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EDUCAR EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”, VIOLÊNCIA E BULLYING: NOVOS DESAFIOS À DOCÊNCIA Os múltiplos fenômenos característicos das violências em meio escolar, sobretudo, os recorrentes episódios de bullying, têm desafiado agentes escolares, instigado pesquisadores e desestabilizado teorias pedagógicas. Professores têm sido instados a repensarem suas práticas cotidianas quando, o “discurso de ódio” (Glucksmann, 2007) ao diferente que reverberam em confrontos físicos e/ou psíquicos, os impossibilitam de operacionalizarem os conteúdos curriculares predeterminados. Visando contribuir com tais desafios, o painel aqui proposto apresenta três pesquisas direcionadas à temática da violência escolar e ao “discurso de ódio” que a produz expressivamente no cotidiano das escolas. Na primeira delas, recorte de uma tese de doutorado, são expostas concepções e experiências de violência vivenciadas durante estágios supervisionados por licenciandos em três Universidades cariocas. A segunda pesquisa discute a interrelação entre o alto índice de casos de bullying nas escolas brasileiras e o não reconhecimento das diferenças culturais e identitárias construídas e reconstruídas no ambiente escolar. Defende ainda que o não reconhecimento da diferença vem acompanhada de uma maldade banalizada, algo semelhante ao que a filósofa Hannah Arendt (2011) descobriu em seus estudos sobre a violência social. O terceiro texto direciona-se especificamente a presença do “discurso de ódio”, segundo Glucksmann (2007), e do “elogio da intolerância” apresentado por Zizek (2006), como desafios para nossos dias se desejamos uma escola e, sobretudo, uma sociedade mais justa e tolerante. O texto advoga ainda que a tarefa educativa hoje se encontra desafiada por tempos difíceis nos quais educar para a tolerância e contra a barbárie se apresentam como socialmente urgentes. O painel compreende, portanto, ser a articulação da temática da violência nos cursos de formação docente, do bullying especificamente, e o “discurso de ódio” que o aporta como uma importante contribuição aos desafios hoje enfrentados pela formação docente. Palavras-chave: Violência Escolar, Bullying, "Discurso de Odio" XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11118 ISSN 2177-336X

EDUCAR EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”, VIOLÊNCIA E BULLYING · Na primeira delas, recorte de uma tese de doutorado, ... temática da violência nos cursos de formação docente,

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EDUCAR EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”, VIOLÊNCIA E BULLYING:

NOVOS DESAFIOS À DOCÊNCIA

Os múltiplos fenômenos característicos das violências em meio escolar, sobretudo, os recorrentes

episódios de bullying, têm desafiado agentes escolares, instigado pesquisadores e desestabilizado

teorias pedagógicas. Professores têm sido instados a repensarem suas práticas cotidianas quando,

o “discurso de ódio” (Glucksmann, 2007) ao diferente que reverberam em confrontos físicos e/ou

psíquicos, os impossibilitam de operacionalizarem os conteúdos curriculares predeterminados.

Visando contribuir com tais desafios, o painel aqui proposto apresenta três pesquisas

direcionadas à temática da violência escolar e ao “discurso de ódio” que a produz

expressivamente no cotidiano das escolas. Na primeira delas, recorte de uma tese de doutorado,

são expostas concepções e experiências de violência vivenciadas durante estágios

supervisionados por licenciandos em três Universidades cariocas. A segunda pesquisa discute a

interrelação entre o alto índice de casos de bullying nas escolas brasileiras e o não

reconhecimento das diferenças culturais e identitárias construídas e reconstruídas no ambiente

escolar. Defende ainda que o não reconhecimento da diferença vem acompanhada de uma

maldade banalizada, algo semelhante ao que a filósofa Hannah Arendt (2011) descobriu em seus

estudos sobre a violência social. O terceiro texto direciona-se especificamente a presença do

“discurso de ódio”, segundo Glucksmann (2007), e do “elogio da intolerância” apresentado por

Zizek (2006), como desafios para nossos dias se desejamos uma escola e, sobretudo, uma

sociedade mais justa e tolerante. O texto advoga ainda que a tarefa educativa hoje se encontra

desafiada por tempos difíceis nos quais educar para a tolerância e contra a barbárie se

apresentam como socialmente urgentes. O painel compreende, portanto, ser a articulação da

temática da violência nos cursos de formação docente, do bullying especificamente, e o

“discurso de ódio” que o aporta como uma importante contribuição aos desafios hoje enfrentados

pela formação docente.

Palavras-chave: Violência Escolar, Bullying, "Discurso de Odio"

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11118ISSN 2177-336X

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UMA LEITURA ARENDTIANA DO DISCURSO DOCENTE ACERCA DA VIOLENCIA

EM MEIO ESCOLAR

Monique Marques Longo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

Novos fenômenos desafiam as práticas cotidianas docentes nas diversas instituições de ensino

independente do tipo de gestão, espaço geográfico e/ou concepção pedagógica adotada.

Professores apontam as múltiplas facetas da violência em meio escolar, das indisciplinas às

agressões físicas, como mote das dificuldades de se operacionalizarem os objetivos curriculares

predeterminados. Investigam-se estratégias para a mediação eficaz destes conflitos cujas causas

são consideradas multifatoriais (CANDAU, 1999). Nesse sentido, o presente trabalho tem como

objetivo apresentar uma pesquisa realizada em três Universidades cariocas visando compreender

o que se discursa acerca dos fenômenos violentos nas escolas cujas consequências os licenciados

enfrentam durante seus iniciais estágios supervisionados. Foram analisados seis currículos de

filosofia e sociologia, e entrevistados dezoito licenciandos matriculados nos seus últimos

períodos de graduação. A leitura proposta pela filósofa Hannah Arendt acerca do fenômeno da

violência constituiu-se como aporte teórico do trabalho. Algumas reflexões foram levantadas: (1)

as propostas de reflexões sobre o tema durante os cursos de formação docente são consideradas

pelos licenciados incipientes e não planejadas frente aos desafios que enfrentam durante seus

estágios, (2) a violência decorre da inexistência de espaço de fala/escuta do alunos e,

consequentemente, de negação de ação politica nas instituições educacionais, (3) a violência

pode decorrer da chamada “crise da autoridade” docente indistinta de um agir autoritário, (4) a

escassez de discussão sobre a violência escolar evidente nos cursos de formação docente fomenta

o descaso com o tema, ratifica uma certa “banalidade do mal”(Arendt, 2008) e pode, ainda,

constituir-se como um dos fatores propulsores da taxa de 75% de abandono nos cursos de

licenciatura (INEP, 2009).

Palavras-chave: violência escolar, prática de ensino, Hannah Arendt

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UMA LEITURA ARENDTIANA DO DISCURSO DOCENTE ACERCA DA VIOLENCIA

EM MEIO ESCOLAR

1. Introdução

São muitos e novos os desafios hoje enfrentados pelos diversos agentes educacionais no

cotidiano das escolas. Dentre estes, professores ressaltam o tempo despendido diariamente

resolvendo conflitos relacionados aos episódios violentos em salas de aula. Pesquisa

mundialmente coordenada pela Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico

(OCDE) postulou que os professores no Brasil gastam 20% do seu tempo resolvendo questões de

indisciplina, conflitos e resolução de problemas não relacionados aos conteúdos curriculares

programados. O desempenho brasileiro é o pior entre os 32 países que participaram da pesquisa,

segundo a TALIS (2013).

Independente das práticas de mediação adotadas, observamos episódios de violência dentro

das instituições de ensino sendo veiculados periodicamente pelos meios de comunicação. A

midiatização exacerbada fomenta um intenso debate acerca do tema, muitas vezes, sem

fundamentação e dados reais consistentes. Alega-se tanto o aumento quantitativo dos fenômenos

quanto a emergência das suas múltiplas e novas formas de manifestação, promovidas, muitas

vezes, pelo narcotráfico e por gangues que em outras épocas não se inseriam tão fortemente na

escola. Acusa-se também a atual “cultura juvenil” de violenta e indisciplinada. Desta forma,

ratificam-se práticas repressivas nas escolas como a instalação de câmeras de vídeo, normas

disciplinares rígidas e a presença de policiais nas instituições de ensino.

Ante tal fato, nos questionamos se tanto episódios de indisciplina como agressões físicas

devem ser resolvidos da mesma forma. Todos os fenômenos que fogem ao controle do professor

e da escola, da dispersão às chacinas, são violências? Partimos do pressuposto que "definir" a

violência escolar é, antes, mostrar como ela é socialmente construída em sua própria designação;

como é discursada, representada socialmente, a ponto de ser problematizada por uma

comunidade epistêmica. Éric Debarbieux ressalta que “fatos sociais heterogêneos sejam reunidos

sob o termo genérico de "violência" pelos atores da escola é em si mesmo um fato social digno

de ser pensado” (DEBARBIEUX, 2001,p. 164).

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Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada, fruto de um recorte de uma tese de doutorado

defendida num programa de pós-graduação em Educação, expõe uma análise acerca da

formação docente quanto à temática da violência escolar. Visamos compreender como

licenciandos/ professores em formação percebem e se posicionam ante os conflitos interpessoais

que, se não são bem direcionados, resultam em episódios mais ou menos violentos. Tais

reflexões levaram-me necessariamente a indagar sobre a formação docente. Passei a me

questionar como esses professores vêm sendo formados durante seus cursos para mediar

conflitos.

Para tal, realizei uma pesquisa qualitativa em três Universidades cariocas direcionando-me

aos cursos de filosofia e sociologia; escolha balizada por afinidade temática com o problema em

questão. Seis currículos foram analisados e três licenciandos de cada curso e cada universidade

foram entrevistados. Todas as dezoito entrevistas foram analisadas de acordo com os

pressupostos da “Analise de conteúdo” apresentada por Bardin (1977).

A temática específica da violência escolar tem sido estudada por renomados pesquisadores

internacionais (Bourdieu, Debarbieu ) como nacionais (Abramovay , Candau et all,). No entanto,

no recorte por ora apresentado, nos aportaremos teoricamente nos estudos arendtianos. A filosofa

Hannah Arendt nos ajudou a compreender a emergência do fenômeno da violência na sociedade,

em geral, e na escola, em específico, quando o interrelacionamos com a crise da autoridade de

certas instituições modernas no século XX e de uma emergente “banalidade do mal” (Arendt,

2005), fomentada por uma incapacidade humana de submeter fatos à inspeção do pensamento.

2.Violência, autoridade e poder: uma leitura arendtiana

A temática da violência perpassa grande parte da vasta obra de Hannah Arendt e, na sua

maioria, relaciona-se à problemática do poder, da autoridade e da liberdade. A filósofa, no

entanto, dedicou uma obra inteira à reflexão do fenômeno intitulada Sobre a Violência,

publicada originalmente em 1969, e a qual tomaremos como principal referência para pensar

aqui passagens do discurso docente sobre o tema.

Após ressaltar que “ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode

permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios

humanos”(Arendt, 2001), a filósofa ressalta que pensar a violência é pensar no evidente

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esfacelamento da tradição intelectual que demonstra não dar mais conta, categoricamente, do

ineditismo dos movimentos políticos e sociais emergentes no inicio do século XX. As antigas

formas utilizadas por todos para compreender os fenômenos e momentos históricos, até então,

tornaram-se incongruentes, “posto que os resultados das ações dos homens estão para além do

controle dos atores, a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade”

(Arendt, 2001,p.14).

Buscando conceituar o fenômeno, Arendt significa a violência como instrumental e como

processo que difere do poder, do vigor, da força e da autoridade. Opondo-se a Mao Tse Tung,

Mills, Weber e muitos outros que pensam a violência como decorrente da manifestação do poder,

a filósofa a compreende como a ele incompatível. O poder, inerente a qualquer comunidade

política, é resultante da capacidade das pessoas agirem coletivamente, por consenso. Quando este

poder se desintegra, enseja a violência. Quando os comandos não são mais consensualmente

aceitos, os meios legitimadores do poder entram em crise e a violência pode se instalar. A

violência, portanto, para Arendt (2001), não afirma o poder, mas o destrói.

O vigor seria algo que se obtêm individualmente, no singular, e a força residiria na energia

liberada por movimentos físicos e/ou sociais. A autoridade se afirmaria, por sua vez, no

reconhecimento inquestionável que prescinde da coerção e/ou persuasão, sendo destrutível

apenas por desprezo. A violência, nesse caso, seria, portanto, divergente tanto da força como do

vigor. . Ela se afirma apenas instrumentalmente e, portanto, se diferente da autoridade e do poder

que, por sua vez, exigem instrumentos de coerção para fortalecer algo/e ou alguém.

A violência multiplica, com os instrumentos que a tecnologia fornece de maneira

cada vez mais exponencial, o vigor individual. Por isso a forma extrema de

violência é o um contra todos. O que surge do cano de uma arma não é poder, mas

sua negação. (LAFER, 1994, p. 9).

As causas da agressividade humana residiriam, por sua vez, na burocratização da vida

pública, na insegurança promovida pelos grandes sistemas e na monopolização do poder. Tais

fatores promovem um aniquilamento da faculdade de ação do ser humano no mundo

contemporâneo, e consequentemente, do potencial de suas fontes criativas. Para Arendt (1994,

p.58), “quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência”, já

que em um sistema burocrático bem desenvolvido não há a quem possamos apresentar queixar.

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A burocracia apresenta-se como a forma de governo na qual as pessoas estão privadas de

liberdade política. A frustração com a impossibilidade de exercer politicamente a ação fomenta o

uso da força como meio de reivindicação da própria voz. O ato de agir é a resposta humana a sua

condição de natalidade; e, segundo a filósofa, é a faculdade humana que nos afirma como seres

políticos. É a ação que nos capacita a juntar-nos com nossos pares, buscarmos o consenso nos

diversos assuntos, almejar objetivos conjuntos, o de nos aventurar em algo novo. Somente por

meio da ação podemos dar início a novos recomeços, à mudanças. A negação da voz e da

capacidade de agir em conjunto e, ainda, a inexistência de a quem reclamá-la, faz com que a

violência seja o meio único disponível para obter novamente tal legítima capacidade de ação.

O perigo advém da possibilidade da violência reivindicatória desestabilizar o poder vigente

cujo objetivo é manter a possibilidade de que todos tenham sua voz escutada e os interesses

consensualmente atendidos. A diluição do poder, incitada pela decadência da capacidade de agir

em conjunto, fomenta, por sua vez, mais violência. Os detentores do poder, quando em crise,

dificilmente resistem à tentação de reivindicá-lo utilizando-se de movimentos violentos.

Almejando impor uma vontade individual, portanto, promovem-se movimentos e regimes

totalitários, como os vigentes no momento histórico quando escreve a filósofa.

São muitas as reflexões apresentadas pela autora acerca dos movimentos e fenômenos

violentos, tão evidentes, naquele momento de pós-guerra. A leitura postulada pela filósofa nos

ajuda a refletir a emergência destes fenômenos nas escolas brasileiras, cujas consequências

transcendem os muros das instituições de ensino e desafiam a formação dos futuros professores.

3.A formação nos cursos de licenciatura: a violência como desafio ou como instrumento

de reivindicação ?

Cabe ressaltar, preliminarmente que, todas as dezoito entrevistas realizadas nos seis cursos

pesquisados foram realizadas no período de greve dos professores do Estado e do Município do

Rio de Janeiro. O movimento foi anunciado pelo SEPE - Sindicado dos Profissionais de

Educação - em prol da caução da afirmação estatal acerca das reivindicações da categoria não

efetivadas pelos representantes do Estado, na época, e em defesa da anulação da outorgação do

Novo Plano de Carreira e Salários docentes pelo estado do Rio de Janeiro. Ficou claro, durante a

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análise dos dados, que o contexto político no qual nossa pesquisa foi realizada e, sobretudo, a

concomitância com o movimento grevista muito influenciou a fala de alguns dos entrevistados.

Ao questionarmos os licenciandos sobre as causas da emergência de fenômenos violentos

nas escolas, ficou evidente a multiplicidade de referências e concepções apresentadas pelos

graduandos. Tal fato corrobora tanto o amplo espaço semântico abarcado pelo conceito, acusado

por Debarbieux (1992), como a multicausalidade e pluralidade do fenômeno, algo afirmado por

Candau, Nascimento e Lucinda (1999).

A existência de uma polícia ineficiente, o aumento da pobreza, a má distribuição de renda,

o desemprego e o aumento do narcotráfico na sociedade brasileira são fatores relevantes para

compreender a questão. Sozinhos, entretanto, ressalta Candau et all (1999), não explicam esta

rotinização. A percepção destas causas depende tanto de fatores estruturais como das mediações

materiais e culturais que envolvem hoje a violência na sociedade brasileira.

Seis graduandos direcionaram suas falas à vigência de uma violência simbólica inerente às

instituições de ensino. Tais entrevistados responderam que a própria escola é uma instituição

violenta. A forma homogeneizante de se ensinar/ aprender e a inexistência de um espaço de

escuta e promoção da voz dos alunos são fatores que incitam a violência, fato que corrobora os

pressupostos arendtianos. Segundo Arendt (2001a) a frustração com a impossibilidade de agir

politicamente fomenta o uso da força como meio de reivindicação da própria voz. A negação da

fala e da capacidade de agir em conjunto e, ainda, a inexistência de a quem exigi-la, faz com que

a violência seja o meio único disponível para obter tal legítima capacidade de ação por parte dos

alunos nas escolas; fato evidenciado pelos licenciandos já no início de sua carreira docente.

Três entrevistados acreditam que as condições como são geradas e gerenciadas as

instituições educacionais, especificamente públicas, fomentam atitudes violentas por parte dos

múltiplos atores que ali trabalham.

Os meninos comem a semana inteira arroz, feijão e ovo no almoço, Só! Não que isso

seja, tipo, que vá mudar a educação com uma comida melhor, mas pelas menores

coisas que a gente percebe, né, a violência já implícita ai. (...) os professores tendo

que se dividir em várias escolas de um lado para o outro com os salários terríveis e

pensar que essas questões geram a violência ou isso é uma violência..(...). O sistema

já é violento por ele mesmo, sem falar nas violências que acontecem dentro da

escola. (...) Esses questionamentos me perturbam muito assim, porque que, e ai o

professor do Estado o salário é horrível, são salários muito baixos, eles são muito

cobrados pela direção, que por sua vez é cobrada pela secretaria de educação que

tem que cumprir metas e tem que conseguir pontos nas provas, nas avaliações, o

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professor tem que estar com o diários sempre em dia, então são muitas cobranças e

pouco retorno. (A19)

São ressaltadas, ainda, as muitas coerções que balizam as práticas pedagógicas e fica claro

a forma autoritária de a escola se autoafirmar, algo incompatível com a concepção arendtiana de

autoridade. Relembramos que a violência para Arendt (2005) é gerada pela incapacidade de um

poder instituído se afirmar como legítimo, e não o contrário. A violência não nasce do uso do

poder mas do seu esfacelamento, quando a autoridade vigente não é mais consensualmente aceita.

Tais reflexões nos ajudam a pensar a relação da escola com a crise que, segundo Arroyo (2001),

esta atravessa.

A concepção de escola como instituição responsável pela reprodução de saberes

tradicionais a serem transmitidos a todos, segundo Arroyo (2001a) não mais se sustenta. Tais

saberes oriundos da tradição, nos lembra Arendt (2005), é colocado à prova com o advento da

modernidade, abrindo espaço para um vazio que solapa instituições como a igreja e a escola, até

então hegemônicas. Os atores que por eles são sustentadas consequentemente tem sua autoridade

esfacelada, deixa de ser legitimada. As diversas formas de uso da força, mote da violência,

emergem do vazio por elas deixados.

Da mesma forma que fez certos poderes ditatoriais, estaria, a escola, utilizando-se da

violência e práticas coercitivas para reivindicar seu espaço privilegiado ante a sociedade? Certas

falas nos fez acreditar que sim.

Cara, você entra na escola é (...) tem grade. Aí toca o sino, as crianças saem

gritando, é igual o banho de sol ((risos)) Galera revoltada, revoltada. Aí tem o

inspetor, tem inspetor no corredor; tem as salas no corredor, tem as celas, né?! São

uns quadradinhos assim, os moleques ficam entocados lá dentro e quando põe o pé

pra fora, o inspetor “pá! Vai pra dentro!”. Caramba! Que porra é essa? Nossa!

Vontade de correr. ((risos)) Porra! Eu fico [...] A primeira vez [...]me deu vontade

de sair daqui. Aí você vai acostumando, daqui a pouco tu está achando normal de

novo... eles gritam, é assim mesmo... É bizarro, cara, é bizarro. Aí eles têm que

aprender uma parada que eles não querem, que eles não pediram para aprender,

que eles mesmos não acreditam. Isso que é triste... Tu vê que eles... muitos

reproduzem os discursos de que têm que aprender para ser alguém na vida. Eles

acham que não são ninguém ainda, que a escola que vai fazer deles alguém. E, cara,

não tem como não gerar violência, uma violência mais prática, assim, porque é

uma violência que vai gerar violência, vai gerar, não adianta.”(negrito meu) (A6)

A despeito das causas serem divergentes – alguns entrevistados alegam ser a prática

pedagógica e a cultura escolar violentas e, outros, o sistema público para com a escola pública

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violento – os licenciandos levantaram questões que caracterizam uma possível violência da

escola, como assim classifica Charlot (2001). Para o pesquisador, para além da violência da

escola – aquela promovida simbolicamente pela própria instituição - há ainda a violência na

escola – gerada no seu interior por agentes externos à escola – e violência à escola – caracterizada

por depredações do espaço escolar ou dos agentes que a ele pertence como professores ou

coordenadores pedagógicos.

Eu acredito que a violência também vem um pouco da questão da repressão que os

alunos sofrem (...)Não poder se manifestar muito, porque cada aula exige muita

atenção, exige muita concentração, enquanto os alunos devem receber informação

passivamente, e não participar do processo de construção do conhecimento que a

gente discute nas universidades, e que é no caso a parte teórica né, que a gente

aprende, mas na parte prática acaba ocorrendo um distanciamento e as escolas

ficam muito presas a conteúdos também, e isso tudo interfere, acredito neste

processo de ganhar indivíduos violentos, né porque muitas vezes ele não se sente em

parte deste processo de aprendizagem, se sente apenas um objeto assim, pra, talvez

um número [...] não é um ambiente agradável para os alunos. (A4)

No que tange à violência da escola, questões levantadas por A4 nos fazem pensar sobre

uma possível violência resultante do próprio processo de ensino e aprendizagem quando não leva

em conta a necessária integração, podemos pensar conflito, do aluno com o saber. Teorias

sociogenéticas assim como as de vieses mais sociointeracionistas nos aportaram quanto à

imprescindibilidade da interação do aluno com seu objeto de conhecimento para que as

associações e acomodações inerentes à aprendizagem aconteçam. Impedir essas interrelações

pode ser considerado também uma violência? Uma escola tradicional é violenta, por natureza?

Se o aprendizado verdadeiramente se constrói apenas quando contextualizado, significado, aberto

“aos ventos do pensamento” ( Arendt, 2001b) podemos postular que impossibilitar o aluno deste

processo, de pensar, é em si uma violência? Esta é a visão apresentada pelo entrevistado que

corrobora, em parte, o que consideramos ser uma escola promotora de alunos submissos e nao

pensadores.

Referindo-nos ainda às causas da violência escolar, dois outros grupos de cinco

entrevistados cada, compreendiam ser: (1) fruto de condições sociais desfavorecidas e (2) um

reflexo da violência social inerente a nossa sociedade como um todo.

O primeiro grupo compartilha, em parte, com as exposições arendtianas quando se refere à

burocratização da vida pública desancorada de compromisso social. Para Arendt (2001a), a

burocratização social, a insegurança promovida pelos grandes sistemas e a monopolização do

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poder promovem um aniquilamento da faculdade de ação do ser humano no mundo

contemporâneo, e consequentemente, do potencial de suas fontes criativas. Para Arendt (1994,

p.58), “quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência”, já

que em um sistema burocrático bem desenvolvido não há a quem possamos apresentar queixar.

As desiguais relações de poder existentes nas escolas e de qualidade de condições entre as

escolas não são reclamáveis. Não há instituições a quem dialogicamente conclamar por justiça. A

violência parece tornar-se, segundo Arendt e as falas dos licenciandos, instrumentos de ação por

justiça.

A violência é oriunda da sociedade em que a gente vive. Eu creio que se existe

violência, é porque a gente vive num país que tem um uma desigualdade social muito

grande. Porque esse é um fator, não é o principal fator, mas é um fator

determinante. A desigualdade social gera a questão de um aluno ter, outro não ter,

um aluno poder outro não poder, um aluno esta fora dos padrões, o outro nos

padrões. Essas diferenças ..ééé’, eu não sei bem responder o porquê, mas acredito

que elas sejam sim as causas da violência. (A2)

Quando perguntados se teriam tido alguma disciplina ou formação durante suas

graduações que os fundamentassem a mediar conflitos interpessoais, 31,5% dos 18 licenciandos

de sociologia e filosofia responderam que durante algumas disciplinas aconteceram vários

debates sobre violência, mas se limitava a violência social, em termos gerais. Inferimos que,

direcionados às especificidades da problemática nas escolas não houve abordagem de conteúdos.

31,5% da maioria ressaltou haver mas apenas quando os alunos apresentavam situações

vivenciadas no estágio.

Pra passar os conteúdos de filosofia sim, ela prepara. A faculdade de Filosofia ela é

excelente, tem excelentes professores. Mas talvez pra enfrentar, enfrentar algumas

situações dentro de sala de aula, (...) situações de intolerância dentro da sala de

aula, lidar com uma indisciplina muito grande de alunos, aí eu acho que não. Eles

não preparam a gente pra isso. (A9)

Não. Uma hora ou outra a gente toca em algum tema mais polêmico porque, na

verdade, na minha turma, eu sou a que tenho um contato direto com a educação.

Então, como eu tenho um pouco mais de experiência, e às vezes eu puxo tema,

algum relato de alguma coisa que aconteceu porque eu acho que seria interessante

discutir (A15).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Inferimos, destas respostas, que a questão era abordada ocasionalmente; não havia um

planejamento e/ou um organização acerca de uma possível proposta temática para as aulas – o

que nos remete às respostas explicitadas pelo segundo grupos de entrevistados. 21% dos

licenciandos alegaram haver um debate sobre a temática, mas realizado de forma muito

superficial e desligado de qualquer aporte teórico consistente. A discussão sobre a violência

escolar, quando surge, norteia-se pelo senso-comum e ditames não teoricamente fundamentados.

A incapacidade de submeter os fatos à reflexão, segundo Arendt (2005), mostra-se uma das

causas da atual “banalização do mal”, evidente em tempos modernos. Fato evidente na não

formação docente para a mediação e enfrentamento da violência?

Quando questionados se presenciaram alguma aula direcionada exclusivamente à

violência escolar, respondiam:

Não. A gente tava até discutindo isso (violência escolar) numa aula; foi até a aula

da Mariai. A gente tava discutindo os tipos de escola, os tipos de escola técnica,

clássica... os modelos pedagógicos e num debate desse a gente discutiu sobre as

questões da violência escolar e coisas sobre o estágio de campo lá, e a gente

tinha que ver no estagio de campo como estavam acontecendo as práticas e

relacionar com... era parte do relatório final. Isso a gente abordou, falou algumas

coisas nesta aula mas também não foi assim.... não era o tema central da

discussão. (aluna da sociologia)

Olha, eu acho que... algo que me marcasse profundamente para eu dizer a gente

fez.. um seminário, um debate que foi ótimo, não (aluno da filosofia)

É coisa de tipo assim, o professor começou a falar, alguém levanta a mão e fala.

Não é uma discussão, não tem nada planejado, não tem texto nenhum,

nada.(...).(aluna de sociologia)

4. Algumas reflexões finais

A proposta de apresentação oral aqui submetida direciona-se a apresentar tanto uma

discussão teórica acerca da visão arendtiana do fenômeno da violência em tempos de crise de

certas instituições modernas, dentre elas, a escola, quanto analisar dados de uma pesquisa

empírica realizada em seis cursos de licenciatura localizados na cidade do Rio de Janeiro.

Quanto ao primeiro objetivo, tornaram-se claros os desafios enfrentados quando

buscamos distinguir o termo violência de outros que são utilizados como dele sinônimos. Itani

(1997) nos bem fundamentou quanto às especificidades da existência de uma violência inerente e

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invisível aos sistemas educacionais quando hierarquizam, classificam, reprimem e estipulam

alunos-padrões a seres seguidos por todos, excluindo suas diferenças. Arroyo (2007)

complementou a análise ao apresentar as vicissitudes de uma escola construída sob os moldes

modernos e que atende hoje um público oriundo de classes sociais desfavorecidas, de múltiplas

raças, orientações sexuais, credos e saberes prévios não contemplados por uma certa concepção

de escola pública e de criança como algo universalmente reconhecível. Debarbieux (2001) e

Charlot (2002) nos aportaram quanto às distinções existentes entre os termos violência escolar e

agressividade, transgressões, incivilidades e agressões, assim como entre as violências das

escolas, violências à escola, e violência na escola. Ante eles, ficou claro que o uso indistinto e

não rigoroso dos termos tanto fomenta seu uso como categoria segregadora dos alunos que não

sustentam o padrão estipulado e dificulta compreendermos o papel da escola no fomento a certas

facetas da violência. Desta forma ainda, nos fica impossibilitado estipular estratégias ao

enfrentamento da questão que vem, cada vez mais, inviabilizando os processos de ensino e

aprendizagem.

Nossa pesquisa empírica ratificou a insuficiente abordagem da temática nos atuais cursos

de licenciatura, cuja taxa de abandono chega a 75% (INEP). Nos seis cursos de licenciatura

analisados há apenas uma disciplina exclusivamente direcionada à discussão do fenômeno

presente no cotidiano dos próprios licenciandos quando iniciam seus estágios supervisionados.

A despeito de todos os alunos entrevistados ressaltarem experiências de indisciplina e até

violências durante suas iniciais práticas pedagógicas e afirmar sentirem-se inseguros para lidar

com tais questões, apenas uma disciplina eletiva, com pouco número de vagas, é ofertada aos

alunos de uma das IES analisadas.

Os alunos que cursaram Práticas minimizadoras da indisciplina e da violência escolar na

UERJ corroboraram a importância e o impacto que tais discussões tiveram na sua formação,

sobretudo, pela disciplina nortear-se por questões práticas levantadas a partir do próprio

questionamento discente. Um aporte teórico consistente, balizado por referenciais da psicologia

da aprendizagem e do desenvolvimento assim como de sociólogos que debatem o fenômeno de

forma multicausal e multiestrutural mostrou-se ainda de grande relevância às necessidades

práticas apresentadas pelos licenciandos.

Findamos nossa proposta de apresentação almejamos contribuir com a discussão desta

problemática que muito tem desafiado tanto pesquisadores como professores inseridos nos

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diversos espaços educativos. A despeito da inexistência de um consenso ao significarmos as

violências em meio escolar, fica claro os impasses que se descortinam ao utilizarmos o termo de

forma não rigorosa, sobretudo, quando evidenciamos uma certa “histeria da mídia” em veicular

episódios de indisciplina e homicídios indistintamente, apenas visando o apelo do público que

deles consome. Acreditamos, por fim, que o caminho rumo ao seu enfrentamento é longo,

porém, enfrentar o desafio semântico que o termo apresenta, sobretudo, desde a formação inicial

docente, mostra-se um primeiro passo.

Referências Bibliográficas :

ABRAMOVAY, Escola e violência. UNESCO, 2002

ARROYO, M. Quando a violência infanto-juvenil indaga a pedagogia In Revista Educação e

Sociedade, vol. 28, n. 100, p. 787-807, Campinas: 2007

AQUINO, J. A violência escolar e a crise de autoridade docente In Caderno Cedes, n 47, ano 19,

São Paulo: 1998

BARDIN, L. L‟analse Du conteus, Presses Universities de France, 1977

BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de

ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

(INEP). Estudo exploratório sobre o professor brasileiro: com base nos resultados do Censo

Escolar da Educação Básica Brasília, DF: MEC/INEP, 2009

CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão in

Sociologias, n 8, ano 4, Porto Alegre: 2002

DEBARBIEUX, E. A violência na escola francesa: 30 anos de construção de um objeto (1967 -

1997) In Educação e Pesquisa, vol 27, n 1, São Paulo: 2001

_________________ Violência na escola: um desafio mundial? Lisboa: Instituto Piaget, 2006

ITANI, A. A violência no imaginário dos agentes educativos In Caderno Cedes, n 47, ano 19,

São Paulo, 1998

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BULLYING: A BANALIZAÇÃO DA MALDADE

Pâmela Esteves

Professora adjunta da UERJ-FFP

RESUMO

Essa proposta defende que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil está

diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças

culturais e identitárias que são construídas e reconstruídas no ambiente escolar.

A meu juízo mesmo que a relação entre o não reconhecimento da diferença e o

comportamento do bullying se confirme, ainda assim a questão da motivação para a ocorrência do

bullying continua sem explicações racionáveis, pois não aceitar que o outro seja diferente me parece

insuficiente como justificativa para práticas de agressão, desrespeitos e humilhações. Por isso,

acredito que o não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banalizada, um

sentimento semelhante ao que Arendt (2011) descobriu em seus estudos sobre a violência social.

Nessa perspectiva, pretendo investigar o bullying dentro do contexto da intolerância em

relação à diferença, mas também como um comportamento maliciosamente banal, que entre crianças

e adolescentes provavelmente nasce da incapacidade de pensar e refletir sobre o significado e as

conseqüências de suas ações. Tal incapacidade acredito ser resultante de um projeto moderno de

sociedade que construiu um modelo de escolarização que não valoriza uma proposta educacional

voltada para o pensamento e para reflexão.

O bullying se tornou uma problemática que desafia cotidianamente a escola. É importante

prevenir e combater essa violência escolar, mas acredito ser primordial compreender como esse

comportamento acontece e porque acontece.

Palavras-chave: Bullying, (não) reconhecimento da diferença e banalidade do mal

A dificuldade em reconhecer as diferenças é estrutural e não se circunscreve apenas ao

espaço escolar. Na verdade, essa dificuldade refere-se a uma mudança de paradigma: fomos

ensinados pelo projeto moderno do iluminismo que somos iguais e devemos ser tratados

igualitariamente. Mas, esse projeto tornou-se insuficiente diante das reivindicações de uma

sociedade multicultural que luta para tornar a diferença um direito a ser reivindicado e

positivamente reconhecido. É verdade que temos uma humanidade em comum, afinal todos

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compartilhamos a dignidade humana, mas nossas diferenças ganharam legitimidade e precisam

ser reconhecidas. Diante desta nova configuração, contraditoriamente, o bullying parece ter

ganhado força.

A escola é uma das instituições onde o reflexo dessa mudança de paradigma é expressiva.

Como isso se configura na escola? Como os estudantes vivem em meio a uma pluralidade de

culturas, etnias e identidades? Qual o papel da escola diante das diferenças que a desafiam

cotidianamente?

Esse texto busca refletir sobre esses questionamentos iniciais. Para tanto, buscarei investigar

o que está por trás dos atos de bullying, ou seja, o que leva crianças e adolescentes recorrerem a

práticas agressivas, violentas e desrespeitosas em suas relações escolares. Parto do pressuposto que

o comportamento do bullying está relacionado a dificuldade que os estudantes encontram em

conviver com as diferenças que nos constituem enquanto seres humanos. Acredito também que o

não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banal, um sentimento

semelhante ao que Arendt (2011) descobriu em Eichmann, um oficial nazista responsável por enviar

judeus aos campos de concentração.

Segundo Arendt (2011), a maldade empregada por Eichmann é banal porque não havia um

motivo, uma razão justificável. A todo o momento ele sabia que aquelas pessoas sobre a sua

responsabilidade seriam brutalmente assassinadas e esse conhecimento não o fez impedir a Solução

Final. Porque ele não impediu? Por que ele não tentou outra saída para as ordens que recebia? Para

Arendt (2010), incapacidade de pensar oferece um ambiente privilegiado para o fracasso moral, pois

o ato solitário de pensar volta-se para os acontecimentos e busca dar sentido e significado a estes.

Eichmann não realizava esse ato, era um oficial com respostas prontas e automáticas, em seus

depoimentos suas palavras eram encaixadas em contínuos discursos de clichês sempre superficiais e

sem justificativas. A banalidade do mal presente nas ações de Eichmann não significa sua

inocência, mas sim sua incapacidade de refletir sobre a brutalidade que estava sobre sua

responsabilidade, essa incapacidade é visível em uma massa de cidadãos inaptos e incapazes de dar

significado aos acontecimentos e aos seus próprios atos. Ouso pensar que o bullying pode ser

motivado por um mal deste tipo, um mal sem sentido, sem profundidade, sem razões ou

justificativas, realizado por estudantes superficiais incapazes de pensar nos seus próprios atos e

praticados contra estudantes vistos como diferentes e inferiores.

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O Bullying como uma violência escolar singular

O bullying, enquanto um tipo específico de violência escolar começou a ser estudado na

década de 1970 na Suécia. A partir de 1990, na Noruega, o professor Dan Olweus, pesquisador

da Universidade de Bergen, começou a investigar o assunto a partir de vários casos de suicídios

ocorridos com adolescentes, todos praticados por aqueles que sofriam agressões na escola.

Olweus (1994) elaborou os primeiros critérios para detectar quando os casos são

realmente bullying e diferenciou de interpretações errôneas como gozações isoladas, incidentes,

brincadeiras agressivas próprias do processo de amadurecimento de crianças e adolescentes. Os

seis critérios estabelecidos por Olweus (1994, p.236) são os seguintes: 1) Ações repetitivas

contra a mesma vítima; 2) Período prolongado de tempo. 3) Desequilíbrio de poder entre o

agressor e a vítima; 4) Dificuldade da vítima em se defender; 5) Ausência de motivos que

justifiquem os ataques. 6) Os atos de violência ocorrem entre pares;

As pesquisas de Olweus (1994) repercutiram e a problemática do bullying logo se

transformou em uma agenda de pesquisa para intelectuais das ciências humanas e das ciências da

saúde. No entanto, os primeiros estudos sobre bullying escolar realizados no Brasil, além de

restritos à esfera municipal, apenas refletiam os trabalhos europeus existentes até o momento.

A princípio irei trabalhar com o conceito de bullying elaborado por Olweus (1994), pois

não encontrei na revisão de literatura nenhum estudo com uma conceituação que abarque a

diversidade de casos de bullying já pesquisados. Creio que o pioneiro estudo de Olweus (1994,

p.64) permanece ainda a principal e mais completa referencia para a investigação do bullying.

O bullying compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e

repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um

ou mais estudante contra outro(s), causando dor e angústia, sendo

executadas dentro de uma relação desigual de poder.

Acredito que um dos motivos para a prática do bullying é a dificuldade que os estudantes

encontram em reconhecer as diferenças, por isso é importante compreender qual o papel que o

reconhecimento social possui no processo de construção de identidades individuais e culturais.

Em última instância, para o propósito desse texto o importante é investigar o que está por trás

desse tipo de violência escolar.

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Os caminhos Charles Taylor: em busca do reconhecimento social das diferenças

O reconhecimento é vital para a identidade, pois permite o fortalecimento das escolhas e

decisões que caracterizam as relações intersubjetivas. Negar o reconhecimento da identidade ou

atribuir um reconhecimento negativo porque esta apresenta-se como diferente do padrão dominante

significa contribuir para a destruição desta identidade. Um exemplo histórico da noção de

inferioridade produzida pelo não-reconhecimento consiste no caso dos negros: por gerações a

sociedade projetou uma imagem depreciativa sobre negros, mulheres e homossexuais que, diante da

força da imagem depreciativa tiveram grandes dificuldades de resistência. Nesse sentido, a auto-

depreciação desses grupos vem sendo um dos mais fortes instrumentos de sua opressão. Nessa

perspectiva de análise, o reconhecimento errôneo não significa meramente faltar com respeito,

podendo ainda infligir uma ferida, criando em suas vítimas um ódio por si mesmas, e o sentimento

de inadaptabilidade a esse mundo. O devido reconhecimento não deve ser entendido como benefício

às pessoas, trata-se de uma necessidade humana vital.

Recorrendo a história, Taylor (1997) buscou compreender o processo de

desenvolvimento da identidade moderna a fim de identificar em que momento ocorreu a

mudança de paradigma que tornou a diferença um direito humano que exige reconhecimento

social. Em sua análise hermenêutica sobre os elementos de constituição da identidade moderna

realizada em As fontes do self, Taylor (1997) argumenta que várias de nossas “intuições morais”

(que estão ligadas à noção de avaliações fortes) estão enraizadas em nossa maneira de definirmos

nossa própria identidade, como, por exemplo, o “respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e

também à prosperidade dos outros” que estão unidos quase sempre a uma perspectiva que leva

em conta uma dada ontologia do ser humano.

Isto explicaria porque um objeto é digno ou não de nossa aceitação moral, como objetos

adequados de nosso respeito e estima. Taylor (1997, p. 35,36) explica, segundo sua teoria das

avaliações fortes, que parte de nossos desejos e aspirações estão associados a uma determinada

“configuração moral” que funciona como paradigma de avaliação de nossos desejos e das ações

deles decorrentes. Estas “configurações” permitem discriminar uma hierarquia de bens e até

formular uma idéia de “hiperbens”, aqueles que temos maior apreço e que não abrimos mão em

nossas decisões. Estes hiperbens não dependem do indivíduo em si mesmo, mas já estão postos

pelas formas avaliativas na cultura de determinada comunidade:

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As avaliações fortes são imprescindíveis para a constituição de nossa narrativa pessoal,

ou seja, são responsáveis pela maneira como nos autocompreendemos e compreendemos os outros.

Mas como recebemos as configurações morais pelas quais orientamos nossas vidas e que utilizamos

como elementos essenciais para definir nossa identidade? Só podemos nos auto-compreender e

compreender os outros pela dimensão inerentemente expressivista, do agir humano. E para Taylor, o

homem é um ser que se expressa pela linguagem. É através dela que os indivíduos se relacionam uns

com os outros em sociedade. Mas, a própria linguagem só se adquire pelo intercâmbio do homem

com outros em sociedade.

Com base na argumentação da característica essencial da linguagem dos seres humanos,

que lhes constitui como seres de diálogo, Taylor (2000) argumenta que a noção contemporânea

da individualidade, que esconde por trás de si um ideal moral de autenticidade (isto é, o sujeito

tendo que ser fiel a si mesmo na busca de sua auto-realização e auto-definição), só poderá ser

plenamente realizada se houver um vínculo com o estabelecimento e realização da categoria do

reconhecimento no plano social e político. Isto porque, segundo Taylor (2000), o indivíduo só

chega a definir sua identidade por meio do diálogo com outros membros da sua sociedade, com

aquilo que essas outras pessoas de sua comunidade esperam dele e, às vezes, até em luta contra

as expectativas do outros sobre ele.

É importante indagar os processos históricos que permitiram a construção da noção

contemporânea de individualidade, pois, é o ideal moral de autenticidade que está por trás da

noção de individualidade que propiciou a ideia de reconhecimento da diferença. Ao estudar o

processo de formação da identidade moderna, Taylor (2000) argumenta que após a queda da

sociedade tradicional e hierárquica, denominada pelos historiadores de Antigo Regime, o

movimento iluminista e a Revolução Francesa construíram uma nova compreensão da identidade

individual que Taylor conceituou como um novo ideal de “autenticidade”. Trata-se de uma

identidade particular a mim, que sempre esteve presente em minhas ações, mas que foi impedida

de se concretizar devido a estrutura rígida e estamental que caracterizou as sociedades do Antigo

Regime. Quando essa estrutura começou a enfraquecer, novos valores foram construídos e no

lugar da exclusão implantou-se a igualdade, e assim o ideal de dignidade humana nasceu. Essa

nova sociedade trouxe para identidade um sentimento de individualidade que cada ser humano

pode descobrir em si mesmo, que diz respeito a uma maneira particular de ser.

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Contudo, para Taylor (2000) a descoberta de minha identidade não significa uma

produção de mim mesmo em um isolamento íntimo. Implica que há uma negociação dialógica,

entre eu e o outro, que acarreta que o ideal da identidade surgido na modernidade leva, em

primeiro plano, à importância do reconhecimento, ou seja, a minha própria identidade é

dependente de minhas relações dialógicas com os outros (Taylor, 2000, p. 248).

Na visão de Taylor (2000), a importância do reconhecimento é agora universalmente

reconhecida e vem à tona em debates atuais sobre o multiculturalismo, a luta das feministas e dos

movimentos anti-racistas e, também, na luta de países do Terceiro Mundo na busca de

desenvolvimento e reconhecimento de suas identidades e autonomia enquanto nações soberanas.

Dada a ligação intrínseca já ressaltada entre identidade (que como vimos, envolve um ideal

moral de autenticidade) e reconhecimento, passemos à análise da idéia de uma política do

reconhecimento na visão do filósofo canadense.

Para Taylor (2000), o discurso do reconhecimento tornou-se hoje lugar comum em dois

níveis. Primeiro, na esfera íntima que diz respeito à formação de nossa identidade (Self), que

como vimos mais acima, implica numa constituição dialógica com outros membros de minha

comunidade. Em segundo lugar o reconhecimento aparece na esfera pública na luta por direitos

iguais entre os povos, na luta dos grupos minoritários contra a discriminação e na militância das

feministas.

Taylor (2000) discute que a noção moderna de reconhecimento põe em relevo a estrutura

dialógica dos processos de constituição da identidade humana. Esta estrutura tem sido

negligenciada pela filosofia contemporânea, dado seu caráter fundamentalmente monológico.

Esta filosofia, que está centrada na noção de dignidade (diante do desgaste da ideia de honra que

pertencia às sociedades tradicionais) tem desenvolvido uma política do universalismo da

igualdade entre todas as pessoas.

A dignidade enquanto valor moral legítimo produziu no imaginário social a política do

universalismo, cujo significado é o respeito igual a todos os cidadãos e a equalização dos

direitos. O desfecho desse rol de transformações em que o princípio de cidadania adquiriu

aceitação universal implantou uma nova agenda de discussões sobre os direitos humanos.

Em contrapartida, o processo de formação da identidade moderna também conduziu a

uma política da diferença. O ideal de autenticidade que Taylor (2000) traduziu como o ser fiel a

mim mesmo atinge um sentido pragmático quando postula que todos devem ter reconhecida a sua

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identidade peculiar. A política da diferença está fundada na necessidade de reconhecermos as

particularidades de um indivíduo ou grupo e os valores e as escolhas que os distinguem dos

outros. Trata-se de garantir que todas as identidades possam se desenvolver sem serem

assimiladas ou incorporadas a uma identidade dominante.

A política da diferença, diante da discriminação histórica de grupos minoritários ou

marginalizados, prega que não é possível um ideal de igualdade universal dado as discrepâncias

sociais e econômicas nas quais nos encontramos, o que implica que os grupos desfavorecidos

historicamente lutam com desvantagens frente aos grupos dominantes. Entre aqueles que

defendem a política da diferença estão os que apregoam políticas de discriminação reversa

oferecendo às pessoas de grupos marginalizados oportunidades mais favoráveis ao ingresso em

Universidades ou em vagas para emprego tal como preconizado nas políticas de cota.

Na opinião de Taylor (2000), as duas políticas acima mencionadas se forem defendidas

de forma unilateral, não resolvem os problemas que permeiam nossa sociedade contemporânea.

Tal unilateralidade das duas posturas políticas não consegue articular os elementos constitutivos

de valor que subjaz cada uma delas.

É diante desse impasse que Taylor (2000) propõe uma política do reconhecimento, com o

objetivo de atender as demandas que dizem respeito ao ideal de igualdade das democracias

modernas e ao reconhecimento das idiossincrasias e especificidades das várias tradições culturais

e das múltiplas formas de identidades constituídas historicamente. A política do reconhecimento

evitaria o perigo de cairmos num universalismo da dignidade fundado apenas no direito, que

pode mascarar diferenças e explorações que subjazem nossas sociedades. A política do

reconhecimento se traduz no compromisso de lutar por uma igualdade interessada nas diferenças

que nos constituem como seres humanos.

Portanto, podemos afirmar sem receios que o ideal de autenticidade justifica o

reconhecimento da diferença. Em outras palavras, os atributos que o indivíduo descobre em si

mesmo e que o diferencia dos outros ao seu redor são sentidos por esse indivíduo como dignos

de serem reconhecidos e validados em suas relações intersubjetivas. A negação desse tipo de

reconhecimento constitui um pecado capital a autenticidade e, a auto-realização dessa identidade

e por vezes, pode acarretar muito sofrimento a sua existência.

Quando o bullying se torna um comportamento recorrente na escola, a identidade

singular daqueles que são alvos das agressões recebe um reconhecimento negativo, a auto-

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realização desses estudantes é abalada inviabilizando que a autenticidade se desenvolva. O

bullying não é inadmissível somente pela violência com que é praticado, mas principalmente

porque esse tipo de comportamento destrói a possibilidade do individuo descobrir e ter

valorizada sua própria identidade. Em última instância o bullying pode contribuir para o fracasso

das relações intersubjetivas e para aqueles que são os autores das agressões o risco é ainda mais

complexo, pois estes podem construir uma identidade fundamentada no desrespeito, na ofensa e

em práticas discriminatórias.

Dessa forma, podemos afirmar que o bullying é um comportamento intolerável capaz de

aniquilar o reconhecimento social das diferenças que nos constituem. A partir desta constatação a

proposta multiculturalista de Charles Taylor (1997), de uma política do reconhecimento das

diferenças nos parece um caminho viável para pensarmos uma intervenção no bullying. Ao

insistir na importância do reconhecimento social para as nossas relações dialógicas a teoria de

Taylor nos ajuda a compreender quais são as consequências que o bullying acarreta para a

identidade e para as relações intersubjetivas que se configuram no espaço escolar.

Ouso afirmar que o bullying nasce da ausência do reconhecimento da diferença, porém

acredito que a atitude de não aceitar a diferença é racionalmente insuficiente para justificar

práticas de violência tão cruéis como o bullying, por isso a fim de compreender melhor os fatores

que estão por trás desse tipo de comportamento aposto nas contribuições de Arendt (1999) com o

estudo sobre a banalidade do mal.

Os caminhos de Hannah Arendt: o bullying como um mal banal

O tema do mal em Arendt (1999), não tem como pano de fundo a malignidade, a

perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que

os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da

morte, sem qualquer tipo de motivação maligna. O mal investigado por Arendt (1999) não é

oriundo de nenhum tipo de sentimento de vingança, ódio, retaliação ou represália, o pano de

fundo da argumentação proposta pela autora é o processo de naturalização da sociedade e de

artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das

decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, em

uma perspectiva ético-política.

Em Origens do Totalitarismo, o tema do mal aparece dentro da reflexão kantiana sobre o

mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza

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pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal

não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da

reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal no pensamento kantiano

é radical, pois trata-se de uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao

uso dos seres humanos como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo.

A questão do mal retorna às preocupações de Arendt (1999) quando ela aceita o convite

de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em

Jerusalém, em 1962. Eichmann foi o principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de

concentração. Em todos os relatos de Arendt (1999), verificamos uma profunda perplexidade

com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês,

palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu

comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois

apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, um bom pai

de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de

transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade.

Ao conhecer o caso Eichmann, Arendt descobre um novo tipo de mal, um mal sem

relação com a maldade e por isso, banal. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro

fundamento. O praticante do mal banal não pensa sobre a culpa, ele age semelhante a uma

engrenagem maquinaria do mal, não há profundidade em seus argumentos, suas práticas apontam

para ações racionais, mas sem justificativas socialmente coerentes.

O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a

privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica

externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera

engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor.

O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos

humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do

exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu

comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de

iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade,

peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e

sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros.

Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma,

recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades

espirituais: pensar, querer e julgar(AGUIAR, 2010 p.16).

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Ao relacionar o mal ao vazio do pensamento, Arendt (1999) aponta para uma possível

compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Por isso, a partir dos estudos de

Arendt podemos arriscar afirmar que nas sociedades atuais, o mal realiza-se na banalidade, na

injustiça e nas radicais práticas de violência contra aqueles que são diferentes: os apátridas,

imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, idosos, homossexuais, orientais.... Todos

aqueles que por suas diferenças são tratados com intolerância e discriminação.

A meu juízo o bullying acontece pela dificuldade que os estudantes encontram em

conviver com as diferenças que desafiam a escola, mas acredito que as agressões são

caracterizadas por um tipo de mal banal, um conjunto de ações maldosas decorrente da

intolerância com a diferença que permeia as relações sociais dentro do ambiente escolar. Um tipo

específico de violência escolar onde o emprego do mal banal corresponde à intolerância e à

discriminação diante da diferença, quando está incomoda simplesmente por existir. Os

estudantes autores de práticas de bullying enxergam suas vítimas de modo superficial e leviano e

consideram que por serem diferentes merecem ser tratadas de modo desrespeitoso. Contudo,

mais uma vez é importante destacar que os estudantes autores do bullying não podem ser

individualmente responsabilizados por praticarem o mal banal, pois esses estudantes estão

imersos em uma sociedade que naturalizou a violência, que tornou a discriminação uma prática

social e que encontra dificuldades em ensinar os jovens a valorizar o respeito e a tolerância em

suas relações sociais.

Dentro desse cenário o que é mais espantoso é que não conseguimos encontrar motivos

significantes que justifiquem o bullying. Todas as pesquisas analisadas na revisão de literatura

afirmam a falta de motivação como uma característica do bullying, fica então uma lacuna em

relação ao que leva crianças e adolescentes a se desrespeitarem cotidianamente. Buscando

compreender o que está por trás da prática do bullying, penso que talvez o mal presente nesse

tipo de comportamento pode estar relacionado à ausência de pensamento e de reflexão que por

parte daqueles estudantes que encontram dificuldades em reconhecer a diferença e que lidam

com essa dificuldade recorrendo a atitudes de violência, ofensa e discriminação. Assim como

Arendt (1999), acredito que o solitário ato de pensar realiza-se como um vento forte que

desarruma todas as nossas certezas e nos faz refletir antes de julgar.

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11140ISSN 2177-336X

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Fica, então, a questão de como educar para o pensamento e para a reflexão? Qual seria o

primeiro passo pedagógico em direção a uma educação intercultural, promovedora do respeito às

diferenças, do combate ao bullying e da valorização dos direitos humanos?

O reconhecimento das diferenças é vital à identidade, como afirmam Taylor (2000) e

Honneth (2001), mas para que esse reconhecimento se efetive é preciso educar as crianças e os

adolescentes para a compreensão da tolerância como um valor ético e uma atitude social. Uma

educação que valoriza o pensamento e a reflexão defende a tolerância como uma perspectiva de

ação moral diante das intolerâncias, injustiças, discriminações e violências.

Educar para tolerância adultos que atiram uns nos outros por

motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A

intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas

raízes, através de uma educação constante que tem início na mais

tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que

se torne uma casca comportamental espessa e dura demais (Eco,

2001 p. 198).

Considerações finais

Nesse texto, procurei investigar as interseções entre o multiculturalismo e as práticas de bullying,

afirmei que este último é reflexo da incapacidade que os alunos apresentam em aceitar as

diferenças que se instauraram no ambiente escolar. Como possibilidades analíticas para o

entendimento dessa problemática apresentei a política do reconhecimento social de Charles

Taylor e o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt. Concluo defendendo que o

comportamento bullying é intolerável no ambiente escolar e que sua emergência está relacionada

a dois fatores: 1- a dificuldade que os estudantes apresentam em conviver com a diferença e 2- o

mal banal, sem sentido e sem justificativas que caracterizam o bullying é resultado da inaptidão

dos estudantes em pensar e refletir suas próprias ações. A partir desses dois fatores aposto no

conceito de tolerância como um valor-atitude e um caminho para a construção de uma educação

intercultural compatível com a atual sociedade multicultural que estamos construindo.

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A EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”: EDUCAR PARA

TOLERÂNCIA E CONTRA A BARBÁRIE

Luís Fernando Marques Dorvillé (UERJ)

Marcelo Andrade (PUC-Rio)

RESUMO

O trabalho apresenta uma reflexão sobre a presença do “discurso do ódio” (Glucksmann, 2007) e

do “elogio da intolerância” (Žižek, 2006) como desafios para os nossos dias. O ódio e a

intolerância não são analisados como simples emoções ou atitudes de sujeitos pouco hábeis para

o amor e a convivência. Em geral, a defesa do ódio e o elogio da intolerância se sustentam num

discurso articulado e intencional que culmina na eliminação da diferença. Assim, parte-se do

princípio que o alvo do ódio, da intolerância e da barbárie é, quase sempre, a diferença que

dignamente que constitui os sujeitos, mas que, contraditoriamente, não sabemos com ela

conviver. Se por lado, tais discursos não podem ser considerados irracionais, por outro lado,

devem ser enfrentados como imorais e antiéticos. Nesta perspectiva, a tarefa educativa se

encontra desafiada por tempos difíceis, nos quais propostas como “educar para a tolerância”

(Andrade, 2009) e “educar contra a barbárie” (Kramer, 2001) se apresentam como socialmente

urgentes, moralmente necessárias e pedagogicamente viáveis. As divergências identitárias –

gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e gerações – atacam as identidades

que não estão amparadas pela moral dominante e são um problema do “multiculturalismo

despolitizado” (Žižek, 2006) ou do “multiculturalismo conservador de direita” (McLaren, 2000).

Nas considerações finais, o trabalho pontua que a atividade de educar para a tolerância e contra a

barbárie pode e deve estar situada numa reflexão sobre as relações entre educação, ética e

diversidade. Entre os valores e atitudes apontadas como metas desta educação, destacam-se: (i)

aprender a respeitar e valorizar as diferenças (McLaren, 2000) e (ii) articular as concepções de

“mínimos de justiça” e “máximos de felicidade” (Cortina, 2007).

PALAVRAS CHAVE

Educação; tolerância; “discurso de ódio”.

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1 – “DISCURSO DO ÓDIO”: UM DESAFIO ATUAL

Como identificar um discurso de ódio? Conceituar o ódio não é tarefa fácil. Por um lado,

ele aparece como um sentimento de raiva ou como expressão da violência. Por outro lado, é

entendido simplesmente como algo contrário ao amor ou como uma incapacidade de apreciar os

demais. Nesta perspectiva, seria apenas uma ausência, ou seja, o ódio como a falta de bons

sentimentos. O ódio seria, então, gerado por falta de oportunidades de experimentar o bem ou de

ser educado num ambiente amoroso.

Segundo o Dicionário da Academia Brasileira de Letras, o ódio é definido como “um

sentimento de raiva ou rancor contra alguém ou alguma coisa”. Também é descrito como

“aversão, repugnância e antipatia”. No entanto, não se trata apenas de uma emoção passageira ou

momentânea. Não deveria ser confundido como uma irritação qualquer. Assim, o ódio seria “um

sentimento intenso, profundo e duradouro”.

Para além da identificação do ódio como um sentimento, Glucksmann (2007, p. 11)

defende que “o ódio existe”, que é uma experiência concreta e que “todos nós já nos deparamos

com ele, tanto na escala microscópia dos indivíduos como no cerne de coletividades

gigantescas”. Neste sentido, o ódio é mais que um sentimento, ainda que intenso, profundo e

duradouro. Ele se mantém e se perpetua como discurso, o que Gluscksmann (2007, p.12) chama

de “discurso do ódio”:

Com seus ornamentos tradicionais – raiva, cólera, bestialidade, ferocidade – dos quais ele

exibe um arsenal completo, o ódio acusa sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio

condena a seu bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de algum complô

universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e

poderoso. Odeio, logo existo.

Para Glucksmann (2007), o ódio não é um fenômeno irracional, restrito ao campo das

emoções obscuras, mas sim um “discurso”, ou seja, mesmo que não resista a contra-argumentos

ou que não apresente razões suficientes para sua própria manutenção, o ódio é uma expressão

articulada, intencional e preparada por meio de uma linguagem verbal, tal como temos

presenciado no atual momento de acirradas disputas políticas no contexto brasileiro.

O discurso do ódio seria, segundo a compreensão aqui assumida, imoral (sem razões

éticas suficientes que o sustente), mas racional (com discurso e argumento fortemente

articulados). Assim, o ódio é um fenômeno que precisa ser admitido e desmontado em sua

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fragilidade ético-moral. Em geral, ele é, do ponto de vista argumentativo, frágil, mas, ainda

assim, não se deve menosprezar sua capacidade de destruição das relações sociais. Assim, o

discurso do ódio – em especial, aquele que é potencializado pela grande mídia ou pelas redes

sociais online – deve se tornar uma pauta urgente e necessária, nas pesquisas e nas práticas

pedagógicas.

Examinando casos contemporâneos de discurso do ódio – misoginia, racismo, homofobia,

fundamentalismo e antisemitismo – Glucksmann (2007, p. 265-270) apresenta sete conclusões

sobre o ódio como discurso:

(i) o ódio existe, não é simples ausência do bem ou do amor;

(ii) o ódio se camufla, reveste-se de falsos álibis que o justifiquem;

(iii) o ódio é insaciável, desencadeia uma onda argumentativa sem trégua e não admite

o diálogo com os diferentes;

(iv) o ódio promete um paraíso maldito, apresenta-se como um mal necessário para a

obtenção de uma situação melhor do que a atual;

(v) o ódio deseja ser um deus criador, tem crescido no rastro de discursos religiosos

moralistas e no ceticismo da modernidade;

(vi) o ódio ama a morte, quer a eliminação daqueles que não partilham o princípio

assumido como o único código moral correto e aceitável;

(vii) o ódio se nutre de sua devoração, é um discurso ensimesmado, que repete sua

lógica interna à exaustão, sem diálogos ou empatias com aqueles que pensam

diferente.

Glucksmann (2007) e Žižek (2006) apontam para a intencionalidade de determinados

grupos sociais e políticos em fomentar o discurso do ódio através de diferentes meios de

comunicação, selecionados e escolhidos conforme seus objetivos políticos. Segundo Žižek

(2006), este é um fenômeno do “multiculturalismo despolitizado” que tem orientado uma nova

ideologia do capitalismo global e que tem reafirmado a importância de paixões políticas,

fundadas principalmente na discordância, na intolerância, num discurso de barbárie que só faz

sentido no acirramento das relações sociais. Žižek (2006) indica ainda para a contradição de que

certa dose de intolerância é necessária para que se possa elaborar uma crítica da atual ordem de

coisas num mundo marcado pela diversidade, tal como vamos explorar adiante.

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A partir dessas considerações iniciais, entendemos que a luta contra o discurso do ódio é

um tema fronteiriço entre a liberdade de expressão, que não admitiria censura prévia, e o respeito

às identidades e opiniões das minorias, previsto nos princípios fundamentais da Declaração

Universal dos Direitos Humanos. Assim, encontramos um dilema ético entre o direito à liberdade

de expressão e o respeito às diferentes identidades que dignamente nos constitui como seres

humanos. A questão talvez seja sobre quando e como intervir para garantir um ou outro direito.

Sabemos que a liberdade de expressão não é um direito ilimitado e nem que o sentimento de

ofensa pode ser sempre objetivado.

Neste sentido, este trabalho visa, por um lado, articular uma análise sobre o “discurso de

ódio” (GLUCKSMANN, 2007) e sobre o “elogio da intolerância” (ŽIŽEK, 2006) e, por outro,

indicar uma proposta de educação para a tolerância (ANDRADE, 2009) e contra a barbárie

(KRAMER, 2001), a fim de construir respostas possíveis para as práticas pedagógicas em

tempos de violências, intolerâncias e ódios. Pode a educação responder a estes desafios? É o que

tentaremos responder adiante.

2 – INTOLERÂNCIA E BARBÁRIE: O ÓDIO É CONTRA A DIFERENÇA

Na perspectiva de Glusksmann (2007, p. 266), a explicitação do discurso do ódio não é

algo neutro ou sem direção, muito pelo contrário, “ele escolhe cuidadosamente tudo aquilo que

adora e que abomina, a fim de detestar ainda mais e encontrar meios de odiar sem trégua e sem

fim”. Este alvo pode ser a mulher, o negro, o homossexual, o judeu, o estrangeiro, ou seja, aquele

que, numa lógica padronizadora, é visto como diferente ou desviante. Tal realidade se torna mais

desafiadora se pensarmos na tarefa educativa e no mundo que queremos construir e deixar para

as futuras gerações.

Se, agora, dirigimos nosso olhar ao mundo que é dado às crianças, o que vemos? Falta de

entendimento, ausência de escuta do outro, violência, destruição, morte. Observando o

cotidiano no trabalho, na política, nas relações familiares, vemos falta de diálogo e de

escuta do outro. Com freqüência falo desta minha perplexidade e assombro diante da

exclusão, da discriminação e da eliminação. Pois, apesar do avanço e aparente progresso

tecnológico, a humanidade não conseguiu superar o problema que está na origem dos

grandes crimes cometidos contra a vida – sejam eles de ordem política, étnica, religiosa,

social, sexual – na origem dos genocídios: a dificuldade de aceitar que somos feitos de

pluralidade, que somos constituídos na diferença (KRAMER, 2001, p. 6)

Corroborando a perspectiva de Kramer (2001), percebemos que o alvo do ódio, da

intolerância, da barbárie é, quase sempre, a diferença dignamente que nos constitui, mas que,

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contraditoriamente, não sabemos com ela conviver, mesmo na escola e entre os mais novos. As

divergências sobre questões de gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e

gerações na escola, atacando qualquer defesa das identidades que não estejam na moral

dominante tem sido um problema do “multiculturalismo despolitizado” (ŽIŽEK, 2006) ou do

“multiculturalismo conservador de direita” (MCLAREN, 2000).

No entanto, segundo Santos (2003, p. 56), “temos o direito a ser iguais quando a nossa

diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos

descaracteriza”. Mais do que nunca vivemos num contexto marcado pela efervescência das

questões trazidas pela diferença, que são fortemente potencializadas pelo discurso de ódio e pelo

elogia da intolerância. Diferenças – gênero, sexualidade, raça, religião, origens, pertencimentos,

geração e capacidades – que ficam ocultadas, disfarçadas, pela força do discurso da

padronização.

Em sociedades multiculturais e marcadas pelos preconceitos e pelas discriminações de

vários tipos, tais como: racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, entre outros, a tolerância com o

diferente apresenta-se como uma agenda mínima, urgente e extremamente necessária. Segundo

Augras (1997, p. 78), “quando se fala de tolerância é, na verdade, da intolerância que se trata”.

O conceito de tolerância, então, coloca-se cada vez mais na pauta de discussão porque a

intolerância, o ódio, a barbárie contra a diferença tem sido recorrente na história da humanidade

e ainda hoje em nossas sociedades. Inegavelmente estamos caracterizados pela diferença e, no

entanto, parece que não sabemos trata-la.

A humanidade – marcada dolorosamente pela escravidão dos negros, pelo genocídio dos

povos ameríndios, pelo holocausto dos judeus, pela perseguição aos ciganos e homossexuais,

pela exploração das mulheres e das crianças – busca não mais permitir nenhuma manifestação de

intolerância com o diferente, pois o “a intolerância não é apenas questão de não tolerar as

opiniões divergentes; ela é agressiva e com freqüência assassina, no seu ódio à diversidade

alheia” (MENEZES, 1997, p. 46).

Menezes (1997, p. 41) afirma que o termo tolerância aparece pela primeira vez entre os

iluministas. O nascimento do conceito se deu no rescaldo das lutas religiosas, dos massacres

recíprocos entre protestantes e católicos. Os livres-pensadores, adeptos do Iluminismo, viam-se

discriminados e perseguidos por todos os fanatismos. E foram eles que mobilizaram a opinião

pública contra os horrores da intolerância, proclamando o sagrado direito de discordar.

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11148ISSN 2177-336X

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O conceito de intolerância tem de ser colocado em sua perspectiva histórica para

ganhar o seu relevo próprio. Na verdade a tolerância surgiu historicamente como uma

luta contra a intolerância, e, como as lutas contra as discriminações que vieram

depois – o movimento negro, o movimento feminista etc. – tem uma atitude clara de

militância, não é uma atitude primeira. É, antes, uma reação contra uma situação

dada; contra a intolerância; é a defesa de um direito humano dos mais sagrados; o

direito à diferença. Equivale a declarar que o intolerável mesmo é a intolerância. É

uma reafirmação, uma reposição do sujeito diante da intolerância que quer negá-lo;

ao afirmar-se contra sua negação, afirma-se como um direito de ser o que ele é; e

nega ao intolerante o direito de nega-lo. (MENEZES, 1997, p. 42).

O conceito de tolerância surge como resposta contra a intolerância à diferença. Sendo

assim, é fundamental que ao tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas causas e nas

conseqüências da intolerância.

Žižek (2006), por sua vez, destaca diferentes níveis do “elogia da intolerância”, tais

como: (i) o genocídio, a eliminação física do outro, a guerra declarada contra um grupo

diferente; (i) o etnocídio, considerado como a submissão cultural do diferente, ou seja, a

diferença é suprimida ou demonizada na cultura dominante e (iii) o apartheid, considerado pelo

não só como uma prática discriminatória, mas como um sistema de pensamento, o que revela

uma certa “epistemologia” da intolerância, além de sua concretização em legislações

segregacionistas.

Cumpre destacar também o que Menezes (1997, p. 47) apresenta como um ódio cego pela

diferença, a ponto do intolerante “não ver no discriminado um ser humano concreto, mas algo

abstrato, ou seja, o „estigma‟, ou a diferença hipostasiada. Assim, é comum referir-se a ele

unicamente por sua diferença: um negro, um índio, um velho, uma mulher”.

A fim de sintetizar esta breve reflexão sobre a necessidade de educar para a tolerância e

contra a barbárie, gostaríamos, ainda que de maneira preliminar, discutir algumas questões que

se apresentam a nós, educadores e educadoras. Na verdade, o intuito do tópico a seguir é, mais

do que traçar considerações finais, levantar pistas que sirvam de guias para futuras e reflexões.

3 – EDUCAR PARA A TOLERÂNCIA

A fim de apontar algumas saídas possíveis contra o ódio, a intolerância e a barbárie,

defendemos uma educação ético-moral, que se situe, principalmente, a partir de duas habilidades.

Em primeiro lugar, consideramos que aprender a respeitar e a valorizar as diferenças é

uma habilidade fundamental contra o discurso do ódio. Partimos do pressuposto de que a

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diferença é como um valor legítimo para as sociedades multiculturais, tanto a diferença de

opinião quanto as diferentes identidades que dignamente nos constituem como seres humanos. A

articulação de educação para tolerância (ANDRADE, 2009) e contra a barbárie (KRAMER,

2001) parte do pressuposto que o discurso do ódio baseia-se na negação do outro, na eliminação

da diferença, na tentativa de homogeneização de códigos de condutas, como se só existisse uma

moral aceitável. A saída apontada seria a tensão entre o valor da diferença e o princípio da

igualdade. Mais do que nunca vivemos num contexto marcado pela efervescência das questões

trazidas pela diferença, que são fortemente potencializadas no campo educacional. Diferenças –

gênero, sexualidade, raça, religião, origens, pertencimentos, geração e capacidades – que ficam

ocultadas, disfarçadas, pela força do discurso da padronização.

Em segundo lugar, apontamos que articular justiça como mínimo e a felicidade como um

máximo é também uma habilidade a ser desenvolvida. Neste sentido, no entendimento da

educação para a tolerância (ANDRADE, 2009), será preciso distinguir entre o que é justo e o que

é bom.

As éticas de justiça ou éticas de mínimos ocupam-se unicamente da dimensão

universalizável do fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de justiça exigíveis de

qualquer ser racional, e que, efetivamente, só são constituídos de exigências

mínimas. Ao contrário, as éticas de felicidade pretendem oferecer ideais de uma vida

digna e boa, ideais que se apresentam hierarquizadamente e englobam o conjunto de

bens que os homens usufruem como fonte de maior felicidade possível. São, pois,

éticas de máximas, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a tomá-los

como norma de conduta, mas não podem exigir ser seguidos, visto que a felicidade é

tema de aconselhamento e convite, e não de exigência. (CORTINA, 1997, p. 62)

A igualdade seria, nesta abordagem, um ideal de “mínimo de justiça” a ser compartilhado

por todos os concidadãos; e as diferenças identitárias, por sua vez, ideais de “máximos de

felicidade”, que atendem a cada um ou a cada grupo em particular. A saudável tensão entre

mínimos e máximos ocorre quando os sujeitos que dialogam não se fecham em concepções

particulares, mas fixam, de algum modo, uma fronteira entre o que consideram bom para si

próprios (máximos de felicidade) e o que consideram justo para todos os concidadãos (mínimos

de justiça).

Cortina (2007, p. 149) defende esta habilidade de “fixar um mínimo de valores

partilhados, a fim de que as decisões sejam respeitosas da pluralidade” como tarefa de educação

para o século XXI, pois, mais do que nunca, estamos chamados a construir uma cidadania plural.

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Em suma, o justo é exigível e como tal se torna obrigação moral para qualquer cidadão. O bom é

aquilo que causa a felicidade, mas não pode ser exigido dos outros, pois se trata

fundamentalmente de uma realização subjetiva. Como sabemos, o que é bom para um pode não

ser bom para outro. O bom, neste sentido, está no campo das possibilidades (máximas de

felicidade) e nunca das exigências (mínimos de justiça).

A partir dessas duas habilidades, valeria se perguntar por que a tolerância como valor e

atitude de uma agenda mínima para o campo da educação em mídias sociais? A essa questão

respondemos: porque a intolerância e o discurso do ódio tornaram-se práticas comuns diante da

diferença, tal como mostramos na análise dos dados apresentados.

A tolerância surge como resposta contra a intolerância e contra o discurso do ódio à

diferença. Sendo assim, é fundamental que ao tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas

causas e nas consequências da intolerância e do discurso do ódio. Menezes (1997, p. 45) afirma

que a “a intolerância não rejeita só as opiniões alheias, mas também sua existência, ou ao menos

o que faz o que valha a pena viver: a dignidade e a liberdade da pessoa”. A intolerância e o

discurso do ódio contra os diferentes têm imposto uma quantidade de desqualificações que

sustentam o estigma, um suposto sinal vergonhoso e socialmente rejeitado.

Eco (2001, p. 114), por sua vez, chama a atenção para a intolerância sem nenhuma razão

explícita ou doutrina que a sustente:

A intolerância coloca-se antes de qualquer doutrina. Nesse sentido, a intolerância tem

raízes ideológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em

relações emotivas muitas vezes superficiais – não suportamos os que a são diferentes de

nós porque têm a pele de cor diferente, porque falam uma língua que não

compreendemos, porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou porque se fazem

tatuar...

Para Eco (2001, p. 116), os estudiosos ocupam-se com frequência das doutrinas da

diferença, mas não o suficiente da intolerância e do discurso do ódio, pois estes fogem de

qualquer possibilidade de discussão e de críticas, pois não estão num nível racionável (das razões

moralmente suficientes), nem no nível racional (de argumentos bem articulados), mas no nível

visceral. A intolerância é, em geral, raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva.

Enfim, educar para tolerância não é pouco, é sim o fundamental. E talvez seja ainda mais

necessária e produtiva do que se imagina, pois busca intervir em nossas ações, em nossas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11151ISSN 2177-336X

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atitudes (como ética de justiça, moralmente exigível) e também em nossos sentimentos e

intenções (como ética de felicidade, moralmente aconselhável).

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ŽIŽEK, Slavoj. Elogio da intolerância, Lisboa: Relógio D´Água, 2006

i Nome fictício, a fim de não identificar a professora citada.

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