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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO e de DOUTORADO EDNA DE ASSUNÇÃO MELO CHERNICHARO CARTOLA-GRAFIA: ―CAUSA‖ DO CENTRO CULTURAL CARTOLA Rio de Janeiro 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO e de DOUTORADO

EDNA DE ASSUNÇÃO MELO CHERNICHARO

CARTOLA-GRAFIA:

―CAUSA‖ DO CENTRO CULTURAL CARTOLA

Rio de Janeiro 2010

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EDNA DE ASSUNÇÃO MELO CHERNICHARO

CARTOLA-GRAFIA:

―CAUSA‖ DO CENTRO CULTURAL CARTOLA

Dissertação apresentada, como requisito para obtenção do Título de Mestre, ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profª. Dra. Regina Glória Nunes Andrade

Rio de Janeiro 2010

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

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EDNA DE ASSUNÇÃO MELO CHERNICHARO

CARTOLA-GRAFIA:

―CAUSA‖ DO CENTRO CULTURAL CARTOLA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em: ______________________________________________________ Banca Examinadora:

Profª. Dra. Regina Glória Nunes Andrade (orientadora) Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Profº. Dr. Alcides Caldas Universidade de Salvador

Profª. Drª Jô Gondar Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2010

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Meu Pai, que me ensinou, com seu jeito simples, a ter orgulho do que se é.

Minha Mãe, que sempre cuidou de todos nós.

Domingos, meu companheiro carinhoso de todas as horas, que me fez escrever com tanta dedicação.

Meus filhos, Felipe e Vinicius, maiores presentes da vida.

Márcia irmã, pelo carinho incondicional.

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AGRADECIMENTOS

Especial:

Sábado, 1º de maio, feriado internacional, dia do trabalhador! Esta

dissertação recebeu seu ponto final nesse dia simbólico com data emblemática,

fechamento de um ciclo.

Dia de manifestação ao ato que modifica e transforma o mundo e a cultura: o

trabalho – assunto subliminar tratado ao longo de nossa investigação no Centro

Cultural Cartola.

Trabalho, trabalhador, dia do trabalhador, dia de descanso cuja recompensa

virá a posteriori, no final deste agradecimento, cultivado a partir do desejo de um

homem: meu pai, seu Melo (in memoriam), trabalhador incansável.

Não por acaso encerro meu texto nesse dia. Pura homenagem àquele que foi

e continuará sendo o maior referencial de vida, que sempre destacou a importância

do trabalho como elemento constitutivo da dignidade humana.

É comum cada família ser significada no seu conjunto por um atributo.

Através da transmissão paterna, por meio de atos simples e de ―recursos aplicados‖,

eu e meus irmãos somos reconhecidos e nos reconhecemos pela força de trabalho e

pelo destaque quase genético com que o valorizamos.

Trabalho, significante singular de uma relação, assunto muito particular entre pai (in

memoriam) e filha.

Orientadora:

Desde 2008, o acaso tem acompanhado os passos de minha caminhada

rumo ao desafio de cursar o mestrado no Instituto de Psicologia Social, na

Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Assim também, quase por acaso,

encontrei a querida orientadora, Professora Doutora Regina Andrade. O primeiro

agradecimento vai para ela, que possui certo traço que remete ao meu pai (não pela

idade, somos quase contemporâneas nessa questão), algo intangível, da ordem

transferencial de trabalho, que me fez experimentar acolhida semelhante à paterna:

Enérgica! Pontual! Precisa, quase cirúrgica! Generosa, sem ser piegas!

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Fez funcionar em mim o desejo de acertar. Encontrei, em suas orientações, o

respeito intelectual e o apoio às minhas idéias, no sentido de experimentar a

liberdade de pensamento.

Gestores culturais do Centro Cultural Cartola:

Nilcemar Nogueira, por ter aberto sua ―casa‖ e me deixado tão à vontade,

bem ao modo de seu avô, Cartola.

Elisa, Regina, Milly, Jorge Luís, Cléo, Janaína, Lucy, Gal, Roberta, Noemi,

Somazz, Rudá, Toubi, Amélia, Marion, Adriana e os recém chegados Fábio, Rafael,

Leo, por seus depoimentos e ajuda.

Todos os pais, mães, meninos e meninas que prestigiam nosso trabalho na

oficina ―Afinando as relações e afinando as emoções‖.

Acadêmico:

Professora Doutora Jô Gondar, por ter-me dado, como docente externa

presente à banca de meu exame de qualificação, conselhos fundamentais para o

meu trabalho de pesquisa.

Professor Doutor Alcides Caldas, por ter prontamente aceitado o convite para

compor nossa mesa de defesa dessa dissertação.

Professor Doutor Jorge Coelho, por estabelecer comigo um diálogo utópico.

Professor Doutor Marco Antonio Coutinho Jorge, por sua acolhida e pelas

indicações bibliográficas preciosas.

Funcionários da secretaria, trabalhadores de staff, pessoas tão importantes

que trabalham silenciosamente nos bastidores do fazer acadêmico, em especial, ao

Marcos, à Monique, ao Anibal e à Dilza, por saberem compartilhar a relação de

trabalho.

Psicanalista André Luis Lopes, pelo incentivo a iniciar essa jornada

acadêmica tão importante em minha vida. ―A culpa é sua...‖

Colegas de percurso: Fátima Tardin, por seu incansável estímulo e apoio para

os diversos assuntos; Andreya Navarro, pelas conversas psicanalíticas; Cibele,

estrangeira em território carioca. Aproveito para estender o agradecimento a outros

colegas de pós-graduação: Sylvia, Mauricio e Sônia Bahia.

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Nestor, meu analista e companheiro de outra jornada, por sua contribuição

primordial, sempre generosa, por vezes chistosa, como a proferida na passagem

que deu origem à homofonia de Cartola, e a sugestão poética dos sambas.

Soraya, minha mais nova amiga para os assuntos intelectuais e de percurso

de vida.

Familiar:

Eurídice minha mãe sempre presente de forma silenciosa, Verônica e Márcia

irmã, pelos intermináveis finais de semana em nossa ―sede campestre‖, onde elas

―distraíam‖ os meninos.

Taciana, por estar sempre pronta a me poupar dos afazeres da casa.

Amigos:

Vâninha, Márcia Fraga, Ana Carnevale, Mary, Dinorah, Mônica Lessa de

forma mais direta. E também a Rosi, Isis, Sorelle, Márcia Casanova, Beth, Jéssica e

Lino, por terem participado dessa empreitada e por terem aceitado o pedido: ‖não

desistam de mim‖.

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Quero que nos vejam com potencialidade, como possibilidade de pensar e realizar.

Que possamos unir os nossos iguais na busca do bem comum. Ter orgulho de ser negro, sambista, popular.

Não ter medo de buscar a felicidade por nossos parâmetros.

Sonhar mais um sonho impossível. Lutar e vencer

Amar e ser amado Errar, por que não?

E agradecer a Deus por ter existido um dia Dona Zica e Cartola,

Pois foram eles que ajudaram a construir uma coisa chamada Mangueira

E a fortalecer o nosso samba – uma história que nos une –

e que promoveu o nosso encontro e que a muitos alimenta e faz feliz.

Nilcemar Nogueira

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RESUMO

CHERNICHARO, Edna de Assunção Melo. Cartola-grafia: ―Causa‖ do Centro Cultural Cartola, Brasil, 2010. 130 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Resultante de um convênio estabelecido entre as instituições ―Centro Cultural Cartola‖ e ―Universidade do Estado do Rio de Janeiro‖, a presente dissertação teve início a partir da demanda ―dificuldade com a equipe administrativa‖, formulada por Nilcemar Nogueira neta de Cartola, vice-presidente do Centro, cujo objetivo é trabalhar em prol do desenvolvimento sociocultural de jovens da comunidade da Mangueira. Em resposta, a pesquisa Cartola-Grafia: ―Causa‖ do Centro Cultural Cartola buscou investigar qual o impacto da promoção e da preservação do legado de Cartola na vida dos jovens atendidos pelo Centro Cultural Cartola e da equipe que trabalha nos bastidores para que os projetos sociais se tornem uma realidade. No desenvolvimento da pesquisa, procurou-se fazer uma escuta analítica de cada sujeito para, assim, conhecer as causas que levam os trabalhadores/gestores culturais a desempenharem várias atividades (gerenciamento, administração, captação de recursos financeiros, entre outras) relacionadas ao funcionamento da instituição. Na realização dessa empreitada, foi sendo instituída, passo a passo, uma metodologia própria que se adequou aos contornos demarcados pela fronteira do campo, com troca de informações entre autores oriundos de diferentes campos de saber: Sociologia, Institucionalismo, Psicopatologia do Trabalho, Ergologia, Clínica da Atividade e Psicanálise. Palavras-chave: Psicologia Social; Centro Cultural Cartola; Intervenção.

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ABSTRACT

CHERNICHARO, Edna de Melo Assumption. Cartola- Cartography: "Cause" Centro Cultural Cartola, Brazil, 2010. 130 f. Dissertation (Masters in Social Psychology) - Institute of Psychology, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Resulting from an agreement established between the institutions "Centro Cultural Cartola" and "Universidade do Estado do Rio de Janeiro", this thesis began with the demand "difficulty with the management team," formulated by Nilcemar Nogueira granddaughter of Cartola, vice president of the Center, whose goal is to work towards the socio-cultural development of young community of Mangueira. In response, the research Cartola-Cartography: "Cause" of the Centro Cultural Cartola sought to investigate the impact of promoting and preserving the legacy of Cartola the lives of young people assisted by the Centro Cultural Cartola and the team that works behind the scenes so that the projects become a social reality. During the research, we made an analytic listening to each subject, so know the causes that lead workers / cultural managers to perform various activities (management, administration, fundraising, etc.) related to the operation of institution. In making that contract was being established step by step, a methodology that has adapted itself to the boundaries demarcated by the boundary of the field, with information exchange between authors from different fields of knowledge: Sociology, Institutionalism, Psychopathology of Labor, Ergology, Clinical Activity and Psychoanalysis. Keywords: Social Psychology, Centro Cultural Cartola; Intervention.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1: CARTOLA FIGURA 2: CARTOLA E RADAMÉS GNATTALI FIGURA 3: CARTOLA, AOS 4 ANOS – 1913 FIGURA 4: CARTOLA E D. ZICA FIGURA 5: CARTOLA COM 25 ANOS FIGURA 6: CARTOLA E D. ZICA FIGURA 7: CARTAZ PROMOCIONAL FIGURA 8: CARTOLA, NARA LEÃO, ZÉ KÉTI E NELSON CAVAQUINHO (1965 FIGURA 9: FACHADA DO CENTRO CULTURAL CARTOLA FIGURA 10: FUNCIONÁRIOS DO CENTRO CULTURAL CARTOLA FIGURA 11: II SEMINÁRIO DO SAMBA FIGURA 12: ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO CENTRO CULTURAL CARTOLA FIGURA 13: OFICINA DE FLAUTA FIGURA 14: OFICINA DE DANÇA FIGURA 15: COMPLEXO DA MANGUEIRA FIGURA 16: MARIA MOURA- MESTRE GRIÔ FIGURA 17: APRESENTAÇÃO ORQUESTRA DE VIOLINOS - BISNETA DE CARTOLA FIGURA 18: APRESENTAÇÃO JONGO FIGURA 19: PROJETO MATRIZES DO SAMBA FIGURA 20: TELECENTRO FIGURA 21: EXPOSIÇÃO PERMANENTE CARTOLA FIGURA 22: MESTRE CARTOLA NO DESFILE DA ESCOLA DE SAMBA (1976) FIGURA 23: NA EXPOSIÇÃO, CÓPIA DO TRAJE UTILIZADO POR CARTOLA (1976) FIGURA 24: CENTRO DE REFERÊNCIA DE PESQUISA DO SAMBA FIGURA 25: BIBLIOTECA COMUNITÁRIA DONA ZICA FIGURA 26: APRESENTAÇÃO DO FILME MEMÓRIAS DO SAMBA FIGURA 26: PLACA DA SALA DE ATENDIMENTO

22 24 24 26 28 33 35 36 46 47 50 52 53 53 54 55 56 56 57 57 58 59 59 60 61 61 112

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................. CAPÍTULO 1 – CARTOLA-GRAFIA: UM PERCURSO.............................. 1.1 Comunidade: nos passos de Cartola..................................................... 1.2 Genealogia de uma Escola de Samba: Dos Arengueiros à Estação Primeira de Mangueira................................................................................ 1.3 O Zicartola............................................................................................. 1.4 Interface entre Favela da Mangueira e Centro Cultural Cartola............ 1.5. Terceira Geração.................................................................................. CAPÍTULO 2 – CENTRO CULTURAL CARTOLA: LUGAR QUE “ACONTECE”............................................................................................. 2.1 Gestores culturais: trabalho invisível..................................................... 2.2 Seminários do samba............................................................................ 2.3 Ponto de cultura e de educação............................................................ CAPÍTULO 3 – TERRITÓRIO VERDE E ROSA......................................... 3.1 Espaços simbólicos: Escola de Samba e Centro Cultural..................... 3.2. Cultura: conceito dupla face................................................................. 3.3 Utopia, ideologia e sonho...................................................................... 3.4 Retrospectiva de impressões e instauração de nova demanda............

CAPITULO 4 – METODOLOGIA HÍBRIDA E A CAUSA CARTOLA................................................................................................... 4.1 Delimitação do método.......................................................................... 4.2 Causa cartola......................................................................................... 4.3 Cartola: marca de valor......................................................................... 4.4 Fundação de escola.............................................................................. 4.5 Traços de identidade............................................................................. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ REFERÊNCIAS........................................................................................... Filmes, entrevistas catalogadas e entrevistas televisionadas..................... Letras de música......................................................................................... Livros, dissertações e teses........................................................................ ANEXO – CERTIDÃO DO IPHAN...............................................................

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22 22

28 32 40 44

46 46 50 51

62 62 65 70 73

81 81 88 93 94 98

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INTRODUÇÃO

As rosas não falam

Bate outra vez Com esperanças o meu coração

Pois já vai terminando o verão Enfim.

Cartola

Segunda feira de carnaval, avenida Presidente Vargas, concentração em

frente aos Correios. Cheguei sem saber exatamente qual seria o papel a

desempenhar como ―roadie‖1, quando fui interpelada por um grupo de uruguaios

solicitando ajuda.

O mais alto: - Verifique se minha fantasia está certa.

Outro: - Ajuda-me a arrumar essas asas?

Outro: - Cante comigo o samba, eu estudei a letra pela internet.

Outro: - Ela é a Nilcemar? – perguntou, indicando Janaína (coordenadora

financeira do Centro Cultural). Eu falei com ela por e-mail sobre as minhas botas, ela

estava preocupada em conseguir meu número, 47! Quando você estiver com ela,

diga que eu (nome em espanhol) agradeço, ficou exatamente do tamanho certo!

Assim, fui sendo inserida no desfile por estrangeiros que solicitavam de mim

respostas a respeito da fantasia, da letra do samba etc.

Naquele instante, conversando com esse grupo de turistas, lembrei-me de

que esta pesquisa foi construída a partir de uma demanda formulada pelo Centro

Cultural Cartola para a Universidade. Recordei-me também da sensação que senti

quando cheguei lá, pela primeira vez e fui apresentada a Nilcemar Nogueira, neta de

Cartola: tal qual uma estrangeira, com o mesmo sentimento de estranheza2, ao

entrar em contato com um universo particular desconhecido.

1 É uma espécie de salva-vidas do músico. É aquele que passa quase despercebido, sempre pelos cantos, mas

que, para uma boa performance de palco, é indispensável. É o último elemento da banda, sempre cobrindo a retaguarda do músico nas situações adversas em shows, e sempre realizando o trabalho mais árduo numa ―gig‖. Esse profissional é o roadie. Fonte: http://viberock.wordpress.com/category/roadie/ acesso em: 02/04/2010. 2 ―O estranho é aquela categoria do assustador que, ao remeter ao que é conhecido, de velho, e há muito

familiar‖. FREUD, S. ―O estranho‖. [1919], in Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VXII, p.277.

Rio de Janeiro: Imago, 1987.

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O desfile da Mangueira remeteu naquele momento à entrada no Centro

Cultural Cartola, considerado, retrospectivamente, como o ―instante de ver‖3,

momento fulgurante de contato com o ―novum‖4, antes, repleto de disposição para

algo que só pode ser significado hoje ou, como diz Lacan, ―o tempo pode reduzir-se

ao instante de olhar, mas esse olhar, em um instante, pode incluir todo o tempo

necessário para compreender‖ (1940-1944, p. 205).

Ali na avenida, diante de tantas pessoas, tive a percepção do término de um

trabalho que, se começou de um desejo do outro, adquiria significação plena de ser

por si mesmo, numa ligação entre os tempos de seu processo de feitura.

Percebi ser ―tempo de concluir‖ e de estabelecer uma ordenação às

observações e aos efeitos destacados, depois de decorridos dois anos de trabalho

junto ao Centro Cultural Cartola.

Nesse ponto, vale à pena esclarecer o conceito de tempo aqui utilizado.

Desde os gregos, o tempo cronológico é uma convenção inventada pelos

humanos para dimensionar a passagem do que não permanece o mesmo.

Estabelecer analogia ao sofisma5 tratado na obra de Lacan é, em outras

palavras, estabelecer uma analogia para descrever o tempo próprio de uma

pesquisa cujo tempo não comporta apenas a dimensão cronológica, mas contempla

o tempo lógico de perlaboração6, que consiste, principalmente, em mostrar como

significações em causa se encontram em contextos diferentes.

Sabe-se em psicanálise que existe um tempo próprio de emergência do

inconsciente, um movimento de abertura e fechamento, tempo a ser aproveitado

pelo analista que, com seu ato, provoca a emergência do desejo; e que em nossa

pesquisa significa que a emergência do desejo comporta a dimensão de escrever

3 LACAN, J. ―O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada‖ [1940-1944], in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar editor, 1998, pp.197-213.. 4 ―O mundo está, antes, repleto de disposição para algo, tendência para algo, latência de algo, e o algo assim

intencionado significa plenificação do que é intencionado. Significa um mundo mais adequado a nós, sem dores indignas, angústia, auto-alienação, nada. Essa tendência, porém, está em curso para aquele que justamente tem o novum diante de si‖. BLOCH, E. O princípio esperança, 2005, vol. I, p.28.

5 LACAN apud GONDAR, 2006, p.113. Gondar destaca o artigo lacaniano ―O tempo lógico e a asserção da

certeza‖, do qual extraímos o seguinte trecho: ―As modulações temporais se articulam às hesitações. Em um primeiro momento, vejo tudo o que está dado, toda a situação: vejo o que está fora de mim, vejo os outros, mas ainda não sei quem sou; em um segundo momento, realiza-se o trabalho de elaboração: tento compreender [...] creio poder dizer quem sou, mas ainda não estou convicto: hesito,[...] por fim, dá-se a asserção subjetiva: crio coragem para me posicionar e passo da hesitação para a pressa. Apresso-me a concluir e, ainda que essa conclusão seja provisória, sou capaz de me lançar, sem garantias. [...] O sofisma do tempo lógico exige que o sujeito precipite sua certeza num ato‖. 6 FREUD apud GONDAR, p.113.

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como ato, cuja finalidade é colocar no presente o que se passou no futuro pré-visto

no passado vivido.

Desejo de escrita, ―tempo de concluir‖ um percurso atualizado no ato de

desfilar na Mangueira, re-significado no ―instante de ver‖, pela estranheza de uma

nova demanda: ―verificar se a fantasia está certa‖. Tempo lógico do inconsciente,

indicando a pulsação do inconsciente, na qual a dimensão do tempo não se constrói

na linha cronológica de passado, presente ou futuro.

É possível constatar, através desse episódio e do turbilhão de sentimentos

causados em mim, que a pesquisa havia sido concluída sob a insígnia de uma

identidade cultural própria, capaz de representar o Centro Cultural e todos os

significantes daí originários. O sentimento de pertença produziu uma diferença, um

escudo simbólico que propiciou uma separação entre o antes e o depois, entre

Centro Cultural e Escola de samba, entre causa sociocultural e desfile no carnaval.

Naquele momento, a estrangeira – como os turistas no samba – cede lugar à

representante do Centro Cultural Cartola, o que significava falar sob a pele de

brasileira e, sobretudo, de autêntica mangueirense com identidade cultural definida,

o samba: ―Cante o samba comigo, aprendi na internet‖.

O sentimento subsequente foi da necessidade de concluir o que se passou

nesse intervalo lógico e cronológico e realizar o registro da instauração dos tempos

de pertença e de diferença, que produziram a identidade da pesquisa, confirmada

através da posição de roadie, coincidentemente, mesma posição ocupada nos dois

espaços simbólicos – Centro Cultural e Escola de Samba – posições nas quais deve

proceder-se como aquele que passa quase despercebido, sempre cobrindo a

retaguarda do músico nas situações adversas em shows, e sempre realizando o

trabalho mais árduo.

Em outras palavras, esta pesquisa teve por objetivo primeiro investigar o

Centro Cultural Cartola no que tange aos efeitos para a cultura brasileira da

promoção e preservação do legado de Angenor de Oliveira, mais conhecido pela

marca Cartola7.

7 Marca Cartola – O conjunto da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola, como conhecido na cultura brasileira, é

tratado aqui como marca de valor. A nomeação ou o apelido Cartola derivou do uso do chapéu de formato de um coco, considerdo como a marca do legado construído por Angenor. Marca: ―Representação simbólica de uma entidade, qualquer que ela seja, algo que permite identificá-la de um modo imediato como, por exemplo, um sinal de presença, uma simples pegada. Na teoria da comunicação, pode ser um signo, um símbolo ou um ícone‖. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marca. Acesso em 04/02/09.

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O título ―CARTOLA-GRAFIA8: ‗CAUSA‘ DO CENTRO CULTURAL CARTOLA‖

foi escolhido por referir-se ao mapa traçado no percurso da investigação que se deu

com base no legado de Cartola. No desenvolvimento da pesquisa, procurou-se

conhecer e analisar as causas que levam os trabalhadores/gestores culturais a

desempenharem várias atividades (gerenciamento, administração, captação de

recursos financeiros, entre outras) relacionadas ao funcionamento dessa instituição

que se dispõe a trabalhar em prol do desenvolvimento sociocultural de jovens da

comunidade da Mangueira.

Na realização dessa empreitada, foi sendo instituída uma metodologia que se

adequou aos contornos demarcados pela fronteira do campo. Aqui denominada de

híbrida, por ser resultante de diferentes campos de saber, a metodologia foi

construída passo a passo por meio do diálogo estabelecido entre mim e autores de

áreas que interagem: Sociologia, Institucionalismo, Psicopatologia do Trabalho,

Ergologia, Clínica da atividade e Psicanálise.

A troca de informações entre os diferentes campos visou a abordar

cientificamente os valores atuantes nas relações estabelecidas com o Centro

Cultural Cartola, à medida que eram extraídos de cada campo de saber alguns

conceitos e métodos, de modo a fusioná-los em torno das questões que a prática da

pesquisa colocava no dia-a-dia. Esse jeito próprio de fazer só foi possível porque a

pesquisa orientou-se pela perspectiva do método da pesquisa participativa e teve

apoio em fundamentos como o proposto no pensamento de Dubost & Lévy9 a

respeito das pesquisas conduzidas sob a perspectiva da pesquisa participativa:

(São pesquisas) ligadas à prática de mudanças e assim marcadas por uma ambigüidade fundamental: representam simultaneamente um caminho original de pesquisa, especifico às ciências do homem, e um método de intervenção que visa mudanças individuais e coletivas. [...] Se a pesquisa participativa marca uma ruptura com os conceitos clássicos do trabalho cientifico e das suas relações com a sociedade, é não só porque associa voluntariamente pesquisa e ação, mas, sobretudo, porque define as suas relações recíprocas de outro modo que não em termos funcionais de utilidade [...]; portanto, orientada para valores (Dubost & Lévy, 2002, p. 304, 305).

8 ―Cartola-grafar‖ – Termo utilizado como uma homofonia ao conceito de cartografia, nossa intenção é a escrita

de um mapa a traçar um itinerário próprio da vida e obra de Cartola tendo como parâmetro o jogo significante com o nome de Cartola. Em última análise seria maneira chistosa utilizada na escrita do percurso de trabalho realizada pelo viés da psicanálise.

9 DUBOST, Jean & LEVY, André. Dicionário de psicossociologia, 2002. Verbetes: pesquisa participativa e

intervenção.

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Embora Dubost & Lévy (idem), em seu texto, aprofundem a discussão sobre a

ambigüidade entre pesquisa participativa e intervenção10, a fim de distinguirem

pesquisas realizadas em laboratório universitário das realizadas em meio natural,

eles privilegiam os valores, o que vem ao encontro do perfil aqui traçado quanto a

não exterioridade em relação ao objeto de estudo. Em outras palavras: suas

observações teóricas permitem que se empreenda uma análise do que se passa e

se desenvolve nas relações com os integrantes do Centro Cultural, justamente por

ocuparmos uma condição de alternância na qual somos atores e pesquisadores

simultaneamente, possibilitando, pelo menos em parte, ascender à realidade

(psicológica, social, grupal, institucional) (idem, ibidem, p.305).

Desse modo, a meta traçada é a de realizar a difícil e complexa tarefa de

transcrever o que foi o processo de convivência, durante dois anos (2008 e 2009),

com os integrantes do Centro Cultural Cartola, tendo por ponto de partida o legado

poético-musical de Cartola, sob a ótica teórica da pesquisa participativa. Cartola,

autor de músicas que marcaram sobremaneira o inconsciente social11 e, por

conseguinte, as vidas dos brasileiros, foi, além de ícone da música popular

brasileira, um símbolo de superação, de quebra de fronteiras sociais.

Como, pois, atender à demanda do Centro Cultural, que tomava forma na voz

de Nilcemar? O modo primeiramente pensado foi o de estabelecer uma proposta de

estudo e de trabalho por meio de uma pesquisa participativa-intervenção,

metodologia que ―visa à resolução de problemas ou de objetivos de transformação‖

(Thiollent, 2007, p.9).

É importante ressaltar que essa intervenção só foi possível pela existência da

parceria estabelecida entre o Centro Cultural Cartola e a Universidade do Estado do

Rio de Janeiro, sob a coordenação, respectivamente, da Vice-Presidente do Centro

Nilcemar Nogueira e da Professora Doutora Regina Andrade (UERJ).

Dessa forma, a pesquisa aqui descrita está subordinada ao Departamento de

Psicologia Social, ou seja, o projeto original ―Construções de identidade cultural e

autoestima com jovens da comunidade da Mangueira‖, proposto pela Universidade,

10

A primeira designa ―uma experimentação na vida real‖ e a segunda ―um equivoco‖, no sentido de que alguns metodologistas confundem observação participante, etnometodologia, em geral, e até história de vida como modalidade de pesquisa participativa. 11

ENRÍQUEZ, Eugène, 1990, p.14,15. Na experiência de psicossociólogo engajado num processo de ação-pesquisa, utiliza a expressão inconsciente social por falta de uma teoria capaz de conectar os processos individuais, o funcionamento dos grupos e as regulações sociais; diz que a obra de Freud parece ser a única que permite estabelecer essa leitura por ter sido ele o único a tentar fundar uma ciência do vivido.

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em 2002, desdobrou-se em outras atividades e hoje abriga um grupo de alunos da

Pós-Graduação, numa interlocução com a práxis da Psicologia Social.

A presente pesquisa é a constatação da vitalidade do convênio estabelecido

entre as duas instituições citadas, como comprova o fato de a Universidade ter

recebido um pedido de intervenção e respondido com um trabalho de pesquisa

atividade. A solicitação, formulada por Nilcemar como representante do Centro

Cultural, colocava o problema como ―dificuldade com a equipe administrativa‖. Tal

enunciado trazia subjacente a enunciação de sustentar e transmitir o legado de

Cartola para as novas gerações, visando a formar/construir novas identidades

culturais – conclusão obtida após várias entrevistas com Nilcemar e com a equipe

administrativa.

Feita à época em que prestei exame para o Mestrado, a demanda somou-se

à possibilidade de trabalhar com pesquisa participativa/intervenção, contemplando

dois aspectos que se colocaram: transformar a demanda numa questão de

relevância acadêmica, e oferecer aos gestores culturais (equipe administrativa) os

meios de se tornarem capazes de responder com eficácia aos problemas

encontrados no cotidiano das atividades laborais, no Centro Cultural Cartola, de

operacionalização das ações transformadoras.

Logo se configuraram outras questões para além da solicitação enunciada por

Nilcemar, a saber:

1. Quem são esses sujeitos que desejam trabalhar com a cultura, não só

como autores de obras de arte ou artefatos culturais, mas, principalmente, como

construtores de identidades culturais?

2. Será que esses sujeitos constituem uma nova categoria profissional que

auxilia a demarcar um novo tempo em que a [...] reestruturação cultural do mundo se

constitui como chave do final de uma era política? (Canclini, 2005, p. 19).

3. Como preservar o patrimônio deixado por Cartola e realizar a transmissão

às novas gerações, visando a formar/construir novas identidades culturais para

aqueles que estão à margem da sociedade pós-moderna?

4. Como pensar trabalhadores que se propõem a favorecer a construção de

identidades num contexto contemporâneo onde o conceito de cultura envolve um

somatório de necessidade de recursos e é visto como ―atração para o

desenvolvimento econômico [...] e invocado para resolver problemas que eram

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anteriormente da competência das áreas econômica e política?‖ (Yúdice, 2004,

p.12).

Em outras palavras, apostar que o Centro Cultural se configurava em fértil

campo de pesquisa, sujeito a questões que transcendiam ―dificuldades com a equipe

administrativa‖, era apostar na possibilidade de investigar se o mal-estar instaurado

– tanto nas relações institucionais como nas intersubjetivas – poderia produzir mais

do que uma discussão a respeito do alcance ou não dos objetivos propostos em sua

missão.

Uma aposta alta! E assim foi possível constituir um projeto com relevância

científica para ser apresentado ao Programa de Seleção de Mestrado do Curso de

Pós-Graduação em Psicologia Social.

O projeto foi viabilizado a partir do momento em que promoveu um

deslocamento no foco da demanda ―dificuldades com a equipe administrativa‖ para a

preservação do legado de Cartola, cuja amplitude favoreceu o trabalho de

investigação, e não apenas da intervenção nas intrincadas relações de trabalho

entre os gestores culturais. Demarcava-se, assim, o legado de Cartola, que poderia

inscrever-se nas instâncias do real, do imaginário e do simbólico12, do campo

constituído entre os ―construtores‖ (gestores culturais) e os ―construídos‖ (sujeitos

beneficiados), ressaltando que ―é preciso, e este não é um ponto sem importância,

que o sujeito da ação identifique no objeto a ser preservado algum valor‖ (Chagas in

Gondar & Dodebi, 2005, p.118). Trata-se do ato de a cultura ser encarada com

responsabilidade e senso crítico, transcendendo seu valor como recurso, mercadoria

ou apenas uma moeda de troca. Por esse motivo, estava instalada a condição de

constituir-se um campo de observação e análise junto ao Centro Cultural, com a

ressalva de não compreendê-lo somente como um campo de trabalho onde se deve

intervir.

Nesse sentido, o desafio se constituiu em deslocar o foco das pesquisas que incidem sobre os excluídos para as análises entre o macro e a micropolítica, colocando em discussão o modo como estes são produzidos e evidenciando as condições sociopolítico-desejantes (Lopes & Uziel, 2007, p.3).

12

Real: campo do inefável, não coincide com a realidade; Simbólico: campo dos possíveis contornando e inscrevendo o real; Imaginário: campo do sentido indefinido e indeterminado – conceitos lacanianos sobre os registros do discurso.

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Tal observação serviu de alerta para se colocar nova questão: diante de tão

vasto material de pesquisa, coletado no período de dois anos, era preciso

estabelecer um ponto de corte para determinar o que seria apresentado e o que

ficaria de fora, sabendo, de antemão, que as escolhas determinariam os resultados.

Nesse sentido, foram privilegiados os conceitos que melhor se adequavam aos

objetivos propostos; contudo, o conceito de novum, discutido na obra de Bloch

(2005), e a concepção da temporalidade do inconsciente, discutida por Lacan

(1954), foram o instrumento de medida, ou seja, todas as informações que

causavam espanto, surpresa e angústia ou que se referiam à subjetividade em jogo,

encontraram nesses conceitos o parâmetro de corte primordial. Desse modo, a

dissertação se estruturou em quatro capítulos.

O primeiro, ―Cartola-grafia: um percurso histórico‖, levanta pontos da vida de

Cartola, a fim de, através da linha do tempo, justificar a relevância de seu nome

como símbolo de superação, de quebra de barreiras sociopolíticas e culturais e, por

isso mesmo, de causa social, hoje.

O segundo, ―Centro Cultural Cartola: lugar que acontece‖, traça um perfil das

realizações administrativas do Centro, incluindo os cursos e projetos ali

desenvolvidos, ressaltando os recursos utilizados na tentativa de oferecer aos

gestores culturais os meios de se tornarem capazes de responder com eficácia aos

problemas do cotidiano.

O terceiro, ―Território verde e rosa‖, aborda o valor do samba e das

imbricações daí advindas, considerando-se o papel das grandes escolas e o da

comunidade responsável por transformar sonho em realidade. Com isso, foram

levantados os conceitos de cultura e de utopia, para fazer um recorte de eventos

exemplificadores do ―antes desejado‖ e do ―hoje realizado‖.

O quarto, ―Metodologia híbrida e causa Cartola‖, dá destaque ao fato de a

metodologia usada para dar conta da ―causa‖ Cartola ter sido baseada numa troca

de informações entre autores de diferentes áreas: institucionalismo, psicopatologia

do trabalho, estudos ergológicos e da clínica da atividade e enfoque psicanalítico.

Também estabelece uma interlocução com os jovens, colocando igualmente em

cena as pessoas que trabalham nos bastidores dos projetos.

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As considerações finais apresentam breve síntese, através da análise

relacional13, a respeito da temporalidade da pesquisa naquilo que ela apresentou de

novum. Além disso, abordam a forma como se deram as etapas das transformações

ocorridas no campo e no posicionamento do pesquisador, a ponto de ser instituído

um novo espaço de acolhimento para as sigularidades dos sujeitos que frequentam

o Centro Cultural Cartola: ―Afinando as emoções‖.

Assim, a letra do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira 2010,

―Mangueira é música do Brasil‖, serve aqui para anunciar o fechamento da

introdução e a abertura da análise elaborada num texto sob uma estranheza familiar,

hoje, primeiro de maio, dia do trabalhador.

Vai passar14

Nessa avenida mais um samba popular Mangueira até "Parece um céu no chão" É música vestida de emoção Com notas e acordes refletiu Em suas cores o orgulho do Brasil Nas ondas do rádio, De norte a sul viajei Do sonho dourado embarquei Parece magia Vai, minha inspiração "Num doce balanço a caminho do mar" Vem me trazer a canção Pro mundo se encantar Tantas emoções na verde e rosa Brilham as estrelas imortais "Bate outra vez" uma saudade Lembro dos antigos carnavais Um verso me levou Do rock à jovem guarda Fui "Caminhando e cantando" ao luar "Com a Tropicália no olhar" Atrás do trio eu quero ver O baile começar e a noite adormecer "O sol nascerá", as cortinas irão se fechar "Folhas secas" virão e o show vai continuar Meu coração é verde e rosa Descendo o morro, eu vou A música, alegria do povo Chegou, a Mangueira chegou

13

Análise relacional. Expressão utilizada por Bourdier (2004) cuja solicitação é para que se lute por todos os meios contra a inclinação primária para pensar o mundo social de maneira realista ou substancialista: é preciso pensar relacionalmente, entendendo por tal as relações de força entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum de força social e não apreender os espaços sociais na forma de distribuição de

propriedades entre indivíduos. 14

Composição: Renan Brandão, Machado, Paulinho Bandolim e Rodrigo Carioca.

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CAPÍTULO 1 – CARTOLA-GRAFIA: UM PERCURSO

“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”.

Nelson Sargento

1.1 Comunidade: nos passos de Cartola

Figura 1: Cartola

―Onde essa gente toda vai dormir?‖ Essa foi uma das últimas frases

expressas por Cartola antes de falecer. Era um delírio, dizem seus biógrafos Silva &

Filho (2003); ele deveria pensar que estava dando uma festa. Na verdade, pode-se

inferir qualquer coisa se for levada em conta uma vida na qual a generosidade

sempre esteve presente. Suas casas (mudou-se muito) sempre estiveram abertas

para todos os que recorriam ao abrigo delas. Cartola conheceu o abandono, a

desproteção e, mesmo assim, sua vida viria a ser um exemplo de simplicidade e

generosidade.

Por isso, a escolha de ―Cartola-grafar‖ a história de vida do mestre Cartola

justifica-se não apenas por sua importância no mundo musical, mas também por sua

história de luta, de superação de dificuldades e de inserção ativa na vida comunitária

do morro da Mangueira. Além disso, o presente capítulo pretende delimitar alguns

aspectos relevantes a respeito de sua vida, cujos valores são decisivos para a

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transmissão de seu legado, que se constituiu desde a fundação da Escola de Samba

Mangueira até a geração agora assistida no Centro Cultural Cartola.

Esse recorte biográfico procurou privilegiar alguns elementos da vida de

Cartola que merecem ser ressaltados, por se prestarem, neste trabalho, como

argumentos concretos, utilizados na investigação da importância das ações

socioculturais para os jovens e para a comunidade mangueirense.

Os pontos de partida foram sua biografia, escrita por Marília Trindade

Barbosa e Arthur de Oliveira Filho (2003), o vasto acervo virtual e, principalmente, o

contato direto com as pessoas envolvidas no Centro Cultural Cartola – dados que,

juntos, permitiram ―Cartola-grafar‖ o material coletado. Também houve o cuidado de

recolher, prioritariamente, as informações contidas em seus próprios depoimentos e

em outras fontes, como entrevistas já feitas com as pessoas ligadas a ele e ao

Centro Cultural, reportagens, filmes e documentários. Enfim, buscou-se levantar em

sua história elementos que consubstanciassem a importância do legado de Cartola

para a cultura brasileira.

Nilcemar, sua neta, e os funcionários do Centro Cultural Cartola,

trabalhadores anônimos que transformam intenções em realidade, deram todo

destaque à importância de Cartola como causa social. Aliás, esse significante ―causa

Cartola‖ foi recolhido das falas emocionadas dessas pessoas, incluindo Nilcemar,

mulher incansável e imensamente generosa em compartilhar seus conhecimentos.

Tendo em vista toda a obra social que se estrutura em torno da ―causa

samba‖, foi preciso privilegiar acontecimentos que estivessem mais intimamente

ligados ao modo de ser de Cartola – hoje, um exemplo a ser seguido por crianças e

jovens que têm no Centro Cultural Cartola a oportunidade de aprenderem uma

profissão e de desenvolverem a consciência de cidadania.

Cartola nasceu num domingo, dia 11 de outubro de 1908, e foi registrado com

o nome de Angenor de Oliveira. Seus pais moravam com seu avô paterno, que era o

cozinheiro de Nilo Peçanha, ex-presidente do Brasil (1906-1910). Seu avô era

originário de Campos, fora empregado de confiança da família de Nilo Peçanha

quando ele era ainda senador.

Nilo Peçanha foi eleito vice-presidente, mas, com a morte do então

Presidente Afonso Pena, assumiu a presidência em junho de 1909. Com isso,

Cartola, desde cedo, já tinha contato, mesmo que de forma indireta, com

personagens importantes da história do Brasil. Isso mais tarde iria se tornar uma

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rotina para ele: o contato com personalidades da cultura brasileira, como Villa Lobos,

Radamés Gnattali, Noel Rosa, entre tantos outros.

Figura 2: Cartola e Radamés Gnattali

Cartola, já septuagenário, ainda dizia saudoso: ―Antes de o meu avô morrer,

não havia pretinho mais bem vestido do que eu em todo o bairro de Laranjeiras.

Depois que ele morreu é que as coisas pioraram muito pra mim‖ (Moura, 1988,

p.22).

Figura 3: Cartola, aos 4 anos – 1913

Além de contar com grande estima do avô, Cartola também parecia ter a

preferência de sua mãe. Terceiro filho e o primeiro do sexo masculino, tornou-se o

preferido de D. Aída, sua mãe; parece que só o Seu Sebastião, o pai, não lhe dava a

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mesma atenção. Seu Sebastião parecia ser homem muito decidido, de opiniões bem

definidas, de sustentar a palavra. Conta-nos Cartola:

Quando meu pai foi ao juiz de paz para se casar, aconteceu um fato que até hoje relembro com alegria, pois prova a força de vontade de meu pai. Depois do casamento, o juiz pediu à noiva que assinasse o livro. Ela assinou. Em seguida, virou-se para meu pai e mandou que ele fizesse a mesma coisa, mas ele respondeu: - Não sei escrever, doutor. Não posso assinar. - Mas como um rapaz tão bonito não sabe assinar o nome? – comenta o Juiz. Isso é uma vergonha! - O senhor, doutor – respondeu Sebastião de Oliveira – foi o primeiro e o último homem a me dizer isso. - Daí em diante, meu pai estudou à noite e até o francês aprendeu (Silva & Filho, 2003, p.23).

O pai de Cartola casou-se analfabeto e, após a observação do juiz, que não é

um qualquer, ele se investiu de autoridade e mudou o rumo de sua vida,

ingressando no mundo da leitura.

Seu Sebastião continuou a estudar e, em torno de 1923, levou Cartola para

estudar com ele, à noite, no Liceu de Artes e Ofícios. A irmã de Cartola prossegue a

narração:

Papai e Cartola estudavam em salas diferentes. Papai entrava com ele, mas o velho subia para sala de aula e Cartola caía fora, ia pra rua, pra farra. Na hora da saída, ele tava lá, esperando o papai na porta do colégio, como se tivesse terminado a classe mais cedo. No fim do ano, papai passou e Cartola repetiu. Furioso, o velho foi à secretaria da escola para ver o que estava acontecendo e soube que o filho jamais frequentou uma aula. Foi uma briga horrível (Idem, ibidem, p.50).

Esse fato, entre outros, era motivo de brigas frequentes entre eles. Cartola foi

expulso de casa por seu pai, logo após a morte da mãe Aída, que não estaria mais

presente para conciliar os ânimos. Ficou sem ter onde morar.

O rapaz passava o dia perambulando pela rua e, à noite, depois de farrear bastante, dormia no trem da Central que ia até a estação de Dona Clara

15, fazendo a viagem de ida e volta à noite

inteira. [...] Quando voltou a casa, Sebastião havia ido embora, deixando um recado malcriado para o filho rebelde. ―Vou-me embora deste morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer vergonha‖. Cartola ouviu tudo direitinho. Calado. Sem satisfação a dar a mais ninguém, coração pesado, caiu na vida. Arrumou um barraco para dormir (Idem, ibidem, p.50-51).

Apesar de toda má sorte, encontrou quem o acolhesse: primeiro foi o

casamento com D. Deolinda, que era também uma pura expressão de

generosidade. Anos mais tarde, D. Zica viria ao seu encontro. Novamente a

presença da força feminina seria vital na vida de Cartola.

15

Essa estação existiu até 1928, e foi substituída pela estação de Madureira. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_linha_centro/donaclara.htm. Acesso em abril/2010.

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Figura 4: Cartola e D. Zica

Deolinda cuidou do Cartola quando ele estava muito doente. Diz ele:

Eu estava na pior. Todo engalicado. Eu tinha gonorréia, cancro duro, cancro mole, mula, cavalo, o diabo. Gemia o dia inteiro naquela cama. Aí uma vizinha, com pena, passou a cuidar de mim. Fazia uma sopinha, trazia. Lavava minha roupa. Dava-me remédio. Como uma verdadeira mãe. Era a Deolinda... (Idem, ibidem, p.51).

Deolinda era negra, sem vaidades, gorda, muito séria; coração enorme, sua casa parecia um albergue: quem tivesse fome ou sede ou precisasse de um cantinho para dormir, era só baixar na casa de Deolinda (Idem, ibidem, p.150).

Ela se consternou com a situação do menino, ele contava com 17 anos,

tomou para si os cuidados dele, até que um dia seu marido se inquietou com tanto

desvelo e se separou dela. Ela era casada com Astolfo e tinha uma filha, Ruth – fato

que não a impediu de se apaixonar por Cartola e viver com ele até sua morte.

Assim, aos dezoito anos, sem esperar, Angenor Oliveira ganhou mulher, filha e até

sogro ex- escravo (Idem, ibidem, p. 52-3).

Mesmo tendo sido trocado por Cartola, Astolfo, já na condição ex-marido de

D. Deolinda, no final de sua vida, voltou a casa, tuberculoso. O próprio Cartola o

tratou, segundo relato feito por seu grande amigo, Carlos Cachaça:

Todo dia ele botava uma cadeira na porta do barraco, e sentava o Astolfo para apanhar sol. Comprava cigarros para ele. Dava até banho. Astolfo morreu em companhia deles, mas morreu porque chegou a hora dele. Ele foi muito bem tratado. Menininha, mulher de Carlos Cachaça, conclui: Cartola tinha uma boa formação (Idem, ibidem, p. 89).

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Após sua união com Cartola, D. Deolinda passou não só acolhê-lo, como

também a acolher e a cuidar, como a uma criança, dos amigos de Cartola. Noel

Rosa é maior exemplo de sua generosidade:

Ele dormiu várias vezes em minha casa na Mangueira. Me lembro até da gravação de um disco dele que agente ensaiou na minha casa, porque o conjunto que acompanhou a gravação era aqui do morro mesmo. Ele tomava umas coisinhas e ficava lá por casa mesmo. Dormia, almoçava, jantava, ia ficando. Neuma, menos discreta, conta com detalhes o resultado produzido pelas ―coisinhas‖ que Noel tomava‖. [...] Ele tomava cada porre [...] Até desmaiava na ponte. Era fraquinho e magrinho. Deolinda descia o morro, pegava ele no colo, levava para casa. Dava banho [...] depois vestia roupa do Cartola nele e botava na cama pra dormir até acordar. Deolinda era uma Santa (Idem, ibidem, p. 89).

A frase ―gentileza gera gentileza‖16 se aplica perfeitamente à vida de Cartola.

Para se ter uma idéia do tamanho da generosidade, tanto de Deolinda quanto de

Cartola é fato que, ―no fim dos anos 20 já residiam com o casal, além dos já citados

Ruth e Pau do Mato, uma tia de Deolinda, a tia Júlia, Biela irmão de Cartola, Nélson,

primo de Cartola, Malvadeza, um amigo, e Carmem, mulata jovem e bela que não

tinha onde morar‖ (Idem, ibidem).

Talvez, em passagens como essa, tão singulares da vida de Cartola, seja

possível extrair o sentido verdadeiro de comunidade, delineando um sentimento

particular de pertencimento ao grupo, constituindo, com isso, uma identidade comum

partilhada ou compartilhada em alguns pontos. Paiva (2007), ao citar o filósofo

Richard Rorty, esclarece acerca do conceito de comunidade na atualidade:

Os conceitos possuem intrínseca relação com o contexto histórico e com a sociedade na qual foram gerados e que, muitas vezes, não representam nada em contextos diferentes. [...] O conceito de comunidade encontra-se neste limiar, pois está certamente dentre as idéias mais evocadas na atualidade. [...] Isto porque, se, para os povos do norte, os europeus, principalmente, a palavra evoca momentos sombrios da sua história, vinculados ao nazifascismo, para os países do hemisfério sul, sugere uma ordem alternativa de existência, pensamento e postulado, capaz de engendrar novos e novíssimos formatos de existência [...] Para nos atermos no Brasil, tem ficado evidente que não existe a sociedade brasileira, e sim

uma pluralidade de contextos existenciais, com escalas diferenciadas de riqueza, pobreza e miséria, que reivindica a temática do comunitário, mais do que a do societário (Rorty apud

Paiva, 2007, p. 13).

A maneira de ser do mangueirense se distingue e, ao mesmo tempo,

comunga traços com todas as outras comunidades que possuem o samba como

centro de identificações. O samba fará a articulação, forjando a identidade cultural

do grupo. Destaca-se aqui a importância de Cartola que, com seu sentimento

16

José Datrino, chamado Profeta Gentileza, (Cafelândia, São Paulo, 11 de abril de 1917 — Mirandópolis, São Paulo, 29 de maio de 1996), tornou-se conhecido a partir de 1980 por fazer inscrições peculiares sob um viaduto no Rio de Janeiro, onde andava com uma túnica branca e longa barba.

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comunitário, se tornou hoje para os jovens da Mangueira um exemplo da

importância da manutenção dos laços sociais da comunidade. O que fica

evidenciado é a importância do sentimento comum, em torno de uma causa singular

no caso, o samba), que resulta na construção da identidade cultural de um grupo,

povo ou nação.

1.2 Genealogia de uma Escola de Samba: Dos Arengueiros à

Estação Primeira de Mangueira

Figura 5: Cartola com 25 anos

Retomar a história da vida de Cartola se faz necessário para que o objetivo

primeiro deste trabalho fique resguardado: destacar pontos de sua vida que servem

de referência para a argumentação desenvolvida.

Cartola e sua turma de batuqueiros resolveram fundar um bloco só deles, os

Arengueiros, que saísse ―pra brigar, pra ser preso, pra apanhar, pra beber‖ (Silva &

Filho, 2003, p. 54).

Nos primeiros anos da década de vinte o carnaval oficial e reconhecido pelo

comércio e imprensa limitava-se aos desfiles dos préstitos, aos corsos e aos bailes.

Os negros tinham sua participação apenas como assistentes vigiados e chegavam a

ser impedidos de se reunirem e se divertirem nas ruas do centro. Porém, como

ressalta Moura (1988), a regra tinha exceções, como, por exemplo, os Arengueiros

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da Mangueira, que desafiavam a sociedade e a policia, ―desfilando com música,

cachaça e porrada‖.

A progressiva marginalização do pobre no espaço da cidade e a contínua perseguição a sua vida social, vista com desconfiança pelos poderes públicos, mesmo nos dias de franquia do carnaval, davam substância aos atos de violência e vandalismo do carnaval de samba e porrrada dos Arengueiros. Essa retaliação lúdica, longe da objetividade da luta pelo poder, provocaria, entretanto, mais repressão da polícia carioca, para quem os morros favelizados estavam ainda fora de controle e a presença de seus habitantes no espaço da cidade era objeto de imediata preocupação [...] A possibilidade de se unificar o morro a partir de princípios a serem estabelecidos por uma escola de samba, que lhes desse representatividade frente às instituições públicas, e os habilitando a obter pequenas facilidades e eventual patrocínio estatal, benefícios de que já gozavam os ranchos , começou a sensibilizar a gente do morro. A Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira seria o encontro das necessidades de organização e respeitabilidade da Mangueira com espírito agressivo poético do grupo dos sambistas que a arrebatava (Moura, 1988, p.25).

Contudo, é curioso constatar que a presença do negro no carnaval opera uma

transformação no desfile dos blocos. É deles, em particular de Nilton Basto, Ismael

Silva, Silvio Fernandes e outros sambistas do Estácio, a iniciativa de criar a primeira

escola de samba, a ―Deixa Falar‖17, em 1928.

A participação do negro no carnaval carioca – o Rio de Janeiro nacionalizava suas ocorrências – dá uma nova substância à festa e provoca um rearranjo nas formas de participação dos diversos setores da sociedade que a cidade de hoje herdou. Assim, nas primeiras décadas do século XX no Rio, no ambiente confuso e excludente da pós-Abolição, os negros, que numa primeira acomodação tinham se bandeado para guetos nos morros do Centro ou na periferia, perto das estações do trem suburbano, gozavam uma primeira e precária franquia. Legitimados por uma crescente platéia com a adesão de elementos da ―sociedade‖, os ranchos dos negros, que inicialmente se apresentaram no Largo de São Domingos e depois na Praça Onze, no limite da zona, exibiam-se, organizados em cordões, pelo Catete e Laranjeiras (Silva & Filho, 2003, p.54).

Na infância, Cartola desfilava carregando as gambiarras no Rancho dos

Arrepiados, ao lado de seu pai que tocava ali. Foi uma fase que terminou aos onze

anos de idade, quando morreu seu avô. ―A situação da família deteriorou-se e [...]

trocaram o bairro bom de Laranjeiras pela favela em formação do Morro da

Mangueira. [...] Esses primeiros anos, vividos no universo dos ranchos, deixaram

influências decisivas na formação musical do menino‖ (Idem, ibidem, p. 33).

A exemplo das primeiras experiências do artista, o Centro Cultural Cartola

constitui-se em campo de experiências identificatórias para os jovens, em seus

diversos projetos de fomento à cultura, ou seja, da mesma maneira que Cartola, em

tão tenra idade, teve a oportunidade de participar de um movimento cultural (os

ranchos) junto com seus familiares, o Centro oferece acesso a outras formas de

17

Disponível em: http://www.suapesquisa.com/carnaval/historia_escolas_samba.htm. Acesso em jan/2010.

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expressão além do samba, como a orquestra de violinos e a biblioteca. São recursos

que lhes permitem elaborar um olhar ampliado para o próprio contexto.

Nesse sentido, a oportunidade que teve Cartola de conviver com outras

fontes inspiradoras de criatividade, possibilitou-lhe a construção de um caminho fora

dos padrões culturais de quem só possuía instrução elementar.

Não foi apenas um resultado do maior domínio artesanal do sambista. Foi também propiciada pela evolução da personalidade do próprio compositor. A instrução oficial de Cartola resumiu-se ao curso primário, muito bem feito. A vida, porém, encarregou-se de completar-lhe a educação, fazendo-o ler poetas como Castro Alves, Gonçalves Dias, Bilac, pessoas como Carlos Cachaça, Aluísio Dias, Noel Rosa, Carmem Miranda, Silvio Caldas e Villa-Lobos (Idem, ibidem p. 293)

Assim, os jovens da comunidade podem simplesmente identificar-se com as

experiências de vida do mestre, que, como eles, teve a oportunidade de conhecer

pessoas com uma identidade cultural diferente da sua e, consequentemente, pôde

ampliar seu horizonte ao entrar em contato com outros mestres já consagrados.

Nesse sentido, a cultura erudita, ao ser oportunizada no Centro Cultural

Cartola através da orquestra de violinos, assumiu o papel de garantir a inclusão de

uma parcela da juventude normalmente sem acesso a ela. Da mesma forma que

todas as classes têm acesso ao samba, esses jovens passaram a usufruir de outras

formas de expressão musical, garantindo a possibilidade de abertura para o novum.

O mesmo se dá com o projeto Griô18, que visa a resgatar e a preservar a

cultura dos negros, através do estímulo à tradição oral nas comunidades. Contando

com sujeitos que adquiriram conhecimentos de antepassados e os repassam

através de estórias, esses ―contadores de estórias‖ são chamados de Griôs –

aportuguesamento da palavra de origem francesa griot, utilizada por jovens

africanos que foram estudar em universidades francesas e que se preocupavam

com a preservação de seus contadores de estórias.

A principal proposta da ação Griô do Programa Cultura Viva é reaprender

com os Griôs e mestres da tradição oral o jeito de construir o conhecimento

integrado à ancestralidade.

Oferecer outras possibilidades a esses jovens significa disponibilizar-lhes

ferramentas para que construam um discurso a respeito de si no diálogo com outras

culturas. ―Umas das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si

18

Fonte: http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_viva/programa_cultura_viva/grios/.

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mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no

conhecimento concreto da realidade‖ (Santos, 1983, p.17).

Com o tempo, o próprio Cartola, após aprender com as vivências e

experiências de vida, tinha mais consciência da importância do samba como

expressão de identidade que marcaria definitivamente a cultura brasileira. Segundo

Silva e Filho:

(Ele) começou a perceber que, mesmo bons de briga, eram, também, muito bons de samba. [...] Por que não dar uma endireitada naquela turma, cortar esse negócio de navalha, pau e pernada, partindo para o samba puro, ritmo e coreografia, herança natural dos antepassados africanos? A motivação do Mestre gerou um samba-sugestão, logo aprovado por todos (Silva & Filho, 2003, p.55).

Demanda

Chega de demanda, Chega! Com este time temos que ganhar Somos Estação Primeira Salve o morro da Mangueira!

Com essa visão de mestre, Cartola aproxima-se do maior feito de sua vida,

seu ato maior: Fundação da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, ato

fundante que vai repercutir muito além do que o próprio Cartola jamais poderia

imaginar, principalmente em se tratando da importância para a cultura do Brasil.

No dia 28 de abril de 1928 reuniram-se sete arengueiros na travessa Saião Lobato nº21. Era a residência de um deles, Euclides Roberto dos Santos, o ―seu‖ Euclides. Os outros seis foram Saturnino Gonçalves (Saturnino, o pai da Neuma), Marcelino José Claudino (Massú), Angenor de Oliveira (Cartola), José Gomes da Costa (Zé Espinguela), Pedro Caim e Abelardo da Bolina. São os fundadores oficiais da Mangueira. Cartola escolheu as cores verde e rosa em memória ao rancho de sua infância, Os Arrepiados. Escolheu também o nome: Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Esclarece: ―Eu resolvi chamar de Estação Primeira porque era a primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba (Silva & Filho, 2003, p.55)

Não foi uma fundação sem tensões, diz Orlando de Barros (1998)19

, ―posto

que havia então muitos blocos que não estavam dispostos a aceitar facilmente a

fusão, pondo termo as suas existências‖.

19

Orlando de Barros escreveu um artigo intitulado ―A reassunção do divino‖, que compõe a publicação Cartola Fita meus olhos, realizada pela Fundação do Museu da Imagem e do Som – Série depoimentos. Por se tratar de

uma publicação que não possui o formato acadêmico usual, entendemos como necessário explicar que utilizaremos trechos dessa publicação, para ressaltar trechos da gravação do depoimento de Cartola, que consta na ―gravação do depoimento no Ciclo de Música Popular Brasileira do compositor Cartola‖, realizada no dia 3 de março de 1967, iniciada precisamente às 14horas. Os entrevistadores, Jacob do Bandolim, Ricardo Cravo Albin e Mário Cabral, eram, na época, membros do Conselho Superior de Música Popular Brasileira, D. Zica também se encontrava presente.

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Mesmo assim, a "escola foi fundada como um ato simbólico de união entre os

membros e também como ato de elevação ao conhecimento‖. O nome ―escola‖ veio

exatamente da imaginação dos sambistas em aprender com os mestres e do

―Estácio porque eles fundaram o Estácio perto de uma escola‖20.

A questão da transmissão de cultura já era evidente nas intenções de Cartola;

daí, a importância de o Centro Cultural Cartola – por intermédio da Secretaria de

Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura/SPPC/MinC – ser

reconhecido pela União Federal como lugar privilegiado de transmissão de cultura. É

interessante pontuar que Cartola fala como advogado de causa social no samba Sou

Doutor:

Sou doutor

Sou doutor, mas sou sambista Tenho sangue de artista Também sei tamborinar Sou doutor Sei que sou advogado Não me faço de rogado Quando preciso sambar É difícil estudar Advocacia, arquitetura, engenharia Tudo é difícil, eu sei Mas o samba está no sangue brasileiro Não preciso fazer curso Pra tocar o meu pandeiro

1.3 O Zicartola

A ―terceira mulher de Cartola‖, como D. Zica ficou inicialmente conhecida,

soube resgatar a vida de um homem, trazendo-o de volta à Mangueira quando todos

pensavam que ele havia morrido.

Não objetivo lançar-me como, responsável única, pelo sucesso de Cartola, contudo vivi a incentivá-lo, resgatando-o do submundo da bebedeira, cuidadosamente pedindo aos amigos uma colocação numa repartição pública, única saída para quem trabalhou como pedreiro, lavador de carros, cobrador do Sindicato dos Jornalistas, contínuo de jornal, etc. E mais que um emprego, ao seu lado permaneci por todos os momentos onde se distanciou demais a vida do homem que bebia demasiadamente para a do poeta que passou a caminhar com hábitos saudáveis, compreendendo com o tempo ser a saúde um bem precioso e fundamental (Silva, 1999,p.93).

20

Idem.

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D. Zica descreve a primeira paquera, à beira do tanque: Cartola se aproxima

e pede para ―falar com ela‖ – expressão utilizada até as décadas de sessenta e

setenta com conotação de proposta de namoro, hoje correspondente ao ―ficar‖,

muito utilizado pelos jovens.

Mas D. Zica, mulher séria, sabia o seu lugar, deu logo uma decisão: “Olha,

sou viúva e não gosto de dar o que falar. Você é cheio de mulheres. Eu nunca

briguei no morro, não quero saber de encrenca com suas mulheres‖ (Silva, 1999, p.

91). Ele não titubeou e respondeu: ―Agora é diferente, eu já estou velho‖ (idem,

ibidem). D. Zica achara graça; ela, pouco mais nova, se sentia uma potência, então

como acreditar no assédio de Cartola? Embora esses questionamentos tenham

surgido, Cartola não desistiu e iniciaram o romance que marcaria definitivamente a

importância das mulheres em sua vida.

Primeiro sua mãe, D. Aída, depois D. Deolinda, fugaz e nefastamente D.

Donália e, finalmente, D. Zica. Sua mãe, por sua importância de carinho e afeto,

sempre privilegiou Cartola como o primogênito, marcando de forma extraordinária a

sua autoestima, a ponto de ele nunca se ter deixado abater pelos infortúnios.

D. Deolinda, sua primeira companheira, o tratava também como a um filho,

lhe protegendo e apoiando em todas as loucuras de jovem. D. Donália, a grande

paixão, mulher que o levou ao ostracismo.

Figura 6: Cartola e D. Zica

D. Zica que veio trazer o amor no sentido lato da palavra, companheira,

mulher, amiga, mãe e cúmplice, diz ela:

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O fato de ter esse homem bom e talentoso, que tanto necessitava do meu amor, era um estímulo. Eu me sentia orgulhosa e feliz ao ver que pouco a pouco ele novamente se adaptava ao cotidiano da Mangueira, participando, às vezes compondo, frequentando a quadra da Escola comigo, onde eu me virava fazendo qualquer papel, tomando para mim as tarefas mais difíceis (Silva, 1999, p. 91).

Parece que D. Zica conseguiu reunir para Cartola todos os predicados que se

congregaram numa única pessoa, todas as qualidades que uma mulher gostaria de

possuir, oferecendo-lhe desde os carinhos de uma mãe até a sensualidade feminina

de uma mulher madura.

Como relatado por D. Zica, o início do romance se deu ao lado do tanque de

lavar roupas, fato que deve ter inspirado Cartola a criar a letra da música Ensaboa

para D. Zica.

Ao consultar Nilcemar para averiguar esse fato, para nossa surpresa, houve a

confirmação dessa possibilidade. Houve da parte dela também certa cumplicidade

ao permitir que a informação fosse aqui escrita. Sempre que encontrávamos

informações ambíguas ou contraditórias sobre Cartola, era a ela a quem recorríamos

para os devidos esclarecimentos. Com esse apoio, prosseguimos em nossas

analogias, encontrando mais um espaço nas cenas da vida de Cartola, fonte

inesgotável da criação de suas pequenas e singelas obras de arte, como a música a

seguir:

Ensaboa

Ensaboa mulata, ensaboa Ensaboa Tô ensaboando Ensaboa mulata, ensaboa Ensaboa Tô ensaboando Tô lavando a minha roupa Lá em casa estão me chamando Dondon Ensaboa mulata, ensaboa Ensaboa Tô ensaboando Os fio que é meu, que é meu E que é dela Rebenta a goela de tanto chorá O rio tá seco, o sol não vem não Vortemos pra casa Chamando Dondon

A presença de D.Zica transformaria definitivamente o destino desse homem.

É ela, com seu trabalho e entusiasmo, que inventa um dos espaços mais geniais e

de vanguarda de sua época: o Bar Zicartola, nome criado por Cartola, junção de

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Zica-Cartola. O espaço funcionou de setembro de 1963 até meados de agosto de

1965. A ideia do Zicartola nasceu dos encontros na casa do Cartola, na rua dos

Andradas, conta seu parceiro Elton Medeiros.

O Cartola se reunia com a gente [...] Nelson Cavaquinho, Zé Keti e eu. Isso foi em 1962. Eugenio desafiava a gente: Sábado que vem todos tem que apresentar um samba novo: Daí surgiram: O sol nascerá, Luz negra, Diz que fui por aí[...] Uma vez um pessoal de Campo Grande fretou um avião e veio assistir a uma roda de samba na casa do Cartola.Vinha uma senhora de São Paulo com quatro ou cinco carros cheios de gente. Ficava muita gente na porta. O Zicartola foi a continução disso, já dentro de uma linha comercial. Sou capaz de afirmar que o Zicartola teve uma grande influência nessa proliferação de ―rodas de samba‖, não só no Rio como em São Paulo e em todo Brasil (Silva & Filho, 2003, p.184).

Figura 7: Cartaz promocional

O Zicartola foi oficialmente inaugurado em 21 de fevereiro de1964, os amigos

Eugenio, Valdemar e Donald ajudaram D. Zica e Cartola a montar o restaurante na

rua da Carioca no. 53. O Zicartola tornar-se-ia o ―ponto de encontro de compositores,

cantores da moda, e músicos em geral, abrindo novos caminhos para a música

brasileira‖ (Silva, 1999, p.105).

O cenário da política brasileira na qual surge o Zicartola era o de

efervescência estudantil. Na época, junto com o movimento estudantil, também

surgia um movimento musiscal nas universidades. ―Era uma nova maneira de

cantar, um canto com apelo aos temas urbanos, e assim a música dava uma

explícita renovação com os objetivos políticos‖ (Silva, 1999, p.106). Havia o Centro

Popular de Cultura (CPC) e os estudantes iam ao Zicartola ―sorver os ensinamentos

de brasilidade. Aconteceu com Vianinha, Cacá Diegues e muitos outros. O Zicartola

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municiava todos os movimentos culturais que surgiram a partir e depois dele‖ (Silva

& Filho, 2003, p. 197).

Figura 8: Cartola, Nara Leão, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho (1965).

Nara Leão, figura representativa da inquietação político-musical, também se

insere no Zicartola e grava o Sol Nascerá, composição de Cartola em parceria com

Elton Medeiros, que viria a ser a música de maior sucesso comercial de sua carreira.

A importância do Zicartola é conhecida por todos que se debruçam a estudar

o encontro da música com a intelectualidade. ―Foi lá que se juntaram Nara Leão, a

menina da zona sul, Zé Keti, o malandro carioca, e o João do Valle, o emigrante

nordestino. Deu certo‖ (Idem, ibidem, 2003, p. 199).

O show Opinião, que passou a ser também o nome do teatro, foi nomeado

com inspiração do samba Opinião, de Zé Keti:

Opinião Podem me prender Podem me bater Podem até deixar-me sem comer Que eu não mudo de opinião Daqui do morro eu não saio não

O teatro Opinião é visto ainda como um reduto daquele samba-resistência

que se revelou ao grande público por meio do Zicartola. ―O Zicartola não foi um

restaurante, foi um movimento cultural, uma coisa natural que foi espalhando raízes,

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crescendo como os galhos de uma árvore: a mangueira com a roseira de Cartola,

sei lá‖ (Moura, 1998, p.11).

D. Zica relata que no Zicartola ela era também um sucesso, comandava a

cozinha. Seu jeito peculiar de cozinhar foi ficando cada vez mais conhecido, em

suas receitas o amor era o ingrediente principal; ela fornece a receita: ―no preparo

de qualquer prato, quando for lavar as mãos, deixe que a água escorra sobre elas

para serem purificadas e se encharcarem de amor, vida e humanidade‖ (Silva, 1999,

p. 135).

O Zicartola também testemunhou a celebração do casamento civil de D. Zica

e Cartola. Ela recorda:

Durante todo ato religioso e mesmo depois, durante o casamento civil e a recepção no Zicartola, ajudando meu marido a cortar o lindo bolo, meditei em como são traçadas as linhas do destino, que me trouxeram, de lavadeira pobrezinha, que às vezes mal tinha o que comer, à mulher realizada e feliz, me casando em uma igreja toda enfeitada, recepcionando pessoas da sociedade. Eu estava com 51 anos e Cartola acabara de completar 55 no dia onze daquele mês (Silva, 1999, p. 107).

Como era de se esperar, Cartola compôs o samba Nós Dois, na véspera do

casamento. Diz a letra da música:

Nós dois Está chegando o momento de irmos pro altar Nós dois Mas antes da cerimônia devemos pensar em depois Terminam nossas aventuras Chega de tanta procura Nenhum de nós deve ter mais alguma ilusão Devemos trocar idéias e mudarmos de idéias Nós dois E se assim procedermos seremos felizes depois Nada mais nos interessa Sejamos indiferentes Só nós dois, apenas dois Eternamente.

Além de ter sido palco de um dos mais importantes momentos para a cultura

brasileira, o Zicartola parece ter cumprido sua missão: trouxe de volta Cartola ao

cenário da música, por intermédio também de D. Zica.

Contudo, nem D. Zica nem Cartola tinham perfil de empresários, vendiam

fiado, não tinham noção dos custos de um estabelecimento comercial. O Zicartola

teve seu encerramento após inaugurar a ideia de casa de show. Mais uma vez,

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Cartola marcaria uma época na história da cidade do Rio de Janeiro, cidade sede do

samba carioca e do Brasil.

Em 1974, houve uma tentativa, em São Paulo, de reviver os tempos do

Zicartola – a fora inaugurada uma casa com o mesmo nome, no bairro popular de

Vila Formosa. D. Zica e Cartola iam lá todas as sextas-feiras e voltavam para o Rio

de Janeiro, no domingo. A casa não durou muito tempo, parece que estava mesmo

destinada ao insucesso, fora inaugurada no dia 13 de dezembro. ―Cartola não era

supersticioso... Só que o malfadado treze não deu sorte mesmo, a casa se

sustentou apenas durante um mês‖ (Silva & Filho, 2003, p. 218).

Se, por um lado, o Zicartola teve seu encerramento, por outro, a carreira de

Cartola seguiu de vento em popa, com apresentaçoes em shows pelo Brasil, tendo

ao seu lado D. Zica, que gostava de acompanhá-lo.

Eram tempos de paz, certa estabilidade financeira já possibilitava certas

discussões entre o casal. D. Zica relata que, por ocasião de uma compra de

utensílios domésticos, Cartola, meio ―mão fechada‖ com gastos que considerava

desnecessários, disse-lhe: ―Quero deixar você bem, quando eu morrer. Você já

trabalhou muito, merece descansar‖ (Silva, 1999, p. 106).

Sua música era composta de forma peculiar. D. Zica relata que ele, após

essas divergências, pegava o violão e desfiava sempre um samba. Foi assim que,

após uma alfinetada de mulher que sempre quer saber algo a mais, perguntou-lhe:

Você algum dia na vida teve um amor maior que o meu? Alguém a quem tenha

amado mais do que a mim? Ele ―sorriu meio de banda, fez acordes no violão e uns

dias depois respondeu com uma canção‖ (Silva, 1999, p. 110).

Tive sim Outro grande amor antes do teu Tive sim O que ela sonhava eram os meus Sonhos e assim íamos vivendo em paz... Nosso lar em nosso lar Sempre houve alegria eu vivia tão contente Como contente ao teu lado estou Tive sim Mas comparar com teu amor Seria o fim... Eu vou calar Pois não pretendo amor te magoar Ai...ai...ai...ai pois não pretendo amor te magoar...

Por meio dessa particularidade de compor, Cartola indica seu jeito de lidar

com as coisas da vida; de modo elegante, ele responde a um questionamento

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delicado, deixando transparecer seu modo de ser – elegante, sofisticado e talentoso

– a que viria a se tornar uma marca.

As respostas surgem em forma de poesia e música, assim também ele criou,

de forma magistral, As rosas não falam, sua obra prima. A inspiração lhe surgiu a

partir do presente que Nuno Veloso ofereceu a D. Zica, uma muda de roseira. D.

Zica plantou e, tempos depois, pela manhã, abriu a porta e extasiou-se diante da

quantidade de rosas desabrochadas. Chamou:

- Cartola, vem ver! Por que é que nasceu tanta rosa assim, Cartola? - Não sei, Zica. As rosas não falam... Cartola ficou com a frase na cabeça, remoendo. Pegou no violão e a música brotou. Inteira. Faltavam três ou quatro dias para ele completar 67 anos. As rosas não falam foi o presente que ele disse que deu a si mesmo (Silva & Filho, 2003, p.231).

Eis a letra da canção As rosas não falam:

Bate outra vez Com esperanças o meu coração Pois já vai terminando o verão, enfim Volto ao jardim Com a certeza que devo chorar Pois bem sei que não queres voltar para mim Queixo-me às rosas, que bobagem As rosas não falam Simplesmente as rosas exalam O perfume que roubam de ti, ai Devias vir para ver os meus olhos tristonhos E quem sabe sonhavas meus sonhos, por fim...

Parece mesmo que a genialidade não requer esforço, ela surge de maneira

espontânea em momentos no qual o poeta se imbrica, se enrola e desenrola com

um mote qualquer que lhe surge também do vazio da existência, para o qual a

poesia lhe serve de vestimenta. Cartola emana simplicidade de vida com a elegância

de quem tudo ouviu e a nada deu ouvidos. Seus anos de sucesso e tranquilidade só

vieram quando encontrou ―Zica, mulher que soube manter viva a memória do seu

homem, sem deixar, contudo, a própria representatividade‖ (Silva & Filho, 2003,

p.308).

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1.4 Interface entre Favela da Mangueira e Centro Cultural Cartola

Uma das mais completas observações sobre a importância de Cartola para a

cultura do Brasil pertence aos diretores de cinema Hilton Lacerda e Lívio Ferreira:

―A identidade brasileira tinha como símbolo o Imperador, com a chegada da República, o Brasil ficou sem referências culturais; então, quem inventou o Brasil para o mundo foram artistas como Cartola, Noel, Nelson Cavaquinho... Cartola vai ao sentido inverso de Machado de Assis que fundou uma academia que reproduzia a cultura erudita, era negro, porém educado sob influências européias, não menos importante, sua obra é reconhecida mundialmente. Por outro lado, Cartola com sua obra leva ao mundo a cultura construída pelos negros brasileiros, a partir do samba...‖ (Lacerda & Ferreira, 2006)

Além da constatação acima, outro fator chama atenção: a forma como os

cineastas se apresentaram: ―pernambucanos que realizaram o documentário sobre

um carioca e sua obra‖, ou seja, brasileiros de outro Estado se debruçam sobre a

vida de um poeta e sambista carioca, tratando-o como símbolo cultural brasileiro e

não apenas regional. O documentário ―Cartola - música para os olhos‖ foi lançado no

em 2008, ano do centenário do nascimento do artista.

O ápice da vida de Cartola se deu nos anos setenta, nos quais foi

reconhecido e obteve retorno desse reconhecimento. Ele, diga-se de passagem, já

fora reconhecido; entretanto, o que aconteceu nesses tempos finais de sua vida foi a

conquista do retorno financeiro, tão deixado em segundo plano. ―Minha vida foi como

uma fita de mocinho. Só venci no final‖ (Silva & Filho, 2003, p. 272). Em seu poema

―Obscuridade‖, descreve com lirismo o que entende por seu próprio percurso de

vida.

Obscuridade

Passei pelo mundo sem ser Percebido, Ouvindo a tudo E a nada dando ouvido. Segui pelo caminho que tinha a minha frente, Mas não encontrei a estrada Desejada em minha mente. Nada fiz que aos outros tivesse Interessado. Tudo que fiz, foi por dever ou Acovardado. Por nada tive paixão, Se ausência de sentimentos Não significa maldade. Simplificando a história: Vivi na obscuridade

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A frase ―ouvindo a tudo e a nada dando ouvidos‖ aponta a leveza de Cartola,

que hoje se transforma em Patrono de causa sociocultural. É curioso o motivo pelo

qual seus netos fundam em seu nome o Centro Cultural. Como descrito

anteriormente, sabemos que a causa está para sempre perdida; todavia, a pergunta

retorna a ela na tentativa de circunscrever, talvez, não a causa fundante, mas as

causas que deslizam pelas falas recolhidas nos diversos encontros e entrevistas no

Centro Cultural.

E são os netos, Pedro e Nilcemar, que respondem à questão de onde se

originou o desejo de criação do Centro Cultural Cartola: ―Para homenagear vovó e

não deixar que a memória dela e de meu avô fossem apagadas pelas novas

gerações‖.

Parece existir certo movimento de extinção do legado de D. Zica e Cartola

pelas novas diretorias da Escola de Samba, o nome de Cartola não consta no site

oficial da Escola de Samba Mangueira e seu nome também não consta nos

camarotes da Escola. ―É exatamente por isso que surge a necessidade de resgatar

o legado de meu avô, o tempo passa e os interesses políticos vão se sobrepondo ao

valor histórico que Cartola tem para Mangueira. Enquanto D. Zica era viva, ela

mesma se encarregava de manter o legado de Cartola na memória da comunidade‖

– revelam seus netos.

Pedro emociona-se ao falar de sua avó: ―Vovó continua ajudando, com seu

exemplo de dedicação a comunidade. Ela nunca legislou por causa própria, sempre

pensava em uma maneira de sensibilizar as autoridades para as questões coletivas‖.

Ele relata que se encontrava às voltas com a questão de homenagear sua avó

enquanto estava viva, pois há tempos ela apresentava problemas de saúde cuja

gravidade lhe preocupava. Diz que, por ocasião de uma passagem em frente ao

prédio que viria a ser o Centro Cultural Cartola, foi que ele visualizou algo nesse

sentido e falou que ―ali seria erguido um templo em homenagem à vovó‖.

Inicialmente, o Centro Cultural Cartola deveria chamar-se ―Zicartola‖. Apesar

disso, Pedro relata que, sob a orientação de várias pessoas que o apoiavam nesse

sonho, o nome adotado seria ―Cartola‖ somente, pois garantiria maior repercussão

junto aos jovens pela questão da música. Zicartola seria o nome que mais

claramente retrataria as intenções de homenagear o casal; entretanto, ele não era

representativo para a comunidade, ou seja, embora a marca ―Zicartola‖ seja quase

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uma lenda por sua importância histórica e cultural, ficou sem reconhecimento não só

pela comunidade da Mangueira, mas também por muitos brasileiros.

É interessante observar como hoje os jovens que participam do Centro

Cultural Cartola, bem como seus pais e responsáveis, referem-se ao local como se

estivessem indo à casa de Cartola: ―Eu vou lá no Cartola‖; ―Lá no Cartola tem

atividade esportiva‖. A expressão ―lá no Cartola‖ circula, livremente, nas bocas das

crianças e jovens que frequentam os diferentes projetos.

É importante marcar a distinção que existe entre a Escola de Samba Estação

Primeira de Mangueira e sua quadra e o Centro Cultural Cartola, que, mesmo

coabitando o mesmo espaço simbólico da Mangueira, possuem finalidades bem

delimitadas uma da outra: o primeiro visa à promoção do samba e à adequação à

indústria carnavalesca; o segundo, ao regate das matrizes do samba.

Um dentre os vários pontos em que nos baseamos para inferir de onde são

extraídos elementos simbólicos nos quais se apóiam e se estruturam a identidade

cultural do trabalho do Centro Cultural Cartola como ―fábrica de cidadania” é,

sobretudo, a luta pela preservação do samba, por Cartola, e principalmente, por sua

preocupação com a transmissão de um saber21.

No morro da Mangueira só quem fazia samba naquela época era eu e o Carlos Cachaça. Então aquela meninada queria fazer samba, mas não sabia como é que fazia. Então fazia uma bobagem qualquer, então a gente chegava, eu ou o Carlos remendava tudo, colocava música nova. Dizia para ele: - ―Toma, o samba, é seu‖. E lá no ensaio cantava: - ―De quem é este samba?‖ – De fulano. Então, fiz uma ala de compositores para ensinar como é que se fazia samba, assim os garotos aprendiam a fazer samba. ―É assim, isto você faz assim...‖ ensinando muita gente. Inclusive Babalaô, Zé com fome, Geraldo Pereira. Isto tudo saiu da ala dos compositores da Mangueira e ainda tem muito garoto bom lá saindo.

Verifica-se que Cartola nutria uma preocupação desde cedo com a questão

do ensino, e com a possibilidade de os jovens se estimularem através do

reconhecimento de suas potencialidades.

A elegância de vida de Cartola também constitui elemento identificatório para

os jovens, reforçado pelos trabalhos dos professores dos diferentes projetos. São

elementos cujo valor não é mensurável, mas ajudam a estruturar a identidade

cultural construída em torno de Cartola.

Cartola é modelo de altivez e dignidade. ―Cartola falava baixo, tranquilamente,

e usava um português surpreendente para quem somente estudou até o quarto ano

21

Bandolim, Jacob. Depoimento. In: Cartola fita meus olhos. Série Depoimentos. Fundação Museu da Imagem e do Som.

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do curso primário. Nunca o vi cometendo uma gafe. Era, enfim, um cavalheiro‖22.

Poderia sobreviver às intempéries do relacionamento humano e sobrepor a tudo isso

sua música, que fica como símbolo de vida, servindo de exemplo para sustentar a

proposta do Centro Cultural.

Cartola transmitia, por sua postura e delicadeza poética, algo de intangível,

mas transparente pela elegância e altivez. Só o lirismo de outro poeta para definir

melhor o que foi observado no decorrer desta pesquisa. Carlos Drummond de

Andrade vem, assim, ratificar a análise aqui defendida e dar a melhor definição do

valor de Cartola para a constituição da identidade cultural dos meninos e meninas da

Mangueira. O depoimento público saiu nas páginas do Jornal do Brasil, três dias

antes da morte de Cartola, que achou tão bonito que mandou pendurar na parede

sobre seu leito no hospital. Era a homenagem de um poeta erudito a um poeta

popular do samba.

Mas então eu fiquei ouvindo parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Silvio Caldas. Já não me lembrava do compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera seu ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e a orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica e, às vezes, a televisão vai até a casa deles mostrar o casal tranquilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. ―O mundo é um moinho...‖ O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensando sempre. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e fui à vida, como ele gosta de dizer, isto é, a obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito Cartola de botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação

23.

Segue a letra da canção O mundo é um moinho, que serviu de fonte de

inspiração para Drummond escrever sua homenagem ao poeta popular:

O mundo é um moinho

Ainda é cedo amor Mal começastes a conhecer a vida Já anuncias a hora de partida Sem saber mesmo o rumo que irás tomar Preste atenção, querida Embora eu saiba que estás resolvida Em cada esquina cai um pouco a tua vida E em pouco tempo não serás mais o que és

22

CABRAL, Sergio. ―Quando o samba acabou‖. In: Cartola fita meus olhos. Série Depoimentos. Fundação

Museu da Imagem e do Som. 23

Texto transcrito da Plurale em revista. A matéria é de autoria de Carlo Franco, que cita o texto de Drummond, cujo original não foi encontrado.

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Ouça-me bem, amor Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos Vai reduzir as ilusões a pó Preste atenção, querida De cada amor tu herdarás só o cinismo Quando notares estás à beira do abismo Abismo que cavastes com teus pés...

1.5 Terceira Geração

Para a psicanálise, a importância de um ato só se sabe no depois, no a

posteriori. Em uma palavra, são os efeitos do ato que lhe conferem importância. De

modo análogo, quase um século depois da fundação da Escola Estação Primeira de

Mangueira, por Cartola, verifica-se o efeito de seu ato com a também fundação, a

posteriori, do Centro Cultural Cartola.

Será a terceira geração de Cartola que vai conferir reconhecimento ao seu

primeiro ato, quando funda, em 2001, o Centro Cultural, destinado à preservação do

legado cujo pivô é seu próprio nome. Dessa forma, o Centro Cultural Cartola

reafirma e atualiza o ato de fundação da Escola, ao promover a preservação de todo

um patrimônio cultural que se estabeleceu em torno de Cartola e do samba.

Tanto a fundação da Escola de Samba quanto a do Centro Cultural se

equivalem em suas dimensões estético-temporais. Assim, hoje como ontem, o ato

fundador de Cartola inscreve na cultura as consequências da transformação da

causa singular em causa comum de uma coletividade, ―há autoria individual, porém

a performance é coletiva‖ (IPHAN). Portanto, a fundação da Escola de Samba e a

fundação do Centro Cultural Cartola são símbolos de transformação e de intenções

singulares em ações socioculturais.

O Centro Cultural como o lugar que acontece, como efeito da transmissão

que se deu a partir da vida e obra de Cartola, recolhe na atualidade os frutos do

trabalho de uma série de gravações, ao longo do ano de 2009, com os baluartes do

samba. Essa iniciativa é parte das ações de salvaguarda, que se deu a partir do

reconhecimento do samba como patrimônio imaterial.

A idéia de identidade cultural construída no Centro Cultural Cartola pauta-se,

sem dúvida, na obra de Cartola; entretanto, mais que apenas a música, são os atos

do artista que norteiam a identidade cultural do Centro Cultural, uma vez que se

tornaram signo de luta por um ideal: o direito de expressão de um grupo considerado

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excluído - os sambistas. ―O signo carrega sempre não apenas o traço daquilo que

ele substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da

diferença. Isso significa que nenhum signo pode ser simplesmente reduzido a si

mesmo, ou seja, a sua identidade‖ (Silva, 2000, p.79).

O fato de os jovens serem o foco dos investimentos pelos projetos

socioculturais do Centro Cultural os faz se sentirem incluídos e reconhecidos em

suas singularidades. É comum ouvi-los dizer ―sou do Cartola‖. A convivência da

identidade ―sou do Cartola‖ com a diferença cultural, contém em si mesma, o traço

do outro, da diferença – se sou do Cartola, logo não sou da rua, do tráfico etc. É a

construção coletiva de marca cultural articulada em torno da ―causa Cartola”.

É Pedro quem oferece, através de uma lembrança, uma música para finalizar

este capítulo que buscou investigar os rumos da constituição da idéia da identidade

cultural tecida em torno da ―causa Cartola”. Essa música representa, para Pedro e

Nilcemar, um retrato da avó Zica.

Fiz por você o que pude

Todo tempo que eu viver Só me fascina você, Mangueira Guerreira na juventude Fiz por você o que pude, Mangueira Continuam nossas lutas Podam-se os galhos, colhem-se as frutas E outra vez se semeia E no fim desse labor Surge outro compositor Com o mesmo sangue na veia. Sonhava desde menino Tinha o desejo felino De contar toda a tua história Este sonho realizei Um dia a lira empunhei E contei todas tuas glorias. Perdoa-me a comparação Mas fiz uma transfusão E eis que Jesus me premeia Surge outro compositor Jovem de grande valor Com o mesmo sangue na veia.

Pedro cantarolou a música do avô no sentido de descrever o que é o sonho

de fundação do Centro Cultural Cartola, tecido no desejo do Outro, cujo cerne era o

de que ―todas as crianças da comunidade pudessem ter espaço e não vivessem à

margem da sociedade‖ (Zica apud Ramalho, 2004, p.39).

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CAPÍTULO 2 – CENTRO CULTURAL CARTOLA: LUGAR

QUE ACONTECE

Este capítulo destina-se a apresentar as conquistas, as equipes e os projetos

de que se compõe o Centro Cultural Cartola, cuja proposta é constituir-se em outra

saída para os jovens moradores da Mangueira da condição de ―favelado-sambista‖,

com visibilidade somente no carnaval. As imagens foram adicionadas para

proporcionar um panorama do espaço dentro do território ―verde e rosa‖. Trata-se de

um breve resumo, a fim de atender também ao pedido de Nilcemar Nogueira para

que houvesse uma divulgação do trabalho em prol das causas sociais ali

desenvolvidas.

Figura 9: Fachada do Centro Cultural Cartola

2.1 Gestores culturais: trabalho invisível

Primeiramente, faz-se necessário destacar o trabalho invisível dos gestores

culturais, aqui considerados como todos os que trabalham com a cultura e através

dela; são profissionais que desenham no cotidiano suas atividades, criando,

inventando e reinventando modos de atuar junto às demandas, no caso, do Centro

Cultural, como lugar de improváveis. ―Aqui todos os dias são dias diferentes. A gente

nunca sabe o que vai acontecer. Tem sempre uma comitiva, um visitante, uma

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proposta de projeto para sair, nada aqui se repete‖ (Jorge Luis, coordenador de

eventos do Centro Cultural Cartola).

Figura 10: Funcionários do Centro Cultural Cartola

Nos meios acadêmicos, já existem propostas de formação e de

especializações na área da cultura, que profissionalizam gestores culturais; todavia,

na prática, não existe grade acadêmica que dê conta das novas exigências impostas

pelo processo de globalização e das demandas transnacionais.

Além disso, muitas coisas mudam, não somente os ambientes materiais, técnicos: a nova ponderação entre o que era dominante, isto é, o que se chamava o setor secundário, a indústria, e o que prolifera, que é também muito enigmático e que é chamado de setor de serviços. Isso vai modificar muita coisa na vida social (Schwartz, 2007, pág.25).

Manter-se continuamente atualizado é sinônimo de competitividade, condição

indispensável para permanecer ou ingressar no mercado formal de trabalho em

tempos globalizados. Buscando tornar-se competitivo, o trabalhador, muitas vezes,

aliena-se, afasta-se de seu desejo e aceita, ou ―submete-se a‖, desempenhar

atividades para as quais não foi preparado.

Essa forma de relação de trabalho torna-se muito complexa, fica cada vez mais fluida. Tem-se não somente contratos de duração determinada, como também toda uma série de fases intermediárias que faz com que trabalhar não se formate mais num quadro único: nunca houve um formato único, mas hoje ainda menos que antes. Finalmente, não se sabe mais muito bem o que é trabalhar no momento atual; isto não acontece sem problemas (idem, ibidem).

Um dos motivos para destacar o profissional da área da cultura foi

exatamente a constatação da não existência de escritos que tragam à cena a figura

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do gestor, que se volta para as tomadas de decisão a fim de que ações

socioculturais saiam das intenções e consigam recursos financeiros para sua

continuidade. Este estudo também contempla a sistematização do trabalho de

bastidores, que implica na administração das relações de trabalho dentro das

instituições.

Em geral, os gestores culturais desempenham suas atividades a partir de

experiências anteriores em ramos similares, adequando-se, paulatinamente, ao perfil

da função pela qual se faz responsável. Em revisão bibliográfica, verifica-se a quase

inexistência de uma literatura que contemple os modos de fazer dos gestores

culturais, ligados ao chamado terceiro setor, no que se refere, especificamente, ao

trabalho com cultura; é a tentativa ainda precária de sistematização de organização

do trabalho.

O destaque voltou-se para o trabalho que não aparece na mídia. Se já

existem iniciativas como a do Centro Cultural Cartola, ainda não há uma

sistematização dos processos de trabalho nesse segmento, levando os gestores

culturais a concentrarem seus esforços muito mais na visibilidade midiática dos

projetos/assistências do que na luta pela regulação das atividades ocupacionais,

cujo valor venha a gerar massa crítica de uma micropolítica que dialogue a respeito

das deficiências do Estado. Yúdice adverte sobre a ―onguização‖ da cultura:

O dilema no qual todas as organizações não-governamentais se encontram. Por um lado, elas ajudam a construir o processo da sociedade civil e da democratização, que é louvável [...] Por outro lado, no entanto, elas correm risco de facilitar a retração do Estado no que concerne aos programas sociais. Consequentemente, as ONGs não deveriam ter o objetivo de assumir funções que cabem ao Estado. O ideal seria estabelecer uma interface entre a sociedade civil e o governo (Yúdice, 2004, p.212).

Em última análise, a rede administrativa, composta pelos gestores culturais

do Centro Cultural Cartola, também não está imune a essas questões. As

dificuldades são muitas. No processo de coleta de dados, por exemplo, foi possível

observar uma alta rotatividade de pessoas da equipe administrativa, por inúmeras

razões, desde uma seleção inadequada até a falta de verbas para pagamento de

salário.

O questionamento, assim, diz mais respeito às estratégias para manter uma

continuidade nos projetos socioculturais – as verbas são orçadas anualmente e, por

vezes, não renovadas – do que à avaliação se o Centro Cultural Cartola está

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alcançando os índices de visibilidade suficiente para ser lugar de investimento

financeiro.

Os resultados das ações socioculturais são o foco, não resta dúvida, mas

como esses desdobramentos são alcançados é que é importante compreender. Os

profissionais, quando conseguem adequar-se às rotinas - não repetitivas - de

trabalho, podem vir a ser dispensados por motivos externos. Quando isso acontece

(pessoas desligadas por falta de continuidade político-orçamentária), quebra-se

também a continuidade do processo das ações socioculturais.

Nesse ponto, o Centro Cultural Cartola, como ponto de cultura reconhecido

pela União Federal – por intermédio da Secretaria de Programas e Projetos Culturais

do Ministério da Cultura (SPPC/MinC) – tem sido privilegiado como ponto de

transmissão de cultura, através Ação Griô e do aprendizado de violino, em especial.

As ações e os desdobramentos oriundos do trabalho no Centro Cultural

Cartola consolidam-se por meio das oficinas de arte, da orquestra, dos Seminários,

da Ação Griô e dos estudos científicos desenvolvidos pelos alunos da pós-

graduação de Psicologia Social da UERJ, que apontam ser possível a concretização

das aspirações dos que entendem cultura como patrimônio.

Sinônimo de ―causa‖ de cultura, Cartola, o patrono do Centro Cultural que

leva seu nome, será aqui destacado não só por seu aspecto musical, mas pelo viés

pessoal, para que seja ressaltado o homem simples, de vida humilde, que se

transformou em símbolo de causa social e que, sob a insígnia do nome, continua a

contribuir com ações que visam a ―combater a pobreza, a marginalização da

população carente, a exclusão social e a falta de esperança no futuro24‖. Sua história

de vida é marcada por fatos comuns do cotidiano de um homem pobre, morador da

favela, como demonstra a música Sala de despertar (1976).

Sala de Recepção Habitada por gente simples e tão pobre Que só tem o sol que a todos cobre Como podes, Mangueira, cantar? Pois então saiba que não desejamos mais nada A noite e a lua prateada Silenciosa, ouve as nossas canções Tem lá no alto um cruzeiro Onde fazemos nossas orações E temos orgulho de ser os primeiros campeões Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora E as outras escolas até choram

24

Pensamento de Nilcemar Nogueira.

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Invejando a tua posição Minha Mangueira, és a sala de recepção Aqui se abraça o inimigo Como se fosse irmão.

2.2 Seminários do samba

A preocupação com o registro e a difusão da memória local fez nascer o

―Centro de Referência de Pesquisa do Samba‖, que se encontra, agora (2010), em

fase de ampliação com o projeto ―Inventário das Matrizes do Samba no Rio de

Janeiro‖, patrocinado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN) e apoiado pela Secretaria Especial de Políticas da Igualdade e Promoção

Racial (SEPPIR) e pela Fundação Palmares. O resultado da pesquisa do Dossiê e

do Inventário já se encontra disponível à consulta no Banco de Dados, implantado

na sala de consulta do Centro Cultural Cartola.

Figura 11: II Seminário do Samba

Cabe destacar a realização anual, a partir de 2008, dos ―Seminários sobre o

Samba Patrimônio Cultural do Brasil‖, os quais têm por finalidade a discussão crítica

em torno da indústria do samba. Os Seminários são promovidos pela Secretaria

Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e pelo próprio Centro

Cultural Cartola, cujo apoio se dá por intermédio do Ministério da Cultura, do

Governo Estadual e do Governo Municipal. Esses Seminários já são uma resposta

do Governo Federal, através do Ministério da Cultura, na implementação de políticas

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de estímulo ao chamado ―patrimônio imaterial brasileiro‖, incentivando tradições

populares e ações de interesse social.

Nos Seminários são debatidos os bastidores do samba, seu cotidiano pós-

carnaval, tarefas e desafios urgentes. As discussões e propostas indicam a

necessidade premente de mudar o modelo de organização do evento e de estimular

a abertura de mais espaços para a prática do samba, através de políticas públicas

culturais.

Uma das grandes reflexões geradas nos Seminários diz respeito ao lucro que

o carnaval representa para a economia do Estado, sem que esse retorno financeiro

seja revertido em benefícios às comunidades carentes.

Em todas as mesas desenvolvidas nos Seminários, o carnaval é entendido

como a festa-negócio. Inerente a isso está a desvalorização gradativa da essência

da sua matriz cultural nos desfiles oficiais. Outra conclusão já predominante é a

perda de elementos essenciais, tais como: samba no pé, samba-enredo cadenciado,

ritmos característicos das baterias. A proeminência de algumas organizações

carnavalescas, associadas à perda do conhecimento dos elementos que compõe a

identidade cultural, tem contribuído para a descaracterização do samba como

elemento central que permite articulação e que forja a identidade cultural de um

grupo.

Destaca-se aqui a importância de Cartola como símbolo do sentimento

comunitário. Muitos jovens da Mangueira têm em sua figura um exemplo da

importância da manutenção dos laços sociais da comunidade.

2.3 Ponto de cultura e de educação

Batizado em homenagem ao mais famoso sambista da Mangueira, o Centro

Cultural Cartola oferece aos jovens que hoje vivem no morro uma oportunidade que

seu patrono não teve: promoção da cidadania através da educação e da cultura,

como meio de incentivar a identificação de valores culturais da comunidade a que

pertencem. A organização, sem fins lucrativos, fundada em 2001, promove oficinas

de teatro, dança, música e poesia, além de eventos socioeducativos.

O objetivo do Centro Cultural Cartola é promover o desenvolvimento da

cidadania por meio do acesso à educação, à formação e solidariedade, bem como

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motivar os jovens a identificarem os valores culturais da comunidade a qual

pertencem. O Centro oferece capacitação qualificada e diferenciada com foco em

arte e cultura. A proposta é realizar ações afirmativas e políticas que contemplem a

diversidade cultural, a geração de trabalho e renda na comunidade, além de ações

preventivas de saúde, como práticas de sexo seguro, campanhas de prevenção ao

câncer, higiene oral e outras. Todos os programas visam ao desenvolvimento da

consciência crítica dos participantes, estimulando a participação ativa no processo

educacional.

Figura 12: Atividades desenvolvidas no Centro Cultural Cartola

O Centro Cultural Cartola é mais que um espaço destinado à exposição e à

divulgação das criações do poeta em seus setenta e dois anos de vida dedicados à

produção cultural; é um espaço para o reconhecimento da cultura afro-brasileira e

para o despertar do fato.

O espaço abriga oficinas de teatro, dança e música, com caráter

profissionalizante. A programação se completa com oficina de poesia, rodas de

leitura, mostra de vídeos seguida de debates, palestras e coleta de depoimentos de

personalidades, além de shows e exposições. O Centro Cultural Cartola promove

ainda passeios, como visitas a outras instituições, exposições temporárias etc. Ao

todo, são cerca de trezentos participantes ao mês, diretamente beneficiados pelas

atividades oferecidas. Os beneficiados indiretos chegam a mil por mês.

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Figura 133: Oficina de flauta

Desde janeiro de 2009, com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (Iphan) teve início a implantação do ―Pontão de Memória do

Samba Carioca‖, instituindo-se, a partir daí, o ―Centro de Referência de Pesquisa e

Documentação do Samba do Rio de Janeiro‖. O Centro Cultural Cartola é

igualmente reconhecido e premiado pelo Ministério da Cultura pelo seu trabalho de

arte-educação.

O público-alvo atendido no Centro Cultural Cartola é, em sua maioria,

constituído de crianças e jovens na faixa etária compreendida entre quatro e

dezesseis anos de idade. Também são atendidos, em algumas oficinas pontuais,

adultos e a terceira idade. O perfil contempla indivíduos em situação de

vulnerabilidade social, estudantes da rede pública de ensino e população de baixa

renda, que habitam a área com precária oferta de serviços públicos, principalmente

na área cultural.

Figura 14: Oficina de dança

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O Complexo da Mangueira está situado no Município do Rio de Janeiro,

ocupando o morro dos Telégrafos, bairro da Mangueira, na VII região Administrativa,

São Cristóvão. É constituído pelas favelas do Morro da Mangueira (Chalé e Buraco

Quente), Morro dos Telégrafos e Parque Candelária. Seus limites são: ao norte, o

bairro de Benfica; a nordeste e leste, São Cristóvão; ao sul, Maracanã; e a sudeste e

oeste, São Francisco Xavier. Localizado na encosta do Morro dos Telégrafos, o

Complexo ocupa área de 26,7 hectares, e já em 1991 possuía dezessete favelas,

com uma população de aproximadamente trinta e nove mil e cem habitantes.

Segundo o Censo de 2000, há vinte e oito mil, cento e oitenta e cinco residentes em

aglomerados subnormais, cuja infraestrutura é deficiente, com impactos negativos

sobre a qualidade de vida e a produtividade da economia.

Atualmente, a população aproxima-se de quarenta e cinco mil habitantes. O

percentual de pessoas alfabetizadas, acima de quinze anos, é de 94,2%, com renda

per capita de R$ 357,43 (trezentos e cinquenta e sete reais e quarenta e três

centavos). São quatro elevações de terra (morros) que compreendem o Complexo

da Mangueira, que não tem organização político-partidária constituída ou de

identidade definida e está em nonagésimo quarto lugar no índice de

desenvolvimento humano no Município do Rio de Janeiro.

Figura 14: Complexo da Mangueira

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Como são muitos os projetos e os patrocinadores envolvidos, achou-se por

bem destacar os mais importantes, que estão em andamento.

O projeto ―Ação Griô – Gerações‖, com patrocínio do Ministério da Cultura,

visa a incentivar a troca de experiências entre gerações, através da tradição de

transmissão oral. O projeto permite sedimentar o hábito de falar e de ouvir o outro.

Possibilita aos alunos realizar um trabalho coletivo, com o envolvimento de todos os

participantes, estimulando a integração de pais e avós nas dinâmicas realizadas.

Prêmio Cultura Viva, conferido pelo MinC.

Figura 156: Maria Moura- Mestre Griô

O projeto ―Educação Artística Orquestra de Violinos‖, com patrocínio da

Petrobras, trabalha com o desenvolvimento e o estímulo da memória, da percepção

corporal, da coordenação motora, da lateralidade, do convívio em grupo e do

fortalecimento da autoestima. Contribui, ainda, para a divulgação da diversidade

cultural brasileira. A oficina prevê a expansão do universo musical dos alunos, como

forma de propiciar a formação de novos talentos.

É também um meio de formação de plateias diferenciadas para a agenda

cultural disponibilizada pela entidade, que passa a envolver na sua programação

outros gêneros musicais, além do samba.

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Figura 17: Apresentação orquestra de violinos - Gabriela bisneta de Cartola

O projeto ―Sociodesportivo‖, com patrocínio da Suderj, oferece diversas

possibilidades de construção de práticas lúdicas e educativas – esporte, dança,

recreação – para serem vivenciadas por grupos de diferentes idades. Sob a ótica da

educação, é um projeto que contribui para o desenvolvimento físico e emocional dos

participantes.

Figura 18: Apresentação do Jongo

O projeto ―Depoimentos ―Memória das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro‖,

com o patrocínio do IPHAN/Ministério da Cultura, vem como parte da implantação do

Plano de Salvaguarda do samba carioca e tem por objetivo a coleta de depoimentos

de personalidades do samba, líderes comunitários e outros responsáveis pela

manutenção das tradições e dos símbolos que constituem a cena do samba

praticado no Rio de Janeiro.

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Figura 19: Projeto matrizes do Samba

O ―Programa de Inclusão Digital‖, com parceria do SERPRO, planejou a

instalação de um telecentro para possibilitar o acesso a novas tecnologias para as

crianças e jovens que participam dos projetos socioculturais. Conhecer o

computador e saber usar todos os periféricos a ele associado é indispensável para

garantir a boa formação almejada.

Figura 20: Telecentro

Complementando os projetos, também são mostrados os resultados dos

trabalhos já concluídos. É o caso da exposição ―Simplesmente Cartola‖, com o

patrocínio da Xerox do Brasil.

A mostra permanente apresenta a história do compositor Cartola, dando

acesso aos visitantes a fotos de família, aos objetos pessoais e à discografia do

artista, entre outros itens, que, reunidos, demonstram sua relevância na cena

cultural carioca e brasileira. O material faz parte do acervo permanente do Centro e

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foi doado pela família do compositor. Indiretamente, a mostra busca estimular a

preservação dos acervos pessoais do sambista.

Figura 16: Exposição permanente Cartola

A exposição ―Samba Patrimônio Cultural do Brasil‖, com o patrocínio da

Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), reúne fotos,

instrumentos, fantasias – algumas pertencentes a grandes sambistas do passado e

do presente –, instrumentos, documentos e bandeiras para apresentar a trajetória do

samba e homenagear os sambistas. Na trilha sonora gravada especialmente para a

exposição, há sambas históricos das três modalidades abordadas no projeto:

partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo. Faz parte da mostra um DVD, com

25 minutos de duração, sobre a trajetória do samba no Rio de Janeiro.

A exposição é uma forma de destacar os principais baluartes do samba

carioca, independente da época; para isso, foca nas seis agremiações vistas como

preservadoras das matrizes do samba no Rio de Janeiro: Portela, Estação Primeira

de Mangueira, Acadêmicos do Salgueiro, Império Serrano, Estácio de Sá e Unidos

de Vila Isabel.

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Figura 17: Mestre Cartola no desfile da Escola de Samba (1976)

Figura 18: Na exposição, cópia do traje utilizado por Cartola (1976)

A instalação do Centro de Referência de Pesquisa do Samba também é outra

conquista fruto do trabalho desenvolvido; destina-se ao resgate e à documentação

do samba, tido como manifestação popular de resistência cultural da população

brasileira, em particular da população afro-descendente. Nasceu da preocupação

com o registro e a difusão da memória local, buscando as referências culturais do

ritmo em suas diversas formas de manifestação: nas rodas de samba, nas quadras

das escolas e outras agremiações carnavalescas, nos terreiros e nos personagens

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que fizeram dessa forma de resistência um meio de contato entre diferentes grupos

sociais.

Figura 19: Centro de Referência de Pesquisa do Samba

O Centro de Referência encontra-se em fase de ampliação, por conta do

projeto ―Inventário das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro‖, patrocinado pelo

IPHAN, com apoio da Secretaria Especial de Políticas da Igualdade e Promoção

Racial (SEPPIR) e da Fundação Palmares. O resultado da pesquisa de dossiê e

inventário já se encontra disponível para consulta no banco de dados instalado na

sala de consulta do Centro Cultural Cartola.

O Centro Cultural Cartola conta também com uma biblioteca comunitária, que

está começando a reunir todo o material bibliográfico e musical de Mestre Cartola. A

doação da produção foi feita por importantes pesquisadores, como Sergio Cabral,

José Carlos Rego e Roberto Moura.

Por sua vez, o Programa ―Arca das Letras‖, do Ministério do Desenvolvimento

Agrário, propiciou o início da constituição de acervo e da implantação do projeto da

Biblioteca Comunitária Dona Zica, cujo acervo reúne, além das publicações,

registros sonoros, audiovisuais e fotográficos, enriquecidos com depoimentos de

personalidades do samba. O espaço vem atendendo não só aos integrantes das

oficinas oferecidas pelo Centro Cultural Cartola, como aos estudantes de ensino

fundamental, médio e universitário de diversos bairros.

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Figura 20: Biblioteca Comunitária Dona Zica

Paralelamente às oficinas, o Centro Cultural Cartola oferece atividades

artístico-culturais que privilegiam a singularidade do ser humano, pelo

desenvolvimento da sensibilidade, da solidariedade, da valorização das expressões

culturais e das especificidades de um povo. São promovidos eventos de música,

dança, mostra de vídeos, seminários e depoimentos que mostram a força do

samba, sua história e sua importância como patrimônio cultural brasileiro.

Figura 21: Apresentação do filme “Memórias do Samba”.

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CAPÍTULO 3 – TERRITÓRIO VERDE E ROSA

Meu amor pela Escola começou não sei bem quando. Mas acho que antes dela ter sido criada, com minha chegada ao morro, Mangueira escola e Mangueira morro para mim é a

mesma coisa25

.

3.1 Espaços simbólicos: Escola de Samba e Centro Cultural

A vertente dos estudos culturais privilegia, em geral, a multiplicidade de

saberes, os diferentes olhares e o pensar relacionalmente, no que diz respeito a

―tomar para objeto o trabalho social de construção do objeto pré-construído‖

(Bourdier, 2004-b). Tal fato implica que esta pesquisa introduza um corte entre os

espaços geográficos e simbólicos, ocupados tanto pela Quadra da Escola de

Samba Mangueira, quanto pelo Centro Cultural Cartola, fazendo um corte no

espaço geográfico e simbólico do morro da Mangueira. Enfim, o campo de análise

e de intervenção aqui circunscrito é o Centro Cultural Cartola.

O universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias (Bourdier, 2004b p.19-21).

Após compreensão de que se trata de espaços autônomos – Escola de

Samba e Centro Cultural –, outra questão se coloca: a disjunção entre o real, o

simbólico e o imaginário da representatividade social da Mangueira. É preciso

permitir que algo do real venha a se inscrever na pesquisa como o novo, no sentido

de ruptura com o pré-construído e institucionalizado no âmbito da cultura. Isso

significa dizer que, embora ambas as instituições pertençam ao mesmo território

geográfico e por mais que suas origens tenham sido fundadas no samba, nesta

análise serão consideradas como dois espaços simbólicos diferentes, em função

do valor de uso que cada uma delas faz do samba.

25

Esta citação foi retirada do acervo da família Cartola, segundo Moura (1988, p. 22).

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Cabe destacar que a pesquisa não se propõe a julgamentos ou a discussões

ideológicas sobre o valor simbólico que as instituições atribuem ao uso do samba.

A discussão proposta diz, sim, respeito aos limites estabelecidos e significados que

cada uma atribui ao capital simbólico representado pelo samba. A discussão tem a

finalidade de operar como um recurso, na pretensão de minimizar os efeitos

imaginários constituídos em torno do objeto de pesquisa: a relação dos sujeitos

com a causa do Centro Cultural Cartola.

Fator curioso também deve ser ressaltado: falar em Mangueira é suscitar um

arcabouço de crenças e conceitos amalgamados no imaginário social carioca, por

representar, em grau máximo, o que seria uma Escola de Samba tradicional no

carnaval do Rio de Janeiro. Dessa forma, ingressar no ―espaço verde e rosa‖ exige

do pesquisador um cuidado todo especial: deverá carregar menos nas cores de

seu imaginário particular, formado a priori, visando a estabelecer uma relação que

comporte surpresas a posteriori, ainda mais quando se propõe pesquisar em

campo impregnado de significações.

Construir um objeto científico é, antes de mais nada e, sobretudo, romper com o senso comum, quer dizer, com representações partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugares-comuns da existência vulgar, quer se trate das representações oficiais, frequentemente inscritas nas instituições, logo, ao mesmo tempo na objetividade das organizações sociais e nos cérebros. O pré-construído está em toda parte. O sociólogo está literalmente cercado por ele, como o está qualquer pessoa (Bourdier, 2004a, p.34).

Portanto, a discussão de limites simbólicos estabelecida nesta análise

justifica-se pelo uso econômico que ambas as instituições fazem do valor simbólico

do samba na atualidade. Produz-se, assim, uma ruptura com a ingênua visão de

que o ―território verde e rosa‖ seja todo ele signo de resistência cultural.

Pensar o mundo social nunca se corre o risco de exagerar a dificuldade ou as ameaças. A força do pré-construído está em que, achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com a aparência das evidencias, que passa despercebida porque é perfeitamente natural. A ruptura é, com efeito, uma conversão do olhar [...] dar novos olhos [...] Trata-se de produzir, senão um homem novo, pelo menos, um novo olhar (Idem, 2002, p.49).

Uma vez que destituir-se totalmente de preconceitos é tarefa quase

impossível ao ser humano, a delimitação dos espaços simbólicos constituiu uma

exigência para análise do campo investigado, bem como a necessidade de análise

do valor simbólico do samba, a partir da instauração da lógica da ―festa-negócio‖,

consolidada com o surgimento das Super Escolas de Samba S.A. Tal evento, de

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certo modo, levou as Escolas a reproduzirem uma padronização quase absoluta

nas apresentações dos desfiles oficiais, desvalorizando, em contrapartida, a

essência do próprio samba, a sua matriz cultural.

Entrou-se no esquema de uma produção que, aos poucos, introduziu o seu ritmo próprio: o do espetáculo. Isto ocorreu também no interior das escolas de samba, cujas modificações acompanham a trajetória ideológica da classe média: a Escola começou a buscar formas empresariais, [...], vinculadas ao show business, e a profissionalizar seus integrantes [...] Os sambas são ouvidos, mas muito pouco cantados pelo ouvinte, e logo esquecidos. Seu valor de uso – garantia da sociabilidade e da transitividade da peça musical – foi absorvido pela lógica do valor de troca, que para transformá-lo em espetáculo acabado, privilegia a tecnologia da produção [...] o esteticismo [...] e consolida a separação entre produtor e consumidor. Isto alterou profundamente as relações sociais no interior da comunidade negra, além das regras antigas de composição musical e, mesmo da maneira de dançar (Sodré,1988, p.53).

Nilcemar Nogueira26 discute o fato de que, embora o desfile movimente

milhões de reais, gerando recursos para o Estado e a iniciativa privada, não há um

esforço conjunto dos diversos níveis do poder público estadual e municipal para a

execução de políticas alinhadas ao programa do Governo Federal, que valorizem

as manifestações genuinamente populares. Ao invés disso, o apoio financeiro dos

governos estadual e federal destina-se, quase que exclusivamente, ao desfile do

Grupo Especial, tido no calendário da Cidade como atração turística internacional –

ação que se encerra nos quatro dias da folia, e que, além de privilegiar o mega-

espetáculo, que já tem condições de se autossustentar, ao atrair patrocínios e

publicidade, cria um muro de exclusão em torno de dezenas de pequenas

agremiações, velhas guardas e sambistas tradicionais, ignorados pelos gestores de

política pública cultural e pela engrenagem massificadora do turismo, da indústria

fonográfica e do espetáculo.

Na verdade, a preocupação de Nilcemar se estende ao sujeito que realiza o

evento, simbolizado pela velha guarda, pelas pequenas agremiações, por

compositores e músicos sem reconhecimento, favorecendo um contraste com os

protagonistas do ―Carnaval/S.A.‖, que concentram os recursos, sempre destinados

ao Sambódromo e às Super Escolas de Samba.

É evidente a necessidade premente de estimulação para abertura de

espaços de prática do samba, através de políticas públicas culturais que visem a

um consenso quanto à necessidade de se firmar um pacto entre poder público,

empresários, trabalhadores, entidades carnavalescas e sambistas, para que se

26

Livreto oficial distribuído no Centro Cultural Cartola, cujo uso neste trabalho foi livremente autorizado.

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estabeleçam novas condições de governança, proteção e difusão do samba

carioca.

O samba é um elemento de coesão da identidade nacional; por isso, cabe

resgatar seu processo histórico, sua criação e os personagens que fizeram dessa

forma de resistência um meio de contato entre diferentes grupos sociais. Sem

dúvida, é com esse propósito que o Centro Cultural vem promovendo ações

concretas em favor do resgate e da preservação de referências culturais, nas mais

diversas formas de manifestação: rodas de samba, quadras das escolas e

agremiações carnavalescas, terreiros, e atuação dos seus atores sociais.

3.2 Cultura: conceito dupla face

A cultura no contexto particular do Centro Cultural Cartola transformou-se

em um conceito tributário de diversos e diferentes sentidos. Para equacionar e

circunscrever a particularidade do significado que tomou neste trabalho, foi

necessário estabelecer uma coerência de pensamento frente aos diferentes

campos de saber que subsidiaram a compreensão de um conceito tão impregnado

de plurisignificação.

Eliot diz que ―a cultura do indivíduo depende da cultura de um grupo ou

classe, e que a cultura do grupo ou classe depende da cultura da sociedade a que

pertence este grupo ou classe‖ (Eliot, 1988, p.33). Tal conceituação, embora

abrangente, permite pensar como se dava a localização subjetiva dos gestores do

Centro Cultural Cartola frente ora à cultura de sua classe – e ao mesmo tempo –,

ora à do grupo dos jovens atendidos por eles no local, ou seja, a definição abre o

leque para pensar cultura pelo viés da ―dupla face‖, tendo em vista as posições

subjetivas heterogêneas entre si – dado fundamental se for considerada a

demanda de Nilcemar: ―Há um problema administrativo no Centro Cultural Cartola‖.

Em outras palavras, como diz Foucault:

A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração (Foucault, 2008, p.62).

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Assim, a conceituação filosófica de cultura de Eliot (op. cit.), somada à ideia

da formação de conceito de Foucault (op. cit), constituiu outra possibilidade: a de

estabelecer um diálogo entre Freud e Yúdice – instrumento necessário ao trabalho,

já que não existe literatura que venha a contextualizar a análise da relação dialética

intersubjetiva entre gestores e jovens.

Yúdice (2004) problematiza a questão do uso da cultura nos trópicos do sul,

ao discutir o conceito de cultura a partir da realidade social de nosso país, tomando

como referência o cotidiano de países vizinhos, com contextos social, político,

econômico e cultural semelhantes, experiências singulares. Contudo, sua leitura

não privilegia o inconsciente como instância constitutiva das relações

intersubjetivas, como faz a psicanálise de Freud.

Se, por um lado, fica claro que cada autor tem um foco epistemológico

próprio e distinto do outro, por outro, trata-se aqui da necessidade de analisar um

campo a partir de um referencial que comporte uma leitura que leve em conta a

explicação dos fenômenos sociais e que considere em sua análise ―o psiquismo

individual e coletivo na explicação de tais fenômenos sociais‖, como afirma

Enriquez (1990, p. 50). No mesmo texto, mais adiante, o autor prossegue: ―O

pulsional faz parte do fundamento de cada sujeito e do fundamento da vida social.

Torna-se indispensável recorrer à teoria das pulsões e dos processos

identificatórios para compreender as duas ordens de realidade: a psíquica e a

realidade social‖ (Idem, ibidem, p.80).

Com essa questão esclarecida, o conceito de cultura está pautado na obra

de Yúdice (2004), naquilo que ele privilegia seu uso como conveniência, não

apenas como moeda de troca, mas como recurso, advertidos das implicações

político-econômicas de seu uso.

Sob a perspectiva de que o papel da cultura expandiu-se como nunca para esferas política e econômica, ao mesmo tempo em que as noções convencionais de cultura se esvaziaram [...], talvez seja melhor fazer uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada, como um recurso. [...] A

culturalização da assim chamada nova economia, baseada no trabalho cultural e mental [...] tornou-se, como o auxílio da nova tecnologia de comunicações e informática, a base de uma nova divisão de trabalho (Idem, ibidem, p. 38).

Freud27, por sua vez, não diferencia cultura de civilização, mas avança na

discussão a respeito do destaque sobre a satisfação narcísica oferecida pela arte.

27

FREUD, S. ―O futuro de uma ilusão‖ [1927], in: Obras psicológicas completas, 1987, p.16..

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A satisfação narcísica proporcionada pelo ideal cultural [...] pode ser partilhada não apenas pelas classes favorecidas, que desfrutam dos benefícios da cultura, mas também pelas oprimidas, [...] Um tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma unidade cultural pela arte [...] a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, [...]as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações de sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva, contribuem também para sua satisfação narcísica (Freud, 1927, p.15-24).

Em síntese, as intenções (ideais) parecem ser materializadas através de

criações artísticas, que podem ser compartilhadas por todas as classes sociais,

independentemente de nomenclaturas, favorecendo, neste caso, meninos e

meninas que, ao serem atendidos pelo Centro Cultural Cartola, passam a ter

contato com a alta cultura28, através dos diferentes projetos oferecidos.

Embora haja aqui a constatação de que existem diferentes fontes culturais,

com isso não se quer dizer que uma seja melhor ou pior que a outra; apenas

diferente.

Prova disso está na própria estrutura do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (IPHAN), que realiza em livros o registro de bens, de acordo com

categorias determinadas, obedecendo à seguinte classificação: Livro de Registro

dos Saberes, para os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano

das comunidades; Livro de Registro de Celebrações, para os rituais e festas que

marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida

social; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações

artísticas em geral; e Livro de Registro dos Lugares, para mercados, feiras,

santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas práticas culturais

coletivas.

Em 29 de novembro de 2007, o IPHAN registrou oficialmente as matrizes do

samba do Rio de Janeiro – samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo – no

―Livro de Registro das Formas de Expressão29‖. Desse modo, o samba carioca é

declarado ―PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL‖, o que significa dizer, de

28

Yúdice (2004 p. 29), ao propor a utilização da cultura como recurso, diz que essa utilização absorve e elimina distinções até então prevalecentes nas definições de alta cultura da antropologia e da cultura de massa. Alta cultura compreendida pelos Museus, lugares históricos, pintura dos grandes mestres, manifestações culturais em oposição às consagradas pela cultura popular. 29

Cópia da Certidão no anexo.

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acordo com a definição da UNESCO, que as matrizes do samba carioca se

constituem em:

Práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

30

―Patrimônio Imaterial‖ equivale à prática da transmissão de geração em

geração e constante recriação pelas comunidades e grupos, em função do

ambiente, da interação com a natureza e da história, peculiares a cada um. É como

se fosse um ―atestado de qualidade‖, que acaba por gerar um sentimento de

identidade e continuidade que contribui para promover o respeito à diversidade

cultural e à criatividade humana.

O pedido de registro foi feito por Nilcemar Nogueira, vice-presidente do

Centro Cultural Cartola. Ela contou com apoio da Associação das Escolas de

Samba do Rio de Janeiro e da Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA).

A ideia de fazer o registro surgiu porque Nilcemar temia o enfraquecimento das

matrizes do samba do Rio: ―Meu avô foi um dos pioneiros da popularização

dessas(s) forma(s) de samba, no final da década de 20‖ – esclarece.

Com a conquista da declaração na qual o samba carioca é registrado como

PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL, o Centro Cultural Cartola recupera as

matrizes do samba para fazer uso dele como signo de trabalho de resgate de

excluídos na modernidade. O samba, antes símbolo dos excluídos (dos negros, em

especial), é elevado à identidade nacional e reconhecido como patrimônio imaterial;

paradoxalmente, funciona ainda como polo ―aglutina-dor‖ de modernas formas de

exclusão social, congregando, sob seu ritmo, os excluídos da pós-modernidade:

brancos e negros desfavorecidos economicamente, como meninos e meninas

favelados da Mangueira.

Desde sua origem, na segunda metade do séc. XIX, o samba surgia com a

marca da exclusão, por ―indicar um aspecto da cultura negra – continuum africano

no Brasil e modo brasileiro de resistência cultural na afirmação da identidade

negra‖ (Sodré, 1988, p.10). O ritmo já apresentava, depois da abolição, os traços

de uma música urbana brasileira, com características mestiças, mix de influência

30

Texto Matrizes do Samba. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13743&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional. Acesso em fev/2009..

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africana e europeia, polo ―aglutina-dor‖ da população negra que buscava novas

formas de comunicação adaptáveis a um quadro urbano hostil.

O processo de exclusão social é signatário do de marginalização, criado

historicamente através do abandono das instituições e do Estado. A população

oriunda da abolição, cujas dificuldades econômicas e psicossociais foram enormes,

diante da falta de opção de um emprego legalizado, viu-se como sinônimo de mão-

de-obra com eterna disponibilidade, flutuando, sem definição entre campo e cidade.

A marginalização socioeconômica do negro já se tornara evidente no final do sec. XIX, através da sistemática exclusão do elemento de cor pelas instituições (escola, fábrica etc.), que possibilitariam a sua qualificação como força de trabalho compatível com as exigências do mercado urbano. Essa ―desqualificação‖ não era puramente tecnológica – isto é, não se limitava ao simples saber técnico –, mas também cultural: os costumes, os modelos de comportamento, a religião e a própria cor da pele foram significados como handcaps

negativos para os negros pelo processo socializante do capital industrial (Idem, ibidem, p.13).

A desqualificação técnica e cultural não é, pois, um fenômeno contemporâneo

e comporta alguns aspectos da genealogia da exclusão social que é, ao mesmo

tempo, a causa e a consequência dessa lógica do modelo de industrialização, que

se alimenta da discriminação e da exclusão social para gerar seu excedente

econômico.

Historicamente, o Estado e suas instituições, frágeis e precárias, não

favorecem a visibilidade social das populações menos favorecidas

economicamente. Essas pessoas, como é o caso dos moradores da Mangueira,

têm pouco ou nenhum acesso a serviços públicos essenciais. Em outras palavras,

os excluídos de hoje estão para o sistema assim como estavam os negros da

época pós-abolição.

O Centro Cultural Cartola propõe-se a assistir uma parcela dessa população

que tem pouco ou nenhum acesso à cultura e à educação, configurando um

espaço socioeconômico e cultural, que, embora igualmente desassistido, supre, em

parte, a ausência do Estado na comunidade da Mangueira. É nesse espaço de

pouca visibilidade social e com pouco investimento do Estado que surge o Centro

Cultural com a proposta de:

Promover a inserção do indivíduo na sociedade através da cultura, da preparação profissional e do resgate da dignidade, de forma a contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos menos favorecidos e para a redução das desigualdades sociais, buscando sempre no exemplo de Cartola a referência para a construção da cidadania pela arte.

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Essa missão vem-se constituindo em torno do nome próprio Cartola, e tem

em sua obra poético-musical a diretriz ideológica que sustenta todo o trabalho de

resgate sociocultural, para aqueles que estão à margem ou excluídos, tanto da

cultura quanto da sociedade como um todo. Um aceno de esperança, conforme

expressa a letra escrita por ele em parceria com Roberto Nascimento, em 1979.

A Cor da Esperança

Amanhã, A tristeza vai transformar-se em alegria, E o sol vai brilhar no céu de um novo dia, Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade, Peito aberto, Cara ao sol da felicidade. E no canto de amor assim, Sempre vão surgir em mim novas fantasias, Sinto vibrando no ar, E sei que não é vã, a cor da esperança, A esperança do amanhã.

A missão do Centro Cultural revela-se uma aposta na visibilidade através da

arte e da cultura, trazendo esperança de um amanhã com a possibilidade de

transformar as tristezas em alegria, mesmo que metaforicamente, como diz a

poesia supracitada.

3.3 Utopia, ideologia e sonho

Avançando um pouco mais, Ricoeur (1986) vem para estabelecer,

minimamente, uma distinção entre utopia e ideologia e, com isso, ajudar a

investigar se o território do Centro Cultural Cartola se instaura no campo do sonho

e/ou na interseção entre os dois conceitos.

A utopia distinguiu-se em particular por ser gênero declarado. [...] existem obras que se designam como utopias ao passo que nenhum autor afirma que a sua obra é uma ideologia [...] Como sabemos, a palavra significa aquilo que não está em lugar algum; é ilha que se encontra em alhures (sic), o lugar que não existe em nenhum lugar real. Na sua própria autodescrição, a utopia conhece-se, pois como utopia e afirma ser uma utopia. A utopia é uma obra pessoal e idiossincrática, é a criação distintiva de seu autor. [...] Qualquer nome aposto a uma ideologia é anônimo; o seu sujeito é simplesmente das Man, o ―eles amorfo

(Ricoeur, 1986, p. 87).

No século XVI, Thomas More (1516), escritor inglês, publica um livro no qual

mistura realidade e ficção. Nele, convida o leitor a visitar o país Utopia, através de

um ―diálogo filosófico acerca de vários assuntos, mas cuja placa giratória anda em

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torno das relações entre o filósofo, ou se preferirem, o humanista, e o poder‖ (More

apud Backso, 1995, p. 334). Com essa especificidade, More estabelece a narrativa

de uma viagem imaginária cujo paradigma é a discussão do imaginário social que

tem por finalidade:

[...] a representação de uma sociedade radicalmente outra, situada no algures definido por um espaço-tempo imaginário, indicando que a convenção utópica implica uma atividade intelectual que se afirma de maneira autônoma, na medida em que tira a sua legitimidade de si própria, da pesquisa desinteressada do verdadeiro, do bom e do belo (Idem, ibidem).

Embora, muitas vezes, o conceito de utopia seja utilizado como sinônimo de

ideologia, quimera, devaneio, entre outros, é a partir do texto de More que a

ambiguidade polissêmica do conceito utopia toma forma.

Backso explica que é comum dar o nome de utopia a qualquer texto que

siga o modelo narrativo de More, estendendo o conceito, inclusive, a Platão, cujo

livro República corresponderia ao exemplo típico desse último modelo de discurso

utópico (1995, p.335).

Observamos que a narrativa de More posiciona-se em uma extimidade31,

onde se coloca dentro e fora do texto ao mesmo tempo, utilizando neologismos

como recurso na interlocução gerada entre ele e os personagens. Em seu texto,

consequentemente nomeado como literário e filosófico, a utopia pode ser

compreendida como um ―campo de multiplicidade de sentido‖. Por conservar-se

atual, o texto de More traduz os anseios dos homens e não é por acaso que vem

ao encontro da proposta do Centro Cultural Cartola no sentido de que ali se

alimenta a possibilidade de transformar os sonhos e ideais em realidade. ―As

utopias não são, em muitos casos, mais do que verdades prematuras‖ (More apud

Backso, 1995, p. 337).

Alguns aspectos da obra de Freud e de Ernest Bloch sobre a questão teórica

acerca dos sonhos merecem destaque. Tanto em Interpretação dos sonhos (1900),

texto fundamental na obra freudiana (1900), quanto em O principio da esperança

(1954), de Bloch, o sonho ganha destaque na realização do desejo.

Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado (Freud, 1900, vol. VII, p.561).

31

Extimidade, exterioridade íntima, é o neologismo inventado por Jacques Lacan para designar Das Ding, a

Coisa: tão íntima que estruturalmente é o mais exterior, o que mais escapa ao sujeito. A extimidade íntima é algo como se sentir pouco à vontade, estando-se na própria casa. (LACAN, J. 1986, p.188).

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O sonho diurno não dispõe de qualquer tipo de censura imposta por um eu moral, como acontece com o sonho noturno. O sonho diurno exige uma apreciação específica, apresenta uma pulsão infatigável, a fim de que a antevisão também seja concretizada (Bloch, 2005, p.92).

Para Freud (op. cit.), o sonho diurno é constituído pelo desejo e aparece

para o sujeito como um devir que poderá ser, no futuro, o material em que se

produzirá o sonho noturno; para Bloch (op. cit.), o sonho diurno é a porta de

entrada para o universo utópico, elemento fundamental da esperança.

O sonho noturno, os chistes e os atos falhos são considerados por Freud

(1900) os veículos que permitem o acesso ao material recalcado no inconsciente.

Desse modo, o sonho noturno e o sonho diurno são considerados por ambos os

autores o desenho de expressão de desejos, inconsciente, para Freud (1900), e

consciente, para Bloch (1954), respectivamente.

O sonho noturno pode ser caracterizado por representar o mundo exterior de

forma alegórica; precisa que o eu seja desarmado de suas defesas para não

censurar os aspectos incongruentes com a realidade consciente, e incorpora o

sonho diurno, conferindo-lhe status de fantasia onírica para que seja permitida a

transformação em alucinações dos ideais desejantes.

Na obra de Bloch (idem), os sonhos diurnos são o projeto de um devir para

realização de desejos e podem proporcionar ideias que não pedem interpretação e,

sim, elaboração, em que sonho diurno não é um prelúdio do sonho noturno, nem o

primeiro se reduz ao segundo. O conteúdo do sonho noturno está oculto e

dissimulado, enquanto o conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante,

antecipador, e seu aspecto latente situa-se adiante.

Cada autor construiu um arsenal teórico fabuloso que ora se aproxima, ora

se distancia, para marcar exatamente aí uma interseção entre suas idiossincrasias

científicas. É na noção de realização de desejo, que Freud (1900) e Bloch (1954)

estabelecem, a meu ver, esse ponto de interseção, que tanto os aproxima quanto

os distancia; é a psicanálise e a filosofia se comunicando naquilo que lhes há de

comum: o homem e seu estar no mundo.

Desde Freud, estabeleceu-se (e isso permanecerá como seu patrimônio) que o sonho não é mera proteção do sono ou um mundo de alucinação, mas vai além – também é realização de desejos. Os sonhos só podem assimilar as perturbações na medida em que elimina o aguilhão de suas exigências. Ou como diz Freud: ―Os sonhos são eliminação dos estímulos psíquicos perturbadores do sono pela via da satisfação alucinatória‖. Como se sabe, a descoberta mais própria de Freud é a de que os sonhos não são bolhas de sabão, obviamente oráculos proféticos, mas se situam no centro entre os dois: exatamente como realização fictícia de uma fantasia desejante inconsciente. [...] E o tema ―sonhos de uma vida melhor‖ incluí parcialmente, com cuidado e significância, também os sonhos noturnos como

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sonhos desejantes, também eles são uma parcela (ainda deslocada e não muito homogênea) no gigantesco campo da consciência utópica (Bloch, op. cit., p.80).

Mesmo que a análise empreendida por cada um esteja circunscrita a

campos distintos, psicanálise e filosofia, é fundamental articular o pensamento de

ambos para entender que a utopia é a antecipação da realização de desejo que,

neste trabalho, aparece como um sonho idealizado por pessoas que arregaçam a

manga e inventam um novum32.

Pensar em futuro para esses jovens é pensar utopicamente; é partir do

princípio de esperança, de Bloch, cujo valor deverá ser cunhado cotidianamente

por todos que acreditam nos projetos do Centro Cultural Cartola e os fazem

realidade. Através da música, do esporte e da dança, a utopia vem sendo

emoldurada nos sonhos daqueles que dão corpo ao sonho de Cartola: ―Que todas

as crianças da comunidade pudessem ter espaço e não vivessem à margem da

sociedade‖ (Zica apud Ramalho, 2004, p.39).

3.4 Retrospectiva de impressões e instauração de nova demanda

Neste item, trago alguns aspectos importantes deste trabalho, a fim de situar

as dificuldades e os avanços das etapas, que servirão para exemplificar o ―antes

desejado‖ e o ―hoje realizado‖. Para esse fim, foi preciso caminhar em duas

direções: a primeira, na elaboração de pequena retrospectiva de impressões, e a

outra no relato da experiência do filme ―Orquestra dos meninos‖, que modificou o

percurso de meu trabalho.

Retrospectiva de Impressões

Primeiramente, a retrospectiva visa a pontuar o intervalo temporal de todo

percurso da pesquisa, da intenção primária – a proposta inicial era investigar a

cultura, a identidade e o trabalho dos gestores culturais do Centro Cultural Cartola

– ao resultado obtido no tempo presente, descrevendo o que foi possível pesquisar

e analisar das relações com as pessoas que auxiliaram o trabalho investigativo e a

realização propriamente dita de possíveis impensáveis no início da pesquisa. ―Do

32

(...) o novum requer o seu conceito avançado. E tudo isso com a finalidade de que, pelo reino da

possibilidade assim mediado, finalmente se construa, com olhar crítico, a estrada que leva ao que necessariamente se busca, e que ela seja mantida sempre em nossa direção (Bloch, 1954, p.17).

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ponto de vista da temporalidade, a experiência da esperança consiste na tomada

de consciência daquela relação com o ainda inexistente, implícita em todas as

emoções, e pode, portanto, ser assumida como o seu arquétipo estrutural e

igualmente como sua manifestação afetiva mais concreta‖ (Jameson, 1985, p.102).

No início do percurso de investigação a expectativa trazia a esperança de

desvendar todos os mistérios do campo investigado e o encantamento com o

desconhecido, com o novum (Bloch, 2005).

O Centro Cultural Cartola constitui-se um lugar que se dá a ver a diversos

olhares, lugar meio ―camaleônico‖, lugar de objeto do fetiche que quer ser visto e

que se dá a olhar. O campo foi nomeado pelo olhar do pesquisador do campo

social; por isso, passou a ser lugar sociocultural por excelência, com a ressalva de

que é sob esse viés que as análises foram empreendidas.

Em outras palavras, o Centro Cultural pode ser visto sob diversos ângulos,

desde um lugar de possibilidade de visibilidade midiática até como campo

sociocultural. Isso se deve ao fato de o Centro apresentar uma riqueza e

complexidade nas quais a cultura se constitui em moeda de diversidade e serve a

diferentes usos. Parece existir uma conscientização de que o uso da cultura atende

a uma finalidade maior: a de preservar o que se tem de tradição, apropriando-se

dos efeitos interculturais, mas não de forma ingênua, ou seja, no Centro Cultural, o

uso da cultura é feito de modo extremamente capitalista, principalmente por ser

Nilcemar, uma gestora com visão de mercado.

Apesar da circulação global, ou talvez por causa dela, emergiu uma diferença local com administração e investimento transnacional. Isto não significa que os efeitos dessa cultura transnacional crescente - evidente nas indústrias do entretenimento e na assim chamada sociedade civil globalizada das ONGs - sejam homogeneizados (Yúdice, 2004, p.17).

Em 2007, visitei o Centro Cultural Cartola ainda como aluna-ouvinte. Na

ocasião, além de tomar conhecimento das pesquisas que estavam sendo

realizadas, fui informada de que a vice-presidente, Nilcemar, encontrava-se em

dificuldades com a equipe administrativa, devido ao vertiginoso crescimento do

Centro.

Nessa perspectiva da não homogeneização, o Centro prioriza a diferença ao

empenhar-se em fazer seus frequentadores serem reconhecidos dentre os

inúmeros projetos de cunho social existentes no estado e no país.

Não é por acaso que o Centro Cultural galgou, em um curto espaço de

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tempo, o status de pontão de cultura, eleito pelo Ministério da Cultura. Nilcemar

sabe trabalhar e utilizar o poder da mídia; contudo, parece instalar-se ali um

paradoxo: mesmo que o Centro Cultural se utilize das estruturas capitalistas para

atingir seus fins, procura não se afinar com a visão modelizante das estruturas

hegemônicas capitalistas. A cultura no Centro Cultural parece produzir outros

modos de agenciamentos, favorecendo a reflexão dos sujeitos para que

desenvolvam a responsabilidade e o senso crítico, num aprendizado de distinguir o

poder que a cultura tem, tanto em termos do local quanto do supranacional.

O Centro, na figura de Nilcemar, utiliza diferentes estratégias que conjuguem

diversos interesses sociopolítico-econômicos com os investimentos transnacionais.

Como alerta Yúdice, ―emergiu uma nova divisão internacional de trabalho cultural

que imbrica a diferença local com administração e investimentos transnacionais‖

(2004, p.15). Exemplo mais nítido dessa afirmação são as inúmeras visitas de

comitivas estrangeiras que passam pelo Centro – a última foi da China, que veio

conhecer os projetos socioculturais, acompanhada de outra comitiva, composta

pelo Governador Sérgio Cabral e seus assessores. O Centro Cultural traz

visibilidade, e Nilcemar sabe usufruir desse jogo político: ―É dando que se recebe‖

– diz sem subterfúgios.

Nosso interesse não se restringiu a verificar a importância das ações

socioculturais, mas também destacar como essas ações saíam do papel-intenção,

transformando-se em espaços de construção de subjetividades.

Dito de outro modo, é preciso que o trabalho das equipes passe

despercebido por aqueles que frequentam o Centro, tanto para aqueles que

usufruem dos projetos, quanto para os que ali vão por diferentes motivos. A rede

administrativa só fica em evidência quando alguma coisa não funciona, de modo a

indicar que o trabalho não está dando conta das demandas que fazem dos projetos

realidade.

A visibilidade dos gestores culturais, proposta neste estudo, não visava

problematizar apenas a formação de mão-de-obra – especializada ou não – para

atuar nesse novo campo de trabalho, em função da visibilidade que a cultura hoje

alcança na sociedade. O propósito também era o de levar a pensar nos efeitos de

uma formação que não contemple a transcendência da cultura e que privilegie tão

somente sua utilização como recurso com valor instrumental, tendo em vista a

responsabilidade daqueles que se propõem a ser formadores de cidadãos críticos.

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O Centro Cultural apresenta uma particularidade: todo trabalhador que se

candidata ao cargo de gestor cultural deverá realizar suas atividades não só

pautado numa qualificação específica, mas em competências múltiplas, porque,

além de realizar as tarefas para as quais está habilitado, deverá dar conta de

trabalhos coletivos nas equipes de projeto, cujas tarefas não são prescritas, uma

vez que se instauram coletivamente em torno de um objetivo comum, geralmente

envolvendo questões de verbas específicas e prazos apertados.

O acúmulo de tarefas não previstas no escopo do cargo de um gestor

acarreta uma descontinuidade na rotina de trabalho e, em consequência, correria,

tensão, desconhecimento de procedimentos, entre outros fatores, o que gera um

clima de instabilidade constante na instituição e o desencadeamento de inúmeras

dificuldades com e entre as equipes responsáveis.

Certamente, essas atividades emergentes seriam prescritas se estivessem

relacionadas a um trabalho com escopo predefinido, como nas macro ou micro

organizações do setor estatal (primeiro setor) ou privado (segundo setor), onde as

atividades são contínuas; entretanto, é preciso considerar que se trata de uma

atividade relativamente nova: a gestão da cultura.

Trabalhar em sistema de ONGs (terceiro setor) significa ter de lidar com um

trabalho não sistematizado, que encerra uma instabilidade emocional. Nesse tipo

de instituição, o trabalho é estruturado por projetos; ―é matar um leão a cada dia‖,

como dizem os funcionários. Não se trata de falta de previsibilidade ou de

organização; o que ocorre, muitas vezes, é a falta de estabilidade gerada pela

inconstância da política governamental, instalando uma distância perigosa entre o

tempo de aprovação de um projeto pelas instâncias governamentais/privadas e o

tempo praticamente indefinido de transformação das intenções ali descritas em

ações socioculturais.

Um parêntese se faz necessário: o Centro Cultural Cartola, como todas as

organizações sem fins lucrativos e não governamentais (ONGs), tem como objetivo

gerar serviços de caráter social e público, adotando personalidade jurídica

adequada para seu fim. Seus recursos provêm de doações de todos os setores da

nação, tanto do particular (constituída de doações da própria população) e do

Segundo Setor (empresariais com fins econômicos), e os do Primeiro Setor

(Estado), cujos recursos são repassados por meio de convênios.

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A consequência mais ampla das implicações de todo esse processo

desemboca no trabalho dos gestores culturais, que, direta e indiretamente,

participam da angústia de não saberem o que será exigido às equipes de projeto e

quando serão solicitados a executarem tarefas para as quais não se sentem

preparados.

Por exemplo: o projeto ―Memórias do samba‖, desenvolvido ao longo de

2009, realizado aos sábados – horário extra na carga de trabalho de cada gestor,

sem a remuneraçao correspondente –, mobilizou inúmeros procedimentos e o

intercâmbio entre várias pessoas de outras instâncias do campo social:

autoridades, personalidades do samba, repórteres.

O projeto estava previsto, embora não de forma sistematizada, em função

da liberação de recursos, ou seja, quando foi liberada a verba, a atividade

permanecia no papel, com previsão virtual, e teve de ser imediatamente executada,

em detrimento de todas as outras já acumuladas da gestão do próprio Centro. Isso

redundou num desdobramento infinito de tarefas, executadas por quem se

dispusesse, mesmo sem a devida qualificaçao. Mais uma vez, o que estava

prescrito não era compatível com a realidade operacional da instituição. A questão

que se colocava para todos era a de sempre: alguém tem que fazer, mesmo sem

saber como, mas tem que fazer.

A alienação tomava conta das equipes administrativas, no que diz respeito à

torção sobre o sentido do trabalho, tal como observa Antunes:

A completa subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor de troca – no

interesse de auto-realização expansiva do capital – tem sido o traço mais notável do sistema

de capital desde sua origem [...], ou seja, para converter a produção do capital em propósito

da humanidade era preciso separar valor de uso e valor de troca, subordinando o primeiro ao

segundo [...] expandir constantemente o valor de troca, ao qual todos os demais - desde as

mais básicas e mais intimas necessidades dos indivíduos até as mais variadas atividades de

produção, materiais e culturais, - devem estar estritamente subordinados (Antunes, 2000,

p.21).

Nesse momento, nossa experiência cumulativa de trabalho – adquirida

anteriormente junto a outros grupos que desenvolvem atividades relacionadas à

cultura em nos segmentos de teatro e música – permitiu lançar mão de recursos

respaldados no conhecimento acadêmico, a fim de realizar o trabalho de

investigação, intervenção e análise no Centro Cultural Cartola, a que nos

propusemos. Transitar e recortar pontos conceituais de diferentes campos de saber

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(institucionalismo, sociologia, antropologia, clínica da atividade) só foi possível

porque nossa prática se sustenta, primordialmente, nos pressupostos da teoria

psicanalítica e na experiência clínica.

A psicanálise privilegia o discurso do sujeito desejante. Com essa

compreensão, foi possível transitar entre os papéis de consultora organizacional e

de pesquisadora, ou seja, trabalhar com o objetivo de provocar uma reflexão

crítica, e talvez menos alienante, do trabalhador com relação ao seu próprio

trabalho, principalmente com os que se propõem ser gestores de cultura, cuja

função básica é formar cidadãos com identidades fortalecidas, capazes de

encontrar outras saídas para sua vulnerabilidade social.

Desse modo, a psicanálise emoldurou todo o percurso desta investigação,

porque nenhuma outra teoria ofereceu, por si só, conceitos que abrangessem os

efeitos da globalização na contemporaneidade.

A pós-modernidade e seus conceitos característicos influenciados pela ruína das representações mal afetaram os conceitos de neurose ou das concepções da personalidade, em suas estruturas conceituais, tais como complexo de Édipo ou a castração. O que mudou nestes tempos de pós-modernidade não foi à teoria psicanalítica ou a compreensão da mesma, mas, sobretudo, seus efeitos na clínica (Andrade, 2003, p.62).

A não-sistematização dos processos de trabalho nesse segmento levam os

gestores culturais a concentrarem seus recursos mais na visibilidade midiática dos

projetos/assistências do que no esforço de estarem imbuídos em gerar uma

regulação das atividades ocupacionais, cujo valor venha a gerar massa crítica de

uma micropolítica que dialogue a respeito das deficiências do Estado. Adverte

Schwartz sobre a ―onguização‖ da cultura:

Esta forma de relação de trabalho torna-se muito complexa, fica cada vez mais fluida. Tem-se não somente contratos de duração determinada, como também toda uma série de fases intermediárias que faz com que trabalhar não se formate mais num quadro único: nunca houve um formato único, mas hoje ainda menos que antes. Finalmente, não se sabe mais muito bem o que é trabalhar no momento atual; isto não acontece sem problemas (Schwartz, 2007, p.25).

Ao longo do percurso, uma pergunta permanecia: o que é a “causa Cartola”?

Significante utilizado à revelia por quase todos que são indagados a respeito do

motivo de sua vinda para o Centro Cultural, era um encobrimento utilizado para

nomear o inominável de cada um, seu desejo.

Só após um tempo de elaboração, foi possível perceber que a causa é a

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causa de cada sujeito, que, um a um, produzia-se em uma série que transmitia em

sua cadeia algo do traço de uma identificação com Cartola e com sua causa,

confundida como uma significação única para todos.

Instauração de Nova Demanda

Respondida a pergunta fundamental, nosso trabalho parecia ter cumprido

com seu objetivo no que diz respeito à demanda ―problemas com a equipe

administrativa‖. Contudo, um fato marcante veio instalar outra questão tão ou mais

importante que a primeira.

Durante um evento programado pelo Centro Cultural, foi exibido, para as

crianças e os jovens, o filme ―Orquestra dos meninos‖, com direção de Paulo

Thiago, que trata da história do sequestro, em janeiro de 1995, de um integrante de

treze anos da Orquestra Sinfônica do Agreste da pequena cidade de São Caetano

(Pernambuco). O principal suspeito é o criador da orquestra, o maestro Mozart

Vieira (interpretado pelo ator Murilo Rosa), o que coloca o trabalho do músico em

risco.

Em determinada sequência do filme, deparei com o riso das crianças que

assistiam a uma cena na qual um jovem é estuprado e jogado no lixo. Em seguida,

o mesmo jovem tentava levantar-se, ainda de forma cambaleante – fato que

suscitou na plateia o riso solto e extremamente estridente e causou em mim algo

que não saberia nomear naquele momento, quando tive de lidar com todo arsenal

subjetivo de análise e percurso de vida para repensar o já vivido, procurando dar

um sentido ao que não tem sentido.

Nessa etapa, eu pensava em trabalhar apenas com as crianças da

orquestra. Fiquei tão impactada com o riso deles, que, em seguida, programei um

encontro, nomeado de ―Escola de pais‖, que evoluiu para ―Afinando as relações

familiares‖. São palestras e encontros destinados aos familiares, onde, uma vez por

mês, desenvolvo uma atividade a partir do levantamento de temas de interesse.

Na primeira ―Escola de pais‖, passei o mesmo filme para os pais. Só havia

um pai, todos os demais responsáveis eram mulheres: mães, avós, madrinhas,

madrastas. Para minha surpresa, quase todas choraram na mesma cena na qual o

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menino é estuprado – reação que se opunha à das crianças. Nesse intervalo entre

o que as crianças expressaram e a reação das mães é que vejo um trabalho

belíssimo futuro.

O segundo encontro, sobre ―a inteligência se constrói?‖, já aconteceu e,

mais uma vez, só um pai compareceu, deixando às mulheres os outros lugares da

plateia.

A partir daí, percebi que iniciativas como a do Centro Cultural Cartola são

necessárias e, apesar das implicações econômicas e políticas em jogo, podem

constituir-se em um lugar que estabeleça a esperança de uma saída melhor do que

o riso como defesa.

O trabalho junto ao campo Centro Cultural, em última análise, foi além de

iluminar o trabalho de bastidores e, consequentemente, proporcionar visibilidade

aos trabalhadores envolvidos com promoção sociocultural. Possibilitou também

trazer para a superfície o discurso desses sujeitos que, como esclareço no capítulo

4, possuem agora o espaço ―Afinando as emoções‖: espaço de atendimento

clínico, com hora marcada e aberto a todos aqueles – crianças, jovens,

funcionários ou pessoas da comunidade – que queiram chegar até nós.

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CAPÍTULO 4 – METODOLOGIA HÍBRIDA E A CAUSA

CARTOLA

4.1 Delimitação do método

A metodologia deve traduzir a forma como foi conduzida uma pesquisa a

partir das escolhas dos diferentes instrumentos utilizados no processo de

investigação. Do mesmo modo que um texto reflete a singularidade de seu escritor,

a escolha metodológica deve traduzir, por meio de técnicas e instrumentos, o estilo

singular do pesquisador.

De forma análoga, a fotografia da imagem que aparece na lente do

caleidoscópio, após vários giros, reflete uma escolha de imagem daquele que vê,

isto é, a imagem plasmada na fotografia traduz algo de singular do sujeito que vê e

escolhe uma dentre infinitas possibilidades de imagens que um caleidoscópio

oferece.

Dessa forma, não foi por ―acaso‖ a opção aqui feita sobre o uso de

diferentes instrumentos e métodos, recortados de aportes teóricos variados, para

compor a metodologia adotada, cujo aporte era fazer revelar a ―causa‖ Cartola.

Tal ousadia implica riscos; contudo, eles foram calculados a partir das

indicações de alguns autores, cujas práticas nos incentivaram a construir uma

metodologia híbrida, no sentido de troca de informações entre teóricos de

diferentes áreas. Isso só foi possível por comungarmos, em alguns pontos, com o

movimento institucionalista preconizado por Lourau (1993) e Baremblit (1994), que

defendem a impossibilidade da neutralidade axiológica do pesquisador e o não-

isolamento entre o ato de pesquisar e o momento em que a pesquisa acontece na

construção do conhecimento.

Além disso, as indicações de Bourdier alertam para o fato de que a

construção de uma pesquisa e de seu objeto é coisa demasiado séria e difícil, e

não se deve tomar a liberdade de confundir rigidez com rigor metodológico. Para

ele (ibidem), o pesquisador não deve privar-se deste ou daquele recurso entre os

vários que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais das

disciplinas.

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A construção do objeto – pelo menos na minha experiência de investigador – não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de ato inaugural, e o programa de observações e análises por meio do qual a operação se efetua não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridas por o que se chama o ofício, quer dizer esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas [...] Esta atenção aos pormenores de procedimento da pesquisa,cuja dimensão propriamente social- [...] não é a menos importante, poderá por-vos de prevenção contra o feticismo dos conceitos e da ―teoria‖, que nasce da propensão para considerar os instrumentos ―teóricos‖, habitus, campo, capital, etc., em si mesmos, em vez de os fazer funcionar, de os pôr em ação (Bourdier, 2002, p.27).

Essa explicação suscinta ancora nossa escolha de propor uma metodologia

que nasceu das necessidades que emergiam das observações em campo, as quais

não encontraram aporte metodológico predefinido em condições de circunscrever

as etapas da pesquisa. Justamente por isso, pelo fato de a pesquisa se dar em

planos diferentes – observação, análise e intervenção –, cujas temáticas se

sobrepõem sem ser excludentes, é que adotamos essa metodologia híbrida.

Portanto, ousou-se conciliar os conceitos de campo, de habitus e de socius,

de Bourdier (2002), com os conceitos de intervenção, instituição, instituído, campo

de análise e intervenção da teoria institucionalista, utilizados por Lourau (1993) e

Baremblitt (1994). O recorte desses conceitos do seus campos teóricos originais,

não teve outra finalidade a não ser a de auxiliar na propedêutica da posição do

pesquisador no campo investigado.

Em contrapartida, eles não contemplavam a discussão sobre análise do

trabalho sob o viés da subjetividade do trabalhador, de maneira a não subsidiar

satisfatoriamente nossa tarefa de análise e intervenção junto ao corpo de

funcionários instituídos em gestores culturais.

Qualquer trabalho realizado põe em causa a subjetividade. Além disso, é fundamental afirmar que o trabalho é um fator constitutivo do ser humano, realizado no cotidiano, fator essencial de equilíbrio, de saúde mental, como também de doença, sendo suas repercussões transformadas em acesso social e econômico (Andrade, 2003, p.105).

Mesmo assim, segundo Andrade (2003), com a subjetividade em relevo

contemplada em qualquer trabalho, faltava uma abordagem que desse destaque a

pontos ainda mais especificos quanto ao trabalho dos gestores culturais que se

reiventam para dar conta das impossibilidades do cotidiano do terceiro setor, como

o Centro Cultural.

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Como então tratar metodologicamente impasses impostos pelo trabalho se

as teorias privilegiam muito mais a subjetividade do grupo do que a singularidade

do sujeito?

Por isso, foi necessário recorrer a outras formas de abordagem teórica e

metodológica; daí a opção por outras teorias que melhor circunscrevesse alguns

desses pontos tão especificos a respeito do trabalho desses gestores, a saber:

psicopatologia do trabalho, descrita na teoria clássica de Dejours (1992), ergologia,

defendida por Schwartz & Durrier (2007) e Clínica da atividade que tem Yves Clot

(2006) como principal autor. Cabe esclarecer que a escolha destas três

abordagens subsequentes a delimitação oferecida por Boudieur e o

institucionalismo, foi necessária poque se tratam de aportes teoricos sobre a

análise do trabalho.

As abordagens supracitadas, embora sejam herdeiras da tradição francesa

sobre análise do trabalho e tenham a mesma compreensão de que ―a análise do

trabalho visa sempre, de todo modo, compreender para transformar‖ (Clot, 2006,

p.11), cada uma destaca pontos especificos em seu escopo, não contemplados

pelas outras abordagens em seu conjunto. ―É necessário falar de várias tradições,

cada corrente teórica merece ser compreendida, testada em relação as outras,

avaliada. [...] Defendemos uma renovação teórica metodológica da psicologia do

trabalho‖ (Idem, ibidem, p.13).

Mais uma vez, nosso estudo deparava com o impasse de recortar alguns

elementos e não outros de uma mesma abordagem; cada recorte realizado visava

a subsidiar a analise e o ato de intevenção em campo de investigação tão

complexo, como o Centro Cultural.

Nosso caleidoscópio girava a todo instante e, desse modo, impunha-se

sempre uma nova interpretação do contexto, da imagem formada, uma nova

leitura que se delineava em processo de mutação da ação e das relações

intersubjetivas em jogo. Aqui poder-se-ia oferecer exemplificação de conceitos

especificos de cada abordagem, aplicados em situações também especificas, isto

é, quando se percebia que a atividade gerava alienação do gestor em relação ao

processo do trabalho no qual ele responsabilizava o outro por seu infortúnio, ou

adoecimento, surgia a necessidade de lançar-se mão dos conceitos e da análise

preconizada por Dejours e não da abordagem defendida pela clinica da atividade

de Clot.

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Em outro momento, quando deparávamos com a angústia do grupo frente a

uma injustiça gerecial, ou rivalidade do grupo para com um membro do mesmo

grupo, era necessária a utilização de conceitos da clinica da atividade e não da

psicopatologia ou ergologia, porque naquela intervenção uma e não outra e nem

toda abordagem iria ser adequada, justa a leitura a respeito do fato em si, exigindo

o fusionamento de pontos especificos de abordangens metodologicas distintas.

Essa discussão parece simples, mas fusionar metodologias requer cuidado

especial. O rigor foi extremo, principalmente para não transformar os gestores em

peças de manipulação, que se articulavam a montar um corpo de acordo com a

roupa já talhada, e não ao contrário. O que se deseja enfatizar é que, só depois de

intervir no calor dos acontecimentos, se constituia a reflexão necessária à feitura do

texto.

Qual ponto conceitual sustentou aquela prática de intervenção naquele

momento, já que as fontes eram vastas? O método de determinada abordagem de

análise havia sido aplicado naturalmente, como suporte para o ato de intervenção,

mas nem sempre esta mesma abordagem subsidiava posterior leitura e análise, e

assim por diante...

Resumindo, para fins de clareza teórica, alguns conceitos fundamentais

serão enumerados, a saber:

- Análise Institucional, caracterizada pelo objetivo fundamental de propiciar,

apoiar, deflagrar, nas comunidades, nos coletivos, nos conjuntos das pessoas,

processos de autoanálise e processos de autogestão (Baremblitt, 1994, p.14).

- Psicopatologia do Trabalho, baseada no estudo da posição dos sujeitos na

relação do trabalho e, mais precisamente, o espaço possível do sujeito utilizar-se

do trabalho como ―ressonância metafórica‖ na cena da angústia e do desejo

(Dejours, 1992, p. 158).

- Posição do pesquisador em relação ao campo e ao modo investigativo,

marcada pela distinção entre objetivação participante e observação participante,

cabendo a cada autor, enquanto ocupa uma posição no espaço, isto é, em um

campo de forças, afirmar a distância diferencial constitutiva de sua posição,

entendida como vista a partir de um ponto (Bourdieu, 2002, p.51).

- Estudos Ergológicos e da Clínica da Atividade, voltados para a função

psicológica do trabalho, na medida em que o trabalho só preenche ―sua função

psicológica para o sujeito se lhe permite entrar num mundo social cujas regras

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sejam tais que ele possa ater-se a elas. Sem lei comum para dar-lhe um corpo

vivo, o trabalho deixa cada um de nós diante de si mesmo‖ (Clot, 2006, p. 125).

- Enfoque Psicanalítico sobre ―identificação, inconsciente, causa de desejo e

objeto a‖, tratado nos aportes teóricos discutidos ao longo da dissertação, onde

houve pontos de interseção que serviram de parâmetro ao trabalho no Centro

Cultural Cartola, lugar de grande complexidade por congregar aspectos culturais,

laborais, de afirmação de identidade cultural e socioeconômicos e políticos.

Portanto, com o fusionamento de procedimentos diversos, deu-se a inserção

no campo constituído pelo Centro Cultural Cartola, de modo a instaurar um trabalho

complexo que exigiu apuro a fim de dar conta do proposto e escrever o realizado

por meio da metodologia híbrida.

O acesso aos autores citados e a seus aportes teórico-metodológicos

ampliou, sobremaneira, o espectro de análise sobre as relações de trabalho e as

interrelações estabelecidas entre os gestores com seu campo laboral,

pricipalmente, após ser observada a descontinuidade na rotina de seus trabalhos e

a consequente exigência de competências não relacionadas com o cargo.

Neste trabalho, considera-se que nenhuma descrição de cargos pode dar

conta da multiplicidade de tarefas que uma atividade contempla. É necessário

repensar uma maneira mais adequada de prescrever as funções de um cargo para

que seu ocupante não se sinta incompetente quando não for capaz de executar

todas tarefas que lhe chegam.

Segundo Schwartz, a partir dos anos 80, a imagem do homem e sua

máquina tornou-se obsoleta, e as formas modernas de produção que exigem um

constante deslocamento do trabalho, no que diz respeito à mobilidade de ação.

Isso cria novas formas de competências e modifica muitas coisas, principalmente na composição social. É verdade que hoje já não se sabe mais muito bem o que é uma classe operária. É então fundamental levarmos em conta as dimensões dessas mudanças e aceitarmos a ideia de que as formas de atividade humana se deslocam; [...] é preciso reconhecer que ao mesmo tempo que o ―o trabalho se desloca‖, isto é, que não se para de inventar, há campos novos que aparecem. Por exemplo, algo que vai aparecer e que não existia antes são os grupos de projetos – essas atividades são ligadas as novas maneiras de trabalhar e produzir; [...] estabelecem um certo paradoxo, porque exigem mais iniciativas e, ao mesmo tempo, há um aumento de procedimentos a serem seguidos (Schwartz, 2007, p.28).

Trazer essa discussão para o campo de análise e intervenção equivale dizer

que, em nome da competência, o gestor cultural, em todos os níveis hierárquicos,

deve ser multifuncional e, ao mesmo tempo em que tem de executar inúmeras

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tarefas definidas pelo cargo, deve também dispor de tempo e de habilidade para

atuar em outras diferentes frentes de trabalho. Em outras palavras: apesar de o

gestor cultural ser designado a realizar determinadas tarefas prescritas, também

deverá estar apto a desempenhar outras, dependendo das necessidades

emergentes, paralelas a sua ocupação principal.

O cargo de secretária dentro do Centro Cultura exemplifica bem tal modelo:

Está prescrito que o gestor que ocupar esse posto deve realizar todas as tarefas

relacionadas ao atendimento ao público interno e externo. A ocupação vem

acompanhada por uma lista de tarefas pertinentes ao cargo: atender telefonemas,

controlar a agenda de Nilcemar, preparar auditório etc., exigindo que o postulante

tenha as devidas habilidades necessárias para isso; contudo, o que se observa é

que cada gestor também precisa estar apto a executar outras tarefas que não

constam do escopo de seu cargo.

Essa questão é vivenciada de maneira a produzir ansiedade. Muitas vezes,

ao final do dia, tem-se a sensação de trabalho acumulado – sentimento que, longe

de ser experenciado na esfera individual, é generalizado no cotidiano das

atividades laborais, que visam a transformar intenções em ações.

Tal constatação, entre tantas outras, foi fundamental para pensar numa

intervenção que fosse capaz de gerar outros sentidos para o trabalho coletivo e

individual junto à equipe de projetos. Também reforçou minha busca por uma

metodologia que contemplasse roteiros de intervenção, como o de Baremblitt

(1994) e o de Dejours (1992), que pudessem dar conta de oferecer aos gestores

culturais os meios de eles se tornarem capazes de responder com eficiência aos

problemas encontrados e não apenas de implementar uma adaptação ao instituído.

Foram escolhidos os princípios da pesquisa–participativa/intervenção por se

acreditar que, nessa abordagem, a metodologia híbrida poderia ser construída a

partir da contextualização da prática da intervenção. Mesmo que tenhamos optado

pela intervenção conceituada pelas correntes teóricas já citadas anteriormente, a

definição de Dubost corrobora os propósitos desta pesquisa, ao pôr em ação os

conceitos instituídos e operacionalizados no campo de investigação.

Diferenciando-se da intervenção tal como é compreendida noutros domínios da vida social (política, econômica, militar, técnicas de gestão...), a intervenção psicossociológica não se traduz, portanto, por meio de um ato de autoridade ou de peritos (proposta, conselho, sugestão...), apoiando-se num diagnóstico ou num poder institucional. Consiste em estabelecer, com os atores, dispositivos (inquérito, discussões de grupo, análise de

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processos, observações...) que facilitem as trocas entre todos os atores envolvidos e um trabalho a partir das suas percepções, representações, sentimentos, por vezes desconhecidos ou reprimidos, ou simplesmente silenciados. Por outras palavras, trata-se de permitir que os atores compreendam melhor o significado das situações vividas e a parte que nelas ocupam (Dubost, 2005, p. 305).

Realizar uma intervenção em um campo de atividades complexas, as quais

exigem dos gestores a flexibilidade para atuarem simultaneamente em tarefas

prescritas e não prescritas, faz com que não seja possível a produção de uma

localização subjetiva profissional, identidade profissional, entendida aqui pela

função psicológica estruturante adivinda do trabalho. Como diz Clot: ―Sem lei

comum para dar-lhe um corpo vivo, o trabalho deixa cada um de nós diante de si

mesmo,[...] de modo que o trabalho só preenche sua função psicológica para o

sujeito[...] se lhe permite entrar num mundo social cujas regras sejam tais que ele

possa ater-se a elas‖ (2006, p.19).

Em outras palavras, como se estrutura a identidade cultural dos meninos e

meninas atendidos no Centro Cultural, quando as própias identidades dos gestores

que os atendem estão sempre sendo descentradas, exigindo contínua adaptação?

Com isso, posso afirmar que o Centro Cultural Cartola não cabe dentro de uma

malha teórica única, convergente. Foi no calor do entrecruzamento de relações

entre mim e os sujeitos ali escutados que a rede teórica foi sendo tecida,

justamente na urdidura da atividade, em dialética constante, operando, a cada

encontro, mudanças em todos os sujeitos envolvidos. Sem dúvida, o trabalho não

ocorreu de forma estanque e, tampouco, se formatou a nenhum modelo

metodológico prescrito e rígido; ao contrário, ficou evidente que a prática talhou a

teoria que lhe servisse de vestimenta, para que se pudesse dizer científica.

Algumas anotações do diário de campo, como a dialética das relações,

influenciaram na decisão de escolher de uma metodologia híbrida. Cabe destacar

a importância dos registros do diário de campo que, muitas vezes, operou ao modo

de um corte, separando o antes do depois, numa dimensão temporal na qual se

procurou registrar não só os relatos, mas o que desses relatos me autorizavam

avançar na proposta deste estudo.

Ontem, me surpreendi com as emoções que me invadiram quando estava entrevistando a mais nova colaboradora do Centro Cultural. Foi muito intenso, um turbilhão de pensamentos que, aos poucos, foram-se transformando em questionamentos: O que essa moça tão jovem está dizendo? Que sentimento é esse que as pessoas daqui tentam expressar em suas falas? Será que serei capaz de interpretar e, de fato, conseguirei escutá-las? Algo da ordem do intangível parece inundar o ambiente laboral do Centro. Um efeito, fenômeno que

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acomete, isso mesmo, acomete as pessoas e elas parecem deixar de ser elas mesmas para ocuparem um lugar já determinado na cena, ou melhor, em outra cena: Freud fala da outra cena quando se refere ao inconsciente. Seria esse o segundo tempo do recalque, ou melhor, o retorno do recalcado ou o tempo compreender? Parece ser o fim de um tempo de trabalho – entrevistas com os colaboradores do Centro Cultural Cartola – e início de um segundo tempo de trabalho - transposição da experiência de campo em escrita acadêmica. Creio que aqui se contextualiza a escolha da metodologia, pesquisa-atividade/intervenção, pois parece que a experiência de observador participante seja realmente o mais próximo possível do relato das tensões vividas nos encontros com todos aqueles que se dispuseram a colaborar com a pesquisa do fazer próprio dos gestores do Centro Cultural Cartola (Diário de campo, 10/09/09).

A prática da pesquisa escreveu seu próprio percurso metodológico dentro da

concepção da pesquisa-participativa/intervenção, por estar disponível à troca de

informações entre autores.

Finalmente, se a pesquisa se fez concomitantemente à descoberta da

metodologia, a consequência daí decorrente foi a configuração da ―causa Cartola‖,

tópico a seguir.

4.2 Causa Cartola

Existem certos homens que não contam com a admiração

de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em

atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e

aos ideais das multidões (Freud, 1929, p.81).

Em estudo realizado à época da fundação do Centro Cultural Cartola,

Cerqueira (2006) propôs a análise antropológica do sentido que as palavras tomam

em determinados ambientes, para, no caso, configurar as relações na comunidade

da Mangueira e, consequentemente, o Centro Cultural Cartola. A análise que as

palavras e os discursos tomam no trabalho se deu sob o ponto de vista da escuta

de um antropólogo. Por ser um registro do ato de fundação, a autora esclarece:

―Meu trabalho de campo consistiu em acompanhar durante quinze meses [...] parte

do processo de criação do Centro Cultural Cartola‖ (Idem, p.11).

No presente trabalho, o estudo de Cerqueira (2006) foi utilizado sob a luz da

psicanálise, base conceitual para análise do campo investigado o Centro Cultural

Cartola, embora advertidos de que:

A psicanálise não pretende empreender a leitura do indivíduo, mas pensar o sujeito em sua inscrição no campo simbólico e em sua imersão no universo das intensidades. A psicanálise procura, enfim, pensar o sujeito singular em campo estritamente intersubjetivo, no qual ele é permeado pelos valores simbólicos que o transcendem e pelas forças pulsionais que o impactam (Birman, 2007, p. 295).

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Ainda que a psicanálise seja o principal referencial teórico aqui tomado,

apoiamo-nos também nos estudos sobre cultura que contemplam a visão proposta

por Stuart Hall (2000), na qual o sujeito do Iluminismo – visto como indivíduo

totalmente centrado, unificado e possuidor de uma identidade fixa e estável – foi

deslocado, descentrado de si mesmo, resultando num sujeito pós-moderno com

identidades abertas, contraditórias e fragmentadas.

O sujeito pós-moderno não conta mais com uma identidade idêntica a ele

mesmo, como no Iluminismo, nem, tampouco, com a concepção sociológica de

identidade como interação entre o eu e a sociedade; ao contrário, assume

identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. ―A identidade

torna-se uma concepção móvel‖, esclarece Hall (2000, p.13).

Não se trata de uma comparação entre os campos do saber da psicanálise e

o dos estudos culturais, propostos pelas diferentes correntes antropológicas e

sociológicas, mas, sim, de diferentes modos de análise de um mesmo contexto.

Considerando-se que tais campos ora se aproximam, ora distam dos aspectos

conceituais e analíticos, também não se trata de complementaridade, mas de

singularidades que podem estabelecer uma interlocução.

Cerqueira afirma:

Precisamente, o objetivo (da pesquisa de Cerqueira) é tratar, como noções nativas deste ambiente, certas palavras que também aparecem no centro do debate da teoria antropológica. Assim, foge-se da avaliação de que termos como ‗cultura‘, ‗patrimônio cultural‘, ‗identidade‘, ‗sociedade‘ e ‗comunidade‘ estariam sendo esvaziados de sentido, uma vez ultrapassada a fronteira da disciplina acadêmica (Cerqueira, 2006, p.7).

De forma semelhante a Cerqueira (2006), entendemos, em psicanálise, que

―a clínica não é o lugar onde confirmamos a teoria, a teoria cumpre a mesma

função que a rede para o equilibrista‖33. Tanto nos estudos culturais quanto em

outros campos de saber, que tomam como objeto o homem e suas relações

intersubjetivas, a observação sobre esse mesmo homem e suas relações é o ponto

de partida, para, só então, teorizar-se a respeito. E, quando de retorno ao campo

de trabalho, a teoria vem como referencial e nunca para tentar encapsular as

observações colhidas dentro dos conceitos já estabelecidos, fora do contexto do

acontecimento.

33

VOLNOVICH, J. C. Prefácio do livro O saber em jogo, de Alicia Fernandez (2001)

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O saber é intersubjetivo, o que não quer dizer que seja o saber de todos, nem que seja o saber do Outro, com A maiúsculo. [...] o Outro não é um sujeito, é um lugar no qual nos esforçamos, diz Aristóteles, por transferir o saber do sujeito. [...] O Outro é o depositário dos representantes representativos dessa suposição de saber, e é isso que chamamos de inconsciente, na medida em que o sujeito perdeu-se ele mesmo, nessa suposição de saber (Lacan, 1961, Seminário A Identificação, p.24).

O presente trabalho é uma leitura do sentido que as palavras tomam em

determinado contexto, emoldurado pela análise antropológica, sendo, sobretudo,

um trabalho que verifica os vários usos que as palavras citadas por Cerqueira

(cultura, patrimônio cultural, identidade, comunidade, sociedade e tradição

mangueirense) tomam no campo social. Embora ressaltando-as sob uma

concepção paraláxica, tratada na obra de Žižek (2008) como sendo a medida da

mudança de posição aparente de um objeto em relação a um segundo plano mais

distante, quando esse objeto é visto por ângulos diferentes. Esse fenômeno óptico,

relativamente simples, torna-se método e guia.

A paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que não podemos ver do primeiro ponto de vista (Žižek, 2008, p.47).

A utilização do recurso paraláxico serve aqui para estabelecer aproximações

e distanciamentos entre os dois olhares, antropólogo e psicanalista, olhando o

mesmo objeto: o Centro cultural Cartola.

Com isso, entende-se que não há simetria e nem superposição de uma

compreensão e outra. A escuta de um psicanalista no campo social pode

beneficiar-se com outro campo de saber, fazendo-o avançar em seu próprio campo

de pesquisa. Lançar mão do recurso paraláxico foi a tentativa de estabelecer uma

maneira análoga ao conceito tratado por Lacan quando lança mão do apólogo do

―experimento do vaso invertido‖ no sentido de ajuste de visão de um mesmo

fenômeno onde a ilusão é, ao contrário, o refinamento do experimento. ―Quanto

mais longe estiverem, mais a paralaxe agirá, e mais a ilusão será completa‖34

(Lacan, 1953, p. 95).

Olhares díspares sobre um mesmo fenômeno: discursos dos

trabalhadores/gestores, jovens e até mesmo os pesquisadores que passam pelo

34

LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud.

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Centro Cultural parecem contribuir não para dizer sobre o enquadre correto de uma

verdade, as palavras e conceitos, mas para favorecer uma construção coletiva, de

saberes que contem e recontem o jeito próprio singular de fazer de cada sujeito.

Essa observação, como todos os comentários desse trabalho, tem por

finalidade sempre produzir aproximações entre o fazer comunitário e o que isso

gera de bens para as pessoas, no caso os jovens inseridos nos projetos

socioculturais do Centro Cultural Cartola. Em Cerqueira (2006), o ―nome próprio

Cartola‖ tem significação maior que simplesmente apontar Angenor de Oliveira:

Cartola é a bandeira da Escola de Samba da Mangueira; personagem da Zona Norte (como São Jorge); patrimônio nacional; patrimônio cultural/tias e vovós; ancestral negro; avô; comunidade do passado; História; marca/logotipo; personagem perdedor/revolucionário. [...] Entre os componentes heterogêneos que compõem o ―objeto‖ Cartola, está sua música, que ora aparece na boca de Nilcemar, por ocasião de uma lembrança de infância, ora integra-se às máquinas da indústria cultural e os modos de produção de subjetividade que ela coloca em cena (Cerqueira, 2006, p.16).

A cartografia descrita por Guattari & Rolnik (1986), a qual serviu de base

para a construção do ―dispositivo Cartola‖ (Cerqueira, 2006), servirá também para o

estabelecimento da aproximação com a questão central desta pesquisa: a ―causa

Cartola‖. Essa nomeação serve para os diversos significantes que uma causa

sociocultural adquire ao ser pronunciada por todos os envolvidos, direta ou

indiretamente, ao trabalho realizado no Centro Cultural Cartola.

Lacan chama atenção para o fato de o debate sobre a causa não ser

gratuito, ―pois a causa não é, como também se diz do ser, engodo das formas de

discurso. Ela perpetua a razão que subordina o sujeito ao efeito do significante

(Lacan, 1964, p.853). A causa em psicanálise é uma causa não inscrita; o conceito

de causalidade implica a noção de um elo perdido, de uma descontinuidade. O

termo ―causa‖ utilizado aqui significa a construção de um discurso e não de um

saber sobre a causa, como inicialmente entendida por Freud nos primórdios da

psicanálise, como explica Calazans.

Fazer ciência significava buscar a causa dos fenômenos. Ciência era apenas a natural [...] Freud pensava situar o seu trabalho neste registro. A noção cientifica é matematizada; permite o surgimento do conceito moderno de causa em detrimento de seu sentido aristotélico. A causa só terá sentido em psicanálise [...] quando Freud escreve a Interpretação dos Sonhos, ele já sabe que o que interessa é aquilo que se refere à causa de desejo.

35

35

Revista virtual Cielo, http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-863X2007000100007&script=sci_arttext. Acesso em maio/2009.

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A partir da compreensão de que a causa é a causa de desejo, cabe

esclarecer uma analogia entre a causa analítica, inaugurada por Freud e

sustentada por Lacan, e a ―causa Cartola‖, nomeação da causa sociocultural

fundada sob um legado e sustentada pelo trabalho dos gestores culturais que

integram o Centro Cultural Cartola.

O crucial é garantir distinção elementar [...] o objeto de desejo é simplesmente o objeto desejado [...] o objeto causa do desejo, é aquilo que me faz desejar. Em geral, nem sequer nos damos conta de qual é o objeto causa de desejo – é necessária a psicanálise para descobrir, por exemplo, o que me faz desejar uma determinada mulher. Isso está nos moldes do que Freud já chamava de traço unário, (der einzige, Le trait unaire), sobre o qual Lacan desenvolveu posteriormente toda uma teoria, ou seja, um traço que desencadeia meu desejo pelo outro (Žižek, 2005, 140).

A denominação ―causa Cartola” é utilizada de maneira recorrente entre as

pessoas que integram o Centro Cultural, sempre que se referem ao que está na

genealogia de seus interesses pessoais. Isso permitiu realizar a analogia aos

deslizamentos metonímicos da causa quando esta é nomeada com diferentes

significantes: causa sociocultural, causa cultura, causa Nilcemar e outras...

Cartola cria uma causa que se perpetua para além dele, funda uma Escola

para a sustentação do samba, que se transforma metonimicamente em ações

socioculturais, assemelhando-se, nesse ponto, à origem da causa da psicanálise,

na qual Freud funda a Escola de Psicanálise (IPA) para sustentar a causa analítica.

Dito de outro modo, ―o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa significante

só faz explicar, aqui, a razão por que nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo‖

(Lacan, 1988, p.855).

Cartola também não é causa, mas seu legado o é. Do mesmo modo, Freud,

o fundador da psicanálise, não é causa. Os efeitos de seu ato fundante é que se

tornam uma causa, cuja sustentação depende do trabalho da comunidade analítica

nas diferentes escolas de psicanálise.

As causas de desejo de Freud e de Cartola estarão para sempre perdidas,

assim como outras são elos perdidos da causa fundante, tanto para eles quanto

para a humanidade. Entretanto, as reverberações dos atos fundantes persistem

como efeitos da causa.

Com a perspectiva de causa como causa de desejo, a ―causa Cartola”

tornou-se a causa de desejo para Cartola – inapreensível e objeto pequeno a. De

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maneira análoga, acontece o mesmo com todos os revestimentos significantes que

uma causa pode assumir simbolicamente no discurso dos gestores culturais e dos

demais que se apropriam dessa causa para externar os indícios de seus desejos

individuais, encarnados e nomeados de “causa Cartola”.

4.3 Cartola: marca de valor

Outro ponto articulador entre a causa de desejo e a “causa cartola” para

construção da Cartola-grafia diz respeito à retificação da escritura do nome próprio

de Agenor para Angenor, o Cartola. Fato significativo e emblemático em sua

história de vida, o lapso na escrita, formação do inconsciente.

(Freud) Quando estava empenhado em estudar a força das palavras em seu fracasso com relação à intenção do locutor em a psicopatologia da vida cotidiana (1901) e nas conferências introdutórias sobre psicanálise (1916), sublinhou que [...] toda palavra carrega em si uma intenção consciente; esta pode, no entanto, errar o alvo. Os atos falhos se apresentam sob forma de lapsos, falsa leitura, falsa audição, esquecimento. Trata-se de fato de um ato em que o corpo está em jogo [...] assinalam em primeiro lugar a revelação de um desejo inconsciente; ao mesmo tempo, atestam um inconsciente estruturado como uma linguagem (condensação, deslocamento, metáfora, metonímia) e podem, portanto, ser decifrados como uma mensagem. É por isso que Freud situa o ato falho como uma formação de compromisso entre o consciente e o recalcado. Isso quer dizer que o inconsciente se mostra frequentemente numa fratura, numa falha temporal, que marca o famoso ―isso fala‖ lacaniano (Kaufmann, 1996, p.55).

Cartola conta que, ao deparar com a prerrogativa da adoção36, pleiteada no

ano 1966, descobre que seu nome não era o até então conhecido ―Agenor de

Oliveira‖. Com a movimentação burocrática do ato de registro, ele descobre um

lapso da escrita na sua certidão de nascimento: seu nome não era Agenor e, sim,

Angenor de Oliveira, com uma letra a mais, a letra ―ene‖. Em depoimento a Mário

Cabral (1967), Cartola esclarece esse equívoco.

Me permite, eu queria que você repetisse o seu nome claramente. Tem uma pequena dúvida: Angenor de Oliveira. Angenor com ene? – Responde Cartola: Você está certo em fazer a repetição, porque eu, até, coisa de um ano atrás, eu assinava o meu nome como Agenor de Oliveira. Mas quando fui procurar uns papéis para adotar um garoto, estava lá Angenor. Enquanto isso dava um bolo, bota N, tira N, um zero a mais, um zero a menos (Depoimento Cartola, 1967, p.14).

36

Adoção: Ato jurídico que cria, entre duas pessoas, uma relação análoga, que resulta da paternidade e filiação legítima, mas, mais do que um ato jurídico, é um ato de amor. No caso de Cartola, foi uma escolha no sentido de reconhecimento por si mesmo da paternidade, como também o foi com os netos adotivos Nilcemar e Pedro, netos consanguíneos de D. Zica, mulher de Cartola.

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A partir do ato de adoção de um filho, que lhe confere jurídica e

simbolicamente o lugar de pai, é-lhe possibilitado reescrever seu nome. Cartola

redescobre seu nome pela escrita do nome próprio Angenor; distingue-se até

nomear-se como pai, pelo que é comum (o nome Agenor), pautado na

predominância do som sobre a escrita. Ele retifica essa marca que vem do campo

do Outro, Angenor e não Agenor. Justifica-se, assim, que a ―causa” Cartola não

está ligada à causa do sujeito Angenor, mas à importância da criação de uma

causa que se transmitirá a outras gerações – ponto nodal que se assemelha à

causa da psicanálise – que hoje é a causa do legado de Cartola, causa fundante do

Centro Cultural.

Neste trabalho, o nome Cartola não será considerado nome próprio e

dispositivo. Cartola é marca de valor, nome fantasia que parece ser efeito do

legado constituído em torno do ato de fundação da Escola de Samba. Em verdade,

Cartola é uma marca com valor de mercado que usa e é utilizado pela concepção

de cultura como valor.

A sociedade está estruturada com dois tipos de relações: as de força, correspondentes ao valor de uso e ao valor de troca; e [...] relações de sentido, que organizam a vida social, as relações de significação. O mundo das significações e de sentido constitui a cultura. Pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social (Canclini, 2005, p.41).

A obra de Angenor é alçada ao status de legado, por sua relevância

sociocultural. Legado que se produz nos efeitos verificados, em geral, pela

sociedade quando legitima a importância do ato de fundação da Escola de Samba

Estação Primeira de Mangueira, revivido, na atualidade, pelo trabalho social

construído por seus descentes afetivos no Centro Cultural. ―Cartola, sem nunca ter

tido filhos biológicos, foi avô exemplar, que o diga os netos Nilcemar e Pedro‖

(Silva & Filho, 2003, p.XVII), ou seja, seu legado também inclui ter sido adotado por

seus netos, apontando a importância dos laços estabelecidos que iam muito além

dos laços consanguíneos.

Cartola registrou apenas um menino com seu nome, esse fato é muito

relevante para compreendermos os pontos de sua vida, ou seja, as marcas de uma

vida singular.

O apelido Cartola, adotado por ele em função de seu reconhecimento entre

os amigos pelo gosto do uso de chapéu, objeto de ornamento e proteção que se

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transformou em uma distinção entre tantos Agenores de sua época (parece que ele

estava mesmo na vanguarda de seu tempo), criou uma marca de valor de

mercado: Cartola hoje é como apontado pela pesquisadora ―um objeto de valor‖

(Cerqueira, 2006, p.17).

Com a iniciativa de Cartola, o samba-enredo passa a ser signo de Escola

por promover a união dos diversos blocos que se juntaram em torno do propósito

comum de fortalecê-lo como expressão cultural. Com o samba Chega de Demanda

(1928), de sua autoria, é dado início a um percurso que não terá mais volta – tal

qual um processo analítico: o samba carioca passa a ser conhecido e reconhecido

mundialmente como uma representação da brasilidade, passando a ser uma das

faces da identidade nacional, tal a grandeza dos efeitos da obra de Cartola para o

Brasil.

Chega de demanda, chega! Com esse time temos que ganhar Somos a Estação Primeira Salve o Morro da Mangueira

A ―causa Cartola” está para além do poeta; sua obra parece cumprir uma

missão de criar e recriar cultura, do mesmo modo como fez Noel Rosa para o

próprio Cartola. A questão da causa parece trazer sob seu nome todos aqueles que

se destinam a transmitir o imanente da vida, que deve ser passada adiante, como

diz Cartola com Nuno Veloso em um dos versos escritos para homenagear aquele

que sempre o homenageou, Noel Rosa.

Candeia Vazia

Eu quisera esquecer o passado Eu quisera mas sou obrigado A lembrar o grande Noel Ainda resta a cadeira vazia Da escola de filosofia No bairro de Vila Isabel Professores trilham seu caminho Dentre eles destaco Martinho Mas nem todos, nenhum, nem ninguém, A você se chegou, Eu também agora prossigo, Esse grande trabalho, Não sei se o baralho, Deu trunfos demais pra você,

Nem cartas poucas para mim.

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A ―causa Cartola” parece trazer em sua ―cartola‖ os princípios imanentes da

propagação da cultura que se transmite para além daquele que a produz: ―A arte é

que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à fome, à vergonha‖ – diz Deleuze

(1990, p.58).

Nesse sentido, tanto o samba quanto seus compositores possuem

características imanentes que só existem se referidas às ações de seus criadores.

A música de Cartola pode ser considerada como o agalma37 da ―causa Cartola”,

causa de desejo a sustentar algo de uma transmissão entre dois atos de fundação:

da Escola de Samba e do Centro Cultural.

A característica do idealismo absoluto, para o qual nada existe fora do eu. Contudo, é evidente a analogia desse significado como Spinosa, para quem a ação de Deus é imanente porque não vai além de Deus. Nesse sentido, a imanência é a inclusão de toda realidade no eu [...] o conceito imanente como tudo que, fazendo parte de uma coisa, não subsiste fora dessa coisa. (Abbagnano, 2007, p.623).

Cartola, nada ambicioso, sem o saber, aposta na possibilidade da

transformação do interesse individual em um interesse em comum, vai enfrentar a

mais complexa das dificuldades do homem – o convívio em comum – nada mais do

que a terceira fonte do mal-estar na cultura: ―O sofrimento nos ameaça a partir de

três direções: de nosso próprio corpo, [...]; do mundo externo [...]; e, finalmente de

nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa

última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro‖ (Freud, 1929,

p.95).

Sem o saber que se sabe, Cartola iniciara um processo de reconhecimento do

samba em Patrimônio Imaterial do Brasil. Hoje, em torno de sua obra, se constitui

uma causa que parece trazer à tona o ato de fundação da Escola, cujo convívio

comum se inscreve nas diferentes causas singulares de cada sujeito que trabalha

pela ―causa Cartola”.

Pensar a ―causa Cartola” faz descortinar a grande questão que se inscreve

em torno de qual a causa de Angenor? O que levou esse homem a fundar uma

Escola? Tudo que seja dito a partir desse ato de fundação, da causa perdida será

eminentemente ficção. A ―causa Cartola”, significante que se reveste de vários

37

Agalma: Este termo grego - que pode ser traduzido por ornamento, tesouro, objeto de oferenda aos Deuses, ou de modo mais abstrato, valor – representa o ponto pivô da conceituação lacaniana do objeto causa de desejo, ―o objeto a‖ (Kaufmann, 1996, p.15).

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significados hoje é falada por todos desde os Diretores até os funcionários e

docentes do Centro Cultural Cartola.

O que se inscreve e se transmite a outras gerações? Pode-se pensar nesse

aspecto pelo viés da identificação, de onde cada sujeito da coletividade,

comunidade, extrai para si um traço, um traço que é comum e de diferença. A

identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de laço

emocional entre as pessoas. Freud (1921) afirma que o laço mútuo existente entre

os membros de um grupo é da natureza de uma identificação, baseada numa

importante qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa, suspeitando

que esta qualidade comum resida na natureza do laço com o líder.

Segundo Chernicharo (2008), no exame de dois grupos, o Exército e a

Igreja, Freud observa a existência de dois eixos estruturais: um eixo vertical, no

qual se organiza a relação dos membros do grupo com seu líder, e um eixo

horizontal, que representa a relação dos membros do grupo em si. Essas

observações mostram que o eixo vertical, o vínculo com o líder, é determinante em

relação ao eixo horizontal, que representa a relação entre os membros do grupo,

constituindo identificações tanto em nível horizontal - entre os membros do grupo -,

quanto vertical - dos colaboradores e o líder.

A identificação dos trabalhadores/gestores culturais com a “causa Cartola‖

faz com que se crie uma atmosfera de trabalho que os faz suportar as inúmeras

dificuldades que se apresentam no dia-a-dia. É então em torno dessa causa que

todos se ligam, sendo que a ligação de cada um, em particular, diz respeito ao que

dessa causa implica como causa de desejo, mas, é no resultado do grupo

constituído que vimos submergir o fenômeno sinérgico que os leva cotidianamente

a reinventar maneiras próprias de fazer os projetos sócio-culturais virarem

realidade. É o próprio Freud quem nos aponta como esse fenômeno motivacional

ocorre para que todos permaneçam juntos, apesar dos pesares do cotidiano

laboral, nos diz ele, no texto Psicologia de grupo e análise do eu:

Antes que os membros de uma multidão ocasional de pessoas possam constituir um grupo no sentido psicológico, uma condição tem de ser satisfeita: esses indivíduos devem ter algo em comum uns com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação emocional semelhante numa situação ou noutra [...] quanto mais alto o grau dessa homogeneidade mental, mais prontamente os indivíduos constituem um grupo psicológico e mais notáveis são as manifestações da mente grupal (Freud, 1921, p.109).

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Em busca de um trabalho sinérgico construído pelos gestores culturais é que

a ―causa Cartola” se torna a nosso ver o elemento pivô constitutivo da mente

grupal, cujo trabalho construído coletivamente se identifica com o objetivo social

comunitário de proporcionar outras saídas para aqueles assistidos pelos projetos

do Centro Cultural. O que quer dizer que o trabalho dos trabalhadores/gestores

culturais também implica a singularidade de cada um e a significação que essa

atividade toma para si, para o sujeito imerso nessa atividade laboral.

4.5 Traços de identidade

A certidão expedida pelo IPHAN (Anexo) inscreve, definitivamente, o samba

como um dos símbolos da identidade brasileira. Herança de origem negra, o samba

ganha status e seu valor cultural é reconhecido nacional e internacionalmente. O

samba, na atualidade, tem desempenhado papel fundamental para a visibilidade de

grande parte da população que, há pouco, era ―excluída‖ juntamente com sua

forma de expressão:

O samba contribui para a integração social das camadas mais pobres. Tornou-se um meio de expressão de anseios pessoais e sociais, um elemento fundamental da identidade nacional e uma ferramenta de coesão, ajudando a derrubar barreiras e eliminar preconceitos. Incentivar a prática do samba é também uma maneira de minimizar as diferenças sociais. [...] ―as matrizes referenciais do samba no Rio de Janeiro distingui-se de outros subgêneros de samba criados posteriormente e guardam relação direta com os padrões de sociabilidade de onde emergem. Há autoria individual, porém a performance é coletiva (IPHAN).

A entidade ―Cartola‖ sai da pessoa física para possibilitar em seu nome a

propagação do ritmo samba, sua figura contribui para que o samba ganhe o status

de símbolo nacional. Como diz Nilcemar, ―o samba é cultura de Cartola e dos

sambistas, como também o é cultura do Brasil‖.

Apesar de seu reconhecimento mundial, o samba afirma suas raízes. ―O

samba carioca se apresenta desde sua origem um elemento de expressão da

identidade cultural da população negra‖ – descreve o certificado do IPHAN. O

Centro Cultural Cartola resgata as matrizes do samba para fazer uso dele como

signo do trabalho de resgate de excluídos na modernidade.

O samba, símbolo cultural dos excluídos, foi elevado à identidade nacional.

Paradoxalmente, o mesmo samba, reconhecido e reverenciado, é novamente polo

―aglutina-dor‖ de novas formas de inclusão social, ou seja, abriga e é abrigado por

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uma instituição que surge para suprir as carências do Estado no suporte

sociopolítico-cultural a uma parcela da população que está à margem dessa

mesma sociedade.

O papel da cultura expandiu como nunca para as esferas política e econômica, ao mesmo tempo em que as noções convencionais de cultura se esvaziaram muito. [...] a cultura [samba] está sendo crescentemente dirigida como recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania (Yúdice, 2006, p.27).

O samba, como uma forma de expressão da cultura negra, estabeleceu-se

em uma fronteira construída entre arte e causa social; por um lado, forma de

expressão cultural dos negros e, por outro, uma solicitação de reconhecimento das

necessidades socioeconômicas dessa população.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ―o novo‖ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte [o samba] não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado, refigurando-o como um ―entre - lugar‖ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ―passado presente‖ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (Bhabha, 1998, p.27).

O que estaria para Cartola como traço de identificação ao pai e ao pai do

pai, que lhe permitiu avançar na diferença de seu dito como destino? Talvez algo

apreendido no intervalo construído em vida e pós-morte a partir do Bloco dos

Arrepiados, que deslizou para o Bloco dos Arengueiros e para Escola de Samba

Mangueira e retornando, no ato de fundação, a seus netos Paulo e Nilcemar, do

Centro Cultural Cartola.

Nesse ínterim que compreende a construção de sua obra, em torno de

seiscentas músicas, sendo que apenas duzentas foram recuperadas. “Faça-se um

cálculo das obras de Cartola de que se tem notícia, e depois se pode dobrar o

número que não se vai alcançar a quantidade exata‖ (Silva & Filho, 2003, p.288).

Cartola foi expulso de casa quando contava com 17 anos de idade. Seu pai

deixou um recado para ele: ―Vou-me embora deste morro, mas deixo uma aqui um

Oliveira para fazer vergonha‖ (Idem, ibidem, p. 51). Ou seja, é a ―Cartola-grafia‖

dos frutos da Oliveira, plantada por seu Sebastião, em 1925, no solo da Mangueira.

A posição que o sujeito toma frente a um dito parental tem consequências. A

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relação com sua mãe parece ter despertado grande ressentimento em seu pai,

afinal ele era o preferido dela.

Em depoimento a Ronaldo Bôscoli, Cartola confessou: ―Mas sejamos honestos. O micróbio do samba me foi injetado pelo velho. Eu era muito garoto quando saía com toda a família no Rancho dos Arrepiados. E com minha voz, que era boa, cheguei à ala do Satanás. Saía eu, papai, que tocava cavaquinho profissionalmente no bando, minha mãe e meus irmãos. A primeira vez que vesti uma fantasia. Sabe lá o que é isso? Minha mãe caprichava comigo. Eu era o primeiro homem da sua família. E, um dia, ouvi a velha dizendo pro papai que não adiantava chiar, eu era o seu filho querido. Parece bobagem, mas isso está marcado no meu peito até hoje (Silva e Filho, 2003, p. 32).

Cartola foi intimado por D. Zica a retomar seu contato com o pai Sebastião,

que no passado lhe havia expulsado de casa.

Cartola, domingo que vem, nós vamos visitar seu pai; você não deve ter mágoa dele, afinal foi bom ele te dizer aquelas palavras quando te expulsou. Você não gostava de sujeição. Aquilo fez você não querer dar mau passo, para não dar razão a ele. Aquelas palavras te protegeram de ser marginal. Vamos, meu nego (Zica apud Silva e Filho, ibidem, p. 208).

Com esse saber que não se sabe, D. Zica anteviu o que seu Sebastião mais

tarde veio a dizer: ―Sou o fundador do fundador‖ (Idem, ibidem, p.208). Com

orgulho, acompanhava à distância a obra construída pelo filho.

E o filho, poeta de genial lirismo ―do cotidiano‖, tinha consciência das

mudanças operadas pelo reconhecimento do samba como expressão cultural.

Como homem antes discriminado e mais tarde reconhecido exclusivamente pelo

talento, fez dos versos seu discurso de transformação. Tempos idos ou

contemporâneos? Pura identidade.

Tempos idos

Os tempos idos, nunca esquecidos, trazem saudades ao recordar É com tristeza que relembro coisas remotas que não vêm mais Uma escola na Praça Onze, testemunha ocular E perto dela uma balança onde os malandros iam sambar Depois aos poucos o nosso samba, sem sentirmos se aprimorou Pelos salões da sociedade sem cerimônia ele entrou Já não pertence mais à praça, já não é samba de terreiro Vitorioso, ele partiu para o estrangeiro E muito bem representado por inspiração de geniais artistas O nosso samba, humilde samba, foi de conquistas em conquistas Conseguiu penetrar no municipal, depois de percorrer todo o universo Com a mesma roupagem que saiu daqui Exibiu-se pra Duquesa de Ken no Itamarati.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Centro Cultural Cartola: realização de um sonho ou lugar utópico? A questão

aponta outra: o sonho já não seria ele mesmo o próprio território utópico? Essa

proposição surgiu no momento em que decidimos realizar o corte entre o antes e o

depois do desfile na Escola de Samba, no carnaval de 2010. Nosso trabalho havia

chegado ao fim e faltava transmitir a particularidade da investigação sob o viés das

emoções e das impressões recolhidas do universo em torno de Cartola e do Centro

destinado a defender sua suposta causa: o samba.

Na verdade, consideramos o Centro Cultural Cartola um lugar situado entre

a utopia e o sonho, uma vez que os sujeitos têm na esperança a mola propulsora

para a realização de seus projetos. A esperança, pois, funciona como dispositivo

capaz de sustentar a materialização das intenções, por um lado, e de dar suporte

às frustrações, por outro.

Com a instauração do espaço ―Afinando as emoções‖, percebemos que,

apesar de todas as implicações econômicas, sociopolíticas e culturais da Nação,

há algo acontecendo nesse espaço que faz diferença, em tempos globais de

indiferença e de caos social. No Centro Cultural verifica-se um trabalho que, de

algum modo, privilegia a singularidade.

Foram dois anos seguidos de investimento acadêmico e prática de escuta,

que, pela primeira vez, estão sendo aqui relatados, por valor de importância e não

de temporalidade cronológica.

Dessa forma, o relato de campo vem para finalizar uma etapa e propor uma

sequência a ela, ou seja, para chegar a expor a subjetividade inerente às relações

de trabalho – subjetividade daquele ambiente coletivo, que perpassa pela de cada

sujeito em si – foi preciso a coragem de sair do lugar de consultora e pesquisadora

e assumir o lugar de analista.

Dois tempos, dois percursos que desembocam em um, o ―antes‖ e o

―depois‖, tão marcados/marcantes para mim que se fizeram expressos num roteiro

(a seguir, em forma de relato), que mistura sentimentos, emoções, frustrações para

também juntar-se à palavra-chave que move os trabalhadores do Centro Cultural

Cartola: esperança.

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RELATO

Iniciei meu trabalho no Centro Cultural Cartola com entrevistas coletivas, a

fim de conhecer os gestores culturais e demais funcionários bem como estabelecer

com eles um laço transferencial que facilitasse nossas idas e vindas. Ficou, então,

estabelecida uma rotina de encontros semanais, individualizados, que, diga-se de

passagem, aconteceram de uma forma não muito sistemática, pela

descontinuidade nas atividades laborais: era muito comum chegar ao Centro e

encontrar ocupada a pessoa com quem tinha marcado um encontro.

A quantidade e a diversidade de afazeres pelos quais os funcionários do

Centro eram responsáveis, somadas à irregularidade de seus horários, resultaram

no surgimento de relativa dificuldade. Uma vez estabelecido o contrato, o próximo

passo era estruturar uma linha de trabalho que resultasse numa ação participativa

de intervenção. Assim, após agendar entrevistas com cada um dos funcionários do

Centro Cultural, havia mais um passo: estabelecer com os sujeitos uma estratégia

de confiança que perpassasse a autorização explicita, ou hierárquica, de Nilcemar.

Embora seja comum, quando um analista se introduz em um campo, gerar

resistências, houve surpreendente e relativa facilidade de se estabelecerem esses

laços.

A despeito disso, logo na primeira reunião com o grupo, Nilcemar foi bem

explícita:

Ela (referindo-se a mim) está aqui para nos ajudar a entender melhor o que não funciona e me passar os pontos em que devo melhorar. Por isso vocês podem falar com ela a respeito das coisas que não gostam em mim, ela vai me ajudar a melhorar. Eu já fiz análise quando me separei e foi um momento muito bom, em que eu me revi como pessoa. Agora ela está aqui para ajudar você, Jorge, a se organizar!

Nessa hora, todos riram; o que ela fez foi uma brincadeira com o Jorge,

referindo-se à sala que fora ocupada por ele, chamada de ―cafofo‖. Em seguida,

Nilcemar continuou seu discurso, enumerando os erros de cada um.

Lembro-me de todos reunidos em torno de uma grande mesa que havia no

telecentro. Naquele momento, fiquei interrogando-me sobre o que faria a partir de

então, já que fora nomeada relatora-confidente. Nessa função, minha tarefa

consistia em realizar entrevistas individuais na posição de psicóloga. Feitas as

entrevistas, a próxima tarefa era passar à Nilcemar um relatório com sugestões de

intervenções necessárias à resolução dos problemas.

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Como seria trabalhar e pesquisar, estando ao mesmo tempo na função de

relatora e de confidente? Como criar a proximidade necessária para fazer o

indivíduo falar livremente, sem suscitar que estava sendo avaliado? Como manter o

sigilo da entrevista e, simultaneamente, extrair daí algum elemento comum ao

trabalho de todos?

Cabe registrar a angústia que sentia nesse início: era o medo de nada poder

realizar, tendo em vista a dificuldade que há em desempenhar um papel com dupla

finalidade. Como respeitar a ética da escuta do sujeito, conciliando o papel do

pesquisador ao perfil de consultor organizacional?

O acompanhamento na Universidade com minha orientadora me foram de

muito auxílio. Nesses encontros, eu me escutava, como no processo analítico, e só

depois do ato é que encontrava sentido para o que estava fazendo, ao transformar

essas informações em interesse de relevância acadêmica.

Penso que determinada pesquisa encontra seu pesquisador e vice-versa.

Minha dupla função de escuta e de relato se apoia em minha prática profissional,

de modo que a escuta de psicólogo, decorrente da graduação, se recobriu com a

escuta de psicanalista decorrente de meu fazer clínico, minha formação e análise

pessoal. Já a posição de consultora organizacional, conquistada por meio de

diversos trabalhos com grupos, possibilitou-me transitar nesse campo novo.

Eu pensava que tudo que se referisse à Mangueira se resumia a uma

mesma dimensão de espaço sociocultural; não foi à-toa que levei um tempo para

entender a finalidade do Centro Cultural Cartola em termos de diferença com o

espaço da Escola de samba. Adentrar esse espaço simbólico era descortinar um

universo muito menos simbólico do que imaginário.

Ocorre-me a lembrança de um sonho dessa época. ―Encontrava-me fora do

Centro Cultural com alguns dos funcionários e, na conversa com eles, referia-me a

esse intervalo tempo-espacial entre o Centro e a Quadra, ocupada por uma

população que mora no prédio mais alto da região, que pertencia ao IBGE.

Recordo, com clareza de detalhes, a sensação de infinito não delimitado – o

espaço visto no sonho não era nem Centro Cultural, nem Escola de Samba, existia

uma descontinuidade entre eles e o restante da cidade.

Parece-me ser esse sonho a verdadeira expressão da falta de contorno de

minha pesquisa naquele momento: desejo de delimitar tais espaços dentro do

contexto do território verde e rosa. Só com certa distância do vivido é possível

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significar esse sonho: no instante em que escrevo, esse início está situado no

depois.

Perseguir essas marcações mnemônicas transformou-se em um arremedo

de técnica pautada na atenção flutuante, cujo fundamento é pôr em suspenso tudo

aquilo que a atenção habitualmente focaliza38 – recurso aqui utilizado para tentar,

por um lado, organizar os eventos em uma lógica e transformá-las, por outro, em

material inteligível do processo de construção de um saber sobre o investigado.

Nessa etapa da investigação (as entrevistas com cada um dos gestores), eu

defenderia que sabia exatamente o que estava realizando, com toda pretensão

científica daquele que encontra seu objeto de pesquisa e se encanta com ele.

Portanto, à época, estaria realizando o levantamento diagnóstico – etapa

prevista em todo arsenal teórico de que me havia municiado antes de ir a campo.

Não se trata de invalidar o pretendido e elaborado na proposta oferecida no projeto;

ao contrário, a estratégia de trabalho pautava-se na teoria, elemento indispensável,

quando procuramos dar sentido ao que não tem sentido em si.

Ocupar o espaço de pesquisador a partir do olhar científico faz com que se

validem as experiências anteriores e a necessidade de renovação da teoria

formulada pelos mestres. A recomendação no rigor científico, sem ser tributário da

concepção positivista da ciência verifica-se mesmo com esses percalços peculiares

da pesquisa empírica, de que, só no depois, momento de concluir, é possível

chegar-se a determinado ponto, no qual não se consegue mais distinguir se a

teoria foi aplicada ou se a prática é que escolheu essa ou aquela estrutura formal

de saber para se pautar, cuja afirmativa é de um vai e vem constante.

As entrevistas decorriam uma a uma, delineando o corpo funcional de

gestores do Centro Cultural. As entrevistas com Nilcemar também se iam

caracterizando em encontros instituídos, semanais, mas com horários cada vez

mais imprecisos, geralmente ao final das entrevistas com os funcionários –

encontros que chegavam a durar até três horas consecutivas. Lembro-me que,

assim que o laço transferencial foi instaurado, Nilcemar parecia relaxar com minha

presença; contava-me diversas histórias que tratavam desde assuntos particulares

a assuntos sobre sua visão a respeito de cultura, de samba, do percurso do negro,

de Cartola, de D. Zica e, não raro, eram entrevistas abertas, sem nenhum roteiro

38

Laplanche & Pontalis, 1992, p.40.

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prévio acordado, como uma livre associação, de tal forma que, às vezes, nem se

falava a respeito de assuntos relacionados ao Centro Cultural. Credita-se ao

aspecto da flexibilidade da escuta e da entrevista não estruturada a abertura

propiciada para o estabelecimento do laço transferencial com a proposta de

trabalho e, consequentemente liberdade de trânsito no campo, gerando

confiabilidade e respeito no grupo.

Esse tempo foi permeado com minhas visitas aos projetos, e lembro-me de

um fato tão marcante que nos levou a escrever a ―Cartola-Grafia‖ da vida de

Cartola: as crianças que entravam para a orquestra de violinos passavam por um

aprendizado sobre a vida de Cartola, o que ele representa para a cultura verde e

rosa, assim como para a cultura brasileira. Imaginei na ocasião: ser interrogada a

respeito da vida de Cartola por um visitante desavisado, que não soubesse que eu

não era do Centro Cultural. Imediatamente, percebi que, como as crianças, eu

também teria por obrigação conhecer um pouco de sua história. Novamente

destaco a pretensão de o pesquisador iniciante achar que já possuía o seu objeto

totalmente recortado no campo.

Consequentemente, ao me aprofundar no conhecimento da vida de Cartola,

e isso foi possível porque o Centro Cultural possui vasto material biográfico

acessível a quem desejar conhecer a vida e obra do sambista, algo se transformou:

o Centro Cultural deixou de ser apenas campo de trabalho para gestores culturais e

passou a ser um lugar simbólico que teve seu nascimento a partir de uma

necessidade não explicita sobre a missão do Centro, ou seja, não deixar o samba

morrer.

É importante destacarem-se esses acontecimentos pela demonstração da

amplitude de uma pesquisa e até que ponto o pesquisador tem ingerência sobre

ela. Iniciamos a investigação com o propósito de realizar intervenção no corpo

administrativo e pesquisar os efeitos da preservação do legado de Cartola como

expressão de cultura, do que de fato averiguar esses efeitos na comunidade. Sob o

título de ―Pesquisa-ação: cultural, identidade e trabalho dos gestores culturais‖,

subjazia a indagação: quem eram essas pessoas que estruturavam seu trabalho

com a causa de Nilcemar? A questão de uma causa destacava-se nas entrevistas:

todos, de alguma forma, se referiam ao Centro Cultural como lugar de visibilidade

profissional, quase como recompensa por se dedicarem à causa sociocultural

defendida por Nilcemar.

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Com minha permanência e certo conhecimento no campo, o foco da

demanda foi deslocando-se, isto é, deixamos de assessorar diretamente a

Nilcemar e passamos a realizar essa assessoria clínico-organizacional39 a sua

equipe administrativa. Interrogávamo-nos sobre como atuar em campo que

requisitava posicionamento tão variável, cujas atividades iam desde assessorar,

pesquisar, intervir, até analisar a realização possível. Essas e tantas outras

questões sobressaíram-se, até que, de fato, pudéssemos circunscrever algum

efeito do trabalho realizado.

Em muitos momentos, foi um desafio tomar distância do campo e manter a

imparcialidade, certamente por estar imersa nele como analista e pesquisadora,

tendo de estar dentro e fora simultaneamente, dimensionar os efeitos do trabalho

de intervenção e realizar um corte no espaço/tempo para circunscrever a rica

experiência.

Cabe aqui destacar um dentre vários fatores dificultadores para o

desenvolvimento do trabalho de intervenção e análise: a alta rotatividade de

profissionais no Centro. A leitura feita da saída contínua das pessoas e das novas

contratações – não necessariamente para os mesmos postos de trabalho e, por

vezes, puramente em virtude do crescimento do Centro – apontou para

necessidade de retomada do começo.

Verificamos que um gestor cultural só conseguia um cargo no Centro

Cultural pelo período máximo de um ano. As pessoas iam embora e pareciam levar

com elas um pedaço do trabalho de intervenção. Foi preciso um bom tempo para

entender que o trabalho se caracteriza pela transitoriedade nas relações,

particularidade comum na cultura da comunidade, onde sobressai o

comportamento ora de proximidade emergencial, ora de distanciamento constante,

que só pôde ser mais bem compreendido na transformação deste trabalho.

Um exemplo vem ilustrar a tensão que se colocava a cada nova contratação.

Em reunião de que participei, sobreveio um momento de tensão e de quase

decepção quanto ao investimento realizado por gestores e pesquisador no

processo de autogestão e institucionalização de espaços de indignação frente à

ignorância das dificuldades vividas na comunidade. Sempre que possível, houve o

39

Nome adotado para exprimir o que entendemos por atividade relativa ao posicionamento misto de psicóloga e consultora, pesquisadora e relatora.

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cuidado de estabelecer, nos encontros coletivos, uma discussão que colocasse em

destaque os valores da população que frequenta o Centro. Não há como negar que

esses sujeitos possuem experiências de vida diferentes da massa da classe média

urbana, com valores e cultura imbricados na dor e na exclusão de toda ordem,

muito confundidos nos discursos, como a exclusão de crianças pobres e carentes,

não merecedoras de uma expressividade, mas, antes, de ações paternalistas. Tal

concepção que foi sendo gradativamente desconstruída, à medida que um saber

se consolidava nas experiências que cada um adquiria em seu dia de trabalho com

os frequentadores do Centro Cultural.

A discussão estabelecida aconteceu em função da contratação de mais um

profissional para o Centro Cultural e pela solicitação de intervenção do psicólogo

junto à coordenadora de projetos, que se havia envolvido em uma discussão com

alguns meninos revoltados por motivo de horário. Essas discussões, decorrentes

das relações de poder e hierarquia, são muito recorrentes, e os meninos costumam

ser encaminhados ao psicólogo para que ―seja dado um jeito‖ (esse é o discurso).

Com a demanda de auxiliar a coordenação e de incluir o mais novo

contratado da equipe, marcamos uma exibição de filme, atividade denominada

―sessão aberta‖. Após todos os procedimentos e apresentação da equipe ao novo

funcionário, este entendeu que era uma oportunidade de se colocar junto ao

interesse de todos em procurarem novos procedimentos de trabalho com as

referidas crianças. Ele assim se expressou: ―Para trabalharmos a agressividade

dessas crianças, que parecem tão primitivas, silvícolas (sic)...‖

Creio que, a partir daí, o sentimento de frustração foi geral, porque o novo

funcionário adentrava o espaço com saber a priori que não cabia mais; já havíamos

caminhado em relação a esses conceitos e estamos focados em avançar em

outras questões.

A escolha de relatar essa passagem teve a intenção de dizer quão complexa

é a tarefa de transcrever o vivido, que sofre diárias transformações. Como também

se firmou no objetivo de estudo, faz-se igualmente necessário, em algum momento,

operar um corte entre o ontem e o hoje, que, se for escrito amanhã, já não

contemplará as elaborações realizadas nesse ínterim.

Muitas são as provas disso; contudo, uma, em especial, teve de ser

elaborada.

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A primeira vez que deparei com a dura realidade das crianças assistidas

pelo Centro Cultural Cartola foi durante a exibição do filme ―Orquestra dos

meninos‖. Até aquele momento, no lugar de um analista, acreditava que a realidade

da pobreza e da violência são palatáveis a um técnico, cujo saber supõe que o eu

se constitui em si mesmo, e é capaz de se diferenciar dentro de determinadas

condições de identificação, apesar da realidade do entorno.

Pensava que, ao atender analiticamente crianças e jovens do Morro da

Mangueira, só estaria transferindo minha escuta do consultório particular para o

morro. Por saber que o sujeito do inconsciente é pontual e evanescente, e os laços

sociais que o constituem podem ser neutralizados (desde que haja melhores

oportunidades de inserção na cultura, como, por exemplo, as que se apresentam

aos jovens que habitam áreas urbanizadas), acreditava que não haveria diferença

entre uma e outra clínicas.

Os moradores das favelas ficam expostos à violência de modo muito

próximo. Claro que a violência deve ser discutida para diferenciar o agente do ato

de violência daquele que sofre esse ato. É o que se vê tanto pelo lado da vítima

como pelo lado de quem acompanha cotidianamente, em exibição no horário

nobre, o que acontece dentro de suas comunidades, em contraste com as demais

áreas urbanas.

A realidade do entorno dessa gente do morro é de outra ordem. Disse-me

uma menina outro dia: ―Eu cheguei um pouco atrasada porque estava passando e

vi o cara acabar de morrer, aí eu esperei porque podia ter polícia perto” (sic.).

Como trabalhar a questão do atraso para uma sessão de um sujeito com os seus

onze, doze anos, que perde a hora porque estava esperando alguém em seu

caminho acabar de morrer para poder passar em segurança?

Se, nesse contexto, eu fui tomada de surpresa com o riso solto e estridente

das crianças que assistiam à cena do filme na qual um jovem fora estuprado e

jogado no lixo, do em mim algo que não saberia definir, por outro lado, o fato

deflagrou em mim o desejo de divulgar, pela escrita, como são necessárias

iniciativas como as do Centro Cultural Cartola, que se permite ser um lugar onde a

esperança vem como uma saída melhor do que a do riso como defesa.

Ou melhor: a passagem do sujeito do drama individual ao genérico faz diluir

a carga de angústia; o riso, apesar do espanto inicial, nada mais era que uma

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defesa para aquilo que não é possível nomear: a realidade dura com a qual é

preciso lidar todos os dias.

Finalmente, poucos dias antes de entregar a dissertação, abriu-se um

espaço novo dentro da instituição: ―Afinando as emoções‖. Explico: Na tentativa de

oferecer aos gestores culturais os meios de eles se tornarem capazes de

responderem com eficiência aos problemas encontrados no cotidiano, foi instituído

um espaço de fala no qual todos me poderiam procurar para conversar. Isso ficou

sendo válido tanto para os gestores quanto para as crianças da orquestra de

violinos que chegassem ou fossem encaminhados por alguma necessidade, desde

problemas de ordem pessoal ou de comportamento no grupo.

Nilcemar confirmou as expectativas à época da formulação da proposta de

intervenção junto à equipe administrativa:

Você está aqui para que todos tenham um espaço para falar; eles podem e devem falar mal de mim, eu sei que o seu trabalho é sigiloso. Eu já trabalhei como nutricionista em grande empresa e passei por um trabalho em que era realizado um levantamento das dificuldades de relacionamento. O trabalho era pautado em feedbacks, foi realizado na empresa para ajudar a melhorar o desempenho e deu muito certo. Eu quero melhorar o meu próprio desempenho, mas, nas reuniões, o pessoal quase não fala, eu pergunto o que pode melhorar etc. Então, pensei, quando falei com Regina Andrade, realizar um trabalho científico para melhorar o trabalho aqui no Centro Cultural. Sei que eles precisam de espaço para falar o que está ruim e eu poder melhorar, nosso projeto aqui é muito difícil, tenho que matar um leão a cada dia e não dá para eu ficar dizendo o que cada um tem que fazer e ficar em cima cobrando (sic).

Assim, iniciamos um atendimento clínico organizacional até o fechamento da

pesquisa, quando Nilcemar solicitou uma nova intervenção específica: realizar um

trabalho com as crianças da orquestra de violinos, mas não mais como um trabalho

eventual como antes ocorria. Muitas vezes, comparecia ao Centro Cultural e os

coordenadores dos projetos me procuravam para eu conversar com as crianças, a

fim de ajudar a ―corrigi-las‖. Eu ia desconstruindo essa concepção e oferecia um

espaço singular para as crianças encaminhadas, que logo percebiam não se tratar

de um trabalho de correção de comportamento.

Lembro-me de uma passagem sui generis. Atendia uma menina da

orquestra de violinos que fora encaminhada por sua professora. Quando terminei o

atendimento, surpreendi-me com uma pequena fila à porta: eram crianças que,

curiosas em saber o que acontecia naquela sala, formaram a fila para serem

consultadas. Uma a uma ia sentando, e eu perguntava-lhe o que desejava. Uma

delas, com uma bolsa a tiracolo como um adulto, respondeu-me: Eu vim porque

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minha amiga veio aqui e eu quero saber o que vocês conversam‖ (sic). Outra toda

vestida de rosa: ―Eu detesto rosa, eu adoro preto, eu acho as meninas da minha

idade muito chatas cheias de fru fru; por isso, eu prefiro conversar com o meninos‖

(sic).

Outra passagem muito interessante foi a de um menino da comunidade que,

ao trazer seu sobrinho para uma atividade, me abordou: ―Você é psicóloga? Posso

dar uma palavrinha?‖ Ele procurou atendimento porque estava a ponto de sair de

casa por conta dos maus tratos recebidos na primeira infância, fato que ele atribui à

revolta que experimenta hoje contra as pessoas que cuidam bem dele. Diz que não

são as boas roupas nem o tênis caro que os familiares lhe dão que irão apagar

suas mágoas do passado. Esse jovem compareceu em pouco mais do que cinco

sessões, sumiu e, depois de um tempo, retornou para me contar que quase saiu de

casa e que já estava quase chegando ao Largo do Pedregulho (localidade ainda

próxima a Mangueira) quando lembrou que não tinha falado comigo e comentou

com o colega que o acompanhava e que ia embora depois; era melhor voltar para

casa naquele dia porque se esquecera de ir à consulta (sic).

Entre esse relato e o seu comparecimento deveria já se ter passado um

intervalo de algumas semanas. Quando o interroguei se havia desistido de sair de

casa, ele respondeu: ―Eu resolvi ficar porque arranjei uma namorada‖. Esse relato

diz respeito a um tempo necessário a um sujeito: tempo de elaboração que

solicitou uma escuta e um espaço de fala.

O espaço criado para dar vazão aos queixumes dos funcionários até a

solicitação da instituição de outro para atendimento às crianças da orquestra exigiu

um tempo de trabalho deslocado da demanda inicial. Mas foi pela placa ―Afinando

as Emoções‖, presente de Nilcemar oferecido a nós às vésperas do encerramento

oficial da pesquisa, que podemos afirmar que o espaço hoje se constitui um lugar

recortado no campo que se destina a ser o de fala a todos que ali chegam. Ponto

de corte, momento de concluir, momento que marca o resultado de um trabalho de

intervenção que deixou tanto campo quanto pesquisa e pesquisador diferentes do

instante de ver, lá do início. ―É a oficialização simbólica do ‗Afinando as emoções‘‖,

disse Nilcemar ao me dar o presente.

Cabe destacar que o espaço construído em função dos desdobramentos da

pesquisa independe do pesquisador: é reconhecido como mais um serviço que o

Centro Cultural passa a oferecer a todos que necessitarem; mas é claro que há

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uma prioridade para os frequentadores dos projetos e dos gestores.

O espaço já está sendo ampliado com a possibilidade de uma parceria

estabelecida, há pouco, com uma escola pública da Mangueira e uma universidade

particular do Rio de Janeiro. O que fica demarcado é a importância da criação do

espaço que poderá ser ocupado por outro analista que vier a suceder-me na

instituição; afinal, trata-se de um lugar que foi construído para esse fim e que será

perene, independente da pesquisa e da pessoa do pesquisador.

Entendemos, então, que a pesquisa não poderia utilizar uma teoria a priori,

mas, sim, um conjunto delas, a ser tecido passo a passo, sob a perspectiva da

pesquisa participativa/ intervenção e sua metodologia híbrida.

Consolida-se, assim, a proposta deste estudo que prevê que cada um que

se disponha a descrever a experiência da pesquisa participativa terá de partir das

percepções do vivido, nas idas e vindas no caminho trilhado.

Chegamos ao término desta exposição com muitas questões em aberto,

mas, mesmo assim, acreditamos que a ―Cartola-Grafia: causa do Centro Cultural

Cartola‖ demonstrou ser uma causa que se sustenta em torno da preservação do

legado de Cartola e sua luta em torno do reconhecimento do samba.

Crianças e jovens que vivem no limite, na fronteira entre a criminalidade e a

arte, o que lhes causa escolherem uma e não a outra? Certamente nunca iremos

responder como também não sabemos qual a causa do Cartola, mas deixamos

essa questão em aberto para que outros venham tentar respondê-la com trabalhos

motivados por seus desejos e pela esperança de que seja aberto o canal de um

novum para si e para esses outros da coletividade. Por isso, deixo a todos a tarefa

de não deixarmos a esperança, nem o samba morrerem! Edson e Aluísio

convocam:

Não deixe o samba morrer

Quando eu não puder pisar Mais na avenida Quando as minhas pernas Não puderem aguentar Levar meu corpo Junto com meu samba O meu anel de bamba Entrego a quem mereça usar Eu vou ficar No meio do povo espiando Minha escola perdendo ou ganhando Mais um carnaval

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Antes de me despedir Deixo ao sambista mais novo O meu pedido final Não deixe o samba morrer Não deixe o samba acabar O morro foi feito de samba De samba pra gente sambar

E foi a própria Nilcemar que nos presenteou com esta mensagem: ―O

mistério do samba e agora o outro mistério – qual a causa Cartola? A causa

Cartola é exatamente o que você busca40‖.

E a minha causa teve início quando, na porta do espaço destinado ao

atendimento clínico, li a placa: ―Afinando as emoções‖.

Figura 27: Placa da sala de atendimento

40

E-mail de comunicação interna no Centro Cultural, Nilcemar encaminhou uma mensagem na qual a funcionária indagava sobre a causa Cartola, e Nilcemar respondendo copiou a mim e a outra pessoa do Centro.

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Letras de música A cor da esperança. Cartola / Roberto Nascimento

Alvorada. Cartola / Carlos Cachaça / Hermínio B. de Carvalho

As rosas não falam. Cartola.

Chega de Demanda. Cartola.

Ensaboa. Cartola.

Não deixe o samba morrer. Edson e Aloísio.

Nós dois. Cartola.

Opinião. Zé Kéti.

O mundo é um moinho. Cartola

Sala de recepção. Cartola

Sou Doutor. Cartola

Tempos Idos. Cartola e Carlos Cachaça.

Tive sim. Cartola.

Livros, dissertações e teses

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ANEXO – CERTIDÃO DO IPHAN

Serviço Público Federal

Ministério da Cultura

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN

C E R T I D Ã O

CERTIFICO que do Livro de Registro das Formas de Expressão, volume primeiro,

do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan, instituído pelo

Decreto nº3.551, de 4 de agosto de 2000, consta à folhas 8, verso, o seguinte:

―Registro número seis.Bem cultural: Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido

Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo. Descrição: No começo do século XX, a

partir de influências rítmicas,poéticas e musicais do jongo, do samba de roda

baiano, do maxixe e da marcha carnavalesca, consolidaram-se três novas formas

de samba: o partido alto, vinculado ao cotidiano e a uma criação coletiva baseada

em improvisos; o samba-enredo, de ritmo inventado nas rodas do bairro do Estácio

de Sá e apropriado pelas nascentes escolas de samba para animar os seus

desfiles de Carnaval; e o samba de terreiro, vinculado à quadrada escola, ao

quintal do subúrbio, à roda de samba do botequim. Essas matrizes referenciais do

samba no Rio de Janeiro distinguem-se de outros subgêneros de samba criados

posteriormente e guardam relação direta com os padrões de sociabilidade de onde

emergem. Há autoria individual, porém a performance é necessariamente coletiva e

se funda em comunidades situadas em áreas populares da cidade do Rio de

Janeiro. O improviso é outro aspecto importante dessa dimensão coletiva e ainda

se encontra bastante enraizado na prática amadora ou comunitária dessas formas

de expressão – está vivo e presente nos quintais dos subúrbios, nas rodas de

samba e terreiros dos morros e bairros populares da cidade. O samba de partido

alto, o samba de terreiro e o samba-enredo são expressões cultivadas há mais de

90 anos por essas comunidades. Não são simplesmente gêneros musicais, mas

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formas de expressão, modos de socialização e referenciais de pertencimento. São

também referências culturais relevantes no panorama da música produzida no

Brasil. Constituído a partir dessas matrizes, em suas muitas variantes, o samba

carioca é uma expressão da riqueza cultural do país e em especial de seu legado

africano, constituindo-se em um símbolo de brasilidade em todo o mundo. Esta

descrição corresponde à síntese do conteúdo do processo administrativo nº

01450.0011404/2004-25 e Anexos, no qual se encontra reunido um amplo

conhecimento sobre esta Forma de Expressão, contido em documentos textuais,

bibliográficos e audiovisuais. O presente Registro está de acordo com a decisão

proferida na 54ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada

no dia 09 de outubro de 2007. Data do Registro: 20 de novembro de 2007. E por

ser verdade, eu, Márcia Genésia de Sant‘Anna, Diretora do Departamento do

Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan,

lavrei a presente certidão que vai por mim datada e assinada. Brasília, Distrito

Federal, 29 de novembro de 2007.

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