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ELA Que posso ler de mim? Não serei eu aquilo que escapa à minha própria leitura? Que posso conhecer de meu corpo? Roland Barthes Agora, a voz se faz sem corpo. Os olhos não ordenam mais as sombras que ontem se amontavam sobre a página. Há apenas a voz a preencher o espaço, a fazer da palavra a forma desabitada, o espelho imerso na escuridão. Se ainda se escrevem palavras, é porque elas ocupam outro tempo, o da ruína dos corpos que ainda se abraçam, insistem em perdurar o que não pode ser dito, o que deve ser dito. Mas ele, aquele que se atreve a desfazer a própria carne, ainda preenche os espaços, as lacunas do que foi e não poderá acontecer. Sobre a tela, desenha o não é, a memória gasta, corrompida pelas sobras do passado, pelas manchas que cobrem a pele assim como os desenhos grafados nas paredes. Ela, sem o corpo, se oferece para ocupar todos os espaços, imperfeita e já pronta, dentro da palavra, fora da palavra, como se a morte, aí, não existisse e toda alegria residisse no que se diz sem pensar. Mas como tocar em palavras que se despedaçam e nunca foram ditas? Como esculpir no papel a luz dos pulmões? A memória o encobre, o afaga com palavras de outra, essas palavras que podem ser traçadas pela mão. Ela, ao contrário, não precisa da mão, escreve sobre o próprio corpo a memória que apaga o passado, inaugura, no agora, o sempre. E então ela se faz corpo, um corpo de palavras, onde o que se prende não é mais o riso nem a razão, mas a singularidade sem promessa, a

Ela - Alexandre Rodrigues Da Costa

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Ela - texto escrito por Alexandre Rodrigues da Costa

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  • ELA

    Que posso ler de mim? No serei

    eu aquilo que escapa minha

    prpria leitura? Que posso

    conhecer de meu corpo?

    Roland Barthes

    Agora, a voz se faz sem corpo. Os olhos no ordenam mais as sombras

    que ontem se amontavam sobre a pgina. H apenas a voz a preencher o

    espao, a fazer da palavra a forma desabitada, o espelho imerso na

    escurido. Se ainda se escrevem palavras, porque elas ocupam outro

    tempo, o da runa dos corpos que ainda se abraam, insistem em

    perdurar o que no pode ser dito, o que deve ser dito. Mas ele, aquele

    que se atreve a desfazer a prpria carne, ainda preenche os espaos, as

    lacunas do que foi e no poder acontecer. Sobre a tela, desenha o no

    , a memria gasta, corrompida pelas sobras do passado, pelas

    manchas que cobrem a pele assim como os desenhos grafados nas

    paredes. Ela, sem o corpo, se oferece para ocupar todos os espaos,

    imperfeita e j pronta, dentro da palavra, fora da palavra, como se a

    morte, a, no existisse e toda alegria residisse no que se diz sem

    pensar. Mas como tocar em palavras que se despedaam e nunca foram

    ditas? Como esculpir no papel a luz dos pulmes? A memria o encobre,

    o afaga com palavras de outra, essas palavras que podem ser traadas

    pela mo. Ela, ao contrrio, no precisa da mo, escreve sobre o prprio

    corpo a memria que apaga o passado, inaugura, no agora, o sempre.

    E ento ela se faz corpo, um corpo de palavras, onde o que se prende

    no mais o riso nem a razo, mas a singularidade sem promessa, a

  • gravidade que dilacera a matria e todos os deuses. Ela, ele sabe,

    oculta o que a foraram a ser: carne que se abre opaca alm do vazio,

    imensido de estrelas mortas. No avesso da voz, o instante imita a si

    mesmo, e ela, incapaz de se ver nos espelhos, escolhe a memria

    imperfeita, esconde o erro que a boca pronuncia, o menos que a excede.

    Ser ela uma cpia? Carcia programada de um corpo que no precisa

    de libi para existir? Diante dela, no, ele no uma paisagem, uma

    sada. Aquilo em que confia o ultrapassa e oferece seus erros como

    banalidades de tarefas no cumpridas. Ela, como suas palavras, vem

    no se sabe de onde. D voz a ausncia ao dizer-lhe, parece ser o que

    est ali. Mas o corao no existe, ela fala sem falar o que no diz a

    palavra. Indecifrvel, sua voz permanece sobre o corpo, escondendo nele

    palavras roubadas, copiadas de quem despreza o movimento das mos e

    condena a memria com o que se repete, quando olhado pelo avesso.

    preciso se perder, ele dir para si, tentando se convencer da morte

    incompleta. Mas a voz continua, insistente, a transcrever no erro a

    mentira, o esquecimento, as mordidas em um corpo que se devora atravs

    das palavras. Ela lhe pediu para retirar do corpo os ossos que

    sobraram, graf-los, com os gestos gratuitos, a felicidade da cpia

    pura, da escrita inconcebvel, o pouco que dela existe. Sem as mos, ela

    corre atrs do que os olhos no veem, sempre em vias de fazer-se, de

    morrer antes de nascer. Codificada no exterior da matria, ela se

    memoriza, escrita de vento, circuitos cuneiformes cujos traos no podem

    ser mais retomados. Como ele enxergar de que espao seus olhos

    partem? Ela no para, se move de um lado a outro e ento se despe,

    corpo perdido em si mesmo, despedaado por todos os lugares.

    Alexandre Rodrigues da Costa