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EDLER, Flavio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. APRESENTAÇÃO (p. 8-11) - “Para narrarmos a história da farmácia no Brasil, optamos, assim, por centrá-la na história do ofício e nas práticas farmacêuticas, articulando-a aos contextos sociais e culturais específicos. Em cada período apresentado, o boticário, o droguista, o prático ou o farmacêutico diplomado terão suas respectivas histórias enlaçadas ao estudo das doenças prevalentes e da legislação sanitária, das formas farmacêuticas e dos medicamentos e das ciências médicas e farmacêuticas, assim como à história da profissão farmacêutica e suas relações com a medicina” (p. 8). - “A botica foi, originalmente, uma instituição europeia, e é possível encontrar suas raízes numa incipiente divisão do trabalho médico, já no século VIII. O boticário, nosso primeiro personagem, aqui chegou com as naus portuguesas, juntamente com outros curiosos tipos sociais, como marinheiros, padres, militares, comerciantes, fidalgos, médicos, cirurgiões, governadores, meirinhos, alcaides, ladrões, escravocratas, contrabandistas, prostitutas... Da vida desse comerciante e fabricante de remédios, procuramos capturar os aspectos mais diretamente ligados à sua ocupação profissional. Como os demais habitantes da terra brasilis, ele teve de reinventar sua identidade social em um meio muitas vezes inóspito. Neste livro, apenas delineamos seu contorno genérico. Em nosso bosquejo do ‘cozinheiro do médico’ procuramos nos aproximar do perfil dos indivíduos singulares, de suas reputações e estratégias de sobrevivência e afirmação social. Em seu percalço, nos tempos colonial e imperial, seguimos sobretudo os bem traçados roteiros que as historiadoras Vera Regina Beltrão Marques e Betânia Gonçalves Figueiredo nos legaram” (p. 8). - “Já o farmacêutico revela-se um personagem mais difuso. Para persegui-lo no tempo é preciso entrar em instituições tão diversas quanto universidades, fábricas, laboratórios

Edler Flavio Coelho Boticas e Pharmacias

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EDLER, Flavio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.

APRESENTAÇÃO (p. 8-11)

- “Para narrarmos a história da farmácia no Brasil, optamos, assim, por centrá-la na história do ofício e nas práticas farmacêuticas, articulando-a aos contextos sociais e culturais específicos. Em cada período apresentado, o boticário, o droguista, o prático ou o farmacêutico diplomado terão suas respectivas histórias enlaçadas ao estudo das doenças prevalentes e da legislação sanitária, das formas farmacêuticas e dos medicamentos e das ciências médicas e farmacêuticas, assim como à história da profissão farmacêutica e suas relações com a medicina” (p. 8).

- “A botica foi, originalmente, uma instituição europeia, e é possível encontrar suas raízes numa incipiente divisão do trabalho médico, já no século VIII. O boticário, nosso primeiro personagem, aqui chegou com as naus portuguesas, juntamente com outros curiosos tipos sociais, como marinheiros, padres, militares, comerciantes, fidalgos, médicos, cirurgiões, governadores, meirinhos, alcaides, ladrões, escravocratas, contrabandistas, prostitutas... Da vida desse comerciante e fabricante de remédios, procuramos capturar os aspectos mais diretamente ligados à sua ocupação profissional. Como os demais habitantes da terra brasilis, ele teve de reinventar sua identidade social em um meio muitas vezes inóspito. Neste livro, apenas delineamos seu contorno genérico. Em nosso bosquejo do ‘cozinheiro do médico’ procuramos nos aproximar do perfil dos indivíduos singulares, de suas reputações e estratégias de sobrevivência e afirmação social. Em seu percalço, nos tempos colonial e imperial, seguimos sobretudo os bem traçados roteiros que as historiadoras Vera Regina Beltrão Marques e Betânia Gonçalves Figueiredo nos legaram” (p. 8).

- “Já o farmacêutico revela-se um personagem mais difuso. Para persegui-lo no tempo é preciso entrar em instituições tão diversas quanto universidades, fábricas, laboratórios de pesquisa, farmácias oficinais, drogarias, órgãos profissionais e ministérios estatais. Em cada um desses cenários ele assumirá papéis diferentes, contracenando com ampla rede de atores sociais. Quando da passagem da botica à farmácia, em princípios do século XIX, só é possível diferenciá-lo do boticário pela posse formal do diploma superior e pela ostentação simbólica do anel com a pedra de topázio. Apesar dessa ambição de ascensão social, a farmácia e seu proprietário ainda teriam de esperar os avanços tecnológicos e científicos, proporcionados pelo conjunto das ciências biomédicas de que dependia sua formação, para alcançar o prestígio de que gozaria já no alvorecer da República” (p. 9).

- RESUMO DO QUE VAI DISCUTIR EM CADA CAPÍTULO: “Na primeira parte intitulada ‘Boticas e boticários no Brasil colonial’, construímos, inicialmente, um quadro geral das doenças dominantes, das instituições médicas portuguesas que aqui se instalaram e da regulamentação sanitária observada pelas autoridades coloniais. Em seguida, descrevemos o processo em que diferentes medicinas, professadas pelas diversas etnias formadoras da sociedade colonial, medicinas, concorreram com a oferta de variada forma de auxílio terapêutico aos habitantes da América portuguesa. Ao lado das terapêuticas indígena e africana, ordens e confrarias religiosas disputavam com os médicos, cirurgiões e boticários leigos os serviços de assistência aos doentes. Tal

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interação sociocultural foi quase sempre conflituosa. Para compreendermos a orientação geral da terapêutica portuguesa e, assim, o específico papel dos boticários, discorremos, ainda que brevemente, sobre as doutrinas médicas europeias trazidas pelos portugueses, com sua rica visão das doenças, suas causas e tratamentos. Como complemento, damos notícia dos tratados médicos e farmacopeias utilizadas pelos representantes da medicina oficial. Ao fim do capítulo, o leitor é apresentado ao boticário. Sobre este personagem, ele conhecerá: suas origens e seu ofício; sua relação com os demais terapeutas; suas diferentes formas de inserção social e atuação política antes da vinda da corte portuguesa” (p. 9).

- “A segunda parte, ‘Farmácia e farmacêuticos no Oitocentos’, é dedicado quase inteiramente às origens e transformações da farmácia no Império. Nesse período consolidou-se a profissão de farmacêutico com a criação dos cursos de farmácia e a regulamentação do exercício profissional. A Junta do Protomedicato e a Fisicatura-mor, instituições médicas herdadas da burocracia portuguesa, foram substituídas, em meados do século, pelo Junta Central de Higiene Pública. Alterou-se visivelmente a relação do farmacêutico com os médicos e curadores, pois o período foi marcado pelo desenvolvimento de pesquisas sobre a flora medicinal brasileira, pela elevação do status do farmacêutico e do prestígio de algumas farmácias. Grande quantidade de drogas europeias passou a ser importada, com o livre comércio. Sedimentou-se uma elite profissional, preocupada com o aperfeiçoamento do ensino e das instituições profissionais. Entretanto, um crescente ceticismo terapêutico pôs em risco a credibilidade dos medicamentos, já que muitas controvérsias sobre a eficácia de remédios e formas de tratamento atravessaram o século, envolvendo homeopatas, boticários e médicos. No limiar do período republicano, as descobertas no campo da anestesia e da antissepsia vieram somar-se aos sucessos da medicina pasteuriana e aos avanços da química farmacêutica, gerando uma onda de otimismo no combate às doenças e à dor” (p. 10).

- “Este livro constitui um desafio. Historiador, acostumado à escrita de textos acadêmicos, aceitei com entusiasmo e certa dose de temor o convite feito pela Casa da Palavra de produzir um livro ricamente ilustrado que traçasse uma síntese histórica da trajetória das boticas, drogarias e farmácias no Brasil, numa linguagem voltada para um público não especialista. Embora minha pesquisa sobre o tema específico da farmácia fosse limitado ao período imperial, conhecia a bibliografia produzida por antigos e novos historiadores que vêm desbravando a rica odisseia da farmácia desde os tempos coloniais. Na elaboração do capítulo referente às radicalmente inovadoras, complexas e difusas transformações da farmácia no século XX, contribui apenas na orientação geral quanto ao escopo temático e no tópico relativo aos aspectos ligados às associações profissionais. O texto é da autoria de Luiz Antônio Teixeira, competente pesquisador da história da medicina brasileira” (p. 11).

- SOBRE AS ILUSTRAÇÕES UTILIZADAS AO LONGO DO LIVRO: “Quanto à identificação e coleta das ilustrações, contei com a imprescindível colaboração das historiadoras Verônica Pimenta Velloso, também responsável por parte do texto relativo às lides farmacêuticas no século XIX. Maria Regina Cotrim Guimarães e Monique Gonçalves Cerqueira ampliaram a pesquisa iconográfica e contribuíram para melhorar a qualidade do texto e das legendas. Ana Cecília Martins e Fernanda Tibau atuaram com

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competência na fase final da pesquisa de imagens. Acredito que compusemos uma representativa amostra dentre o vasto repertório documental, iconográfico, material e alegórico que compõe o rico acervo existente na história da farmácia brasileira” (p. 11).

- O MODO COMO OPTOU POR ESCREVER O LIVRO: “Para tornar mais leve a leitura, sem perder em precisão nem enveredar excessivamente quer pelo pitoresco quer pelo anedótico, optamos por duas soluções: por um lado, procuramos evitar o máximo possível as citações. A bibliografia utilizada em cada capítulo encontra-se, assim, discriminada no fim do livro. Por outro, lançamos mão de pequenas inserções de texto complementares, elucidativos ou ilustrativos, em forma de boxes” (p. 11).

PARTE 1

Capítulo 1: A sociedade luso-brasileira, suas doenças e condições sanitárias (p. 14-23)

- AS CONDIÇÕES DE SAÚDE NA COLÔNIA: “Nas correspondências avulsas encetadas entre metrópole e colônia enfatizava-se com frequência a falta de médicos, remédios e hospitais. Mas, ao contrário da avaliação apressada realizada por alguns historiadores que afirmavam ser a falta de médicos o fator responsável pelo grande número de curandeiros e charlatães, é preciso que se pergunte: quais setores da população se ressentiam da escassez desses profissionais? Ora, o florescimento das demais artes de cura esteve intrinsecamente ligado às diferentes raízes culturais das populações aqui residentes. Além disso, os missionários jesuítas – principais suportes da educação colonial que tomaram para si o papel de curadores – aproveitaram muito da medicina indígena, tornando as plantas medicinais brasileiras famosas em todo o mundo. Pelas mãos dos jesuítas, a triaga brasílica, uma panaceia composta de elementos da flora nativa, que chegou a ser a segunda fonte de renda da ordem jesuítica na Bahia, ganhou fama internacional. Aos jesuítas deve-se imputar a iniciativa pioneira de intercâmbio entre esses universos da medicina, já que eles também absorviam o saber dos físicos, cirurgiões e boticários, aplicando-os nos precários hospitais da Santa Casa de Misericórdia” (p. 17).

Saber erudito e saber popular na medicina colonial

- “Mas que relações mantinham físicos, cirurgiões e boticários portugueses com os demais agentes de cura? Embora geralmente preconceituosos com relação a outros elementos pagãos e ‘selvagens’ da cultura indígena, os colonizadores se interessaram em recolher informações sobre o procedimento de indígenas e seus pajés para combater as doenças que grassavam no lugar. Observavam, imitavam, experimentavam, descreviam as propriedades terapêuticas das novas espécies e seus usos, e divulgavam-nas na metrópole, ampliando os saberes sobre a matéria médica. Mais tarde, tal saber retornava à Colônia em compêndios de farmacopeia, orientando a atividade de boticários profissionais, religiosos ou leigos” (p. 18).

- “Tal roteiro não foi tão linear, entretanto, como pode parecer. Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), médico português e estudioso de nossa flora, em fins do século XVIII observou o pouco uso feito pelos médicos portugueses das plantas medicinais do

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país, entendendo que isso ocorria porque, tendo aprendido medicina das universidades europeias, eles curavam tudo ‘à europeia’, desprezando a medicina indígena” (p. 18).

- “De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais brasileiras era a de mais legitimidade popular. Mezinheiros (vendedores de medicinas, ou mezinhas), curandeiros africanos e pajés utilizavam folhas, frutos, sementes, raízes, essências, bálsamos e resinas, partes lenhosas e brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam, dissolviam, maceravam. Cozinhavam, para ingerir, aspirar, friccionar ou aplicar em cataplasma numa série de extensas doenças. Não se pode esquecer que o emprego dessas plantas tinha um sentido mágico ou místico. Determinados minerais, bem como partes do corpo de animais, eram usados como medicamentos ou amuletos. Se a antropofagia ritual era encarada como horror pelos europeus, a utilização da saliva, da urina e das fezes, humanas ou animais, era compartilhada como recurso terapêutico, embora com significado distinto para as duas culturas. Enquanto a sucção ou sopro dos espíritos malignos, a fumigação pelo tabaco, os banhos, fricções com cinzas e ervas aromáticas e o jejum ritualístico eram desprezados como elementos bárbaros, a teoria das assinaturas, que supunha existir, radicado em cada região, o antídoto das doenças do lugar, autorizava a assimilação da farmacopeia empírica popular. Se em ampla variedade de aspectos o saber erudito e o popular eram indissociáveis na experiência dos distintos estratos sociais, os representantes da arte oficial lutavam ferrenhamente contra os que praticavam as curas na informalidade. Reivindicando para si o controle do corpo doente, a medicina oficial esvaziava o sentido dos conhecimentos terapêuticos populares e reinterpretava-os à luz do saber erudito. A fluidez entre os domínios da medicina e aquele da feitiçaria, com o emprego de cadáveres humanos e de animais associados ao universo demoníaco – como o sapo, o cão negro, o morcego e o bode – na produção de remédios, impunha aos portadores de diploma a tarefa de distinguir o procedimento ‘científico’ das crenças populares ‘supersticiosas’. Nessa tarefa encontravam o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino. No imaginário popular, os santos, vistos mais como especialistas que como clínicos gerais, seriam responsáveis por um grande número de curas” (p. 18-19).

- “Durante todo o período colonial, os moradores de cidades e vilas solicitavam aos governantes a presença de médicos. Cartas eram escritas ao rei manifestando a preocupação constante com a saúde dos súditos, pela ‘grande falta que têm de médico e botica para haverem de ser curados em suas enfermidades’. Mas o que imperava era a dificuldade de achar médicos dispostos a vir para a Colônia. A ausência de uma clientela com recursos que justificassem a saída da metrópole condicionava a permanência no Brasil à obtenção de alguma função ligada sobretudo à tropa ou à Câmara. As poucas vantagens profissionais que lhes eram oferecidas restringiram-se com a dificuldade em mostrar eficiência longe dos remédios europeus. A carência desses remédios, muitas vezes deteriorados, o desconhecimento da flora local e a concorrência com outras formas de cura, administradas por pajés, jesuítas, fazendeiros e curandeiros africanos, eram outros óbices” (p. 19).

Regulamentação sanitária

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- “No tocante à legislação sanitária, é preciso registrar que desde 1430 o rei de Portugal exigia que todos os que praticavam medicina fossem examinados e aprovados pelo seu médico, também denominado físico. Em 1448, o regimento do cirurgião-mor, sancionado em lei do reino, explicitava dentre os encargos da função a regulamentação do exercício da medicina e cirurgia por meio de licença, legalização e inspeção de farmácias” (p. 20).

- “As Ordenações Filipinas, de 1595 (‘Ordenações do reino de Portugal recopiladas por mandado d’el rei d. Filipe, o Primeiro’), que tratavam de todos os assuntos de interesse da Coroa, ditavam também regras sobre padrões para os pesos e medidas. Podemos ver que, por essa legislação, o boticário era tido como um comerciante submetido às mesmas normas que o peixeiro, o carniceiro, o ourives e os fabricantes de velas, entre outros. O boticário – assim como diversos outros comerciantes – teria de, ao menos uma vez ao ano, no mês de janeiro, ‘afilar’ seus pesos e medidas, ou seja, verificar se eles se mantinham dentro do padrão estipulado. O responsável pelo controle e pela aplicação de penas a quem deixasse de afilar ou de seguir o padrão era o almotacé-mor, ajudado por oficiais. Os pesos e medidas do padrão, em Portugal, que tivessem mais de meia arroba ficavam nas Casas da Câmara, de onde não poderiam sair” (p. 20).

- SIGNIFICADO DE BOTICÁRIO PARA O SÉCULO XVIII: “O que tem botica, vende drogas medicinais e faz mezinhas. Os boticários são cozinheiros dos médicos: cozem e temperam quando nas receitas lhe ordenam. Nicolau Longio tem grande volume contra os boticários, que não conhecem perfeitamente as qualidades dos simples, vendem uma droga por outra, um medicamento velho e sem virtude por um fresco e que novamente veio do Levante. Por isso proibiu o Imperador Nero todos os medicamentos que vinham de remotos climas. Que necessário seria a visita nas boticas. O agárico se é macho, é mortífero; a coloquintina, se está madura é perigosa; o maná que passa de um ano não presta; a canafístula velha não tem substância; a casca do ruibarbo carcomida não purga. O boticário quando faz mezinhas que o médico ordena se houvera de chamar propriamente medicamentarius” (BLUTEAU apud EDLER: p. 21).

- “Não só lojas de barbeiro e boticas vendiam remédios no Brasil. Os estabelecimentos dos ourives, padeiros e outras casas também comerciaram remédios específicos. Os próprios médicos, apesar de o alvará real proibir receitas. Se os cirurgiões curavam de medicina e os médicos aviavam suas receitas, os boticários receitavam por conta própria” (p. 23).

CAPÍTULO 2: A MATA É A BOTICA DOS ÍNDIOS (p. 24-29)

- “Doenças comuns eram tratadas de um modo puramente naturalístico. Doenças raras e de maior gravidade eram percebidas como grave ameaça à coesão social. Por isso, requeriam maiores e mais espetaculares esforços, envolvendo a manipulação de um domínio compreendido como sobrenatural, voltado à identificação da entidade ou espírito maligno que penetrara no corpo e devia ser expulso. Um reino geralmente invisível de forças e poderes era concebido para explicar certas enfermidades e aflições. Essas práticas ancestrais de cura eram sempre sagradas e holísticas, reunindo tratamentos que envolviam os indivíduos afetados e o grupo tribal ou parental ao qual pertenciam” (p. 24-25).

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- “Quando uma doença era causada por divindades sobrenaturais, os pajés, líderes religiosos, desempenhavam papéis importantes no diagnóstico e tratamento de uma pessoa tida como sofrendo de um mal. Ao conhecimento das plantas somava-se, na medicina indígena, o uso da sangria, das fricções e massagens e o uso de substâncias quentes, secas ou úmidas. Embora empregassem remédios animais e minerais, os índios utilizavam amplamente as plantas frescas. Como assinalou Von Martius, ‘a mata é a sua farmácia’” (p. 25).

CAPÍTULO 4: SOB O IMPÉRIO DE GALENO: AS DOENÇAS E SEUS TRATAMENTOS NA TRADIÇÃO MÉDICA EUROPEIA (p. 34-41)

- “Galeno (130-200 d.C) foi, juntamente com Hipócrates (460-? a. C.), a maior figura da medicina antiga. Sua imensa obra exerceu uma influência considerável até o século XVII, tanto no mundo árabe quanto no Ocidente cristão. De acordo com a tradição hipocrático-galênica, transformada em dogma pelo ensino escolástico professado nas universidades medievais desde o século XIII, o corpo humano seria constituído por sangue, pituíta, bile amarela e bile negra. Existiria saúde quando esses princípios estivessem em justa relação de equilíbrio (crase), de força e de quantidade, em perfeita mistura. Existiria a doença quando um desses princípios estivesse, seja em menor quantidade, seja em excesso, ou, isolando-se no corpo por uma espécie de obstrução, não se combinasse harmonicamente com o resto” (p. 35).

CAPÍTULO 6: O COZINHEIRO DO MÉDICO E SUA BOTICA (p. 48-53)

- “No contexto europeu, durante todo o período que compreende o Império luso-brasileiro, médicos cirurgiões e boticários diplomados formavam uma ínfima proporção de uma vasta comunidade terapêutica. Ocupando formalmente o ápice da pirâmide profissional, as três categorias, além de concorrerem entre si, mantinham um pendor regulamentar e vigilante sobre as atividades dos curadores especialistas em doenças dos olhos, cálculos urinários, hérnias etc. No campo, onde os diplomados eram raríssimos, padres, comerciantes de panaceias, herboristas, parteiras, magos, feiticeiras e charlatães agiam com bastante liberdade” (p. 48).

- “A autoridade dos médicos diplomados era ainda embrionária, geralmente os próprios pacientes ou terapeutas populares tentavam curar as doenças graves ou mesmo de resolver os problemas de caráter cirúrgico. Não se respeitava a hierarquia legal. Junto ao leito do paciente, parentes, amigos e curiosos não se incomodavam de criticar o médico, propor outro tratamento ou sugerir o nome de outro prático mais eficaz para o caso. As divergências sobre as origens das doenças eram consideráveis. Deus, feiticeiros e astros contavam tanto quanto as causas naturais. Os remédios iam da oração à purga ou à sangria, passando pelos exorcismos, fórmulas mágicas, talismãs, ervas, minerais e substâncias de origem animal. Para um mesmo fenômeno, os pacientes invocavam explicações múltiplas (a intervenção divina não excluía a ação de causas naturais) e se sentiam livres para chamar todo tipo de terapeutas” (p. 48).

- ISSO AQUI PODE SER IMPORTANTE PARA MIM, QUANDO EU ESTIVER FALANDO DOS BOTICÁRIOS E, NESTE CASO, A POSSÍVEL ORIGEM DELES. “Entre os agentes envolvidos com as práticas de cura, os boticários ocupavam uma

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posição bem definida na hierarquia profissional. Os historiadores da farmácia que estudaram sua origem asseveram que, desde a época de Galeno, os médicos romanos se valiam de auxiliares na preparação das poções medicamentosas. Essa prática denominava-se pharmaceutae. Os médicos que se dedicavam, então, à produção dos remédios eram denominados pharmacopoei” (p. 48-49).

- “Os barbeiros, além dos cortes de cabelos e das barbas, praticavam sangrias, aplicavam ventosas, sanguessugas e clisteres, faziam curativos, arrancavam dentes etc. Da mesma forma que os boticários, os barbeiros necessitavam da Carta de examinação para habilitá-los ao exercício de seu ofício. Os barbeiros geralmente eram portugueses e castelhanos, muitos deles cristãos-novos, sendo que a partir do século XVIII já se incluíam negros e mestiços nesse ofício” (p. 51).

Os boticários brasílicos

- “A botica foi uma das instituições ocidentais que aqui aportaram com os portugueses. O cirurgião-barbeiro, os jesuítas e o aprendiz de boticário, que chegaram aqui com os primeiros colonizadores, trouxeram as ‘caixas de botica’, uma arca de madeira que continha certa quantidade de drogas. Cada ‘entrada’ ou ‘bandeira’, expedição militar ou científica, no caso dos viajantes naturalistas, os fazendeiros, senhores de engenho e também os médicos da tropa ou senado das câmaras municipais - todos as possuíam com um bom sortimento de remédios para os socorros urgentes” (p. 52).

- “Até princípios do Império, os barbeiros concorreram com as boticas no comércio das drogas, suas lojas venderam mezinhas, aplicaram, alugaram ou venderam sanguessugas, ou bichas, e manipularam receitas. Nos tempos coloniais existiram poucas boticas. Os jesuítas e os hospitais militares tinham as únicas com que muitas vilas e cidades podiam contar. Os boticários eram oriundos geralmente de famílias humildes e obtinham seus conhecimentos nas boticas tornando-se ajudantes e aprendizes de um encartado. Para a obtenção da Carta de examinação, que lhes possibilitaria o exercício do ofício, submetiam-se a um exame junto aos comissários do físico-mor do reino. Alguns alcançavam bons resultados financeiros, pois conseguiam constituir uma grande clientela, tendo em vista o fato de serem numericamente insuficientes para o atendimento da população” (p. 52).

- “Em fins do século XVII, algumas boticas já tomavam a aparência das boticas do reino. Situadas nas principais ruas, ocupavam dois compartimentos. O boticário e sua família residiam nos fundos. Num cômodo ficavam as drogas expostas à venda. Sobre as prateleiras de madeira viam-se boiões de boa louça, e potes com decorações artísticas continham pomadas e unguentos; frascos e jarros de vidro ou de estanho, etiquetados, guarneciam xaropes e soluções. No outro cômodo, estava o laboratório da botica. Mesa, potes, frascos, balança, medidas de peso (quartilho, arrátel ou libra, canada, onça, oitava, escrópulo, grão), copos graduados, cálices, botijas, cântaros, funis, bastões de louça, almofarizes, alambique, destiladores, cadinhos, retortas, panelas, tenazes e uma edição da Polianteia medicinal, de Curvo Semedo - essencial para preparar a mezinha receitada por um físico, ou cirurgião, ou padre, ou curandeiro” (p. 52).

PARTE 2: FARMÁCIA E FARMACÊUTICOS NO OITOCENTOS

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CAPÍTULO 1: PANORAMA DA MEDICINA E DA FARMÁCIA NO SÉCULO XIX (p. 56 - 61)

Medicina, cirurgia e farmácia

- “No tocante à medicina, regulamentou-se o ensino médico cirúrgico, com a instalação de dois cursos de cirurgia e anatomia nos hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro. Iniciava-se, assim, uma forte tradição clínica marcada pela figura do médico de família que atuava ora como clínico, ora como cirurgião, ora como conselheiro higienista. A prática médica continuava essencialmente clínica. Tal como em Paris, o principal centro de formação médica, o registro de casos, à beira do leito dos enfermos, era a principal fonte de informações sobre o diagnóstico. A patologia repousava na descrição dos sintomas próprios a cada doença. As causas das doenças, até o advento da revolucionária teoria microbiana das doenças, desenvolvida por Louis Pasteur (1822-95), eram atribuídas ao clima, aos desregramentos alimentares, sexuais ou emotivos, ou aos ‘miasmas’. Durante a primeira metade do século XIX, a tradição anatomoclínica francesa universalizou um conjunto de procedimentos voltados a correlacionar os sinais e sintomas com lesões orgânicas localizadas em determinadas partes do corpo. Nesse período, entretanto, os médicos tinham uma formação generalista” (p. 57).

- “Com a reforma do ensino médico de 1808 criaram-se novas cadeiras clínicas. No Hospital da Santa Casa da Misericórdia e na Policlínica Geral do Rio de Janeiro inauguraram-se as enfermarias voltadas ao ensino de oftalmologia, clínica das crianças, dermatossifiligrafia, medicina legal, obstetrícia e psiquiatria” (p. 57).

- “Em 1809, criou-se a cadeira de matéria médica e farmácia, destinada à formação dos cirurgiões. Os primeiros compêndios para uso dos alunos das Academias Médico-cirúrgicas, publicados pela Imprensa Régia, eram traduções de tratados de autores franceses. Embora a influência francesa tenha marcado amplamente o saber e as instituições médicas oficiais ao longo de todo o período monárquico, convém não esquecer que o ambiente médico era herdeiro de uma multiplicidade de práticas, conceitos e métodos reproduzidos de modo artesanal pelas diferentes etnias que aqui interagiam” (p. 57-58).

- “Circunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara, a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à margem das confrarias religiosas ou das redes de clientelismo promovidas pelos membros da elite senhorial, por intermédio dos hospitais, das Santas Casas de Misericórdia. Para o grosso da população brasileira, dispersa nas vastas regiões rurais, na carência de médicos, os livros de medicina auto-instrutivos seriam o principal instrumento de penetração da cultura médica acadêmica. O primeiro livro do gênero a ter boa acolhida foi o Manual de medicina doméstica, de William Buchan (1729-1805), traduzido por Manuel Henriques de Paiva, em 1802. Em seguida apareceram os compêndios de Jean-Baptiste Alban Imbert, médico formado em Montpellier, e membro da Academia Imperial de Medicina (AIM), Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre as doenças dos negros (1834) e Guia médico para as mães de família (1843). Outro médico francês residente na corte, e também membro da AIM, Louis-François Bonjean (1808-92) publicou O médico e o cirurgião da roca ou Tratado completo de medicina e cirurgia

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domésticas, adaptado à inteligência de todas as classes do povo (1875). Entretanto, nenhum desses livros superaria em popularidade o Formulário e guia médico, que teve 19 edições entre 1842 e 1926, e o Dicionário de medicina popular e ciências acessórias, do dr. Pedro Luis Napoleão Chernoviz (1812-81)” (p. 58).

Legislação sanitária “para inglês ver”

- “Ainda na primeira metade do século XIX, ocorreram algumas mudanças significativas no ambiente médico. Em 1829, criou-se a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, embrião da Academia Imperial de Medicina (1835-89). Em 1832, as duas escolas médico-cirúrgicas foram transformadas em faculdades de medicina, com o direito de expedir diplomas de parteira, medicina e farmácia. Desde 1826 o imperador d. Pedro I já lhes havia concedido o monopólio dos diplomas em cirurgia. Em 1828, foi extinta a fisicatura-mor que substituíra a Junta do Protomedicato como órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e regulamentação das artes terapêuticas. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade. Desde a Independência, a fiscalização das farmácias esteve a cargo das câmaras municipais, até que, finda a fisicatura, que se voltava para a aferição dos pesos, exame da qualidade e estado das drogas, verificação do asseio e preço das mesmas. Finalmente, em 1850, em seguida à primeira epidemia de febre amarela, foi criada a Junta Central de Higiene Pública. Pela lei, o diploma de farmacêutico deveria ser registrado nas câmaras municipais” (p. 59).

- COMO ERA A LEGISLAÇÃO NA PRÁTICA? “Entretanto, boa parte dessa legislação era ‘para inglês ver’, como se dizia na época. Não se inspecionavam as boticas nem a venda de remédios e drogas. Para os mais diversos males, elixires e drogas secretas de origem europeia, principalmente francesa, tiveram livre entrada após a abertura dos portos. Elas abarrotavam boticas e outros estabelecimentos comerciais. Saint-Hilaire narrou que, em 1819, em Cabo Frio, na capitania do Rio de Janeiro, os remédios eram encontrados nos negócios das fazendas e víveres. Xavier Sigaud (1796-1856) afirmou que era costume adquirir medicamentos para os escravos nas casas de ferragens e instrumentos de lavoura. No Diário de Pernambuco, uma loja de louças de Recife anunciava, em 1841, a venda de uma poderosa droga secreta, vinda da França” (p. 59).

- “A historiadora Tânia Salgado Pimenta documentou a ampla oferta de anúncios em que terapeutas populares, em meados do século, propalavam a cura de pernas inchadas, cancros, carbúnculos, moléstias dos olhos, surdez, escrófulas, embriaguez e morfeia (lepra). Num artigo presente no periódico Archivo Medico Brasileiro, em 1848, seu autor atestava que, na corte, a cura da bebedeira era monopólio dos curandeiros” (p. 59).

Higiene pública

- “A criação da Junta Central de Higiene Pública, em 1850, não representou o ápice do poder político dos higienistas brasileiros, como querem alguns historiadores. Além de esvaziar o poder da Academia Imperial de Medicina, a criação daquele órgão subordinou as ações oficiais nos campos de saúde pública e polícia médica à pauta política e administrativa mais geral, o que gerou queixas e lamúrias por parte de

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acadêmicos e da imprensa médica da corte e da Bahia, que ecoaram até as reformas do ensino e da saúde pública da década de 1880” (p. 60).

- “Consultados pelos ministros e pela câmara municipal, os médicos da corte imputavam os surtos epidêmicos a toda sorte de problemas higiênicos. Se as autoridades queriam fatos explicativos, cabia às instituições médicas produzi-los, e nisso a Academia de Medicina foi prolífica: águas estagnadas nas ruas; esgotos que não escoavam os dejetos humanos por falta de declive; as sepulturas no interior das igrejas; os abatedouros em bairros populosos; indústrias reputadas nocivas, no centro da cidade; o desprezo pelas regras higiênicas no interior das casas, a ausência de árvores nas praças públicas, a ventilação insuficiente causada pelos morros do Castelo e de Santo Antônio, a falta de bulevares; enfim, a permanência de mangues na Cidade Nova, local considerado pestilencial por excelência” (p. 60-61).

- “A eclosão de ambas as epidemias (febre amarela e cólera), atribuídas alternativamente aos ‘miasmas deletérios’, aos fatores meteorológicos ou ao contágio, gerou uma imagem internacional do Império como uma região insalubre e arriscada para o comércio. Grandes esforços foram feitos para mudar essa representação. Desde 1828, com a criação da Inspetoria de Saúde dos Portos, as autoridades sanitárias concentraram suas atenções nas medidas higiênicas que respondessem aos interesses dos comerciantes e da agroindústria escravista exportadora. Apesar das alterações da técnica sanitária, de que foram campeões ingleses e franceses, interessados em introduzir aqui seus capitais, seus aparelhos, suas máquinas, seus canos de água e esgoto, seus novos processos de pavimentação de ruas, somente com a vitoriosa campanha sanitária de Oswaldo Cruz (1872-1917), na primeira década do século XX, sob o regime republicano, a imagem de país enfermo se esvaneceu. Outra preocupação da Junta Central de Higiene Pública foi com a difusão da prática de vacinação contra a varíola. Desde o início do século XIX, as Juntas Vacínicas aplicavam o método desenvolvido por Edward Jenner (1749-1823), que consistia em introduzir o pus vacínico em indivíduos sãos para conter o avanço da ‘bexiga’” (p. 61).