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EDUCAÇÃO, TEMPO E ESPAÇO: DAS HISTÓRIAS E DISCURSOS NA CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS MODERNOS O presente painel é composto por três pesquisas, sendo duas de Doutorado já concluídas e uma de Mestrado em andamento. A interlocução entre os estudos assume como escopo de análise o modo como diferentes instâncias estiveram articuladas ao projeto moderno de constituição de novos sujeitos. Para tanto, a educação moderna foi fundamental para que se passasse a produzir saberes e práticas específicos, mediante o controle do tempo e do espaço, como permitem compreender as produções dos Estudos Culturais, as teorizações de Michel Foucault e da História Cultural. A primeira pesquisa problematiza o modo como se constituem sujeitos na Modernidade, especificamente analisa a emergência das noções de infância e juventude mediante ao papel da tríade educação, escola e religião. O estudo infere que a crescente racionalização dos modos de governar tomando como instrumento a educação, produz condições para separação das noções de infância e juventude. Na sequência é analisada a temática da Educação Integral no Brasil, tendo como objeto de análise e discussão a influência do pensamento libertário anarquista nos discursos que se constituíram nacionalmente sobre o tema. Foram tomados como objetos de análise publicações feitas por teóricos anarquistas do início do século XX, e uma revisão de literatura sobre o tema. Por último procura-se mostrar o processo de significação positiva da Educação Integral ao longo da história da educação do Brasil, analisando pontualmente, os Jardins de Recreio na cidade de Porto Alegre em meados do século XX. Na perspectiva teórica deste painel, entende-se que a constituição da educação moderna e das práticas de Educação Integral se encontram em constante movimento de renovação e continuidade. Palavras-chave: Sujeitos. Educação. Educação Integral XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11051 ISSN 2177-336X

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EDUCAÇÃO, TEMPO E ESPAÇO: DAS HISTÓRIAS E DISCURSOS NA

CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS MODERNOS

O presente painel é composto por três pesquisas, sendo duas de Doutorado já concluídas

e uma de Mestrado em andamento. A interlocução entre os estudos assume como

escopo de análise o modo como diferentes instâncias estiveram articuladas ao projeto

moderno de constituição de novos sujeitos. Para tanto, a educação moderna foi

fundamental para que se passasse a produzir saberes e práticas específicos, mediante o

controle do tempo e do espaço, como permitem compreender as produções dos Estudos

Culturais, as teorizações de Michel Foucault e da História Cultural. A primeira pesquisa

problematiza o modo como se constituem sujeitos na Modernidade, especificamente

analisa a emergência das noções de infância e juventude mediante ao papel da tríade

educação, escola e religião. O estudo infere que a crescente racionalização dos modos

de governar tomando como instrumento a educação, produz condições para separação

das noções de infância e juventude. Na sequência é analisada a temática da Educação

Integral no Brasil, tendo como objeto de análise e discussão a influência do pensamento

libertário anarquista nos discursos que se constituíram nacionalmente sobre o tema.

Foram tomados como objetos de análise publicações feitas por teóricos anarquistas do

início do século XX, e uma revisão de literatura sobre o tema. Por último procura-se

mostrar o processo de significação positiva da Educação Integral ao longo da história da

educação do Brasil, analisando pontualmente, os Jardins de Recreio na cidade de Porto

Alegre em meados do século XX. Na perspectiva teórica deste painel, entende-se que a

constituição da educação moderna e das práticas de Educação Integral se encontram em

constante movimento de renovação e continuidade.

Palavras-chave: Sujeitos. Educação. Educação Integral

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11051ISSN 2177-336X

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A TRÍADE EDUCAÇÃO, ESCOLA E RELIGIÃO NA CONSTITUIÇÃO

DE SUJEITOS JOVENS E INFANTIS

Daniela Medeiros de Azevedo Prates

Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Riograndense

RESUMO

O presente artigo problematiza o modo como se constituem sujeitos na Modernidade,

especificamente objetiva analisar a emergência das noções de infância e juventude

mediante ao papel da tríade educação, escola e religião. Tal empreendimento ancora-se

nos referenciais dos Estudos Culturais em Educação e suas possíveis aproximações às

discussões foucaultianas sobre governamento. Infere que a crescente racionalização dos

modos de governar tomando como instrumento a educação produz condições para

separação das noções de infância e juventude, sobretudo a partir da paulatina separação

de classes de alunos presentes na construção da escola moderna. Imbricado as novas

formas de pensar da época, a busca de constituição dos sujeitos também passava pelo

fórum religioso, o qual lançou mão de uma série de estratégias para este fim, e que

excetuando especificidades, também estava articulado às concepções que se formavam

junto ao Estado Moderno. Embora a escola obrigatória fosse um instrumento para

educar as massas a uma nova ordem, as próprias condições presentes no período de

industrialização impossibilitaram seu crescimento, já que a rotina das fábricas abrangia

o trabalho de crianças e jovens. Diferentemente, os grupos socialmente favorecidos

ofereciam um tempo de espera entre a infância e a vida adulta, voltando-se a educação

dos sujeitos jovens. Aos demais, somente no final do século XIX e, sobretudo durante o

século XX, no contexto pós-guerra irrompem condições para se produzir um período de

tolerância social, embora se reconheça que distintas condições e experiências perpassam

o cotidiano de crianças e jovens, o que desafia a pensar diferentes infâncias e

juventudes.

PALAVRAS-CHAVE: Infância. Juventude. Educação.

Delineando a discussão

O presente artigo tem como objetivo problematizar o modo como se constituem

sujeitos na Modernidade, particularmente tratando da emergência das noções de

infância e juventude, através da tríade educação, escola e religião. Para tanto, o estudo

parte da análise bibliográfica a fim de tramar alguns dos fios desta rede complexa. O

que de forma alguma pretende construir edificações que sustentem um fundamento

originário do tema, ao contrário, ressalto que estarei delineando entre diferentes

possibilidades, dispersões de acontecimentos e modos de pensar um possível ponto de

apoio em que, em determinado momento, toma corpo as noções de infância e juventude.

Neste sentido, produzindo determinadas maneiras de dizer, pensar e agir sobre estes

sujeitos (FOUCAULT, 2002; VEIGA-NETO, 2003).

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11052ISSN 2177-336X

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A partir dos referenciais propostos, argumento que as definições acerca da

infância e da juventude eram ambíguas até recentemente, necessitando que uma série de

acontecimentos e mudanças nos modos de pensar permitisse sua paulatina separação,

entrelaçando-se a uma série de condições que tem como nó comum a instauração de

uma nova ordem na modernidade.

Tratava-se de um projeto civilizatório que tinha como pauta operar no

distanciamento entre homem e natureza, tema comum nas diferentes áreas de

conhecimento que passam a se constituir imbricadas aos ideais iluministas que

articulavam racionalidade e progresso para a construção de uma nova sociedade. A

educação, embora não fosse uma invenção da Era da Razão, foi indispensável na

tentativa de regulamentar uma nova ordem que se constituía, possibilitando que os

indivíduos se apropriassem e praticassem a “arte da vida social racional”. Isso

significava tornar a formação do ser humano uma responsabilidade administrada pelo

Estado, uma forma de condução que não se restringia mais as comunidades e a família.

Aproximando-nos ao conceito foucaultiano de governamento, podemos compreender

como um modo de condução das condutas que assume duas vias: o conhecimento e

condução do conjunto de indivíduos da população, voltando-se no controle e

administração às instituições e comunidades; e a condução de cada um, voltando-se a

relação consigo mesmo e com os demais (FOUCAULT, 1995; VEIGA-NETO, 2005).

Ao analisar a emergência da noção de infância na modernidade, Bujes (2001)

argumenta que o projeto civilizatório e educacional estiveram articulados na tentativa de

estabelecer novas pautas de condutas que distanciassem o homem da ideia de um

suposto estado de selvageria. Moralistas reformadores, ideólogos sociais – diferentes

instâncias passaram a produzir discursos sobre a infância, associando-se a significativas

mudanças nas formas de educar os sujeitos infantis, inclusive com sua

institucionalização e a paulatina separação da noção ambígua em que se pensou a

infância durante o período medieval. Concomitantemente, se produziu novos aparatos

para o seu controle e regulação, através de uma série de saberes que tomam como objeto

diferentes grupos da população, entre os quais o sujeito infantil, articulado às ações do

Estado, tornando-o conhecido em suas minucias, calculado e produtivo. A este processo

esteve presente o suporte institucional: família, escola, aparatos religiosos, médicos,

jurídicos – diferentes âmbitos procuraram produzir modos de pensar e conduzir a

conduta destes sujeitos, desde a mais tenra idade, cuidando-os e educando-os,

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possibilitando constituir a noção de uma infância que deve ser preservada, separada dos

adultos e, concomitantemente, sendo responsável por sua invenção.

Naradowski (2012) argumenta que para que se sustente esta relação de

assimetria entre os mais jovens e os adultos, não mais pelo entendimento de que fosse

algo natural, foi fundamental a legitimação do lugar de saber, de lei, de experiência do

adulto, conforme a concepção de Kant, como aquele capaz de conduzir os mais jovens a

um estado de autonomia, já que não possuiriam esta capacidade de discernimento

operativo, epistêmico e moral para responsabilizarem-se por sua formação. Nesse

sentido, torna-se pauta das discussões o que ensinar e como educar estes sujeitos,

levando-se em consideração os ideais de sociedade que se formavam e o conjunto de

estratégias em que se lança mão para conduzir os sujeitos aos fins desejados.

Assim, a preocupação extensiva com crianças e jovens na sociedade, permitindo

distingui-los entre gerações e ainda possibilitando produzir uma série de saberes e

investimentos sobre estes sujeitos, ocorre somente na modernidade, particularmente a

partir de determinadas condições. Até então, as distinções eram restritivas, direcionadas

as funções sociais, conforme as classes de pertencimento e relacionadas às concepções

de cada época.

Educar é preciso: o papel das instituições religiosas e escolares na

constituição de sujeitos jovens e infantis

Ariès (2011), ao analisar a história social da infância, argumenta que crianças e

jovens eram muitas vezes indissociáveis numa noção ambígua de infância que abrangia

o período de dependência até a vida adulta durante a Idade Média. O período amplo e de

limites imprecisos começa a se diferenciar no século XVIII com a separação da primeira

infância e adolescência, conforme as concepções da época e sendo restrito a

determinados grupos sociais.

Embora houvesse concepções acerca das idades da vida durante os séculos XIV

ao XVIII relacionadas aos ciclos da vida ou a organização social, a duração da infância

provinha da indiferença aos fenômenos propriamente biológicos, numa época em que

imperava a forte relação de dependência ao próprio sistema feudal, permitindo que as

palavras ligadas à infância fossem comumente empregadas para caracterizar a condição

de submissão dos homens nas funções sociais, como laicos, auxiliares e soldados.

Somente nas famílias nobres do século XVII, tornou-se mais frequente o uso de

vocábulos para designar a infância, porém ainda não consistia numa necessidade de

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separar crianças de jovens, mesmo que já estivesse se formando o sentimento de

infância que viria a inspirar a educação no século XX, através da preocupação de

eclesiásticos, homens da lei e moralistas no ensino da disciplina e costumes da época

(ARIÈS, 2011).

Varela e Alvarez-Uria (1992) consideram que moralistas e religiosos do

Renascimento criaram táticas para conservar sua autoridade e influência abaladas pelo

Estado Absolutista Monárquico e pelas dissidências no seu próprio seio. Destacam o

desenvolvimento de variadas práticas educativas que tinham os jovens como objeto de

moralização e apropriação da fé num momento em que a Europa se dividia entre

católicos e protestantes. Os reformadores católicos desenvolveram práticas educativas

que reformaram o próprio clero a fim de regular a vida e os costumes. Os moralistas

elaboraram programas educativos destinados à instrução dos jovens que tomavam a

educação como elemento chave para a tentativa de naturalização de uma sociedade de

classes e estamentos, criando a concepção de diferentes infâncias, conforme o

pertencimento social. Os protestantes, por sua vez, defendiam que se iniciasse desde

cedo a aprendizagem da fé e dos bons costumes.

Suscintamente cumpre salientar que o protestantismo constituiu-se em um

movimento liderado por Martinho Lutero, ex-padre dissidente da Igreja Católica, que

assumiu como um de seus principais pilares o acesso à Palavra sem as intermediações

da Igreja em sua interpretação. Conforme Hattge (2014), isso incidiu na crítica a forma

como a Igreja Católica colocava-se como intermediária na relação do fiel com Deus,

inclusive na confissão e a absolvição de pecados, realizando cobranças abusivas de

valores como forma de garantir ao fiel o acesso a morada no céu.

Hattge (2014) afirma, a partir de Dussel e Caruso (2003), que o que se colocou

em questão foi a tarefa de “governar as almas” permitindo tornar as pessoas ainda mais

crentes mediante o acesso à Palavra sem intermediações, concomitantemente, fazendo

com que conheçam e aceitem a interpretação específica da Bíblia em sua profissão de

fé.

Para tanto, foi indispensável a tradução da Bíblia do Latim para a Língua Alemã,

concomitantemente desenvolvendo-se uma série de estratégias voltadas à alfabetização

já que a maior parte da população não sabia ler. Conforme Azevedo (2008), as famílias

foram instrumento desse modo de condução que articulou os interesses da Igreja

Luterana e do Estado mediante a imposição de exames paroquiais direcionados à

educação familiar, como responsável pela alfabetização dos filhos, e de ensinamentos

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que incluíam desde o catecismo e os salmos até definições sobre sistema social, relações

patriarcais e hierárquicas. Tudo isso estava contido no “Hustavla”, um pequeno

suplemento do catecismo produzido por Lutero, levando a Suécia a índices elevados de

alfabetização na segunda metade do século XIX, cuja população já era basicamente

leitora nos meados do século XVIII.

A esse respeito, é importante ressaltar que Lutero abandonou a exigência da

leitura individual e universal da Bíblia, passando a enfatizar a prédica e o catecismo,

sendo, portanto, tarefa dos pastores o controle e compreensão dos textos sagrados, já

que a livre interpretação do texto-fonte poderia mostrar-se subversiva. Nessa direção,

instaurou-se uma nítida separação entre as políticas escolares dos Estados luteranos, que

visavam à formação das elites pastorais e administrativas, e a educação religiosa do

povo a qual se baseava no ensinamento oral e na memorização. Foi somente no final do

século XVII com a “Segunda Reforma” iniciada com o Pietismo que o acesso individual

à Bíblia trouxe como implicância o domínio da leitura como exigência, o que passou a

ser regulamentado pela escola elementar (AZEVEDO, 2008).

Desde a Reforma Protestante do século XVI, a educação foi uma área estratégica

de atuação, a qual buscava atingir tanto as camadas altas da sociedade – através dos

grandes colégios – como auxiliar no proselitismo e manutenção do culto nas camadas

populares – através das escolas paroquiais que funcionavam em salas da igreja ou em

prédios ligados ao templo. Portanto, tal atuação assumiu propósitos religiosos,

alfabetizadores e de educação elementar. Diversos são os exemplos dessa trajetória,

talvez de forma mais expressiva até hoje em diversas denominações seja a Escola

Dominical, criada por Robert Raikes em 1780 no contexto da industrialização na

Inglaterra. Influenciado pelo pastor e reformador inglês John Wesley, atuante no século

XVIII entre presos e pobres, Raikes criou a Escola Dominical, espaço de estudos

voltados à educação cristã que assumiu preocupações emergentes com a educação de

crianças e jovens que não estavam isentos de longas jornadas de trabalho durante a

semana, um dos fatores que os impedia da inserção nas escolas, dessa forma, capturando

o tempo livre do domingo, único dia em que não trabalhavam, para inserção nas Escolas

Dominicais (AZEVEDO, 2008).

Hattge (2014) argumenta que foi uma preocupação marcante do protestantismo

desenvolver de forma maciça a escola elementar, alicerçada em outros métodos,

fundamentando-se no ensino das Línguas, História, Música e Matemática. Ao mesmo

tempo, tendo como finalidade propiciar a construção de uma “obediência consciente”

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como forma de afirmação de uma nova religiosidade. Conforme a autora, isso trouxe

como desafios o necessário investimento e manutenção das escolas e adesão da

população. O que, por um lado, remetia a necessidade de produzir junto às famílias o

reconhecimento da escola como espaço de confiança para educação dos seus filhos,

sobretudo quando isso viria a limitar horas de trabalho dedicadas no auxílio do sustento

a família (HATTGE, 2014).

A Igreja Católica, por sua vez, percebeu que não bastava pregar e ouvir

confissões, conforme descreve Hattge (2014) a partir de Gauthier (2010), no final do

século XVI, os católicos enfatizaram a necessidade de criar instrumentos mais efetivos

na dominação das almas, dessa forma, fundando escolas, como exemplo a formação da

comunidade dos Jesuítas.

Hattge (2014) explica que o sistema de ensino adotado pelos jesuítas era

organizado e regulamentado por um texto, um manual, conhecido como Ratio

Studiorum, o qual fundamentava procedimentos e formas de organização da sala de

aula, dessa forma, permitindo um olhar a todos e cada um, através de um processo de

individualização.

Nesse contexto em que se percebe essa estreita relação entre a Religião e a

Pedagogia, na instituição das bases da escola moderna e sustentando os

primeiros movimentos de busca pela massificação do ensino escolar, porém

de forma individualizante, como podemos perceber através da organização da

sala de aula jesuíta, vejo operando o que Foucault chamou de poder pastoral,

que, “com a Reforma, depois a Contrarreforma, põe em questão a maneira

como se quer ser espiritualmente dirigido, na terra, rumo à salvação pessoal”

(FOUCAULT, 2008, p. 119). Passamos, nesse momento, de um governo

soberano, preocupado com o território e com a proteção às fronteiras, a um

governo pastoral, que se exerce sobre “um rebanho” (HATTGE, 2014, p. 43).

Os jesuítas, influenciados pelas teorias pedagógicas dos humanistas,

substituíram os métodos de intimidação por intervenções mais sutis e

individualizadoras. O aluno passou por um processo de aprisionamento, vigilância e

separação, seguindo comportamentos e princípios correspondentes à relação de

tutelamento ao mestre, autoridade moral. Conforme Varela e Alvarez-Uria (1992), a

partir do governo dos jovens, desenvolveram-se práticas que possibilitaram consolidar

saberes de caráter pedagógico, relacionados à manutenção da ordem e da disciplina,

estabelecendo níveis de conteúdo e inventando métodos de ensino.

Instaurou-se um modo específico de educação que rompeu com as práticas

habituais de formação da nobreza e de aprendizagem dos ofícios das classes populares,

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que até então se desenvolviam através dos laços com a comunidade. Os colégios

passaram a ser separados do poder político e seus colegiais foram separados das suas

comunidades, sendo individualizados, afastando-se do controle, do acesso ao saber e a

seus instrumentos que passaram a ser domínio do professor (VARELA E ALVAREZ-

URIA, 1992).

Assim, os colégios dos jesuítas, dos doutrinários ou dos oratorianos presentes

nos século XV ao XVII substituíram as comunidades e conduziram a sala de aula da

escola medieval à noção de instituição. A partir do século XV os estudantes passaram a

ser divididos em grupos dirigidos por um mesmo mestre e num mesmo local; no

decorrer do século, passou a ser designado um mestre para cada grupo específico,

porém ainda no mesmo local. O processo de separação dos grupos por mestres e,

finalmente, por classes em espaços distintos foi oriundo da necessidade de adaptar o

ensino do mestre ao nível do aluno; uma distinção que dava mais atenção ao grau de

instrução do que a idade, mas que de certa forma criava separações etárias (ARIÈS,

2011).

Conforme Ariès (2011), o processo de separação por classes, relacionado à

adaptação do ensino foi fundamental para a emergência do sentimento de infância e

juventude, indiferente na formação dos pedagogos medievais, conservadores e

humanistas. Foram os reformadores escolásticos do século XV e, sobretudo, os jesuítas,

oratorianos e jansenistas do século XVII que passaram a diferenciar seus métodos dos

métodos medievais de simultaneidade ou repetição, presente na pedagogia humanista, e

a se preocupar com o método adequado ao conhecimento da particularidade infantil.

Apesar da persistência da indiferença à noção de idade, a partir do século XV e,

sobretudo, nos séculos XVI e XVII, o colégio passou a dedicar-se à formação de jovens,

inspirando-se nos modelos jesuítas e na literatura pedagógica de Port-Royal, passando a

utilizar a disciplina oriunda do modelo eclesiástico ou religioso como instrumento de

aperfeiçoamento moral e espiritual como valor intrínseco da edificação e ascese,

adaptada a um sistema de vigilância nos colégios.

Embora o colégio possibilitasse prolongar a noção de infância, no século XVII

poucos tinham acesso aos estudos já que a duração dos ciclos escolares estava

relacionada às classes de pertencimento e ao permanecimento de uma infância curta, a

qual era rompida pela precocidade do ingresso no exército e pelo casamento.

A partir do final do século XVIII, a escolaridade passou a preocupar-se com o

ciclo integral de crianças e jovens, que tinham em média quatro a cinco anos no mínimo

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de estudos. No entanto, essa prolongação da infância durante o ciclo escolar permanecia

restrita às condições sociais, abrangendo as famílias de burgueses, juristas e

eclesiásticos.

Conforme Ariès (2011), as classes de idade se organizaram em torno das

instituições. Assim, a adolescência passa a ser distinguida a partir do final do século

XVIII e, sobretudo, entre os séculos XIX e XX, através da conscrição do serviço

militar; da mesma forma que a infância longa passa a ser constituída paulatinamente

entre os séculos XVI e XVIII através da noção escolar.

Varela e Alvarez-Uria (1992) argumentam que a escola obrigatória, assim como

a concepção da família conjugal, surgiu como instrumento de intervenção de um

conjunto de especialistas para educar as classes populares de acordo com a ordem social

burguesa; sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX e início do século XX.

Até então, o trabalho infantil inviabilizou que se expandisse a escolarização.

Quando surge essa realidade social que temos chamado de juventude

na sociedade ocidental? Quando se generaliza um período da vida

compreendido entre a dependência infantil e a autonomia adulta? Quando se

difundem as condições sociais e as imagens culturais que hoje associamos a

juventude? (FEIXA, 1999, p. 34-35).

A partir de tais indagações, Feixa (1999) argumenta que a Revolução Industrial

teve forte relação com tudo isso. Nessa direção, evoca a metáfora de Musgrove sobre a

invenção da máquina de vapor por Watt em 1765, que se deu concomitantemente a

invenção da juventude em 1762 com a publicação de Emílio de Rousseau, culminando

na correlação de que “o jovem foi inventado ao mesmo tempo que a máquina a vapor”

(MUSGROV apud FEIXA, 1999, p. 35). Corroboro com Feixa (1999) ao considerar

a forte influência de Rousseau nas posteriores teorias pedagógicas e psicológicas,

descrevendo a infância e a adolescência como estados naturais da vida, cuja passagem

corresponderia ao mito do bom selvagem, origem da civilização. Assim, para o filósofo,

a adolescência seria um segundo nascimento, uma metamorfose interior que despertaria

o sentido social, a consciência, embora se tratasse de um período marcado

inevitavelmente por suas crises, resultando na necessidade de segregação do mundo dos

adultos e de assistência constante para sua educação. Considero ainda importante

ressaltar que as arguições do filósofo imbricam-se nos modos de pensar presentes num

período fortemente marcado pelo projeto civilizatório, cujo objetivo central seria a

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construção de uma nova sociedade distinta dos velhos hábitos da aristocracia feudal,

através da noção de civilização.

No entanto, como argumenta Feixa (1999), não podemos identificar o

nascimento da juventude em um momento ou acontecimento preciso, nem mesmo

restringi-lo a influência de um pensador. Trata-se de uma construção que remete às

reconfigurações que vinham se produzindo desde a emergência da modernidade e que

criou, portanto, mudanças nos modos de pensar e significativas transformações nas

diversas instituições, conforme discutimos anteriormente.

Feixa (1999) também se remete às arguições de Ariès para compreender as

principais alterações nesse período, podendo resumir nossa discussão aos seguintes

pontos:

O primeiro ponto diz respeito à crise do modelo de aprendizagem que se dava

em meio à vida adulta e, muitas vezes, fora de casa, passando para um crescente

sentimento de responsabilidade dos pais em relação à educação dos filhos.

O segundo ponto refere-se ao deslocamento dos modelos de ensino da escola

medieval aos sistemas de instrução modernos dos colégios e internatos, até a separação

de classes presentes na escola moderna, que acabou por resultar na separação por

idades.

Como terceiro ponto, remete à conscrição obrigatória, presente desde a

Revolução Francesa, cuja produção de um corte geracional articulado ao distanciamento

dos jovens de suas comunidades de origem, criou condições para que surgisse pela

primeira vez o que denomina de consciência geracional – o que podemos definir como

um mundo propriamente juvenil, compartilhando modos de ser, linguagens, costumes,

que visibilizamos de forma mais acentuada após a Segunda Guerra.

No quarto ponto, Feixa (1999) destaca as profundas alterações no mundo do

trabalho, sobretudo a partir da Segunda Revolução Industrial, quando a maior

produtividade reduziu a mão-de-obra, inclusive de menores, fortemente presente no

contexto inicial da industrialização. Com isso, incrementou-se a necessidade de

preparação técnica para o desenvolvimento das tarefas, produzindo a necessidade de

maior formação para o trabalho. Progressivamente, vemos se produzir um período de

tolerância até o ingresso ao mundo do trabalho que se articula à requisição de formação,

possibilitando o crescente acesso à escola secundária, ainda que em condições

socialmente distintas. Conforme Feixa (1999), neste período, surgiram as primeiras

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associações juvenis modernas dedicadas ao tempo livre, ao lazer, ponto fundamental ao

tratarmos da noção de juventude.

A partir de então proliferaram teorias sociológicas sobre a suposta instabilidade

e vulnerabilidade dos mais jovens, o que serviu para justificar a necessidade de sua

separação do mundo adulto e sua proteção, surgindo então legislações, saberes,

serviços, programas e políticas específicos seja para a infância, seja para a juventude,

resguardadas suas especificidades.

CONSIDERAÇÕES

A partir da interlocução entre os estudos propostos, podemos inferir que

diferentes instâncias estiveram articuladas ao projeto moderno de construir novos

parâmetros a sociedade que se distinguissem dos modos de pensar presentes no contexto

medieval. A educação foi indispensável para a constituição de uma nova ordem que se

instaurava, sendo imprescindível referir a importância do âmbito religioso como

primeiro movimento de educação das massas, quer seja pelo movimento reformista e

suas propostas de alfabetização e evangelização, quer seja pelas táticas de intervenção

presentes na Contra-Reforma, através da escolarização especialmente dos estratos

médios da população.

As instituições passaram a articular um novo modelo de educação, responsável

pelo controle do tempo, do espaço, da atividade. Articulando-se a este processo, a

separação de classes de alunos relacionada à adaptação do ensino pautou-se pela

preocupação educacional da particularidade dos sujeitos, assim as classes acabaram por

criar distinções entre as ambíguas noções de infância e juventude, levando a posterior

separação dos sujeitos por idade.

A crescente racionalização dos modos de governar tendo como objeto a

população foi fundamental para que se passasse a produzir saberes e práticas específicas

para conduzir diferentes sujeitos, possibilitando que a formação do ser humano se

tornasse uma responsabilidade administrada pelo Estado, uma forma de condução que

não se restringia as comunidades e a família. Embora a escola obrigatória fosse um

instrumento para educar as massas a uma nova ordem, as próprias condições presentes

no período de industrialização impossibilitaram seu crescimento, já que a rotina das

fábricas abrangia o trabalho de crianças e jovens. Diferentemente, os grupos

socialmente favorecidos ofereciam um tempo de espera entre a infância e a vida adulta,

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voltando-se a educação dos sujeitos jovens. Aos demais, somente no final do século

XIX e, sobretudo durante o século XX, no contexto pós-guerra irrompem condições

para se produzir este período de tolerância social, embora reconheça que distintas

condições e experiências perpassam o cotidiano de crianças e jovens, o que nos desafia

a pensar diferentes infâncias e juventudes.

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LIBERDADE INDIVIDUAL E COLETIVA: OS ANARQUISTAS E A

EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL

Rochele da Silva Santaiana Professora Adjunta da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul

RESUMO

O presente trabalho integra uma pesquisa sobre a Educação Integral no Brasil, tendo

como objeto de análise e discussão a influência do pensamento libertário anarquista nos

discursos que se constituíram nacionalmente sobre a Educação Integral no Brasil. O

estudo se ancora no campo dos Estudos Culturais, mais precisamente na teorizações

pós-estruturalistas e a produção de Michel Foucault. Foram tomados como objetos de

análise publicações feitas por teóricos anarquistas do início do século XX e uma revisão

de literatura sobre o tema. Objetivou-se com este estudo demonstrar que o pensamento

libertário deixou discursos e proposições de trabalho, que influenciaram propostas de

jornada ampliada no decorrer da história da educação brasileira. Considera-se que os

ideais que balizaram as Escolas Modernas Anarquistas se encontram ainda presentes

mesmo na proposta contemporânea de ampliação da jornada escolar, conhecido como o

Programa Mais Educação. Importa pensar que o programa Mais Educação, se organiza e

se implementa em um período tido e reconhecido como Neoliberal, mas se vale de

concepções anteriormente defendidas educacionalmente sobre a Educação Integral.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Integral. Anarquistas. Escolas Modernas

PENSAR A EDUCAÇÃO INTEGRAL E O ANARQUISMO

É preciso analisar, estudar e conhecer as condições de possibilidade que

tornaram a Educação Integral, com uma jornada escolar ampliada, uma ação que se

estende para todo o país na atualidade via Programa Mais Educação. Tais definições

políticas e educacionais, no entanto, estão não só se redescrevendo em consonância com

o tempo em que vivemos, como também gerando um deslocamento no papel da escola,

nos sentidos atribuídos à educação e a quem cabe tal tarefa. Cabe então neste estudo por

meio de uma análise genealógica do discurso, descrever uma perspectiva de constituição

da Educação Integral, que tem ficado esquecida quando se discute este tema: a educação

anarquista da década de vinte.

Ler sobre as mudanças que ocorreram nas práticas educacionais neste recorte de

tempo, analisá-las e pensá-las me permitiu querer utilizar a perspectiva genealógica

como uma atividade do pensamento, um modo de entender as coisas colocadas num

registro estandardizado de conhecimentos verdadeiros, ou melhor, uma forma de pensar

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e de operar com o pensamento. A perspectiva genealógica, que empreendo nesse estudo,

irá procurar, como descrito por Foucault, “ativar saberes locais, descontínuos,

desqualificados, não legitimados, contra toda a instância unitária que pretenderia

depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro”

(FOUCAULT, 2003a, p. 171). Quero dizer, com isso, que, em tempos diferentes,

diversas propostas de Educação Integral se gestaram e foram, por meio de práticas

educacionais, constituindo um ordenamento discursivo sobre a temática, um dizer

verdadeiro sobre isso. Esmiuçar, por meio da análise de documentos, como o discurso

que institui uma verdade sobre a Educação Integral. Tais verdades geram efeitos nas

práticas atuais pois se perpetuam historicamente por meio dos discursos.

Essa perspectiva, é por esta não se ocupar com o discurso científico vigente, na

medida em que não pretende sujeitar mais saberes, mas sim “dessujeitar os saberes

históricos e torná-los livres, isto é, capaz de oposição e de luta contra a coerção de um

discurso teórico, formal e científico” (FOUCAULT, 1999, p. 15). Para tanto objetiva-se

analisar recortes de discursos de representantes do movimentos anarquista bem como

análise de documentos da época, como forma de fazer emergir a constituição dessa

proposta no Brasil.

LIBERDADE INDIVIDUAL E COLETIVA

Alguns silenciamentos devem ser tomados como os não ditos de um discurso, no

caso, aqui, da Educação Integral. Talvez, para muitos estudiosos desse tema, os

discursos que inicialmente visibilizaram uma educação que contemplasse maiores

aprendizagens e se efetivasse eminentemente com atividades no contra turno, oficinas

num turno de horas mais abrangentes, encontra seu maior expoente no pensamento e nas

propostas defendidas por Anísio Teixeira. Já na década de 20, com os pioneiros da

Escola Nova, seu nome ocupa centralidade, até os dias de hoje, nos discursos ligados à

Educação Integral. Longe de questionar a importância desse educador, ao analisar essa

temática, deparei-me com outra proposta de Educação Integral, anterior à sua, que se

preocupava com a formação integral do sujeito: a proposta anarquista.

A educação brasileira começou a receber a influência das produções e ideias

anarquistas entre o final do século XIX e início do século XX, advinda, principalmente,

das vivências dos imigrantes, principalmente europeus, que para o Brasil vieram. Aqui

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chegando, constituíram um sólido movimento operário e puseram em circulação o

ideário socialista de seus países de origem. Para esse intento, constituíram uma proposta

envolvendo ações na educação e na cultura, por meio de escolas, que ficariam

conhecidas como Escolas Modernas ou Racionalistas, bibliotecas e centros culturais.

No entanto, antes de falar sobre as Escolas Modernas, que se encontram no centro de

meu interesse, considero relevante fazer um breve panorama desse pensamento e de

como ele se articula com a perspectiva de uma Educação Integral, tal e qual a

discutimos atualmente. Considero importante referenciar a dissertação do professor Dr.

Silvio Gallo “Educação Anarquista: por uma pedagogia do risco”, defendida em 1990

na Unicamp. Nessa pesquisa, Gallo se debruça sobre o pensamento anarquista e analisa

a concepção de educação libertária, bem como a influência de Paul Robin enquanto

teórico da educação integral.

A educação anarquista tem como princípios o “investimento na liberdade

individual e coletiva” (GALLO; MORAES, 2005, p. 88). Pode-se pensar que, ao adotar

como princípio educativo a liberdade de todos e de cada um, tal movimento se

posiciona contrário a “qualquer organização política e social baseada na coação”

(SILVA; SANTOS, 2009, p. 114). Para o movimento anarquista, instituições como o

Estado e a Igreja agiam dessa forma, o que explica o caráter de rejeição da educação

pública, tanto quanto do ensino privado, que no início do século XX era dominado pela

Igreja Católica.

O que os anarquistas propuseram foi outro sistema educacional, não vinculado a

nenhum governo, portanto não estatal visto como um aparato repressivo, nem a

nenhuma corrente religiosa ou Igreja, por acreditarem que esta havia “aperfeiçoado os

meios de submissão das consciências” (SILVA; SANTOS, 2009, p. 117). Acreditavam

que a educação tinha papel fundamental na constituição de um sujeito livre, autônomo

em suas decisões e escolhas, logo, não priorizavam a questão hierárquica como

fundamental. Esta deveria ser ultrapassada no decorrer do crescimento e da autogestão

dos sujeitos.

A luta pela educação de qualidade para as crianças e jovens se inseria nas outras

tantas lutas sociais que o movimento anarquista mundialmente defendia: “era necessário

instrução para melhor reivindicar, ao mesmo tempo em que era necessário reivindicar

para poder estudar mais” (CALSAVARA, 2012, p. 5). Inúmeros foram os autores,

intelectuais, educadores, que discutiram a educação libertária, mas Gallo contribui ao

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elucidar a importância de Paul Robin para a construção de uma proposta de base

libertária e anarquista integral.

Podemos considerar o pedagogo Paul Robin (1837-1912) como o

principal nome da pedagogia libertária, por ter sido o primeiro a conseguir

trabalhar, na prática, as diversas questões educacionais teóricas que vinham

sendo discutidas nos meios socialistas. Toda a teoria pedagógica libertária

que vinha sendo construída, como temos visto, por importantes figuras como

Proudhon, Bakunin e outros, embora bastante interessante e profunda não

tinha uma vinculação mais estreita com a realidade prática. (GALLO, 1990,

p. 177).

Paul Robin exerceu papel de influência nos Congressos da Associação

Internacional dos Trabalhadores defendendo a educação libertária, entre 1880 e 1894,

mas, sobretudo, foi o educador responsável pela efetivação do primeiro projeto de

Educação Integral na prática, quando se tornou diretor do Orfanato Prévost, na

localidade de Cempuis, nos arredores de Paris (GALLO; MORAES, 2005). Cabe o

esclarecimento que a educação anarquista se autodenomina libertária por ter como princípio

fundamental e condição de sua existência a liberdade na constituição do aluno, pois visava “a

emancipação de todos os seres humanos.” (CALSAVARA, 2012, p. 2). Durante 14 anos,

Robin dirigiu esse orfanato, preconizando o que para ele seria o ideal da Educação

Integral, a articulação entre a educação intelectual, a educação física e a educação

moral.

Praticando a educação integral, articulou o trabalho manual e o

intelectual em aulas ao ar livre, junto à natureza. A inovação das colônias de

férias junto ao mar visava o desenvolvimento moral; praticava a coeducação

sexual, a formação científica e artística com ênfase na educação musical.

Robin tinha repugnância pelos exames, notas e competições. O

relacionamento com os alunos era antihierárquico, com base na

solidariedade, considerada a virtude mais importante à vida social (SILVA;

SANTOS, 2009, p. 118).

As produções de Robin exerceram forte influência naquele que viria a ser

conhecido como o criador das Escolas Modernas ou Racionalistas, o espanhol Francisco

Ferrer Y Guardia, que iria influenciar na constituição das Escolas Modernas brasileiras.

Nascido na região da Catalunha, dedicou-se a lutar contra o regime monárquico em seu

país, o que lhe causou o exílio na França, onde “conheceu o ideal libertário preconizado

pelos anarquistas e identificava-se com Paul Robin, o idealizador da Pedagogia

Integral” (GONÇALVES; NASCIMENTO, 2007, p. 69).

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A Escuela Moderna de Barcelona, criada pelo catalão, funcionou entre 1901 e

1905, com inspiração nas teorizações de Robin. Ferrer criou um método pedagógico

intitulado Pedagogia Racional, “com forte inspiração positivista, colocando as ciências

naturais como centrais” (GALLO; MORAES, 2005, p. 90). Defendia, com isso, um

ensino voltado para o aluno, não só no professor, o que nos permite pensar nos

elementos da pedagogia ativa que seria defendida futuramente por outros educadores.

Advogava, ainda, a favor da espontaneidade em detrimento da mera aquisição de

conhecimento, e que este “deveria ser retirado da experiência ou demonstração racional

e científica” (GONÇALVES; NASCIMENTO, 2007, p. 71). Devido às suas ideias,

Francisco Ferrer, acabaria sendo preso, condenado por um tribunal militar e, fuzilado

em 1909. No entanto, após sua morte, muitas Escolas Modernas inspiradas em sua

proposta foram abertas na Espanha, e “espalharam-se também fora da Espanha,

inclusive pelas Américas e, em especial no Brasil” (GALLO; MORAES, 2005, p. 90-1).

A morte do educador catalão gerou visibilidade e divulgação de sua proposta

educacional, de forma que acabou por fundamentar “a prática pedagógica anarquista no

Brasil, processo que se refletiu nas escolas que foram fundadas após 1909” (GALLO;

MORAES, 2005, p. 93).

ESCOLAS MODERNAS NO BRASIL

Em terras brasileiras, a proposta de Educação Integral, defendida por Robin e

materializada por Ferrer Y Guardia nas Escolas Modernas, ganhou força junto aos

signatários do movimento imigrante operário, sendo organizado um Comitê Pró-Escola

Moderna, cabendo ressaltar que a organização política dos movimentos sindicais se

dava muito por meio dos Congressos Operários, ocorridos em 1906, 1913 e 1920, sendo

que o Segundo Congresso Operário do Brasil, em 1913, teve como uma de suas

temáticas de discussão o tema da Educação e Instrução da Classe Operária (GALLO;

MORAES, 2005). As escolas anarquista tinham a finalidade de incentivar a constituição

desse novo sistema educacional, que não deveria ter nenhuma ligação com o ensino

público estatal, conforme constata o excerto a seguir:

Em numerosa reunião de livres pensadores, realizada no 17 do

corrente, nesta capital, ficou resolvido a fundação de uma Escola Moderna

que seguirá o programa da escola fundada em Barcelona pelo grande

pensador Francisco Ferrer. Ficou constituído um comitê para tratar de

organizar conferências e festas em benefício da escola, e desde já contam

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seus fundadores com valiosos auxílios, entre eles o de um terreno que foi

doado a fim de fazer dele um sorteio em benefício da escola. (LEUENROTH,

Jornal A Lanterna1909).

A partir daí, muitas foram as Escolas Modernas ou Racionalistas fundadas no

Brasil, destacando-se em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Ceará, entre outras.

Podem ser citadas Escola Eliseu Reclus (Porto Alegre/RS), Escola Germinal (Ceará), Escola

da União Operária (Franca/São Paulo), Escola da Liga Operária de Sorocaba (Sorocaba/São

Paulo), Escola 1º de Maio (Rio de Janeiro), Escola Moderna (Petrópolis/ Rio de Janeiro) e as

Escolas Modernas nº 1 e 2 em São Paulo (GALLO; MORAES, 2005). A fundação da Escola

Moderna nº 1 deu-se em 1912, pelo professor e seu diretor João Penteado, sendo logo

depois feita a fundação da Escola Moderna nº 2, também em São Paulo, com a direção

de Adelino de Pinho. É importante destacar que o funcionamento desses educandários

prescindia de um horário e de um tempo mais estendido, como divulgado no periódico

“A Lanterna”:

Faz parte do objetivo desta escola, também, atrair a atenção dos pais

dos alunos para a obra da educação e instrução segundo o método

racionalista, e nesse propósito são realizadas pelo respectivo professor, todos

os meses, festas escolares, constantes de conferências sobre assuntos

educativos e sociais, hinos e recitativos escolares. Horário: Aula diurna: das

11h às 4 horas da tarde; aos sábados a aula termina a uma hora ou duas da

tarde, logo após a volta do passeio campestre feito pelos alunos; Aula

noturna: das sete as nove da noite, todos os dias, menos aos sábados.

Programa: o programa com que foram iniciados seus trabalhos consta de

português, aritmética, geografia, história e princípios de ciências naturais. O

seu programa, todavia, como está determinado será ampliado de acordo com

necessidades futuras (LEUENROTH, Jornal A Lanterna,1914, grifo do

autor).

Os anarquistas defendiam, como princípio da educação integral, a autonomia

individual e social, que levaria a uma autogestão. Mesmo posicionando-se contrárias às

relações hierárquicas vigentes nas escolas da época, as Escolas Modernas, pelo excerto

destacado, não abriam mão da organização, do planejamento da ação e dos horários

definidos para a execução de sua proposta. Como constituir esse aluno, sem um

processo permanente de investimento na subjetivação do mesmo? As formas de

governar a conduta do outro se alteram historicamente, mas acontecem mesmo em uma

proposta que defendia exatamente o contrário, pois a educação, enquanto atividade de

ensinar e aprender, promove constantemente o governamento dos sujeitos por ela

abarcados.

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No entanto, o sistema de ensino criado pelos militantes anarquistas não foi

fecundo por muito tempo. Data-se que as escolas tiveram funcionamento legal entre

1912 a 1919. Ao serem vistas como um risco a sociedade brasileira, dadas as críticas

feitas ao governo e à Igreja Católica, foram paulatinamente sendo acusadas de

“propagar ideologia perigosa aos valores e a moral da sociedade” (GALLO; MORAES,

2005, p. 95). Ainda, de acordo com esses autores, a justificativa final para o fechamento

das Escolas Modernas no país se deu devido a uma explosão que teria acarretado na

morte do Diretor da Escola Moderna de São Caetano, em São Paulo. Tal acontecimento

teria assegurado que esses estabelecimentos de ensino estariam lidando com a subversão

e a insegurança para os alunos, e já no “final dos anos 10, quando a repressão ao anarco-

sindicalismo se tornou mais severa, essas escolas foram fechadas e seus professores

perseguidos pela polícia” (GHIRALDELLI JR., 1987, p. 129).

O fechamento das escolas de São Paulo estendeu-se para todo o país e essa

proposta ficou esquecida da educação brasileira da época. Em síntese, os pressupostos

da Educação Integral Anarquista, como já dito anteriormente nesse texto, eram a

educação intelectual (apreensão do patrimônio cultural da humanidade), a educação

moral (prática da solidariedade e da liberdade) e a educação física (aprimoramento do

corpo e a educação manual). Nesse âmbito, a educação anarquista julgava que deveria

acontecer “[...] essencialmente pelo trabalho e para o trabalho” (GALLO, 1993, p. 35) e

isso vem ao encontro de outra proposta dessas escolas: o ensino politécnico. Tal ensino

poderia levar os sujeitos tanto ao domínio do conhecimento teórico, como ao

conhecimento prático de uma atividade, o que iria gerar a emancipação e a completude

de uma formação integral. Esse empreendimento seria realizado no que era denominado

de acordo com a teorização libertária de oficina-escola, não funcionando atrelado ao

espaço escolar, mas no próprio espaço fabril, pois “a oficina-escola deve estar na

própria fábrica, aberta a todos, em contato direto com a produção” (GALLO, 1993, p.

38).

Vemos na atualidade, um retorno de um discurso já posto em circulação há

décadas: o investimento em horas estendidas, em oficinas práticas e períodos de aulas

teóricas. Embora com diferenciações, dada a contextualização social e econômica de

sua época, é o que o Programa Mais Educação defende atualmente. Guardadas as

proporções, percebe-se que o princípio é semelhante. Retomando o funcionamento da

escola de Paul Robin, que veio a inspirar as Escolas Modernas, percebemos relações

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com a atual jornada ampliada da escola para uma escola nas propostas de Educação

Integral:

Quando passavam para a aprendizagem das oficinas, os alunos tinham um

período de nove horas diárias de estudos, assim divididas: cinco horas eram

destinadas aos trabalhos manuais (sendo três horas na oficina e duas nos

trabalhos coletivos); as outras quatro horas eram destinadas aos trabalhos

escolares propriamente ditos, como as aulas teóricas. Entre os dez e os treze

anos – período em que terminavam os estudos primários – as crianças

passavam em revezamento por todas as atividades práticas [...] (GALLO,

1993, p. 41).

O sujeito das décadas de 10 e 20, do século XX, necessitava de determinadas

aprendizagens para empregar-se e constituir-se como um cidadão. Para a proposta

anarquista libertária, aqui descrita, isso só seria possível por meio de horas de oficinas

práticas aliadas às aulas teóricas. Essa é a semelhança encontrada com o Programa Mais

Educação. Embora as solicitações e incitações ao sujeito que integra uma

governamentalidade neoliberal sejam de outra ordem, suas potencialidades serão

buriladas por meio de atividades em oficinas práticas em um contra turno,

complementando as horas curriculares existentes na escola.

CONSIDERAÇÕES: PARA NOVOS PENSARES

É interessante observar, também, que alguns preceitos defendidos pelos

anarquistas, principalmente ligados à autonomia, aos direitos, à consciência social

individual e coletiva, entre outras, balizaram outras teorias educacionais ao longo do

tempo. É possível ver esses resquícios nos discursos das Teorias Críticas, por exemplo,

mas, acima de tudo, a defesa pela formação integral dos sujeitos atravessará outras

tantas propostas de jornada ampliada, que em dado momento tiveram condição de

existência no Brasil.

Pode-se, talvez, pensar em uma “[...] vontade de verdade que atravessou tantos

séculos de nossa história” (FOUCAULT, 2004a, p. 14) quanto ao discurso em defesa da

formação integral dos sujeitos. E se houve condições de emergência na atualidade, de

uma proposta de educação estendida em todo o país, podemos atribuir ao dispositivo de

intersetorialidade que surge mediante uma urgência atual, mas que teve os pontos de

apoio e sustentação, no decorrer da história da educação brasileira, inclusive da proposta

Anarquista.

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Importa dizer que os ideais defendidos pelas Escolas Modernas e a proposta de

Educação Integral e emancipadora anarquista, embora não pareça deixou herdeiros e

nos possibilita novos pensares sobre a temática. Resquícios de discursos em defesa de

uma Educação Integral de qualidade para todos se encontram ancorados também em

propostas vindouras como: as Escolas- Parque e Escola- Classe de Anísio Teixeira em

Brasília, os CIEPS no Rio de Janeiro, os CIASCs e mesmo o Programa Mais Educação.

Este último que integra a proposta de ampliação da jornada escolar com oficinas em

diversas áreas. Agregar variadas atividades com maior duração de tempo, como forma

de melhorar a formação integral dos sujeitos se constitui uma história não só do

passado, mas do presente.

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UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NO INÍCIO DO

SÉCULO XX: OS JARDINS DE RECREIO

Esp. Fabiana Gazzotti Mayboroda

(Bolsista de Mestrado CAPES-PROEX da Unisinos)

RESUMO

O presente artigo pretende estabelecer relações entre as atuais movimentações políticas

e legais com o processo de significação positiva da Educação Integral ao longo da

história da educação do Brasil. Operando a partir de pressupostos teórico-metodológicos

da História Cultural procura analisar um objeto específico, os Jardins de Recreio na

cidade de Porto Alegre em meados do século XX. A ideia central é realizar uma

discussão centrada na interdisciplinaridade procurando articular as relações sociais,

culturais e individuais em uma análise que não pode ser dissociada. Para tal, realizou-se

uma busca por documentos junto ao Centro de Memória do Esporte (CEME) da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Arquivo Institucional da Secretaria

Municipal de Esporte de Porto Alegre, Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APRS) e

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Preocupa-se com as interpelações

entre o contexto educacional nacional como: as escolas parque e o movimento

escolanovista, bem como com os acontecimentos locais, a configuração de grupos

sociais e atores políticos estabelecidos na cidade de Porto Alegre. Como resultado é

possível afirmar que a utilização da educação em tempo ampliado se constituiu como

um movimento de reificação do projeto de modernização da cidade, estabelecendo

vínculos entre os espaços públicos e o processo de industrialização, bem como com a

ideologia higienista, onde a rua é vista como um problema e precisa possuir controle do

Estado. Por fim, sugere-se que há nas atuais políticas uma retomada do discurso

negativo sobre a criança na rua, necessitando a emergência de políticas sociais que

proporcionam controle da população.

Palavras-chaves: História da Educação; História Cultural; Educação Integral

A Educação Integral no Brasil vem se apresentando, nos últimos anos, como

uma Política Pública em fase de expansão e busca impactar, positivamente, a

aprendizagem dos alunos, através da ampliação do período de permanência na escola.

Há um discurso recorrente do Estado a respeito da ampliação da jornada escolar. Assim,

as expressões “tempo integral” e “jornada ampliada” vêm marcando de forma

contundente as legislações da Política Educacional.

Posso salientar o artigo 34 da Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, que prevê progressivamente esta ampliação. Na Lei 10.179/2001,

que se refere ao Plano Nacional de Educação, prioriza-se o atendimento do tempo

integral como um dispositivo de enfrentamento as desigualdades sociais e oportunidade

de aprendizagens. Para financiar tais ações indutoras, o Fundo de Manutenção e

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Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação,

Lei nº 11.494/2007, em seu artigo 10, garante a distribuição proporcional de recursos,

diferenciando tempo integral de tempo parcial. Já no Ministério de Desenvolvimento

Social, há o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que articula um conjunto de

ações para retirar crianças e adolescentes da prática do trabalho precoce. O Programa

fomenta e incentiva a ampliação do universo de conhecimentos, por meio de atividades

culturais, esportivas, artísticas e de lazer no período complementar à escola, ou seja, na

jornada ampliada.

Já a meta número 6 do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) aponta

para a educação em tempo integral. Por isso, é possível afirmar que esta temática vem

assumindo um papel privilegiado no que se refere a centralidade dos discursos positivos

relacionados a qualidade de Políticas Públicas em Educação. Um bom exemplo disso

são as posições dos dois candidatos a presidente de república no pleito de 2014 que

ambos defendiam abertamente a expansão da jornada escolar.

De uma certa forma, é positivo o discurso a respeito da educação de tempo

integral, cabendo muito pouca discussão sobre os processos educacionais. Nesse artigo,

tecerei algumas considerações históricas as quais apontam para a emergência desta

noção nas Políticas Públicas e o percurso metodológico escolhido para analisar

historiograficamente uma experiência acontecida nas praças da capital do Rio Grande

do Sul, no começo do século XX, foi a História Cultural.

Percurso teórico-metodológico

A pesquisa está sustentada em documentos que foram localizados e

identificados. Tais documentos encontram-se: no Centro de Memória do Esporte da

UFRGS, Arquivo Institucional da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre,

Arquivo Institucional da Secretaria Municipal de Esporte de Porto Alegre, Arquivo

Público do Rio Grande do Sul (APRS) e Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

(AHRS).

Nos arquivos e acervos institucionais, identifiquei documentos relacionados com

a Instrução Pública e o Serviço de Recreação Pública, como: diário de Frederico

Gaelzer, Boletins Técnicos Informativos, livros de registro de frequência de escolas e

alunos, minutas de formação, cartas, plantas das praças, correspondências entre órgãos.

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Esse artigo tem a intenção de se analisar a experiência de Educação Integral e

sua relação aos movimentos cíclicos, interessa-me “[...] a rede de condicionalismos em

que se inscreve” (CHARTIER, 2000, p.92) os acontecimentos sociais e a história. A

linha de pensamento historiográfico que constrói uma história a partir da análise das

condições de possibilidades e analisa através das desconstruções e das irregularidades é

a História Cultural. A História Cultural, segundo Peter Burke (2008, p.15) “[...] não é

uma descoberta ou invenção nova. Já era praticada na Alemanha com esse nome

(Kulturgeschichte) há mais de 200 anos”. Evitando os dualismos, a História Cultural

levou a um novo pensar da história. Ela procura identificar como uma determinada

realidade social é pensada e construída. Assim, a cultura é entendida como prática que

está associada às categorias de representação e apropriação (CHARTIER, 2000). A

História Cultural é aquela que privilegia as relações de contexto, a cultura, as práticas e

representações que acontecem na vida cotidiana. Logo,

[...] não há como fazer história cultural sem discussão teórica sobre as

relações entre cultura e sociedade. É este aprofundamento teórico, em diálogo

com outros campos do conhecimento, que nos permite produzir, como

historiadores, a visibilidade das diferenças das várias formas de

manifestações humanas e dar-lhes inteligibilidade no tempo e espaço

(VEIGA; FONSECA, 2003, p. 16).

Foi a partir do movimento dos Annales que “uma nova representação do tempo

histórico” foi se desenvolvendo. Essa “Nova História” problematiza e valoriza a micro

história, dando “[...] ênfase na relação entre o local e o global” (BURKE, 2005, p.64). A

concepção dessa pesquisa passa pela interdisciplinaridade e enfatiza que:

Esse é mais um aspecto a partir do qual se podem facilmente derrubar as

cercas artificiais que hoje erigimos no pensamento, dividindo os seres

humanos em várias áreas de controle: os campos, por exemplo, dos

psicólogos, dos historiadores e dos sociólogos. As estruturas da psique

humana, as estruturas da sociedade humana e as estruturas da história

humana são indissociavelmente complementares, só podendo ser estudadas

em conjunto. Elas não existem e se movem na realidade com o grau de

isolamento presumido pelas pesquisas atuais. Formam, ao lado de outras

estruturas, o objeto de uma única ciência humana (ELIAS, 1987, p.38).

Penso que uma das grandes tarefas é compreender a História Cultural para além

de um método de pesquisa, ou seja, entender que os documentos não são apenas simples

reflexos transparentes do passado, mas retratos simbólicos com significados diferentes

conforme a interpretação e as suas estratégias. Sim, a História Cultural tem uma faceta

metodológica, ou seja, nos ensina a partir de uma inserção aos documentos históricos, o

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registro e a produção de informações. A História Cultural apresenta outra faceta, a

epistemológica, a qual procura na multiplicidade dos objetos historiográficos, o

movimento, refutando totalmente a unidade de abordagem, construindo a análise em

torno de um intercâmbio de debates, especialmente recusando a redução da história a

uma só dimensão ao primado político-social na historiografia (CHARTIER, 2006). Essa

corrente historiográfica procura compreender as práticas que constrõem o mundo como

representação. Logo, busca analisar as influências entre práticas e representações, e a

apropriação delas com seus desdobramentos sociais e políticos.

Dimensões históricas e constitutivas da emergência da Política

Por algumas veredas das legislações, pesquisei evidências e experiências

históricas que fomentaram a ampliação da jornada escolar. Assim, os artigos e pesquisas

realizados sobre as experiências de Educação Integral pelo Brasil remetem-se a partir do

teórico Anísio Teixeira. Para Anísio, seria importante ampliar o dia letivo para

enriquecer o currículo com atividades educativas, afirma que “com a chamada

democratização da escola primária, devia-se cuidar, não de reduzir o currículo e a

duração da escola, mas de adaptá-la à educação para todos os alunos em idade escolar

(1977, p.128).

O discurso de Educação Integral se coloca como contraponto ao contexto

educacional higienista-eugenista e autoritário da época. Começa a ter visibilidade a

perspectiva de uma prática mais ampla e democrática, proposta por educadores de visão

progressista, como Anísio Teixeira e os escolanovistas.

O primeiro modelo para o Brasil, idealizado por Anísio Teixeira, surgiu a partir

da segunda metade do século XX, em Salvador, Bahia, na forma de Escolas-Classe e

Escolas-Parque. A proposta residia em um sistema escolar que recebia as crianças em

dois turnos. No primeiro, elas recebiam a educação do “ensino propriamente dito”, das

letras, ciências e matemática. Na Escola-Parque, em prédios com estrutura adequada a

outras atividades, os alunos tinham acesso à educação social que incluía educação física,

música, educação sanitária, assistência alimentar e leitura (TEIXEIRA, 1997). Este

modelo viria a ser mais tarde adotado no Rio de Janeiro, nos Centros Integrados de

Educação Pública, pensados por Darcy Ribeiro ao longo das gestões do governador

Leonel Brizola, tendo como objetivo oferecer um ensino de qualidade para camadas

populares.

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Acreditando nas experiências regionalizadas de Educação, pesquisei sobre as

praças de Porto Alegre e a sua relação com a Educação Integral, em meados do século

XX (FEIX, 2003; MAZO, 2004; CUNHA, 2010; LYRA, 2011). As primeiras praças

públicas de Porto Alegre são datadas do final do século XIX, porém “as formas de

ocupação destas praças foram sendo reformuladas em decorrência das transformações

políticas, econômicas e sociais desencadeadas no final do século XIX” (CUNHA;

MAZO; STIGGER, 2010, p. 2).

No início do século passado, a cidade de Porto Alegre, segundo Pesavento

(1995, p.282), passa por um processo de construção, ordenação e transformação. Logo,

“[...] emerge a grande cidade, que coloca para os governos a necessidade de intervir no

espaço, ordenando a vida, normatizando a sociedade”. A identidade desejada da urbe

era ser um espaço belo, moderno, higiênico e regrado constituindo num momento

emergente do discurso da modernidade e da cidadania justificando, assim a intervenção

estatal nos espaços públicos de lazer. As praças, antesdas modificações urbanas, eram o

espaço da liberdade dos movimentos e dos encontros. Posteriormente, tal liberdade foi

substituída pela intencionalidade pedagógica, regrada pela lógica da modernidade.

Porém, a partir da criação dos “jardins de recreio”, foram construídas estruturas físicas

que marcaram fronteira, fazendo com que “[...] o cercamento ou confinamento que

evitando a dispersão dos corpos, os torna acessíveis à ação do poder” (VEIGA-NETO;

LOPES, 2004, p.233). Portanto, “[...] as construções e espaços do poder público poderá

obedecer a uma intencionalidade enquanto projeto e concepção, distante das referências

simbólicas que o seu uso e consumo elaborar” (PESAVENTO, 1995, p.282).

O Serviço de Recreação Pública foi iniciado em outubro de 1926, quando o

prefeito de Porto Alegre, o Doutor Otávio Rocha, convidou o professor Frederico

Guilherme Gaelzer para planejar as atividades relacionadas a esse órgão. Porém,

somente em 27 de novembro de 1950, o prefeito, pelos Decretos Leis nº 500 e nº 501,

cria o Serviço de Recreação Pública. Em 1926, é inaugurado o primeiro Jardim de

Recreio na Praça Alto da Bronze, no governo do Intendente Otávio Rocha. Hoje essa

praça recebe o nome de General Osório. Surge, então a figura de Frederico Guilherme

Gaelzer, que conforme Boletim Técnico Informativo número 7 de 1953, foi o diretor

municipal dos Jardins de Recreio e praças de Esportes da capital gaúcha. SegundoFeix

(2003, p.53), desde a década de 20, do século passado, Frederico instaurou “os Jardins

de Recreio de Porto Alegre, que funcionavam nas praças como escolhinhas para

crianças (Jardim de Infância)” (2003, p.53). É nestas Praças de Educação Física, que “o

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interesse institucional em educação, esporte e recreação eram prementes” (CUNHA,

MAZO, STIGGER, 2010, p.13), tendo como objetivos a transmissão das tradições da

raça e a formação de uma cidadania prestante. Nesse período, segundo Ghiraldelli

(1989) a Educação Física regia um projeto de assepsia social e o meio para atingir tal

objetivo era educar a alma e o corpo, através de um programa escolar-curricular rígido.

Em um artigo escrito sobre as Praças de Porto Alegre, Cunha, Mazo e Stigger

fazem um apontamento histórico, justificando a mudança de como passam a ser

chamadas as praças depois da implementação da Educação Física a partir da criação do

Serviço de recreação Pública. As escolas passam a se apropriar das Praças de Desporto,

“[...] constituindo-se em uma extensão das mesmas” (2010, p.3).

A Educação Física, sob a influência da Filosofia Positivista tinha como objetivo

modelar o corpo, através dos exercícios físicos para melhorar os padrões da raça,

consequentemente melhorando a sociedade (CASTELLANI FILHO, 1988). O corpo

passava então por três níveis: “da moralização do corpo pelo exercício físico, o do

aprimoramento eugênico incorporado à raça e a ação do Estado sobre o preparo físico e

suas repercussões no mundo do trabalho” (CASTELLANI FILHO, 1988, p.85).

Nessavisão, a Educação Física passa a ter um “olhar” integrador e preocupado com a

Educação Infantil. Não bastava apenas educar o corpo para ter uma melhor higiene

mental e corporal, a educação visava também a educação moral e intelectual tendo

como foco o melhoramento da raça, assim, “[...] em torno dessa questão identitária, não

raras vezes encontramos nos documentos consultados a articulação da expressão

“Educação Física” com outras de cunho utilitário, como “fortalecimento da raça”,

“aperfeiçoamento da raça”, “hygidez do corpo” (LYRA; MAZO, 2010, p.2011).

Os discursos dos profissionais eram fundamentados na defesa da saúde pública

e no ensino de novos hábitos de higiene. Esses discursos que a sociedade porto-

alegrense aceitou, autorizou e fez circular como verdadeiros (FOUCAULT, 2000, p.23),

foram chamados de “movimento higienista” e tinha uma ideia de consolidar um projeto

de modernização o qual a Europa era o modelo. No início do século XX, surge,

também, um discurso fatalista a respeito das dificuldades econômicas no Brasil.

Segundo esse discurso, o Brasil era composto de raças inferiores, logo não poderia

tornar‐se forte. Assim, a democratização da saúde e da educação era necessária para que

a sociedade adquirisse novos hábitos e atitudes, objetivando melhores condições de

vida, pois, segundo Foucault (2005, p.126), os “[...] métodos que permitem o controle

minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e

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lhes impõem uma relação de docilidade ‐ utilidade, são o que podemos chamar as

"disciplinas"”. Essas disciplinas são exercidas através dos corpos e da segurança que se

exerce sobre a população. Logo, disciplinar é tanto a organização e a classificação dos

conhecimentos, quanto domesticar os corpos e as vontades. Logo, as praças tornaram‐se

espaços de segurança, onde se criou, organizou e se planejou um meio. Esse meio tinha

a intenção de intervir sobre a população e seus corpos. Portanto, percebe‐se uma série

de mecanismos de segurança – população – governo que tornou‐se a política pública da

recreação em Porto Alegre no início do século XX.

Essa pequena análise sobre uma experiência historicamente construída leva a

compreensão que, embora a implementação de algumas Políticas Públicas tenham

trazido para as práticas escolares a discussão da Educação Integral, existem experiências

na história educacional que também defendiam tais ideias. Essas práticas já apontavam

em suas discussões para otempo estendido e a utilização de outros espaços públicos. E

atualmente um dos mecanismos de fomento das Políticas Públicas de Educação com o

objetivo de ampliação da jornada escolar é o Programa Mais Educação.

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