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efeito cacaos por Ulisses Góes - rl.art.br · havia se tornado fiel referência para os pesadelos que o atormentavam. Pesadelos que o perseguiam nas noites sem lua e de estrelas

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// efeito cacaos

por Ulisses Góes

// capítulo 1

Seus olhos abriram-se. Seus sofridos olhos dourados

mais uma vez acordaram para o mundo à sua volta. Esse

despertar era mais conseqüência de uma constante vigília

com a qual passara a conviver, do que de um simples e

inevitável ato de acordar, buscando restabelecer contato

com o mundo que o abrigava. No seu caso, restabelecer

esse contato significava entregar-se completamente à

batalha mortal pela sua própria sobrevivência. Já não fazia

mais diferença alguma estar acordado ou em estado de

aparente sonolência, pois a realidade que agora o cercava

havia se tornado fiel referência para os pesadelos que o

atormentavam. Pesadelos que o perseguiam nas noites

sem lua e de estrelas mortas. Sonhava com luzes trêmulas

e pessoas desesperadas, sendo totalmente consumidas

pelo fogo de um clarão, que diante de si era a própria

devastação em movimento. Em seus pesadelos podia ouvir

com clareza o som da destruição completa, o trovão

aniquilador, o estrondo impertinente da morte. Sons que

arranhavam o ar, causando pânico, incutindo um pavor

extremo ao espírito. Então acordava sobressaltado, suando

frio, o corpo tremendo, gritos sufocados na garganta rouca.

Começava então a conversar consigo mesmo num

monólogo aflito, angustiante, onde chorava buscas

desesperadas por Deus. Falava de toda a sua vida antes

de todo aquele caos acontecer. Recordava sua vida

agitada pelas estruturas de concreto e aço da cidade

grande, relembrava seu passado, voltava às suas origens,

buscava suas raízes. Sua infância e adolescência vividas

numa cidade do interior da Bahia. Sua família, pai, mãe,

irmãos, a casa onde morava, a rua onde costumava

brincar, seus amigos. Todas essas lembranças eram

despertadas, e ele as colocava num doloroso combate com

as imagens alucinantes e aterrorizantes de seus pesadelos.

Era como ser pego de surpresa por um acidente, de

repente um choque brusco, seguido de um torpor dos

sentidos, a estranheza de si mesmo perante tudo ao seu

redor, forçando a própria mente a não querer acreditar que

tudo aquilo estivesse realmente acontecendo. Ele podia

sentir o choque terrível dentro de si. Uma sensação que se

tornou freqüente durante aqueles dias nublados e

cinzentos, e aquelas noites escuras, sem Lua e sem

estrelas. Noites preenchidas apenas pelos seus pesadelos,

o seu mar de pavor, a sua angústia com aquelas imagens

distorcidas e berrantes, impregnadas de cores violentas,

gritos penetrantes e rostos desfigurados. Havia se tornado

um náufrago buscando nas lembranças de seu passado um

refúgio, que lhe machucava mais do que lhe dava abrigo.

Eram recordações de toda uma vida, que se

transformavam num martírio doloroso para seu espírito,

perdido em meio à desolação, ao medo e à angústia de se

descobrir sozinho num outro mundo.

Dessa vez, porém, seus olhos abriram-se por outro

motivo. Não foram os pesadelos que o despertaram de seu

sono agitado. Fôra um barulho. Um som tímido e rasteiro,

esgueirando-se como uma cobra por entre as folhas caídas

dos cacaueiros. Naquele instante, seus olhos abriram-se, e

movido por um instinto de pura sobrevivência, sentiu seu

espírito mergulhar num total estado de alerta. A tensão fez

seus músculos se enrijecerem, desde as pontas dos dedos,

empretecidos e com as unhas por fazer, até às raízes dos

cabelos claramente castanhos, sujos e maltratados.

Escorregou furtivo para detrás de uma pedra, e ali

permaneceu, deitado de bruços, as mãos unidas ao peito.

Assustado, olhava para os lados, tentando encontrar a

origem daquele barulho. Queria descobrir o que estava se

mexendo por debaixo das folhagens. Alguma coisa, ou

alguém, caminhava ali por perto, pisoteando o tapete de

folhas que cobria toda aquela terra. Seu olhar percorria

toda aquela paisagem exuberante que lhe cercava.

Buscava um sinal, uma pista, um vulto qualquer que

denunciasse sua presença. Passou-se alguns segundos,

até que finalmente ele descobriu a origem dos ruídos.

Enxergou, então, a ponta de um rabo de pêlos dourados,

que deveria ter aproximadamente um palmo e meio de

comprimento, balançando incessante, como se seu dono

procurasse desesperado por algo. O assustado observador

continuou quieto atrás da pedra, espiando aquele ser

vivente de um mundo selvagem perambular por debaixo do

tapete de folhas. O momento prolongou-se hesitante até

quando tudo tornou-se surpresa e admiração para o jovem.

Seus olhos descobriram um pequenino animal, do tamanho

de um punho fechado, agitado, inquieto. Tinha o pêlo

dourado, e sua cabecinha peluda o fazia assemelhar-se a

um pequenino leão.

- Um mico-leão dourado...

Foi um sussurro solto num instante de admiração

plena. Durante um longo momento, o jovem ficou

esquecido naquela cena, mergulhado na situação, absorto

num transe hipnótico, fitando extasiado o mico, que agora

revelava-se por inteiro acima das folhas caídas no chão.

Sentado sobre uma pequena pedra, o mico olhava atento

de um lado para o outro, como que a pressentir algo no ar.

Um espécime como aquele o jovem conhecia apenas pela

TV, em documentários da National Geographic ou

Discovery Channel sobre reservas ambientais, preservação

do Meio Ambiente e animais em extinção. Permaneceu ali,

hipnotizado pela imagem do mico-leão dourado. podia

sentir o pulsar da vida dentro daquele pequeno animal.

Desejou imensamente que o mico se aproximasse dele,

queria vê-lo mais de perto, quem sabe até poder tocar ele.

O jovem permanecia imóvel, quase nem respirava,

temendo que o menor ruído acabasse afugentando o mico.

Era um espécime raro da fauna regional, e o admirado

observador tinha a consciência de que podia ser a única

vez que o estivesse contemplando. Talvez a primeira e

última vez. O pequenino saltava de um lado para outro,

tinha movimentos ágeis e brincalhões, mas em

determinado instante parou atônito, silencioso, e descobriu

o olhar atento do observador solitário. Era como se também

ele estivesse sentindo o pulsar da vida escondida por

detrás daquela pedra. Ficou imóvel durante alguns

segundos, para logo em seguida sair em debandada,

pulando de galho em galho, de árvore em árvore. parecia

assustado, muito assustado. O jovem, desesperado, tentou

seguir o mico em sua fuga amedrontada, mas foi em vão. O

mico parecia assombrado, como se tivesse visto um perigo

quase iminente que colocasse em risco sua sobrevivência.

Talvez desconfiasse do estranho que lhe observava atrás

daquela pedra. O jovem correu por entre os cacaueiros

seminus, numa tentativa de acompanhar a fuga do mico,

mas de nada adiantou. Sentiu-se triste com o ocorrido, pois

seu único desejo naquele momento era contemplar a

beleza selvagem daquele pequeno animal, e talvez poder

despertar a sua natureza brincalhona e curiosa. Porém,

agora já era tarde demais para buscar novamente o

macaquinho. mais uma vez, a solidão sutil friamente lhe

abraçou por completo. Era apenas a sua solidão, e nada

mais.

// capítulo 2

Durante muitos dias, na solidão de suas caminhadas

sem destino certo por entre as plantações de cacau, o

jovem dedicou todo o seu tempo na busca incessante pelo

mico-leão dourado. Olhava atrás das pedras, pelas árvores,

nos galhos dos cacaueiros, mas nada encontrava, a não

ser a sua voz solta em ecos solitários pela mata. Às vezes

ficava a se perguntar sobre o que realmente procurava. Era

o momento da dúvida e da insegurança. Mas novamente

algo se mexia por entre as folhagens, e o íntimo do jovem

mais uma vez se agitava. Seus pensamentos sumiam, seus

movimentos cessavam, e sua atenção se voltava na busca

do pequeno habitante das matas. Ficava imóvel, inerte, na

esperança de rever o mico. Quando percebia que sua

espera era completamente inútil, sentava-se desanimado, e

ficava a recordar da época em que havia trabalhado como

voluntário em um projeto de uma ONG, que tinha por

objetivo o equilíbrio sistemático entre áreas verdes e

centros urbanos em diversas regiões do planeta. Lembrou

de ter visto o mico-leão dourado incluído entre as espécies

catalogadas como passíveis de extinção e que mereciam

atenção especial por diversos órgãos do setor. Mais uma

vez ruídos o despertavam de um transe reflexivo, e mais

uma vez a agitação, a ansiedade, a busca, a angústia e o

desespero por não encontrar absolutamente nada.

Desesperado por não encontrar aquilo que tanto desejava,

o jovem corria por entre as árvores, gritando os nomes das

pessoas que um dia chegou a conhecer. Exausto, caía no

chão, já ciente de que não procurava mais o mico, e sim,

procurava alguém que viesse em seu socorro. Procurava

pessoas. Procurava ajuda. Mas não encontrou ninguém,

nem ao menos uma sombra, um vulto qualquer se

escondendo pelos vãos verdes da floresta largada.

E os dias eram nublados e cinzentos, e as noites eram

escuras, de Lua e estrelas mortas. O jovem caminhava

sem direção, apenas guiado pela sua imensa vontade de

continuar vivo. Nunca mais viu o mico-leão dourado.

Apenas pressentia sons, e sentia calafrios por causa disso.

Lembrava-se do pequeno animal peludo sentado sobre as

patinhas traseiras, sua cabecinha impaciente a olhar para

todos os lados. E então experimentou continuamente,

durante poucos segundos, o pulsar da vida. Era aquela

mesma sensação momentânea de quando vira o mico.

Uma sensação rápida, como uma gota d’água lançada num

imenso deserto escaldante. O jovem não estava

conseguindo reter essa gota por muito tempo mais, mas

não desistia. Sabia que precisava insistir sempre, para que

pudesse transformá-la em algo maior, um lago, um mar, um

oceano. Mas o medo, a angústia e a solidão eram

atribulações ainda presentes, tentando evaporar essa gota

d’água. Tormentos cáusticos, cauterizando, convertendo o

pulsar em escaras. As areias do deserto sugando uma gota

d’água.

Sentindo o peso do cansaço causado pela longa

jornada daquele dia, o jovem sentou-se à sombra de um

Jequitibá. Descansava aos pés daquela imensa árvore, e

pensava num modo de sair daquela situação, em como

acordar de um pesadelo angustiante. Um pesadelo real,

que o deixava cada vez mais acordado, vivendo numa

realidade cruel e adversa. Meteu a mão no bolso direito de

sua calça jeans surrada e encardida, e daí tirou sua

carteira. Entre documentos, cartões de crédito e algum

dinheiro, encontrou uma foto de sua família, uma das raras

fotos que havia tirado uma cópia e guardado para si. Seu

pai, sua mãe, seus dois irmãos mais novos, e ele. Tinha

quinze anos na época, e agora com vinte e um anos, o

jovem tentava transpor a barreira do tempo, desmaterializar

todos aqueles seis anos em que havia passado longe de

sua família e de sua terra natal e voltar atrás. Acordar

exatamente no dia em que aquela foto havia sido tirada.

Fechou os olhos então, e em poucos segundos estava

revivendo um momento perdido no passado de sua vida.

Sentiu a brisa leve do mar assanhar seus cabelos

castanhos, bem claros. Podia ver ao longe garotos

brincando nas areias da praia. Levantou-se, aprumou o

olhar, avistou seus dois irmãos entre os garotos. Ouviu

alguém chamar seu nome. Sua mãe, um pouco mais

distante, jogou-lhe um aceno de mão.

“Venha”, dizia ela, segurando uma câmera digital,

“Vamos tirar uma foto. Chame seus irmãos”. Ele tentava

responder, mas não conseguia, apenas ficou parado,

olhando sua mãe caminhar de volta pela praia. Seus

irmãos continuavam brincando despreocupados naquela

manhã ensolarada. Então, tudo ao seu redor ficou turvo,

distorcido, e o que lhe parecia tão real desmanchou-se

suavemente. As imagens de seu passado diluíram-se

lentamente.

Lágrimas brotaram de seus olhos, rolando pelo seu

rosto, e tocando silenciosas a terra na qual ele estava

adormecido.

A saudade pulsava forte dentro de teu peito. E foi

justamente esse sentimento que o fizera decidir regressar

para Itabuna. Era como uma espécie de chamado, uma voz

distante, um som estranhamente familiar. Uma voz que se

transformava num coro cheio de harmonia. Olhou a foto,

tirada num belo dia de verão. Ouviu rugidos de trovões

sobrevoando o céu nublado. A solidão apertou-lhe o

coração. Aquela mesma solidão de cidade grande, que

havia decidido enfrentar quando deixou sua terra natal,

aquele pequeno mundo de cidade do interior, para ir buscar

novos horizontes no progresso alucinado do Sul do país.

Havia deixado seus quinze anos para trás, guardados na

casa de seus pais, na rua onde havia crescido, na cidade

onde havia nascido. O que viesse por agora guardaria em

sua mochila pendurada em seu ombro. Ganhou a estrada,

descobriu seu espírito aventureiro, seu sangue de

peregrino, andarilho em busca de seus sonhos. Desvendou

novos caminhos, pequenas outras trilhas por onde poderia

caminhar. Ganhou encruzilhadas, e o direito de escolher o

melhor caminho para si, mesmo que isso significasse a

descoberta do erro. Outro rugido ecoou pelo ar. Agora, os

caminhos estavam perdidos pela mata, escondido pelas

ervas daninhas, e precisavam ser redescobertos. O jovem

sabia que precisava reencontrar os caminhos. A foto

permanecia em sua mão, enquanto tentava lembrar-se da

última vez em que entrou em contato com sua família.

Talvez uma terça-feira, ou uma sexta-feira, havia

conversado pelo MSN com sua mãe, avisando que estava

se preparando para ir passar o Natal com eles, o primeiro

depois de seis anos longe de casa. No dia seguinte, numa

conversa pelo videofone, a primeira também em seis anos,

criou coragem e pôde então rever os rostos de seus pais, e

seus irmãos já mais crescidos, já em plena adolescência.

Quando desligou, não conseguiu conter as lágrimas de

saudade, e estava realmente decidido a voltar. Iria

novamente cair na estrada, dessa vez para retornar à sua

terra natal, a terra das árvores dos frutos dourados.

// capítulo 3

Aquela tarde escoava-se lenta, consumindo-se sem

demora, esvaindo-se invisível e imutável. Já devia passar

das cinco horas quando o jovem acordou de maneira

repentina, provavelmente fugidio de mais algum pesadelo.

Espiou todos os lados e olhou para cima. O Jequitibá

permanecia ali, imponente, erguendo-se silencioso e

apontando para os domínios do céu cinzento. A foto

permanecera em sua mão durante todo o tempo em que

estivera adormecido. Agora, aos seus olhos, a foto parecia

estranhamente envelhecida, com uma coloração

amarelada, e desgastada nas bordas. Era como se tivesse

dormido por muitos anos aos pés do Jequitibá, segurando

aquela foto como um pedaço de sua vida. Sua roupa

estava mais esfarrapada, seu corpo mais imundo, seus

músculos mais doloridos, e seus pensamentos

completamente entravados e empoeirados. Uma agonia o

dominou naquele momento. Será que ainda estava

adormecido e tudo aquilo era mais um pesadelo o

atormentando mais ainda? Parecia que a tênue linha da

fronteira que separa a realidade da imaginação havia

desaparecido completamente, e o jovem não sabia mais

dicernir em qual mundo realmente estava. Sentiu então a

presença de mão poderosa e sorrateira diante de si, vinda

de uma escuridão próxima a ele. A mão aproximava-se

lentamente, e ficou a poucos centímetros de seu pescoço,

demonstrando uma ansiedade em lhe enforcar e acabar

por sufocar alguma vida que ainda restava em seu espírito.

O jovem quis gritar, mas não conseguiu. Seu corpo ficou

imobilizado de pavor, e sentiu a escuridão o envolvendo, e

logo em seguida experimentou uma sensação de queda

brusca. Estava caindo em um abismo escuro. A poucos

metros de atingir o chão, sua queda parecia trazer a

iminente morte consigo, e ele então conseguiu libertar um

grito amedrontado e intenso de sua boca.

Numa espécie de transposição onírica, sentiu um forte

solavanco, e acordou assustado. Quando deu por si,

estava sentado numa confortável poltrona. Estava no

interior de um ônibus. Olhou pela janela, e viu a rodoviária

daquela cidade grande, que fervilhava de pessoas,

oriundas das mais diferentes partes do país. Naquele lugar

praticava-se apenas dois verbos: chegar e partir. Dentro do

ônibus, o jovem esperava paciente o momento de sua

partida. Estava ansioso em voltar para casa e rever sua

família, seus amigos, sua cidade natal. Olhou ao redor e

teve uma estranha sensação de que tudo aquilo era um

sonho, uma sensação que durou breve segundo. Abriu sua

mochila e pegou seu palmtop e foi conferir mais uma vez

suas anotações. Aproveitou as férias de seu trabalho e da

faculdade de Jornalismo para realizar sua viagem.

Despediu-se dos amigos que havia feito na cidade grande,

conversou com seus pais pelo videofone, e se programou

para ter um Natal diferente. Terminou de ler suas

anotações no palmtop e se ajeitou na poltrona. Pouco a

pouco, as pessoas tomavam seus lugares no ônibus,

preparando-se para a longa viagem que tinham pela frente.

O jovem ficou a observar durante um tempinho as pessoas

que entravam calmamente no ônibus. Alguns traziam

travesseiros, cobertores, outros mais agasalhados apenas

tinham uma mochila nas mãos. Quando um dos

passageiros entrou com um livro na mão, o jovem lembrou-

se da obra de Machado de Assis que havia adquirido há

algum tempo na internet, mais por curiosidade, por se tratar

de um trabalho experimental de uma "tradução" de uma

obra clássica da literatura brasileira para um novo tipo de

protocolo de leitura. Segundo ele havia pesquisado na

internet, Memórias Postumas de Brás Cubas foi o

primeiro livro inteiro a ser digitado no teclado de um celular,

usando uma nova maneira de escrever, criada justamente

entre os milhares de internautas brasileiros. Abriu

novamente sua mochila e dessa vez pegou seu tablet.

Abriu o arquivo que havia copiado e começou então a ler o

primeiro capítulo, tentando se adaptar àquela escrita quase

alienígena:

“Memrias postmas d bras cubas

Maxado d Acis

Cap1:

obto do autor.

Alg1 tmpo hesitei c dvia abrir stas memorias plo

principio ou plo fim, i.eh, c poria em 1ro lugar o meu nasc

ou minha mort. Suposto o uso vulgar sja comecar plo nasc,

2 considercoes m levaram a adotar dferent metodo: a 1ra

eh n sou propriament 1 autor defunto, mas 1 defunt autor,

pra kem a campa foi outro berco; a 2da eh q o scrito fikria

assim + galant e + novo. Moises, q tb contou sua mort, n a

pos no introlito, mas no cabo; diferenca radcal entr este

livro e o pentateuco.

Dito isto, xpirei as 2 hr da tard duma 6a do mes d

agost d 1869, na minh bela xacara d Catumbi. Tinha uns 64

anos, rijos e prospros, era solteiro, psuia cerk d 300 contos

e fui acompanhado por 11 amigos. 11 amigs! Verdad eh q

naum houv cartas nem anuncios. Acresc q xovia - penerava

- uma xuvinha miuda, trist e constant, taum cnstant e taum

trist, q lvou 1 dqles fieis da ultma hr a interclar esta

engenhsa ideia do discurso q proferiu a beira d minh cova.

“Vos q o conhcestes, meus srs, vos pdeis dzer cmgo q

a naturez parec star xorando a perda irreparavel d 1 +

belos caracteres q tem honrado a humanidad. Ste ar

sombrio, stas gotas do ceu, aqlas nuvens escuras q

cobrem o azul cmo 1 crepe funereo, todo isso eh a dor crua

e mah q lhe roi a naturez as + intmas entranhas; todo isso

eh 1 sublim louvor ao nosso ilustre finado.”

Bom e fiel amigo! Naum, n m arrependo das 20

apolices q lhe dxei. E foi assm q xeguei ah clausula dos

meus dias; foi assm q m enkminhei p o undiscovered

country d Hamlet, s/ as ansias nem as duvids do moço

princip, mas pausado e tropgo, cmo kem c retira tard do

spetaculo. Tard e aborrecido. Viram me ir umas 9 ou 10

psoas, entre elas 3 sras, minha irma Sabina, ksada c/ o

Cotrim, a filha, 1 lirio do vale, e... Tenham paciencia! daki a

pco lhes direi kem era a 3ra sra. Contentem c d saber q

essa anonima, ainda q n parenta, padceu + do q as

parentas. Eh verdad, padceu +. N digo q c carpisse, n digo

q c deixasse rolar pelo chaum, epileptica. Nem o meu obto

era coisa altament dramatica... 1 solteiraum q xpira aos 64

anos, n parec q reuna em si tods os elements d uma

tragedia. E dado q sim, o q – convinha a essa anonima era

aparenta lo. D peh, ah cabeceira da cama, c/ os olhos

estupdos, a boca entreaberta, a trist sra mal podia crer na

minha extincaum.

- Morto! morto! dzia consigo.

E a imaginacaum dela, cmo as cgonhas q 1 ilustre

viajante viu desferirem o voo desd o Ilisso as ribas

africanas, s/ embargo das ruinas e dos tmps, a

imaginacaum dssa sra tb voou por sobre os destrocos

presents ateh as ribas d 1 afrik jvenil... Dxah la ir; lah

iremos + tard; lah iremos qd eu m restituir aos 1ros anos.

Agora, kero morrer trankilament, metodicament, ouvindo os

solucos das damas, as falas bxas dos hmens, a xuva q

tamborila nas flhas d tinhoraum da xacara, e o som

estridulo d uma navalha q 1 amolador estah afiando lah

fora, ah porta d 1 correeiro. Juro lhes q essa orkestra da

mort foi mto mnos trist do qpodia parec. D certo ponto em

diant xegou a ser dliciosa. A vida estrebuxava m no peito,

c/ uns imptos d vaga marinha, esvaia c me a conciencia, eu

dcia a imobilidad fisica e moral, e o corpo fzia c me planta,

e pdra, e lodo, e coisa nenhma.

Morri d uma pneumonia; mas se lhe dsser q foi mnos

a pneumonia, d q 1 ideia grndiosa e util, a causa da mnha

mort, eh pssivel q o leitor m naum creia, e tdvia eh verdad.

Vou xpor lhe sumariament o kso. Julg o por si msm.”

Não foi muito adiante com aquela adaptação digital e

então procurou algo mais convencional em seus arquivos.

Encontrou outra obra de Machado de Assis, "Dom

Casmurro", e passou algum tempo lendo. Algumas vezes

interrompia sua leitura e se deixava ficar absorto e

contemplar o horizonte distante nas paisagens que

passeavam pela janela do ônibus. Seu espírito se enchia

de um prazer maravilhoso quando viajava. Gostava de

viajar, visitar lugares, conhecer pessoas, aprender novos

costumes e culturas, hábitos, gírias, viver situações novas.

Tinha pretensões futuras de viajar pelo mundo e conhecer

outros povos, outras nações. Mas essa idéia logo se

dissipou assim que foi deflagrada a Grande Guerra,

deixando inúmeros paises em estado de alerta e o mundo

em estado de choque. Ao redor do globo, tudo parecia

caminhar para uma destruição sem precedentes na história

da Humanidade. Desistira, então, de ir para a Europa.

Talvez arriscasse uma viagem para a Ásia, ou então para

alguma região do Brasil. Não havia decidido nada, até

aquela noite chuvosa em seu apartamento. Assistia a um

documentário na TV sobre a sua terra natal e as

dificuldades pelas quais vinha passando nos últimos anos,

quando sutilmente começou a ouvir um manso e

cadenciado coro de vozes ao seu redor. Eram vozes

sussurrantes, ecoando ao seu redor, e invadindo sua

cabeça gradativamente. Vozes distantes, como se muitas

pessoas estivessem conversando ao mesmo tempo. Ou

como se estivessem entoando um cântico, uma melodia

sagrada, um chamado macio. Provavelmente cochilara em

alguma parte do documentário, mas estranhamente abriu

os olhos e lembrou de sua terra. Foi nesse momento que

decidira para onde realmente iria.

Durante a viagem, continuou a ouvir as vozes num

coro muitas vezes soturno. Algumas vezes, tinha a nítida

impressão de estar sendo seduzido por aquele coro, aquele

estranho chamado. Mas dessa vez sabia que não estava

sendo seduzido pelo novo e desconhecido, como há seis

anos atrás, quando foi embora de sua cidade, mas sim,

estava agora sendo chamado para redescobrir o antigo e o

esquecido, guardado há algum tempo no fundo de suas

lembranças. Estava indo em busca de suas raízes. O coro

persistia em sua mente, diluídas em sussurros

incompreensíveis, chamando-o de volta para Itabuna. A

saudade havia sido plantada em seu coração, e o jovem

agora viajava pela necessidade de afastar esse

saudosismo e ir para onde as vozes estavam a lhe

conduzir.

Sentado na poltrona ao seu lado havia um rapaz.

Semblante jovem, cabelos de um castanho escurecido,

pele moreno-clara, olhos azulados. “Provavelmente deve

ter uns dezoito anos”, pensou. Trazia um olhar adormecido

no tempo e uma expressão pensativa, algo inquietante até.

Provavelmente estivesse apenas deixando transparecer um

pouco de sua possível insegurança própria da idade, ou

poderia apenas estar pensando sobre os rumos atuais da

Humanidade e sobre o seu próprio futuro incerto diante de

tudo o que estava acontecendo. Aquele olhar absorto no

nada começou a intrigar de certa forma o jovem. Será que

ele, algum dia, já teve aquele tipo de expressão em seu

rosto? Será que ele já esteve perdido em algum tipo de

insegurança em algum momento de sua vida? O que será

que poderia estar pensando aquele rapaz ao seu lado?

Que perspectivas de futuro ele tinha naquele momento

dentro de si? O que ele pensava a respeito do mundo de

hoje, perdido em guerras, fome, violência, corrupção,

hipocrisias? O que ele esperava do mundo e o que ele

poderia querer que o mundo oferecesse a ele?

Será que o jovem estava procurando decifrar o olhar

enigmático do rapaz, ou apenas estava fazendo essas

perguntas para si mesmo? Talvez pudesse encontrar

respostas numa conversa amistosa, mas desde o início

daquela viagem que não haviam trocado uma palavra

sequer, nem ao menos se cumprimentaram. Somente

umas trocas de olhares silenciosos, momentâneas, como

se houvesse uma barreira entre eles que não pudesse ser

ultrapassada ou quebrada de nenhuma maneira. Mas a

vontade de criar mais um laço de amizade e de poder

trocar idéias e informações com outra pessoa parecia estar

latente nos dois, o que podia ser constatado justamente

nas trocas silenciosas de olhares, como se um estivesse

esperando a iniciativa do outro em se apresentar e iniciar

uma conversa. Porém, tudo ficava apenas nos olhares

silenciosos e enigmáticos. Olhares que poderiam ser o

início de uma bela amizade. Por agora, estavam os dois

distantes, cada um sozinho em margens opostas de um rio

caudalosamente sereno.

Enquanto isso, o mundo corria em matas verdejantes,

pastagens calmas, pequenas cidades provincianas,

plantações, povoados à beira da estrada, florestas de

pinheiros, postos de gasolina, casebres solitários. A viagem

prosseguia noite adentro. Já era madrugada quando o

ônibus fez uma parada programada em um posto, em

algum lugar no interior do Espírito Santo, para que pudesse

ser feita a troca de motoristas. A maioria dos passageiros,

incluindo o jovem e o rapaz, descera do ônibus durante o

intervalo da troca. O jovem seguiu em direção à lanchonete

do posto, e enquanto pedia uma pepsi, viu o rapaz

aproximar-se do balcão, sentar ao seu lado e fazer o

mesmo pedido. Entre um gole e outro do refrigerante, sua

atenção começou a se dividir entre o olhar sempre

pensativo do rapaz e as notícias sobre a Grande Guerra. O

noticiário na TV mostrava cenas implacáveis dos

confrontos, cidades sendo devastadas por bombas,

mísseis, pessoas chorando pelos parentes mortos, crianças

abandonadas, escombros por todos os lados. As cenas das

crianças mortas entre os concretos destroçados dos

prédios sempre mexia com seu íntimo. Sentia os olhos

marejados toda vez que via tais imagens na TV. Esfregou

os olhos com os dedos, numa tentativa de conter alguma

lágrima que porventura rolasse de seus olhos. Tomou outro

gole de pepsi. Virou sua atenção para o rapaz, sempre

absorto em si mesmo, olhando meio que anestesiado ao

noticiário que passava na TV acomodada num suporte de

parede. Por um breve momento, os olhares se cruzaram

mais uma vez. Silenciosamente. Viu novamente aqueles

olhos azulados, que pareciam não brilhar como realmente

deveriam. Pareciam opacos, sem vida, um olhar que não

via esperança alguma no mundo de hoje. “O azul de seus

olhos parece estar sumindo lentamente...”, pensou o jovem,

em devaneios insistentes. Subitamente foi interpelado por

um senhor que havia acabado de se sentar ao seu lado, e

que tomava uma xícara de café. Era um dos passageiros

do ônibus.

- Mais um guerra sem sentido – disse o senhor,

bebericando o café quente com extremo cuidado – A cada

ano que passa, a população de famintos e miseráveis

aumenta mais pelo mundo, e os governantes perdem

tempo e dinheiro com guerras estúpidas.

- A Humanidade está trilhando um caminho sem volta.

– disse o jovem, mirando a TV – Ao que parece, o mundo

em que vivemos hoje respira seus últimos momentos de

agonia profunda.

- A verdade é essa. Enquanto milhares morrem de

fome, outros milhares morrem na guerra. Estamos todos

cavando nossa própria cova.

- E o pior disso tudo é comprovar que as atuais

estruturas sociais são deprimentes e frágeis. É muito difícil

hoje acreditar no perfeito funcionamento das instituições,

do governo. Basta observar o nível de corrupção nas

diversas esferas sociais. Todo mundo hoje parece estar

envolvido em alguma espécie de falcatrua.

- Ah, o governo nem se fala. Político e corrupção

viraram sinônimos. Cada dia é uma denúncia nova que

aparece, e o número de pessoas envolvidas sempre

aumenta mais. – o senhor terminou a frase com mais um

gole cuidadoso na xícara de café quente, cuja fumaça se

dissipava suavemente no meio da conversa.

- E agora essa guerra devastadora – disse o jovem,

enquanto observava as imagens na TV.

- Essa guerra, meu amigo, parece ser o início do fim.

O jovem calou-se diante das palavras daquele senhor,

que parecia ter um tom profético. Todos sabiam que uma

guerra como aquela tinha um nível de devastação sem

precedentes na história da Humanidade, e que justamente

por isso, trazia incertezas cruéis com relação ao futuro de

todos. Aquela conversa toda com o senhor não o fez

perceber que o rapaz já não estava ali mais próximo. Ele já

devia ter voltado para o ônibus, e estava novamente

acomodado em sua poltrona, absorto em seus

pensamentos. O jovem bebeu o último gole de pepsi, pediu

licença ao senhor e se dirigiu para uma lojinha ao lado da

lanchonete. Deu uma rápida olhada em lembrancinhas e

souvenirs, algumas pequenas tapeçarias e peças de

artesanato diversas. Folheou algumas revistas, pegou um

jornal do dia anterior. Como sempre, na primeira página, só

se falava na Grande Guerra. No rodapé, viu uma pequena

nota comentando sobre o meteoro que há alguns meses os

cientistas descobriram estar em rota de colisão com a

Terra. De acordo com a notícia, o meteoro, que tinha

aproximadamente o diâmetro de um campo de futebol,

estava previsto para colidir com a Terra exatamente no dia

seguinte, caindo no Oceano Atlântico, próximo à costa

brasileira. Algumas cidades litorâneas já tinham sido

avisadas com antecedência sobre as possíveis

conseqüências daquele evento, e estavam em estado de

alerta sobre alterações ambientais e climáticas

provenientes da queda do meteoro.

“É como se o mundo estivesse sendo sacudido para

tudo o que está ocorrendo...”, pensou o jovem, enquanto

olhava impressionado a foto do meteoro, tirada por um

potente telescópio instalado na Estação Espacial

Internacional. Colocou o jornal de volta na banca.

Caminhou para fora da lojinha, e parou no meio do posto.

Olhou para o céu naquela madrugada iluminada pelas

estrelas. Viu um ponto luminoso, um pouco maior do que

todas as outras estrelas. Seu espírito vacilou por um breve

instante, antes de soltar um sussurro. “O meteoro”.

A buzina do ônibus o despertou de seu transe

reflexivo, avisando que estava na hora de partir, e seguir

em frente com a viagem.

// capítulo 4

Estava ali, ao seu lado, tão perto. Podia simplesmente

quebrar a barreira da inibição e perguntar-lhe o nome, de

onde era, para onde estava indo. Era tão fácil iniciar um

diálogo, uma conversa básica e despretenciosa, frases

banais, básicas. Um olá, pelo menos. Algumas raras vezes

percebia o rapaz lhe encarando com determinação por

alguns rápidos segundos, como quem esperasse em troca

um sorriso confortador, uma palavra amiga. Mas por

grande parte da viagem, lá estava o rapaz solto em seu

olhar azulado a observar a paisagem pela janela do ônibus.

Lá fora, agora, a madrugada acolhia os adormecidos e

os esquecidos, enquanto esperava mansa pela manhã, que

ainda corria lerda o leste de outras paragens,

amanhecendo as almas de coitados, miseráveis, operários,

vagabundos e trabalhadores a despertarem em outras

terras distantes. Dentro do ônibus, luminescências sutis

iluminavam os rostos dos raros passageiros acordados.

Eram os internautas de plantão, que utilizavam seus

palmtops para acessarem a internet em busca de notícias

sobre a guerra deflagrada. Afinal, desde o fatídico 11 de

setembro daquele 2001 negro que os sites não viam tantos

acessos se multiplicando vertiginosamente em busca de

notícias sobre a guerra. O resultado eram portais fora do ar

e acesso dificultado pelo incrível número de internautas

procurando cada vez mais informações sobre o confronto

mundial.

Com os portais brasileiros completamente

congestionados ou fora do ar, o jovem buscava notícias em

outras fontes, mas era pouco provável que obtivesse

sucesso. Junto com os outros poucos passageiros, ele era

um dos que desfrutavam daquela tecnologia de bolso para

ter acesso à informação de forma rápida. Mas seu palmtop

estava com certa dificuldade em acessar os sites da CNN,

da BBC. Até mesmo outros sites pouco conhecidos

pareciam estar sofrendo do mesmo mal momentâneo,

travando algumas páginas constantemente.

Na última fileira do ônibus, o jovem permanecia

acordado, envolvido pela penumbra da viagem e iluminado

pela tela de seu palmtop. Sentia o ônibus deslizar suave

pela estrada. Olhou para o rapaz adormecido na poltrona

reclinada. Seus olhos azulados descansavam nesse

momento. O jovem não conseguia definir um futuro pacífico

para ambos, pois tudo parecia estar se perdendo com

aquela guerra, com tanta violência, tantas mortes. Às vezes

custava ao jovem acreditar que tudo aquilo estava

realmente acontecendo. Parecia estar em um sonho, vendo

tudo do lado de fora, assombrado. Sentia-se dentro de um

pesadelo cruel. Com certeza, todos esperavam que o

mundo passasse por momentos de extrema incerteza, mas

não imaginavam nunca que um dia ou um momento cruel

como aquele pudesse enfim chegar. “Será que os cientistas

políticos poderiam prever tamanha catástrofe? Poderiam

eles dimensionarem a gravidade de uma guerra como

essa? Saberiam eles ter a exata noção das proporções

devastadoras de um conflito mundial como esse que agora

ocorre? Cidades sendo devastadas, países em estado de

alerta, mísseis caindo sobre nossas cabeças, e nós só

tomamos consciência das merdas que fazemos quando

realmente está tudo prestes a acabar assim?” pela primeira

vez na vida, o jovem estava com medo do futuro. Um medo

diferente, com relação a algo que foge completamente ao

controle das pessoas, e que não depende única e

exclusivamente de seus atos. Algo que depende de uma

série de fatores decisivos e que influenciam no final.

Imaginou se essas mesmas dúvidas e temores poderiam

as que povoavam a cabeça do rapaz que viajava ao seu

lado. Mas como saber, se nem ao menos eles

conversavam? Tudo o que faziam era trocar olhares

indecifráveis, mas que pareciam cúmplices de uma

amizade que ultrapassava os séculos e as eras terrenas.

Ainda tentava acessar as notícias no palmtop, quando

se lembrou do meteoro. Havia tanta coisa estranha e

pertubadora acontecendo no mundo naquele momento que

era difícil de acreditar que realmente estava acontecendo.

A única coisa que lhe acalmava era saber que estava

regressando à sua terra, e que iria rever seus familiares,

seus amigos. Olhou pela janela. A madrugada permanecia

firme, fria e escura. Provavelmente ainda não havia

atravessado a fronteira que separava o Espírito Santo da

Bahia. Sempre intrigado, o jovem inclinou sutilmente a tela

de seu palmtop na direção do rapaz adormecido. A

claridade iluminou sutilmente o pequeno crucifixo de metal

que ele usava no pescoço. “Teria ele algum tipo de

religiosidade definida, ou apenas usava aquele adorno no

pescoço por pura vaidade? Acreditaria ele em algo além da

vida terrena, ou seria um cético com relação ao assunto?”.

Novas dúvidas despontavam na mente do jovem, que hoje

estava mais ciente de algumas certezas presentes em seu

coração e em sua mente, certezas essas que não tinha na

época em que deixou sua família e sua terra, e foi correr o

mundo em busca de seus sonhos e suas metas de vida.

Provavelmente aquele rapaz estivesse passando agora

pela mesma situação que ele havia passado há alguns

anos, quando deixou a casa de seus pais e foi atrás daquilo

que acreditava ser melhor para ele.

O jovem não dormira. Amanhecera junto com o dia.

Sentia uma certa ansiedade indefinida, não sabia se

causada pela atual situação mundial, ou se pelo seu

retorno à sua terra natal. A manhã começava a dissipar a

madrugada e suas sombras penumbrosas, raiando o dia

mansamente. A paisagem ao redor começava a tomar

novas dimensões. A Mata Atlântica agora se espalhava por

todos os lados, e as primeiras plantações de cacau surgiam

tímidas ainda pela beira da estrada. “Já estou perto de

casa”, pensou o jovem, soltando um sorriso leve.

A manhã já ia avançada, quando o jovem decidiu por

continuar a leitura da obra de Machado de Assis em seu

palmtop, naquela tradução experimental. Ao seu lado, o

rapaz pegou sua mochila, e de dentro tirou um livro. Era um

obra cujo autor era Thomas Mann, e a capa mostrava uma

Veneza dourada por um lindo entardecer. O jovem já havia

lido aquele livro na faculdade. A visão daquela capa lhe

irradiou boas lembranças de seus primeiros anos de

universitário. Parou um pouco sua leitura e relembrou a

época em que a busca pelo conhecimento era incessante

dentro das dependências do Campus da faculdade onde

estudou. Fechou os olhos e visualizou as tardes em que

passava na Parque do Ibirapuera, lendo alguma obra de

algum escritor ou pensador famoso. Um deles havia sido

Thomas Mann. Imaginou-se novamente no Ibirapuera,

sentado no gramado, lendo, enquanto as pessoas

desfrutavam de um dia ensolarado. Crianças brincavam

alegres ao seu redor, namorados curtiam seus amores,

enquanto outras pessoas faziam seus exercícios matinais

pelo parque. Fechou o livro, e deitou-se na grama,

deixando o sol aquecer seu rosto. Um calor morno o

envolvia numa irradiação luminosa, que começou a ficar

mais intensa a cada segundo.

Repentinamente, começou a perceber que um clarão

tomava forma cada vez mais forte, o que o fez proteger os

olhos incomodados com a mão. Era um clarão que o cegou

por momentos. Então, um solavanco brusco o trouxe de

volta à realidade. Abriu os olhos a tempo de ver aquele

clarão se dissipando ao seu redor. O ônibus começou a dar

guinadas de um lado para o outro, balançando

perigosamente pelo meio da pista. Desesperados, os

passageiros começaram a gritar, procurando se segurar e

se proteger da situação perigosa na qual se encontravam.

Segundos depois ao clarão, um forte estrondo fez-se ouvir

ao longe, algo parecido com um ensurdecedor trovão. O

jovem se segurava como podia, enquanto tentava ter o

mínimo de compreensão de toda a situação ao seu redor.

Completamente desgovernado, o ônibus despencou em

uma ribanceira. Os solavancos eram intensos, e o jovem

sentiu um frio na barriga, os pensamentos completamente

desnorteados. Ao seu lado, o rapaz também estava aflito, e

os solavancos intensos o fizera cair para o meio do ônibus.

Tentando se segurar como podia, e atônito com o que

estava acontecendo com ele, vendo praticamente a morte

rodopiar na sua frente com seu rosto impassível e frio, o

rapaz estendeu a mão para o jovem, que tentou segurar a

todo custo, mas sem conseguir. Seus olhares se cruzaram

com mais intensidade do que nunca, olhares aflitos,

atônitos, desesperados.

- A janela! – gritou o jovem para o rapaz – Saia pela

janela! Rápido!

Eles se olharam uma última vez, antes do jovem se

espremer pela janela do ônibus e se jogar pelo mato,

rolando barranco abaixo, até bater a cabeça em um pedaço

de tronco e perder completamente a consciência.

Quanto tempo a escuridão tomou conta de sua

consciência, ele não sabe definir com precisão. Quando

recuperou os sentidos, sentia uma forte dor na cabeça.

Aturdido, o jovem levantou-se cambaleante, a visão turva,

pensamentos embaçados. Passou a mão na cabeça.

Estava sangrando, e sua camisa manchada de sangue era

o claro sinal do estado crítico em que se encontrava. Olhou

para os lados, sentindo um cheiro forte de queimado.

Estava a poucos metros do fundo do precipício, e de onde

estava conseguiu dicernir fogo e fumaça ainda presentes.

Completamente chocado, enxergou a carcaça retorcida do

ônibus, totalmente destruído pelo fogo. Gritou por alguém,

mas não havia sinais de qualquer outro sobrevivente.

Todos morreram carbonizados.

Agora havia apenas ele, um jovem sobrevivente.

Gritou desesperado, e seus gritos ecoaram pela mata ao

redor, e atingiram o céu, um céu agora completamente

nublado e cinzento. Ajoelhou-se completamente fora de si,

pegando montes de terra com suas mãos e espremendo

com força. Chorando, sentiu uma dor intermitente nas

têmporas. Tinha um corte transversal na testa, acima do

olho direito, tingindo seu rosto com o vermelho de seu

sangue. Sua lágrimas misturavam-se ao seu sangue,

enquanto se perguntava o que havia acontecido. Suas

interrogações agora eram sufocantes e insistentes.

- Por que, meu Deus? Por que? Por que isso

aconteceu? – sussurrava baixinho, como que com medo

das respostas que pudessem surgir em sua mente.

Parecia fora de si por completo. Tudo aquilo parecia

não estar acontecendo com ele, mas com outra pessoa.

Ele se sentia num terrível pesadelo, do qual poderia

acordar a qualquer momento, assustado, suado e com a

respiração ofegante. Não sabe realmente definir por quanto

tempo ficou desacordado. O sofrimento definia sua vida

naquele momento, quando o céu nublado começou a

chorar pequeninos flocos, semelhantes a flocos de neves.

O céu estava chorando cinzas. Parecia estar chorando

restos de vida que sumiram de repente. O jovem estava

transtornado, sua respiração ofegante se misturava ao

choro quase sufocante. Foi então que uma força

incontrolável e desconhecida tomou conta de seu espírito.

Saiu correndo desembestado sem rumo certo. Correu

durante muito tempo, e quando finalmente havia esgotado

todas as suas forças, largou-se no chão de sua terra.

Somente naquele momento havia se dado conta de que

tinha se embrenhado pela mata. Seus passos o haviam

levado a lugar algum. Estava perdido no meio do mato. A

floresta agora o cercava por todos os lados, e tinha perdido

o senso de direção, sem saber de onde tinha vindo e nem

como voltar. Estava distante dos caminhos, distante de

qualquer tipo de ajuda. Estava perdido.

Não conseguiu encontrar mais a carcaça queimada do

ônibus. Não conseguiu encontrar o caminho de volta para a

estrada. Não encontrou mais o caminho de volta.

// capítulo 5

Uma nova escuridão o envolveu, e quando o chão

fugiu de seus pés novamente, um novo abismo o engoliu

por completo. Caia em gritos desesperados, quando

acordou completamente assustado, completando o retorno

de sua transposição onírica. Estava começando a ter o

mesmo sonho com o acidente, de maneira constante e

pertubadora. Era um tormento para o jovem reviver tudo

aquilo novamente em seus sonhos. Olhou ao redor, viu a

mesma floresta, os mesmos cacauais, o mesmo Jequitibá

onde havia se recostado para descansar. Permaneceu

ainda deitado por algum tempo ali. Tentou se lembrar do

rosto do rapaz de olhos azulados que havia viajado ao seu

lado. Sentia imensa dificuldade em redesenhar na memória

as feições serenas daquele rosto moreno que vira por tão

pouco tempo, algumas prováveis horas. Só conseguia ver a

expressão desesperada do rapaz segundos antes de saltar

do ônibus que caía. Chorou silenciosamente. Recostou-se

no Jequitibá. Procurou a foto em suas mãos, mas nada

encontrou, apenas o vazio de sua existência e a sujeira da

terra misturada ao seu sangue. Passou a mão na testa e

sentiu uma leve dor no lugar do corte. Uma leve sensação

de morte passeou pelo seu corpo. Amanhecera mais um

dia cinzento e nublado. Talvez tenha dormido algumas

horas, mas nunca mais tivera um sono reconfortante.

Acordava sempre assustado e desesperado, como se

estivesse no meio de uma guerra. Sentia-se como um

soldado perdido em pleno campo de batalha.

Um frio percorreu sua espinha. Olhou para os lados,

desconfiado. Levantou-se sorrateiramente, e foi até alguns

cacauais próximos de onde estava. Não sabia explicar o

que fazia ali, parado, observando os pés de cacau. Apenas

olhava, examinando cuidadosamente cada cacaueiro,

como se tentasse entendê-los. Foi quando, nesse

momento, diante de seus olhos, as árvores começaram a

definhar, murchando e se esfarelando ao sabor dos ventos.

Assustou-se. Balançou a cabeça, tentando se desvanecer

de tais alucinações. Mas elas teimavam em continuar

passeando diante de seus olhos. Continuou debatendo-se,

até se livrar daqueles delírios e perceber que as árvores ao

seu redor continuavam ali, intactas, imóveis, presas

naquela terra pelas suas raízes. Passado o momento de

delírio, procurou se controlar. Sentia-se esgotado

fisicamente, e faminto. Levantou-se, decidido a achar algo

para comer. Enquanto caminhava pelo mato, procurava de

alguma forma reconstruir sua razão, seus pensamentos,

colocar suas idéias em ordem. Lembrou de um dos últimos

momentos bons em que estivera com um amigo de

faculdade, conversando numa mesa de bar, trocando idéias

sobre a vida, as amizades e o mundo em que viviam.

A voz de seu amigo agora ecoava entre um gole e

outro de cerveja.

- Meu caro, toda essa situação caótica pela qual

passa o mundo hoje é o desfecho irreversível de um

emaranhado de problemas gerados pelo próprio homem,

através de conflitos, luta pelo poder, violência, ganância. –

seu colega universitário tinha feições compridas, barba rala

e um olhar forte e penetrante quando conversava e

procurava expor suas idéias e opiniões. Tinha uma maneira

concisa de falar, gestos comedidos. Usava um pequenos

óculos redondo, o que lhe dava um ar intelectual. Sua

firmeza na forma de se expressar com as palavras

tornavam suas conversas envolventes. O ser humano

afunda-se cada vez mais em hipocrisia e toda e qualquer

forma de corrupção, e o que vemos é a deturpação

completa do valores éticos e nobres da sociedade. O

mundo está pior do que há dez anos, se desarticulando

desde as microestruturas sociais, as próprias famílias, até

as grandes corporações, envolvidas em escândalos de

toda ordem, sejam financeiros, sociais, políticos. O

Congresso, a Igreja, as grandes corporações, ninguém

escapa de tantos erros escondidos embaixo dos tapetes.

- Há dez atrás, poderíamos acreditar e confiar na

palavra de um amigo – ponderou o jovem. - Hoje em dia,

isso é muito difícil. Estão sumindo as pessoas de caráter,

as pessoas honestas e amigas. Amigo tornou-se uma

raridade.

- Olhe ao seu redor. Hoje as pessoas não vivem. Elas

tentam sobreviver, diante de tanta falta de perspectiva.

Como ter alguma perspectiva diante de um Governo que

não nos dá certeza do que realmente acontece dentro das

esferas do poder? Hoje as pessoas vivem desanimadas,

inseridas numa sociedade decadente e desgastante. A

maioria abandona seus sonhos para correr atrás do pão de

cada dia e do dinheiro para pagar as dívidas sempre

presentes. É a sociedade que criamos, e que agora não

conseguimos mais sair, e nem fazer os nossos filhos

saírem. Pois eles já nascem inseridos nesse mundo

decadente. Nosso mundo é extremamente materialista,

consumista, impositiva com relação a valores morais

distorcidos.

- Ontem mesmo eu presenciei na rua policiais usando

de violência com meninos de rua. Um completo absurdo,

atitudes que apenas dão margem a mais violência.

- Isso é incutido em nossas mentes desde que

nascemos. As crianças crescem revoltadas, marginalizadas

e sem perspectiva de futuro. E o ciclo vicioso permanece.

O governo deveria priorizar a Educação, e não criar

paliativos para toda forma de miséria que assola a

sociedade. O homem se perdeu dentro dos complexos

sistemas que ele próprio criou.

- Guerras, seqüestros, revoltas populares, crime

organizado, guerras civis, jovens viciados, miseráveis

morrendo de fome...

- Aids, governos corruptos, florestas devastadas,

violência nas esquinas. Esse é o nosso mundo, meu amigo.

Um mundo que ainda vai piorar muito mais, antes de

melhorar. Eu tenho certeza de que mudanças drásticas irão

ainda abalar todos os alicerces que apóiam as formas de

pensar e de agir deste nosso mundo como o conhecemos.

O jovem parou de caminhar por um instante. As

palavras de seu amigo ainda ecoavam em sua mente, e

agora ele parecia estar vivenciando aquelas mudanças

drásticas as quais se referia seu amigo. Experimentar um

verdadeiro inferno, para aprender a valorizar o paraíso. O

jovem sabia que o sofrimento trazia maturidade e

experiência ao ser humano, mas ele começava a achar que

não estava completamente preparado para suportar tudo

aquilo de forma tão repentina. Temia que pudesse acabar

pelo meio do caminho, não alcançando o próximo estágio

de sua caminhada. Seu amigo invadiu novamente suas

lembranças, povoando sua mente com mais considerações

sobre a vida.

- Quando sua vida se desmorona, você precisa se

reerguer e reconstruir em cima de tudo aquilo que foi

destruído. Só assim vamos crescendo e aprendendo com

nossos erros. Mas para que isso aconteça, primeiro

devemos aprender com os nossos erros, do contrário

iremos sempre continuar errando e destruindo a nós

mesmos. O mundo ainda não aprendeu com os seus erros,

e isso causará a nossa ruína. E existe um momento em

que tudo se torna um processo irreversível, onde as

soluções sempre são mais drásticas e dolorosas. E o nosso

mundo já está nesse processo irreversível, infelizmente.

Vivemos um mundo de ilusões e fantasias. As pessoas já

não vivem suas próprias vidas, aquelas que elas deveriam

realmente viver. Apenas tentam sobreviver, incapacitadas

de transformarem suas vidas naquilo que elas tanto

sonham e almejam. Isto é o que mais destrói a todos,

constatar sua impotência diante de uma sociedade que se

limita, se condena e se fecha em sua rotina miserável e

corrosiva. Esse é o nosso mundo hoje.

“Para onde estamos caminhando? Para onde eu estou

caminhando?” O jovem parou novamente, fitou o céu

cinzento e nublado por entre as árvores. À sua volta, os

cacaueiros nus, sem frutos. Apenas pequenas flores a

brotar.

// capítulo 6

Suas mãos trêmulas agarravam o cacau partido como

se ele fosse fugir ao seu controle. O fruto revelava em seu

interior amêndoas doces, de um sabor inigualável, um

verdadeiro néctar dos deuses que o jovem, prostrado na

terra, devorava avidamente. Foi um dos poucos cacaus

maduros que havia encontrado por toda aquela parte. Por

isso, chupava cada amêndoa como se fosse a única,

mastigando-a em seguida, triturando-a com os dentes, e

engolindo quase sem sentir. A princípio, um gosto amargo

tomava conta de sua boca, quando mastigava os caroços

de cacau, mas logo acabou se acostumando, em favor de

sua sobrevivência. Desesperado pela fome, comportava-se

como um verdadeiro animal faminto, agarrando sua presa

com unhas e dentes, estraçalhando-a completamente,

degustando-a inteira. Devorava tudo o que pudesse ser

comido. Maduros ou verdes, atacava os frutos que

estivessem ao seu alcance. Maracujás, bananas, avançava

com furor, cravava os dentes, mastigava agoniado. Se não

estivesse ao seu alcance, goiabas, mangas, laranjas, subia

aflito pelos troncos, embrenhava-se pelos galhos,

pendurava-se, aninhava-se pelas copas das árvores, tal

qual um macaco. Como nos tempos em que era menino

travesso nas fazendas de seu pai, entocando-se nas copas

das mangueiras, dos cajueiros, goiabeiras, juntamente com

os filhos dos empregados, passando bons momentos a

saborear as delícias das frutas oferecidas pela natureza.

Agora, porém, a situação era adversa. Para o jovem, era

uma questão de sobrevivência, e isso agora fazia toda a

diferença.

Andando há alguns dias sem rumo pela mata densa e

por entre cacauais, já não tinha mais certeza se

conseguiria sair vivo daquela situação. Seu corpo mostrava

sinais de fraqueza cada vez mais intensa, e sem qualquer

tipo senso de direção, não fazia a menor idéia de onde

realmente estava. Olhava para o céu cinza e nublado, onde

as nuvens densas e o tempo sempre fechado escondiam o

furor quente do sol. Sentia-se desorientado, sem saber que

rumo tomar. Algumas vezes tinha a sensação de estar

andando em círculos. Desde o dia do acidente, os dias

sempre estavam nublados, chuvosos, e não havia mais a

presença brilhante do sol. Apenas a sua claridade se fazia

presente a muito custo naquele céu turvo.

Nesse dia, porém, enquanto descansava recostado

num tronco de cedro, avistou um vulto caminhando por

entre os cacaueiros. Parecia ser um trabalhador rural.

Estava perdido numa leve neblina, e estava catando, com a

ponta de um facão, alguns cacaus maduros que cobriam o

chão, colocando-os no caçuá que carregava nas costas.

Resmungava palavras que o jovem não conseguia

compreender. Provavelmente estaria reclamando do peso

daquele caçuá abarrotado de cacau, ou então maldizendo

a vida que levava. O jovem, ainda sem acreditar direito que

havia encontrando aquele senhor, caminhou com passos

rápidos em sua direção. Mas aquele cansado trabalhador

rural desapareceu por detrás de uma jaqueira. O jovem

sentiu-se aturdido novamente, agoniado, e começou a

gritar pelo senhor de pele escura e cabelos grisalhos.

Estaria tendo novas alucinações? Antes que pudesse

pensar no que estava realmente acontecendo com ele, o

jovem ouviu gritos. Alguém ali próximo parecia estar

sofrendo muito. Virou-se bruscamente, e avistou um

homem seminu, tentando sair de um atoleiro, no qual

estava afundado até a cintura. Carregava junto ao peito um

cacau quase podre. Quando, a muito custo, conseguiu sair

daquele lamaçal, agachou-se, ofegante. Seu rosto trazia

uma expressão cansada. Aquele homem levantou-se,

então, e começou a correr.

- Espere! – gritou o jovem – O que tá acontecendo?

Por que você está correndo? Espere! Eu preciso de ajuda!

O homem parecia não ouvir suas palavras, e

indiferentes aos apelos do jovem, continuou correndo

desesperado mata adentro, sumindo pela densa atmosfera

da floresta. Sua imagem dissipou-se por entre as árvores.

O jovem, que tentava acompanhá-lo, parou então. Com o

olhar fixo na direção para onde o homem desaparecera, o

jovem deixou seu corpo cair sentado no chão. Ficou ali,

inerte, imaginando o que realmente estaria acontecendo

com ele. Pensava insistentemente se não estaria ficando

louco de fato. Tirou do bolso da calça as últimas amêndoas

de cacau que havia guardado. Ficou olhando aqueles

caroços em sua mão. Fechou os olhos, e então, depois de

muito tempo, desde o dia do acidente, ouviu novamente

aquele coro de vozes ecoando em sua mente. Algumas

vezes parecia um imenso grupo de pessoas conversando

desordenadamente, outras vezes assemelhava-se a um

coro harmonioso entoando cânticos sagrados.

Envolvido pelo som desse coro de vozes imprecisas,

estranhamente a imagem de seu avô invadiu-lhe a mente.

Mergulhou novamente em lembranças dos tempos em que

era menino, e de quando costumava brincar com seu avô.

Lembrou das muitas histórias que ele contava da época

que ele era moço, quando ele havia deixado para trás sua

terra natal, Sergipe, para vir desbravar as formosas terras

do Sul da Bahia do início do século XX e iniciar vida nova

pelos arredores de Ilhéus e Tabocas. O jovem sentia agora

correndo pelo seu corpo aquele mesmo sangue

desbravador e aventureiro de seu avô. Fizera o mesmo que

seu avô, deixando sua terra natal para ir correr o mundo

em busca de seus sonhos. Apertou o punho que guardava

as amêndoas de cacau, e chorou silenciosamente, com

saudades de seu avô, que há muito tempo havia deixado

este mundo. Deitou-se na terra, adormecendo na

penumbra envolvente da mata.

A noite trouxe um silêncio absoluto naqueles domínios

selvagens, dominando tudo ao redor durante aquela era de

estranha transição. A escuridão, sorrateira, navegava

suave em suas próprias brumas, tecendo cortinas de

negrume envolventes. Dessa escuridão fez-se a luz, e

dessa luz, imagens que, recolhidas pela visão distorcida, se

tornava reais o suficiente a ponto de induzir uma mente

cansada e dopada pelo sono profundo a acreditar nelas e

tomá-las como a realidade incontestável, um emaranhado

de cores, formas e sensações simuladas.

Mergulhado na escuridão real da mata fechada, o

jovem emergia agora sob a luz de acontecimentos

supostamente criados dentro de sua mente adormecida.

Sua cidade tomou forma diante de si. Ruas, prédios, casas,

carros, pessoas. Uma profusão de cores numa distorção de

situações e ações que aconteciam ao seu redor. Passos,

buzinas, fumaças, acenos, conversas, o céu azul. Olhou o

céu azul sobre a sua cidade envolvida num dia ensolarado.

O jovem começou a caminhar calmamente, atento a tudo

ao seu redor. Surpreendeu-se em como sua cidade havia

mudado bastante em pouco mais de seis anos de sua

ausência. Prédios surgiram onde antes não havia nada,

novas praças e jardins pareciam revitalizar parte da cidade

com uma nova urbanização. Itabuna mostrava-se diferente

aos olhos do jovem. Sentia o frescor do dia, e se sentia

abençoado por vislumbrar aquele céu tão limpo e azul, sem

nenhuma nuvem sequer. Alguns amigos seus de infância

passavam do outro lado da rua. Gritou por eles, acenando

insistentemente, mas eles não o ouviram, continuando a

caminhar, indiferentes aos seus gestos e gritos.

“Provavelmente não me ouviram, ou então não me

reconheceram”, pensou, “Afinal, a gente muda um pouco

em seis anos”. As pessoas ao seu redor caminhavam,

absortas em seus compromissos e horários programados,

enquanto o jovem observava aquele céu azul e mais a sua

cidade, que movimentava-se bela e frenética, e às vezes

estranha e diferente, como em um sonho. Então, um rápido

flash cegou momentaneamente seus olhos. Parecia um

relâmpago. Sentiu uma tontura repentina e sua visão

vacilar. Toda a cidade ao seu redor deformou-se em

consistências imprecisas, ângulos indefinidos e horizontes

fora de foco. Fechou os olhos e teve a sensação do chão

fugindo de seus pés. Cambaleou para trás e apoiou-se

numa parede. Sua visão voltava ao normal, e ele pôde ver

que estava em outro lugar, uma outra rua. Não era a

mesma rua na qual estava há poucos momentos atrás.

Olhou ao seu redor, confuso com aquele estranho

deslocamento no tempo e no espaço. Teve a sensação de

não fazer parte daquele mundo naquele momento, onde as

pessoas caminhavam indiferentes a ele, como se ele

simplesmente não existisse ou não pertencesse àquela

dimensão. Olhou mais atentamente, e percebeu tudo ali se

descolorir bem lentamente, perdendo brilho. Sentiu uma

certa aflição tomar conta de si, pois começou a ter a clara

noção de que ninguém ali percebia sua presença. Foi

quando percebeu que as pessoas pararam atônitas,

olhando para o céu azul. Começou a ouvir gritos aflitos.

Olhou para o céu e viu então centenas de bolas

incandescentes de fogo riscarem o firmamento em rastros

negros de fumaça. Vinham na direção da cidade. “Meu

Deus! O meteoro!”

Viu diversas bolas de fogo atingirem em cheio prédios,

casas, avenidas, e instaurar o completo caos por toda

parte. Pessoas corriam desesperadas em busca de algum

abrigo seguro. O que se via por toda parte agora eram

explosões intensas, labaredas de fogo, devastação e

destruição. O jovem sentiu seu corpo todo gelar, um

calafrio percorreu sua espinha e se alojou em sua barriga.

Correu desesperado por entre explosões, carros voando e

pedaços de prédios caindo. O que estava presenciando era

surreal demais para se acreditar. Era um pesadelo infernal.

Entrou correndo por uma rua e agachou-se numa esquina,

tentando olhar para cima e entender realmente o que se

passava. Os pedaços de meteoro continuavam caindo sem

parar, e as pessoas corriam desembestadas pelas ruas.

Olhou para cima, e nesse momento seu coração gelou de

medo e aflição. Uma imensa bola de fogo estava caindo em

direção de sua cidade. Maior, mais assustadora, e com

certeza devastaria tudo num raio de quilômetros, aquela

imensa pedra flamejante se aproximava cada vez mais,

emanando um energia quente de destruição completa. O

jovem não conseguia gritar, estava sem voz,

completamente atônito, suando frio, e vendo seu próprio

fim se aproximando mais e mais, ensurdecedor,

incandescente, implacável. Novamente viu a face

impassível da morte trespassar seu corpo como um sopro

uivante de vento. Tudo silenciou ao seu redor, o céu

transfigurou-se, viu tudo ao seu redor ser deformado diante

daquele imenso meteoro cada vez mais próximo, ser

destruído, arrasado, desintegrado, devastado e

transformado em pó e cinzas. Tudo se iluminou, e o jovem

sentiu o calor de seu fim dominando-o inteiro, seu corpo

estremecendo, esquentando cada vez mais, até ser

envolvido por uma luz dourada. Abriu a boca num grito

mudo, e sentiu seu corpo queimar intensamente. Flutuou

em silêncio e morte.

O jovem acordou suando, gritando, com um olhar de

louco alucinado. Seus gritos escapavam por entre as

árvores. Mais um dia raiava nebuloso e cinzento, enquanto

a penumbra ainda escorregava pelos troncos e pedras. O

jovem tivera o pior pesadelo de sua vida.

// capítulo 7

Depois daquela noite, o jovem sentiu-se mais

esgotado fisicamente e mentalmente. Agora tinha

problemas para dormir, e ficava a cochilar durantes breves

minutos, sempre acordando aos sobressaltos, assustado.

Seu sono havia se transformado em constantes vigílias

contra seus piores pesadelos. Não fazia a menor idéia do

que realmente havia acontecido no dia do acidente, não

sabia definir o que teria sido aquele clarão e o estrondo

abafado logo em seguida. Começava agora a temer que

seu pior pesadelo pudesse se transformar em sua mais

cruel realidade.

Não fazia idéia de quantos dias estava perdido

naquela mata densa, e nem por que ainda não havia

encontrado uma alma viva por aquelas bandas que

pudesse lhe ajudar a encontrar socorro. Sentia suas forças

se esvaindo pouco a pouco, e sua vida parecia querer

sumir, como fumaça dissipando-se no ar. Lutava contra

tudo isso, e temia que não pudesse sair dessa com vida.

Havia se preparado para retornar à sua terra, rever

sua família, seus amigos, passar o Natal com eles. Talvez

aquele dia já fosse véspera de Natal, ou até mesmo essa

data já teria passado. Não fazia idéia de mais de nada,

apenas queria sobreviver a qualquer custo para tentar

descobrir o que houve realmente. O medo de morrer sem

ao menos rever sua família insistia em seu peito, mas a

vontade de viver teimava em pulsar e mantê-lo andando,

mesmo que quase sem forças para andar.

“Não posso desistir de viver, não posso! Tive a

oportunidade de vir a este mundo para viver e aprender

com minhas vivências. Não será agora que irei desistir de

viver! Eu tenho capacidade suficiente para transformar e

modificar este mundo nesta minha existência. Tenho

capacidade de pensar, analisar, refletir, idealizar, descobrir,

criar, sonhar, chorar, sorrir. Eu existo porque há um

propósito e cabe a mim somente não desistir e seguir em

frente, com todas as forças que eu tiver. Preciso

continuar...”.

Recostado em um cacaueiro, abraçou-se de forma

protetora, procurando não sentir aquela solidão que reinava

ao seu redor. O tempo estava frio e nublado, e foi então

que o jovem ouviu uma voz mansa, leve e firme ecoando

ao seu redor. Sentiu uma brisa macia ir de encontro ao seu

rosto marcado por sangue e lágrimas.

“Vida” – sussurrou a voz por entre as árvores.

Abriu um sorriso tímido, e levantou-se. Cabisbaixo,

continuava sorrindo sutilmente, enquanto apertava os

punhos. Sabia que precisava continuar, pois provavelmente

não estivesse tão sozinho assim. Alguma coisa, ou alguém

queria que ele continuasse, que ele seguisse em frente,

que não desistisse de viver. Tinha que lutar contra seus

temores e seus pesadelos.

Seguiu em frente, através da mata, através dos

cacauais. Enfiou a mão no bolso, e sentiu ainda as

amêndoas de cacau que trazia sempre consigo. Suas mãos

sujas, de unhas encardidas, seguravam cada semente com

determinação. Com certeza havia certa insegurança com

relação ao futuro que lhe aguardava dali por diante. Sua

vida havia se tornado um quebra-cabeça desafiador,

aparentemente sem nexo, uma fortaleza até o momento

impenetrável de dúvidas e indagações. O acidente, o

clarão, o estrondo, os sonhos que tivera, as alucinações,

aquele coro sussurrante de vozes que ecoavam em seu

íntimo. Provavelmente tudo teria uma explicação, haveria

uma conexão entre tudo, ou simplesmente não. Poderia

apenas ser resultado de uma mente atordoada,

atormentada por uma realidade adversa e um acidente

traumatizante.

Deveria haver um sentido para tanto sofrimento e

tormento. Lembrou-se de todas aquelas pessoas no

ônibus, que não conseguiram se salvar de uma morte

iminente, e sentiu um aperto no peito ao recordar que

tentara salvar a vida daquele rapaz de olhos azulados, mas

que não havia conseguido. Enquanto mastigava uma

amêndoa de cacau, pensava em sua família. O sabor

amargo do caroço já não lhe incomodava, ao contrário do

que poderia ter acontecido com seus familiares. Temia pelo

pior. O gosto amargo da amêndoa tomava conta de sua

boca. Sentiu naquele momento uma vontade de comer uma

barra de chocolate. Adorava chocolate. Era o gosto sempre

presente em sua infância. Deixou levar-se pelas

lembranças de seus tempos de garoto, onde o mundo ao

seu redor eram constantes descobertas. Trazia dentro de si

a fascinação pelo desconhecido, pelo que poderia estar

além do horizonte. Desde cedo pegara o gosto pela leitura,

e tinha uma sede de saber intensa. Adorava livros sobre

arte, astronomia e cultura de povos antigos. Aos 11 anos,

seu pai lhe deu um livro sobre a cultura dos povos astecas,

cuja capa dura trazia uma foto imensa de ruínas de uma

antiga cidade asteca. Começou a ler sobre a vida daquele

povo, seus conhecimentos, sua maneira de viver, seus

rituais religiosos, e de como os colonizadores acabaram

destruindo toda uma civilização. Sentado à sombra de uma

mangueira, na fazenda de seu pai, o jovem garoto se

interessou em especial por um capítulo daquele livro, que

falava sobre o fruto dourado que os astecas cultivavam.

Era o cacau. Cada vez mais se sentiu fascinado por aquela

civilização exuberante e mística. Sua imaginação de

criança então o transportou, naquela leitura, pra aquele

universo instigante, aquele Mundo Novo.

Da praia podia ver as velas brancas, alvos sinais das

caravelas que singravam os mares em busca do

desconhecido e que agora aportavam naquelas terras. Era

o homem branco, desbravador, perseguindo novos

continentes e todos os tesouros que nela houvessem. O

fruto cacau, assim como o chocolate, o néctar dos deuses,

estava prestes a ser descoberto pelos “homens com corpos

de metal”, habitantes do mundo civilizado. Até então, o

cacau era um privilégio dos índios que viviam no sul do

México, América Central e Bacia Amazônica, onde o fruto

se desenvolvia naturalmente em meio à floresta.

O livro relatava que, quando os primeiros

colonizadores espanhóis chegaram à América, o cacau já

era cultivado pelos índios, principalmente os Astecas, no

México, e os Maias, na América Central, que consideravam

o cacaueiro sagrado. Os Astecas acreditavam ser o

cacaueiro de origem divina, e entre eles havia uma lenda

que atribuía a origem do cacau ao feito de um deus. Era a

lenda que contava a história do deus asteca Quetzacóatl,

que na linguagem asteca significa "Serpente Emplumada",

"Pássaro Serpente", ou "Pássaro Serpente da Guerra". O

jovem garoto seguia lendo a história de Quetzacóatl, deus

dourado do ar, senhor da Lua prateada e dos ventos

gelados, também idolatrado como o deus da sabedoria e

do conhecimento. Algumas vezes era representado como

uma serpente emplumada, e outras vezes como um

homem idoso vestido com uma túnica, de barbas brancas,

com o corpo e o rosto pintados de negro e uma máscara

imitando um focinho vermelho e bicudo. Segundo sua

fantástica história, Quetzacóatl, assim como Prometeu,

também ofertou aos homens um presente roubado da Terra

dos deuses. Querendo dar aos mortais algo que lhe

enchesse de prazer e energia, Quetzacóatl foi aos campos

luminosos do Reino dos Filhos do Sol, para de lá furtar as

sementes da árvore sagrada. Dessa forma fantástica, as

sementes do cacaueiro teriam surgido na região dos

Astecas e aí frutificado, dando origem à árvore. Os Maias e

os Astecas festejavam as colheitas com rituais cruéis de

sacrifícios humanos, oferecendo às vítimas taças de

chocolate. O jovem garoto deixou-se levar pela sua própria

imaginação e então visualizou o deus asteca em toda sua

plenitude divina, alto e robusto, com um rosto de linhas

fortes e marcantes. Um deus dos trópicos, de pele morena,

trajando vestes suntuosas, de farto tecido de seda

resplandecente, em tons de dourado ou verde bem escuro

e brilhante, e um enorme cocar com dourados desenhos

em relevo e imensos penachos reluzentemente negros ou

em tons de um azul escuro. Aquele era o seu deus

Quetzacóatl.

De alguma maneira, todas essas lembranças

pareciam revigorar o espírito do jovem, agora um solitário

sobrevivente perdido em meio aqueles cacaueiros. Ele

ainda guardava com carinho aquele livro que seu pai lhe

dera quando garoto. Olhou novamente as amêndoas em

sua mão, e se sentiu agradecido por ser filho daquelas

terras tão abençoadas, apesar de profundamente

castigadas pelo homem. Uma terra de gente sofredora e

humilde, mas também de pessoas gananciosas e

maliciosas. Enquanto andava, pensou na Grande Guerra

que estava desfigurando aquele mundo que ele conhecia.

Nesse momento, sentiu tudo ao seu redor iluminar-se um

pouco mais e o ar ficar mais arejado.

// capítulo 8

Suas gargalhadas frouxas ecoavam pelo ar. Respirava

uma nova liberdade que inundava seus braços abertos

para o tempo. O jovem sentiu o corpo esmorecer diante do

que via, mas não vacilou. Não acreditava que conseguira

sair da mata. Havia encontrado uma pastagem ampla, e

não era mais refém dos domínios da floresta. Sentia-se

mais livre, sentia o ar mais leve ao seu redor, os ventos

rugindo em torno de si. Reencontrou a frescura dos ventos

que não conseguiam embrenhar-se pela mata fechada.

Corria ansioso pelo descampado, por entre o capim alto

que balançava ao sabor das correntes de ar.

Parou sobre um pequeno monte e observou a

paisagem ao redor. O céu estava completamente tomado

por nuvens cinzentas, sempre constantes, insistentes,

parecia um inverno sem fim. Os ventos agora se

comportavam como sopros mutantes de ar, inconstantes,

algumas vezes até mesmo provocadores, verdadeiras

rajadas de ar que açoitavam, agitavam as copas das

árvores e sopravam para todos os lados uma poeira que

parecia cinzas. Girou lentamente o corpo em torno de si

mesmo, acompanhando com os olhos o horizonte ao seu

redor, perdido numa manta cinza e espessa. O verde da

mata se mostrava desbotado, coberto por uma sutil

camada cinza que deslizava suave do céu.

Desceu a encosta logo à sua frente, e avistou uma

cerca de arame farpado, e seguiu em sua direção. Suas

gargalhadas foram substituídas agora por um silêncio

reflexivo. Tinha receio das conclusões que poderia chegar

acerca da paisagem que avistara do alto daquele morro.

Atravessou a cerca com cuidado, pois o arame estava

completamente velho e enferrujado, desgastado pelo

tempo. Continuou caminhando por aquela paisagem

estranhamente desolada, sem uma viva alma a aparecer.

Ouviu barulho de água. Era um riacho quase escondido

pela vegetação ao redor. Molhou as mãos, jogou um pouco

de água no rosto, enquanto continuava a olhar ao redor,

sem saber ao certo que direção exatamente tomar.

Atravessou o riacho, cujas águas rasas apenas chegavam

até a altura de suas canelas. Sua caminhada prosseguiu

durante um bom tempo por aquela pastagem até encontrar

uma outra cerca, e enfim, uma estrada de terra.

Novamente, com cuidado, atravessou a cerca, afastando

os arames, e colocou os pés naquela estrada estreita e

cheia de buracos, provavelmente algum ramal que ligava

as diversas fazendas da região à estrada principal, e que

mal dava para passar uma camionete. Não sabia que

direção tomar, mas naquele momento, isso realmente

pouco importava. O que o jovem queria mesmo era

encontrar ajuda, ver outros rostos, outras pessoas, e

acreditar enfim que estava saindo daquela situação vivo e

disposto a encarar a vida mais uma vez, e descobrir o que

aconteceu desde o dia do acidente. Seguiu caminhando

pela estrada, quando ouviu o coro de vozes ecoar

novamente em sua mente, naquele cântico insistente e

meio desordenado. Por mais que tentasse, não conseguia

definir o que seria aquelas vozes a povoar seu espírito de

maneira tão imprecisa, chegando muitas vezes a soar

como um manso mantra.

Caminhou durante um bom tempo, até sentir um

enorme alívio invadir sua alma, quando avistou os

primeiros sinais de civilização. Ao longe podia ver um

casarão, algumas barcaças, e mais algumas casas. Havia

encontrado uma fazenda. Parou um instante apenas, e

vislumbrou a paisagem rural que se desenhava diante de

seus olhos agora, quase marejados. Sorriu por um

momento, e continuou andando, com passos um pouco

mais apressados dessa vez. Relâmpagos e trovões

começaram a dominar todos os cantos daquele céu

cinzento. A chuva parecia iminente.

// capítulo 9

O jovem escancarou a porteira, e parou por um

momento para observar o lugar, que parecia estar

abandonado. Tudo ali inspirava certo descuidado e

desolação inquietante. O capim crescia displicente ao

redor, dando ao local um aspecto ainda mais desolado e

esquecido. O jovem seguiu pela estrada que ia em direção

ao casarão antigo e mal conservado. Enquanto

aproximava-se, olhou para mais adiante, à direita, as três

barcaças, cujos tetos de zinco estavam completamente

tomados pela ferrugem. Seus olhos seguiram mais para

direita, e avistou uma casa com uma chaminé. Deveria ser

o galpão que servia tanto para estoque do cacau colhido

como estufa para secagem artificial dos grãos. Um pouco

mais distante do casarão, algumas casas modestas, para

abrigar os empregados da fazenda. Próximo às casas

havia um outro galpão, esse todo em madeira, parecia ser

uma garagem. E ao longe, o jovem avistou um imenso

carvalho secular, exibindo toda sua imponência silenciosa,

praticamente senhor daquele descampado coberto de

capim. Porém, tudo ali agora deixava exalar um odor de

abandono e solidão.

Aquele lugar fez o jovem lembrar de uma das

fazendas de seu pai, onde havia passado bons momentos

de sua infância. Alguns flashbacks saltaram aos seus

olhos, e ele viu-se menino na fazenda de seu pai, vendo as

amêndoas de cacau expostas ao sol nas barcaças, para

em seguida correr descalço com passos moleques, a

aproveitar todo o sabor da infância numa roça de cacau.

Um clarão forte, seguido de um trovão rapidamente o

trouxe de volta para aquela realidade cinzenta. Rajadas de

vento balançavam o capim alto ao redor. Os relâmpagos

tornaram-se mais intensos, e os trovões, mais

ensurdecedores. Não demorou muito e o dilúvio teve início.

A chuva torrencial não incomodava o jovem, que caminhou

sem pressa em direção ao casarão. Sentia não apenas o

seu corpo, mas também o seu espírito sendo limpo e

purificado pelas águas daquele temporal. Subiu as

escadarias e parou na porta da frente. Soltou um grito de

saudação, e esperou que alguém aparecesse. Não fazia a

menor idéia do que esperar nos próximos minutos de sua

vida. Gritou mais uma vez, mas ninguém apareceu.

Inacreditavelmente, a chuva tornou-se mais intensa, assim

como os relâmpagos e os trovões.

Angustiado pela situação que se apresentava diante

de si e por toda aquela sensação de solidão e abandono,

aproximou-se da porta e deu algumas batidas secas, que

quase não eram ouvidas por causa do intenso barulho da

chuva. Bateu com mais força, mas não obteve resposta

alguma. O casarão, bem como o restante daquela fazenda,

parecia completamente abandonado. Portas e janelas

fechadas. A chuva desaguava ensurdecedora nos telhados

de zinco das barcaças. Andou pela varanda, e foi olhando

de janela em janela, tentou outras portas, mas parecia

realmente não haver uma alma viva por ali. Angustiado,

caminhou em direção aos fundos do casarão. Passou as

mãos nos cabelos molhados que lhe caiam pela testa. Só

encontrava portas e janelas fechadas. Parou por um

instante na varanda, e ficou a observar o rio que passava

ali próximo, atrás do casarão. . Impaciente, foi em direção à

porta e esmurrou-a. Sentiu vontade de chorar, mas conteve

o choro naquele momento. Tentou forçar a maçaneta,

empurrou a porta, mas acabou ajoelhado ali mesmo,

angustiado, quase chorando, escorando-se na porta.

Estava mentalmente e fisicamente esgotado, cansado de

tudo aquilo, e já não sabia mais o que fazer. Queria ajuda,

implorava silenciosamente por socorro, buscava acabar

com toda aquele sofrimento e solidão. E quando já não

esperava por mais nada, subitamente a porta se abre, num

movimento brusco, e de dentro da casa surge uma pessoa,

que irrompe porta afora, empurrando o jovem assustado e

aturdido para o chão.

- Caia fora destas terras, seu cão imundo!

A voz firme e determinada era de um rapaz, que

demonstrava completa frieza ao empunhar uma velha

espingarda, mirando-a na testa do jovem atônito, caído no

chão. Descalço e vestindo apenas uma calça jeans

desbotada, o rapaz trazia em seu rosto as marcas de um

ódio profundo. Bastante nervoso e tremendo, o jovem

reunia as poucas forças que ainda tinha pra tentar explicar

ao rapaz as verdadeiras razões de seu desespero naquele

momento.

- Calma, pelo amor de Deus! Não atire! Me deixa

explicar...

- Cala a boca! Eu sei muito bem o que você tava

tentando fazer.

- Eu preciso de ajuda, eu...

- Porra nenhuma! Você deve estar de conluio com

aquele bando de animais! Acho bom você sumir agora

daqui, senão te mato agora!

O jovem sentia seu coração aos saltos naquele

momento. Olhava para o rapaz e só conseguia enxergar

um rosto avermelhado mergulhado numa fúria cega, o briho

intenso daqueles olhos negros te encarando e o cano da

espingarda encostado na sua testa.

- Por favor, me escuta! Eu preciso de ajuda.

- Ajuda? E porque você tentou arrombar a porta?

- Eu não estava tentando arrombar nada...

- Mentira! Você ta mentindo!

- Não! Eu tava descontrolado, pensei que não tinha

ninguém aqui e...

- Cala a boca! Você assustou meus irmãos!

O rapaz forçou ainda mais o cano da espingarda

contra a testa do jovem aflito, que agora sentia um suor

gelado brotando em seu rosto.

- Eu não queria assustar ninguém, só estou

procurando ajuda...

- Eu não acredito em você!

- Acredite em mim, eu sofri um acidente e estava

perdido no meio mato...

- Você acha que vou acreditar nessa sua conversa?

- Acredite, por favor! Estou dizendo a verdade.

A chuva continuava intensa, porém menos

ensurdecedora. O jovem e o rapaz permaneceram breves

segundos entreolhando-se em silêncio. Permaneceram

imóveis. O rapaz mantinha um olhar fixo e incisivo. O jovem

começou a sentir uma tontura, seu corpo já se

enfraquecendo por completo, parecia estar desmaiando.

Ouviu, então, uma voz feminina que parecia apelar em seu

favor. Meio tonto, desviou o olhar para a porta, procurando

saber quem estava tentando lhe defender naquela

situação. Sua visão, porém, ficou completamente turva,

embaçada, e começou a perder os sentidos. Continuava a

ouvir aquela voz defendendo-o no meio de uma discussão.

- Eu acho que ele está falando a verdade.

- Não te mete nisto! Entre e deixe que eu resolvo isso!

- Pára com isso, por favor! Eu sei que você não teria

coragem de atirar nele.

- Não te mete, eu já disse!

Nessa altura da discussão, o jovem já não dicernia

sobre o mundo ao seu redor. Sua consciência distanciou-se

da realidade, e sua visão escureceu. Sua cabeça pesou,

pendendo para um lado, e o silêncio tomou conta de seu

espírito. Tombou desmaiado, completamente esgotado,

sem forças.

Passaram-se dois dias e duas noites, até que na

madrugada do segundo dia o jovem recobrou a

consciência. Era uma madrugada como todas as outras, de

céu nublado, sem lua e sem estrelas. Ainda um pouco

sonolento e sentindo-se como um soldado que tivesse

acabado de chegar de uma guerra intensa, o jovem abriu

os olhos e procurou descobrir onde estava. Sentia o corpo

ainda um pouco debilitado, enfraquecido, mas mesmo

assim tentava encontrar um ponto de referência no tempo e

no espaço no qual se encontrava agora. Apoiou-se primeiro

no braço direito e olhou ao seu redor. Lentamente, foi se

levantando e ficou sentado na cama onde estivera

provavelmente deitado, desacordado durante dois dias. O

quarto, arrumado com móveis antigos e impregnado por um

cheiro insistente de mofo, era iluminado pela luz

esmorecida de uma vela deixada sobre uma mesinha de

cabeceira, ao lado da cama. Sobre essa mesma mesinha

havia uma bacia de louça branca com um pouco de água e

pano branco cuidadosamente dobrado. A vela iluminava

precariamente todo aquele ambiente, mas aquela pouca

luminosidade era o suficiente para que o jovem pudesse

ver algumas teias de aranha suspensas pelos cantos da

parede, sacolas e mochilas penduradas atrás da porta,

caixas empilhadas sobre um antigo guarda-roupa e ao lado

de uma cômoda de jacarandá, um espelho empoeirado,

retratos amarelados pendurados na parede. Tudo parecia

ali completamente esquecido, apesar de aparentar estar

guardado. Tentando lembrar-se realmente dos últimos

momentos antes de perder os sentidos, o jovem percebeu

naquele momento que havia alguém o observando da porta

meio entreaberta. E por alguns breves instantes, encarou

os olhos negros e brilhantes de um garoto que não deveria

ter mais do que 11 anos, cabelos pretos e lisos. A vela não

iluminava o suficiente para ele ver com clareza mais ao

longe, mas na penumbra daquela porta entreaberta ele viu

o rosto de um garoto que parecia trazer a expressão de

uma infância machucada. Por alguns instantes,

entreolharam-se de maneira firme, como se analisassem

um ao outro. Ouviu-se um barulho abafado, e nesse

momento o garoto, um pouco assustado, afastou-se,

sumindo na escuridão do corredor. Logo em seguida, o

jovem ouviu vozes, murmúrios discretos. Não conseguia

entender direito o que falavam, mas tinha a estranha

sensação de que estavam conversando a seu respeito.

Alguns momentos se passaram, até que, silenciosa e

mansamente, uma moça linda adentrou o quarto. Tinha

longos cabelos negros, e sua pele douradamente morena

parecia brilhar sob a luminosidade fraca do ambiente. Seus

olhos eram tão negros quanto seus cabelos, olhos

reluzentes, suaves, embriagadores, e sua face deixava

transparecer sua jovialidade dos seus 16 anos. Tinha uma

beleza ingênua de menina misturada a certa sensualidade

já atraente de mulher. Parou ao lado da cômoda, com as

mãos nos bolsos da calça jeans. Estava de sandálias

brancas e vestia uma camisa preta justa, que estampava o

rosto da cantora Amy Lee acima do nome Evanescence. A

luz fraca da vela fazia a sombra da moça dançar

suavemente na parede. O jovem admirou aquele rosto belo

da moça em meio à penumbra do quarto. Ela parecia um

pouco cansada, talvez abatida. Hesitaram um pouco antes

de iniciar qualquer diálogo.

- Sente-se melhor? – perguntou a moça.

O jovem reconheceu aquela voz, a mesma que tinha

ouvido durante a discussão, pouco antes de desmaiar.

- Um pouco... Ainda sinto meu corpo dolorido.

- Você estava horrível. Parecia um soldado depois de

uma guerra...

Os dois sorriram. O jovem sentia-se aliviado por

finalmente estar conversando com outra pessoa, depois da

tantos dias sozinho e perdido no meio do mato. A moça

sorria pelo que acabava de dizer. Um novo instante de

silêncio, e o jovem então começou a relembrar toda sua

situação.

- Quanto tempo eu fiquei desacordado?

- Dois dias. Você teve uma febre forte, e parecia estar

delirando. Dizia frases desconexas que ninguém entendia.

- Delirei? – perguntou o jovem, intrigado.

- Sim. Você ficava falando frases repetidas vezes.

Falava algo do tipo “Pule pela janela, senão você morre”. É

como se você tivesse falando com outra pessoa.

A moça aproximou-se e sentou na ponta da cama. O

jovem podia agora admirar mais de perto a graciosa beleza

que emanava dela.

- Aquele garoto na porta...

- Ele é meu irmão mais novo. Ele sempre é assim,

observador, curioso.

- E aquele rapaz que me apontou uma arma? Quem

era?

A moça hesitou um pouco antes de responder, como

que sem jeito pela situação que havia ocorrido.

- Desculpe a atitude dele, ele é meu irmão mais velho.

Ele não é agressivo daquele jeito. Ultimamente ele tem

ficado assim, um pouco nervoso e cismado com todo

mundo que se aproxima da gente.

- Tudo bem, não se preocupe, eu entendo. Eu também

tenho passado por momentos difíceis em minha vida. Pela

maneira como você conversa, você parece ser mais

controlada que seu irmão.

- Acho que sim. Devo ter herdado isso de minha mãe.

Mesmo ele sendo dois anos mais velho que eu, muitas

vezes eu sou mais controlada e me comporto com mais

maturidade. Mas eu sei que ele não é assim, ele só tem

vivido sob muita pressão ultimamente.

- Eu compreendo o que você está dizendo. Eu tenho

dois irmãos e sou o mais velho, e sei realmente o que

sentimos quando o peso da responsabilidade chega pra

gente quando vamos crescendo.

Ao dizer aquilo, o jovem subitamente lembrou-se de

sua família. Passou dias desaparecido, precisava entrar em

contato com eles e dizer que estava tudo bem com ele, e

saber se seus pais e seus irmãos também estavam bem.

- Eu preciso falar com minha família! Tenho que avisar

que está tudo bem comigo. Eles podem estar aflitos com

meu desaparecimento, provavelmente já souberam sobre o

acidente – O jovem exaltou-se um pouco com essas

palavras e sentiu uma dor leve em sua cabeça. Passou a

mão na testa. No lugar do corte agora havia um curativo.

- Eu tratei desse seu ferimento enquanto você estava

desacordado. Foi um corte meio profundo, e você teve

muita sorte de não ter contraído nenhuma infecção.

- Realmente, eu acredito que tive muita sorte em estar

vivo agora, depois de tudo o que eu passei. Obrigado por

me ajudar.

A moça sorriu de maneira discreta.

- Você estava mesmo precisando de ajuda. Agora

acho melhor você deitar e descansar um pouco mais.

Amanhã de manhã você deverá estar melhor.

Ao dizer isso, a moça tocou a mão do jovem e sorriu

novamente. O jovem retribuiu o sorriso e ambos

despediram-se. A moça saiu pela porta e desapareceu na

penumbra do corredor. Sozinho novamente, o jovem

deitou-se na cama e ficou absorto em seus pensamentos,

olhos fixos no teto. Depois de algum tempo adormeceu

novamente. A vela continuou a iluminar o quarto até se

consumir completamente e deixar a escuridão daquela

madrugada tomar conta do quarto mais uma vez.

// capítulo 10

Um bule com água ardia no calor crepitante de um

fogão à lenha, e uma fumaça rápida e sorrateira escapava

pelo bico do bule, se dissipando pelo ar da cozinha. A bela

moça morena estava agachada em frente ao fogão e

observava, ensimesmada, o leve crepitar do fogo. Uma das

janelas abertas da cozinha deixava entrar a claridade de

mais um dia nublado. Não chovia mais, porém o tempo

permanecia frio e úmido. O jovem apareceu na porta da

cozinha e viu a moça agachada em frente ao fogão. A

mesa, forrada com um pano estampado com desenhos de

frutas, estava arrumada para o desjejum. Uma travessa

com algumas frutas, goiabas, bananas, mangas, laranjas,

alguns pães caseiros, biscoitos, fatias de um bolo.

A moça, que ainda trajava a mesma roupa, mas agora

vestia também um casaco jeans, sentiu que estava sendo

observada e levantou-se, olhando na direção da porta,

onde estava o jovem parado. Ele sorriu, e foi retribuído

igualmente por um sorriso da moça.

- Bom dia – disse a moça de maneira educada e num

tom moderado de voz.

- Bom dia.

- Eu deixei uma roupa limpa para você vestir. Pelo

visto, serviu bem em você.

- Obrigado pela roupa – disse o jovem, meio sem jeito,

agora mais limpo, vestindo uma outra calça jeans e uma

camisa branca um pouco desbotada. A única coisa que

denunciava todo o sofrimento pelo qual havia passado era

seu tênis surrado, praticamente desgastado.

- Como está sua cabeça agora? Ainda dói.

- Não, parou de doer. Estou melhor – O jovem passou

a mão no curativo na testa e arriscou uma piada naquele

momento – Acho que vou sobreviver.

A moça sorriu, e após alguns instantes, o convidou

para o desjejum. Protegendo a mão com um pano azul,

pegou o bule com água fervente e preparou o café, cujo

cheiro forte pelo ar fez o jovem se lembrar que fazia dias

não tomava uma refeição decente. Agradeceu a xícara de

café, cuja fumaça se dissipava entre os dois, ali sentados

na mesa.

- Vocês têm algum videofone aqui na fazenda, para

que eu possa fazer uma ligação para minha família, caso

não seja incômodo para vocês.

- Infelizmente acho que você não vai poder usar o

videofone aqui. – disse a moça de maneira meio

desapontada.

O jovem, a princípio ficou meio surpreso, achando que

a moça estaria seguindo alguma orientação do seu irmão

mais velho com relação a presença de estranhos na casa.

Mas logo em seguida veio a explicação dada por ela

mesma.

- Nada está funcionando.

- Nada? Como assim? – indagou o jovem, intrigado

com a explicação.

- Nenhum aparelho elétrico está funcionando.

Televisão, rádio, nem mesmo o videofone. Tentamos até o

antigo aparelho de telefone, mas também não funciona.

Não dá sinal.

- Vocês já procuraram verificar a rede elétrica da

casa? Talvez seja algum problema no sistema elétrico.

- Meu irmão já verificou isso. Está tudo em ordem.

- Desde quando vocês estão sem energia elétrica?

- Ficamos assim desde o dia do clarão. – Disse a

moça, um pouco cabisbaixa, enquanto mordia

discretamente uma goiaba.

Após essa resposta, o jovem sentiu um arrepio gelado

percorrer todo o seu corpo. Lembrou-se do dia do acidente,

do clarão, do estrondo abafado que ecoou pelo ar. Seu

coração disparou, e ficou com medo das conclusões a que

podia acabar chegando com relação a tudo o que estava

acontecendo. A moça levantou-se da mesa, e foi sentar

numa cadeira perto da porta que dava para a varanda. O

jovem olhou para fora, e reconheceu a porta e a varanda,

aquele mesmo lugar onde havia conhecido o irmão mais

velho da moça, de uma maneira nada cordial. A moça,

sentada na cadeira, abraçava as pernas dobradas,

enquanto continuava a comer a goiaba.

- Não sei explicar a você o porquê, mas estamos sem

luz, e nem mesmo as camionetes na garagem querem

funcionar.

- Essa garagem seria aquele galpão de madeira perto

daquelas casas? – perguntou o jovem.

- É esse mesmo. As camionetes estão lá, trancadas.

O jovem terminou de tomar a xícara de café, e pediu à

moça que o levasse até a garagem onde estava as tais

camionetes. Saíram do casarão e caminharam silenciosos

por um caminho quase sumindo em meio à grama que

crescia. Viu novamente o rio que passava atrás da fazenda,

e do outro lado percebia agora, com mais calma, os montes

verdejantemente acinzentados, cobertos ainda pela mata

virgem e intocável e por plantações de cacau. O tempo

continuava fechado, o céu completamente nublado, e um

vento frio cortava o ar, aquele mesmo vento que continuava

a balançar o capim alto. Chegaram até a garagem. A moça

puxou um cadeado e o abriu, fazendo soltar uma corrente

que prendia as portas de madeira. Dentro da garagem,

mais caixas empilhadas, ferramentas, enxadas, pás, alguns

sacos de cimento e de cal, uma prateleira de madeira com

mais ferramentas, lonas dobradas pelo chão. Aproximaram-

se da camionete cabine dupla, e após algumas tentativas

frustradas de fazê-la funcionar, o jovem percebeu

realmente a inutilidade do veículo. Olhou para a outra do

mesmo modelo, diferente apenas na cor, estacionada ao

lado, e concluiu que seria inútil tentar fazer ela funcionar

também.

- Não é combustível. Meu irmão verificou os tanques.

- Desconfio que seja algum problema no sistema

elétrico. Provavelmente a bateria esteja descarregada. Eu

giro a chave e nem ao menos dá contato.

- Foi o que meu irmão disse também. O mais estranho

é que as duas camionetes apresentem o mesmo problema.

Decidiram retornar ao casarão. No caminho de volta, o

jovem procurou saber sobre o paradeiro de seus irmãos

naquele momento.

- Onde estão seus irmãos?

- Por aí, pelo mato...

Percebeu um certo tom de tristeza na voz da moça.

Olhou ao redor, como se tentasse achar vestígios da

presença dos irmãos da moça, mas apenas deparou-se

com a imponência do majestoso carvalho ao longe.

- E seus pais? Onde estão?

A moça continuou caminhando devagar, sem olhar

para o jovem. Hesitou para responder tal pergunta, parecia

conter uma certa fragilidade naquele rosto aparentemente

controlado.

- Não tenho mais pais...

- Sinto muito, me desculpe perguntar. – o jovem ficou

sem jeito, de certa forma parecia ter entendido a resposta

da moça.

- Não tem problema, eu já superei isso.

Os dois pararam por um momento próximo ao

casarão. A moça olhava agora para o rio, e o vento frio

balançava seus cabelos longos e negros. O jovem

começou a se sentir cúmplice da vida daquela bela moça

morena, e não podia ficar indiferente à situação. Olhava

para ela, e percebia algo que parecia a estar sufocando

silenciosamente, mesmo que ela demonstrasse certo

controle emocional.

- Olha, se você quiser conversar a respeito, sinta-se à

vontade. Se você falar, eu poderei ouvir.

Dito isso, a moça o olhou com certo espanto

controlado. Parecia que ela tinha sido sutilmente sacudida

por alguma frase que o jovem havia dito naquela hora.

- Que estranho você dizer isso.

- Dizer o que? – indagou o jovem.

- Você poderia até achar que é bobagem minha, mas

quando eu era criança, eu tinha sonhos que se repetiam

com insistência. Nesses sonhos, eu via um anjo... Ele tinha

uma espécie de aura azulada, e quando se aproximava de

mim, ele dizia exatamente essa sua frase: “Se você falar,

eu poderei ouvir”. Na noite anterior ao dia do clarão, eu tive

esse sonho novamente, só que dessa vez, ele dizia algo

mais. Ele dizia: “Se você falar, eu poderei ouvir. E se você

escutar, eu poderei chamar”. Naquela manhã, eu acordei

me sentindo tão bem, tão leve, mas ao mesmo tempo eu

sentia uma certa apreensão diante da vida. O dia estava

lindo, o céu azul... Sentei na rede que ficava na varanda e

fiquei admirando o tempo. Acenei para meu pai e meus

irmãos mais velhos que estavam a cavalo.

- Você tinha outros irmãos? – interrompeu o jovem.

- Sim. Tinha. Era um final de semana em família,

todos nós aqui na fazenda. Meu irmão caçula brincava

perto do carvalho. Tudo era perfeito. Fiquei na varanda um

bom tempinho, olhando o céu azul. Na noite anterior, eu

tinha visto no noticiário a reportagem sobre o meteoro que

iria cair na Terra naquela mesma manhã. Sempre tive um

grande fascínio pelo espaço, pelos astros celestes, desde

criança tinha vontade de estudar Astronomia. Meu pai até

brincava comigo, pois dizia que eu sempre vivia com a

cabeça nas estrelas. Naquele dia, eu tive realmente

vontade de poder observar de perto a queda do meteoro.

Não através dos noticiários de TV, mas ao vivo, de perto, o

mais próximo que pudesse. De repente, eu olhei ao meu

redor, e senti um silêncio estranho, assustador. Foi quando

aquele clarão forte tomou conta do céu. Fechei os olhos,

assustada. Ouvi gritos. Todos haviam se assustado com

aquilo. Meu coração palpitou. Depois daquele clarão, um

estrondo atravessou o espaço, abafado, distante. Foi então

que eu vi cavalos correndo, o meu pai caído na estrada,

meus irmãos socorrendo ele. Minha mãe tava na varanda,

aos prantos, e meu irmão veio correndo em minha direção,

assustado. Não me lembro naquele momento se chorava

ou não, eu me lembro que estava muito assustada. Corri na

direção onde estavam meus irmãos, e encontrei meu pai

ainda estendido na estrada, inconsciente. Carregaram ele

para dentro de casa, mas eu não acompanhei eles. Eu

estava assustada demais com aquilo, e me custava a

acreditar no que estava acontecendo. Eu sentei na

escadaria e me lembro que comecei a chorar naquele

momento.

A moça interrompeu a conversa. Transparecia agora

toda sua emoção naquele desabafo. A voz embargada por

um choro contido, as mãos indo ao rosto, limpando as

lágrimas que caíam discretamente. O jovem percebeu

naquele momento que não apenas ele precisava de ajuda,

mas também aquela moça e seus irmãos, eles também

precisavam de apoio, de auxílio.

- Desculpe, acho que exagerei. Eu acho que minto

para mesma quando digo que superei tudo.

- Não precisa se desculpar. Eu acredito que você

realmente precisava desabafar. Existem coisas em nossa

vida que não podemos guardar durante muito tempo em

nosso coração.

- Eu sei... Eu não consigo esquecer tudo o que

aconteceu – disse a moça, abraçada a si mesma.

Cabisbaixa, chorava silenciosamente.

Naquele momento, começava a cair uma fina garoa.

Voltaram os dois para o casarão. O jovem não sabia

explicar, mas sentia uma certa perturbação no ar, algo

indefinido que lhe incomodava o espírito. Era como se ele

não estivesse mais reconhecendo o mundo ao seu redor.

Aquele mundo que ele conhecia antes parecia ter

desaparecido, e que a partir dali, nada seria mais como era

antes. Era como se tivessem tirado o chão debaixo de seus

pés, e agora ele caía de uma altura desconhecida, e a

sensação de frio na barriga persistia com essa queda. Uma

queda vertiginosa na qual não era possível definir a

profundidade nem enxergar o fundo de onde se estava

caindo. A insustentável leveza de si mesmo havia sumido.

Queria encontrar razões para aquela queda e para todo

aquele sofrimento. Quem sabe não seria um aprendizado

para a elevação de seu espírito? Não tinha certeza.

Um gosto amargo invadiu sua boca. Não sabia ao

certo o que dizer naquele momento. A moça estava

sentada na cadeira perto da porta, olhos voltados para o

chão. Seus lindos cabelos negros escondiam agora o seu

rosto moreno marcado pelas lágrimas. Mostrava-se agora

uma pessoa vulnerável envolvida em seu silêncio

momentâneo. O jovem manteve certa distância, como que

respeitando o silêncio e as lágrimas da moça. Sentia-se

impotente diante do que ela havia lhe contado, e sabia que

ela não havia contado tudo, pois tinha interrompido a

conversa pelo choro que despontava. Permaneceram ali,

imóveis, silenciosos, até que ouviu um barulho vindo do

lado de fora. Pareciam passos. Viu, então, o rapaz e o

garoto adentrarem pela porta da cozinha.

// capítulo 11

O jovem e o rapaz entreolharam-se por alguns

segundos com certa desconfiança um do outro. Tudo

indicava que havia um certo desconforto entre os dois, até

porque o única vez em que se encontraram havia sido

justamente durante a recepção hostil oferecida pelo rapaz

ao jovem. Tanto o irmão mais velho quanto o mais novo

vestiam apenas calças jeans e botas pretas. O rapaz trazia

a espingarda numa mão, e na outra uma bolsa de couro

marrom escuro. O garoto segurava um saco de aniagem

cheio de tangerinas. Um leve odor de amêndoas de cacau

misturado ao cheiro das tangerinas escapou pelo ar. Vendo

a irmã triste, o garoto correu ao seu encontro, e a abraçou

silenciosamente. Tirou uma fruta de dentro do saco e

ofereceu a ela, que retribuiu com um sorriso. Ela então se

levantou e abraçou o irmão mais velho. Ele a encarou nos

olhos e balbuciou algo em seus ouvidos, palavras que o

jovem não conseguiu ouvir. Carinhosamente, o rapaz

enxugou as lágrimas dela, e pediu ao irmão mais novo que

a levasse para o quarto. Antes de sair, a moça olhou

timidamente para o jovem, como se estivesse pedindo por

ajuda, por socorro.

Ficaram o jovem e o rapaz sozinhos na cozinha. O

rapaz acomodou sutilmente a espingarda sobre a mesa,

como se não quisesse romper o silêncio reinante naquele

momento. Demonstrava muito apego àquela arma, tinha

um olhar fixo e brilhante quando olhava para ela, deixando

transparecer uma estranha e assustadora veneração. Seus

olhos negros brilhavam.

- Essa espingarda pertenceu ao meu avô. Tem um

rifle guardado aqui na fazenda que era de meu pai, mas eu

ainda prefiro usar essa espingarda – A voz do rapaz soou

completamente diferente para o jovem agora,

diferentemente da primeira vez em que se encontraram.

Sua voz agora era calma e compassada. – Eu adorava

meu avô, apesar de ter conhecido ele por pouco tempo. Eu

era criança ainda quando ele morreu. Mas me lembro

perfeitamente de quando ele me chamava para contar suas

histórias...

- Meu avô também me contava histórias quando eu

era garoto. – disse o jovem, que sentiu certo incômodo com

o olhar frio e duro lançado pelo rapaz naquele momento.

- Meu avô desbravou essas terras e contribuiu muito

para o progresso dessa região, para o progresso das

cidades que aqui surgiram. Viveu no tempo dos coronéis,

era respeitado, influente, rico. Hoje tem até uma rua com

seu nome. Sempre reclamava dos tempos modernos e

vivia dizendo que o mundo estava se perdendo. Quando

ele morreu, meu pai guardou todos os pertences de meu

avô aqui nessa fazenda. Essa espingarda foi uma das

relíquias guardadas. Ele dizia que era uma herança

preciosa, parte da história de nossa família. Meu pai...

O rapaz parou de falar. Balançou a cabeça

lentamente, mordeu os lábios, deu um murro seco na

mesa. Parecia tentar dominar uma raiva contida.

- Acho que sua irmã não teve coragem para contar

tudo o que houve.

- Só eu sei o quanto ela está transtornada com tudo o

que a gente ta passando! – a voz do rapaz se tornou

ríspida, enquanto ele apontava o dedo em direção ao

jovem. Estava começando a ficar nervoso, ainda que não

transparecesse isso por completo.

- Deve ter sido muito doloroso para vocês.

- Mas você não faz a menor idéia do quanto estamos

sofrendo! Você não faz idéia do que seja perder o pai, a

mãe, os irmãos, tudo num mesmo dia. Depois do dia do

acidente com meu pai, minha irmã nunca mais foi a

mesma. Ninguém na minha família foi mais o mesmo.

Parecia tudo tão normal naquele dia, até aquele maldito

clarão surgir! Meu pai, meus irmãos, andando a cavalo, a

família toda aqui na fazenda, os filhos, os netos. – O rapaz

tentava conter as lágrimas, mas não estava conseguindo. –

Minha irmã estava na varanda, deitada na rede, pensativa.

Foi a última vez que vi seu rosto sereno, calmo. Assim

como foi a última vez que vi meu pai andar com passos

firmes... Aquele clarão acabou com minha família. Os

animais se assustaram com aquela claridade, e quando

meu pai caiu do cavalo, eu fiquei desesperado. Corri para

ajudar meus irmãos a trazer meu pai para dentro de casa...

Depois desse dia, meu pai nunca mais enxergou, nunca

mais andou. Ficou cego e paralítico...

O rosto do rapaz estava ficando avermelhado, seus

olhos se encheram de lágrimas, apesar dele continuar

buscando engolir aquele choro teimoso.

- Porque vocês não levaram seu pai logo para um

hospital?

- E você não acha que nós tentamos fazer isso? Nós

tentamos, mas nada mais estava funcionando. Nem a

camionete de meu pai, nem a de meu irmão queriam

funcionar. Procuramos entrar em contato com algum

hospital da cidade mais próxima, mas nenhum aparelho

funcionava. Celulares, videofones, nem mesmo os antigos

aparelhos de telefone funcionavam. Ficamos isolados aqui

na fazenda. Meu pai agora estava imóvel em cima de uma

cama. Minha mãe chorava constantemente, implorando por

qualquer ajuda possível. E meu irmão mais novo ficou tão

traumatizado com tudo o que estava acontecendo que

desde o dia do acidente não disse mais uma palavra

sequer. Ficou mudo...

O jovem começou a sentir a real dimensão do

sofrimento daqueles irmãos, isolados naquela fazenda,

mas ainda desconhecia fatos ainda mais dolorosos que

havia mudado completamente a vida daquela família.

- Meu pai estava morrendo, e meus irmãos não

sabiam realmente o que fazer. A gravidade da situação fez

eles perderem a paciência, e até a discutir uns com os

outros. Nunca tinha visto eles daquele jeito. Foi quando os

malditos apareceram. – o rapaz levou a mão à boca, o

choro engasgado na garganta, os olhos vermelhos. – Eu

estava com minha irmã e o caçula na beira do rio, a gente

conversava sobre alguma coisa, nem me lembro o que

era... Lembro que estava indo na garagem pegar alguma

coisa, quando eu vi os quatro homens se aproximando do

casarão. Vinham correndo, e estavam armados. Senti um

arrepio gelado de medo me dominar. Voltei correndo para

onde estavam minha irmã e o caçula, e contei o que estava

ocorrendo naquele momento. Ela ficou apavorada, e eu

pedi aos dois para se esconderem no meio do mato. Ela

não queria, mas eu convenci ela a ir. Eu voltei para tentar

ajudar, mas já era tarde demais. Ouvi gritos, discussões, e

tiros. Apavorado, me escondi próximo ao casarão. Eles

demoraram algum tempo e depois se foram. Quando eu

cheguei aqui, encontrei todo mundo morto.

O rapaz não suportou mais e se entregou a um choro

soluçante.

- Eles tinham matado todo mundo. Meu pai, minha

mãe, meus irmãos, meus sobrinhos. Todos mortos!

Caralho, por que eles mataram meu pai? Ele estava

indefeso, paralítico em cima de uma maldita cama! Estava

cego! Os desgraçados mataram minha mãe! Por que eles

fizeram isso? Era por causa de dinheiro? Por que porra

eles mataram todo mundo?

O jovem estava completamente chocado com aquele

relato. O rapaz esmurrava a parede, enquanto chorava

compulsivamente. Levou um bom tempo até que ele

engolisse aquele choro, e voltasse a se controlar. Virou-se

para o jovem, enxugou as lágrimas e prosseguiu com suas

palavras.

- Corri para o meio do mato, e encontrei minha irmã e

o caçula abraçados embaixo de um cacaueiro. Estavam

chorando. A partir daquele momento, eu sabia que agora

éramos apenas nós três. Os canalhas foram embora

levando os cavalos e tudo de valor que eles encontraram.

Mas eu ainda vou encontrar esses malditos novamente. E

quando a gente se encontrar, eu não vou hesitar em matar

todos eles, um por um. – o rapaz tinha agora um tom de

voz decidido e ameaçador, e um olhar assustador - Eles

vão sentir a morte pelas minhas mãos. Vou matar todos,

um por um.

// capítulo 12

O rio passava caudaloso e forte por trás da fazenda.

Suas águas barrentas criavam pequenos redemoinhos e

algumas ondas em determinados trechos. Todo aquele

volume de água transbordava pelas margens e arrastava

terra, plantas, pedaços de troncos, criando turbilhões

aquáticos. Era um rio que passava impassível e indiferente

aos acontecimentos que se desenrolavam por aquelas

bandas. Em pé na varanda, o jovem observava com certa

admiração as águas assustadoras daquele rio cheio. Ainda

estava meio chocado com o relato daqueles irmãos, e

ainda mais com as palavras ameaçadoras do rapaz, que

jurava vingança contra todos aqueles que haviam

exterminado quase toda sua família naquela fazenda. Era

uma mente confusa e perturbada com tanto sofrimento pela

qual havia passado em tão pouco tempo. Primeiro, o

acidente que deixou seu pai cego e paralítico, e logo

depois, a assassinato a sangue frio de seus pais e seus

irmãos. O jovem tentava imaginar como o rapaz poderia

viver sua vida carregando lembranças tão dolorosas,

momentos tão dramáticos, um sofrimento com o qual teria

que conviver até seus últimos dias. Pensou também na

moça e no garoto, ainda tão novos e já passando por tanta

dor e tristeza. O rapaz apareceu na porta, e aproximou-se

dele, devagar, meio sem jeito.

- Eu peço desculpas pelo que eu fiz você passar

naquele dia, quando você chegou aqui pedindo ajuda. –

disse num tom de voz mais calmo agora.

- Tudo bem, você não tem do que se desculpar.

- Eu estava muito assustado e me sinto envergonhado

pelo que fiz com você.

- Antes eu não entendia, mas depois de tudo o que

você me contou, agora posso entender seu

comportamento.

- Depois que aquele pessoal apareceu aqui em casa,

mais ninguém apareceu aqui. E quando eu vi você se

aproximando, eu fiquei fora de mim, uma raiva estranha me

dominou. Eu não sei explicar...

- Você não precisa se explicar. É lógico que você

estava agindo daquele jeito para se proteger e proteger

seus irmãos. Você fez o certo naquela hora. Imagine se eu

fosse uma pessoa má e que quisesse fazer mal a você e

seus irmãos. Como você reagiria?

- Eu acho que teria matado você aqui mesmo. - o

rapaz ficou desconcertado, sem jeito com sua própria

resposta e soltou um sorriso que demonstrava um certo

incômodo com relação a toda aquele diálogo.

- Não precisa ficar sem graça com a resposta. Você

estaria apenas agindo em defesa própria e protegendo a

todo custo seus irmãos, pois eles agora são tudo o que

você tem de valioso nessa vida.

- Minha irmã é até muito sensata. Ele sempre foi

controlada e ponderada nas decisões. Quando nós

discutimos naquele dia, ela insistia em dizer que você

poderia nos ajudar de alguma forma, e que por isso

mesmo, a gente tinha que ajudar você.

- Ela tem razão. Agora precisamos nos ajudar.

O rapaz ficou em silêncio, como que meditando sobre

aquele diálogo. O jovem voltou a olhar para o rio, e ficou

pensando na bela moça e no garoto, órfãos num mundo

cruel e sem saber o que o futuro reservava para eles.

Naquela noite, sentados na varanda iluminada por um

lampião e algumas velas, os três irmãos ouviram

atentamente o relato do jovem sobre tudo o que ele havia

passado desde o dia do acidente na viagem de volta para

sua cidade. Falou sobre seus planos de passar o Natal com

sua família, contou um pouco sobre sua vida, desabafou

seus anseios e dúvidas sobre o que realmente poderia ter

acontecido no dia do acidente, aquele clarão. Desabafou

sobre sua imensa vontade de saber se sua família estava

bem, e demonstrou certa angústia pela impossibilidade de

entrar em contato com seus pais.

A manhã do dia seguinte amanheceu com aquele

mesmo tempo inalterado, nublado, escuro, e

ocasionalmente cortado pelo estrondo distantes de trovões.

O jovem levantou-se cedo, e já encontrou a moça de pé,

fazendo o café da manhã. Após o desjejum, ela o convidou

para uma caminhada até o carvalho. Trajando um longo e

belo vestido florido a moça andava descalça pela grama, e

seus lindos e lisos cabelos negros dançavam

graciosamente ao sabor dos ventos. Parecia arrumada

para um momento especial, apesar da simplicidade dos

trajes. O jovem a olhava de relance, admirando sua incrível

beleza.

- Seus irmãos acordam bem cedo.

- É. Eles já se acostumaram a fazer isso todos os dias.

Acordam bem cedinho e saem andando por aí pelas

plantações.

- Você sabe dizer o que eles costumam fazer, ou para

onde eles vão nessas caminhadas? – indagou o jovem.

- Não sei dizer com certeza... Eles começaram a fazer

isso depois de tudo o que aconteceu... Eles acordam antes

do sol nascer e saem sem dizer uma palavra sequer. Se

embrenham no mato, levam a espingarda e alguns sacos.

Geralmente retornam com o saco cheio de frutas.

- Por que você não acompanha eles?

- Não sei, mas eu prefiro ficar aqui no casarão. Eu

acho que só acabaria atrasando a caminhada deles pelo

mato. Eles já conhecem os caminhos e as trilhas por dentro

das roças. Eles caminhavam com meu pai por aí...

A moça silenciou-se e olhou na direção do rio. O

jovem acompanhou seu olhar, e respeitou aquele momento

de silêncio. Segundos depois, ela continuou a falar.

- Não sei porque eles fazem isso, mas acho que meu

irmão está confuso com tudo o que houve.

- Realmente, é uma situação difícil de se superar de

uma hora pra outra.

- Ele está diferente, eu sinto isso nele. É como se ele

estivesse guardando ódio e rancor dentro dele, e isso está

começando a afetar muito ele. Ele foi o único que viu tudo

no casarão, os corpos de meus pais, meus irmãos... Ele

age agora como se estivesse sem saber direito o que fazer,

ou sem saber que caminho tomar agora para nossas vidas.

- Seu irmão está obcecado pela idéia de vingança. Ele

não aceitou tudo o que aconteceu.

- Vai ser muito difícil esquecer tudo o que houve. Eu

me sinto frágil agora, é como se tivessem arrancado todas

as energias de mim. Não consigo dormir direito, com

pesadelos horríveis. Sonho com pessoas que me

perseguem, tentando me agarrar, e eu não vejo os rostos

dessas pessoas.

A moça se abraça, talvez para se proteger do tempo

frio, ou para se proteger daqueles pensamentos tristes que

a perseguiam constantemente agora.

- Sinto pena do meu irmão mais novo. Ele era tão

alegre, brincalhão, comunicativo. Agora, ele não é mais

assim. Não diz mais uma palavra. Vive calado, algumas

vezes encontro ele sozinho pelos cantos, encolhido,

chorando. Às vezes tenho a impressão de ouvir a voz dele

me chamando. Mas ele permanece calado, não diz nada.

A cumplicidade de sentimentos e experiência ia

crescendo cada vez mais entre o jovem e aqueles três

irmãos órfãos, assim como a vontade de ajudá-los a sair

daquela situação em que se encontravam ali naquela

fazenda, isolados do resto do mundo. Cada vez que ele

olhava para a moça, percebia seu coração saindo do

compasso normal de seus batimentos, ao mesmo tempo

em que ficava admirando sua beleza morena.

Chegaram ao grande carvalho. Atrás de sua

gigantesca imponência haviam algumas cruzes fincadas na

terra. Eram feitas de galhos de cacaueiros e amarrados

com cipós. O jovem diminuiu um pouco seus passos,

demonstrando certa surpresa com aquela cena que surgia

diante dele. Sentiu um arrepio na espinha. Olhou para a

moça, sem saber o que dizer.

- Foi aqui que meu irmão enterrou nossa família. É a

segunda vez que aqui nesse lugar. Ele fez tudo sozinho,

não queria que eu e o caçula guardássemos imagens

tristes em nossos corações.

Ainda havia flores sobre os túmulos. Um silêncio

pairou sobre os dois por alguns momentos. A moça olhava

para os túmulos com uma expressão vaga em seu rosto.

Finalmente, o jovem arriscou-se a dizer algo.

- Eu acho que a permanência de vocês aqui nesta

fazenda está se tornando um sofrimento constante e

martirizante.

- Eu sei disso... – a moça fez uma pausa em sua

palavras, e prosseguiu – Tudo aqui agora só traz tristes

lembranças.

Lentamente, a moça caminhou em direção a uma

pedra próxima ao carvalho, sentou-se ali e ficou

observando o rio. O jovem a acompanhou, sentando ao seu

lado.

- Eu não quero mais ficar nessa fazenda. No dia em

que você apareceu aqui, eu senti que você poderia nos

ajudar a sair daqui.

- Então esse foi o motivo de você ter discutido com

seu irmão naquele dia?

- Sim. Eu não sei explicar, mas quando eu te vi, eu

sabia que a gente podia confiar em você.

O jovem sentiu seu coração acelerar, e ele sorriu,

desconcertado pelo que ela havia dito. Intimamente, sentiu-

se agradecido pelas palavras e pelo voto de confiança dela.

Apesar dos poucos dias que haviam se conhecido, podia-

se perceber que a moça acreditava realmente na

possibilidade do jovem ajudar ela e os irmãos a saírem

daquele lugar.

- Minha família toda estava preparada para passar o

Natal e o Ano Novo aqui na fazenda. A família toda, era

uma tradição já de todos os anos. Meu pai reunia todo

mundo aqui, filhos, netos, noras.

- Estavam todos aqui na fazenda? Toda sua família?

- Todos não. Minhas duas cunhadas viriam apenas na

véspera de Natal, junto com meus sobrinhos. – A moça

lembrou-se de seus sobrinhos, a quem tinha todo um

carinho especial, e sentiu um aperto no coração – Depois

de tanta coisa que aconteceu, nem sei dizer se eles estão

bem ou não.

- Então acredito que esteja na hora de procurar saber

sobre eles, se eles estão bem. Eu também preciso

encontrar minha família, estou apreensivo com relação a

tudo o que pode ter ocorrido, e creio que eles estejam me

procurando nesse momento.

O jovem esperou por algum tipo de resposta da moça,

mas ela permaneceu em silêncio depois do que ele havia

dito. Parecia estar imaginando as conseqüências de

possíveis decisões que viesse a tomar com relação a ir

embora daquela fazenda e deixar todo o passado de sua

família para trás. Enquanto ela se deixava levar pelo

silêncio de seus pensamentos, seus dois irmãos

caminhavam mata adentro, marcando as trilhas por entre

os cacaueiros com seus passos.

// capítulo 13

O mundo ao redor permanecia ainda perdido num

período escuro e tenebroso, dissolvido numa espécie de

época de transição, entre um fim caótico e um reinício difícil

e vagaroso. Tudo continuava acinzentado, contornado por

dias completamente nublados e noites sem Lua e estrelas,

encoberto por uma espessa manta de incertezas. A

Natureza ao redor da fazenda pulsava serena em sons

soturnos. Vagalumes dançavam imprecisamente através da

escuridão reinante. Ventos frios e furtivos sopravam

constantemente, e o barulho das águas caudalosas do rio

próximo parecia estranhamente poderoso e ameaçador.

Mais uma noite escura. Iluminados pela luz modesta

de um lampião, o jovem e os três irmãos estavam mais

uma vez sentados na varanda dos fundos do casarão.

Sentado em um canto estava o garoto, perdido em seu

mundo silencioso, com um olhar imóvel e um pouco

intimista. Observava de uma maneira até insistente o

jovem, que por alguns momentos percebeu e começou a

prestar mais atenção aos seus olhos negros. O rapaz,

sentado nos degraus da escada, olhava silencioso o breu

diante de si. A moça apareceu na porta, agasalhada. Trazia

uma bandeja com três canecas com uma bebida quente.

Ofereceu a primeira caneca ao jovem. Tomou o primeiro

gole, e ficou curioso em saber que tipo de bebida era

aquela, que deixava escapulir sua coloração azulada

através da transparência daquela caneca. Tinha um sabor

forte e um pouco adocicado. O rapaz, então, esclareceu

sua dúvida.

- É chá de anil.

- Anil? – perguntou o jovem, um pouco intrigado. – É

alguma planta daqui da região?

- Eu não sei dizer ao certo. Eu estava andando pela

mata esses dias e encontrei um lugar coberto por umas

flores azuis, muito bonitas, de folhas miúdas e redondas.

Eu achei um pouco estranho, pois já havia passado por

aquele local e nunca tinha percebido essas flores. E

comecei a perceber que elas estão nascendo

repentinamente por toda parte.

- Você está querendo dizer que elas apareceram de

repente?

- Sim. Surgiram do nada, e estão em muitas partes da

mata agora. Então eu trouxe algumas para minha irmã. Aí

ela resolveu fazer chá com as folhas e as flores.

O jovem virou para a moça, curioso.

- De onde você tirou essa idéia de fazer esse chá?

- Não sei. De repente, me deu vontade de fazer

alguma coisa com aquelas folhas e flores. Aí coloquei num

bule com água e fervi. Coloquei um pouco de açúcar e

umas gotas de conhaque.

- Açúcar e conhaque? – o jovem sorriu, surpreso.

- Sim, apenas para dar um toque diferente.

O jovem tomou outro gole quente do chá, agora ciente

do que realmente estava tomando, e dessa vez procurava

decifrar o gosto da bebida. Olhou para o garoto, e notou

que ele ainda o olhava insistentemente, e parecia estar se

preparando para dizer algo. Seus lábios se movimentaram

na intenção de falar, mas ele permaneceu mudo. O jovem

teve a nítida sensação de que sabia o que o garoto queria

dizer para ele. Seu coração acelerou e ele esperou pelas

palavras daquele menino, mas este levantou-se meio

assustado e correu para dentro do casarão. O rapaz havia

notado a situação. Baixou a cabeça, e ficou em silêncio

alguns segundos. Em seguida, levantou-se e entrou, para

dali a poucos momentos sair com a espingarda na mão.

Sem dirigir uma palavra a ninguém, desceu as escadas e

caminhou em direção à escuridão da noite.

- Para onde foi seu irmão?

- Não sei. Acho que foi sentar na beira do rio.

- Foi por causa do seu irmão mais novo?

- Sim. Ele não suporta ver o caçula sofrer assim, e não

dizer nada. Ele não diz, mas demonstra através de suas

atitudes.

O jovem permaneceu silencioso, ponderando no que

estava para dizer logo em seguida à moça. Havia tomado

uma decisão muito importante naquele dia e tinha

esperança de que a moça e seus irmãos pudessem

acompanhá-lo em sua atitude. Aproximou-se da moça e

começou a explicar o que iria fazer no dia seguinte.

- Estou indo embora amanhã. Tenho que ir para

Itabuna. Quero descobrir realmente o que houve no dia em

que sofri o acidente.

A moça olhou para ele com certo ar de surpresa e

alguma tristeza. O jovem continuou a falar.

- Eu queria que você e seus irmãos pudessem ir

comigo. Eu acredito que vocês não precisam mais ficar

aqui nesta fazenda. Podemos ir todos juntos para Itabuna.

- Como você pretende fazer isso? Como chegar até a

cidade?

- Não pensei nisso ainda, mas a única certeza que

tenho é a de que tenho que seguir em frente. E eu acredito

que vocês deveriam fazer o mesmo.

A moça se mostrava meio perdida com as palavras do

jovem, e ainda não sabia direito o que dizer. Porém,

começou a sentir uma angústia crescente em seu coração,

como se tivesse medo de nunca mais conseguir sair

daquela fazenda ou de não encontrar mais ninguém que a

ajudasse a se livrar daquela situação e de todos aqueles

tristes acontecimentos dramáticos que povoavam

cruelmente seu coração. Lentamente, seus olhos foram se

enchendo de lágrimas, e ela balbuciou mansamente tudo o

que seu coração realmente desejava.

- Eu não quero mais ficar aqui. Por favor, ajude a

gente a sair daqui. Por favor. Eu não suporto mais ficar

nessa fazenda. Precisamos ir embora daqui. Todos nós.

A moça abraçou o jovem, que foi pego de surpresa

por aquela atitude inesperada. Ela chorava em silêncio.

Sentiu o calor da moça o envolver num abraço

aconchegante e intenso. Agora ele tinha certeza de que

tinha que ajudar aqueles irmãos a sair daquele lugar, e

juntos seguirem em direção à cidade.

// capítulo 14

O dia mal havia raiado e o jovem já estava de pé. Na

verdade, ele quase não dormiu, passou a maior parte

daquela noite acordado, pensando na decisão que havia

tomado, e em como chegaria à cidade. Muitas coisas

povoaram sua cabeça naquela noite. O acidente que

sofreu, os dias perdido no meio da mata, a situação dos

irmãos que havia conhecido, todo o drama pelo qual

haviam passado e ainda passavam, abrigados naquela

fazenda que foi palco da chacina de sua família. Tinha

certeza de que a moça estava disposta a abandonar tudo

aquilo e ir embora dali, assim como o garoto, que parecia

ter demonstrado ao jovem na noite anterior, através de seu

olhar insistente, sua vontade de sair daquele local e se

libertar dos fantasmas que rondavam aquele casarão,

aquela fazenda. E naquela manhã acordou disposto a

conversar com o rapaz e procurar saber o que ele achava

da idéia de irem embora todos juntos, deixando tudo o que

ocorreu com eles para trás.

Encontrou o rapaz sentado na varanda, agasalhado

contra o frio, contemplando mais uma manhã nublada. O

jovem perguntou, então, pela sua irmã e pelo irmão mais

novo.

- Eles dois foram até o carvalho. Minha irmã não gosta

muito de ir lá, mas hoje, não sei por quê, ela decidiu ir até

lá.

- Você não acompanhou eles?

- Eu não gosto muito de ir lá. Quando eu tinha a idade

de meu irmão, eu adorava brincar perto do carvalho. Mas

depois de tudo o que aconteceu, aquele lugar mudou

completamente para mim. Apesar de minha família agora

estar enterrada ali, eu não me sinto bem indo lá.

- Eu estive com sua irmã no carvalho.

- Eu sei. Ela me disse.

Enquanto os dois conversavam na varanda, a moça e

o garoto estavam ajoelhados próximos aos túmulos sob o

carvalho. Seus lindos e longos cabelos negros esvoaçavam

levemente ao sabor do vento, enquanto ela conversava

com seu irmão mais novo sobre a decisão do jovem e seu

plano de deixar a fazenda naquele dia. Mesmo sem dizer

uma palavra, o garoto demonstrou toda sua aflição ao

saber que o jovem estava partindo, e deixando cair uma

lágrima de seu rosto, abraçou sua irmã. Ela, porém,

também explicou que eles não ficariam mais ali na fazenda,

e que todos iriam embora juntos, em direção de Itabuna. O

garoto ficou surpreso, e olhou para a irmã. Dessa vez, ele

sorriu de alegria pela boa notícia que estava ouvindo.

No casarão, o jovem preparava-se para avisar sua

decisão para o rapaz. Este, entretanto, de forma

surpreendente, fez um convite inesperado.

- Você poderia acompanhar a gente na caminhada

pela mata. Eu, você e meu irmão. O que me diz?

- Está me convidando para ir com vocês?

- Eu sei que deve ter sido traumático todos os dias em

que você ficou perdido. Mas não se preocupe, dessa vez

você não vai perder. Eu conheço muito bem as trilhas da

fazenda de meu pai.

- Não acho uma boa idéia... – disse o jovem, meio

cismado com a proposta. Não estava gostando da idéia de

retornar para o meio da floresta.

- Eu já te disse falei pra não se preocupar, não falei?

Vamos, vou arrumar umas botas e um facão para você.

O jovem lembrou-se da moça. Avistou ela e o garoto

retornando do carvalho. Estavam a meio caminho do

casarão.

- Mas e sua irmã? Não acho que ela vá gostar da

idéia.

- Pode deixar, eu explico a ela.

Momentos mais tardes, o jovem e os dois irmãos já

tomavam uma trilha que começava por detrás das casas

que ficavam um pouco afastadas do casarão. O rapaz, que

ia na frente, seguido pelo jovem e o garoto, apontou para

as casas.

- Aqui morava o empregado mais antigo da fazenda,

que tomava conta de tudo por aqui na ausência de meu

pai. Morava com a mulher e os seis filhos. Meu pai tinha

muita confiança nele, e sabia que a fazenda estava em

boas mãos.

- O que houve com ele e a família? – perguntou o

jovem

- A mulher dele adoeceu e foi levada às pressas para

um hospital em Itabuna. Estava muito doente. Meu pai

pagou todas as despesas com o hospital. Isso aconteceu

mais ou menos uma semana antes do dia do clarão.

- Mas e os filhos? Foram juntos para Itabuna?

- Sim. Esse empregado de meu pai tem parentes na

cidade. Então foram todos para Itabuna. Seria apenas por

uns dois dias, não haveria problema. Mas aí então houve

aquele dia do clarão, e depois desse dia, eles não

voltaram.

Mais um mistério se somava a tantos outros, e

pareciam peças de um quebra-cabeça que ia tomando

forma diante dos olhos do jovem. Mas falar sobre o que

realmente pode ter acontecido no dia daquele clarão

estranho parecia ainda ser um tabu difícil de ser superado.

Era como se ninguém quisesse ainda acreditar que algo

catastrófico pudesse de fato ter acontecido.

Embrenharam-se os três cada vez mais mata adentro,

o rapaz sempre à frente desenhando o caminho a ser

seguido.

- Conheço todas as trilhas por dentro dessas

plantações de cacau. Já perdi a conta de quantas vezes

caminhei por aqui com meu pai e meus irmãos. Existem

muitas trilhas por aqui, e eu sei a direção que cada um

delas toma.

Caminhavam cada vez mais em direção à mata

fechada. Tendo a companhia do rapaz e de seu irmão mais

novo, o jovem foi, pouco a pouco, perdendo o medo e

ganhando um pouco mais de confiança em se meter em

meio à Natureza novamente. E caminharam da mesma

forma como faziam antigamente os desbravadores por

aquelas terras. Abriam caminhos novos com a ajuda do

facão, e assim seguiam em frente. Depois de um bom

período caminhando, fizeram uma parada de descanso.

- Tudo isso aqui ao nosso redor, toda essa roça de

cacau foi plantada pelo meu avô. Eu fico admirado com

tudo isso. – dizia o rapaz. – Meu pai me contou que quase

perdeu essa fazenda para a praga da vassoura-de-bruxa.

- Meu pai também sofreu muito com essa praga. Ele

acreditava naquela teoria conspiratória de que pessoas

ligadas a alguns políticos na região trouxeram essa doença

com objetivo de criar uma espécie de terrorismo biológico

com finalidades eleitoreiras.

- Se isso aconteceu mesmo, ninguém nunca teve

certeza absoluta. A única certeza que ficou foi a de que

essa doença destruiu toda a economia da região. Afinal, o

cacau era o que movia tudo por aqui por essas bandas.

O jovem ficou pensativo por alguns momentos,

enquanto comia alguns bagos de jaca, que estavam

deixando seus dedos sujos de visgo. O garoto, então,

aproximou-se dele, encarando-o de uma maneira diferente,

tinha uma expressão mais amistosa no rosto. Parecia um

pouco mais alegre, apesar de ainda continuar mudo.

Chegou perto do jovem e lhe ofereceu algumas tangerinas.

Tocou suas mãos e sentiu a pele macia do garoto, a

mesma pele macia e morena que tinha a sua irmã. O

garoto novamente o encarou e parecia ensaiar suas

primeiras palavras para ele. Seus lábios se mexeram na

intenção de dizer algo, mas o silêncio permaneceu, seguido

de um sorriso tímido.

- Obrigado pelas tangerinas. Onde você achou?

O garoto nada disse. Apenas apontou em direção ao

leste.

- Ele pegou aqui perto. – disse o rapaz – Ali adiante

tem alguns pés de tangerina.

O garoto mais uma vez olhou para o jovem, e sorriu.

- Essa mata é realmente fantástica, uma riqueza sem

igual. – comentou o jovem.

- Eu me orgulho muito dessas terras. Esses

cacaueiros, toda esse pequeno pedaço da Mata Atlântica

preservado aqui. Eu quero proteger tudo isso aqui, que

meu pai cuidou e pensava deixar para nossa família

quando morresse.

- Proteger? Como assim? – o jovem não havia

compreendido realmente as reais intenções do rapaz com

aquela frase.

- Isso aqui pertence à minha família, é uma herança. E

eu não posso abandonar tudo isso simplesmente. – de

braços abertos, o rapaz rodopiava lentamente em torno de

si mesmo, como que apresentando todo aquele legado que

seu pai havia deixado para ele. – Eu pretendo cuidar

dessas terras, pois eles pertencem agora a mim e meus

irmãos. Meu pai ficaria muito orgulhoso de minha decisão,

eu tenho certeza disso.

- Qual decisão? – perguntou o jovem

- Eu pretendo permanecer aqui, nessa fazenda, e

tomar conta de tudo aqui, junto com meus irmãos.

- Você quer ficar aqui na fazenda?

- Sim. É preciso. Eu não posso deixar isso tudo jogado

à própria sorte.

O jovem não acreditava no que estava ouvindo.

Parecia que o rapaz tinha perdido certo juízo e não fazia

idéia do que acabava de dizer. “Como ele vai ficar aqui

nessa fazenda e tomar conta de todas essas terras?”,

pensou, considerando que já era hora de conversar com o

rapaz e contar também sobre sua decisão e seus planos de

ir embora daquele lugar.

- Eu preciso dizer algo a você. Eu estou partindo hoje,

estou indo em direção a Itabuna.

- Você está indo embora pra cidade?

- Sim. E eu gostaria que vocês pudessem ir comigo.

- Como assim ir com você? Do que você está falando?

- Eu conversei com sua irmã sobre meus planos de

partir, e considerei o fato de irmos todos embora daqui. E

ela concordou comigo.

- O que? – o rapaz estampou um ar de surpresa.

- Acredite, não está sendo fácil para sua irmã e o mais

novo continuarem aqui na fazenda, ainda mais depois de

todas as tragédias que vocês mesmos me contaram. É

doloroso demais. – o jovem olhou para o garoto, e

percebeu que o sorriso havia sumido temporariamente de

seu rosto.

- Você está dizendo para a gente deixar esta fazenda?

Está me dizendo para deixar as terras de minha família, e ir

embora daqui?

- Pense em sua irmã e no garoto. Eles estão sofrendo

muito. Vai ser melhor para todos se vocês seguirem em

frente com suas vidas longe daqui.

- Você não entende... – disse o rapaz, um pouco

aturdido – Eu não posso deixar esse lugar. Nós não

podemos deixar.

- Não há mais razão alguma para vocês

permanecerem aqui. Tudo aqui só faz lembrar vocês de

todas as tragédias que ocorreram.

- Não. Não! – o rapaz alterou um pouco sem tom de

voz, começando a ficar um pouco nervoso. – O que você

está pedindo não pode ser feito. Não posso abandonar

essas terras. Precisamos ficar e cuidar daquilo que é

nosso, daquilo que nossos pais nos deixaram.

- Mas seus irmãos estão sofrendo permanecendo

nesse lugar, e você ainda não percebeu isso, pois ficou

cego pelo ódio e rancor que você ainda guarda em seu

coração, e tem medo que tomem tudo isso de você.

- Você não sabe o que está dizendo! Já te disse, o

que você está pedindo não pode ser feito. Não podemos

sair daqui!

- Você não quer descobrir o que houve no dia do

clarão? Não quer descobrir o que realmente ocorreu, e

saber o que se passa de fato com o mundo ao nosso

redor?

- Eu não preciso sair daqui de onde estou para saber

o que aconteceu com o mundo lá fora, e o que vamos

encontrar quando sairmos daqui. Sabe o que vamos

encontrar? Um mundo acabado, destruído, gente morta,

escombros, miséria, dor. É isso o que vamos encontrar lá

fora, pois foi isso o que restou do mundo que nós

conhecíamos!

- Nós não temos certeza de nada disso. É por isso que

precisamos sair daqui, e ir em frente. Para encontrar as

respostas definitivas.

Não precisamos sair daqui! Não existe mais um

mundo seguro lá fora. Eu e meus irmãos vamos

permanecer aqui na fazenda, pois aqui é o nosso lugar. Se

você quiser ir embora, pode ir, mas eu e meus irmãos

ficaremos!

O rapaz havia dito tudo aquilo com um certo

nervosismo, mas procurou não alterar muito o tom de sua

voz, respeitando a presença de seu irmão caçula. O garoto,

porém, ao ouvir aquelas palavras de seu irmão, não

suportou a tristeza que invadia seu coração naquele

momento, e saiu correndo desembestado por entre os

cacauais.

- Espere! – o jovem pensou em correr atrás do garoto

e deter sua fuga, mas conteve-se, receoso de que pudesse

acabar se perdendo mais uma vez pelo meio da mata. –

Será que você faz idéia do sofrimento de seus irmãos

permanecendo nessa fazenda?

O rapaz calou-se, olhando fixamente para o jovem,

que reconheceu aquele mesmo olhar, de quando se

encontraram pela primeira vez. O rapaz parecia

visivelmente cego pelas suas próprias idéias, obcecado por

propósitos que dominavam seu íntimo. Voltaram os dois

sem trocar uma palavra, silenciosos em suas idéias e

pensamentos. Fizeram todos os caminhos de volta, todas

as trilhas por onde haviam passado antes.

Aproximavam-se mais uma vez da fazenda. O rapaz

seguiu com passos firmes e adentrou impassível o casarão.

O jovem permaneceu na varanda, e então avistou a moça e

o garoto na beira do rio. Correu ao encontro deles,

ofegante, e quando aproximou-se, descobriu os dois irmãos

abraçados, chorando. Ela afagava os lisos cabelos negros

do garoto, debruçado em seu colo.

- Ele falou... – disse ela, com uma voz emocionada,

num sussurro envolvido em lágrimas – Eu ouvi a voz dele

novamente. Ele falou comigo...

O jovem agachou-se e buscou o rosto do garoto de

olhos negros, que virou-se para ele e finalmente balbuciou

o que tanto queria dizer.

- Eu... quero... ir embora... daqui... com você – falava

pausadamente, em meio ao choro – Por favor... eu quero...

ir embora... daqui... vamos...

- Eu estava aqui, e ele veio correndo em minha

direção, e me abraçou chorando, e disse: “estou com

medo”.

- Não se preocupe. Todos nós vamos embora daqui,

eu prometo. Vamos conversar com seu irmão e convencer

ele de que o melhor a ser feito por vocês é sair da fazenda.

O garoto o abraçou, num gesto de agradecimento pelo

que tinha acabado de ouvir. Naquele momento de sua vida,

sair daquela fazenda era tudo o que ele queria, e agora ele

via o jovem como um amigo que o estava ajudando

naquela situação difícil pela qual passava. Seu coração

batia acelerado, e podia-se ver com clareza que ele estava

começando a criar um vínculo forte de amizade com o

jovem.

Retornaram para o casarão. Entraram pela cozinha e

encontraram o rapaz visivelmente transtornado, nervoso,

andando de um lado para o outro. Ao rever o jovem, correu

ao seu encontro e, assim como fizera na primeira que o

havia visto, novamente apontou a espingarda contra o peito

dele.

- Você não disse que estava indo embora? Então? O

que está esperando?

O jovem parou, visivelmente surpreso por aquela

atitude inesperada do rapaz. Mais uma vez estava diante

de uma situação perigosa, e sentiu outro arrepio gelado

percorrer seu corpo.

- Calma. A gente precisa conversar.

- O que acontecendo com você? Por que agir assim

dessa maneira? – dizia a moça, nervosa, que tentou se

aproximar do seu irmão, mas foi impedida pelo jovem, que

a manteve atrás dele, num gesto de proteção. O garoto,

assustado, se mantinha escondido atrás do jovem.

- Me escuta. Você não tem motivo pra estar agindo

assim, você só está assustando seus irmãos.

- Porra nenhuma! Esse tempo todo você estava

mentindo pra mim, mentindo pra gente. Estava se

passando por nosso amigo, quando na verdade é apenas

outro filho da puta tentando enganar a gente.

- Por favor, me escuta. Você está confundindo tudo,

está apenas cego de ódio e abalado por tudo o que viu e

presenciou aqui nessa fazenda.

- Cala a boca, que você não sabe de nada! Afastem-

se vocês dois dele! Ele está enganando a gente. Vamos!

Sem se virar, o jovem direcionou suas palavras à

moça e aconselhou a ela a se afastar um pouco junto com

o garoto, enquanto tentava dialogar com o irmão dela, cada

vez mais nervoso, transtornado, suando frio.

- É melhor vocês se afastarem.- disse, olhando agora

com extrema calma para o rapaz – Vamos conversar. Você

sabe que precisamos ajudar uns aos outros.

- Não me venha com essa conversa de ajuda! Você

acha que sou otário, é? Hein? Esse papo manso não me

engana mais.

- Você está nervoso, de cabeça quente, você

precisa...

- Cala a boca, já disse! Você não me engana mais!

Você só apareceu aqui para tirar tudo aquilo de valioso que

ainda me resta. Mas escuta uma coisa, seu filho da puta.

Você não vai tirar essa fazenda de mim, e nem meus

irmãos!

Por alguns segundos, seus olhares permaneceram

fixos, penetrantes um no outro, pareciam esperar por um

momento de vacilo para qualquer um deles dois tomarem

uma atitude drástica diante daquele situação perigosa. A

moça, assustada e abraçada em um canto com o garoto

que chorava silenciosamente, não suportou mais ver

aquela cena e decidiu intervir, dizendo algo que com

certeza surpreenderia seu irmão mais velho.

- Não queremos mais ficar aqui. Entendeu? Não

queremos mais. Queremos ir embora.

O rapaz virou o rosto na direção dos irmãos,

mostrando um olhar de espanto, como que não acreditando

no que ela dizia.

- O que?

O jovem percebeu que o momento era aquele, não

podia vacilar. Sabia que era preciso tomar uma atitude

mais enérgica contra aquela situação que se mostrava

inalterável. Aproveitou o segundo de espanto e descuido do

rapaz, que havia baixado um pouco a guarda, e partiu com

ímpeto em sua direção, na tentativa de desarmar ele.

Agarrou a espingarda na mão do rapaz, que tentou se

defender. Lançaram-se de lado para outro pela cozinha,

num jogo quase interminável de forças contrárias. Em

determinado momento daquela luta silenciosa, o dedo do

rapaz forçou o gatilho, fazendo a arma disparar um tiro, que

atingiu a janela da cozinha. O tiro assustou a todos, e o

irmão mais velho da moça aproveitou aquele segundo para

acertar uma coronhada no rosto do jovem, que caiu no

chão completamente tonto. Olhou ao redor, encarou aquela

cena transtornado, viu seus irmãos apavorados, encolhidos

num canto. Largou a espingarda no chão e saiu correndo

porta afora, em direção da mata. Embrenhou-se pelas

plantações, com passos cambaleantes, trôpegos, lágrimas

nos olhos. Perdeu-se em meio a jequitibás, sapucaias,

cedros, enfiou-se no meio dos cacaueiros.

// capítulo 15

Havia lampiões e velas acesas por todo o casarão,

iluminando as incertezas que dominavam aquela noite fria

e tenebrosa. Os ventos frios pareciam agora trazer consigo

um clima de insegurança por toda a fazenda. O jovem, a

moça e o garoto estavam sentados na varanda, os corpos

protegidos do frio por grossas mantas e cobertores. O

garoto, mostrando certo cansaço físico diante de tudo,

dormia sereno, com a cabeça encostada no ombro do

jovem. A moça, talvez cansada de tanto chorar durante

aquele dia, após o desaparecimento de seu irmão, agora

trazia no rosto uma expressão impávida, silenciosa,

pensativa. Tinha os olhos marcados pelas lágrimas. O

jovem sentia-se envolvido pelo calor dos dois irmãos, ali

sentados ao seu lado, enquanto refletia sobre todo aquele

caos onde havia se envolvido durante todos aqueles dias.

Tentava juntar novamente todas as peças do quebra-

cabeça que a vida havia lhe oferecido, procurando

visualizar algo maior em sua frente, algo que lhe pudesse

enfim explicar tudo o que aconteceu. O clarão, o acidente,

seus dias perdido na mata, seus momentos de delírio, o

coro de vozes que vez por outra sempre ouvia, e todos

aqueles acontecimentos desde que havia chegado àquela

fazenda. Passou a mão no rosto, e sentiu uma dor ainda

presente na face, que mostrava uma marca roxa onde o

rapaz o havia acertado com a arma. A moça observou seu

gesto com certa preocupação.

- Você está melhor agora? A cabeça ainda dói?

- Um pouco, mas não como antes.

- Ainda não consigo entender por que meu irmão agiu

daquele jeito. Ele parecia não ser ele mesmo.

- Ele apenas está confuso e guarda muita raiva ainda

por tudo o que houve com a família de vocês.

- Você disse que ele estava cego de ódio.

- Não se preocupe. Seu irmão vai voltar, eu tenho

certeza. – disse o jovem, encarando aqueles olhos negros,

iluminados pela luz dos lampiões e das velas. Não sabia ao

certo, mas parecia se sentir um pouco atraído pela moça

morena. Sabia que havia se sentido enamorado por ela

desde a primeira vez em que seus olhos a viram. Mas pela

primeira vez naquele momento, começou a pensar

seriamente na possibilidade de estar realmente apaixonado

pela moça. Talvez estivesse na hora de começar a

acreditar em destinos traçados, em vidas que se cruzam

com um determinado propósito, uma missão a cumprir.

Talvez sua vida tivesse razões maiores do que apenas a

realização de seus próprios sonhos, e ele ainda

desconhecesse tais razões. Provavelmente ele havia

chegado até aquela fazenda não por acaso, mas tivesse

algo a realizar ali, algo que tivesse a ver com aqueles

irmãos órfãos. Será que toda sua vida, todos os seus

sonhos e metas pudessem esconder um objetivo talvez

maior que ele próprio desconhecesse realmente?

- Você acredita em destino? – perguntou o jovem.

A moça ponderou um pouco, e então respondeu.

- Acredito. Eu confio em algo maior a guiar nossas

vidas, mesmo que de uma maneira indireta. E você,

acredita em destino?

- Estou começando a acreditar. Eu sei que nós

decidimos os caminhos que tomamos em nossas vidas,

mas parece que existe uma missão maior por trás de

nossas próprias decisões.

- Você está falando isso por causa do acidente que

sofreu?

- Provavelmente... Sabe, quando eu decidi deixar

minha terra, minha família, e ir estudar no Sul, eu estava

indo em busca de sonhos maiores, e da possibilidade real

de poder realizá-los. Havia faculdades em Itabuna que

ofereciam o curso que eu queria, mas eu queria ir mais

além, buscava metas maiores. Por isso decidir ir embora e

correr atrás desses meus sonhos maiores.

- E você conseguiu, não é?

- Em parte, sim. Apesar de todas as dificuldades,

encarei o desafio de ir estudar no Sul do país, enfrentando

todas as adversidades. Cursei Jornalismo numa boa

faculdade, e fiz estágios em alguns grandes jornais e

revistas conhecidas. Aprendi muito nesses anos que passei

longe de minha terra. Mas então, decidi retornar.

- Eu admiro você, pelas coisas que contou sobre sua

vida e seus sonhos. Eu também tenho meus sonhos.

Pretendo terminar o 2º Grau e cursar faculdade de

Astronomia. Meu fascínio pelas estrelas permanece até

hoje. Sempre adorei vir para esta fazenda, porque as noites

aqui são fantásticas. Você pode enxergar todas as estrelas

que cintilam no céu.

- Uma pena que ultimamente o céu esteja sempre

nublado.

- Quando era mais nova, eu ganhei um livro sobre

Astronomia. Falava sobre os planetas, os sóis, as estrelas.

Tinha alguns mapas estelares incríveis, e eu ficava

admirando as fotos das nebulosas, das galáxias distantes,

e imaginando se realmente poderia haver vida em algum

outro planeta distante do nosso.

- Os astronautas estão pesquisando muito sobre isso

ultimamente, na Estação Espacial Internacional.

- Eu acredito que não somos os únicos no universo.

Algo tão imenso e fantástico não seria criado para abrigar

apenas um minúsculo planeta com vida como o nosso.

Deve haver outros planetas habitados por seres que vivem,

morrem, sorriem, choram, amam, odeiam...

O jovem arriscou uma opinião mais descontraída.

- Será que nesses outros planetas deve haver algo

mais delicioso do que o nosso chocolate? Ou do que

aquele seu chá de anil?

A moça o encarou, e soltou um sorriso. Ficou um

tempo pensativa, e logo em seguida levantou-se, indo até a

escada da varanda. Olhou para o céu. Estava buscando

encontrar as estrelas que sempre brilhavam na vastidão do

espaço, mas só encontrou um tempo fechado e frio. Porém,

por um breve instante, ela teve a impressão de ter visto

uma estrela brilhando por uma brecha entre as nuvens. Ela

brilhou por poucos segundos.

- Uma estrela. – disse a moça.

O jovem ficou curioso e levantou-se. Acomodou

cuidadosamente o garoto, que estava dormindo, e foi na

direção da moça.

- Você está vendo uma estrela? – perguntou ele.

- Sim. Ela estava logo ali. – disse ela, apontando em

um ponto do céu, que estava novamente escuro.

Os dois entreolharam-se silenciosos naquele

momento. Por um breve momento, a intenção de um beijo

pairou sobre seus lábios, mas se detiveram, um pouco

envergonhados. Relâmpagos iluminaram o jovem e a

moça, parados ali na escada. Trovões ecoaram pelo céu, e

os ventos frios se tornaram um pouco mais intensos.

Voltaram para a varanda iluminada pelos lampiões. Viram o

garoto acordar meio assustado com os trovões. O jovem

sentou-se ao lado dele, e o abraçou num gesto de

proteção. A moça deixou os dois na varanda e caminhou

até a cozinha. Decidiu preparar um pouco do chá de anil.

// capítulo 16

Foi uma noite longa e cansativa, costurada por

cochilos breves e sonos agitados por sonhos que

incomodavam o juízo. A moça acordava quase a todo

momento, assustada, lembrando de seu irmão

desaparecido. O jovem, numa vigília constante, acalmava

ela, enquanto ele próprio permanecia acordado, pensativo.

O garoto agora dormia ao seu lado, e tinha a impressão de

que ele estava se sentindo protegido estando ali, próximo

do jovem. Sem conseguir dormir, observava os irmãos ao

seu lado, ciente da responsabilidade que tinha com ele

desde que passou a fazer parte de suas vidas. Levantou-se

e aproximou-se um pouco mais da escuridão que tomava

conta de tudo ao seu redor. Concentrou-se naquele

momento único, e então começou a ouvir aquele coro

novamente, aquele cântico suave invadindo seus ouvidos e

sua mente. Dessa vez parecia mais próximo, quase podia

entender o que diziam. Um lampejo invadiu seus olhos e

um trovão o acordou daquele transe momentâneo. Voltou

para perto dos irmãos, que dormiam iluminados pelas luzes

dos lampiões.

A madrugada corria solta quando o cansaço venceu o

jovem, e ele adormeceu sem nem perceber o momento.

Teve um sonho impregnado de imagens desconexas,

aparentemente sem sentido algum. Passos de criança

correndo por uma calçada, o garoto de abertos para um

céu azul, folhas caindo de uma amendoeira numa praça, os

rostos de seus irmãos ainda crianças sorrindo para ele, o

quintal de sua casa numa tarde de sol, sua bicicleta

esquecida na entrada da garagem. Tudo surgia e

desaparecia de forma inconsistente, meio desfocado, como

se estivesse assistindo a um vídeo amador. Acordou vendo

a manhã despontando mansa ainda numa penumbra. Ao

seu lado, o garoto havia acordado e estava sentado a lhe

observar, sorrindo. Retribuiu o sorriso, e então

permaneceram acordados, conversando, enquanto viam o

dia raiando mais uma vez nublado. O garoto perguntava o

que eles fariam quando saíssem daquele lugar, e o jovem

pacientemente explicava o que pretendia fazer assim que

deixassem a fazenda. Um passarinho de papo azul pousou

próximo a eles, e ensaiou movimentos tímidos pela

varanda, diante de seus olhos atentos, até sair voando

novamente pelo céu. A moça finalmente acordou e

perguntou pelo irmão desaparecido. Percebeu que ele

ainda não havia retornado, e levantou-se um pouco

desapontada. Caminhou até a cozinha, decidida a preparar

o desjejum daquela manhã.

Depois do café, permaneceram na varanda, na

expectativa de que o rapaz reaparecesse. A moça

começava a demonstrar certa aflição por toda aquela

situação persistir.

- Onde estará o meu irmão?

- Não se preocupe. Ele vai voltar. Eu sei que ele não

iria abandonar vocês dessa maneira.

- Eu não sei mais o que se passa no íntimo dele. Ele

está muito pertubado.

Enquanto conversavam, escutaram barulhos que

vinham da frente do casarão. Parecia som de cavalos

relinchando, vozes estranhas, passos cautelosos subindo

as escadas. O garoto, impacientemente, correu curioso,

buscando saber quem poderia estar chegando na fazenda

naquele momento. Sua irmã procurou segurá-lo, mas não

conseguiu, seguindo-o com passos mais cautelosos. Viu

seu irmão parar meio assustado, e aproximou-se dele,

abraçando-o. Olhou para o estranho à sua frente, de pele

branca, barba por fazer, andando vagarosamente e

mostrando gestos comedidos. Seu corpo deixava exalar um

forte odor de suor, que chegava a incomodar as narinas de

quem estivesse próximo a ele. A moça deu uma rápida

olhada para fora e viu um moreno, um caboclo e um negro,

ainda montados nos cavalos, e pela maneira como se

vestiam, ela teve a estranha sensação de estar diante de

jagunços ameaçadores saídos diretamente das páginas de

algum livro de Jorge Amado. A descrição de seus aspectos,

realmente, não poderia ser mais perfeita. Traziam em seus

rostos semblantes ameaçadores de assassinos cruéis. A

moça não estava gostando do que estava vendo, e

considerou a possibilidade incômoda de estar diante de

tipos suspeitos e perigosos.

- Quem é você? O que você deseja? – interrogou a

moça, no momento em que percebeu a presença do jovem

ao seu lado.

O sujeito branco, de chapéu e capa, olhava fixamente

para a porta e as janelas do casarão, quando virou o rosto

na direção onde estavam os irmãos e o jovem. Soltou um

sorriso estranho, como que satisfeito com o que acabava

de ver.

- Ora, veja só o que temos aqui. Parece que ainda

vive gente nesta fazenda. – enquanto falava, o sujeito

branco caminhava na direção dos três.

- O que vocês querem? – o jovem insistiu na pergunta

feita pela moça.

- O que eu disse a vocês? – gritou o sujeito branco na

direção dos outros dois nos cavalos. Voltou-se novamente

para a moça e o garoto, lançando um olhar fixo e

assustador – Eu tinha certeza que o serviço não estava

completo, e que a gente não havia acabado com todo

mundo por aqui.

Assim que ele soltou essas palavras, os dois irmãos

travaram de pavor. Seus olhos se arregalaram e eles

sentiram arrepios gelados dominando seus corpos e seus

corações aceleraram. O jovem, visivelmente horrorizado,

percebeu que estava diante dos homens que haviam

exterminado a família daqueles irmãos. O sujeito branco

aproximou-se mais da moça, observando-a

cuidadosamente. Ela sentiu aquele fedor mais forte e

quase insuportável. O sujeito passou levemente os dedos

no rosto dela, acariciando sua pele.

- Você é uma gracinha. O que houve com você antes?

Se perdeu de seus pais? – Agachou-se e passou a

observar o garoto, abraçado à irmã – E você, garotão? É o

caçula da família? Deve ser. Tem o mesmo rosto do pai.

Subitamente, o jovem avançou para frente da moça, e

empurrou educadamente o sujeito branco, que continuava

mantendo o sorriso na boca.

- Acho melhor você sair dessa fazenda e deixar a

gente em paz.

- Você não parece ser da família. Não me lembro de

você.

- Eu sou amigo da família, e sugiro que saiam daqui,

por favor.

- Quanta educação. – disse, afastando-se do jovem.

O sujeito moreno, demonstrando certa desconfiança

com relação àquele lugar, ajeitou um pouco o chapéu para

trás e disse que era melhor irem embora logo dali, pois não

havia mais nada por ali a ser feito.

- Estamos perdendo tempo aqui nesse fim de mundo.

- Também acho – concordou o negro, olhando ao

redor – O serviço já foi feito aqui.

- Eu discordo – retrucou o sujeito branco – O serviço

ficou incompleto, e foi por isso que eu quis voltar.

- Ainda acho que a gente devia se mandar. Aí a gente

aproveita e leva junto essa mocinha linda. – disse o

moreno, sorrindo maliciosamente.

- Esse cara é maluco. Fez a gente voltar até essa

maldita fazenda e perde tempo com um bando de

moleques perdidos. – reclamou o caboclo, com cara de

poucos amigos.

- Você fala demais. Tenha cuidado pois é capaz de

você morrer por falar o que não deve. – Disse o sujeito

branco, num tom de voz calmo, porém profundamente

ameaçador.

- Vamos parar de discutir e cair fora. E traga a

mocinha aí pra gente curtir um pouco com ela. – insistiu o

moreno com a idéia.

- Eu não sei. Eu acho que acabaria sendo cruel com a

pobrezinha. Ela merece coisa melhor, merece uma morte

mais rápida.

O jovem estava completamente abismado com a

presença daquele sujeito branco, que se comportava como

um completo psicopata, uma pessoa sem sentimentos e

que parecia estar desfrutando de cada segundo daquele

momento diante daqueles irmãos aflitos. Estava

começando a despertar um sentimento de ódio de dentro

de si por estar diante da pessoa que praticamente destruiu

a vida daqueles irmãos. Teve uma vontade impetuosa de

partir para cima do sujeito branco e acabar com ele ali

mesmo, mas se conteve o máximo que podia, pois a

situação era complicada, e aqueles homens armados eram

capazes de matá-los ali mesmo, sem qualquer compaixão.

- O que essa família fez a você para você ter agido da

maneira que agiu?

- A pergunta correta é: o que o pai dessa mocinha e

desse garoto fez a mim para que eu decidisse matar a

família dele? – o sujeito branco mantinha agora uma certa

distância dos três, sempre dando passos curtos e

vagarosos.

- Nada justifica o que você fez. Você não tem

realmente idéia da dimensão de seus atos.

O sujeito branco balançou a cabeça, sorrindo

sutilmente.

- O que eu sou hoje e o que eu me tornei, eu devo

tudo ao pai deles. Eu trabalhava na empresa de seu pai,

mocinha – apontou o dedo na direção da moça – Até que

um belo dia, ele descobriu que eu estava desviando

dinheiro ilegalmente da empresa. Eu já vinha fazendo isso

há um bom tempo, era um esquema bem armado e que

envolvia muita gente. Fui denunciado pelo seu pai. Acabei

na cadeia. Mas eu sabia que não ficaria para sempre na

prisão, e quando saísse, seu pai iria receber o que merecia.

- Você é um doente. – disse o jovem, com os punhos

fechados.

- O pai deles apenas não sabia com quem estava

mexendo. Eu não gostei de perder tanto tempo de minha

vida preso. A vingança, para mim, era o caminho a seguir.

- Eu não sei como você saiu da cadeia, mas lá era o

lugar para onde você deveria voltar. – o jovem estampava

uma expressão de raiva contida em seu rosto.

- Pouco importa como eu consegui sair da prisão.

Cadeia, aqui no Brasil, não reabilita ninguém, serve apenas

para segurar os criminosos. E pelo visto, não me segurou

por muito tempo, não é?

O sujeito branco fez uma breve pausa, olhou ao seu

redor, como que averiguando se não havia mais alguém ali

no casarão, e continuou a falar.

- Eu pensei que quase não conseguiria alcançar meu

objetivo, quando a gente sofreu o acidente na rodovia, no

dia daquele estranho clarão. Mas eu pensei comigo

mesmo, “O mundo pode estar se acabando, mas nada vai

me impedir de chegar até aquela maldita fazenda e acabar

com raça daquele desgraçado e de toda sua família”. Eu

não desisto facilmente de meus objetivos.

- Você destruiu uma família quase inteira. Você não é

normal.

- Sabe, você está começando a me irritar com essa

sua maneira de falar comigo. Você não está pensando em

bancar o herói numa hora dessas, está? Eu vou matar

todos vocês, e acho que você será o primeiro a morrer.

Assim que acabou de dizer essa frase,

inesperadamente, o garoto desgarrou-se dos braços da

irmã, e saiu correndo aos gritos em direção ao sujeito

branco. Este, com um olhar impassível, agarrou o garoto, e

aplicou-lhe um golpe forte, arremessando-o contra a

parede. A moça gritou ao ver seu irmão caçula tomar

aquela atitude, e se desesperou quando ele caiu no chão,

chorando, sentindo a dor do golpe. O jovem não suportou

ver aquela cena e partiu para cima do sujeito branco, que

se esquivou de seus murros com movimentos rápidos e o

empurrou contra a parede. Torceu o braço do jovem para

trás e o segurou firme pelo pescoço, quase o sufocando,

pressionando sua cabeça. Chegou perto de seu ouvido, e

sussurrou de maneira ameaçadora.

- Não brinque comigo. Você não faz idéia do que eu

sou capaz. Você tentou dar uma de herói, agora você vai

morrer.

Soltou, então, o braço do jovem, e aplicou-lhe alguns

socos na altura do abdômen, observando-o cair ao chão

sentindo as dores dos murros. O garoto aproximou-se do

jovem, e o abraçou, como que tentando proteger a pessoa

a quem ele buscava agora apoio e proteção. O sujeito

branco estava visivelmente alterado, parecia ter sido

possuído por uma força incontrolável. Tirou uma pistola

automática prateada escondida na cintura, e apontou na

direção da moça, indo na direção dela.

- Cansei de toda essa conversa. Estou disposto a

terminar o que eu comecei aqui. E todos vocês irão morrer

agora!

- Termine logo com isso e vamos embora – reclamou

o negro.

- Ainda acho que devemos trazer a mocinha conosco.

Acabe com os outros dois, e traga a moça. – sugeriu o

moreno.

- Pra mim, ela vai acabar atrapalhando nossa viagem.

Não vai ser lucro nenhum pra gente trazer ela. – o caboclo

parecia realmente cismado com as idéias do moreno e do

negro.

- Calem a boca vocês! Eu decido o que eu vou fazer

com esses três.

O sujeito branco estava decidido a matar todos. Não

queria ninguém daquela família ainda vivo ali. Pressionou o

cano da pistola automática na testa da moça, e olhou em

seus olhos por alguns segundos. Ela, visivelmente

apavorada, ele, soltando um sorriso de canto de boca.

Estava prestes a puxar o gatilho, quando a porta da frente

do casarão se abriu bruscamente.

// capítulo 17

De dentro do casarão, o rapaz surgiu, embriagado

pelo mais profundo ódio. Seus olhos negros brilhavam de

uma maneira intensa, estavam arregalados. A expressão

em seu rosto era de alguém disposto a matar sem pensar

duas vezes. Trazendo na mão o rifle de seu pai, desferiu

tiros certeiros e fatais contra os homens montados nos

cavalos. O moreno, o caboclo e o negro não tiveram tempo

de reação, sendo atingidos rapidamente e caindo já mortos

ao chão. O jovem acompanhou a cena ainda meio aturdido,

mas podia ouvir os gritos do rapaz, que estava

transtornado de ódio.

O sujeito branco virou-se assustado a tempo de ver o

rapaz atingir agilmente os seus comparsas, vendo-os cair

já sem vida. Percebendo que o rapaz preparava-se para

atirar em sua direção, movimentou-se o mais rápido que

pôde, e mirou sua pistola contra o rapaz. Disparou somente

um tiro, e permaneceu imóvel, observando o rapaz ser

atingido em cheio no peito e cair ensangüentado perto da

escada, procurando suportar aquela dor. Ainda com a arma

apontada para ele, o sujeito branco caminhou na direção

dele, e o encarou friamente.

- Você foi corajoso e rápido. Mas não foi o suficiente

para te livrar da morte.

- Você é... um canalha... – disse o rapaz, com extrema

dificuldade, sentindo uma dor cruel pulsando em seu peito.

– Merece... apenas a morte...

- Estou impressionado com sua atitude. Mesmo com

uma bala no peito, ainda tem forças para me dizer isso.

Mas pode ter certeza de que o próximo tiro vai te calar para

sempre.

O sujeito branco mirou em direção à cabeça do rapaz,

e se preparava para o próximo tiro, quando um outro

disparo o atingiu em cheio pelas costas, impedindo-o de

prosseguir com seu gesto. Seu olhar parou no tempo.

Virou-se lentamente, dessa vez, e enxergou a moça

parada, ainda mirando o cano fumegante da espingarda

contra ele. Tudo aconteceu em momentos que pareciam

intermináveis. Aterrorizada, a moça viu o sujeito branco

cambalear dois passos incertos em sua direção, antes de

derrubar a pistola no chão. Ele caiu de joelhos na varanda,

o olhar perdido no tempo, a boca entreaberta deixando

escorrer um filete de sangue, e um último suspiro antes que

seu corpo arqueasse para frente, encontrando apenas o

chão duro e frio.

Em prantos, a moça largou a espingarda que havia

encontrado no chão da cozinha momentos antes, e correu

em direção do seu irmão ferido. O jovem arrastou-se para

perto, seguido pelo garoto, que ajoelhou-se ao lado do

irmão.

- Dói... muito – dizia o rapaz com imensa dificuldade.

Suava frio, cuspia sangue e lutava contra uma dor que

apertava seu coração. Olhou para a irmã – Me perdoe... Eu

fiz isso... pela gente... pela nossa... família.

- Não se preocupe, você vai ficar bem, nós vamos

cuidar de você. Nós estamos aqui. – As lágrimas da moça

caíam sobre o peito ensangüentado do irmão. Ela segurava

firme a mão do seu irmão ferido.

O rapaz procurou a presença do jovem ao seu lado,

olhando em sua direção e agarrando dessa vez sua mão. A

dor em seu peito aumentava.

- Por favor... cuide bem deles... por mim... Eu confio

em você...

Após essas palavras, o rapaz sentiu uma dor maior e

intensa atravessando seu peito. Apesar da forte dor,

prendeu o grito, e sua respiração ficou rápida e arquejante,

demonstrando dificuldade em continuar respirando. Sua

irmã implorava para que ele permanecesse acordado, e

lutasse para continuar vivo. O garoto chorava em soluços.

Subitamente, um forte vento passou por eles, e o rapaz

sentiu sua vida se esvaindo. Deu um último suspiro, até

que sua respiração cessou, seu coração parou de bater e

seu olhar imóvel contemplou sua morte iminente. A moça

desesperada, chorava sobre o corpo do irmão já sem vida,

enquanto o garoto, em prantos, abraçou o jovem, que

deixava agora as lágrimas invadirem seu rosto por

completo.

Nesse mesmo dia, o jovem, a moça e o garoto

deixaram aquela fazenda, e todas as suas recentes e

tristes lembranças para trás. Pegaram os cavalos e

partiram pela estrada. Ao atravessarem a cancela, pararam

os três por um instante e avistaram a fazenda pela última

vez, ainda sob o mesmo céu nublado. A moça lançou seu

olhar para o imenso carvalho ao longe, sempre imponente

em meio a toda aquela paisagem. Ali, aos pés da

gigantesca árvore, havia mais uma cruz, feita com galhos

de cacaueiros e cipós. Mais um túmulo, onde seu irmão

agora descansava em paz.

Calmamente, sob aquele céu cinzento, nublado, eles

abandonaram aquele mundo. Passavam silenciosos pela

paisagem, seguindo o percurso do ramal que iria terminar

na estrada principal. Passaram por outras fazendas, casas,

mas não encontraram ninguém. O silêncio reinava e

nenhuma palavra realmente importante a ser dita mais.

Acharam a rodovia e seguiram por ela. Não importava o

quanto demorasse a jornada, mas nada os impediriam de

seguirem adiante e chegarem ao seu destino. Pela estrada,

encontraram carros capotados, caminhões abandonados,

ônibus virados, e alguns veículos carbonizados, tudo

entregue ao silêncio do tempo e do espaço. Seguiam em

frente sem olhar para trás. E olhando para frente sempre,

começaram a avistar uma paisagem diferente daquela que

os cercavam até aquele momento. Uma paisagem nova,

diferente, desoladora, completamente destruída. Não havia

mais nada a partir dali a não ser pó, pedra, terra e uma

sensação de catástrofe cumprida. O ar parecia um pouco

mais quente e abafado, criando uma sensação de

sufocamento leve, o que chegava a causar uma sutil

angústia. Tudo ao redor parecia ter sido queimado,

incinerado de maneira devastadora. o jovem, a moça e o

garoto continuaram sua jornada silenciosos, e agora

completamente atônitos com o que estavam vendo. Uma

paisagem sufocantemente desértica, e nenhum vestígio de

vida, de sobreviventes, absolutamente nada.

A viagem por aquela terra acabada continuou, e eles

não faziam idéia de quanto tempo caminharam. Já não

tinham mais noção alguma de tempo, e a única certeza era

a visão do inferno que tinham ao seu redor. O jovem sentia

seu coração amargurado com a paisagem, e lembrou do

pesadelo que tivera quando estava perdido na mata

fechada. O seu pior pesadelo parecia mais real do que

nunca agora, e isso o deixava com um aperto no coração,

uma contração que ele não conseguia controlar e que o

angustiava mais ainda. Chegaram ao topo de um pequeno

monte, e então pararam aturdidos. A visão da catastrófe e

do horror havia se completado. Avistaram os escombros de

toda uma cidade destruída, transformada em cinzas. O céu

ainda nublado e cinzento completava aquele cenário

impressionante. Era assustador.

Caminharam em meio aos escombros. Quando não

suportou mais, a moça deixou cair suas lágrimas

silenciosas, chorando abraçada ao irmão. Choravam os

dois, pela perda, pela sensação de vazio, por simplesmente

não terem mais para onde voltar. Não havia mais para

onde voltar. O jovem agachou-se e tocou a terra destruída.

Seu semblante inerte, seu olhar parado no tempo era o

puro reflexo de seu vazio interior. Fechou os olhos e tocou

a terra, deixando suas mãos sentirem tudo o que lhe

restou. Lembrou de sua família e do motivo que o fizera

retornar para sua cidade. Seu choro era silencioso e suas

lágrimas discretas. Começou a ouvir novamente aquele

mesmo coro de vozes em sua cabeça. Abriu os olhos, e

tudo se reportou a um silêncio ensurdecedor ao seu redor.

Ele não queria dizer nada, mais nenhuma palavra

importava. Naquele momento único, elas seriam violentas e

quebrariam aquele silêncio, colidindo com aquele mundo

ao seu redor. Seria doloroso para ele dizer qualquer coisa.

Nada de promessas, pois elas são frágeis e poderiam se

quebrar com o vento ao seu redor. os sentimentos eram

mais intensos, a as palavras se tornaram insignificantes.

Da satisfação de voltar para casa sobrou apenas a dor, e

todas as palavras foram esquecidas. o jovem, a moça e o

garoto entreolharam-se. O jovem decidiu interromper

aquele silêncio imperioso.

- Tudo o que eu sempre quis, tudo o que eu sempre

precisei, estava aqui nos meus braços.

- E agora? - perguntou a moça, ainda abraçada ao

irmão.

- Agora?...

O jovem fez uma pausa e olhou sorrindo para os dois.

- Apreciem o silêncio... Foi tudo o que nos restou.