Educação e Direitos Humanos_Currículo e Estratégias Pedagógicas

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Educação em direitos humanos.

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    Educao e Direitos Humanos,

    Currculo e Estratgias Pedaggicas

    Vera Maria Candau*

    * Ps-Doutora em Educao pela Universidad Complutense de Madrid. Docente da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Membro da Novamrica.

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    Introduo

    A preocupao com a educao em Direitos Humanos vem se afirmando cada vez com maior fora no Brasil, tanto no mbito das polticas pblicas como das organizaes da sociedade civil. As iniciativas se multiplicam. So realizados seminrios, cursos, palestras, fruns, etc, nas diferentes partes do pas, promovidos por universidades, associaes, movimentos, ONGs e rgos pblicos. Sem dvida, a implementao do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos tem exercido uma funo fundamental de estmulo, apoio e viabilizao de diversas atividades.

    No entanto, possvel afirmar que a grande maioria destas realizaes tem enfatizado a anlise da problemtica dos Direitos Humanos nas sociedades contemporneas, no plano internacional e no nosso contexto, assim como o aprofundamento da gnese e evoluo histrica do conceito de Direitos Humanos. Em geral, uma reflexo sobre em que consiste a educao referida a esta temtica se d por bvio, no se problematiza, nem se articula adequadamente a questo dos Direitos Humanos com as diferentes concepes pedaggicas. Abordar esta problemtica constitui o objetivo central do presente trabalho.

    Para que educar em Direitos Humanos?

    Em relao a esta problemtica, consideramos de especial relevncia a pesquisa promovida no continente latino-americano pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) da Costa Rica, no perodo de 1999-2000 (Cuellar, 2000), orientada a fazer um balano crtico da educao em Direitos Humanos nos anos 90 na Amrica Latina, coordenada pelo professor chileno Abraham Magendzo, um dos mais importantes especialistas em educao em Direitos Humanos no continente.

    No processo de construo do balano crtico, foi indicado um pesquisador ou pesquisadora dos pases que integraram a investigao - Argentina, Chile, Peru, Brasil, Venezuela, Guatemala e Mxico-, para realizar um estudo de caso no seu respectivo contexto. Uma vez realizados os estudos de caso de carter nacional, estes foram enviados a todos os pesquisadores e foi convocado um seminrio pelo IIDH em Lima, Peru, no ms de novembro de 1999, para discusso e elaborao da sntese final do processo e levantar questes consideradas importantes para o

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    desenvolvimento da educao em Direitos Humanos no continente a partir do ano 2000. Apresentaremos brevemente os principais temas discutidos.

    Um primeiro bloco se relacionava ao sentido da educao em Direitos Humanos no novo marco poltico, social, econmico e cultural, isto , na transio modernidade/ps-modernidade, no contexto de democracias dbeis ou de baixa intensidade e de hegemonia neoliberal.

    A temtica de educao em Direitos Humanos nos anos 80, principalmente nos pases que passaram por processos de transio democrtica depois de traumticas experincias de ditadura, como o nosso caso, foi introduzida como um componente orientado ao fortalecimento dos regimes democrticos.

    No entanto, a realidade do continente no novo milnio apresenta outra configurao. O clima poltico-social, cultural e ideolgico diferente. Vivemos um contexto de polticas neoliberais, de debilitamento da sociedade civil, de indicadores persistentes de acentuada desigualdade social, de discriminao e excluso de determinados grupos socioculturais e falta de horizonte utpico para a construo social e poltica. Por outro lado, em contraste com os anos 80, em que a maior parte das experincias de educao em Direitos Humanos foram promovidas por ONGs e algumas administraes pblicas de carter local consideradas progressistas, a dcada atual est marcada por uma grande entrada dos governos, no nosso caso do governo federal, na promoo da educao em Direitos Humanos. Neste novo cenrio importante analisar e debater as questes relativas ao sentido da educao em Direitos Humanos e os objetivos que pretende alcanar.

    Em relao polissemia da expresso educao em Direitos Humanos, os pesquisadores afirmaram a importncia de no se deixar que esta expresso seja substituda por outras consideradas mais fceis de serem assumidas por um pblico amplo, como educao cvica ou educao democrtica, ou que restrinjam a educao em Direitos Humanos a uma educao em valores, inibindo seu carter poltico. Por outro lado, afirmaram, hoje a educao em Direitos Humanos admite muitas leituras e esta expresso foi se alargando tanto que o seu sentido passou a englobar desde a educao para o transito, os direitos do consumidor, questes de gnero, tnicas, do meio-ambiente, etc, at temas relativos ordem internacional e sobrevivncia do planeta. Tendo-se presente esta realidade, corre-se o risco de englobar tantas dimenses que a educao em Direitos Humanos perca especificidade. Tornando difcil uma viso mais articulada e confluente, terminando por se reduzir a um grande "chapu" sob o qual podem ser colocadas temas muito variados, com os mais diversos enfoques.

    Ao final do seminrio se chegou ao consenso de que era importante, na dcada que se iniciava a partir do ano 2000, reforar trs dimenses da educao dos Direitos Humanos.

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    A primeira diz respeito formao de sujeitos de direito. A maior parte dos cidados/s latino-americanos tem pouca conscincia de que so sujeitos de direito. Esta conscincia muito dbil, muitos grupos sociais inclusive por ter a cultura brasileira e latino-americana em geral um carter paternalista e autoritrio consideram que os direitos so ddivas de determinados polticos ou governos. Os processos de educao em Direitos Humanos devem comear por favorecer processos de formao de sujeitos de direito, a nvel pessoal e coletivo, que articulem as dimenses tica, poltico-social e as prticas cotidianas e concretas.

    Outro elemento considerado fundamental na educao em Direitos Humanos favorecer o processo de "empoderamento" (empowerment), principalmente orientado aos atores sociais que historicamente tiveram menos poder na sociedade, isto , poucas possibilidades de influir nas decises e nos processos coletivos. O "empoderamento" comea por liberar as possibilidades, a potncia que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito de sua vida e ator social. O "empoderamento" tem tambm uma dimenso coletiva. Trabalha na perspectiva do reconhecimento e valorizao dos grupos scio-culturais excludos e discriminados, favorecendo sua organizao e participao ativa na sociedade civil.

    O terceiro elemento diz respeito aos processos de transformao necessrios para a construo de sociedades verdadeiramente democrticas e humanas. Um dos componentes fundamentais destes processos se relaciona a "educar para o nunca mais", para resgatar a memria histrica, romper a cultura do silncio e da impunidade que ainda est muito presente em nossos pases. Somente assim possvel construir a identidade de um pas, na pluralidade de suas etnias, e culturas.

    Estes trs componentes, formar sujeitos de direito, favorecer processos de empoderamento e educar para o nunca mais, foram considerados prioritrios na Amrica Latina, referncia e horizonte de sentido para a educao em Direitos Humanos, de acordo com a proposta do grupo de pesquisadores latino-americanos que participaram do estudo.

    Consideramos que esta perspectiva aponta para a criao de uma cultura dos Direitos Humanos na nossa sociedade, que penetre os diferentes mbitos da vida social e impregne tanto os espaos privados como os pblicos. Esta constitui a perspectiva a partir da qual nos situamos.

    Como promover processos de educao em Direitos Humanos?

    Partimos da afirmao de que as estratgias pedaggicas no so um fim em si mesmas. Esto sempre a servio de finalidades e objetivos especficos que se pretende alcanar. Neste sentido, na perspectiva que

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    assumimos, as estratgias metodolgicas a serem utilizadas na educao em Direitos Humanos tm de estar em coerncia com a concepo que apresentamos, uma viso contextualizada e histrico-crtica do papel dos Direitos Humanos na nossa sociedade e do sentido da educao neste mbito: formar sujeitos de direito, empoderar os grupos socialmente vulnerveis e excludos e resgatar a memria histrica da luta pelos Direitos Humanos na nossa sociedade.

    bastante comum que afirmemos que queremos formar sujeitos de direito e colaborar na transformao social e, no entanto, do ponto de vista pedaggico, utilizarmos fundamentalmente estratgias centradas no ensino frontal, isto , exposies, verbais ou mediticas, quando muito introduzindo espaos de dilogo com os expositores, quer sejam professores/as ou membros de mesas redondas.

    Este tipo de estratgia atua fundamentalmente no plano cognitivo, quando muito oferece informaes, idias e conceitos atualizados, mas no leva em considerao as histrias de vida e experincias dos participantes e dificilmente colaboram para a mudana de atitudes, comportamentos e mentalidades. Em geral, no melhor dos casos, propiciam espaos de sensibilizao e motivao para as questes de Direitos Humanos, mas seu carter propriamente formativo muito frgil.

    A perspectiva acima assinalada supe a realizao de processos formativos. A palavra processo fundamental. Exige uma srie de atividades articuladas e desenvolvidas em um determinado perodo de tempo, atravs das diferentes reas curriculares. Neste sentido, no contexto da educao escolar, no pode ser setorizada, transformada em uma disciplina ou ser de responsabilidade de determinadas reas curriculares, como as cincias scias ou/e as chamadas atividades e projetos extra-classe. Trata-se de integrar a educao em Direitos Humanos nos projetos polticos pedaggicos das escolas e conceb-la como um eixo transversal que afeta todo o currculo.

    No que diz respeito aos temas a serem trabalhados, devem ser definidos tendo-se presente as caractersticas e interesses de cada grupo, de cada escola, de cada contexto mas sempre situando as questes abordadas num contexto social amplo e em relao problemtica e conceitos fundamentais relacionados aos Direitos Humanos. A noo de dignidade humana deve perpassar os diferentes temas abordados e constituir-se num eixo vertebrador de todo o processo desenvolvido.

    Alm disso, importante mobilizar diferentes dimenses presentes nos processos de ensino-aprendizagem, tais como: ver, saber, celebrar, sistematizar, comprometer-se e socializar. Estas dimenses so concebidas de maneira integrada e interrelacionada. O ver refere-se anlise da realidade, o saber aos conhecimentos especficos relacionados ao tema desenvolvido, o celebrar apropriao do trabalhado utilizando-se diferentes linguagens, como simulaes, dramatizaes, msicas,

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    elaborao de vdeos, etc. A sistematizao supe a construo coletiva que sintetiza os aspectos mais significativos assumidos por todo o grupo e o comprometer-se a identificao de atitudes e aes a serem realizadas. A socializao da experincia vivida constitui a etapa final do processo.

    A utilizao de metodologias ativas e participativas, o emprego de diferentes linguagens, a promoo do dilogo entre diversos saberes, so componentes presentes ao longo de todo o processo que deve ter como referncia fundamental a realidade social e as experincias dos alunos/as. Especial ateno deve ser dada aos relatos de histrias de vida relacionadas s violaes ou defesa dos Direitos Humanos, apresentadas pelas prprias crianas ou adolescentes, atravs de entrevistas realizadas com determinadas pessoas indicadas pelo grupo ou atravs de matrias de jornais e outros meios de comunicao.

    Uma estratgia metodolgica que nos processos que vimos desenvolvendo privilegiada so as chamadas oficinas pedaggicas, concebidas como espaos de intercmbio e construo coletiva de saberes, de anlise da realidade, de confrontao de experincias, de criao de vnculos scio-afetivos e de exerccio concreto dos Direitos Humanos. A atividade, participao, socializao da palavra, vivncia de situaes concretas atravs de sociodramas, anlise de acontecimentos, leitura e discusso de textos, realizao de vdeo-debates, trabalho com diferentes expresses da cultura popular, etc, so elementos presentes na dinmica das oficinas. O desenvolvimento das oficinas se d, em geral, atravs dos seguintes momentos bsicos: aproximao da realidade/sensibilizao, aprofundamento/reflexo, sntese/construo coletiva e fechamento/compromisso. Para cada um desses momentos necessrio prever uma dinmica adequada, sempre tendo-se presente a experincia de vida dos sujeitos envolvidos no processo educativo, o reconhecimento dos saberes previamente construdos pelos/as alunos/as e o dilogo e confronto com os conhecimentos prprios ao saber escolar referido s diferentes disciplinas e as informaes socialmente disponveis.

    Trata-se, portanto, de transformar mentalidades, atitudes, comportamentos, dinmicas organizacionais e prticas cotidianas dos diferentes atores, individuais e coletivos, e das organizaes sociais e educativas.

    O importante na educao em Direitos Humanos ter clareza do que se pretende atingir e construir estratgias curriculares e pedaggicas coerentes com a viso que assumamos, privilegiando a atividade e participao dos sujeitos envolvidos no processo. Trata-se de educar em Direitos Humanos, isto , propiciar experincias em que se vivenciem os Direitos Humanos.

    Estes so apenas alguns dos desafios a enfrentar para que a educao em Direitos Humanos penetre a cultura escolar e os diferentes sistemas de ensino, assim como na sociedade em geral. O importante

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    que, ao reconhec-los, procuremos trabalh-los no nosso dia a dia, a comear pelos que consideremos prioritrios.

    Atravs do desenvolvimento deste texto procuramos evidenciar a complexidade e a polissemia da educao em Direitos Humanos na atualidade. Assumimos a perspectiva que afirma que seu horizonte de sentido no nosso contexto formar sujeitos de direito, empoderar os grupos socialmente mais vulnerveis e resgatar a memria histrica da luta pelos Direitos Humanos.

    Neste sentido, insuficiente promover eventos e atividades espordicas, orientadas fundamentalmente a sensibilizar e motivar para as questes relacionadas com os Direitos Humanos. Torna-se imprescindvel integrar a educao em Direitos Humanos nos projetos poltico-pedaggicos das escolas e comprometer no seu desenvolvimento as diferentes reas curriculares. , tambm, de especial importncia desenvolver processos formativos que permitam articular diferentes dimenses cognitiva, afetiva, artstica e scio-poltica fundamentais para a educao em Direitos Humanos, assim como utilizar estratgias pedaggicas ativas, participativas e de construo coletiva que favoream educar-nos em Direitos Humanos.

    REFERNCIAS

    BRASIL. Comit Nacional de Educao em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos. Braslia: Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Ministrio de Educao/Ministrio de Justia/UNESCO, 2006.

    CUELLAR, R. (ed) Experiencias de Educacin en derechos Humanos en Amrica Latina. Costa Rica: IIDH-Fundacin Ford, 2000.