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EJA

ENSINO MÉDIO

Filosofia

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Módulo I - 1º ano MÓDULO FILOSOFIA - Ensino Médio

ÍNDICE

A CIÊNCIA

OS MITOS DA CIÊNCIA

A CIÊNCIA - A ATITUDE CIENTÍFICA

O IDEAL CIENTÍFICO E A RAZÃO INSTRUMENTAL

O QUE É O CONHECIMENTO

SUJEITO E OBJETIVO DO CONHECIMENTO

O CONHECIMENTO E A PREOCUPAÇÃO COM O CONHECIMENTO

DO CAPITALISMO À SOCIEDADE DO CONHECIMENTO

A CONCSCIÊNCIA PODE CONHECER TUDO?

A LINGUAGEM

O PENSAMENTO MÍTICO

O QUE É FILOSOFIA

A TÉCNICA

O NOVO PARADIGMA

ÉTICA

TECNOLOGIA E SOCIEDADE

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A CIÊNCIA O Que é Ciência

A Ciência é a investigação dos conhecimentos fundados sobre princípios certos. O carbúnculo, doença provocada por bactéria infecciosa, prejudicava aos criadores de gado, e em 1881, o

francês Louis Pasteur se ocupou com o assunto levantando a hipótese de que os animais poderiam ser imunizados caso fossem vacinados com bactérias enfraquecidas de carbúnculo. Separou então sessenta ovelhas em dez e não aplicou nenhum tratamento; vacinou duas vezes as outras 25, e após alguns dias lhes aplicou uma cultura contaminada por carbúnculo; não vacinou as 25 restantes, mas inoculou a cultura contaminada. Depois de algum tempo, verificou que as 25 ovelhas não vacinadas morreram, as 25 vacinadas sobreviveram e, comparadas com as dez que não tinham sido submetidas a nenhum tratamento, ficou constatado que a vacina não lhes prejudicara a saúde.

O Método Científico

O exemplo clássico de procedimento científico das ciências experimentais acima referido nos mostra o seguinte: inicialmente, há um problema que desafia a inteligência humana; o cientista elabora uma hipótese e estabelece as condições para seu controle, a fim de confirmar ou não. Mas nem sempre a conclusão é imediata, como no caso citado, havendo a necessidade de repetir as experiências, ou alterar várias vezes às hipóteses. A conclusão é considerada válida não só para aquela situação, mas para outras similares. Além disso, quase nunca se trata de um trabalho solitário do cientista, pois, hoje em dia, cada vez mais as pesquisas são objeto de atenção de grupos especializados ligados às universidades, às empresas ou ao Estado. De qualquer forma, a objetividade da ciência resulta do julgamento feito pelos membros da comunidade científica que avaliam criticamente os procedimentos utilizados e as conclusões, divulgadas em revistas especializadas e congressos.

Questões Sobre o Método

Em tese, o método experimental se caracteriza pelas seguintes etapas: observação, hipótese, experimentação, generalização (lei e teoria). Mas, na prática, o processo não se realiza necessariamente nesta ordem, podendo variar conforme as circunstâncias. Alguns pensadores chegam até a afirmar que os cientistas não seguem propriamente normas metodológicas, por não serem elas de fato verdadeiros instrumentos de descoberta. Mesmo não levando em conta tal posição extrema, é preciso realçar alguns aspectos sujeitos a discussão. Por isso vamos analisar cada etapa. Método vem de meta, “ao longo de”, e hodós, “via, caminho”. É o percurso que se segue na investigação da

verdade, a fim de se alcançar um fim determinado. Na ciência, o método consiste na estrutura racional que permite a formulação e verificação das hipóteses.

Observação e Hipótese

Não é adequado pensar que a ciência começa seu trabalho pela observação dos fatos, só realizando a seleção de dados em fase posterior. Pois são tantos os fatos, que devemos selecionar os mais relevantes.

Como considerar a relevância de um fato, a não ser que já tenhamos algumas hipóteses preliminares que orientem nosso olhar? Por exemplo, ao investigar as prováveis causas da Aids.

O que deve o pesquisador observar? Evidentemente ele já deve ter de antemão critérios que o auxiliem nessa busca, caso contrário a pesquisa será cega, sem objetivo e destinada ao fracasso.

Portanto, observação e hipótese se acham sempre relacionadas de maneira recíproca. Se de início a hipótese orienta a seleção dos fatos, em outro momento mais avançado da pesquisa orienta a seleção dos fatos, em outro momento mais avançado da pesquisa, já tendo sido feito o levantamento dos dados, ela tem o papel de reorganizar os fatos, dando-lhes uma interpretação provisória como proposta antecipada de solução do problema.

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Há muita lenda em torno de qual seria a fonte da hipótese. As pessoas tendem a fantasiar a respeito do ato criador, e imaginam o “cientista genial” fazendo descobertas espetaculares com um passe de mágica. É bem verdade que a formulação aproxima o cientista do artista, pois existe intuição e “iluminação súbita” (insight) nas descobertas científicas. Mas não convém exagerar este aspecto, pois sem dúvida ele é precedido por longo trabalho e rigorosa elaboração conceitual, sem o que os “clarões” talvez nem ocorressem ou se dispersassem no vazio. Além disso, para ser científica, a hipótese precisa ser verificada e confirmada pelos fatos e validada pela comunidade intelectual.

A Confirmação da Hipótese

A verificação da hipótese pode ser feita de inúmeras maneiras, dependendo das técnicas disponíveis e também do tipo de ciência. Por exemplo, em astronomia, a confirmação só pode ser feita mediante nova observação dirigida pela hipótese. Também são específicas as formas de verificação de hipóteses referentes à evolução das espécies, à origem do universo ou a um determinado período da história humana.

Algumas ciências têm condições de controle mais rigoroso por meio da experimentação. Diferentemente da observação, feita nas condições apresentadas naturalmente, a experimentação é a verificação dos fenômenos em condições determinadas pelo experimentador (como no exemplo dado na abertura do capítulo).

A importância da experimentação é que ela se faz em condições privilegiadas, permitindo a repetição, variação das condições de experiências e simplificação dos fenômenos, o que torna o controle da investigação mais rigoroso.

A possibilidade de mensuração e a utilização de instrumentos dão maior precisão à ciência, pois permitem transformar as qualidades em quantidades. Por exemplo, o som é medido em decibéis, a temperatura é verificada na coluna de mercúrio, o peso é indicado pelo movimento da agulha na balança, o que supera as avaliações puramente subjetivas e imprecisas.

Existe, portanto uma reciprocidade entre técnica e ciência, pois, se a técnica é condição de aperfeiçoamento da ciência, por sua vez o desenvolvimento científico tem provocado rápida evolução da tecnologia: se os estudos de ótica permitem melhorar os microscópios e telescópios, outros mundos se abrem diante do olhar humano por meio de instrumentos cada vez mais precisos.

No entanto, a possibilidade de utilização da matemática e da técnica varia conforme as ciências. A física é altamente “matematizável”, o que não acontece com as ciências humanas. Embora possam, em algumas circunstâncias, recorrer às estatísticas, é preciso reconhecer que nem sempre isso é possível (voltaremos ao assunto mais adiante).

Generalização

Se a hipótese não for confirmada pela experimentação, o trabalho deve ser recomeçado. Mas, caso o resultado seja positivo, é possível fazer generalizações ou formular leis pelas quais são descritas as regularidades dos fenômenos.

A grande força do método científico reside na possibilidade de descoberta das relações constantes e necessárias entre os fenômenos, o que permite a previsibilidade e, portanto o controle sobre a natureza.

As leis podem ser de dois tipos: generalizações empíricas e leis teóricas. As generalizações empíricas, ou leis particulares resultam da observação de casos particulares. Por

exemplo, “o calor dilata os corpos”, “o fígado tem função glicogênica”, a lei da queda dos corpos, a lei dos gases etc..

As leis teóricas ou teorias propriamente ditas são leis gerais e abrangentes que reúnem as diversas leis particulares sob uma perspectiva mais ampla. É o caso da gravitação universal de Newton, que engloba as leis planetárias de Kepler e a lei da queda dos corpos de Galileu. A teoria da relatividade de Einstein e a teoria

evolucionista de Darwin e a lei da queda dos corpos de Galileu. A teoria da relatividade de Einstein e a teoria evolucionista de Darwin são outros exemplos.

Apesar do rigor do método, não é conveniente pensar que a ciência é um conhecimento certo e definitivo, pois ela avança em contínuo processo de investigação que supõe alterações e ampliações necessárias à medida que surgem fatos novos, ou quando são inventados novos instrumentos.

Por exemplo, nos séculos XVIII e XIX, as leis de Newton foram reformuladas por diversos matemáticos que desenvolveram técnicas para aplicá-las de maneira mais precisa. No século XX, a teoria da relatividade de Einstein desmentiu a concepção clássica de que a luz se propaga em linha reta. A hipótese de que os raios

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luminosos que passam próximo do Sol sofreriam um desvio foi confirmada por observações durante o eclipse solar de 1919.

Isso serve para mostrar o caráter provisório do conhecimento científico, sem, no entanto desmerecer a seriedade e o rigor do método e dos resultados. Ou seja, as leis e as teorias continuam sendo de fato hipóteses com diversos graus de confirmação e verificação, podendo ser aperfeiçoadas ou superadas.

LEITURA COMPLEMENTAR

[Por que o homem quer conhecer?]

O homem não se dispõe a conhecer o mundo porque o percebe como um enigma que lhe daria “gosto” resolver. Explicações que apelam para a “vontade de decifração de um mistério”, de espanto em face das “maravilhas” da realidade (Platão), de “vontade de poder” (Nietzsche) são inteiramente ingênuas, situam-se fora de qualquer base objetiva. A simples e prosaica afirmativa de Aristóteles, no preâmbulo da Metafísica, ao dizer que o homem é um animal naturalmente desejoso de conhecer, tem a superioridade de concordar com a situação de fato, embora falte explicar-nos por que isto acontece. A proposição aristotélica não funda a epistemologia da pesquisa científica porque serve apenas para reconhecer o fato inicial, não oferecendo a explicação dele, que deveria ser o verdadeiro ponto de par- tida de todas as cogitações subsequentes. Tal ponto de partida nós o encontramos, se não estamos equivocados, na teoria dialética da existência, ao considerar o homem não um ser (no sentido aristotélico), um animal datado de atributos invariáveis, mas um existente em processo de fazer-se a si mesmo, o que consegue pelo enfrentamento das obstruções que o meio natural lhe opõe e pela vitória sobre elas, graças ao descobrimento das forças que o hostilizam e dos modos de empregar umas para anular o efeito de outras, que o molestam, o destroem ou impedem de realizar os seus propósitos. O homem não conhece, não investiga a natureza para satisfazer um desejo imotivado, mas para se realizar na condição de ente humano.

PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência. Rio de Janeiro, Paz e terra,

1969. P. 426-427 Histórico da Ciência

O conhecimento científico é uma conquista relativamente recente da humanidade. A Revolução Científica do século XVII marca a autonomia da ciência, a partir do momento que ela busca seu próprio método, desligado da reflexão filosófica. Para melhor entender o que significa essa revolução, vamos analisar o conceito de ciência existente antes da Idade Moderna.

A Ciência Grega

Dentre as civilizações antigas, os gregos foram os primeiros a desenvolver um tipo de conhecimento racional mais desligado do mito. O pensamento laico, não religioso, logo se torna rigoroso e conceitual, fazendo nascer a filosofia no século VI a.C.

Nas colônias gregas da Jônia de Magna Grécia, surgiram os primeiros filósofos (conhecidos como pré-socráticos), e sua principal preocupação era a cosmologia, ou estudo da natureza. Buscavam o princípio explicativo de todas as coisas, cuja unidade resumiria a extrema multiplicidade da natureza. As respostas eram as mais variadas, mas a teoria que permaneceu por mais tempo foi a de Empédocles, para quem o mundo físico é constituído de quatro elementos: terra, água, ar e fogo.

Muitos desses filósofos tais como Tales e Pitágoras no século VI a.C. e Euclides no século III a.C., ocupavam-se com a astronomia e geometria, mas, diferentemente dos egípcios e babilônios, desligavam-se das preocupações religiosas e práticas, voltando-se para questões mais teóricas.

Alguns princípios fundamentais da mecânica foram estabelecidos por Arquimedes nos século III a.C., visto por Galileu como o único cientista grego no sentido moderno da palavra devido à utilização de medidas e

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enunciação do resultado sob a forma de lei geral. Mas Arquimedes constitui exceção, já que a ciência grega era mais voltada para especulação racional e desligada da técnica e das preocupações práticas.

O auge do pensamento grego se deu nos séculos V e VI a.C., período em que viveram Sócrates, Platão e Aristóteles.

Platão opõe de maneira vigorosa os sentidos e a razão, e considera que os primeiros levam à oposição (doxa), forma imprecisa, subjetiva e mutável de conhecer. Por isso é preciso buscar a ciência (epistéme), que consiste no conhecimento racional das essências, das ideias imutáveis, objetivas e universais. As ciências como a matemática, a geometria são passos necessários a serem percorridos pelo pensador, até atingir as culminâncias da reflexão filosófica.

Aristóteles atenua o idealismo platônico, e seu olhar é sem dúvida mais realista, não desvalorizando tanto os sentidos. Filho de médico, herdou o gosto pela observação e deu grande contribuição à biologia. Mas, como todo grego, Aristóteles também procura apenas conhecer por conhecer, estando suas reflexões desligadas da técnica e das preocupações utilitárias. Além disso, persiste a concepção estática do mundo, pela qual os gregos costumam a associar a perfeição ao repouso, à ausência de movimento.

A Astronomia

Embora Aristarco de Samos tenha proposto um modelo heliocêntrico, a tradição que recebemos dos gregos a partir de Eudoxo, confirmada por Aristóteles e mais tarde por Ptolomeu, baseia-se no modelo geocêntrico: a Terra se acha imóvel no centro do universo e em torno dela giram as esferas onde estão “cravadas” a Lua, os cinco planetas, o Sol. Na última esfera, as estrelas fixas fecham o mundo finito e esférico. Deus, enquanto Primeiro Motor Imóvel, é uma hipótese necessária para explicar o movimento imprimido à esfera das estrelas fixas, que por sua vez transmite por atrito o movimento às esferas contíguas.

Outra característica marcante dessa astronomia é a hierarquização do cosmos, ou seja, o universo se acha dividido em dois mundos, sendo que um é considerado superior ao outro:

# O mundo sublunar, considerado inferior, corresponde à região da Terra que, embora imóvel ela mesma, é local dos corpos perecíveis, corruptíveis, porque se encontram em constante movimento (lembrar que, para eles, o movimento é imperfeição). Todas as coisas na Terra são constituídas pelos quatro elementos. # O mundo supralunar, de natureza superior, corresponde aos “Céus”: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, arte, Júpiter, Saturno e as estrelas fixas. São corpos constituídos por uma substância desconhecida, os éteres (a quinta-essência), que faz com que os astros sejam incorruptíveis, perfeitos, inalteráveis. Mesmo o movimento das esferas é circular, característica do movimento perfeito.

A Física

Para Aristóteles, a física é a parte da filosofia que busca compreender a essência das coisas naturais constituídas pelos quatro elementos e que se encontram em constante movimento retilíneo em direção ao centro da Terra ou em sentido contrário a ele. Isto porque os corpos pesados (graves) como a terra e a água tendem para baixo (para o centro), pois este é o seu “lugar natural”. Já os corpos leves como o ar e o fogo tendem para cima. O movimento é então compreendido como a transição do corpo que busca o estado de repouso, no seu lugar natural. A física aristotélica parte, portanto, das definições das essências e da análise das qualidades intrínsecas dos

corpos (por exemplo, a gravidade é considerada uma “qualidade” dos corpos pesados).

CONCLUSÃO A partir deste breve esboço, podemos conferir à ciência grega as seguintes características: # Encontra-se ligada à filosofia, cujo método orienta o tipo de abordagem dos problemas; # É qualitativa, porque a argumentação se baseia na análise das propriedades intrínsecas dos corpos; # Não é experimental, e se acha desligada da técnica; # É contemplativa, porque busca o saber pelo saber, e não a aplicação prática do conheci- mento; e # Baseia-se em uma concepção estática do mundo. É possível compreender a concepção grega de ciência ao examinarmos a maneira pela qual os indivíduos se

relacionavam para produzir sua existência. Na sociedade grega escravista o trabalho manual era desvalorizado (por ser ocupação de escravos), e, portanto era depreciada qualquer atividade técnica. Em contrapartida, era

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valorizada a atividade intelectual, digna dos homens “superiores” que não precisam se ocupar com os afazeres do dia-a-dia.

A Ciência Medieval

A Idade Média, período compreendido do século V até o século XV, recebe a herança Greco latina e mantém a mesma concepção de ciência. Apesar das diferenças evidentes, é possível compreender essa continuidade, devido ao fato de o sistema de servidão também se caracterizar pelo desprezo à técnica e a qualquer atividade manual.

Fora algumas exceções como as experimentações de Roger Bacon e a fecunda contribuição dos árabes, a ciência herdada da tradição grega se vincula aos interesses religiosos e se subordina aos critérios da revelação, pois na Idade Média, a razão humana devia se submeter ao testemunho da fé.

A partir do século XIV, a Escolástica principal escola filosófica e teológica medieval entra em decadência. Esse período foi muito prejudicial ao desenvolvimento da ciência porque novas ideias fermentavam nas cidades, mas os guardiões da velha ordem resistiam às mudanças de forma dogmática (presos às suas verdades como se fossem dogmas). Esterilizados pelo princípio da autoridade, aferravam-se às verdades dos “velhos livros”, fossem eles a Bíblia, Aristóteles ou Ptolomeu.

Tais resistências não se restringiam apenas ao campo intelectual, mas resultavam muitas vezes em processos e perseguições. O Santo ofício, ou Inquisição, ao controlar toda produção, fazia a censura prévia das ideias que podiam ser divulgadas ou não. Giordano Bruno foi queimado vivo no século XVI porque sua teoria do cosmos infinito era considerada panteísta, uma vez que a infinitude era atributo exclusivo de Deus.

A Revolução Científica

O método científico como nós conhecemos hoje, surge na idade Moderna, no século XVII. O Renascimento Científico não constitui uma simples evolução do pensamento científico, mas verdadeira ruptura que supõe nova concepção de saber.

É preciso examinar o contexto histórico onde ocorreram transformações tão radicais, a fim de perceber que elas não se desligam de outros acontecimentos igualmente marcantes: emergência da nova classe dos burgueses, desenvolvimento da economia capitalista, Revolução Comercial, Renascimento das artes, das letras e da filosofia. Tudo isso indica o surgimento de um novo homem, confiante na razão e no poder de transformar o mundo.

Os novos tempos são marcados pelo racionalismo, que se caracteriza pela valorização pela valorização da razão enquanto instrumento de conhecimento que dispensa o critério da autoridade e o da revelação. Chamamos de secularização ou laicização do pensamento a preocupação em se desligar as justificativas feitas pela religião, que exigem adesão pela crença, para só aceitar as verdades resultantes da investigação da razão diante da demonstração. Daí a intensa preocupação com o método, ponto de partida para a reflexão de inúmeros pensadores do século XVII: Descartes, Spinoza, Francis Bacon, Galileu, entre outros.

Outra característica dos novos tempos é o saber ativo, em oposição ao saber contemplativo. Não só o saber visa a transformação da realidade, como também passa ele próprio a ser adquirido pela experiência, como veremos, devido à aliança entre a ciência e a técnica.

Uma explicação possível para justificar a mudança é que a classe comerciante, constituída pelos burgueses, se impôs pela valorização do trabalho, em oposição ao ócio da aristocracia. Além disso, os inventos e descobertas tornam-se necessários para o desenvolvimento do comércio e da indústria. Basta lembrar a importância da bússola, do aperfeiçoamento dos navios, da máquina a vapor etc.

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Duas Novas Ciências Em oposição ao modelo geocêntrico da astronomia de Ptolomeu, Copérnico, no século XVI, propôs o

modelo da teoria heliocêntrica. Mas sua hipótese não causou tanto impacto quanto a divulgação feita por Galileu no século seguinte, a ponto de as autoridades eclesiásticas o obrigarem a retratar-se sob pena de ser condenado à morte.

É bom lembrar que as reações contra Galileu partiam dos adeptos da Escolástica decadente e refletiam de maneira geral o temor daqueles que pertenciam à antiga ordem (a aristocracia e o clero com ela comprometido) e não queriam a destruição das hierarquias da nobreza e da Igreja.

Mas que mudanças torna-se responsável pela moderna concepção de ciência ao criar o método científico. Sua contribuição teórica teve como resultado a reformulação completa de duas novas ciências, a astronomia e a física.

Com o uso da luneta, Galileu descobre que o universo é infinito e que os astros não são constituídos de matéria incorruptível (o Sol tem manchas e a Lua é montanhosa), o que destrói a divisão hierárquica do mundo supralunar e sublunar. Ao mundo geocêntrico, finito, ordenado, qualitativo, opõe-se o universo descentralizado e geométrico. A grande novidade no desenvolvimento da física é a introdução da experimentação e da matematização.

Enquanto a física antiga é qualitativa, preocupada com a explicação das qualidades intrínsecas das coisas, Galileu observa e realiza experimentações em laboratório, usa instrumentos e faz a descrição quantitativa do fenômeno.

Enquanto Aristóteles se perguntava a respeito da natureza dos corpos pesados ou leves para compreender a queda dos corpos, Galileu explica “como” os corpos caem (e não “por que” caem), estabelecendo a relação entre o tempo que um corpo leva para percorrer um plano inclinado e o espaço percorrido. Depois de repetir inúmeras vezes as experiências, a lei da queda dos corpos é expressa numa forma geométrica.

A principal contribuição de Galileu ao desenvolvimento da ciência moderna está precisa- mente na combinação do uso da linguagem matemática na construção das teorias, o que lhes dá maior rigor e precisão, com o recurso aos experimentos que permitem comprovar empiricamente as hipóteses científicas. (JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia)

A Expansão da Ciência

O novo método científico mostrou-se fecundo, não cessando de ampliar sua aplicação. Os resultados obtidos por Galileu na física e na astronomia, e nas leis de Kepler e as conclusões de Tycho-Braher, possibilitaram a Newton a elaboração da teoria da gravitação universal.

Surgem as academias científicas onde os cientistas se associam para troca de experiências e publicações. São importantes as Academias de Ciências, da qual participaram Descartes, Pascal e Newton, a Real Sociedade de Londres e a Academia de Berlim.

Aos poucos o novo método é adaptado a outros campos de pesquisa, fazendo surgir diversas ciências particulares. No século XVIII Lavoisier torna a química uma ciência de medidas precisas; o século XIX foi o do desenvolvimento das ciências biológicas e da medicina, destacando-se o trabalho de Claude Bernard com a fisiologia e o de Darwin com a teoria da evolução das espécies.

As Ciências Humanas

Chamamos ciências humanas àquelas que têm por objetivos de estudo o próprio homem. (psicologia, sociologia, história, geografia antropologia, etc.). Com o desenvolvimento das ciências da natureza, desejou-se entender o rigor do método também aos assuntos referentes ao homem, assuntos estes que sempre foram objetivo da filosofia.

A complexidade dos atos humanos torna muito difícil e especifica a abordagem cientifica dos fenômenos. Só para citar algumas dificuldades:

# O próprio homem é objeto de conhecimento, o que dificulta a objetividade; # Mesmo nos casos em que a experimentação não é possível, nem sempre é fácil identificar e controlar os

diversos aspectos que influenciam os atos humanos;

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# Certas experiências sofrem restrições de caráter moral, pois não se pode submeter o ser humano a situações perigosas para sua integridade física ou mental;

# Mesmo que haja o recurso às estatísticas, nem sempre a matematização é possível; e # Sendo um ser consciente e livre, o homem não pode ter um comportamento totalmente previsível. Ora, se o ideal de cientificidade se estabeleceu a partir dos princípios da experimentação e

matematização, como ficam as aspirações de constituição das ciências humanas? Por isso, quando surgiram as primeiras teorias da psicologia e da sociologia, elas vieram marcadas pela

influência positivista que pretendia reduzir as ciências humanas às ciências da natureza. Então, por exemplo, para os representantes da psicologia experimental, como Wundt e, posteriormente, Watson e Skinner, o fenômeno psíquico é aquele que pode ser medido e controlado, desprezando-se os fatos da consciência subjetiva. Da mesma maneira, Durkheim, ao desenvolver o método sociológico, recomendava que os fatos sociais fossem observados como coisas.

Embora essa tendência metodológica que podemos chamar de naturalista ainda continue existindo, há também a tendência humanista que busca o método específico das ciências humanas. Nessa linha, todo comportamento humano existe num contexto que deve ser interpretado não necessariamente por leis e números, mas por uma compreensão de tipo qualitativo. Além disso, aceitam-se pressupostos não verificáveis experimentalmente, como, por exemplo, a hipótese do inconsciente proposta por Freud na psicanálise.

De qualquer forma, as dificuldades são várias e as discussões a respeito do método das ciências humanas ainda estão em aberto.

LEITURA COMPLEMENTAR

Do Mundo Fechado Ao Universo Infinito

Admite-se de maneira geral que o século XVII sofreu, e realizou, uma radicalíssima revolução espiritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz e o fruto. Essa revolução pode ser descrita, e foi, de várias maneiras diferentes. Assim, por exemplo, alguns historiadores viram seu aspecto mais característico na secularização da consciência, seu afastamento de metas transcendentes para objetivos imanentes, ou seja, a substituição da preocupação pelo outro mundo e pela outra vida pela preocupação com esta vida e este mundo. Para outros autores, sua característica mais assinalada foi a descoberta, pela consciência humana, de sua subjetividade essencial e, por conseguinte, a substituição do objetivismo dos medievos e dos antigos pelo subjetivismo dos modernos; outros ainda creem que o aspecto mais destacado daquela revolução terá sido a mudança de relação entre teoria e práxis, o velho ideal da vita contemplativa cedendo lugar ao da vitaactiva. Enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da natureza e do ser, o moderno deseja a dominação e a subjugação.

Tais caracterizações não são de nenhum modo falsas, e certamente destacam alguns aspectos

bastante importantes da revolução espiritual ou crise do século VXII, aspectos que nos são exemplificados e revelados, por exemplo, por Montaigne, Bacon, Descartes ou pela disseminação geral do ceticismo e do livre- pensamento.

Em minha opinião, no entanto, esses aspectos são concomitantes e expressões de um processo mais profundo e mais fundamental, em resultado do qual o homem, como às vezes se diz, perdeu lugar no mundo ou, dito talvez mais corretamente, perdeu o próprio mundo em que vivia e sobre o qual pensava, e teve de transformar e substituir não só seus conceitos e atributos fundamentais, mas até mesmo o quadro de referência de seu pensamento.

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Pode-se dizer, a revolução científica e filosófica é um processo de fato impossível separar o aspecto filosófico puramente científico desse processo, pois um e outro se mostram interdependentes e estreitamente unidos causou a destruição do Cosmos, ou seja, o desaparecimento dos conceitos válidos, filosófica e cientificamente (todo no qual a hierarquia de valor determinava a hierarquia e a estrutura do ser, erguendo-se da terra escura, pesada e imperfeita para a perfeição cada vez mais exaltada das estrelas e das esferas celestes), e a sua substituição por um universo indefinido e até mesmo infinito que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no qual todos esses componentes são colocados no mesmo nível de ser. Isto, por seu turno, implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a completa desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos.

KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro/

São Paulo, Forense Universitária/Edusp, 1979. p.13-14

Ciência e filosofia Nos últimos três séculos, a ciência e a tecnologia foram capazes de alterar a face do mundo, com mudanças

tão radicais como nunca se teve notícia antes. O rigor de o novo saber e a eficácia da nova técnica propõem inúmeras questões filosóficas, entre elas a

necessidade de criticar os mitos que inevitavelmente daí surgiram.

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OS MITOS DA CIÊNCIA

O Mito Do Cientificismo À medida que a ciência se mostrou capaz de compreender a realidade de forma mais rigorosa, tornando

possível fazer previsões e transformar o mundo, houve a tendência a desprezar outras abordagens da realidade como o mito, a religião, o bom senso da vida cotidiana, a vida afetiva, a arte e a filosofia. A confiança total na ciência valoriza apenas a racionalidade científica, como se ela fosse a única forma de resposta às perguntas que o homem se faz e a única capaz de resolver os problemas humanos. Essa forma de pensar foi explicitada no século XIX pelo filósofo francês Augusto Comte, fundador do positivismo, corrente filosófica segundo a qual a humanidade teria passado por estágios sucessivos (teológico e metafísico) até chegar ao ponto superior do processo, caracterizado pelo conhecimento positivo, ou científico.

Como decorrência do cientificismo, desenvolveu-se o mito do especialista, cuja consequência é a tecnocracia: apenas teria capacidade de decisão o técnico competente; portanto, saber é poder (Ver Cap. 2, A Técnica)

O Mito da Neutralidade Científica

A ciência é um saber que se pretende objetivo, capaz de superar a subjetividade do próprio cientista e os preconceitos do senso comum. E, na verdade, atinge de fato alto nível de objetividade, podendo seus processos e produtos serem verificados pela comunidade científica.

Em decorrência disso, muitos pensam que a ciência é um saber neutro, isto é, as pesquisas científicas não sofreriam nenhuma influência social ou política e visariam apenas o conhecimento “puro” e desinteressado. Neste sentido, o cientista se ocuparia apenas da descrição dos fenômenos, sem se preocupar com juízos de valor. Portanto, não só a atividade científica estaria à margem das questões históricas, como não caberia ao cientista discutir o uso político de suas descobertas.

Bem sabemos dos riscos que a humanidade corre diante do “aprendiz de feiticeiro” que se nega a discutiros fins a que se destinam suas descobertas. (Ver Cap.2, A técnica).

A Função da Filosofia Uma das funções da filosofia é analisar os fundamentos da ciência. O próprio cientista já está na verdade

colocando questões propriamente filosóficas quando se pergunta em que consiste o conhecimento científico, qual o seu alcance, qual a validade do método que utiliza e qual é sua responsabilidade no que se refere às consequências das descobertas. Por isso é importante que o cientista se disponha a filosofar, a fim de investigar os pressupostos e as implicações do seu saber. Além disso, a filosofia busca recuperar a visão de totalidade, perdida diante da multiplicação das ciências

particulares e da valorização do mundo dos “especialistas”. É a filosofia que, diante do saber e do poder, avalia se estes estão a serviço do homem ou contra ele, isto é, se servem para seu crescimento espiritual ou se o degradam, se contribuem para a liberdade ou para a dominação.

Assim, é preciso questionar a ideologia do progresso que justifica as ilusões e preconceitos do homem “civilizado” por este julgar superior a qualquer outro. Não é em nome do progresso que as tribos indígenas têm sido sistematicamente expulsas dos seus territórios? E não seria o caso de perguntar quais são os valores do homem “urbano e civilizado” que é individualista, sofre de solidão e tem sido vítima dos descontroles do progresso, como a poluição ambiental?

Diante de tais questões, não há como sustentar a neutralidade da ciência. A bomba atômica não pode ser considerada apenas como resultado do saber sobre a energia at6omica, nem como simples técnica de produzir explosão. Trata-se de um saber e de uma técnica que dizem respeito à vida e à morte de seres humanos.

Como tal, cabem aos cientistas a responsabilidade social de indagar a respeito dos fins a que se destinam suas descobertas. E não é possível alegar isenção, uma vez que a produção científica não se realiza fora de um determinado contexto social e político cujos objetivos a serem alcançados estão claramente definidos. As altas

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cifras necessárias ao encaminhamento das pesquisas supõem o apoio financeiro das instituições públicas e privadas, que evidentemente subvencionam os trabalhos que mais lhes interessam. Pode-se falar que, por muito tempo, houve uma “indústria da guerra”: alimentando a “corrida armamentista” e exigindo o constante desenvolvimento da ciência e tecnologia no campo militar.

O papel da filosofia consiste, portanto, em analisar as condições em que se realizam as pesquisas científicas, investigar os fins e as prioridades a que a ciência se propõe, bem como avaliar as consequências das técnicas utilizadas.

Resta lembrar que, no desempenho desse papel, o filósofo não tem respostas prontas, nem um saber acabado. Não caberia ao filósofo nortear, de forma onipotente, os rumos da ciência. A filosofia deve caminhar ao lado dos cientistas e dos técnicos a fim de que a abordagem específica que ela é capaz de fazer os auxilie a não apenas meios, e devem estar a serviço da humanidade.

LEITURA COMPLEMENTAR

O mito da ciência

O saber especializado desperta a admiração temerosa por parte daqueles que o ignoram. Há todo um respeito admirativo em relação à linguagem científica, dotada de uma universalidade de direito, habilmente restringida aos iniciados. Seu esoterismo protege o segredo, sobretudo pela matematização e pela formalização. O poder de dominar a matéria e de fazer coisas, da ciência, acarreta, nos não iniciados, uma atitude de submissão. É por isso que ela exerce sobre muitos um poder quase mágico, um “poder dogmático”. E é por isso, igualmente, que muitos veem nos cientistas os detentores do “magistério da realidade”: só eles estão habilitados a dizer o sentido, a propor a verdade para todos, como se fossem taumaturgos ou verdadeiros alquimistas. O que se pede a eles, através das vulgarizações, é muito menos um complemento de informações do que a forma presente das questões últimas, pois as antigas respostas teológicas foram desprestigiadas. Os cientistas são vistos como se fossem os proprietários exclusivos do saber, devendo fechar todas as “cicatrizes do não saber” e fornecer os bálsamos para as angústias individuais e sociais.

Essa imagem mítica do cientista ignora que ele faz e depende de uma estrutura bem real do mundo que o cerca. O mundo científico nada tem de ideal, não é uma terra de inocência, livre de todo conflito e submetida apenas à lei da verdade uni- versal, isto é, de uma verdade testável e verificável em toda parte, através do respeito aos procedimentos de rigor e aos protocolos da experimentação. Como se o cientista pudesse ser o detentor de uma verdade uma que, uma vez formulada em sua coerência, estaria isenta da discussão; e como se ele pudesse guardar ara sempre a imagem de um indivíduo sempre íntegro e rigoroso, jamais sujeito à incoerência das paixões.

JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975. p. 116.

Leia o texto complementar “O mito da ciência”, Hilton Japiassu: a.Procure no dicionário o sentido das palavras: esoterismo, taumaturgos, alquimistas. Em seguida, mostre como o autor está querendo indicar o sentido mítico que o saber científico adquiriu. b.Em oposição a essa imagem ingênua, qual a visão que o autor tem a respeito da verdade da ciência?

c. Diante das questões colocadas, qual deve ser a função do filósofo?

A CIÊNCIA E ATITUDE CIENTÍFICA

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O Senso Comum Na história da filosofia, o problema do senso comum sempre foi muito importante gerando grandes

debates. Os filósofos clássicos, Sócrates, Platão e Aristóteles, dedicaram-se a refletir sobre e situar o tema nos problemas que interessam à reflexão filosófica. O sentido da expressão “senso comum” remete ao tipo de experiência que é propriamente humana. Um dos elementos que tornam o homem diferente das outras criaturas é a sua capacidade de refletir sobre o sofrimento, de saber que vai morrer, que pode ser acometido por catástrofes, doenças, etc. A experiência tradicional nos dá os elementos para a compreensão de nossa condição de seres falíveis. As tragédias antigas (tão valorizadas por Aristóteles) davam conta dessa experiência. Sendo assim, o senso comum é o tipo de saber que busca fornecer orientação ao homem e não deixá-lo repetir os erros do passado. Por intermédio da experiência, o homem pode exercer virtudes, como a prudência e a paciência, e aprender a não se deixar levar por aventuras emocionais, que o desviam para a irracionalidade, bem como não se deixar levar por “sonhos racionais” de progresso a qualquer custo. Como disse o pintor espanhol Goya, “O sonho da razão produz monstros”.

O conceito de senso comum sofreu certa desvalorização após o período do Renascimento. O humanismo renascentista foi a última corrente de reflexão que levava em conta o potencial orientador do senso comum.

A partir do século XVII, sobretudo com o desenvolvimento da ciência moderna e da filosofia racionalista cartesiana, o senso comum passou, de forma geral, a ser identificado como “falta de rigor metodológico” e a ser rivalizado com o “senso crítico” ou “senso científico”. Dessa forma, até o início do século XX, eram poucas as defesas filosóficas que se faziam do senso comum, haja vista que a expressão havia sido alijada de seu sentido tradicional.

O Sol é menor do que a Terra e se move em torno da Terra, que permanece imóvel? Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste e diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim?

As cores existem em si mesmas. Quem duvidaria disso, se passamos a vida vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o alaranjado da laranja e da tangerina?

Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais, num só dia?

A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade?

A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho desobediente de Noé.

Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável.

A Astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de modificações de micro-organismos extremamente simples.

Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima data do século XV, e próprio da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas determinadas.

Sociólogos e antropólogos mostram que a ideia de raça também é recente data do século XVIII, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus

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e os povos conhecidos a partir do século XIV, com as viagens de Marco Pólo, e do século XV, com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos.

Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico. Como e por que ela existe?

Características do Senso Comum

Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias: São subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa

para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneiro, a qualidade da madeira; se estiver passeando sob o sol, a sombra para descansar; se for boia fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender; São qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes, etc.; São heterogêneas, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebe- mos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada, etc; São individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura, etc.; Também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só ideia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, da bebidas, dos remédios, etc.; Em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”; “diz-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quer ser estuprada; menino de rua é delinquente, etc.; Não se surpreendem nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o “nunca visto”; Pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, no cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tudo s onde saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos, como se fossem espantosas obras de magia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas; Costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço; Por serem subjetivos, generalizados, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos.

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A Atitude Científica O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? Antes de tudo, a

Ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, de ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas.

Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõe-se ponto por ponto à característica do senso comum: É objetivo, isto é, procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas; É quantitativo, isto é, buscam medidas, padrões, critérios de comparação e de avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc.; É homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedece à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do movimentos da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.; É generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmo padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos; É diferenciador, pois não reúne nem generaliza por semelhanças aparentes, mas distingue os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes; Só estabelece relações causais depois de investigar a natureza ou a estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas pelo peso de um corpo depende do campo de gravitação onde se encontra é por isso que, nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque, dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma determinada maneira, etc.; Surpreende-se com a regularidade, a constância, a frequência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário, ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, frequente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico; Distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre outras por meio de qualidade ocultas e considera o psiquismo humano uma força de ligar-se a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude científica, ao contrário, opera um desencadeamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos; Afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros; Procura renovar-se modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas, em preconceitos sociais. O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo.

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Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica. Esta é a um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem; Separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno; Construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado ou corrigido por novas elaborações; Demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados; Relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria; Formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado; Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas investigações, e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré-requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência.

A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto aquela baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional.

O que é uma teoria científica?

É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciado baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e vice-versa, permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes.

As Três Principais Concepções de Ciência

Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o mo- delo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da ideia de razão como conhecimento aproximativo.

A concepção racionalista que se estende dos gregos até o final do século XVII afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado.

O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma.

As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”.

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A concepção empirista que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis porque, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependiam a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raios-X da realidade. A concepção empirista era hipotéticodedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotéticaibdutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e a previsões.

A concepção construtivista iniciada no século XX considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos um, vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo e a eles acrescenta um terceiro, vindo da ideia de conhecimento aproximativo e corrigível.

Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade:

1 Que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria; 2 Que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na

observação e na experimentação; 3 Que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também alterar os

próprios princípios da teoria, corrigindo-a.

O IDEAL CIENTÍFICO E A RAZÃO INSTRUMENTAL

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O Ideal Científico

No estudo das ciências evidencia-se a existência de um ideal científico: embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos científicos, a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão como capacidade para conhecer a realidade, mesmo que esta, afinal, tenha que ser inteiramente construída pela própria atividade racional.

A lógica que rege o pensamento científico contemporâneo está centrada na ideia de demonstração e prova, a partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento, através das operações de análise, síntese e interpretação. A ciência contemporânea funda-se:

Na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, que permite estabelecer a ideia de objetividade, isto é, de independência dos fenômenos em relação ao sujeito que conhece e age; Na ideia de método como um conjunto de regras, normas e procedimentos gerais, que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação a, após esta, para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos. A ideia de método tem como pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos identidade, não contradição, terceiro excluído, razão suficiente dos quais dependem o conhecimento da verdade e a exclusão do falso. A verdade pode ser compreendida seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade, seja como coerência interna dos próprios conceitos; Nas operações de análise e síntese, isto é, de passagem de todo complexo às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina. O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese, que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como um campo de relações internas necessárias, isto é, uma estrutura que pode ser conhecida em seus elementos, suas propriedades, suas funções e seus modos de permanência ou de transformação; Na ideia de lei do fenômeno, isto é, de regularidades e constâncias universais e necessárias, que definem o modo de ser e de comportar-se do objeto, seja este tomado como um campo separado dos demais, seja tomado em suas relações com outros objetos ou campos de realidade. A lei científica define o que é o fato-fenômeno ou o objeto construído pelas orações científicas. Em outras palavras, a lei científica diz como o objeto se constitui, como se comporta, por que e como permanece, por que e como se transforma, sobre quais fenômenos atua e de quais sofre ação. A lei define o objeto segundo um sistema complexo de relações necessárias de causalidade, complementariedade, inclusão e exclusão. A ideia de lei visa marcar o caráter necessário do objeto e afastar as ideias de acaso, contingência, indeterminação, oferecendo o objeto como completamente determina- do pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível; No uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos. Os instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e destinam-se a aumentá-las na relação do nosso corpo com o mundo. Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais, nada possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano; visam a intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto científico; destinam-se a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo. A tecnologia confere à ciência precisão e controle dos resultados, aplicação prática e interdisciplinaridade. O caso da biologia genética revela como a tecnologia determinou uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na biologia; Na criação de uma linguagem específica e própria, distante da linguagem cotidiana e da linguagem literária. A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivo-emotivos dos objetos ou dos fenômenos, para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais;

A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas, isto é, nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos, subentendidos, ambiguidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas, ou seja, exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons, cores, odores, valores, sentimentos, etc.

Nas ciências, porém, sons e cores são explicados como variação no comprimento das ondas sonoras e luminosas, observadas e medidas no laboratório. Valores e sentimentos são explicados pelas análises do

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corpo vivido e da consciência, feitas pela psicologia; pelas análises da estrutura e organização da sociedade, feitas pela sociologia e pela antropologia.

A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito, separa-o da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambiguidades as leis do objeto. O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de significado único e universal. A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático.

Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico, podemos compreender por que existem os problemas epistemológicos. Em outras palavras, o ideal de cientificidade impõe às ciências critérios e finalidades que, quando impedidos de se concretizarem, forçam rupturas e mudanças teóricas profundas, fazendo desaparecer campos e disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos, métodos, disciplinas e campos de investigação novos.

Ciência Desinteressada e Utilitarismo

Desde a Renascença isto é, desde o humanismo, que colocava o homem no centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto.

A primeira delas, que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado, afirma que o valor de uma ciência encontra-se na qualidade, no rigor e na exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua aplicação prática. A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre fatos desconhecidos, por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente. Em outras palavras, é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática, mas o uso da ciência é consequência e não causa do conhecimento científico. A segunda concepção, conhecida como utilitarismo, ao contrário, afirma que o valor de uma ciência

encontra-se na quantidade de aplicações práticas que possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor. Os conhecimentos são procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência, mas também suas transformações no decorrer do tempo.

As duas concepções são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria científica fosse elaborada apenas por suas finalidade práticas imediatas, inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeras fenômenos jamais teriam sido conhecidos, pois, com frequência, os conhecimentos teóricos estão mais avançados do que as capacidades técnicas de uma época e, em geral, sua aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido elaborada.

No entanto, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações, se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos, instrumentos, utensílios, máquinas, medicamentos, de resolver problemas importantes para os seres humanos, então seremos obrigados a dizer que a técnica e a tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são práticas sem bases teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas estão relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra.

A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada podem solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas, garantindo, por outro lado, que uma teoria possa e deve ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos, embora possa, mais tarde, contribuir para eles; e, por outro lado, garantindo o caráter científico de teorias construídas diretamente com finalidades práticas, as quais podem, por sua vez, suscitar investigações puramente teóricas.

Pode-se dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos. Sabemos, por exemplo, que o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da iluminação da cidade de Paris, que Galileu e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença.

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No entanto, o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático, de tal modo que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática, embora comecem a surgir e a suscitar, tempos depois, soluções práticas para problemas novos. Assim, por exemplo, passou-se muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão.

A Ideologia Cientificista

O senso comum, ignorando as complexas relações entre as teorias científicas e as técnicas, entre ciência pura e ciência aplicada, entre teoria e prática e entre verdade e utilidade, tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplicações. Essa identificação desemboca numa atitude conhecida como cientificismo, isto é, a fusão entre ciência e técnica e a ilusão da neutralidade científica.

Examinemos brevemente cada um desses aspectos que constituem a ideologia da ciência na sociedade contemporânea.

O Cientificismo

O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo que de fato conhece. Tudo é a explicação causal das leis da realidade tal como esta e em si mesma.

Ao contrário dos cientistas, que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos, problemas e enigmas, o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência.

Ideologia da ciência: crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que, um dia, explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana.

Mitologia da ciência: crença na ciência como se fosse magia e poderio sobre as coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis.

A ideologia e a mitologia cientificista encaram a ciência não pelo prisma do trabalho do conhecimento, mas pelo prisma dos resultados (apresentados como espetaculares e miraculosos) e, sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano. Por esse motivo, aceitam a ideologia da competência, isto é, a ideia de que há, na sociedade, os que sabem e os que não sabem que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes, enquanto os demais são incompetentes, devendo obedecer e ser mandados. Em resumo, a sociedade deve ser dirigida e comandada pelos que “sabem” e os demais devem executar as tarefas que lhes são ordenadas.

A Ilusão da Neutralidade da Ciência

Como ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o sujeito do conhecimento e o objeto; por retirar dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos; como os procedimentos científicos de observação, experimentação e interpretação procuram alcançar o objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real; e, enfim, como os resultados obtidos por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do cientista nem de suas paixões, estamos convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial. Diz à razão o que as coisas são em si mesmas. Desinteressadamente.

Essa imagem da neutralidade científica é ilusória. Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto, decide usar um determinado método e

espera obter certos resultados, sua atividade não é neutra nem imparcial, mas feita por escolhas precisas. Vamos tomar três exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto.

O racismo não é apenas uma ideologia social política. É também uma teoria que se pretende científica, apoiada em observações, dados e leis, conseguidos com a Biologia. É uma maneira de construir tais dados, de sorte a transformar diferenças éticas e culturais em diferenças biológicas naturais e imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores, dando aos primeiros, justificativas para explorar, dominar mesmo exterminar os segundos.

Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a comparecer perante a Inquisição e negar que a Terra se movia em redor do Sol? Porque a concepção astronômica geocêntrica (elaborada, na Antiguidade, por Aristóteles e Ptolomeu) permitia que a Igreja Romana mantivesse a ideia de que a realidade é constituída por uma hierarquia de seres, que vão dos mais perfeitos os celestes aos

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mais imperfeitos os infernais e que essa hierarquia colocava a Igreja acima dos imperadores, estes acima dos barões e estes acima dos camponeses e servos.

Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o Sol não é apenas uma perfeição imóvel, e se a mecânica galilaica demonstrasse que todos os seres estão submetidos às mesmas leis do movimento, então as hierarquias celeste, naturais e humanas perderiam legitimidade e fundamento, não precisando ser respeitadas. A física e a astronomia pré-copernicanas (elaboradas por Ptolomeu e Aristóteles) serviam independentemente da vontade de Ptolomeu e de Aristóteles, é verdade a uma sociedade e a concepção do poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção científica.

Um último exemplo pode ser dado através da antropologia. Durante muito tempo, os antropólogos afirmaram que havia duas formas de pensamento cientificamente observáveis e com leis diferentes: o pensamento lógico-racional dos civilizados (europeus brancos adultos) e o pensamento pré-lógico e pré-racional dos selvagens ou primitivos (africanos, índios, tribos australianas). O primeiro era considerado superior, verdadeiro e evoluído; o segundo, inferior, falso, supersticioso e atrasado, cabendo aos brancos europeus “auxiliar” os selvagens “primitivos” a abandonar sua cultura e adquirir a cultura “evoluída” dos colonizadores.

O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é levar em consideração o modo como à pesquisa científica se realiza em nosso tempo.

Durante séculos, os cientistas trabalharam individualmente (mesmo que possuíssem auxiliares e discípulos) em seus pequenos laboratórios. Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis, nobres e burgueses ridos, que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas que delas poderiam advir. Por sua vez, o senso comum social olhava o cientista como inventor e gênio.

Hoje, os cientistas trabalham coletivamente, em equipes, nos grandes laboratórios universitários, nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes empresas transnacionais que participam de um sistema conhecido como complexo industrial-militar. As pesquisas são financiadas pelo Estado (nas universidades e institutos), pelas empresas privadas (em seus laboratórios) e por ambos (nos centros de investigação do complexo industrial-militar). São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais se esperam resultados que a opinião pública nem sempre conhece. Além disso, os cientistas de uma mesma área de investigação competem por recursos, tendem a fazer segredo de suas descobertas, pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros.

Sabemos, hoje, que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana máquinas, remédios, fertilizantes, produtos de limpeza e de higiene, materiais sintéticos, computadores teve com origem investigações militares e estratégicas, competições econômicas entre grandes empresas transnacionais e competições políticas entre grandes Estados. Muito do que usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares, bacteriológicas e espaciais.

O senso comum social, agora, vê o cientista como engenheiro e mago, em roupas brancas no interior de grandes laboratórios repletos de objetos incompreensíveis, rodeado de outros cientistas, fazendo cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores.

Tanto na visão anterior o cientista como inventor e gênio solitário quanto na atual o cientista como membro de uma equipe de engenheiros e magos, o senso comum vê a ciência desligada do contexto das condições de sua realização e de suas finalidades. Eis por que tende a acreditar na neutralidade científica, na ideia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e desinteressado e a solução correta de nossos problemas.

A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da neutralidade científica, dissimulando com isso, a origem e a finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a natureza e a sociedade, segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios.

A Razão Instrumental Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência?

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Quando estudamos a teoria do conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de ocultamento da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da filosofia, examinamos a diferença entre mythos e logos, isto é, entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional. Quando estudamos a razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt, descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui, poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência.

A razão instrumental que os frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”.

Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases etc, são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la.

O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico, social, político, histórico). Assim, por exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é baseada em conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e controlar o trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores), a fim de que a produtividade seja maior possível para render lucros ao capital.

Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração. Para que não seja percebida como tal, passa a ser sustentada pela ideologia cientificista que, através da escola e dos meios de comunicação de massa, desemboca na mitologia cientificista. Todavia, devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da

ideologização e mitologização de uma ciência. Um exemplo poderá auxiliar-nos a perceber essa diferença. Quando Darwin a elabora a teoria biológica da evolução das espécies, o modelo de explicação usado por ele permitia-lhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência.

Ora, na mesma época, a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provinha da competição e da concorrência dos indivíduos, segundo a lei econômica da oferta e da procura. Um filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darwiniana à sociedade: nesta, os mais “aptos” (isto é, ao mais capazes de competir e concorrer) tornam-se naturalmente superiores aos outros, vencendo-os em riquezas, privilégios e poder.

Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade, Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista. Por quê? Em primeiro lugar, porque generalizou para toda a realidade de resultados obtidos num campo particular de conhecimentos específicos. Em segundo lugar, porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez criada a ideologia evolucionista, o evolucionismo tornou- se teoria da História e, a seguir, mitologia científica do progresso humano.

A noção de razão instrumental nos permite compreender: A transformação de uma ciência em ideologia e mito social, isto é, em senso comum cientificista; Que a ideologia não se reduz à transformação de uma teoria científica em ideologia, mas encontra-se na própria ciência, quando esta é concebida como instrumento de dominação, controle e poder sobre a Natureza e a sociedade; Que as ideias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia cientificista.

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Confusão entre Ciência e Técnica Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia, isto é, passa da

máquina-utensílio à máquina como instrumento de precisão, que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos.

Essa transformação traz duas consequências principais: a primeira se refere ao conheci- mento científico e a segunda, ao estudo dos objetos técnicos:

1) o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção (para solução de problemas teóricos e práticos) e como lógica da construção (de objetos teóricos), graças à possibilidade de estudar os fenômenos sem depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência. É assim que, por exemplo, Galileu se refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de simplesmente aproximar objetos distantes, mas de corrigir as distorções de nossos olhos e garantir-nos a imagem correta das coisas. O mesmo foi dito sobre o microscópio, sobre a balança de precisão, sobre o cronômetro.

Os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho humano, máquinas para dominar a Natureza e a sociedade, instrumentos de precisão para o conhecimento científico e, sobretudo, em sua forma contemporânea, como autômatos. Esses são o objetivo técnico-tecnológico por excelência, porque possuem as seguintes características, marcas do novo estatuto desse objeto:

São conhecimentos científicos objetivados, isto é, depositado e concretizado num objeto. São resultado e corporificação de conhecimentos científicos; São objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação, manutenção e transformação. As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas funções (alavancas, polias, manivelas, força muscular de seres humanos ou de animais, força hidráulica, etc.). As máquinas modernas são autônomas porque, dado o impulso elétrico- eletrônico inicial realizam por si mesmas todas as operações para as quais foram programadas, incluindo a correção de sua própria ação, a realimentação de energia, a transformação. São autorreguladas e autoconservadas, porque possuem em si mesmas as informações necessárias ao seu funcionamento; Como consequência, não é propriamente um objeto regular ou individual, mas um sistema de objetos interligados por comandos recíprocos; São sistemas que, uma vez programados, realizam operações teóricas complexas, que modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos, isto é, os objetos tecnológicos fazem parte do trabalho teórico. Ora, o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas seus

resultados mais imediatos: os objetos que podem ser usados por nós (máquinas de lavar, videogame, televisão a cabo, máquina de calcular, computador, robô industrial, etc).

Como, para usá-los, precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas, tendemos a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos. Com isso, deixamos de perceber o essencial, isto é, que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho, na produção e na distribuição dos objetos, na forma de consumi- los. Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por empresas e governos, demandando grandes somas de recursos que retornam, graças aos resultados obtidos, na forma de lucro e poder para os agentes financiadores.

Por não percebemos o poderio econômico das ciências, lutamos para ter acesso, para possuir e consumir os objetos tecnológicos, mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como às pesquisas científicas, nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e política de uma sociedade.

Eis por que, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia, aceitamos, no Brasil, políticas educacionais que profissionalizam os jovens no Ensino Médio portanto, antes que tenham podido ter acesso às ciências propriamente ditas e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisas nas universidades portanto, mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências produzidos em outros países e sociedades.

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O Problema do Uso Das Ciências

Além do problema anterior, isto é, de teorias científicas serem formuladas a partir de certas decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas, com consequências sérias para os seres humanos, um outro problema também é trazido pelas ciências: o de seu uso.

Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema pratico ou técnico. Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e, como consequência, é frequente uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicá-la. Muitas vezes, aliás, o cientista nem se quer imagina que a teoria terá aplicação prática.

É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado, que, em geral, escapa das mãos dos próprios pesquisadores. É assim, por exemplo, que a microfísica ou física quântica desemboca na fabricação das armas nucleares; a bioquímica e a genética, na de armas bacteriológicas. Teorias sobre a luz e o som permitem a construção de satélites artificiais, que, se são conectáveis instantaneamente em todo globo terrestre para a comunicação e informação, também são responsáveis por espionagem militar e por guerras com armas teleguiadas.

Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade, isto é, da economia. A automação, a informatização, a telecomunicação determinam formas de poder econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os serviços, criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas, introduzem a velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo, modificando padrões industriais, comerciais estilos de vida. A ciência tornou-se parte integrante e indispensável da atividade econômica. Tornou-se agente econômico e político.

A ovelha Dolly (ao lado) apresentada ao mundo em 1997, foi o primeiro mamífero clonado a partir de células de outro animal adulto, suscitando um debate sobre os limites éticos dos experimentos científicos.

Além de fazer parte essencial da atividade econômica, a ciência também passou a fazer parte do poder político. Não é por acaso, por exemplo, que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as grandes empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica, assim também os governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas que serão financiadas.

Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea, além de indicar que é mínimo ou quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas, indica também que o uso das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos.

A sociedade, porém, não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra. Dessa maneira, o campo científico torna-se cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências, pois este é definido antes do início das próprias pesquisas e fora do controle que a sociedade poderia exercer sobre ele.

Um exemplo de luta social para interferir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontra-se nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos. De um modo geral, porém, a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que desejariam obter.

Exercitando seus conhecimentos

I- Com base nos estudos realizados neste módulo de Filosofia, marque a alternativa correta: 1- É a investigação dos conhecimentos fundados sobre princípios certos.

( ) Antropologia ( ) Ciência ( ) Filosofia

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( ) Ética

2- Quando podemos considerar válida uma conclusão cientifica? ( ) Não há essa possibilidade. ( ) Quando se repete as experiência ou se altera as hipóteses variáveis. ( ) A Ciência é inquestionável, e suas conclusões sempre válidas. ( ) Nenhuma das opções acima estão corretas.

3- Na ciência, o método consiste na estrutura que permite a formulação e verificação das hipóteses. ( ) Estrutura racional. ( ) Estrutura sistemática. ( ) Estrutura irracional. ( ) Estrutura dedutiva.

4- Como considerar a relevância de um fato? ( ) Por meio de certezas. ( ) Por meio de conclusões. ( ) Por meio das hipóteses. ( ) Todas as opções acima estão corretas.

5- No caso da não confirmação da hipótese pela experimentação, o trabalho deve ser recomeçado, e no caso do resultado positivo... ( ) Trabalha-se normalmente. ( ) Começamos tudo novamente. ( ) É possível formular leis descritas para regularizar os fenômenos. ( ) Todas as opções estão incorretas.

6- A Ciência avança em continuo processo de investigação que se supõe alterações e ampliações necessárias a medida que surgem novos fatos ou instrumentos. Diante desta afirmação é correto afirmar que... ( ) Não é conveniente pensar que a Ciência é um conhecimento certo e indefinido. ( ) É conveniente pensar a Ciência como algo certo e definitivo . ( ) Está correto pensar a Ciência como verdade absoluta. ( ) Não é conveniente pensar que a Ciência é um conhecimento certo e definitivo.

7- Marcou a autonomia da Ciência no momento em que ela busca seu próprio método, desligando-se da reflexão filosófica. ( ) Revolução Francesa. ( ) Revolução Cientifica do séc.XVI. ( ) Revolução Industrial. ( ) Revolução do Conhecimento do séc.VXI.

8- É o tipo do saber espontâneo de nossas experiências cotidianas que busca fornecer orientação ao Homem e não deixa-lo permitir os erros do passado. ( ) Senso cientifico. ( ) Senso comum. ( ) Senso metodológico. ( ) Senso humano.

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9- Consiste em analisar as condições em que se realizam as pesquisas cientificas, investigar os fins e as propriedades a que a Ciência se propõe, bem como avaliar as consequências das técnicas utilizadas é o papel da... ( ) Antropologia. ( ) Filosofia. ( ) História. ( ) Geografia.

10- É a Ciência infundada de que a Ciência pode e deve conhecer tudo o que de fato conhece. ( ) Cientificismo. ( ) Cientismo. ( ) Cientissismo. ( ) Cientifismo.

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