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26 EDUCAÇÃO 2.1 ESCOLARIZAÇÃO Minha escolarização básica e superior inicial foram plantadas em Londrina, em instituições públicas. Estudei o pré-primário no Grupo Escolar Pedro Faria Filho (Centro); o primeiro ano no Grupo Escolar Sagrada Família (Shangri-lá B); do segundo ao quarto anos do primário, no Grupo Escolar Padre Carlos Dietz 1 (Centro). Até chegar à quinta série, eu e meus irmãos Mauro e Rui éramos sujeitos do que hoje se denomina bullying, forma de violência escolar repetida e cotidiana. Enfrentávamos xingamentos de um par de crianças que moravam na frente do ponto de ônibus que pegávamos para ir à escola. Desde que subiam no veículo até adentrarmos na escola, eles iam nos xingando. Não adiantava xingar de volta. A menina tinha três vezes o meu tamanho e me intimidava fisicamente. Isso só pararia quando mudamos para o Colégio onde estudaríamos as séries ginasiais até a conclusão do Colegial. Aos 16 anos, perdi o primeiro vestibular porque minha carteira de identidade não ficara pronta a tempo. Teria me candidatado ao curso de Direito. Aos 17, ganhei bolsa de estudos semestral no colégio Maxi Positivo. Lá descobri que tinha habilidade em desenho, requisito para prova específica do curso de Arquitetura. Essa opção foi terminantemente reprovada por minha mãe. Outras opções não havia em Londrina, como Design industrial, que havia na URGS. Sem renda própria, não era dona de minhas escolhas. Prestei vestibular em 1983, iniciei meus estudos em Letras, na UEL, em agosto daquele ano, decidida a fazê-lo de forma a não me arrepender no futuro, ao olhar para trás. Em quatro anos do curso de Letras, sempre cheguei com antecedência ao início da aula. Muitas vezes, fui de carona com a professora Kilda Prado Gimenez 2 , que, anos mais tarde, orientaria minha primeira pesquisa. Dela, tenho a imagem de competência e doçura, atributos pares da professora Edina Pugas Panichi 3 , minha professora de Literatura brasileira. Os trabalhos da universidade eram relativamente simples e fáceis, por isso eu acrescentava algo a eles, que, em geral, surpreendia os meus professores. Em trabalho solicitado pela professora Ana Cleide Chiarotti Cesário 4 , inclui ilustração de um trabalhador rural, que desenhei à mão livre. Em Literatura brasileira, o professor Alcides de Carvalho pediu que analisássemos a composição da música A banda, de Chico Buarque. Acrescentei à análise uma “versão” gráfica do ritmo da música (fórmula cadencial), por meio de símbolos então disponíveis em esferas da máquina elétrica IBM. Exemplo: A estrofe Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar, cantando coisas de amor era assim: 1 Hoje, Escola Estadual Carlos Dietz. 2 Mestrado Profissionalizante em Teaching English as a Foreign Language pelo Saint Michael's College, Estados Unidos (1981). 3 Doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil (1994). 4 Doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Brasil(1986).

EDUCAÇÃO - uel.br E DESTINO/2 MEMORIAL/2... · Wolf, wolf – nunca me esqueci da leitura em voz alta do conto do little John, feita pela professora Marilda do Couto Cavalcanti10,

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EDUCAÇÃO

2.1 ESCOLARIZAÇÃO

Minha escolarização básica e superior inicial foram plantadas em Londrina, em instituições públicas. Estudei o pré-primário no Grupo Escolar Pedro Faria Filho (Centro); o primeiro ano no Grupo Escolar Sagrada Família (Shangri-lá B); do segundo ao quarto anos do primário, no Grupo Escolar Padre Carlos Dietz1 (Centro). Até chegar à quinta série, eu e meus irmãos Mauro e Rui éramos sujeitos do que hoje se denomina bullying, forma de violência

escolar repetida e cotidiana. Enfrentávamos xingamentos de um par de crianças que moravam na frente do ponto de ônibus que pegávamos para ir à escola. Desde que subiam no veículo até adentrarmos na escola, eles iam nos xingando. Não adiantava xingar de volta. A menina tinha três vezes o meu tamanho e me intimidava fisicamente. Isso só pararia quando mudamos para o Colégio onde estudaríamos as séries ginasiais até a conclusão do Colegial. Aos 16 anos, perdi o primeiro vestibular porque minha carteira de identidade não ficara pronta a tempo. Teria me candidatado ao curso de Direito. Aos 17, ganhei bolsa de estudos semestral no colégio Maxi Positivo. Lá descobri que tinha habilidade em desenho, requisito para prova específica do curso de Arquitetura. Essa opção foi terminantemente reprovada por minha mãe. Outras opções não havia em Londrina, como Design industrial, que havia na URGS. Sem renda própria, não era dona de minhas escolhas. Prestei vestibular em 1983, iniciei meus estudos em Letras, na UEL, em agosto daquele ano, decidida a fazê-lo de forma a não me arrepender no futuro, ao olhar para trás. Em quatro anos do curso de Letras, sempre cheguei com antecedência ao início da aula. Muitas vezes, fui de carona com a professora Kilda Prado Gimenez2, que, anos mais tarde, orientaria minha primeira pesquisa. Dela, tenho a imagem de competência e doçura, atributos pares da professora Edina Pugas Panichi3, minha professora de Literatura brasileira. Os trabalhos da universidade eram relativamente simples e fáceis, por isso eu acrescentava algo a eles, que, em geral, surpreendia os meus professores. Em trabalho solicitado pela professora Ana Cleide Chiarotti Cesário4, inclui ilustração de um trabalhador rural, que desenhei à mão livre. Em Literatura brasileira, o professor Alcides de Carvalho pediu que analisássemos a composição da música A banda, de Chico Buarque. Acrescentei à análise uma “versão” gráfica do ritmo da música (fórmula cadencial), por meio de símbolos então disponíveis em esferas da máquina elétrica IBM. Exemplo: A estrofe Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar, cantando coisas de amor era assim: 1 Hoje, Escola Estadual Carlos Dietz. 2 Mestrado Profissionalizante em Teaching English as a Foreign Language pelo Saint Michael's College, Estados Unidos (1981). 3 Doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil (1994). 4 Doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Brasil(1986).

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■■■■■■■■■■■■■■■■■■■■■■■■ Quando o professor Alcides entregou os trabalhos avaliados aos alunos, eu havia faltado. Em quatro anos de curso, faltei no dia em que meu irmão Mauro sofreu

grave acidente e estava hospitalizado. Ao sair do trabalho, em lugar de ir à Universidade, fui vê-lo no hospital. Na aula daquela noite, o professor Alcides queria saber quem era Simone, elogiou a análise. Devolveu a todos os trabalhos, exceto o meu. Em Literatura de Língua Inglesa, a professora Ana Maria Rabelo nos pediu para apresentar a peça A Midsummer night’s dream5. Em casa, desenhei,

colori e recortei os personagens em papel-cartão, conforme eu os imaginava ao ler a peça. Levei as figuras no dia apresentação e mostrei para minhas colegas, que concordaram em usá-las. Colávamos as personagens na lousa, que servia de cenário e íamos movendo as “peças”, conforme contávamos a comédia. Assim, deixamos mais claro para os colegas que nos assistiam o conteúdo e trama shakespeareanos. Para outro trabalho em equipe de representação de peça de Virginia Wolf, solicitada pela professora Maria Benta Barbosa, gravei as falas de todos as personagens, exceto as da minha. Assim, ensaiei minhas falas, deixando a fita tocar e preenchendo as lacunas com turnos da minha personagem. Como todos trabalhávamos em tempo integral e duas de quatro colegas moravam em outra cidade, a única forma de ensaiar era aquela. Funcionou – para reconhecimento da professora.

Nem tudo foi flores. Em aula de latim, uma colega me pediu o caderno emprestado para copiar a tarefa passada na aula anterior. Passei-lhe o caderno, que ela me devolveu minutos depois. O professor, então, pediu que entregássemos a tarefa. Quando fui fazê-lo, ele recusou-se a recebê-la, acusando-me de eu ter copiado a tarefa da colega. Neguei a acusação, sem expor os fatos reais. Ele não me olhava nos olhos, nem usava a palavra; apenas apontava a minha carteira como lugar para onde deveria voltar. Repetiria tal gesto outro par de vezes, mas não me veria submeter-me àquele autoritarismo. Viu, sim, eu pegar meus materiais e bater a porta da sala com toda força ao sair. [Meu pai sempre contava que, quando morava com Dr Abelardo, ele (meu pai) bateu a porta com força, ao que foi interpelado pelo dono da casa: “Joãozinho, da próxima vez, usa um machado”. Com essa parábola, meu pai ensinava a seus filhos a aprender a nos controlarmos]. Mas naquela noite, desferi uma profusão de sentimentos em um gesto violento. Desci as escadas indignada com o professor e com a atitude covarde, omissa, da colega. Ficaria aguardando o término daquelas aulas para retornar às seguintes, quando a colega vem correndo me dizer que inventara uma desculpa e que o professor me queria de volta à sala. Naquele noite, resisti: assisti apenas as aulas posteriores ao intervalo. Hoje, penso que, se tivesse me controlado, o professor poderia ter me interpretado como aluna cínica. A ação de sair teria sido suficiente para escrever meu protesto.

5 Sonhos de uma noite de verão.

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Bater a porta foi assiná-lo. A força desferida, o tom. Meu pai que me perdoe, mas, há situações em que palavras não bastam; um gesto comunica tudo. Vanderci de Andrade Aguilera6 foi minha professora de língua portuguesa. Nossas aulas eram em sala do tipo ¼ de anfiteatro no Centro de Humanidades. Certa vez, ela fazia revisão para prova que seria dali a dois dias. A matéria era análise sintática de orações coordenadas e subordinadas. Sentada na última fileira da sala, isolada, eu estudava para prova de Latim, que seria no dia seguinte. Ela interrompeu a aula, chamou minha atenção: ‘Simone, você sabia que a prova é depois de amanhã e esta é uma revisão?’ ‘Sim, eu sei’. Continuei estudando Latim. No dia da prova, a professora pediu que invertêssemos a posição de nossas carteiras, fazendo com que o espaldar ficasse face ao centro da sala e a frente da carteira, face às paredes do fundo da sala. A professora se sentaria à sua mesa, de onde observaria a classe fazer a prova. Para ser igual a um panóptico7, só faltava pedir que alinhássemos as carteiras de tal maneira a formar raios – como raios de sol – partindo da primeira fileira, debaixo para cima, para última fileira, de dentro para fora. Fizemos a prova. Na aula seguinte, a professora, entregando as provas corrigidas, chamava cada aluno. Quando chamou meu nome, disse: ‘Me dá vontade de te dar uma ‘moquecada’. Essa menina não prestou atenção na revisão e olha a nota dela!’. Eu tinha ido muito bem na prova, faltando décimos para 10,0. 8 Em disciplina do professor Oscar Lermen9, certa vez ele se recusou a me esclarecer uma dúvida. Disse que eu estava conversando, quando, na verdade, quem estava conversando eram minhas colegas, entre si. De fato, elas não apenas

conversavam, mas desistiram do curso. As explicações eram necessárias para fazer trabalho a ser entregue na noite seguinte. Passei a noite em claro e fiz sozinha o trabalho da equipe. No dia seguinte, datilografei tudo e entreguei com os nomes de todas minhas colegas. Ao trabalho, o

professor atribuiu nota máxima e o elogiou. Anos mais tarde, quando passei em concurso público para ser professora na UEL, ele me cumprimentaria no corredor. Deu-me boas vindas e recordou-se do tempo em que fui sua aluna no 3º ano do Colegial, no Colégio Vicente Rijo. Dirigiu-me este comentário metafórico: ‘Sempre soube que você era um cisne em meio aos patos’. Wolf, wolf – nunca me esqueci da leitura em voz alta do conto do little John, feita pela professora Marilda do Couto Cavalcanti10, minha professora de Literatura em língua inglesa. Não era apenas seu inglês que era notável e cristalino; sua postura firme e, ao mesmo tempo, delicada, Suas aulas dispensavam recursos tecnológicos

6 Doutorado em Letras Assis pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil (1990). 7 Panóptico é um tipo de construção que permite, de certo ponto, avistar todo interior de um edifício. É o sistema arquitetônico das prisões. Para ilustrações, vide: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010. 291p. Título original: Surveiller et punir. 8 Máquina elétrica IBM. 9 Doutorado em Literatura Brasileira. 10 Doutorado em Linguistica Aplicada pela University Of Lancaster, Grã-Bretanha (1983).

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e multimeios tão valorizados atualmente. Era como, se posso me valer de metáfora, uma apresentação de balé clássico.

11 Graduei-me em 12 de setembro de 1987, como primeira aluna da turma (turno noturno) de Letras Anglo-Portuguesas. Foram à minha formatura, minha mãe e irmãs. À missa de ação de graças e à cerimônia de colação de grau, realizadas à noite, em datas separadas, meu pai se fez ausente.

12 Em 1988, iniciei curso de Especialização em Língua Inglesa, à noite, na UEL. Era a segunda turma de tal curso e foi a primeira a colher concluintes, logo, monografias. Pesquisei, sob paciente orientação da professora Kilda Prado Gimenez,

os estilos cognitivos de empresários londrinenses. Foi minha primeira experiência em pesquisa, com levantamento de dados, abordagem estatística e apriorismo teórico, logo, método analítico dedutivo. Não gostei desse tipo de pesquisa, pois, apesar de ter trabalhado com amostragem estritamente delimitada com suporte de profissional da Estatística da UEL, percebi que era possível salientar resultados e simplesmente me pautar em percentuais aparentemente inexpressivos relativos a fenômenos importantes com os quais tal abordagem não era capaz de lidar, dada sua discreta incidência nos dados. Aprendi a usar a voz cartesiana, pretensiosamente neutra, presunçosamente “humilde” pelo uso do dêitico de primeira pessoa do plural (nós); fiz amplo uso de voz passiva, apagando qualquer vestígio meu no manuscrito – ou, pelo menos, fazendo assim, porque assim me fora ensinado, sem pensar, sem saber e sem ter consciência do que aprenderia depois. Seguindo-se à banca de arguição da monografia, lembro-me apenas que a professora Kilda me falou que se sentia muito lisonjeada e recompensada, pelos elogios do avaliador Durvali Emílio Fregonesi13, que atribuíra ao escrito, status de dissertação de mestrado e a generosa nota máxima. Mais importante que a nota foi a doçura de um gesto de Kilda, que me surpreendeu com um

11 Edina Pugas Panichi. Professora patronesse dos formandos em Letras Anglo-Portuguesas (Turma 1983|2), entregando a Simone Teshima certificado de Láurea Acadêmica e medalha de Honra ao Mérito. Moringão. Londrina, setembro de 1987. 12 Márcia, Lavínia, Simone, Seiko e Luciana. Missa de Ação de Graças. Catedral de Londrina, 1987. 13 Doutor em Linguística pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1984).

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vaso de delicadas flores e com um bilhete tão atencioso14. Somente em 1994, realizei curso de verão na Columbia University, em Nova Iorque. Tive como incentivadora para fazê-lo a colega de curso e de alojamento, à época, Denise Ismênia Bossa Grassano15. Foi a primeira vez que deixei esposo e filho. Experiência que parecia durar século para passar, tamanha saudade que sentia dos dois. Denise e eu fomos aceitas na universidade americana, mediante teste TOEFL, que fizemos no próprio campus. Talvez banalidades, mas aprendi mais sobre regras sociais universitárias naquele país do que propriamente conteúdos técnicos ou teóricos memorizáveis. Destaco três regras básicas: (1) pontualidade; (2) conforto (alimentos e bebidas permitidos em sala de aula. Essa regra particularmente se chocava com as da minha professora universitária, Zita Kiel, que jamais permitira alimentos em sala de aula); (3) mão erguida para sinalizar desejo de tomar o turno. Meu interesse pelo Mestrado junto à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), também o devo à Denise. Por dois anos, fomos parceiras de viagens semanais, de carro, de Londrina a Campinas. Com Denise, percebi o quanto eu era “bitolada”, pois só pensava em ler os textos em todo fiapo de tempo disponível. Era impossível acompanhar Denise, apreciadora de bons restaurantes, com textos para ler. Então, aprendi que, se não lesse como o teria feito, se estivesse sozinha, também não seria o fim do mundo. Se bem que, um dia, Denise, duas colegas da UNICAMP – Malu (UNESP-Assis) e Rita (Vitória, ES) e eu estudamos em Shopping, horas antes de assistirmos ao arrepiante Seven16. À UNICAMP, devo o início de minha educação crítica. Para ser justa, devo-a principalmente a John Robert Schmitz17, mais que professor, mais que doutor: educador! Cursei duas disciplinas ministradas por ele: Teorias Gramaticais e gramáticas pedagógicas (no 1º semestre de 1995); Metodologia da Investigação em Linguística Aplicada (matéria conduzida juntamente com as professoras Marilda do Couto Cavalcanti e Maria José Rodrigues Faria Coracini18, no 2º semestre de 1995). Também cursei a disciplina Linguística e Ensino de Línguas: Modelos teóricos de aquisição de segunda língua e língua estrangeira. Ela foi ministrada pelos professores John Robert Schmitz e José Carlos Paes de Almeida Filho19, na Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, SP, de 20 a 24 de março de 1995. Além dos conteúdos ministrados, recordo-me claramente de como o professor John nos ensinou a dar os primeiros passos, melhor dizendo, a “abrir a boca”, a 14 Envelope: À querida Simone Reis. Cartão: Simone, foi um prazer trabalhar com você. Obrigada por seu êxito. Kilda. 10/09/89 (tradução minha). 15 Doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (2007). 16 Os sete pecados capitais (1995). Crime, mistério, suspense. Diretor: David Fincher. Atores: Morgan Freeman, Brad Bitt e Kevin Spacey. Dos sete pecados capitais, inveja e soberba parecem habitar pessoas mais preocupadas com a vida alheia do que com sua própria. 17 Doutorado em Letras e Linguistica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1975). 18 Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988). 19 Doutorado em Doutorado em Linguística pela Georgetown University, Estados Unidos (1984).

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emitir opinião, a expressar dúvida, discordância das ideias dos autores lidos e crítica a tais escritos, fundamentada em razões concretas. Por ter sido aluna de John, pagaria, mais tarde, o preço de ouvir acusação de colega minha na UEL de que não tive ética profissional alguma, por ter discutido texto de sua autoria em sala de aula e por ter apontado a fragilidade da relação entre asserção e evidências por meio de dados. Dessa acusação nunca pude me defender, pois a pessoa que “levou”-lhe tal informação não se deu o trabalho de documentar fatos, tampouco de ingressar com processo formal dirigido a minha pessoa ou à coordenação do curso do qual eu fazia parte como docente. Dentre possíveis razões pela qual tal pessoa “levara” informações desastrosas à colega, hipotetizo certo efeito de abstinência de telenovelas. Nunca me foi dada a palavra para minha defesa. Também minha relação com a colega jamais seria mesma. Penso que, quando uma decisão de rompimento é tomada unilateralmente, qualquer movimento de reaproximação somente tem chance de funcionar quando quem rompe tem o benefício da dúvida ou se baseia em construções concretas do passado. John Schmitz me ensinaria depois que, quando queremos criticar ideias, que critiquemos os estrangeiros, porque estão bem longe de nós; não critiquemos os nacionais, por sua baixa capacidade de assimilação de crítica (tomam a crítica para si e não para o seu trabalho). Retornando dessa digressão, John é biblioteca viva, sempre nos dando referencias pontuais de autores seminais em seus campos, aqueles cujas obras, se as conhecermos, nos dão condição de igualdade de debate fora do território tupiniquim. John sempre usou a língua portuguesa em todas as aulas. Dizia que ninguém estava na UNICAMP para aprender inglês, o que pessoalmente achava pena, pois eu valorizava oportunidades de contato com a língua inglesa. O professor também respondia, quando alguém lhe perguntava como pronunciar nomes de autores: ‘Pronunciem do jeito que quiserem. Quando encontrarem o autor, perguntem para ele’. Tal resposta estava longe de ser negligente ou grosseira. Era a pura verdade: quantas pronúncias de meu sobrenome não ouvi, no exterior, ao longo dos anos? Como o pronunciaram nunca teve importância. Um dia, ao retornarmos do intervalo das aulas matutinas, o professor John esperou que todos adentrassem a sala para tomar a palavra. Expôs a todos que colega da turma faltara algumas vezes e não entregara um dos trabalhos da disciplina, que ainda estava no início. Tal pessoa atribuía essas lacunas acadêmicas a problemas de saúde. Então, John nos reportou suas palavras, as quais haviam provocado indignação na colega. Em minhas palavras, recordo assim a mensagem: ‘Saúde em primeiro lugar. Vá se cuidar. Quando estiver bem, retorne, pois para acompanhar aulas no Mestrado, é preciso comparecer e ter êxito nos trabalhos’. Meus conceitos na instituição e fora dela foram sempre máximos. Todavia, recebi conceito B+20, com recomendação da docente para publicar o trabalho em periódico. Ela vinculou o decréscimo na nota à entrega do trabalho uma semana após o prazo que estipulara. Eu não tinha desculpa para o atraso: trabalhar em dois lugares em Londrina; passar, dependendo da variação do tempo, de 5 e meia a 7 horas em 20 O conceito B+ não teve peso no conceito final, em razão de que os dois outros professores, John Schmitz e Marilda do Couto Cavalcanti, atribuíram-me conceitos A na disciplina.

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dirigindo o percurso Londrina-Campinas e mais tantas horas de Campinas a Londrina; ter vida doméstica familiar. Não fosse a política da referida professora com respeito a prazos e notas, não teria como ter me tornado quem tenho sido. Devo a ela minha conduta de dilatar prazos sempre que um aluno me pede e desde que isso não implique em desvios com prejuízos aos sistemas hoje informatizados da universidade. Faço isso não apenas em razão de que sou humanamente incapaz de ler com a devida atenção dezenas de trabalhos que recebo, em uma única semana, mas também porque acredito que nenhum aluno pediria algo de que não precisasse realmente. Ademais, considero injustificado reduzir notas de alunos, mesmo que irrisoriamente, por motivo não estritamente de pertinência intelectual. Na minha experiência profissional, pedidos de dilatação de prazos para entrega de trabalhos não são frequentes. Dias antes da defesa da dissertação, escrevi ao meu orientador, José Carlos Paes de Almeida Filho, indagando se ele tinha alguma recomendação a fazer. Ele respondeu:

José Carlos estava certo, pois eu soube agradecer os apontamentos feitos por Marilda do Couto Cavalcanti e recebi com alegria suas sugestões para publicação de artigos a partir dos resultados da pesquisa defendida21. Sou imensamente grata à Denise, por tornar menos árduo esses enfrentamentos semanais, mensais e anuais. Do muito que aprendi na UNICAMP, destaco meus conhecimentos em pesquisa qualitativa, em especial, etnografia ericksoniana, caminho que trilhei no Mestrado e que foi, anos depois, reconhecido e valorizado na Holanda e EUA. Elogio a organização da instituição, pois é sua prática exigir de cada pós-graduando, que somente efetive o depósito de seu manuscrito para defesa (de mestrado ou doutorado), mediante quitação de todas possíveis pendências junto à instituição (ex.: devolução de livros na biblioteca, apresentação de documentos na diretoria de 21 Também soube o que dizer, ao responder a pouco mais de 100 apontamentos da avaliadora externa. De fato, eu poderia ter respondido a mais 900, porque a defesa não foi, nem de longe, cansativa quanto os anos de viagens de carro.

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assuntos acadêmicos, devolução de equipamentos por ventura tomados de empréstimo, entre outros itens). A UNICAMP faz com que o interessado (o aluno) percorra os setores e faça a liquidação de pendências, cada uma delas devidamente assinada por respectivo funcionário. Não é burocracia, é responsabilidade pelo patrimônio público. Não é a UNICAMP que corre atrás de equipamentos que “somem”. Outro elogio à minha casa de mestrado é o apoio logístico que dão aos pós-graduandos que têm trabalhos aceitos por eventos no exterior, como foi o meu caso: bastando comprovar o aceite do trabalho, o depósito foi feito diretamente em conta-corrente, antes da realização do evento. A instituição não é burocrática (não exige certificado, “papel” algum). É meritocrática: apoia, com expediência, quem cumpre os requisitos para pleitear subsídio, sendo capacidade intelectual obviamente o principal. Foi graças a subsídio da UNICAMP para apresentar trabalho em Kiel, Alemanha, que conheci grupo de pesquisadores holandeses, com os quais interagiria frequentemente durante o doutorado. Eu seria injusta se não tivesse gratidão à minha mãe e a João Bento, que se revezaram, cuidando de Vinicius, para que eu pudesse realizar aulas em Campinas. Também devo a JB minha habilidade de dirigir, pois foi ele quem me ensinou e juntos compramos nosso primeiro veículo (fusquinha bem velho). Casados, JB e eu continuamos a estudar. A diferença de nossos cursos de formação continuada era principalmente custos. Ele, agrônomo, buscou especializar-se com cursos valorizados para carreira de executivo. Cursou MBA pela Fundação Getúlio Vargas, com os custos majoritariamente pagos por seu empregador. Orgulho-me de tê-lo encorajado a expor à empresa sua vontade de estudar e de assessorá-lo na escrita da fundamentação de seu pedido. JB hesitava em pleitear o curso à empresa, primeiro por ser caro (no início da década de 2000, a mensalidade passava de R$ 1.000,00) e, segundo, por achar que poderiam interpretar seu pedido absurdamente pretensioso. Não argumentava sobre os benefícios que traria à empresa. Quando finalmente os expôs, obteve imediatamente aprovação de seu pedido. Também incentivei JB a estudar inglês no exterior e ele escolheu a Inglaterra, onde se fixaria por seis meses e aprenderia a língua que lhe seria passe para emprego, também como executivo, em outra grande empresa. JB havia tido aulas particulares de inglês com professora de cujas opções didáticas ele se queixava (joguinhos), porque pouco ou nada conseguia aprender. Na minha limitada avaliação, pensava que lhe seria benéfico desligar-se da língua portuguesa o maior tempo possível, enquanto aprendia a língua inglesa. A opção pelo estudo em outro país de fato maximizou seu contato com a língua-alvo, serviu para destravá-lo e também para que, em outro país, reconhecesse os potenciais e desafios que temos no Brasil, assim como os potenciais e problemas do país que o hospedou. A verticalização de nossa (JB e eu) educação foi o principal determinante de ascendência econômica. Concomitantemente a nossos trabalhos, estudos e criação de Vinicius, construímos nossa casa. Compartilhávamos leitura de Paratii: entre dois

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polos22. Desse livro, extraímos a citação com que abriríamos nosso caderno de controle de todas as despesas relativas à construção da casa:

...porque um dia é preciso parar de sonhar, tirar os planos da gaveta e, de algum modo, começar.

Ousamos sonhar, conquistar e viver nossos sonhos:

23 Morávamos na casa que construímos, quando, uma noite, recebo telefonema de meu irmão Rui, que estava com a esposa e a filha, ainda pequena, no Japão. Depois de me perguntar se eu estava bem, disse-me que precisava de meu conselho, que

22 Amyr Klink, brasileiro, relata em livro sua expedição à Antártida, ao Polo Norte e seu retorno à Paraty (RJ), ponto de partida. 23 Da construção da casa à morada de João Bento, Simone e Vinicius Reis, à Rua Juiz de Fora, 110, Jardim Sumaré, Londrina, PR. Vinicius (shorts amarelo) ‘ajudando’ os pedreiros. Na piscina, os primos Vinicius, Carolina e Lucas.

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havia ligado para mim e não para os pais, tampouco para irmãos, pois eu era forte. Então, me disse que estava com câncer no intestino, que os médicos no Japão haviam lhe dito que era preciso ser operado com urgência. Ele queria minha opinião quanto a submeter-se à cirurgia lá ou voltar ao Brasil para fazê-la aqui. Chocada, só consegui responder que o amava, como o amo, e que eu ligaria para nosso primo Alcides, que chamamos, pela diferença de idades, de tio Sada. Médico, ele indicou o retorno ao Brasil o mais rápido possível, para poder

convalescer em meio aos familiares. Assim, Rui o fez. Por indicação de Vera (Lúcia Lopes Cristovão24, colega de trabalho), Rui foi operado e acompanhado pelo médico Mario Liberatti. Meu irmão não teve coragem de lhe perguntar qual fora o resultado da cirurgia. Era noite, ansiosa, liguei para o oncologista e recebi a tão esperada e pacificadora notícia. Feliz, Rui veio imediamente com sua família ao encontro da minha. Com pontos verdes da cirurgia, carregava Carolina no colo, e Sônia, a Lucas25 no ventre. Além de muito amado, Lucas26 seria meu afilhado, por ritos batismais, e distribuiria beijos que hoje, adolescente, reserva a garotas da sua idade.

Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe.27

Desde início de 2002, 15 anos de vida conjugal estão em lembranças de pretérito-mais-que-perfeito.

24 Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC-SP. 25 Simone e Lucas Teshima, sobrinho e afilhado. 26 Na escada da casa dos avós, em ordem crescente de idade, os primos Lucas Teshima, Alice Teshima Silveira de Melo, Bernardo Teshima Silveira de Melo, Carolina Teshima e Vinicius Reis. 27 Provérbio português.

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A partir de 2002, Vinicius e eu vivenciaríamos, dentre outros desafios, adaptação a novo espaço físico e geográfico. Naquele ano, eu me trataria de várias enfermidades, reflexos somáticos. Às tarefas de adequação de novo lar somavam-se as da universidade e, com isso, conseguia mascarar minha real condição, apenas uma vez revelada, em choro imediatamente reprimido por minha mãe.

28 29 Naquele ano, comuniquei aos membros da área de língua inglesa, a que pertenço na UEL, aceite de projeto de doutorado junto à Radboud Universiteit Nijmegen, sendo seu início previsto para 1º de setembro de 2002. Muito embora essa universidade me oferecera subsídios financeiros, aquele que seria meu orientador diário, isto é, o orientador com o qual teria mais frequentes contatos, me instruiu a pleitear recursos financeiros localmente, o que fiz junto à CAPES. Para tanto, eu

28 Formatura de Vinicius Reis, à conclusão da 8ª série, pelo Colégio Universitário. Londrina (13 Dez 2001). 29 Materiais de trabalho no escritório de Simone, em apartamento à Rua Henrique dos Santos, 62-A, em Londrina.

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precisava de três cartas de recomendação. Pedi a primeira uma colega da UEL30; a segunda, a Marilda do Couto Cavalcanti, e a terceira, à John Robert Schmitz. A terceira carta veio de meu orientador de Mestrado. Todos eles, autoridades da Unicamp, atenderam meu pedido imediatamente, inserindo suas recomendações no sistema. Na entrevista de que participei na CAPES, em Brasília, os arguidores fizeram destaques à lista de publicações de minha autoria e, principalmente, ao peso dos três acadêmicos que fizeram recomendações ao meu plano doutoral. À véspera de minha partida para Holanda, duas alunas vieram se despedir, trazendo um par de bolinhas de massagem e uma atenciosa mensagem.

Como esquecer tanta doçura?

Aos degraus do doutorado (de 1º de setembro de 2002 a 21 de dezembro de 2005) e pós-doutorado (em 2010), refiro-me na próxima subseção, por considerá-los partes de meu desenvolvimento e não apenas verticalização de escolarização.

30 Apesar de eu ter trabalhado nos projetos da citada colega durante anos como colaboradora, ela não respondeu meu pedido.