetos. O tempo, a memória e o subjetivismo inerentes a cada ser, modifica o impacto causado pelas fotos, e faz com que as observemos com outro olhar. Cada um acessa a “realidade” à sua própria maneira. Ressignificar é possibilitar vias de derivação, permitir novas ligações e encontrar o novo escondido no antigo.

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Figura 6. Detalhes. Fonte: autoria própria

Nos seus primórdios, a fotografia tinha como meta o compromisso com a verdade e a realidade, também sendo considerada uma prova, todavia, esse entendimento foi vendo relativizados. A busca deixou de ser tanto a objetividade e ganhou maior valor, também, a expressividade sobre o assunto tratado. O discurso narrativo versava com ênfase na objetividade, todavia, a essência subjetiva nunca esteve afastada da fotografia, ainda que não fosse mencionada.

A fotografia não chega a desaparecer como modelo do visual nem como cultura: simplesmente sofre um processo de “desindexalização”. A representação fotográfica se liberta da memória, o objeto se ausenta, o índice evapora. A questão da representação da realidade dá lugar à construção de sentido. (FONTCUBERTA, 2012, p. 65).

Passa a haver assim uma flexibilização, uma possibilidade de se explorar com maior liberdade os aspectos estéticos e subjetivos da fotografia, dentro da seara “documento”. E, este jeito de olhar a fotografia documental dá espaço para que se mostrem contrastes, cores, formas, efeitos de iluminação, plasticidade, etc., como elementos de significação do trabalho, aliados ao contexto narrativo que abre espaço para maneiras de se interpretá-la. É o contexto que dá a natureza da coisa, ela não tem isso de forma intrínseca. Se colocada numa parede de museu, a fotografia ganha status de obra de arte enquanto se colocada num livro de fotos de guerra, ganha status de documento histórico. É a permeabilidade da fotografia. A informação, ainda que presente, passa a dividir lugar com estes outros elementos. É uma forma narrativa mais poética de se observar os temas circundantes do Homem.

Tomando a fotografia documental no seu aspecto de produção de realidade, de experiência com o mundo, de percepção do cotidiano do outro ou do seu próprio, encontro relação com este trabalho. A atitude de ir e fotografar, de vivenciar ao longo

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de quase um ano de produção, de ter contato com a população local e com o ambiente, de se inteirar dos assuntos e detalhes inerentes à Folia de Reis, além do fato de falar de um tema que, aos olhos de muitos, tem possibilidade de extinção nas próximas décadas, faz transparecer certo grau de documentarismo.

Chamamos de documental o trabalho fotográfico que começa a ser desenvolvido a partir de um projeto elaborado, que requer algum tipo de apuração prévia, estudo, conhecimento e envolvimento com um tema. A fotografia documental se refere, portanto, a projetos de longa duração, que não sejam apenas o registro momentâneo e de passagem sobre determinado assunto. (LOMBARDI, 2007, p. 34).

Lombardi desenvolve um conceito de “documental imaginário”, no qual o artista procura explorar mais o caráter poético das fotografias, abrindo espaço para o subjetivismo e a ficção. O discurso parece ser construído entre o documento e a expressão. A ideia de fotografia como verdade é desconstruída para lidar com a realidade ficcional do indivíduo no seu contexto social. Para esta nova forma de se analisar e ver o aspecto documental da fotografia, Kátia H. Lombardi, traz como referência o livro Paisagem Submersa, dos fotógrafos mineiros João Castilho, Pedro Motta e Pedro David, em que o imaginário está presente nas imagens produzidas.

Como todas as imagens técnicas, a fotografia condensa subjetividade, percepção e formas de pensamento resultantes de processos de construção no imaginário dos fotógrafos que, posteriormente, passam a pertencer ao imaginário dos que se dispõem a observá-la. Em uma espécie de viagem introspectiva, o receptor acessa seu imaginário e percorre a imagem, seja por meio dos sentidos, seja passeando pela razão, pela imaginação, até chegar na emoção ou no desejo. Assim, o imaginário diz respeito tanto aos sistemas de produção quanto aos de recepção da imagem fotográfica. (LOMBARDI, 2007, p. 50).

Neste trabalho proposto aqui, eu vivo a realidade (subjetiva) da atual Folia de Reis, mas crio a ficção de fotografar meu avô falecido ao olhar para todos aqueles senhores foliões. Desse modo, crio meu próprio imaginário e satisfaço meu desejo, de forma efêmera, por intermédio da fotografia e de outras figuras humanas que tanto me fazem rememorar os dias vividos ao lado dele. Mais do que isso, esta realidade criada permite tirar das minhas construções mentais as fotografias que teimam em me lembrar de que eu não as trouxe, naquele momento, ao mundo visível. A figura do meu avô paterno se plasma como um ausente-presente, como antônimos equidistantes do meu olhar. São as realidades do mundo contemporâneo mediadas por narrativas ficcionais.

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Figura 7. Fé. Fonte: autoria própria

5. Considerações finais

Fotografar Folia de Reis é voltar ao passado enquanto se vive o presente. É a síntese de um amor de avô, simbiose de gerações, perseverança de um povo e sua memória. Contradição efêmera, aproximação de mundos e afirmação de identidade. Intrinsecamente ligados, os elementos aqui expostos, quais sejam, cultura, fotografia e Folia de Reis, fazem parte de uma história de vida. A cultura deve ser entendida como um elemento vivo da sociedade e passível de transformações em razão da própria característica mutante do homem. Como não podia deixar de ser, a Folia de Reis, produto da criação humana, de certa forma torna-se espetacularização, perde parcialmente seu caráter de vivência e passa a ser representação. Adequa-se ao mundo atual, todavia, sem perder no todo, sua essência. E, por fim, a fotografia que, com sua permeabilidade, lhe permite fazer parte de todas as esferas, seja científica, cultural, documental, dentre outras. Importante ainda destacar que os assuntos aqui abordados fazem parte do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado pela autora em dezembro de 2014 para obtenção do título de Bacharel em Fotografia pelo Centro Universitário Senac. O resultado deste processo foi a feitura de um livro, contendo noventa fotografias sobre a Folia de Reis além do trabalho monográfico.

Referências

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BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. 11. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Obras escolhidas, 1).

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BOURDIEU, Pierre. Un arte medio. Barcelona: Gustavo Gili, 2003.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. 13. ed. 4. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Primeiros passos, 60).

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.

FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora: a fotografia depois da fotografia. Tradução Maria Alzira Brum. São Paulo: Editora G. Gili, 2012.

KOSSOY, Boris. Fotografia & história. 2. ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

LOMBARDI, Kátia Hallak. Documentário imaginário: novas potencialidades na fotografia documental contemporânea. 2007. 172 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.); AMARAL, Aracy A.; LEMOS, Carlos A. C.; BERNARDET, Jean-Claude. Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983.

NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); SEVCENKO, Nicolau (Org.). República: da belle époque à era do rádio. In: São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (História da vida privada no Brasil, 3).

PESSOA, Jadir de Moraes. Mestres da caixa e da viola. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 26., 2003, Poço de Caldas. Anais eletrônicos... Poço de Caldas: ANPEd, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v27n71/a05v2771.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2015.

SANTAELLA, Lucia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. In: Valdir José de Castro (Coord.). São Paulo: Paulus, 2003.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia Das Letras, 2003.

Recebido em 28/02/2015 e Aceito em 05/11/2015.

Iniciação - Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística Edição Temática em Cultura e Comportamento Vol. 5 nº 2 – novembro de 2015, São Paulo: Centro Universitário Senac ISSN 2179-474X Portal da revista: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistainiciacao/ E-mail: [email protected] Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial-SemDerivações 4.0

Internacional

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Documentários de divulgação científica em tempos de redes sociais e cibercultura

Popular science documentaries in times of social networks and cyberculture Sebastião da Silva Vieira, Marcelo Sabbatini Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Programa de Pós-graduação em educação matemática e tecnológica –EDUMATEC {[email protected], [email protected]}

Resumo. Vivemos, atualmente, a Sociedade da Informação (SI), também denominada como digital, do conhecimento, onde o cerne social se materializa em uma nova lógica mediante a emergência das tecnologias digitais de informação e comunicação. Internet, tablets, celulares androids, comunidades virtuais, redes sociais, realidade virtual são alguns dos termos que caracterizam este novo momento social que vivenciamos, a Cibercultura, que é definida por Lemos (2003) como “a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e a novas tecnologias de base microeletrônica”. Tudo esse surgimento da microinformática e com os impactos socioculturais, concretiza um novo modo de ser e estar na sociedade onde as tecnologias digitais imbuídas de participação social configuram a cultura contemporânea. Sendo assim a cibercultura efetivou grandes mudanças na vida dos cidadãos desta nova sociedade. Com isso os discentes utilizam esse novo paradigma como fonte de pesquisa e produção de conhecimento. Câmera na mão, longos planos-sequências, ausência de narração over, sujeitos que não se enquadram em tipificações, são elementos que marcam essa produção. Alunos realizadores, aprendizes e coautores na elaboração do vídeo, planejando a produção, o “roteiro”, acompanhando a montagem, divulgando e participando de debates junto à comunidade.

Palavras-chave: 1.Documentário, 2. Cibercultura, 3. Escola.

Abstract. We live currently the Information Society (IS), also known as digital, knowledge, where the social core materializes in a new logic by the emergence of digital information and communication technologies. Internet tablets, androids phones, virtual communities, social networks, virtual reality are some of the terms that characterize this new social moment we experience, Cyberculture, which is defined by Lemos (2003) as "the socio-cultural form that emerges from the symbiotic relationship between society, culture and the new microelectronic technologies. " All this emergence of micro and socio-cultural impacts, embodies a new way of being and living in society where digital technologies imbued with social participation shape contemporary culture. Therefore cyberculture effected great changes in the lives of citizens of this new society. With that the students use this new paradigm as a source of research and knowledge production. Camera in hand, long shots, sequences, no over narration, subjects who do not fall into typifications are elements that mark this production. Students directors, apprentices and co-authors in the preparation of the video, planning production, the "road map", following the assembly, promoting and participating in debates in the community.

Keywords: 1.Documentário, 2. Cyberculture, 3. School

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1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo compreender os vídeos desenvolvidos por discentes à luz das tecnologias digitais, entendidos como documentários da divulgação cientifica. Em 2012, os alunos do 9º ano da Escola Municipal João Bento de Paiva, localizada em Itapissuma, Pernambuco, criaram através de tecnologias digitais o documentário “A Vida no Lixão”, com o propósito de investigar a vida dos moradores que viviam no local, discutindo a realidade de quem trabalha e vive perto da localidade. Segundo resultados preliminares da análise de caráter qualitativo, a atividade permitiu não apenas registrar, mas exibir e difundir e, por isso mesmo discutir, com muitos outros grupos, questões que lhes afetam diretamente como cidadãos. Além disso, este processo de construção também pode ser entendido como registro ou documento de uma situação, constituindo uma “prova de verdade”, como a literatura científica atribui ao cinema documentário. Os recursos visuais e a criação de documentários estão cada vez mais presentes no cotidiano das crianças e dos adolescentes. Dessa maneira, oportunizou-se aos alunos um contato inicial com as técnicas de produção de vídeos. De acordo com Couto (2010) em recente investigação qualitativa ouvimos de jovens estudantes de nível médio, que a internet e os documentários científicos divulgados na TV, especialmente os provenientes dos canais Discovery, são suas principais fontes de pesquisa.

Não apenas os jovens, mas o público em geral, sob certos aspectos, “confia” no documentário. Na acepção de alguns ele se “parece” tanto com os dados, ou vestígios coletados, que se não constitui a verdade, pelo menos contribui para uma nova maneira de pensar sobre o tema ou assunto tratado (ROSENSTONE, 2010). Desse modo, emerge para nós alguns questionamos: Podemos considera a produção de documentário com o uso das tecnologias digitais como divulgação cientifica em tempos de rede sociais e cibercultura? Buscando responder a essas questões tratamos inicialmente de entender o que é o gênero de cinema documentário, suas formas de representação, sua configuração para a divulgação científica, à luz de um discurso sobre as ciências, proferido por Boaventura de Souza Santos

2. Cinema documentário

A atividade cinematográfica tem pouco mais de cem anos e é decorrente de um longo processo de que tem origem na Antiguidade, passa pela câmera escura, cresce a partir do século XVII, com o uso da lanterna mágica e com o desenvolvimento de pesquisas ópticas, visando o registro e a reprodução do movimento. No mesmo ano em que os irmãos Lumière lançavam o cinematógrafo, a Liga de Ensino distribuía por toda a França, como instrumento pedagógico, 477 lanternas, com oito mil diferentes vistas. O cinema foi experimentado então como uma nova articulação de técnicas já conhecidas e não representou uma ruptura radical (DA-RIN, 2005).

O documentário, que nos seus primórdios, documentou as cenas de ruas em várias partes do mundo, sempre fez mais do que espelhar o mundo real. Robert Flaherty, em seu primeiro trabalho, Nanook, o esquimó, teve, por exemplo, que ensinar a pesca com arpão, uma habilidade que se perdeu com o tempo. Para divulgar um quadro preciso da cultura dos esquimós ele precisou, em alguns momentos, encenar a realidade, criar uma ficção em nome da verdade. Tratamento criativo da realidade foi como documentarista John Grierson denominou essa característica do documentário. Grierson foi o idealizador e, principal organizador, do movimento do filme documentário, que se desenvolveu na Inglaterra

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a partir de 1927. Se o cinema documentário esteve, desde sua origem, comprometido com a função de representar o real, e não de reprodução da realidade; sua tradição é transmitir uma impressão de autenticidade. Se o que vemos é testemunho do que o mundo é, podemos basear nossa ação nele, o que é notório na Ciência, quando emprega o diagnóstico por imagem (NICHOLS, 2005). No entanto, os documentários não adotam um conjunto fixo de regras e de técnicas, não apresentam um conjunto de estilos, não tratam de apenas determinadas questões, mas constituem categorias que produzem e mantém essa forma de fazer cinema desde os anos 1920.

Para Bill Nichols (2005) o objeto do cinema documentário configura-se como resultado de um conjunto de práticas e discursos, e segue uma evolução em direção a um acréscimo de real. Há uma construção contínua e não uma essência na definição desse objeto. É a partir das próprias obras e da experimentação de técnicas e práticas, dos movimentos instituídos, de seus avanços técnicos (câmera leve, vídeo, som direto, entre outros), que observamos as várias maneiras de produzir documentários. Para ele, definir documentário significa também conhecer a estrutura institucional que o patrocina, o conjunto de profissionais que o produz, os filmes e vídeos e o público que tem o desejo de aprender através de um documentário.

Não se define um filme como de divulgação científica apenas por apresentar conteúdos científicos, mas também por seu formato e abordagem, que contribuem para que haja envolvimento, reflexão, estímulo à busca de conexões com outros conteúdos, com outras situações, e principalmente motivação para querer aprender mais. A divulgação científica através de um discurso audiovisual tem suas próprias especificidades.

Nos últimos anos o cinema documentário tem atraído um interesse crescente e parece que, em um mundo marcado pela tecnologia e pela técnica, cada vez é mais importante a divulgação científica. Durante séculos os conhecimentos científicos foram patrimônio de uma elite intelectual. No entanto, a partir do século XVII, contrapontos ao desenvolvimento da Ciência Moderna, surgem razões político-sociais para a disseminação desses conhecimentos e a Ciência começa a interessar a muitos. Conforme progride a influência estratégica da ciência e da tecnologia nas estruturas políticas, econômicas e culturais vai crescendo a necessidade de revisão das relações Ciência e Sociedade.

A primeira obra de divulgação significativa é designada Entretiens sur la pluralité des mondes, de 1686, quando Bernard de Fontenelle explica a cosmologia a uma marquesa imaginária (LÉON, 2001). A partir de 1825, a imprensa francesa começa a publicar folhetos científicos, que fornecem informações semanais sobre questões da atualidade relacionadas às diferentes especialidades científicas (LEÓN, 2001)

Desde o início, a produção audiovisual não apenas contribuiu com a divulgação de conhecimentos, mas se tornou relevante para as pesquisas científicas, especialmente às relacionadas à área da Saúde, já que se constituiu uma nova ferramenta de investigação, ao permitir a observação de fenômenos imperceptíveis ao olho humano. (FOUCAULT, 2004) descreve em Nascimento da Clínica como os novos dispositivos de produção visual derivados da fotografia se articulam com as novas ciências que regulam o corpo como a Fisiologia e a Patogenia. Aliás, ele demarca como a Medicina Moderna nasce da soberania do olhar.

De maneira geral os documentários de divulgação científica podem ser correlacionados ao modo expositivo, proposto na classificação de Nichols. O modo expositivo enfatiza a impressão de objetividade e facilita a generalização e a argumentação abrangente. Para isso dirige-se ao espectador diretamente, expondo um argumento, com legendas ou vozes. São documentários que dependem muito de uma lógica informativa transmitida verbalmente.

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3. Documentário para divulgação científica contemporâneo à luz

de um discurso sobre as ciências

Olhar um documentário de Divulgação Científica contemporâneo, a partir da leitura de Boaventura, implicou entender que mais do que aproximar jovens da Ciência, deve ser propósito da Divulgação Científica promover uma reflexão, sobre os impactos políticos, técnico-econômicos e culturais das descobertas e avanços da Ciência, de forma que possa contribuir para a ampliação de possibilidades e da qualidade de participação da sociedade na escolha de opções tecnológicas (por exemplo, referentes ao esgotamento de recursos naturais) e no estabelecimento de políticas públicas. No caso de uma produção audiovisual entendemos que há especificidades que podem facilitar ou dificultar essa reflexão.

A maioria dos documentários científicos ainda se situa dentro do modo expositivo, e são construídos de maneira a apresentar os conteúdos científicos como único conhecimento válido, alicerçado em uma visão conformada no paradigma hegemônico. O documentário, como um campo específico de práticas audiovisuais, não tem uma essência realista. Ele se constituiu a partir dessa crença, que é na verdade uma convenção produzida por práticas e discursos (DA-RIN, 2005). Entendemos, portanto, que o documentário de divulgação científica é um meio não de representar e ilustrar a ciência, mas uma forma de pensá-la visualmente (VAN DJICK, 2006).

As atividades de divulgação científica tanto podem servir como instrumentos para maior consciência social, como para transmitir uma visão exagerada das possibilidades da Ciência, ou seja, podem tanto estar fundadas no paradigma da Ciência Moderna, como no paradigma emergente. As novas tecnologias de informação e comunicação podem desempenhar um significativo papel no debate crítico entre a Ciência e a Sociedade. (COUTO, 2010)

4. O papel da divulgação científica na construção de uma nova

ordem social

Durante o século XX, a busca e as implicações dos avanços técnico-científicos ficaram a cargo de uma elite, uma comunidade de experts a quem se delegou o poder de gestão do futuro. Os excluídos foram essencialmente os cidadãos leigos. Contudo, há um notável crescimento dos mecanismos destinados a envolver ativamente o público, tendo como pano de fundo o ceticismo em relação ao desempenho científico e tecnológico (EINSIEDEL, 2003).

Segundo Sabbatini (2003) a divulgação científica, ao lado da disseminação, também possui múltiplos objetivos e significados, mais além de informar ao cidadão comum sobre a evolução da ciência e da tecnologia. Entre eles, podemos citar a criação de uma consciência científica coletiva, frente aos riscos da subordinação da ciência ao poder ou vice-versa, a complementação da educação formal e a atuação como “cão de guarda”, vigiando o desenvolvimento da ciência e da técnica. As pessoas, ao se conceberem como integrantes de uma sociedade e se tornarem cientes de que progridem conjuntamente com o desenvolvimento desta, entenderão melhor que, mesmo em parte submetidas e condicionadas pela crescente utilização da C&T em seu meio, suas vidas não estão irrevogavelmente predeterminadas pela lógica inevitável, às vezes perversa, do desenvolvimento tecnológico (ANGOTTI & AUTH, 2001). Outros autores, como (ARGÜELLO, 2002), têm sido enfáticos em afirmar que as escolas não educam em ciências, e muito pobremente divulgam seus resultados.

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Considerando assim a precariedade do ensino formal em ciências, somada a diminuta parcela do tempo de vida que um cidadão dedica a sua formação através de instituições oficiais de ensino, sobretudo no Brasil, percebe-se a urgência de que haja políticas e estratégias pedagógicas que efetivamente contribuam para a educação pública em ciências por meio de experiências fora do ambiente escolar. Tais argumentos têm apontado à urgência de que a divulgação científica assuma seu papel como ferramenta fundamental na formação dos cidadãos. Como sinalizado anteriormente, seu potencial formativo e a inserção social de seus veículos colocam-na em posição destacada na construção de uma nova ordem de relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Uma possibilidade que se abre, e que se faz indispensável, é a da aproximação entre a educação científica e tecnológica formal e os espaços de divulgação científica, tornando possível uma complementaridade de ambos em prol da formação de cidadãos conscientes e atuantes no novo modelo de sociedade que se deseja. Sabe-se, entretanto, que ainda estamos longe de manter uma divulgação científica de qualidade e que atinja amplos setores da nossa população (no Brasil, sobretudo) (MASSARANI et al, 2002). Reconhecidos os entraves, consolidar e melhorar a divulgação científica como instrumento de reflexão sobre ciência e tecnologia e, além disso, ampliar seu alcance para torná-la verdadeiramente democrática tornou-se um dos maiores desafios da atualidade. Mas esta é uma tarefa que só será viável se transformada num processo coletivo suficientemente amplo, que envolva instituições de pesquisa, universidades, comunicadores, cientistas, educadores, estudantes e o próprio público em geral (MASSARANI et al, 2002). De acordo com Sabbatini (2003) a educação para a leitura crítica dos meios de comunicação vem sendo defendida há tempos pelos pesquisadores da educomunicação. Já uma atividade de meta-divulgação científica, isto é, de divulgar a própria atividade de divulgação, surge como uma proposta inovadora.

5. Cibercultura e Rede Social: Um novo paradigma cultural

A cibercultura, por sua vez, é definida como um conjunto de técnicas, práticas, atitudes, modos de pensamento e valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento da internet como um meio de comunicação, que surge com a interconexão mundial de computadores. Ela constitui, para (LÉVY, 1999) o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade. Trata-se de um novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização, acesso e transporte de informação e conhecimento. A cibercultura surgiu da relação entre a tecnologia e a modernidade.

O princípio da inteligência coletiva é para (LÉVY, 1999) a finalidade última da cibercultura, constituindo mais um campo de problemas do que uma solução. Seria o modo de realização da humanidade, favorecido pela rede digital universal, sem que saibamos a priori que resultados podem resultar a partir da conexão das pessoas em rede, uma vez que as organizações colocam em sinergia seus recursos intelectuais. Um mundo virtual, no sentido amplo, é um universo de possíveis, calculáveis a partir de um modelo digital. Ao interagir com o mundo virtual, os usuários o exploram e o atualizam simultaneamente. Quando as interações podem enriquecer ou modificar o modelo, o mundo virtual torna-se um vetor de inteligência e criação coletivas (LÉVY, 1999).

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Como lembra Sabbatini (2011) o uso de tablets, wifi, ebooks, gadgests, notes e nets. Facebook, blogs, tubes, wikis, tweets, como acesso imediato de interatividade e informação total, vem modificando culturalmente as relações, formas de trabalhos, socialização, comunicação e aprendizagem. A cibercultura tem criado o que está sendo chamado de “mídia do cidadão”, onde todos são estimulados a produzir, distribuir e reciclar conteúdos. A sociedade está vivendo em “redes” grande parte dos jovens trocam mensagem, músicas, comunicam-se via mensagens de texto, utilizam e vivem nas redes sociais. Surgindo então um novo perfil cultural de jovens. As crianças em grande maioria procuram assuntos de seu interesse na internet, assistem TV, tudo ao mesmo tempo. Esse é o perfil do que é chamado por alguns profissionais de “crianças multitarefa” que, cada vez mais cedo, te contato com as novas tecnologias.

6. Metodologia

Este trabalho foi elaborado a partir da revisão bibliográfica de obras que tratam sobre documentário de divulgação cientifica. Para o embasamento desse estudo foi considerado estudos e pesquisas de Heloísa Couto (2010). E estudos do jornalista e doutor em ciência da Informação Bienvenido León que discute a produção deste gênero audiovisual baseando em estudo de documentarismo mundial.

O estudo constitui como uma pesquisa qualitativa através de um estudo de caso, onde o pesquisador não intervém na situação a ser analisada, apenas busca conhece-la em sua realidade de forma “natural”. O estudo de caso é “próprio para a construção de uma investigação empírica que pesquisa fenômenos dentro de um contexto real, com pouco controle do investigador sobre eventos e manifestações do fenômeno” (MARTINS 2008). O desenho e planejamento do método da pesquisa se desenvolvem numa pesquisa de cunho etnográfico. Fazer etnografia é “como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos” (GEERTZ, 2008). A etnografia é, por princípio, reflexiva e adaptativa, e à medida que surgem outras espacialidades e outras temporalidades, além do aqui e agora, o método precisa buscar formas de redimensionar o seu fazer-compreender no/o “novo” campo de experiência social.

Documentário “A Vida no Lixão”

Na comunidade Nova Itapissuma, localizado na região periférica da cidade de Itapissuma é um dos locais em que as dificuldades econômicas e sociais contribuem para a falta de perspectiva dos moradores. Nessa comunidade existe um lixão que é uma forma inadequada de disposição final de resíduos sólidos, que se caracteriza pela simples descarga do lixo sobre o solo, sem medidas de proteção ao meio ambiente ou á saúde pública. O mesmo que descarga de resíduos a céu aberto. Na década de 90 na área não tinha moradia, era um local especifico para deposito do lixo da cidade. A partir de 2001 a área começou a ser popularizadas, casas e barracos começaram a surgir criando moradias perto do lixão. Atualmente o local encontra-se pavimentados, com saneamento básico, porém a questão ambiental e a qualidade de vida das pessoas que moram na área são afetadas pelo lixão.

A realização prática de um vídeo documentário, evidenciando os problemas na área, mostrando também a desigualdade social observada no local estudado, terá o objetivo de contribuir para a constituição de novos sujeitos sociais, e ajudá-los na

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busca por melhor qualidade de vida, ou ainda, dar condições para o surgimento de líderes que lutem a favor daquela população. A produção pode ser considerada um conhecimento para divulgação cientifica, além de criar uma mobilização social do documentário. E assim mostrando a realidade do local para os moradores da cidade e consequentemente divulgando para o mundo através das mídias e redes sociais. Criando assim possíveis soluções por parte dos governantes em melhorar a vida das pessoas que vivem no local.

Diante dessa problemática o Documentário “A vida no Lixão” vídeo analisado e produzido pelos alunos através das tecnologias digitais teve como propósito investigar a vida dos moradores da área, mostrar a realidade de quem trabalha e vive perto da localidade, abordando a questão ambiental e o desenvolvimento sustentável. Além de compreender a importância do lixão para os moradores, já que ao mesmo tempo em que o lixão prejudicava causando doenças e afetando as moradias por conta do mau cheiro, ele também gerava renda, pois muitos trabalhavam e tirava do lixão o seu sustento.

Diante desse problema social que afeta os moradores da comunidade Nova Itapissuma, os alunos resolveram produzir um documentário que segundo Sampaio (1971) “Se caracteriza por apresentar determinado acontecimento ou fato, mostrando a realidade de maneira mais ampla e pela sua extensão interpretativa”. No desenvolvimento desse trabalho será reforçada a importância do documentário na construção e divulgação do conhecimento, além da possibilidade de desenvolvimento de uma participação ativa de uma determinada comunidade a partir da utilização do gênero, em especial, no âmbito jornalístico.

7. Resultados

No vídeo que analisamos houve espaço para a elaboração de auto representações pelos próprios sujeitos que participaram da experiência; para evidenciar a construção da filmagem; esforço para problematizar as condições do ambiente em que viviam, o diálogo deve ter sido de extrema importância entre os alunos realizadores e os alunos coletivos, e a comunidade. Vivemos, atualmente, a Sociedade da Informação (SI), também denominada como digital, do conhecimento, onde o cerne social se materializa em uma nova lógica mediante a emergência das tecnologias digitais de informação e comunicação. Internet, tablets, celulares androids, comunidades virtuais, redes sociais, realidade virtual são alguns dos termos que caracterizam este novo momento social que vivenciamos, a Cibercultura, que é definida por Lemos (2003) como “a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e a novas tecnologias de base microeletrônica”. Tudo esse surgimento da microinformática e com os impactos socioculturais, concretiza um novo modo de ser e estar na sociedade onde as tecnologias digitais imbuídas de participação social configuram a cultura contemporânea. Sendo assim a cibercultura efetivou grandes mudanças na vida dos cidadãos desta nova sociedade.

As Com isso os discentes utilizam esse novo paradigma como fonte de pesquisa e produção de conhecimento. Câmera na mão, longos planos-sequências, ausência de narração over, sujeitos que não se enquadram em tipificações, são elementos que marcam essa produção. Alunos realizadores, aprendizes e coautores na elaboração do vídeo, planejando a produção, o “roteiro”, acompanhando a montagem, divulgando e participando de debates junto à comunidade. Estamos vivendo em um novo modelo cultural chamada de redes sociais que segundo Rabello e Haguenauer (2011) são sites na internet que permitem o relacionamento e comunicação entre pessoas de diferentes grupos sociais. O mundo está conectado, as diferentes classes sociais, e culturas diversas, e países distantes, e diferentes religiões, enfim, o planeta pode ser

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aproximado através da rede mundial de computadores. As redes sociais não se limitam ao ciberespaço, sendo este apenas um dos espaços que as redes sociais podem se manifestar. As redes sociais apresenta um grande potencial, possibilitando aos alunos a realização de trabalhos em grupo, permitindo o compartilhar interativo sobre as aulas ministradas, favorecendo o aumento da curiosidade e da motivação sobre os temas abordados e disponibilizando links para textos, vídeos e outros sites de interesse coletivo. Além de servir como ambiente para divulgação cientifica e trabalhos desenvolvidos. Ou seja, é um ambiente que favorece a construção colaborativa do conhecimento, o compartilhamento de informações e a cocriação. A única forma de manter viva a ciência é compartilhando conhecimento, construindo em conjunto e tornando possível a contribuição de outras pessoas. Para essa proposta, então, nada melhor do que usar as redes sociais para dividir e multiplicar a ciência. Com o avanço da tecnologia das comunicações, hoje já é possível chegar ao público com muito mais facilidade, atualizando com comprometimento e com rapidez as informações que estiver disponibilizando.

Lévy (1993) aponta novas funções para a formação da rede digital, que ele chama de pólos funcionais: produção ou composição de dados, de programas ou de representações visuais (técnicas digitais); seleção, recepção e tratamento dos dados, dos sons ou das imagens (terminais de recepção inteligentes); transmissão (a rede digital de serviços integrados) e armazenamento (banco de dados, de imagens). Nesse sentido, o trabalho que professores e alunos desenvolveram, buscando não apenas compreender as questões de natureza técnico-científica, mas a forma como afetam a comunidade, documenta, divulga ciência, é oportuno e coerente.

8. Considerações finais

A divulgação científica, ao longo dos séculos, respondeu a motivações e interesses diversos. Um dos objetivos foi cooperar com a escola na transmissão de informações e de conhecimentos práticos acerca do processo científico e de sua lógica, com a finalidade de promover a permanente atualização.

Daí a relevância das atividades de divulgação científica, que tanto podem servir como instrumentos para maior consciência social, como para transmitir uma visão exagerada das possibilidades da Ciência, ou seja, podem tanto estar fundadas no paradigma da Ciência Moderna, como no paradigma emergente.

As novas tecnologias de informação e comunicação podem desempenhar um significativo papel no debate crítico entre a Ciência e a Sociedade. A articulação entre escola, divulgação científica e tecnologias de informação e comunicação pode configurar estratégias cuja intenção seja edificar mais espaços de discussão sobre resultados científicos efetivamente relevantes para a realidade brasileira.

É notória a excelente performance que os jovens de hoje demonstram no contato e utilização dos mais diversos equipamentos eletrônicos e dispositivos digitais. Saber aproveitar essas facilidades como aliadas do professor é fundamental para propor atividades significativas, ousadas e inovadoras no processo de ensino e aprendizagem. Neste sentido, o aluno além de consumidor passa a ser produtor de conhecimento.

Assim, pôde-se perceber nos resultados alcançados que os alunos construíram conhecimentos cientifico e que poderão aplicá-los no futuro em muitas situações, tanto acadêmicas quanto pessoais e/ou profissionais.

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Recebido em 04/02/2015 e Aceito em 13/10/2015.