12
A APRAXIA DE FALA NA SÍNDROME DE DOWN: UM ESTUDO DE CASO Laíse Araújo Gonçalves 1 Micheline Ferraz Santos 2 Carla Salati Almeida Ghirello-Pires 3 Eixo Temático: Pesquisas e práticas em Educação Especial/Inclusiva Resumo:Este trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa voltada para o campo da Neurolinguística Discursiva, a doravante ND. Aqui, abrimos espaço à reflexão acerca das questões da apraxia de fala na síndrome de Down, contrapondo-se às perspectivas patologizantes e reducionistas a respeito de como se configura o processo de aquisição da linguagem desses indivíduos. Esta pesquisa visa à análise e discussão de dados linguísticos coletados no Laboratório de Pesquisa em Neurolinguística (LAPEN), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Para tanto, elencamos alguns dados que foram coletados no decorrer de atividades realizadas com uma criança SD eapráxica, visando compreender suas principais dificuldades no processo de produção da linguagem e auxiliá-la por meio de uma terapia linguística e fonoaudiológica focada. Como subsídio para esta pesquisa, recorremos ao arcabouço teórico da doravante ND, em específico, aos postulados de Coudry e Morato (1990), Canghilhem (1994), Schwartzman (1999), Kumin (2006) e Carrara (2016) acerca, respectivamente, dos aspectos da linguagem na criança com síndrome de Down, da apraxia e dos estudos envolvendo a Neurolinguística Discursiva. Palavras-chave: Apraxia; Síndrome de Down e Linguagem. Introdução 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin/UESB/FAPESB). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e estudo em Neurolinguística (GPEN).Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista, CEP: 45083-900. E-mail: [email protected] 2 Mestranda no programa de Pós-Graduação em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Graduada em Letras - Português e Inglês pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2001). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e estudo em Neurolinguística (GPEN). E-mail: [email protected] 3 Professora Doutora em Linguística, no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL/UESB), campus de Vitória da Conquista, CEP: 45083-900. Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Linguistica (PPGLin/UESB). Membro titular do Grupo de Pesquisa e de Estudo em Neurolinguistica (GPEN) cadastrado no CNPq com atuação na área de pesquisa em Síndrome de Down e Linguagem. E-mail: [email protected]

Eixo Temático - uefs.br · voltada para o campo da Neurolinguística Discursiva, ... prática que avalia o sujeito de forma longitudinal, ... no dia a dia e nas suas relações com

  • Upload
    doxuyen

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

A APRAXIA DE FALA NA SÍNDROME DE DOWN: UM ESTUDO DE CASO

Laíse Araújo Gonçalves1

Micheline Ferraz Santos2

Carla Salati Almeida Ghirello-Pires3

Eixo Temático: Pesquisas e práticas em Educação Especial/Inclusiva

Resumo:Este trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa voltada para o campo da Neurolinguística Discursiva, a doravante ND. Aqui, abrimos espaço à reflexão acerca das questões da apraxia de fala na síndrome de Down, contrapondo-se às perspectivas patologizantes e reducionistas a respeito de como se configura o processo de aquisição da linguagem desses indivíduos. Esta pesquisa visa à análise e discussão de dados linguísticos coletados no Laboratório de Pesquisa em Neurolinguística (LAPEN), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Para tanto, elencamos alguns dados que foram coletados no decorrer de atividades realizadas com uma criança SD eapráxica, visando compreender suas principais dificuldades no processo de produção da linguagem e auxiliá-la por meio de uma terapia linguística e fonoaudiológica focada. Como subsídio para esta pesquisa, recorremos ao arcabouço teórico da doravante ND, em específico, aos postulados de Coudry e Morato (1990), Canghilhem (1994), Schwartzman (1999), Kumin (2006) e Carrara (2016) acerca, respectivamente, dos aspectos da linguagem na criança com síndrome de Down, da apraxia e dos estudos envolvendo a Neurolinguística Discursiva.

Palavras-chave: Apraxia; Síndrome de Down e Linguagem.

Introdução

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin/UESB/FAPESB). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e estudo em Neurolinguística (GPEN).Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista, CEP: 45083-900. E-mail: [email protected] 2Mestranda no programa de Pós-Graduação em Linguística pela Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia – UESB. Graduada em Letras - Português e Inglês pela Universidade

Estadual do Sudoeste da Bahia (2001). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e estudo em Neurolinguística (GPEN). E-mail: [email protected] 3 Professora Doutora em Linguística, no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL/UESB), campus de Vitória da Conquista, CEP: 45083-900. Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Linguistica (PPGLin/UESB). Membro titular do Grupo de Pesquisa e de Estudo em Neurolinguistica (GPEN) cadastrado no CNPq com atuação na área de pesquisa em Síndrome de Down e Linguagem. E-mail: [email protected]

A linguagem é e sempre será essencial na vida de todos nós. Afinal, é por meio

dela que nos comunicamos, desvendamos o mundo, estabelecemos relações

sociais e nos constituímos enquanto sujeitos. Sob esta ótica, Coudry (1986/88)

afirma que a linguagem é uma ação sobre o outro e que as expressões

linguísticas guardam relações com a subjetividade. Assim sendo, é no discurso,

ou seja, na linguagem em funcionamento que o sujeito se constitui como tal.

Neste trabalho, com base na perspectiva dos estudos linguísticos e no contexto

da Neurolinguística enunciativo-discursiva que estuda a língua(gem) em

relação às suas condições de produção,abordamos os resultados parciais de

uma pesquisa cujo principal objetivo é analisar e caracterizar a produção oral

de uma criança SD e apráxica, a fim de especificar suas dificuldades e propor

uma intervenção terapêutica que auxilie no desenvolvimento e na produção da

linguagem oral. A criança que nos forneceu os dados linguísticos para este

trabalho, aqui, será denominada de “IZ”. Conhecendo as principais dificuldades

nos processos de produção da linguagem em IZ, a nossa hipótese é de que há

possibilidade de intervenção na programação neurológica de IZ, por meio de

atividades lúdicas contextualizadas, melhorando, assim, a sua produção

linguística. Partimos do princípio de que a linguagem é uma atividade

constitutiva que se sustenta e é sustentada por meio da interação social.

Conforme afirma Franchi (1976),

“A linguagem, pois, não é um dado ou um resultado, mas um

trabalho que ‘dá forma’ ao conteúdo variável de nossas experiências,

trabalho de construção, de retificação do ‘vivido’, que, ao mesmo

tempo, constitui o simbólico mediante o qual se opera com a

realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em

que aquele se torna significativo. Um trabalho coletivo, em que cada

um se identifica com os outros e a eles se contrapõe, seja assumindo

a história e a presença, seja exercendo suas opções solitárias.”

(p.31)

Assim sendo, considera-se que os sujeitos são constituídos na/pela real

atividade da linguagem. É válido salientar, ainda, que a nossa proposta baseia-

se na Teoria Histórico Cultural (THC) no que diz respeito a importância do

Outro no processo de ensino e aprendizagem, e ao funcionamento plástico do

sistema nervoso central, a partir dos fundamentos de Luria (1981) e Vygotsky

(1997) e dos pressupostos teóricos da Neurolinguística enunciativo-discursiva

que se articulam ao conceito de “Sistema Funcional Complexo”, conforme

proposto por Luria. Este autor afirma que o funcionamento neuropsicológico é

dinâmico, plástico e sujeito às experiências sócio-histórico-culturais que se

internalizam no cérebro de cada indivíduo.

Conforme Coudry e Possenti (1983), para a Neurolinguística Discursiva,a

doravante ND, a noção de linguagem tem caráter discursivo, mais adequado ao

estudo da patologia, pois tem como principal objetivo tornar visíveis tanto as

alterações que o indivíduo apresenta e as tentativas de superá-las, quanto os

processos alternativos de significação de que se serve para enfrentar as

dificuldades linguísticas às quais é exposto. A ND apoia-se em uma concepção

sócio-histórico-cultural tanto de cérebro quanto de linguagem, considerando o

sujeito e as marcas de sua subjetividade.

Coudry e Morato (1990) ampliam a visão acerca da ND, apoiando-se em

autores como Vygotsky (1987) e Pêcheux (1990). Dessa forma, enfatizam que

o interesse da neurolinguística discursiva é a produção de sentido, estudando,

em específico, a relação do discurso e da cognição de modo dinâmico,

histórico e integrado. Conforme Coudry (1988), a neurolinguística propõe uma

prática que avalia o sujeito de forma longitudinal, ou seja, por um período

maior, no dia a dia e nas suas relações com o meio social, em diversas

sessões em que há o uso efetivo da língua.

Agora, adentrando aos estudos acerca da apraxia de fala,é válidosalientar que

no que concerne a questão de distúrbios apresentados no processo de

aquisição da linguagem, existem diversas terminologias que são

constantemente utilizadas, na literatura, como sinônimos, quais sejam: apraxia

de fala desenvolvimental (Developmental Apraxia of Speech – DAS), dispraxia

verbal desenvolvimental(Developmental Verbal Apraxia – DVD) e apraxia da

fala na infância (Childhood Apraxia of Speech – CAS). Neste trabalho,

utilizaremos, em específico, o termo apraxia de fala infantil, adotada pela

American SpeechLanguage-HearingAssociation(ASHA), no ano de 2007. A

apraxia foi descrita pela primeira vez por Darley, no ano de 1969, no encontro

da American Speech andHearingAssociation (ASHA).

A apraxia da fala é definida, na literatura, como um transtorno da articulação no

qual há comprometimento da capacidade de programar e executar de forma

voluntária os sons da fala. Assim sendo, em um quadro de apraxia, o

movimento de fala pode ser realizado automaticamente, mas não

voluntariamente. Segundo Carrara (2016), a apraxia de fala não é uma doença,

mas, sim, um rótulo descritivo que ao ser diagnosticado deve ser incorporado

como objetivo terapêutico numa ação conjunta, ou seja, entre pais, terapeutas

e filhos. A fonoaudióloga e estudiosa da área da apraxia de fala, afirma, ainda,

que é importante que especialistas e familiares abram os olhos acerca da

apraxia de fala em crianças com síndrome de Down.

A apraxia passou a ser observada em crianças com síndrome de Down

recentemente. Logo, quando ela foi estabelecida, alguns critérios de “inclusão”

foram levados em consideração, ou seja, seriam diagnosticadas as apraxias

com inteligência “normal”, com ausência de perda auditiva e com ausência de

fraqueza muscular ou paralisia. Assim sendo, as crianças com SD foram

excluídas desse quadro classificatório devido às características que são

próprias da síndrome, tais como déficit cognitivo, hipotonia e dificuldades no

processo de aquisição e produção da linguagem. Felizmente, isso foi revisto e,

atualmente, já há pesquisas em que são observadas crianças com síndrome de

Down e apraxia de fala.

Conforme afirma Green e Moore (2000), o desenvolvimento motor de fala da

criança ocorre por etapas e respeitando o processo de maturação. Os

movimentos de lábios, língua e mandíbula sofrem mutações durante os

primeiros anos de vida, passando por refinamentos. É válido ressaltar, ainda,

que o controle motor dos movimentos mandibulares é anterior ao dos lábios e

esse processo de desenvolvimento e refinamento do controle motor oral é de

suma importância para que a criança adquira os sons da fala. Quando isso não

ocorre, a produção da fala fica prejudicada, podendo caracterizar-se como

apraxia.

Shriberg (1997) descreveu seis estágios que envolvem o processamento

linguístico que ocorrem em três domínios básicos, tais como: Input,

Organização e Output. Esses estágios ilustram as possíveis localizações dos

déficits de produção de fala em crianças diagnosticadas com apraxia. Nos

processos de input estão incluídos estágios de processamento auditivo-

temporal e de memória-perceptual necessários para a aquisição fonológica de

uma língua; os processos de organização incluem um estágio representacional,

que reflete os primeiros segmentos e suprassegmentos de formas subjacentes.

Já nos processos de output estão incluídos dois níveis: um para que haja a

seleção-recuperação dos elementos fonológicos e outro para sequenciamento

pré-articulatório.

Quanto ao planejamento cognitivo-linguístico, podemos encontrar um ou mais

de um estágio de processamentos relacionados ao input e à organização. Já

na programação motora dos sons da fala, há maior envolvimento do estágio

mais baixo do output, o de sequenciamento pré-articulatório, assim como da

execução articulatória. Shriberg (1997) afirma, ainda, que os diferentes

estágios de processamento e suas correlações ilustram a diversidade de

possibilidades quanto à origem da apraxia de fala na infância.

Conforme assinala Kumin (2006), a apraxia de fala infantil (AFI) é um rótulo

definido por um conjunto de sintomas clínicos. A autora afirma que algunsdos

sintomas que tipicamente se desenvolvem na AFI são: inconsistência na

produção dos sons da fala; um repertório limitado de fonemas; maior

dificuldade na imitação e em falas espontâneas; dificuldade na combinação e

sequenciamento de fonemas; troca de fonemas e sílabas; dificuldades em

ritmos de fala, entre outros. Clinicamente, algumas crianças com síndrome de

Down demonstram dificuldades com habilidade motora oral, sendo que

algumas apresentam dificuldades no planejamento motor oral e outras exibem

sintomas de ambos.

É de suma importância lembrar que muitas vezes, os pais de crianças SD por

acreditarem que a apraxia é uma doença e pela falta de conhecimento,

assumem que é normal que os seus filhos tardem a linguagem e defendem o

respeito ao tempo da criança. Contudo, isso pode acarretar diversos problemas

para o desenvolvimento pessoal e social dessas crianças. Portanto, chamamos

atenção, aqui, para o diagnóstico precoce, pois o quanto antes houver a

intervenção e a parceria de pais e especialistas na terapia intensiva, melhor e

de forma mais rápida será o desenvolvimento das crianças SD com apraxia de

fala.

A SD na literatura

É possível vermos, na literatura, que as crianças com síndrome de Down, até o

início da década de 90, eram denominadas, no social, como “mongoloides” e,

consequentemente, como pessoas de baixas expectativas, incapazes de

desenvolverem-se linguisticamente e com prognósticos imutáveis e negativos

de auto realização. Assim, essas crianças eram segregadas do convívio social

e estereotipadas como “incompetentes”. Apesar de a SD ser muito descrita

pela literatura, a aquisição e desenvolvimento da linguagem em crianças com

síndrome de Down são marcados por muitos equívocos e mal entendidos. É

importante lembrarmos que esses equívocos são devido a falta de

conhecimento tanto por parte dos profissionais quanto por parte dos familiares.

Dessa forma, o que vemos constantemente são pré-julgamentos e, ainda,

interpretações errôneas por levarem em consideração sempre o que é da

condição orgânica. Para Canguilherm (1994), não há distúrbio em si, o anormal

só pode ser apreciado em uma relação. O autor assinala que:

“a fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para

indivíduos considerados simultaneamente, mas perfeitamente

precisa para um único e mesmo indivíduo considerado

sucessivamente.” (CANGUILHERM, 1994).

Assim sendo, a síndrome de Down deve ser vista sob uma ótica que a

considere como uma condição. Afinal, já é possível vermos que, na atualidade,

sujeitos com SD entram nas universidades, são contratados para exercerem

cargos que exigem muita responsabilidade no mercado de trabalho, tais como

gerentes, professores, administradores de empresas, etc. E, além disso, esses

sujeitos apaixonam-se, casam-se, constroem famílias e levam uma vida plena,

independente e feliz. Dessa forma, como levar em consideração somente o que

é da condição orgânica e estereotipá-los com rótulos injustos e errôneos? É

preciso ir além e não olhar o sujeito SD sob uma ótica que o categoriza e

enfatiza só os aspectos biológicos, mas, sim, sob uma ótica que observe as

condições sociais e humanas desse sujeito, acreditando, sim, que eles são

capazes de desenvolverem-se como qualquer outro ser humano.

Dessa forma, acreditamos que saber lidar com o que é da ordem do biológico

nas crianças com SD é ter consciência de quepromover métodos e exercícios

de intervenção precoces, no processo de ensino-aprendizagem, estabelecer

relações de afetividade e motivá-los no alcance de seus objetivos é contribuir,

significativamente, para que a formação dessas crianças enquanto sujeitos

sociais seja profícua e possível. Afinal, é importante lembrarmos que já foi

comprovado que a síndrome de Down não é o que faz com que essas crianças

não se desenvolvam enquanto sujeitos com uma vida plena e saudável, mas as

condições que a sociedade os impõe e a ótica preconceituosa do Outro.

É importante salientarmos que para a realização deste trabalho e das análises,

foi imprescindível o estudo acerca dos processos fonológicos do português

brasileiro, a fim de conhecermos detalhadamente como se dá a aquisição

fonológica em crianças. Para tanto, tomamos de empréstimo os postulados

teóricos da área da Fonologia, em específico, os estudos deLamprecht (2004)

que assinala:

“A construção do sistema fonológico dá-se, em linhas gerais,

de maneira muito semelhante para todas as crianças, e em

etapas que podem ser consideradas iguais. Mas, ao mesmo

tempo, verifica-se a existência de variações individuais entre

elas, constatando-se, inclusive, que a possibilidade e a

abrangência dessas variações é bastante ampla.”

(LAMPRECHT, 2004, p.25).

Segundo Lamprecht (2004), a aquisição da linguagem é uma tarefa de muita

complexidade em virtude da natureza das línguas naturais. Assim sendo, toda

língua é um sistema constituído por diferentes unidades, tais como: fonemas,

sílabas, morfemas, palavras e frases, cujo funcionamento é regido por regras

e/ou restrições. Com base nos estudos fonológicos, nos preocupamos, em

específico, fazer as nossas análises, levando em consideração o processo da

aquisição dos segmentos fonológicos, tais como os vocálicos e consonantais.

Apesar de só ter sido observada recentemente em crianças com síndrome de

Down, a apraxia de fala infantil é uma questão linguística que vem sendo cada

vez mais investigada nessas crianças, sob uma ótica que visa o diagnóstico e

tratamento precoces, afastando-se do estigma da patologização. Levando-se

isto em consideração, o principal objetivo do nosso trabalho é analisar,

caracterizar e discutir osdados linguísticos da fala de uma criança com SD e

apraxia de fala a fim de propor uma intervenção focada nas principais

dificuldades dessa criança e, assim, proporcioná-la uma melhoria na produção

da linguagem oral e, consequentemente, sua autonomia nas produções

linguísticas.

Metodologia:

O corpus desta pesquisa é composto por dados coletados em atendimentos às

crianças com SD, no Laboratório de Pesquisa em Neurolinguístia (UESB).

Esses dados linguísticos foram coletados em atendimentos realizados com

uma criança de seis anos de idade com síndrome de Down e que foi

diagnosticado com apraxia de fala aos quatro anos de idade. Aqui, iremos fazer

referência a esta criança, utilizando a sigla “IZ4”. Schwartzman (1999) assinala

que:

4 Denominação dada à criança que forneceu os dados linguísticos para a nossa pesquisa.

“o dizer está em nossas palavras, em nossa expressão facial,

nos nossos gestos corporais, no nosso olhar, na roupa que

estamos vestindo, no nosso sorriso, no nosso choro, etc.

Estamos inseridos na linguagem desde que nascemos, e

continuamos nela pelo resto de nossas vidas. Para uma

criança com síndrome de Down (SD), “dizer” é tão urgente e

essencial como para qualquer um de nós.” (SCHWARTZMAN,

1999).

Como subsídio para este trabalho, tomamos de empréstimos os postulados da

Neurolinguística Discursiva que propõe uma prática de avaliar o sujeito de

forma longitudinal, ou seja, por um período maior e nas suas relações com o

meio social. Dessa forma, a criança que nos forneceu os dados linguísticos

analisados, foi observada de forma constante, em diversas sessões interativas

em que houve o uso efetivo da língua(gem). Essas sessões foram realizadas

no Laboratório de Pesquisa em Neurolinguístia (LAPEN/UESB), onde são

realizados atendimentos, em grupos e individuais, de crianças com síndrome

de Down, a fim de trabalharmos, em específico, o processo de aquisição da

linguagem. Nestas sessões, fazemos o uso de histórias infantis, alfabetos

móveis, bichinhos de pelúcia, brinquedos diversos (animais, bolas, letrinhas,

entre outros), a fim de proporcionarmos um ambiente educativo e divertido que

facilite o processo de aprendizagem nas crianças SD.

Para a realização desta pesquisa, fizemos, ainda, diversas avaliações

utilizando brinquedos com formas de bichinhos, canções infantis e figuras

relacionadas a palavras de forma contextualizada. Começamos a avaliação

solicitando exercícios de repetição de palavras com, especificamente, a

estrutura silábica CV(C), tais como /'pato/,/'dá/, /'piupiu/, /'kazɐ/, /ja'nela/, /'pula/,

/'pepa/, /'porco/, /'bola/, entre outras. Por meio destes exercícios, observamos a

dificuldade que a criança sentia em organizar, sequenciar e produzir algumas

palavras mesmo que essas estivessem relacionadas a imagens.Para a coleta

de dados, fizemos: i) sessões de atendimentos que duravam cerca de 50

minutos, duas vezes por semana, no Laboratório de Pesquisa em

Neurolinguística (LAPEN), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

(UESB);ii) observações contínuas e anotações dos dados linguísticos emitidos

por IZ; e iii) observações acerca dos relatos que os pais estavam fazendo a

respeito do desenvolvimento motor oral de IZ.

Resultados:

Os dados linguísticos analisados nos fez observar que IZ apresenta limitações

significativas com habilidades motora oral, inconsistência na produção dos

sons da fala; um repertório limitado de fonemas; dificuldade na imitação e em

falas espontâneas; dificuldade na combinação e sequenciamento de fonemas;

troca de fonemas e sílabas e dificuldades em produção de fala que perduram,

atualmente, já em uma idade tardia, ou seja, aos seis anos de idade, mesmo

para uma criança com SD. IZ apresenta um repertório limitado de segmentos

consonantais, não conseguindo fazer a combinação dos segmentos

consonantais e vocálicos na produção de palavras. A criança sabe o que quer

dizer, tem a linguagem internalizada, mas não consegue compreender os

modos e lugares de articulação dos segmentos consonantais, fazendo, assim,

o uso da prosódia como um processo alternativo de significação para

comunicar-se.Podemos observar o que foi dito anteriormente nos seguintes

dados em que a criança fez:

Palavras solicitadas

pelo pesquisador:

Produções da

criança:

/'pato/ ['a:o]

/'dá/ ['a:ɐ]

/'piupiu/ ['i:u]

/'kazɐ/ ['a:a]

/ja'nela/ ['ɛ:ɐ]

/'pula/ ['u:ɐ]

/'pepa/ ['ɛa]

/'porco/ ['o:ʊ]

/'auau/ ['auaʊ]

/'bola/ ['bɔɐ]

Levando em consideração os dados apresentados, salientamos que,

atualmente, já está sendo feito um trabalho direcionado, especificamente, para

as dificuldades de ponto e modo, apresentadas por IZ. Com esta terapia

focada, a criança vem apresentando resultados significativos na produção das

sílabas /'pa/, /'pe/, /'pi/, mas ainda não consegue articular tais sílabas em

palavras; o que consideramos que será possível com a continuidade da terapia.

Conclusões:

As análises mostraram que IZ apresenta dificuldades para programar,

coordenar, organizar, sequenciar e produzir de forma aleatória os sons da fala,

combinando-os de forma desordenada em sílabas, palavras, apresentando

também dificuldades em conversações.Observamos, ainda, que IZapresenta

um repertório limitado de segmentos consonantais, problemas na compreensão

dos modos e lugares de articulação, nasequencialização e na seleção

adequada dos fonemas, já em uma idade tardia, mesmo para uma criança com

síndrome de Down. Portanto, essas análises revelam que é imprescindível uma

terapia linguística e fonoaudiológica focada nas principais dificuldades de IZ.

Ressaltamos que essa terapia já vem sendo realizada e, pouco a pouco, a

criança vem apresentando umdesenvolvimento significativo em suas

produções. Contudo, para que este desenvolvimento seja cada vez mais

profícuo eque IZ tenha um desenvolvimento eficaz na produção da linguagem,

é imprescindível uma ação conjunta, ou seja, uma ação que envolva a

motivação, a persistência e a colaboração tantodos especialistas quantodos

familiares.É de suma importância, ainda, que haja intervenção fonoaudiológica

a fim de contribuir para que a criança consiga desenvolver o controle voluntário

para programar e posicionar os órgãos fonoarticulatórios; e linguística no que

concerne a compreensão e execução dos processos linguísticos necessários

para a produção da fala. É válido ressaltar que o tratamento da apraxia requer

paciência e dedicação, pois o processo é lento, envolvendo exercícios

repetitivos, intensivos; e o quanto antes o diagnóstico for feito, mais cedo e

profícuo será o tratamento da apraxia.

Referências:

Apraxia na infância e Síndrome de Down. Entrevista com Elisabete Carrara. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ruKfBpsT-uY. Acesso em: agosto de 2016. CANGUILHEM, G. (1994 [2007]). O normal e o patológico. 6º ed. Rio de Janeiro: Fonte Universitária.

COUDRY, M.I.H.: POSSENTI, S. Avaliar discursos patológicos. In:

CadernosdeestudosLinguísticos. Campinas, n.5, p.99--‐109, 1983. COUDRY, M.I.H. Diário de Narciso: Discurso e Afasia. Análises das interlocuções com afásicos. 1986. Tese(Doutorado em Linguistica)--- Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1986. GHIRELLO-PIRES, C.S.A; LABIGALINI, A. P. V. Síndrome de Down: funcionamento da linguagem. In: Maria Irma HadlerCoudry, Fernanda Maria Freire, Mara Lúcia Fabrício de Andrade, Michelli Alessandra Silva. (Org.). Caminhos da Neurolinguística discursiva: teorização e práticas com a linguagem. 1ed.Campinas: Mercado de Letras, 2011, v. 1, p. 357-376. GHIRELLO- PIRES, C.S.A. Especificidades no acompanhamento inicial de linguagem em crianças com síndrome de Down: uma abordagem histórico-cultural. In: Carla SlatiAlneidaGhirello-Pires. (Org.). Síndrome de Down: perspectivas atuais.000ed.Vitoria da Conquista (BA): Editora UESB, 2015, v. 000, p. 1-17. GREEN, J.R.; MOORE, C.A.; HIGASHIKAWA, M. The Physiologic Development of Speech Motor Control: Lip and Jaw Coordination. Journal of speech, language, and hearing research: JSLHR, v. 43, p. 239-55, 2000. KUMIN. L. Speech intelligibility and childhood verbal apraxia in children

with Down syndrome. DownsSyndr Res Pract. 2006;10(1):10-22.

LAMPRECHT, Regina Ritter. (Org.). Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: ARTMED, 2004. SCHWARTZMAN, José Salomão. Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie:Memnon, 1999.