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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELAINE CRISTINA SENKO IBN KHALDUN (1332-1406) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ELAINE CRISTINA SENKO

IBN KHALDUN (1332-1406) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA

CURITIBA 2009

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ELAINE CRISTINA SENKO

IBN KHALDUN (1332-1406) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, como requisito à conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães.

CURITIBA 2009

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DEDICATÓRIA

Esta obra é dedicada à Anna Focht e Henig Focht (in memoriam)

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AGRADECIMENTOS Agradeço,

À minha mãe Ana Cristina Focht por estar ao meu lado na caminhada da vida.

Ao apoio incondicional na vida e nos estudos, à minha fortaleza André Luiz Leme. À minha querida orientadora Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães por

acreditar nos estudos sobre o Oriente, por me contemplar com a bolsa de Iniciação Científica por três anos seguidos (pois foi primordial para minha manutenção na pesquisa e na Universidade) e por me ensinar o ofício de historiadora.

Ao meu querido Professor Doutor Renan Frighetto, que sempre se dispôs a me

ensinar e me motivar pelos caminhos árduos da História do Oriente e da graduação em História.

À minha querida Professora Doutora Fátima Regina Fernandes, que sempre me

inspirou com sua força pessoal e dedicação à História Medieval. À todos que me ajudaram dentro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos, grupo ao qual

me honra ser um de seus integrantes.

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“Os lábios do tempo, entreabertos de satisfação, te saúdam com um sorriso” Ibn Khazar

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar a Autobiografia de Abu Zaid Abd’ul-Rahman Ibn Khaldun (1332-1406), escrita entre 1374-1378. Além do estudo dessa escrita narrativa de natureza autobiográfica, buscamos o auxílio de uma outra grande obra de Ibn Khaldun, a Muqaddimah para verificar dados concernentes à vida de Ibn Khaldun, analisar a legitimação da sua erudição proveniente de Al-Andaluz (região ao sul da Península Ibérica que na época medieval era assim nomeada pelos árabes) e nos familiarizar com a concepção da História do referido pensador islâmico. Assim encontramos a recorrência constante a Al-Andaluz em seus escritos, local que era um centro cultural e político autônomo do modelo imposto pelos governos muçulmanos do Oriente na Idade Média. Ao mesmo tempo em que investigamos a ação de Ibn Khaldun ao lado do poder, compreendemos sua angústia de ter sido um homem da pena e da espada, quando só as letras, sobretudo o conhecimento histórico, pareciam interessá-lo. Torna-se interessante também, e por fim, apontar a importância desse personagem no que diz respeito a seu papel na transferência de um saber produzido na Península Ibérica, proveniente de Al-Andaluz, para o norte da África, componente fundamental para a construção de sua identidade. Palavras-chave: Ibn Khaldun; historiador muçulmano; Al-Andaluz.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the Autobiography of Abu Zaid Abd'ul-Rahman Ibn Khaldun (1332-1406), written between 1374-1378. Besides the study of this autobiographical narrative writing, we seek the help of another great work of Ibn Khaldun, the Muqaddimah, to verify some more information about the life of Ibn Khaldun, to analyze the legitimacy of his scholarship from Al-Andalus (the south region of Iberian Peninsula in medieval times was so named by the Arabs) and familiarize ourselves with the conception of history of this Islamic thinker. Thus we find the constant recurrence of Al-Andalus in his writings, it was a local cultural and political center of the autonomous model imposed by Muslim governments in the Middle Ages. While we investigated the action of Ibn Khaldun to the power side, we understand his anguish of having been a man of pen and sword, when only the letters, especially the history, seemed to interest him. It is also interesting, and finally, highlight the importance of this character in relation to its role in the transfer of knowledge produced in the Iberian Peninsula, from Al-Andalus, to the north of Africa, a key component to building identity. Keywords: Ibn Khaldun, a Muslim historian, Al-Andalus.

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SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 8 II. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: SABER E PODER EM IBN

KHALDUN.......................................................................................................... 12

III. AL-ANDALUZ, PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE UM HISTORIADOR: IBN KHALDUN (1332-1406).............................................

20

IV. A “AUTOBIOGRAFIA” DE IBN KHALDUN (1332-1406): TRAJETÓRIA DO ERUDITO.........................................................................

23

V. OS ESCRITOS DE IBN KHALDUN............................................................... 31 V.a. O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DOS ESCRITOS DE IBN

KHALDUN.......................................................................................................... 34

VI. CONCLUSÃO..................................................................................................... 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 40 GLOSSÁRIO ACERCA DA ARISTOCRACIA POLÍTICA

MUÇULMANA TARDO-MEDIEVAL............................................................ 46

TABELA DEMONSTRATIVA DA HIERARQUIA DA BUROCRACIA ISLÂMICA..........................................................................................................

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I. INTRODUÇÃO

As análises sobre a Península Ibérica na perspectiva de um muçulmano da Idade

Média podem ganhar novo entendimento valendo-se das concepções sugeridas por Edward

Said, Albert Hourani e Roberto Marin Guzmán. Na obra Orientalismo, Said1 desmascara o

recorrente discurso ocidental sobre o Oriente, o qual aponta a estigmatização realizada pelos

europeus acerca dos muçulmanos, ressaltando a importância do papel do “outro”. Assim,

poderíamos recorrer ao estudo de uma mentalidade individual, do ponto de vista islâmico, a

fim de esclarecer e discutir alguns equívocos de interpretações.

A consciência da alteridade existente entre muçulmanos e cristãos no século XIV,

nosso recorte temporal, possibilita-nos compreender de forma mais abrangente a produção

erudita daquele período, aqui, sobretudo, focalizada na cultura islâmica. Optamos por adentrar

esse ambiente de saber por meio da obra autobiográfica de Abu Zaid Abd’ul-Rahman Ibn

Khaldun (1332-1406). Nesta, além de presenciar as ações de Reconquista2 cristã, o autor

demonstra-se mais interessado em colocar por escrito suas observações a respeito da

sociedade, da filosofia e da política de seu tempo.

Desse modo, para uma melhor compreensão do pensamento de Khaldun, faz-se

necessário contextualizar historicamente a expansão dos muçulmanos para a Península Ibérica

e Mediterrâneo. Foi em 711 que um antigo escravo berbere, Tariq, tornou-se chefe de um

exército monumental de tropas islamizadas, que saíram do Magreb em direção à conquista de

Al-Andaluz. Tariq e seu exército derrotaram as forças visigóticas e conquistaram Córdoba e

Toledo. Posteriormente, em 712, os guerreiros muçulmanos se apoderaram de Sevilha e de

Mérida. Três anos mais tarde já tinham se estabelecido em território hispano, logo após

chegando até o sul da atual França. Neste momento ocorreu a derrota muçulmana para Carlos

Martel na Batalha de Poitiers, em 732.

Após essa primeira incursão de muitos berberes e poucos árabes para a Península

Ibérica ocorreram sucessivas ondas migratórias partindo do Oriente (em quantidade maior da

Síria) e do Magreb, ainda durante o século VIII. A capital de Al-Andaluz era Córdoba e

1 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 2A Reconquista cristã foi um processo formado por inúmeras batalhas na Península Ibérica entre cristãos e muçulmanos. Esses embates ocorreram desde 711, com a invasão de Tariq e seus berberes na Península Ibérica, perpassaram a dinastia Omíada, o governo dos Almorávidas e dos Almôadas. Assim o evento prolonga-se com a expulsão em grande quantidade de muçulmanos da região de Al-Andaluz no século XIII, sob o comando de Fernando III (Córdoba em 1236 e Sevilha em 1248). Os andaluzes emigrados foram para regiões do norte da África, principalmente Túnis. No entanto, na região de Al-Andaluz permaneceu o governo islâmico de Granada, somente caindo em 1492. Entretanto, o processo de Reconquista não foi somente de caráter bélico, e sim, de trocas comerciais, políticas e culturais entre os cristãos, judeus e muçulmanos do período.

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muitos dos sírios emigrados para a referida região formaram uma casta de guerreiros, os

shamis3. O historiador Bernard Lewis aponta que os sírios prepararam a chegada do fugitivo

da dinastia Omíada, Abd ar-Rahman, que se refugiou na Península Ibérica por conta da

perseguição realizada pelos Abássidas4.

Já o reinado pacífico em Al-Andaluz de Abd ar-Rahman II (822-852) caracterizou-

se pela consolidação de uma centralização política no território, reorganizando o reino

cordobês de acordo com o modelo dos Abássidas no Oriente, ainda que de forma

independente do ponto de vista político. Assim, o emir5 Abd ar-Rahman III (912-961)

declarou-se califa6 e iniciou o apogeu dos Omíadas em Al-Andaluz.

A primeira metade do século XI, no entanto, foi de fragmentação política na

Península Ibérica islâmica, momento conhecido como das taifas. Essa política foi mantida

quando da conquista de Al-Andaluz pelos Rostos Velados7. É relevante lembrar que o mundo

muçulmano estava dividido em três partes nesse momento, como o historiador Albert Hourani

nos revela: a região do Irã e sul do Iraque; do Egito, Síria e Arábia Ocidental; e o complexo

Al-Andaluz/Magreb8.

Nesse sentido podemos verificar a presença marcante do poder islâmico no

Mediterrâneo. No século XII, mesmo os normandos que se estabeleceram na ilha de Sicília

adaptaram-se à cultura islâmica. Por exemplo, temos a ação de Roger II (1130-1154), “o

pagão”, que possuiu esse epíteto devido ao apoio que recebeu dos muçulmanos em diversas

batalhas, nas estratégias de guerra e na formação arquitetônica normanda-sarracena9. Em

momento posterior, Guilherme II (1166-1189) confiava cargos de negócios da ilha aos

vizires10 muçulmanos. Os reis de Palermo e Sicília foram influenciados da mesma maneira

que a própria população pela língua e cultura árabes. Na sucessão suábia, que substituiu os

normandos na ilha de Sicília, ocorreu a troca da Língua Árabe pelo Latim. No entanto, a

cultura árabe permaneceria na ilha sob os reinados de Frederico II (1215-1250), em que obras

3 LEWIS, Bernard. Os árabes na História. Tradução de Maria do Rosário Quintela. Lisboa: Estampa, 1994, p. 134. 4 Idem, p.139. 5 Emir: príncipe guerreiro. Verificar no glossário, p. 46. 6 Califa: cargo de suma importância para o mundo islâmico, pois unia o poder espiritual e o poder temporal. Verificar no glossário, p.47. 7 Denominação khalduniana para os Almorávidas (1056-1147). 8 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.121. 9 LEWIS, Bernard. Os árabes na História. op. cit., p.131-135. 10Vizir: cargo da administração muçulmana que também possibilitava a atuação em guerras. Verificar no glossário, p.49-50.

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oriundas da falsafa11 foram sendo traduzidas para o Latim, e de Manfred (* - 1266). Porém, a

atuação política muçulmana no Mediterrâneo foi mais próspera e resistente em Al-Andaluz.

A dinastia Almôada (1130-1269)12 que suplantou a Almorávida tanto no Magreb

quanto em Al-Andaluz enfrentou um avanço ferrenho dos cristãos sob o último território

(talvez uma resposta ao que ocorria no Oriente, pois em 1187 Salah al-Din derrotou os

cruzados na Batalha dos Chifres de Hittin e reconquistou Jerusalém). O governo da dinastia

Almôada passou por dificuldades que possuíam raízes na religiosidade e na própria política,

como demonstração podemos lembrar do evento na Península Ibérica da Batalha de Navas de

Tolosa13 (1212).

Enquanto Al-Andaluz era conquistada pelos Rostos Velados e depois passava para as

mãos dos Almôadas, a importante família dos Khaldun sempre permaneceria próxima ao

poder. Ainda em 1227-28, o emir Abu Zacaria repudiou a soberania dos descendentes de Abd

Al-Mumin, declarou-se independente e senhor de Ifríkya (Túnis). Nesse ínterim, Al-Andaluz

mergulhou na subversão e o rei cristão Fernando III aproveitou a ocasião para atacar a região

por meio da Fronteira (formada pela planície que se estende de Córdoba, Sevilha e Jaen). O

sultão Ibn Al-Ahmar se revoltava em Arjona e recorreu ao Conselho Municipal de Sevilha

(em que a família Khaldun estava incluída) para ir contra Ibn Hud e deixar Fronteira ao rei

cristão. Ibn Al-Ahmar estabeleceu-se em Granada e a tornou capital de seu reino, mas a

família Khaldun precisou fugir para Ceuta por causa das incursões de Fernando III. Essa

atitude militar do referido rei cristão provocou a fuga de inúmeras famílias de Al-Andaluz

para o norte de África. Esse fato é atestado pelo relato do letrado medieval Ibn Khaldun, sobre

os acontecimentos que envolveram seus antepassados.

A produção de saber promovida por Ibn Khaldun se revela através de sua

Autobiografia em que lemos inclusive a experiência relatada por ele dentro do espaço agitado

da política, tanto do norte de África quanto da Península Ibérica. Esse estudo da

Autobiografia nos demonstra escolhas políticas dos soberanos muçulmanos e cristãos no

momento anterior e posterior à Reconquista bélica mais ferrenha. Permite-nos ainda

aproximarmos essencialmente do pensamento histórico de Ibn Khaldun, adentrarmos a

sabedoria andalusi e é uma fonte medieval que deve ser valorizada como uma contra-voz de

autoridade para o período tardo-medieval, levando-se em consideração o paradigma ocidental.

11 Falsafa: a filosofia produzida entre os árabes no medievo. 12 O fundador da dinastia Almôada foi Ibn Tumart que faleceu no ano de 1130. 13 A Batalha das Navas de Tolosa, que ocorreu na Península Ibérica em 1212, foi uma derrota das tropas almôadas perante uma frente de ataque cristão comandado pelo rei Afonso VIII de Castela.

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Além disso, o contato com o personagem histórico Ibn Khaldun e sua obra

demonstram as ações de um erudito muçulmano que enxergava uma realidade política

islâmica em crise. Isso ocorre por conta do contexto histórico do momento de vida de Ibn

Khaldun, segundo o qual as dinastias construídas pelos árabes entraram em contato não

somente com os mongóis, mas com o avanço ferrenho dos cristãos, enfrentaram a situação

fora de controle do domínio sobre as principais tribos e, por outro lado, estava por se infiltrar

na administração muçulmana o otomano vindo da Anatólia.

Por isso, Ibn Khaldun tenta resguardar a essência de Al-Andaluz, que foi necessária

no ambiente de Túnis como exemplo da resistência do poder islâmico e para a preservação de

uma memória cultural. Ele recorre a esse espaço de valor para nos apresentar a sua formação,

de modo a propagar a sua erudição e definir o foco mantenedor do mundo em que viveu, que

sofria mudanças profundas na política e na sociedade. Deste modo se faz necessária a

explicação da existência de Al-Andaluz, pois a “umma” (comunidade muçulmana) teria uma

forma perene se fosse concatenada à erudição.

Percebemos no objeto de nosso estudo, a erudição de Ibn Khaldun, um meio pelo

qual podemos entender a história do mundo muçulmano de sua época. Assim, propomos uma

atenta observação à nossa problemática que busca através dos relatos efetuados por Khaldun

fragmentos de momentos importantes da política e cultura desenvolvida em Al-Andaluz, e sua

provável continuidade no norte de África.

Os objetivos desse estudo são evidenciar a partir da leitura crítica da Autobiografia

de Ibn Khaldun, como esse historiador identificava a formação do Magreb tardo-medieval

entre a decadência política e um passado glorioso vivido em Al-Andaluz. Ao mesmo tempo,

em que vamos revisar a bibliografia que focaliza a presença de árabes na Península Ibérica e

no norte de África. Essas duas ações promoverão a compreensão do espaço dominado

politicamente pelos árabes e depois com seu estabelecimento, como foi desenvolvida a

erudição na região.

Destarte, é necessário fazer a recomposição dos traços da singularidade da erudição

de Al-Andaluz e destacar sua “continuidade” no norte de África através da formação de Ibn

Khaldun, essência de nosso trabalho. E como tal processo forjou o letrado muçulmano, para

que enfim este apresentasse o modelo de ensino que lhe foi transmitido por mestres andaluzes

e assim elaborasse sua concepção de História.

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II. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: SABER E PODER EM IBN KHALDUN

Atualmente o diálogo historiográfico acerca dos estudos sobre o Oriente se deve

muito ao esforço de Edward W. Said com a obra Orientalismo: o Oriente como invenção do

Ocidente14. Said esclarece nessa obra o interesse de se estudar o Oriente e o discurso do

orientalismo por meio do aspecto cultural:

A minha idéia é que o interesse europeu, e depois americano, pelo Oriente era político de acordo com alguns de seus aspectos históricos óbvios que descrevi aqui, mas que foi a cultura que criou esse interesse, que agiu dinamicamente em conjunto com as indisfarçadas fundamentações políticas, econômicas e militares para fazer do Oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo que eu chamo de orientalismo15.

Dessa forma, entendemos que o orientalismo não foi somente como salienta

Immanuel Wallerstein, “uma particularidade essencialista” 16 ligada a uma dominação

política, mas antes uma forma do Ocidente se aproximar de fontes antes desconhecidas em

seu ambiente cultural. Nesse sentido, Robert Irwin nos pode esclarecer que o orientalismo

também passou a ser estudado em diversas perspectivas por outros autores:

[...] Livros de importância crítica sobre o orientalismo de autoria de Anouar Abdel-Malek, Edward Said, Alain Grosrichard e outros também levantaram questões profundas e difíceis sobre a natureza do discurso do “Outro”, “o Contemplar” e um amplo leque de questões epistemológicas afins. Para lidar com esses e com outros textos críticos, é necessário levar em consideração a pertinência potencial para o estudo do orientalismo de conceitos formulados por Antonio Gramsci, Michel Foucault e outros17.

Assim, passamos a analisar a obra de Ibn Khaldun como fonte para compreendermos

a história produzida no Oriente pela sua especificidade, mas atentamos também à questão que

envolve nosso trabalho, a discussão do orientalismo. Vamos, a partir de agora, analisar mais

detalhadamente as discussões historiográficas que se inter-relacionam com ela.

Primeiramente, a obra de Ibn Khaldun foi escrita entre 1374-1378 e é dividida em:

Autobiografia de Ibn Khaldun, os Prolegômenos e o Livro dos Berberes. O autor reconhecido

que tivemos acesso, por ser um estudioso da obra histórica de Ibn Khaldun, foi o Doutor

Franz Rosenthal. O pesquisador traduziu os manuscritos em língua árabe da Muqaddimah 14 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 15 Idem, p.23. 16 WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. O universalismo europeu: a retórica do poder. Tradução de Beatriz Medina. São Paulo: Bontempo, 2007, p.66. 17 IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.11.

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para a língua inglesa (The Muqaddimah, an introduction to History) 18 e assim se aprofundou

nos conceitos de civilização propostos por Ibn Khaldun. Rosenthal pontua que Ibn Khaldun

pertencia a uma família aristocrática e de líderes políticos na região do sul da Península

Ibérica que, a partir de 1248, passou para o Norte de África. O historiador, a partir dos relatos

da Autobiografia de Ibn Khaldun, contextualiza os fatos políticos da época e aponta no

sentido do que também encontramos em nossa pesquisa: a presença da família Khaldun ao

lado do poder em território do sul da Península, a transferência dela para o Norte de África e a

importância do saber andaluz na vida do autor:

The love of learning and intellectual pursuits for wich his father and grandfather were noted, coupled with the political aspirations that had fired a long line of this Moorish forebears, produced the rare combination of philosopher and statsman that we find in Ibn Khaldun19.

Rosenthal ressalta ainda para a educação recebida por Ibn Khaldun por “linhas

tradicionais”:

His early education followed traditional lines. He was tutored in the Qu’rân, the Hadith, jurisprudence, and the subtleties of Arabic poetry and grammar by some of the best-known scholars of the time, and later applied himself to the study of Arab mysticism and the philosophy of the Moorish Aristotelians (...)20.

Ibn Khaldun rejeitou a superstição e se aprofundou em uma análise crítica da

sociedade de sua época. Assim, para Rosenthal, o centro dos estudos de Ibn Khaldun é o

homem – o que de certa forma podemos verificar também na concepção de História de Marc

Bloch.

O historiador muçulmano foi influenciado pelos escritos de Ibn Sina (Avicena) e Ibn

Ruchd (Averróis), por isso podemos nos voltar para a afirmação da historiadora inglesa Karen

Armstrong quando esta afirma em sua obra O Islã 21 a necessidade de se rever a figura de Ibn

Khaldun como o último representante da falsafa:

Ibn Khaldun queria descobrir as causas subjacentes dessa mudança. Ele foi provavelmente o último grande faylasufita espanhol. Sua grande inovação foi aplicar os princípios do racionalismo filosófico ao estudo da história, (...). Ibn Khaldun acreditava que, sob o fluxo dos incidentes históricos, havia leis universais que governavam os destinos da sociedade (...)22.

18 ROSENTHAL, Franz. The Muqaddimah – An Introduction to History. Editado por DAWOOD, N.J.; New Jersey: Princeton, 1981. 19 Idem, vii. 20 Idem, ibdem. 21 ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 22 Idem, p. 154-155.

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Nossa análise dialoga com Armstrong no sentido de que Ibn Khaldun foi um

observador da decadência do anterior grande poder dos muçulmanos. O conceito elaborado

sobre o movimento cíclico de ascensão, apogeu e decadência, ao lado da ação da

“asibiyyah”23 e “umram”24 , definem a perspectiva política e social de Ibn Khaldun.

Também indicamos para os estudos efetuados por Albert Hourani que sinaliza já no

prólogo e ao longo do seu livro Uma história dos povos árabes 25 uma visão da história dos

árabes concomitante à importância histórica dos escritos de Ibn Khaldun. A influência

khalduniana em Hourani é de fácil percepção, pois o historiador inglês se utiliza do método de

Ibn Khaldun para descrever os diversos momentos de uma história de conquista do poder

pelos árabes. O estudo da Autobiografia de Ibn Khaldun, nesse caso como o de Rosenthal,

amplia por meio da ação do indivíduo as concepções políticas, econômicas e sociais de um

recorte histórico. A voz de Ibn Khaldun é de suma importância para se entender aspectos do

movimento cultural, a ação da Reconquista cristã, a erudição muçulmana ao lado do poder e

também os vestígios do próprio silêncio. Segundo Hourani:

A vida de Ibn Khaldun, segundo sua própria descrição, nos diz alguma coisa sobre o mundo a que pertenceu. (...) Sua própria trajetória mostrou como eram instáveis as alianças de interesses em que se baseavam as dinastias para manter o poder; (...) Mas uma coisa era estável, ou parecia ser. Um mundo onde uma família se mudava do sul da Arábia para a Espanha, e seis séculos depois retornava ao lugar de origem e continuava a ver-se num ambiente familiar, tinha uma unidade que transcendia as divisões de tempo e espaço; (...) 26.

Constatamos assim a manutenção dessa unidade, a sabedoria, no caso de Ibn

Khaldun – esta proveniente de Al-Andaluz e estimulada pelos sábios andaluzes em Norte de

África. Tal como Hourani apresenta sua perspectiva sobre a cultura desenvolvida no sul da

Península Ibérica:

A cultura continuou a florescer em torno de algumas cortes dos pequenos reinos nos quais se dividiu o Califado Omíada, os muluk a-tawa’if, ou ‘reis de partido’. Os almorávidas, que vinham das margens do deserto do Magreb, trouxeram um austero gênio de estrita aderência à lei malikita (...). Após os almôadas, o processo de expansão cristã foi extinguindo um centro de vida muçulmana após outro, até restar apenas o reino de Granada. A tradição que ela criara foi continuada, porém, de

23 Asibiyyah: “Espírito de parentesco” ou força de um grupo. É a partir dessa idéia de asibiyyah que Ibn Khaldun desenvolveu a teoria do processo histórico dos povos muçulmanos e dessa forma mantém uma conexão com o conceito de umram. 24 Umram: Al-umran, ou seja, civilização. A sociedade para Ibn Khaldun é um ser histórico e que se processa conforme leis próprias. 25 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 26 Idem, p.19-20.

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várias formas nas cidades do Magreb, e do Marrocos em particular, para onde migraram os andaluzes27.

É interessante observar que Hourani demonstra a elaboração das madrasas

andaluzas, suas respectivas lições dadas por ilustres mestres e como isso se expandiu em

direção ao Magreb, região para a qual a família Khaldun se viu deslocada. A influência da

cultura muçulmana no território da Península Ibérica se mostrou nessa pesquisa fundamental

para se compreender o período tardo-medieval da Reconquista cristã e como a erudição de Ibn

Khaldun preservara essa idéia de continuidade da produção do saber medieval islâmico

proveniente de Al-Andaluz.

Conforme nos aponta Miguel Attie Filho em sua obra Falsafa: a filosofia entre os

árabes 28 sobre o espetáculo da erudição produzida em Al-Andaluz: “(...) Al-Andaluz, sempre

que pôde, rivalizou com os Abássidas, tanto política como culturalmente” 29. Attie Filho

infere também sobre Ibn Khaldun que ele nos legou o sentido científico da história30.

Também temos de fazer justa reverência aos esforços de José Khoury e Angelina

Bierrenbach Khoury, que publicaram nas décadas de 1950/60 a tradução que utilizamos como

fonte para esta pesquisa. No que se refere a trabalhos acadêmicos brasileiros, há que se

destacar a tese de doutorado de Aidyl de Carvalho Preis O sentido da História através dos

Prolegômenos de Ibn Khaldun 31. Preis apresenta a importância histórica de Ibn Khaldun e da

sua formação intelectual para indicar um “complexo cultural” entre a Península Ibérica e

Norte de África32. E os cargos da vida pública que Ibn Khaldun assumiu eram vividos

concomitante à sua busca pelo conhecimento. Se faz necessário afirmar que a Autobiografia

de Ibn Khaldun é utilizada pelos já mencionados pesquisadores como base para compreender

a obra Muqaddimah. Nossa pesquisa versa sobre o estudo minucioso da Autobiografia como

forma de legitimação das posições de Ibn Khaldun como homem de saber e também como

estudo primordial para o entendimento da sua obra-prima.

27 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit., p.255. 28 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002. 29 Idem, p.302. 30 Idem, p.338. 31 PREIS, Aidyl de Carvalho. O sentido da História através dos Prolegômenos de Ibn Khaldun. Tese de Doutorado: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1972. 32 Idem, p.38.

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A dissertação de mestrado de Richard Max de Araújo Ibn Haldun: o estudo de seu

método à luz da idéia de decadência nos Estados do Ocidente muçulmano medieval 33 faz um

percurso histórico político sobre as obras de Ibn Khaldun e dá maior espaço e importância

para a Autobiografia. Araújo define Ibn Khaldun como uma personalidade singular e de

existência dividida:

Para entender a postura de Ibn Haldun é necessário ter em conta o mundo em que vivia. Muito do que ele escreveu sobre si em sua Autobiografia diz respeito também à história do Ocidente muçulmano. Apesar de sua cultura e erudição foi um homem de ação que viveu grande parte de sua vida entre lutas e conspirações e seu caráter duro o conservou até sua velhice. Essa personalidade forte reflete-se em sua obra, sobretudo na objetividade com que julga os feitos humanos34.

O erudito Ibn Khaldun tem sua autoridade atestada, pois é por meio de seus escritos

que conhecemos a forma como eram ensinadas as lições, como aponta Jamil Ibrahim

Iskandar: “Segundo Ibn Haldun, ‘o Corão enviado do céu em língua árabe e num estilo

adequado à maneira seguida pelos árabes para bem exprimir seus pensamentos’ era

inicialmente compreendido por todos (...)”35. A Autobiografia nos aponta os métodos de

aprendizado seguidos por Ibn Khaldun e logo após quando nos remetemos a Muqaddimah

presenciamos um tratado de erudição de cada etapa de transmissão do saber, esta de

procedência andalusi. Ao mesmo tempo em que se produzia essa corrente de estudos

andaluzes podemos atentar para a produção das crônicas régias medievais em território recém

conquistado pelos cristãos36. Um paralelo pode ser estabelecido com a produção de crônicas

feitas por Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara, nesse período próximo à vida de Ibn

Khaldun.

Obtivemos ainda a importante contribuição do pesquisador medievalista Diego Melo

Carrasco, atual membro docente da Universidad Adolfo Ibañez, Chile. Carrasco defende a

idéia do prolongamento político e cultural entre a Península Ibérica e Norte de África no

período tardo-medieval, o qual, em nossa pesquisa, se faz transparecer na Autobiografia.

Nesse sentido, Carrasco estabelece o contato entre as ditas regiões:

33ARAÚJO, Richard Max de. Ibn Haldun: o estudo de seu método à luz da idéia de decadência nos Estados do Ocidente muçulmano medieval. Dissertação de Mestrado: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2004. 34 Idem, p.29. 35 ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Al-Qur’an: O Corão, o Livro Divino dos Muçulmanos. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza, (organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 115. 36 Sobre o estudo erudito de crônicas na Península Ibérica do período tardo-medieval: GUIMARÃES, Marcella Lopes. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas de Fernão Lopes (séculos XIV e XV). Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004.

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Coetáneamente, el norte africano se vio afectado por las complicaciones de al-Andalus, debido a que el primero era um espejo de este último em cuanto a câmbios políticos se refiere. Lo anterior, tênia su más palmaria manifestación en la política intervencionista de los Emires andalusíes en la cuestiones del Magreb. Será en este complejo escenario de la historia islámica, en donde emergerá la figura de Abd-al-Rahman Ibn Jaldun37.

Segundo Carrasco podemos pontuar a singularidade da Autobiografia de Ibn

Khaldun em seu período: “(...) Lo cierto es que el género biográfico no será de los más

difundidos dentro del Islam medieval, en donde se le otorgará mucho más importancia a la

recopilación de notícias, así como las genealogias y las crónicas”38.

A produção intelectual de Ibn Khaldun se revela através de sua Autobiografia, ao

lado da Muqaddimah, mas na primeira presenciamos a experiência relatada por ele dentro do

espaço agitado pela política, tanto do norte de África quanto da Península Ibérica. Esse estudo

pormenorizado da Autobiografia nos revelou fragmentos de escolhas políticas dos soberanos

muçulmanos e cristãos no momento anterior e posterior de Reconquista, nos permitiu

reconstruir o pensamento histórico de Ibn Khaldun, adentrarmos a sabedoria andalusi e é uma

fonte medieval que deve ser valorizada como uma voz de autoridade para o período tardo-

medieval. Portanto, nossa pesquisa contribui para um aprofundamento das escolhas de Ibn

Khaldun através de sua Autobiografia, modo pelo qual encontramos o cerne dos princípios

formulados pelo historiador muçulmano e isso nos coloca frente às ações provocadas pela

erudição proveniente da Península Ibérica medieval.

De acordo com Juan Martos Quesada39 as diversas madrasas (escolas) de

jurisprudência islâmica pertenciam a determinados locais e tinham suas especificidades, por

exemplo, a escola que nos interessa no caso de Ibn Khaldun é a malikita40, pois ela era a

predominante em norte de África e Al-Andaluz. As escolas de jurisprudência islâmicas

tiveram seu início na região do sul da Península Ibérica tão logo a família Omíada se instalou

lá, trazendo então uma perspectiva de ensino conservador. No entanto, a escola malikita já

existia desde o século VIII no Oriente:

37 CARRASCO, Diego Melo. Una aproximación al mundo de Ibn Jaldun: precursor medieval de la Historia de las civilizaciones. In: I Jornadas Internacionales de Teoría y Filosofía de la Historia, organizadas por la Facultad de Humanidades de la Universidad Adolfo Ibañez, Viña del Mar, 2004, p.2-3. 38 Idem, p.3. 39 QUESADA, Juan Martos. O Direito Islâmico Medieval (Fiqh). In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza, (organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 213-246. 40 Uma das quatro escolas do mundo muçulmano, privilegiava o uso dos ditos proféticos ao contrário da escola hanafita que buscava a interpretação das leis conforme a opinião pessoal.

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A escola malikita fundada por Malik b. Anãs (m. 795), reúne a sunna de Medina, e sob sua influência é escrita a compilação mais antiga de Direito, a Muwatta’. Essa escola medinense é defensora do Corão e da sunna como fontes primordiais (...).Estende-se pelo Norte de África e foi doutrina oficial de Al-Andaluz41.

Nesse sentido da produção de conhecimento conservador, o erudito Ibn Khaldun

revela, segundo Massimo Campanini42, que o símbolo máximo de poder era o califado, ou

seja, a melhor forma de governo, e a sociedade como fio condutor para se entender a história:

Uma análoga saudade dos belos tempos passados do califado originário está presente em ‘Abd al-Rahman Ibn Khaldun, historiador e filosófo magrebino (1332-1406), mas que viveu longamente no Cairo sob os mamelucos. Compôs uma monumental História universal intitulada ‘Livro dos exemplos’, à qual antepõe uma Introdução (ou Muqaddimah) que compreendia a novidade de seu pensamento. Tal novidade consiste na apresentação de um método de análise realista do devir histórico que leva Ibn Khaldun a considerar a sociedade no centro da história e a política no centro da sociedade43.

Campanini nos chama atenção para a relação no Ocidente, da posição do saber como

instrumental - como já conhecemos no Ocidente desde a Antiguidade – da ação efetiva do

poder. No entanto, no Oriente, um homem de saber como Ibn Khaldun tem uma

movimentação nas diversas esferas políticas sem ser o homem que governa. Portanto, ele se

aproximaria mais do conselheiro e do artista por excelência nas cortes islâmicas.

Para se compreender o espaço de atuação de Ibn Khaldun – como letrado e militar –

temos que nos reportar ao contexto de sua época, a geografia de sua movimentação histórica e

devemos nos atentar para o nosso próprio olhar, já que estamos chegando até o passado pelo

nosso entendimento atual. Segundo François Dosse44, o historiador está inserido em seu

próprio tempo, e em nossa análise sobre o erudito Ibn Khaldun podemos concordar com o

pensador francês quando este explica:

A especificidade do tempo do historiador é, justamente, manter-se nessa tensão entre um sentimento de continuidade do presente diante do passado e o sentimento de um fosso que aumenta e que institui uma descontinuidade entre duas dimensões45.

A obra autobiográfica de Ibn Khaldun tem esse caráter de abranger duas dimensões,

pois tenta resgatar por meio do relato um passado “quase que perfeito” em Al-Andaluz e sua

41 QUESADA, Juan Martos. O Direito Islâmico Medieval (Fiqh). op. cit., p.230. 42 CAMPANINI, Massimo. O Pensamento Político Islâmico Medieval. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza, (organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, pp.247-283. 43 Idem, p.262. 44 DOSSE, François. A História. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru: Edusc, 2003. 45 Idem, p.74.

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realidade contemporânea em norte de África. Podemos afirmar ainda que a Autobiografia de

Ibn Khaldun é uma fonte histórica, pois, por mais que o autor tente reforçar certos

acontecimentos ao longo da narrativa, ele busca acima de tudo representar uma verdade para

os que virão. Conforme Dosse, o discurso é um meio de se compreender uma realidade: “A

história, como modo de discurso específico, nasceu de uma lenta emergência e sucessivas

rupturas com o gênero literário, em torno da busca da verdade” 46.

Voltando ao quadro latino-americano, destacamos, pela análise sobre Ibn Khaldun e

o mundo islâmico medieval, Roberto Marin Guzmán. Marin Guzmán é atual professor de

História da Cultura, História do Oriente Médio, História Medieval e Língua Árabe na

Universidade da Costa Rica. Marín Guzmán é fundador e coordenador da Cátedra “Ibn

Khaldun” de Estudos do Oriente Médio e África do Norte pela referida universidade. A

Cátedra “Ibn Khaldun” 47 é dedicada a organizar conferências, mesas redondas e cursos a

professores e estudantes locais e estrangeiros sobre temas ligados ao Oriente. A Cátedra “Ibn

Khaldun” estimula a publicação de trabalhos de investigação histórica sobre o Oriente Médio

e norte da África com o objetivo de favorecer a compreensão mútua e o diálogo entre as

diversas religiões e civilizações, tendo por base a utilização da trandisciplinaridade, da

interculturalidade, do cosmopolitismo e uma democratização e popularização do

conhecimento.

Diante dessa revisão bibliográfica, propomos ressaltar a importância da formação de

historiador de Ibn Khaldun, tendo a perspectiva de análise sobre sua posição como membro

de grande influência na política no século XIV e observador tácito da sociedade, em declínio,

de seu tempo. Nosso estudo possui, portanto, uma proposta de caráter reflexivo que permite o

diálogo entre a cultura islâmica e o poder. A construção dessa sabedoria muçulmana realizada

por Ibn Khaldun legitima sua própria imagem histórica, pois que a relevância de seus escritos

sustenta o nosso estudo acerca desse letrado na Idade Média, naquele ambiente efetivo de

ruído estridente de espadas.

46 DOSSE, François. A História. op. cit., p.13. 47 MARÍN GUZMÁN, Roberto. Estado de la cuestión sobre la Mahdiyya – Estudio de las fuentes del movimiento Mahdista en el Sudán. Editor Roberto Marín Guzmán. 1ª edição. Costa Rica, 2009, p.36.

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III. AL-ANDALUZ, PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE UM HISTORIADOR: IBN KHALDUN (1332-1406)

Para adentrarmos o mundo vivido por Ibn Khaldun é imprescindível esclarecer a

importância de Al-Andaluz na vida desse letrado muçulmano. Ibn Khaldun concebe duas

significações para Al-Andaluz: uma de contexto político e uma contemplativa.

A significação de contexto político estaria vinculada à conquista islâmica da região

ao sul da Península Ibérica. A partir de 711, os muçulmanos comandados pelo líder berbere

Tariq, conquistaram a região povoada antes por hispano-romanos e visigodos, introduzindo

uma administração própria, uma nova organização social e cultural. Os muçulmanos que a

partir daí povoaram essa região trouxeram consigo as tradições e instituições do Oriente

Médio, mas a região da Península foi sofrendo transformações próprias por conta do contato

com os povos mais ao norte e com as novas levas migratórias.

Ainda no século VIII ocorreu a independência política de Al-Andaluz do centro de

poder em Bagdá. Isso se efetuou quando do estabelecimento da dinastia omíada em território

hispano e sua definitiva separação do governo Abássida no Oriente. Daí em diante, esse novo

governo centralizado passou a se fortalecer cada vez mais, tornando-se um centro de saber

único no mundo medieval. E é o modelo de governo da época do califado que Khaldun

tentará expor como exemplo de poder perfeito.

Al-Andaluz significa um local híbrido formado pela alteridade entre cristãos e

muçulmanos. Além disso, é também uma região caracterizada por meio de novas formas de

contato construídas socialmente. Nesse sentido, o olhar antropológico de Clifford Geertz nos

pode ajudar a compreender que em situações de hibridismo social “o que acontece a um povo

em geral também acontece à sua fé e aos símbolos que a formam e sustentam” 48. Assim

sendo, Roberto Marin Guzmán aponta que, quando Al-Andaluz foi sucessivamente

conquistada pelos árabes e berberes, manteve-se a noção da importância do Islã e da

influência dessa religião para os diferentes povos que a habitavam:

[...] El Islam no es solo una religión sino también una cultura y un modo de vida que logra permear todos os aspectos de la sociedad. En al-Andalus el Islam llegó a ser, como ya lo era en otras provincias del Imperio Musulmán, el elemento más importante para establecer la separación entre los conquistadores y los conquistados. Por esta razón la clasificación que se puede hacer de los varios

48 GEERTZ, Clifford. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p.67.

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grupos existentes cobra también un cariz religioso. Los elementos religiosos influenciaban asimismo las relaciones entre los diferentes grupos49.

Os reinos cristãos ao norte da Península, por sua vez, também foram sendo

constituídos fundamentalmente por meio dessa sinalização do “outro”, ou seja, daquilo que é

diferente. A independência política, econômica e cultural de Al-Andaluz constituiu um local

de prestígio e também de formação única de uma categoria social, os moçárabes50.

Dessa forma, para entender o predomínio de Al-Andaluz na perspectiva

khalduniana, é importante a observação sobre a sua independência política dos centros de

poder do Oriente com a derrubada da dinastia dos califas omíadas em Damasco e a ascensão

dos abássidas. É nesse período em que o jovem ’Abd al-Rahman (um dos sobreviventes

omíadas) se estabelece no Magreb e chega à Península Ibérica, tornando-se emir em 756.

Quando da desintegração no sul da Península em diferentes reinos islâmicos, ou

taifas, no século XI, ação em que colaboraram Almorávidas e depois Almôadas, Al-Andaluz

foi enfraquecendo seu poder através das fronteiras. Sabemos, por meio de nossa fonte, que a

família dos Khaldun esteve sempre próxima desse poder islâmico desde o período Omíada na

Península e que após a data de 1248, momento do apogeu da Reconquista cristã, esta passou

para o território magrebino. Segundo Ibn Khaldun: “A família Khaldun é de origem

sevilhana; transportou-se para Túnis nos meados do século VII da Hégira, na época da

emigração que se seguiu à tomada de Sevilha pela tropas de Ibn Adfonso, rei da Galícia”51.

A partir dessa influência do contexto político de Al-Andaluz no pensamento de Ibn

Khaldun, passamos a entender o motivo da sua contemplação pelo saber. É por meio da

caracterização do saber na obra de Ibn Khadun que podemos pontuar as lições recebidas por

este, por meio do modelo que era utilizado na Península e depois no norte de África. Deve-se

ressaltar que as lições foram propostas a Ibn Khaldun pelos mais famosos mestres andaluzes,

magrebinos e tunisianos da época, pois que o nosso historiador conseguiu todos os

certificados de conclusão de maneira lisonjeira.

O que deve ser salientado é a migração intensa de mestres andaluzes para as

madrasas em norte de África. Esses mestres em breve despertariam a inevitável admiração de

Khaldun por esse mundo de saber. Inclusive o capítulo mais longo da Autobiografia é

49 MARÍN GUZMÁN, Roberto. Sociedad, política y protesta popular en la España Musulmana. San José: Editorial UCR, 2006, p.92. 50 Moçárabes: Homens cristãos da Península Ibérica que viviam no território sob domínio dos árabes. 51 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.479.

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dedicado aos mestres de Khaldun, intitulado “De minha educação”. A seguir citaremos um

trecho da fonte no qual Khaldun relata sobre um de seus mestres:

(...) Aprendi a ler o santo livro, tendo por mestre de escola Abd Allah Muhammad Ibn Nazal Al-Ansari, oriundo de Jalla, localidade da província de Valência, na Andaluzia, que fizera seus estudos com os primeiros mestres desta cidade e dos arredores, e sobrepujava a todos seus contemporâneos no conhecimento das diversas leituras corânicas52.

Khaldun nos demonstra por meio da fonte que se dedicava com muita atenção aos

estudos desde tenra idade, e que valorizava os sábios de sua época:

Desde minha mocidade, sempre me mostrei ávido de conhecimentos e me empenhei com grande zelo a freqüentar as escolas e os cursos das diversas disciplinas. Após a grande epidemia que arrebatou nossos homens mais notáveis, nossos sábios, nossos professores e que me privou de meu pai e de minha mãe, assistia regularmente ao curso do professor Abu Abd Allah Al-Abelli, e, depois de três anos de estudos sob sua direção, achei enfim que eu sabia alguma coisa53.

Com base nesse relato de Ibn Khaldun podemos verificar como os estudos eram a

base formadora para o futuro historiador. Além disso, os estudos iriam ajudá-lo a seguir

carreira dentro da burocracia islâmica. A excepcionalidade da formação erudita de Ibn

Khaldun o transformou em um letrado de vários ramos do saber, num momento em que não

havia as divisões disciplinares como entendemos atualmente. Khaldun se dedicou ao cargo da

pena com maior afinco, pois sabia que a sabedoria era o meio sustentador do poder:

(...) quando o império ainda está no meio de sua carreira, o príncipe não sente tanta precisão de seus serviços guerreiros; a autoridade está assegurada e não tem outra preocupação senão recolher os frutos da soberania. (Agora, o essencial para ele) é recolher os impostos, registrar receita e despesa, rivalizar em munificência com as outras dinastias e transmitir suas ordens a todo mundo. Para isso, a pena é seu melhor auxiliar, e é grande a necessidade que tem de recorrer a ela. Em tempos assim, as espadas, for falta de uso, descansam nas suas bainhas, a menos que algum acontecimento grave venha perturbar a ordem e que se necessite delas para fazer frente a qualquer ameaça. Enquanto as espadas se calam, as penas triunfam; o prestígio, as riquezas, o bem-estar são então o apanágio dos escritores54.

Portanto, compreendemos como Ibn Khaldun retratava historicamente sua época por

meio da explicação do contexto político e sua ênfase para a época do califado. Ao mesmo

tempo, verificamos uma rede de compreensão histórica da erudição produzida inicialmente

em Al-Andaluz e depois transferida para o território magrebino.

52 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.492. 53 Idem, p.500. 54 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1959, p. 49-50.

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IV. A “AUTOBIOGRAFIA” DE IBN KHALDUN (1332-1406): TRAJETÓRIA DO ERUDITO

O presente estudo deve se valer do modelo narrativo da fonte e dos apoios

investigativos dos pesquisadores que foram aqui escolhidos. Segundo Peter Burke55 o modelo

autobiográfico revela uma perspectiva enriquecedora para o historiador, pois permite uma

análise mais acurada de um contexto tendo por fonte uma individualidade. Quando Ibn

Khaldun revela a angústia de estar ligado a guerras ou aos cargos da administração,

verificamos a preocupação do historiador com sua erudição e percebe-se a tradição de sua

família que lhe ensinou uma valiosa lição: estar sempre ao lado do poder, mesmo quando os

governantes fossem substituídos. Essa política realizada pela família dos Khaldun teria seu

ponto de partida nas formas de poder na Península Ibérica, com continuidade, adaptação e

sobrevivência nos altos escalões no norte de África.

A Autobiografia de Ibn Khaldun nos demonstra que seu autor possuía uma origem

remota na Península Arábica através da tribo dos Hadramut, o representante na época era Uail

Ibn Hojr que foi, segundo o historiador, um dos Companheiros do Profeta (século VII). Logo

após ocorreu a migração de parte dessa tribo para a Península Ibérica. Nesse momento, dos

séculos XI-XII a família Khaldun se encontrava ao lado da dinastia dos Almorávidas e depois

com a substituição destes passou a compartilhar do poder com os Almôadas. Ibn Khaldun nos

lembra e legitima seus antepassados relatando conforme a sua Autobiografia que Curaib Ibn

Othman e seu irmão Khalid foram os detentores do poder em Al-Andaluz. Os Khaldun se

estabeleceram inicialmente em Carmona e depois em Sevilha.

Conforme a descrição de Ibn Khaldun, em meados do século XIII, o sultão Abu

Zacaria se apoderou e tornou-se soberano de Ifríkya (Túnis). Logo depois da morte desse, Al-

Andaluz mergulhou na subversão e o rei cristão Fernando III (1217-1252) aproveitou a

ocasião e atacou a região de Fronteira (formada pela planície que se estende de Córdoba,

Sevilha e Jaen). O sultão de Granada realizou acordos com Fernando III e estabeleceu-se

nessa região da Península Ibérica. Assim a família Khaldun partiu para Ceuta e após se fixou

em Túnis. Nesse ponto da Autobiografia localizamos um passado mais próximo de Ibn

Khaldun por meio da figura do representante de sua família Al-Haçan Ibn Muhammad Ibn

Khaldun que trabalhou na corte do emir Abu Zacaria. Al-Haçan, vivendo sob tutela do

governo Hafsida (1228 –1574), recebia apontamentos e iqta56 . O filho de Al-Haçan, Abu

55 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.116. 56 Iqta: termo polêmico por sua designação comumente dada aproximando-se de feudo.

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Bacr Muhammad Ibn Khaldun obteve as mesmas bondades régias, mesmo com o falecimento

do referido emir em 1249 na região de Bona. Logo após, o emir Abu Ishac conquistar Ifríkya,

Abu Bacr Muhammad Ibn Khaldun foi nomeado Amir Al-Achgal (ministro das operações

financeiras, função dos grandes dignitários almôadas, podendo nomear, destituir e pedir

contas a perceptores, usando até o emprego da tortura) e em Bugia tornou-se hajib (primeiro

ministro do sultão). De acordo com Khaldun quando Ibn Abi Omara tomou Ifríkya mandou

retirar a fortuna, torturar e assassinar Abu Bacr Muhammad Ibn Khaldun na prisão.

O filho de Abu Bacr, Muhammad Ibn Khaldun, desempenhou uma ação militar que

influenciou Khaldun quando homem da espada. De acordo com Ibn Khaldun, Muhammad Ibn

Khaldun realizou a peregrinação a Meca em 1319, em seguida mais uma peregrinação

surrerogatória em 1324 e depois disso recolheu-se na solidão de sua casa. Esse avô de Ibn

Khaldun possuía uma grande importância para o governo de Túnis:

O sultão conservou-lhe (a Muhammad Ibn Khaldun) todos os favores e as honras anteriormente tributadas, e continuou a conceder-lhe grande parte dos emolumentos e pensões com que o Estado o tinha gratificado. O príncipe convidou-o muitas vezes, mas inutilmente, para tomar lugar de primeiro ministro57.

Ibn Khaldun acrescenta que, quando o sultão Abu Yahia não estava em Túnis,

confiava a guarda da cidade a seu avô. O historiador nos aproxima de seu tempo presente

quando indica a presença do seu pai:

No ano de 737 (1336-37), ao falecer meu avô, meu pai, Abu Bacr Muhammad, deixou a carreira militar e administrativa para dedicar-se à ciência (a lei) e à devoção. (...) Desde o dia em que meu avô renunciou aos negócios, passava seu tempo ao lado de Abu Abd Allah, e meu pai, que tinha sido entregue aos cuidados deste doutor, aplicou-se ao estudo do Alcorão e da lei. Meu pai cultivou com paixão a língua árabe e era versado em todos os ramos da arte poética. Filólogos de profissão recorriam a seu critério – fato que testemunhei – e lhe submetiam seus escritos. Faleceu, arrebatado pela grande epidemia do ano de 74958.

Nessa direção da interpretação da Autobiografia indicamos a autenticidade da

erudição de Ibn Khaldun por sua formação específica com mestres andaluzes e magrebinos

em Túnis. A madrasa (escola) de formação de Ibn Khaldun foi a malikita, que era a escola

oficial em Al-Andaluz e tinha por lições: leitura específica do Alcorão, o Tafassi (sobre

tradições escritas no Muwatta que servia de base ao sistema da jurisprudência malikita), o

Tamhid, o Tashil (sobre regras gramaticais), Mukthaçar (resumo de jurisprudência) e também

foram ensinados a Ibn Khaldun as poesias citadas no Kitab Al-Agani.

57 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.490. 58 Idem, p.491. A grande epidemia se refere à Peste Negra (1348/1349).

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A carreira intelectual de Ibn Khaldun paralela àquela exercida oficialmente por ele

em diversos sultanatos foi a mola propulsora de suas obras. A política de sua época era

dominada ainda pelos conflitos no norte de África entre a dinastia dos Hafsidas (1228-1574) e

a dinastia dos Marínidas (1196-1465). Além dessas duas grandes dinastias, as quais Ibn

Khaldun serviu, podemos destacar a importante tribo do norte de África, os Banu Hilal. Na

perspectiva externa, a política estava pressionada pelos turcos seldjúcidas oriundos da Ásia

Menor, pelo avanço frenético dos mongóis e pelos interesses permanentes dos mamelucos do

Egito. No entanto, o homem político Ibn Khaldun soube negociar em prol de seus interesses

para manter sua posição todo tempo próxima do poder, pois isso era o que lhe garantia

triunfar com a ação de sua pena.

Em 1352, o jovem estudioso Ibn Khaldun ingressou como escrivão do parafo real

(função da pena que cabia àquele que registrava dados concernentes à administração real) sob

a dinastia Hafsida em Túnis. Em seguida passou a ser o secretário do sultão Abu Inan em

Fez, sob a dinastia dos Marínidas, pois uma comitiva de sábios um tempo antes o tinha

impressionado, o que o fez prometer a si mesmo um dia seguir o caminho do Marrocos. Mas

seu ofício ao lado do sultão Abu Inan foi curto e em 1357 Ibn Khaldun foi preso a mando

desse mesmo sultão e solto apenas quando o soberano morreu. O sucessor de Abu Inan, o

sultão Abu Salem nomeou Ibn Khaldun novamente como secretário do governo marínida,

somando a esse dois novos cargos: o de chefe de chancelaria e de madhalim (aquele que

repara as injustiças). O novo governo marínida se encontrava em posição instável e Ibn

Khaldun retornou para Túnis em 1362. Nesse ínterim, Ibn Khaldun realizou uma missão

diplomática em 1363, na qual era necessária a ratificação de um tratado de paz entre o sultão

Ibn Al-Ahmar (Muhammad V), sultão de Granada e Pedro, o Cruel (rei de Castela e Leão):

No ano seguinte mandou-me (Muhammad V) em missão diplomática à corte de Pedro, filho de Afonso, e rei de Castela. (...) Chegando a Sevilha, onde pude contemplar inúmeros vestígios deixados pelos meus poderosos antepassados, fui apresentado ao rei cristão que me recebeu com as maiores honras. (...) O rei Pedro quis então me guardar perto de si; ofereceu-me devolver a herança dos meus avós em Sevilha, que ao tempo se achava nas mãos de alguns altos dignitários de seu Império. (...) Quando de minha despedida, deu-me cavalo e provisões, e confiou-me uma excelente mula, equipada com sela e freio guarnecido de ouro, que devia entregar ao sultão de Granada59.

Obtido o sucesso nessa negociação, Ibn Khaldun passou a ser professor da mesquita

de Bujaya (norte de África), mas a instabilidade era constante no Magreb Medieval e ele teve

de deixar de lecionar para servir ao senhor de Tlemcen, o sultão Abu Hammu. Nessa posição,

59 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p. 511-512.

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Ibn Khaldun era o responsável por registrar os impostos do reino de Tlemcen (uma das

funções de secretário de parafo), cobrar dos berberes o pagamento efetivo dos impostos

devidos ao sultão e era ainda o hajib (aquele que mantém a harmonia dentro da sociedade

islâmica). Essa atitude militar no Magreb perturbaria tanto Ibn Khaldun que ele se retirou para

um ribat (parte de uma mesquita ou madrasa que servia de recolhimento para a meditação

religiosa e erudita muçulmana). Tempos depois, encontramos Ibn Khaldun em Biskra como

funcionário do jovem sultão de Fez e soberano do Marrocos, Abd-al-Aziz. Em 1372, Khaldun

se refugia da perseguição de seu antigo protetor, o sultão Abu Hammu, que não admitia a sua

saída do governo de Tlemcen. Em 1374, o sultão Abu’l-Abbas se torna soberano da dinastia

Marínida e passou o controle da cidade de Fez para o emir Abd’ ur-Rahman. Então, nesse

momento, Ibn Khaldun passa para território hispano:

Foi somente no mês de Rabia de 776 (agosto-setembro de 1374) que desembarquei neste local, em que tinha firmado o propósito de fixar residência e de passar o resto de meus dias no retiro e no estudo. Chegando a Granada, apresentei-me ao sultão Ibn Al-Ahmar, que me acolheu com sua bondade peculiar60.

Ibn Khaldun, novamente no norte de África, voltou a lecionar em Tlemcen, mas

encontrou-se mergulhado em conflitos com berberes da região e afirma que era o momento de

pôr sob a pena a Muqaddimah e grande parte de sua Autobiografia:

(...) Estabeleci-me então em Calat Ibn Salama, castelo fortificado no país de Banu Toujin e que os Zauawida desfrutavam como icta’, doado pelo sultão. Fiquei ali durante quatro anos, completamente livre de qualquer preocupação, longe das agitações da política, e foi ali que comecei a composição de meu trabalho sobre a História Universal. Neste retiro acabei os Prolegômenos, obra cujo plano é completamente original, e para cuja execução tinha tomado o melhor de uma massa enorme de material e de informações. (...) Durante minha longa permanência neste castelo tinha completamente esquecido o reino do Magrib e o de Tlemcen para me ocupar unicamente da presente obra. Quando passei à História dos Árabes, dos Berberes e dos Zanatas, depois de ter terminado os Prolegômenos, desejava grandemente consultar muitos livros e coletâneas que se encontravam somente nas grandes cidades; tinha que corrigir e pôr a limpo um trabalho quase ditado de memória; (...)61.

Logo após optou por uma peregrinação a Meca, mas acabou por se encontrar em

1383 no Cairo. E foi nesse local que Ibn Khaldun angariou, sob a influência do sultão egípcio

Malik Al-Daher, o posto de professor de jurisprudência malikita na Mesquita de Al-Azhar,

ocupou cadeira no Colégio d’Alcamha e um ano após tornou-se Grande Cádi do Rito Malikita

do Cairo. E foi através desse último cargo de cádi (juiz) que Ibn Khaldun teve uma atitude

60 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.530. 61 Idem, p. 532-533.

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obstinada contra a corrupção no Cairo realizada pelos adel (testemunhos que tinham as

funções de assessor do cádi e de escrivão), contra a fraqueza dos hakam (oficiais encarregados

de fiscalizar a administração judiciária e de fazer valer as sentenças proferidas pelo cádi) e do

modo de proceder pernicioso dos muftis (legistas consultores) do rito malikita. Nessa ocasião

Ibn Khaldun perde toda a sua família num naufrágio e parte definitivamente em direção a

Meca em 1387 com a solidariedade do sultão egípcio. De seu retorno destacamos as seguintes

palavras de Ibn Khaldun em sua Autobiografia: “Desde que retornei da peregrinação, até este

momento, ou seja, até ao começo de 797 (fim de outubro de 1394), continuei a viver no retiro,

gozando boa saúde e unicamente ocupado em estudar e lecionar. (...)”62.

A parte final da Autobiografia é completada por outros três historiadores: Makrizi

(1364-1442), Ibn Chohba (c. século XIV) e Ibn Arabchah (c. século XIV). Esses relatam um

mesmo encontro realizado em 1400: o de Ibn Khaldun com o líder mongol Tamerlão em

Damasco. Em 1401, Ibn Khaldun retorna ao Cairo e foi renomeado Grande Cádi, mas foi

substituído diversas vezes, quando retomou esse cargo em 1406, morreu em 25 de março do

referido ano.

Dessa maneira, produzimos o gráfico abaixo63, em que podemos observar o tempo

em que o historiador muçulmano Ibn Khaldun permaneceu em determinadas cidades,

conforme a Autobiografia: Túnis (35%), Cairo (31%), Fez (8%), Tlemcem (7%), Calat Ibn

Salama (5%), Sevilha (4%), Al-Batna (4%), Ceuta (1%), Damasco (1%), Bugia (1%) e

localidades pertencentes a caminhos para se chegar a determinada região, locais em que o

historiador pouco tempo ficou e a região de peregrinação a Meca, esses somados

denominamos “outros”, (3%). A importância desse levantamento nos conduziu a uma

visualização da mobilidade de Ibn Khaldun e sua transição permitida entre diversas esferas de

poder no medievo.

62 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.545-546. 63 Gráfico produzido no processo da pesquisa de Iniciação Científica (2007-2009).

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Permanência territorial de Ibn Khaldun ao longo

da descrição da "Autobiografia"

35%

31%

8%7%5%

4%

4%

1%

1%

1%

3%

Tunis

Cairo

Fez

Tlemcem

Calat Ibn Salama

Sevilha

Al-Batna

Ceuta

Damasco

Bugia

Outros

FIGURA 1: Gráfico percentual da presença de Ibn Khaldun em algumas cidades medievais.

Ibn Khaldun como um historiador muçulmano da Baixa Idade Média permite uma

visão complementar das ações de Reconquista na Península Ibérica. Uma personalidade

erudita como a dele demonstra uma movimentação política e territorial que desmistifica a

imobilidade no medievo. Por isso construímos um mapa64 de sua movimentação, partindo de

uma série de estudos detalhados acerca de cada cidade em que o historiador muçulmano

viveu, perpassou simplesmente ou aquelas em que exerceu por um determinado período um

poder local definido. Ibn Khaldun era levado aos lugares muitas vezes por determinações

políticas de sultões, que de alguma maneira desejavam sua presença na corte. Dessa maneira,

podemos exemplificar a movimentação de Khaldun pelo trecho de fonte abaixo:

Chegando a Ceuta no começo de 764 (outubro 1362), recebi a acolhida mais fervorosa do cherif Abu’l-Abbas Ahmad Al-Huçaini, personagem principal da cidade e aliado por matrimônio com a família dos Azif. (...) Desembarcamos em Gibraltar (Jabal Al-Fath), que pertencia na ocasião ao soberano dos Merinidas; escrevi a Ibn Al-Ahmar, sultão de Granada, e a seu vizir Ibn Al-Khatib, informando-os do que me tinha acontecido, e parti em seguida para Granada65.

Esse trecho da fonte nos remete a passagem de Ibn Khaldun do norte da África a

Granada para resolver o já referido acordo político entre Muhammad V, sultão de Granada e o

rei cristão Pedro, o Cruel. Assim, os detalhes que Ibn Khaldun apresenta em suas viagens são

64 Mapa produzido ao longo da pesquisa de Iniciação Científica (2007-2009) e apresentado no 16º e 17º EVINCI. A base da figura do referido mapa pertence ao site www.google.com/linkmaps. A construção feita dos caminhos de Ibn Khaldun pertence à minha autoria e a elaboração gráfica a Daniel A. A. Orta. 65 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.510.

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importantes para tentarmos nos aproximar da sua movimentação, esta que pertence ao mundo

dos viajantes árabes no medievo.

FIGURA 2: Mapa da trajetória de Ibn Khaldun pelos locais onde exerceu os ofícios de espada e de pena (erudito).

A construção do mapa também tornou possível um olhar mais abrangente sobre o

autor, um agente da história, e o mundo em que viveu, marcado por muitos conflitos de

caráter político. Dito isso, é importante lembrar que Khaldun também exercia dessa maneira

o ofício próximo ao que hoje entendemos como o de “diplomata”.

Para melhor visualizarmos o mapa, citaremos em forma de síntese, os locais já

anteriormente referenciados por onde Ibn Khaldun perpassou em sua trajetória de vida ao lado

dos cargos que ele assumiu. Em Túnis (1332) nasce Ibn Khaldun. Na adolescência foi

escrivão do parafo real do sultão Abu Ishac. O cargo de escrivão do parafo real consistia em

ter controle da administração do sultão, tal posição somente era concedida àqueles que

estudavam as lições islâmicas com afinco. Em 1352, em Tebessa, Khaldun fazia parte do

exército Hafsida seguindo os sábios marínidas pelo Norte da África, estes últimos sob

liderança do sultão Abu Inan. O exército Hafsida perdeu a batalha contra os Marínidas e

Khaldun teve que se refugiar em Tebessa e depois em Gafsa. Nesse mesmo ano, Khaldun

refugiado em Gafsa, passou posteriormente para Biskra. Depois, em Batna, Khaldun

encontrou-se com um oficial do exército marinida chamado Ibn Abi Amr. Este oficial levou

Khaldun para Bugia (1353) e depois conquistou tal cidade. Em Fez (1354), Ibn Khaldun foi

convidado pelo sultão Abu Inan para ser seu secretário do parafo (Khaldun não gostou dessa

posição porque não honrava sua descendência, ou seja, seus antepassados nunca ocuparam tal

cargo) e integrante das reuniões dos sábios. Ainda em Fez, Khaldun em 1355-1356, foi

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integrado como o responsável pelas discussões literárias a pedido do sultão Abu Inan. Em

1359, o substituto do sultão Abu Inan, o sultão Abu Salem, colocou Khaldun no cargo de

secretário particular e depois no de madhalim (o reparador das injustiças).

Já em 1362, Khaldun realizava a travessia do Norte de África (Ceuta/Gibraltar) para

a Península Ibérica. No mesmo ano, em Granada, Muhammad V, sultão de Granada, recebe

Khaldun. Nesse momento o referido sultão nomeia Khaldun como seu “diplomata”. Em

Sevilha (1363), ocorreu o encontro “diplomático” entre Ibn Khaldun e Pedro, o Cruel (rei de

Castela e Leão). O encontro é favorecido pelo sultão Muhammad V e Khaldun foi

encarregado por este da ratificação do tratado de paz entre o rei Pedro e os emires de Al-

Andaluz.

Em 1365, em Almeria, Khaldun era o pregador da Grande Mesquita, lecionava

jurisprudência e ao mesmo tempo cobrava os impostos das tribos berberes em nome do sultão

da região, Abu’l Abbas. Khaldun indo à Bugia assumiu o cargo de hajib do sultão Abu Abd

Allah.

Khaldun foi também a Biskra em 1365 e daí passou para Tlemcen, onde o sultão

Abu Hammu o recebe em sua corte como hajib e secretário do parafo. Khaldun participa de

expedições militares de conquista do sultão Abu Hammu. Em 1370, o letrado muçulmano

retorna ao governo marínida de Biskra.

Entre 1372 a 1374, em Fez, Khaldun retorna para a esfera política, por pouco tempo,

na corte do sultão Abu’l Abbas. Em 1374, Khaldun deseja se afastar da política e se dedicar

aos estudos. O sultão em Granada na referida época era Ibn Al-Ahmar e recebeu o erudito em

seu território.

O retorno de Khaldun ao norte de África aconteceu em 1374 (permanência em

Tlemcen e Hunain), pois o poder magrebino disputava a presença do historiador Khaldun em

suas referidas cortes. Nesse período ocorreu em Batna o encontro de Khaldun com os Aulad

Arif, tribo árabe que patrocinará o ambiente necessário para o historiador muçulmano escrever

suas obras Muqaddimah e Autobiografia. Assim entre 1374 à 1378, Ibn Khaldun escreveu

parte da Autobiografia e a escrita completa da Muqaddimah no castelo nomeado “Calat Ibn

Salama”.

Entre 1378 à 1382, Khaldun perpassa pelas seguintes localidades: Souça, Túnis,

Porto de Alexandria, Suez, Yambo, Meca, Cosair e chegando em 1383 no Cairo. Nessa região

assume aulas na Mesquita de Al-Azhar e assume o cargo de cádi malikita. O cargo de cádi

malikita dependia do Califado e da compreensão do estudioso das leis das palavras escritas no

Alcorão e na Sunna.

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Em 1400, ocorreu o encontro diplomático entre Ibn Khaldun (como integrante do

governo egípcio) e Tamerlão, líder dos mongóis. Khaldun consegue convencer Tamerlão a

deixar a cidade de Damasco e assim o historiador pôde retornar ao Cairo, se estabelecendo aí

até a sua morte em 1406.

A amplitude das viagens de Ibn Khaldun relatadas sinteticamente nos parágrafos

precedentes evidencia a procura por governos estáveis que se dispusessem ao patrocínio de

seu saber. O interessante é que constatamos também a grande vontade dos sultões em receber

Khaldun. Tal fato demonstra, o que também orientou nosso pensamento, a estreita relação

entre poder e saber, este último sendo uma espécie de elemento legitimador do primeiro.

V. OS ESCRITOS DE IBN KHALDUN

A obra de Ibn Khaldun foi escrita entre 1374-1378 e é dividida em: Autobiografia

de Ibn Khaldun e seus Prolegômenos – Muqaddimah. De acordo com Richard Max de

Araújo66, em 1382 Ibn Khaldun em Túnis fez uma revisão da sua Muqaddimah e deixou um

manuscrito da obra ao sultão hafsida da região, Abu’l-Abbas. Logo depois, quando Ibn

Khaldun estava no Cairo, enviou outra cópia do manuscrito para o sultão marínida de Fez,

Abu Faris. Em 1397 dedicou uma terceira cópia do manuscrito ao sultão mameluco Malik al-

Zahir Barquq. As revisões feitas por Khaldun se realizaram até 1402 (manuscrito n. 1936 de

Atif Efendi de Istambul). A Autobiografia foi escrita por Ibn Khaldun desde 1374, passando

pela morte do autor até sua finalização por três outros historiadores islâmicos: Makrizi (1364-

1442), Ibn Chohba (c. século XIV) e Ibn Arabchah (c. século XIV).

A tipologia das fontes para o nosso estudo são a Autobiografia (pertencente como

anexo nessa edição brasileira ao primeiro livro da Muqaddimah) e a Muqaddimah (dividida

em três livros) – que utilizamos como respaldo para a compreensão de um historiador

islâmico na Idade Média e sua relação com o poder e, como base para esclarecer as decisões

do próprio Ibn Khaldun, entre seus cargos políticos e sua vida de erudito. As referidas obras

que utilizamos em nossa pesquisa foram publicadas entre as décadas de 1950 e 1960 pelos

pesquisadores brasileiros José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, transliteração direta

dos manuscritos em língua árabe para o português. Os livros encontram-se disponíveis para a

66 ARAÚJO, Richard Max de. Ibn Haldun: o estudo de seu método à luz da idéia de decadência nos Estados do Ocidente muçulmano medieval. op. cit., p.32-34.

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pesquisa na Biblioteca Pública do Paraná e estão em boas condições de conservação para seu

estudo.

A fonte Autobiografia de Ibn Khaldun e parte de sua obra Muqaddimah (Introdução

à História Universal) apresentam detalhes históricos e conceitos políticos, eruditos,

econômicos e sociais para o século XIV. O estudo pormenorizado e detalhado da

Autobiografia foi imprescindível para realizar o trabalho tendo por foco a cultura islâmica e

seus princípios inerentes em um momento específico, o período tardo-medieval. A

Autobiografia de Ibn Khaldun e a Muqaddimah foram escritas no exílio do historiador em

Calat Ibn Salama (local atual do país Argélia, no norte de África).

A Muqaddimah ou Os Prolegômenos, o mais famoso dos escritos de Ibn Khaldun,

foi revisada por ele durante toda a sua vida. A intenção de Ibn Khaldun foi realizar uma

introdução de uma História Universal com o uso de uma metodologia crítica e como um

manual para aqueles que são historiadores. A Muqaddimah se divide em partes: introdução ao

método da História por Ibn Khaldun, nessa parte podemos apontar a crítica de Ibn Khaldun

ao gênero histórico produzido até sua época, pois a história para ele era a ciência baseada em

explicações admissíveis e deveria conferir uma exatidão na datação e rememoração dos fatos,

isso que Ibn Khaldun iria colocar por escrito como as tarefas do historiador; análise da

civilização (aqui identifica-se a influência do meio sobre a natureza humana); observação do

nomadismo (análise da dicotomia nômades X sedentários, além de um trabalho de etnologia e

a implantação do conceito do “espírito de grupo”); estudo sobre as dinastias e poderes (Ibn

Khaldun analisa as diversas formas de governo, ressaltando as formas na Península Ibérica e

no norte de África; também observa as ações do poder espiritual por parte do Califa para os

muçulmanos, de Cohen para os judeus e Papa para os cristãos); observação sobre o

surgimento do fenômeno urbano (proliferação das cidades, observação da economia e do

“espírito de grupo”); análise econômica (meios de subsistência e o comércio); exame das

ciências, das artes e do ensino; e como apêndices estão o estudo de Ibn Khaldun sobre o

Planisfério de Idrissi (explicações de Ibn Khaldun sobre os diversos climas e suas divisões

geográficas), e a Autobiografia de Ibn Khaldun (parte essencial de nossa pesquisa).

O presente trabalho transferiu de certa forma a análise da fonte autobiográfica para,

como parte de nosso estudo, um sentido por nós construído de uma biografia de Ibn Khaldun.

Dessa forma beneficiou a ampliação do objetivo primeiro para uma reflexão sobre a biografia

histórica. De acordo com o grupo de pesquisadores do livro Como se faz a História:

Historiografia, método e pesquisa, a prática reatualizada, as biografias históricas fazem parte

de um paradigma atual:

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As biografias atuais acompanham (como a história política, militar ou nacional) o avanço geral da disciplina, como demonstra a ‘nova história’: Le Goff, por exemplo, transformaria em seu Saint François d’Assise (1999) um ensaio de 1967 consagrado ao poverello. Como em Saint Louis (São Luís), ele visou fazer do protagonista um ‘sujeito globalizante em torno do qual se organizaria todo o campo da pesquisa’. Treze anos antes, Françoise Autrand teria feito o mesmo ao narrar a história de Carlos VI. O historiador alemão Andréas Gestrich, por sua vez, destacaria o percurso exterior (itinerário, cursus honorum) dos atores sociais. Em todos esses casos, a questão primordial era verificar a sociabilização dos indivíduos e a importância da margem de manobra (‘interstício’) do agente, margem variável segundo o reconhecimento social da disciplina. Preponderantes nos anos 1960, as ciências humanas (sociologia, demografia, etnografia, economia, comunicação, psicologia) estão hoje a serviço do projeto biográfico67.

A leitura e a investigação da Autobiografia de Ibn Khaldun se realizou como um

autêntico roteiro para se estabelecer a cronologia da vida do autor, desde seus antepassados

até o final de seus dias. Esse objeto histórico deve ser manuseado com cautela, pois se trata de

um documento legitimador produzido pelo erudito Ibn Khaldun, que escolheu os dados que

correspondiam aos seus anseios na vida pública e na vida privada. Entretanto, a fonte é

reveladora na medida em que favorece com uma interpretação e uma experiência que é

apresentada somente por meio dos relatos do “eu”. A escrita do gênero autobiográfico nesse

caso correspondia a uma necessidade de Ibn Khaldun se justificar perante suas ações e a sua

escolha de fatos nos permitem analisá-lo como ele gostaria de ser reconhecido. Quando Ibn

Khaldun revela uma angústia de estar ligado a guerras ou aos cargos da administração que

assumiu, verificamos a preocupação do historiador com sua erudição e percebe-se uma

tradição de sua família que lhe ensinou a sempre estar ao lado do poder, mesmo quando os

governantes fossem substituídos.

A produção de uma biografia histórica, enfim, quase que necessariamente é um

trabalho solitário e da expansão de uma certa intimidade da vida do biografado, segundo Jean

Orieux:

Uma biografia é uma obra em que entra a colaboração espontânea e até o acaso. Não gosto de falar de ‘trabalho de equipa’ porque não sei o que isso é. A solidão no meio de uma pilha de documentos é ainda a situação mais propícia para o encontro biográfico com seu herói68.

67 CADIOU, François; COULOMB, Clarisse; LEMONDE, Anne; SANTAMARIA, Yves. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa. Tradução de Giselle Unti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p.204. 68 ORIEUX, Jean. A arte do biográfo. In: História e Nova História. Tradução de Carlos da Veiga Ferreira. Lisboa: Teorema, p.35.

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Ibn Khaldun se posiciona como biógrafo e é o próprio biografado, assim o nosso

trabalho de análise parte da concepção da busca de mais informações que atestem os feitos

descritos pelo historiador muçulmano na sua Autobiografia. As idéias originais de Ibn

Khaldun pertencem a uma escrita criada em âmbito do poder dos muçulmanos e realizada em

momento de solidão do autor que objetivava uma legitimação particular como homem que se

defende por sua pena.

V.a. O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DOS ESCRITOS DE IBN KHALDUN

No contexto muçulmano, como aponta Albert Hourani, o modelo de Casa da

Cultura, fundada pela dinastia fatímida no século XI no Cairo, configurava-se através de

bibliotecas, muitas vezes anexas às mesquitas e madrasas (escolas), formando centros para a

cópia de manuscritos. Segundo Hourani, com o tempo, os livros passaram a serem doados

como waqf (dotações religiosas) e a produção dos livros era conduzida desta maneira:

Grande parte da produção dos que liam e escreviam livros pertencia ao que o estudioso moderno chamou de ‘literatura de referência’, dicionários, comentários sobre literatura, manuais de prática administrativa, sobretudo historiografia e geografia. Escrever história era uma característica de todas as sociedades muçulmanas letradas, e o que se escrevia parece ter sido amplamente lido. (...) Para uma parte do público leitor, eram de importância especial: para os soberanos e os que os serviam, a história oferecia não apenas um registro das glórias e feitos de uma dinastia, mas também uma coletânea de exemplos com os quais se podiam aprender lições de estadismo69.

Na Península Ibérica, no caso especifico de Al-Andaluz, podemos aceitar a

observação de Hourani, quando este nos apresenta que durante a fragmentação política da

unidade do Califado, as diversas cortes desenvolveram tradições de escrita da história local:

Nessas obras, podia haver um resumo de história universal, extraído dos grandes autores do período abácida, mas era seguido por uma crônica de acontecimentos locais ou de uma dinastia, registrados ano a ano. Assim, na Síria, Ibn al-Athir (1163-1233) situou os acontecimentos de seu tempo e lugar no contexto de uma história universal. No Egito, histórias locais escritas por al-Maqrisi (m. 1442) e Ibn Iyas (m.1524) cobriram o período dos mamelucos. No Magreb, a história das dinastias árabes e berberes escrita por Ibn Khaldun foi precedida por seu famoso Muqaddima (Prolegômenos), em que se apresentam os princípios e interpretação do texto responsável de história70. (meu grifo).

A elite intelectual islâmica, de acordo com Hourani, muitas vezes desenvolvia

aptidões diferenciadas dos sábios e estudantes das madrasas. Isso nos aproxima da realidade 69 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit.,p. 268. 70 Idem, p. 269.

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proposta pela Autobiografia de Ibn Khaldun, quando o historiador medieval cumpre

simultaneamente os cargos nas cortes por onde passou e também estuda de maneira

autônoma. Hourani indica essa concomitância em busca da sabedoria:

[...] Em particular, as famílias que forneciam secretários, contadores e doutores aos soberanos tinham uma atração, devido à natureza de seu trabalho, pelo pensamento relutante da observação e dedução lógica de princípios racionais. As especulações dos filósofos eram encaradas com desconfiança por algumas escolas de lei religiosa e alguns soberanos, mas outras maneiras de usar a razão para elucidar a natureza das coisas despertavam menos suspeita e tinham usos práticos71.

É nessa situação última que se encontra Ibn Khaldun e que o torna ponto essencial

foi abranger na Muqaddimah e na Autobiografia uma especificidade na análise da história e

do movimento sócio-político do Oriente, do Magreb Medieval e de Al-Andaluz. A escrita

khalduniana é um ponto de apoio e forma complementar de se entender o ambiente tardo-

medieval visto por um muçulmano. Vale a pena lembrar, que nesse período da Idade Média

no Ocidente, verificamos um florescer de escritores que almejam a solidão para se entregar à

erudição72.

O olhar de Ibn Khaldun na parte inicial de sua obra Muqaddimah (da qual faz parte a

Autobiografia) legitima a importância do historiador em seu tempo, pois relata seu próprio

contato com documentos que preservam a memória. Assim aos historiadores é indicada a

função erudita de se aprofundar nos resíduos do que está no passado:

Nesses tempos remotos, os cronistas destinavam seus escritos ao uso da família reinante. Os jovens príncipes empenhavam-se em conhecer a história de seus antepassados e seus feitos, para lhes trilharem os passos e se guiarem pelo seu exemplo; mas, sobretudo, sentiam a necessidade de saber como e onde escolher os personagens que deviam tomar os grandes encargos e de confiar a alta administração e outros empregos aos descendentes de antigos protegidos da casa real e seus servidores. (...) Os historiadores viam-se, pois, na necessidade de entrarem nestes detalhes pormenorizados73.

Já através do relato cronológico intrínseco à Autobiografia, Khaldun expressa sua

ligação com seus antepassados e uma certa independência para com eles, pois para nosso

historiador é necessário cultivar ao longo de sua carreira de homem político e militar, oriunda

da tradição de sua família, a pena em mãos. Essa idéia pode ser verificada seguindo os passos

da carreira de Khaldun, que mesmo atrelado à sua atividade profissional construiu por sua

71 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit., p.270. 72

DUBY, Georges; ARIES, Philippe (Dir.) A emergência do indivíduo. In: História da Vida Privada, Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 526. 73 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p. 76.

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conta as bases de uma filosofia da história na Muqaddimah e ampliou em sua Autobiografia

um campo para refletir sobre suas decisões.

O sacrifício de Ibn Khaldun ao emprego das armas e da convivência política serviu

de mola propulsora para que ele mantivesse uma incessante conquista por meio da ação de

sua pena. A leitura da Autobiografia de Ibn Khaldun é legitimadora da posição de Khaldun

como homem público pertencente às cortes, por onde exerceu funções ao lado de diversos

sultões em seus comandos e desmandos políticos. O sucesso de Khaldun como “diplomata” e

cortesão está revelado por toda a Autobiografia. Esse interesse de Khaldun pela erudição

talvez se deva a uma autonomia de seu caráter, principalmente quando tenta se afastar da

maneira que sua família vinha se conduzindo ao lado do poder. No entanto se utilizou dessa

tradição, pois não conseguiu sobreviver ao lado do poder sem ela e a manteve para fornecer o

apoio necessário para os seus estudos. Assim, Khaldun procurou sempre estar ligado a

governos que passassem pela fase de tranqüilidade em que ele poderia encontrar o momento

para que o cargo da pena triunfasse. Entretanto, eram poucas as oportunidades de

tranqüilidade, assim Khaldun buscou o exílio para se dedicar ao conhecimento. Devemos,

acima de tudo, compreender Ibn Khaldun na sua especificidade, atentando para o que ele

conta e como o faz, buscando o que sua visão nos revela dos acontecimentos que ele

vivenciou.

Os fatos relatados por Ibn Khaldun demonstram também que o estilo de escrita da

Autobiografia de Ibn Khaldun pertence à uma forma privada e que o objetivo do historiador

foi identificar, por meio da escrita do eu, as reações de um homem em seu próprio contexto.

Esse resgate da memória produz também a própria História74 . Khaldun se coloca no centro do

ato discursivo para configurar uma identidade própria: um erudito que possui influências

políticas, culturais, econômicas e sociais próprias do “ombreamento” – dentro do “complexo

mediterrânico”- entre a Península Ibérica e o norte de África durante os séculos XIV e XV.

74 RODRIGUES, Maria Aparecida. Autobiografias: as formas de escrita do eu. In: Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 14, nº 09, 2004, p. 1693.

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VI. CONCLUSÃO

Como resultado do nosso estudo, que se deu por meio das pesquisas de Iniciação

Científica75, apresentamos a contribuição da erudição proveniente de Al-Andaluz com a qual

Ibn Khaldun entrou em contato através de seus ilustres mestres, sua ligação com a região por

meio de seus antepassados e o fato da relação intrínseca entre a Península Ibérica e o norte de

África. Escrever a história nessa época tardo-medieval fazia parte das sociedades muçulmanas

letradas, e nesse estudo demonstramos que elas fomentavam eruditos, como Ibn Khaldun.

Esse historiador foi o representante de um tempo de cultura miscigenada, no qual Al-Andaluz

seria o local representativo dessa esfera de sabedoria e poder. Para Ibn Khaldun a concepção

de História era:

A História é um dos ramos dos conhecimentos humanos que se transmitem de geração a geração. (Tesouro de ensinamentos), ela atrai estudantes e estudiosos dos países mais longínquos que acodem pressurosos para ouvirem-lhe as lições. (Objeto de estudo e de meditação dos sábios), a História é ouvida com avidez pelo vulgo (que nela acha deleite e passatempo) granjeando a História ao mesmo tempo a estima dos reis e dos grandes, o apreço dos homens de estudos e a atenção dos ignorantes76.

Apontamos que o letrado Ibn Khaldun pertenceu à esfera das cortes muçulmanas

medievais, nas quais ocupou cargos específicos ao lado do poder, posições essas legitimadas

pela sua própria erudição. Dessa forma, Ibn Khaldun conquistou notoriedade em sua época

por ser um sábio que depois de aprender as lições obrigatórias se dedicou a desenvolver seus

estudos de forma autônoma. A família dos Khaldun era fornecedora de elementos para as

devidas cortes tanto em Al-Andaluz quanto em norte de África, mas o que tornou Ibn

Khaldun singular foi sua ação de se identificar como historiador e também como homem em

defesa do que se colocava sob a pena.

O sacrifício de Ibn Khaldun também como um homem das armas e político serviu de

inspiração para que ele pudesse se impor perante o poder das cortes como um homem

legítimo da pena. Esse paradigma fornecido pela figura histórica de Ibn Khaldun justifica seu

afastamento da tradição militar de sua família e demonstra em sua vida pública de

“diplomata” um contraste com sua vida privada de um estudioso medieval.

75 Pesquisas de Iniciação Científica intituladas: “Ibn Khaldun (1332-1406) e o olhar muçulmano sobre a Península Ibérica” (2007-2008); “A Autobiografia de Ibn Khaldun (1332-1406): a erudição proveniente da Península Ibérica” (2008-2009) e “Ibn Khaldun (1332-1406) e a burocracia islâmica entre Al-Andaluz e o Magreb” (2009). 76 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit.,p.3-4.

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A Autobiografia de Ibn Khaldun tem como objetivo revelar o escrito de um

historiador imerso em sua realidade particular. A fonte nos preparou para um aprofundamento

do gênero narrativo histórico autobiográfico na Idade Média, nos recepcionou para o contexto

da Reconquista cristã na Península Ibérica percebida por outro foco, permitiu o estudo do

contexto das dinastias muçulmanas em Al-Andaluz e dos cargos políticos do Império

islâmico, além de fornecer indícios primordiais para se examinar os estudos desenvolvidos

nas madrasas (escolas) andaluzas ao lado do prolongamento das idéias da falsafa

provenientes do Islã Clássico na Idade Média.

Para se compreender a postura assumida por Ibn Khaldun como erudito e

propagador efetivo de uma cultura híbrida originária de Al-Andaluz nos baseamos na

produção de suas fontes e no vestígio efetivo que elas nos apresentaram. Ibn Khaldun se

propôs a ser um erudito que se dedicou à ciência histórica tendo por base suas observações

sobre a sociedade de seu tempo.

As lições apreendidas por Ibn Khaldun revelam um esforço da própria escola de

saber islâmica em revelar um modelo, ou seja, esse paradigma seria o próprio Khaldun. Ele

produz na terceira parte de sua obra Muqaddimah os meios para se obter o saber islâmico e

nos deixa um esquema de ensino, muitas vezes utilizado até os dias de hoje. Como fonte

comprobatória dessa intenção de Ibn Khaldun temos seu relato na sua própria Autobiografia,

meio de que ele dispôs para registrar sua posição de renomado sábio. Khaldun detalhou na

Autobiografia sua educação, listando os mestres e lições que aprendeu. Ele decorou o

Alcorão, estudou seus comentários, alçando até a posição de Cádi dentro da esfera de direito

islâmico, se dedicava à literatura árabe e criou um estilo próprio de escrever em verso e prosa.

Além disso, ainda criou uma visão única da teoria da história.

Nosso estudo aqui apresentado entende, então, que os indícios sobre a vida de

Khaldun podem comprovar a intenção deste em se apresentar como sábio de sua época, mas

não simplesmente, os sultões deveriam enxergá-lo também como tal e efetivamente o fizeram,

sendo um cabedal a ser utilizado como base de seus poderes.

Portanto, nosso estudo procurou evidenciar a formação do historiador Ibn Khaldun e

sua conexão com a política de sua época por meio dos distintos cargos que assumiu, assim

demonstrando a sua intensa movimentação em cortes islâmicas. A Autobiografia, estilo de

exceção em sua época de produção, nos indica que Khaldun talvez seguisse um modelo de

escrita de tradição andaluza. Assim, para se analisar todo o panorama da vida de Ibn Khaldun

traçamos este paralelo entre sua vida pública e privada, e identificamos elementos de

complementação. Esse estudo propicia um caminho para se compreender as fontes medievais

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do Oriente em sua própria particularidade e com o objetivo de abranger uma nova concepção

de História. A busca de critérios investigativos foi utilizada para se demonstrar

cientificamente que os documentos em estudo são válidos para nos aprofundar ainda mais em

conceitos da especificidade da história pertencente à Idade Média, com o foco no grupo dos

muçulmanos e suas relações de poder a partir dos escritos de Ibn Khaldun. O exame detido

das fontes produzidas por Ibn Khaldun apresenta inúmeros caminhos para as ciências

humanas empreenderem interpretações desse contexto. Isso corroborou na divulgação

acadêmica de uma visão inovadora e complementar de estudos sobre o já citado período, de

forma a contribuir para o desenvolvimento e o enriquecer da ciência história em território

brasileiro.

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GLOSSÁRIO ACERCA DA ARISTOCRACIA POLÍTICA MUÇULMANA TARDO-MEDIEVAL

Adala: O cargo de adala depende do de cádi e possuía certas características, segundo Ibn

Khaldun:

Consiste em servir de testemunha às partes, nas suas mútuas obrigações, e isso com a autorização do Cádi; em prestar seu concurso quando se tratar de transcrever o depoimento; em depor em juízo, se o ato der lugar à contestação; em inscrevê-lo nos registros para garantir a conservação dos direitos dos particulares, de suas propriedades, de seus créditos e de todas suas transações. Dissemos: com a autorização do Cádi, porque ficou a sociedade em nossos dias tão misturada que somente o Cádi dispõe de meios para distinguir o homem virtuoso do homem viciado; por isso, devemos crer que ele escolha pessoas de probidade bem reconhecida (adala) para intervirem nos negócios e nas transações dos particulares, com o fim de garantir a conservação de seus direitos. As condições exigidas para o exercício destas funções são: distinguir-se pela integridade definida pela lei, estar ao abrigo da censura, saber redigir as atas e os contratos de modo satisfatório no que se refere à expressão, à redação e à disposição dos parágrafos, como também no que se refere ao emprego das formas exigidas pela lei para a validade das convenções e das obrigações. Torna-se necessário, pois, conhecer a parte do Direito que se relaciona com o assunto. Foi devido a estas condições e à necessidade de apresentar certa familiaridade com as formalidades legais e o manuseio de suas práticas, que estas funções foram confiadas com exclusividade a certas pessoas escolhidas entre os homens de reconhecida probidade. Poder-se-ia crer que este emprego confira aos homens que o exercem seu título de homens íntegros, quando na verdade é outra: a integridade é a condição necessária para sua nomeação. O Cádi deve controlar o modo de proceder destes funcionários, para se assegurar da sua perseverança observando uma perfeita integridade. Não pode o magistrado deixar-se esmorecer neste ponto, nem permitir-se o menor descuido, visto que depende somente dele manter os particulares no gozo de seus direitos, sendo ele o seu fiador responsável (perante Deus). O estabelecimento destes servidores nas atribuições já mencionadas é de uma grande utilidade; é por seu intermédio que o Cádi chega a aquilatar da moralidade e da probidade de qualquer indivíduo que não é sempre fácil de descobrir, sobretudo nas grandes cidades, e porque as aparências são muitas vezes enganadoras. Sendo obrigados os juízes a se pronunciarem entre as partes adversas conforme provas autênticas, as mais das vezes é segundo a declaração destes funcionários subalternos que formam sua opinião sobre a validade dos títulos produzidos pelos pleiteantes. Em todas as grandes cidades, estes oficiais possuem lojinhas ou estrado onde tomam assento para ali serem procurados pelos que precisam de contratos feitos perante testemunhas e de porem suas conversações por escrito. Assim, o termo “adala” serve igualmente para designar as funções do ofício que se acaba de definir e a probidade exigida pela lei, probidade que numa expressão bem conhecida, se acha associada (por oposição) com o termo “jarh”. Assim, estes dois significados podem às vezes encontrar-se reunidos no mesmo indivíduo; outras vezes, não estão77 .

Amir ou emir: Príncipe guerreiro. O emir pode ser indicado pelo sultão ou ser seu próprio

filho.

Cádi: O cádi tem por função defender o bem estar da comunidade islâmica. Segundo Ibn

Khaldun:

77 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.410-411.

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Este cargo também depende do califado, por consistirem suas atribuições em decidir entre os indivíduos que estão em litígio, em fazê-los cessarem os debates e as reclamações, mas somente por meio da aplicação dos artigos da lei que fornecem o Alcorão e a Sunna. [...] Chegou-se ao ponto de, ao Cádi, não somente caber decidir entre particulares, mas também ocupar-se de negócios que interessavam a comunidade muçulmana. [...]78.

Califa: O califado era representado pelo “legislador inspirado”, ou seja, pelo governante que

possuísse o poder temporal e espiritual. De acordo com Ibn Khaldun:

[...] O Califa é, pois, na realidade, o lugar-tenente do legislador inspirado, encarregado de manter a religião e de se servir dela para o governo do mundo.Temos dito que esta dignidade não é, na realidade, senão uma tenência, uma substituição. O que dela se acha revestido, substitui o legislador inspirado, toma o seu lugar, sendo encarregado de manter a religião, e, por este meio, governar o mundo. Tal ofício é designado indiferentemente pelos termos ‘khilafat’ ou califado, tenência; ‘imamat’, imamato ou chefia. Dá-se a quem ocupa o cargo o título de Califa e o de Imane; foi intitulado também Sultão, nos últimos séculos, quando havia muitos califas contemporâneos. Muitas nações afastadas umas das outras, não achando ninguém com todas as qualidades requeridas para ser califa, viam-se obrigadas a conferir esta dignidade a qualquer um que tomasse conta do poder. Deu-se ao Califa o título de ‘Imane’ (o que está na frente, na dianteira), porque o compararam ao imane que dirige a oração pública, e cujos movimentos são imitados por todos os presentes. Daí provém o emprego do termo ‘Grande Imanato’ referido à qualidade de califa. Adotou-se primeiro o termo ‘califa’, porque este chefe substituiu o Profeta perante seu povo79.

Departamento das finanças e das contribuições, ou diwan al-ámal wal jibayat: Funcionários

da administração política e financeira do sultanato.

Diwan da correspondência e do secretariado: Conforme Ibn Khaldun, os secretários e

escrivães deveriam se dedicar aos estudos com afinco para servirem os seus sultões da melhor

forma possível:

[...] Secretários e escrivães! Aprofundai-vos com vigor e afinco no conhecimento de todos os gêneros de literatura; procurai entranhar-vos nas ciências religiosas, começando pelo Livro de Allah e pelos preceitos da lei divina. – Cultivai a língua árabe, por ser o modelo ideal do que se fala ou se escreve. Cuidai de possuir uma boa caligrafia; ela é o ornato de vossos escritos. Decorai os poemas do Árabes e aprofundai-lhe as idéias, seu sentido profundo e sua locuções insólitas. Lede a História dos Árabes e dos Persas, fixando na memória suas lendas e altos feitos. Todos estes conhecimentos formam o cabedal imprescindível de qualquer escrivão e secretário, e serão os vossos melhores auxiliares quando alcançardes a posição que cobiçais. Não descureis da arte de calcular, sem a qual não pode funcionar nem existir o Registro dos Impostos80.

78 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit.,p.402-409. 79 Idem, p.340-354. 80 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1959, p.30-39.

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Hajib: Atenção à nota (1) referenciada na obra de Ibn Khaldun, elaborada pelos tradutores

José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury:

Hajib era o alto funcionário ou mesmo o ministro encarregado da guarda do cortinado (que separava o aposento reservado ao califa ou sultão) e que recebia diretamente as ordens emanadas do soberano; hijaba, ofício deste ministro que devia tomar tanta importância nas cortes principescas do Oriente e do Ocidente81.

Nas palavras de Ibn Khaldun, o ofício de hajib consistia em um cargo de alta

confiança do governante e possui um histórico próprio:

Já antecipou a observação que, sob o regime tanto dos Omaiya como dos Abbassidas, o título de Hajib pertencia ao funcionário que guardava a porta para vedar ao povo o acesso imediato do sultão, fechando-a à gente de pouca consideração e abrindo-a aos outros, porém em horas determinadas. O ofício era, nesta época, de pouco destaque, e seu titular ficava sob controle do vizir. Durante o tempo que durou a Dinastia Abassida, nenhuma modificação veio alterar esta posição do Hajib. No Egito de nossos dias, o titular do cargo está subordinado ao alto mando do Naib ou vice-rei. No império dos Omaiya da Andaluzia, as funções do Hajib consiste em impedir, não somente à gente do povo, mas até aos grandes, de penetrarem junto do soberano. Servia também o Hajib de intermediário entre este e as pessoas encarregada dos diversos viziratos ou que ocupavam ofícios inferiores. A posição de que o Hajib desfrutava era, pois, da mais alta importância. O leitor se convencerá disto lendo a história desta dinastia. [...]82.

Hisba: Ibn Khaldun define a hisba como uma “polícia municipal”:

A Hisba ou polícia municipal é um ofício que tem ligação com a religião. [...] Poder-se-ia afirmar que são negócios que os Cádis desdenham tratar, por serem comuns e de fácil solução, deixando ao Mohtacib o cuidado de ordená-los. Disso resulta que a ‘Hisba’ é por sua natureza subordinada ao ofício de Cádi. [...]83.

Segundo os tradutores da obra de Ibn Khaldun, José Khoury e Angelina B. Khoury,

o cargo de muhtacib que era encarregado da hisba era assim definido:

O muhtacib ou oficial encarregado da Hisba: termo árabe que deu origem ao português Almotacé ou Almotacél. Esta importante instituição do mundo islâmico, passou para o mundo ibérico, quase com as mesmas prerrogativas, que foram transmitidas para o Novo Mundo. São Paulo antigo conheceu seu motacél muito tempo antes de ter fiscais municipais84.

Imanato: Segundo Ibn Khaldun, depois que uma Dinastia se assegura no poder se institui o

Imanato:

81 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.334. 82 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op. cit., p.18-23. 83 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.412-413. 84 Idem, ibdem.

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Em seguida, serve – lhe a primeira oportunidade para colocar, nos livros de doutrina, logo depois dos dogmas da fé, o dogma do“Imanato”, ou a obrigação de reconhecer ao governante a qualidade de chefe espiritual e temporal. A partir desse momento, a autoridade do príncipe e do império têm por apoio os numerosos libertos e clientes da família reinante, a gente que viveu sob a proteção da casa real e à sombra de seu poderio85.

Mufti: O califa escolhe entre os legistas um deles (mufti) que possa ser o representante da lei

máxima, que deve ser consultado para todos os casos, inclusive os não previstos pelo Código

Islâmico.

Poder de um governante: Ibn Khaldun sinaliza as funções de um governante que possui

autoridade sobre os homens de seu tempo:

[...] Um chefe supremo reprime a ambição das famílias colocadas sob suas ordens; dobra a audácia e a petulância dos outros chefes, tirando-lhes qualquer esperança de compartilhar de seu poder. Refreia o ardor das outras famílias que aspiram ao comando, impedindo-as de o alcançar, reservando para si, na medida do possível, toda a autoridade e não deixando para ninguém mais a mínima parcela. Guardando para si todo o poder jamais consente em dividi-lo. O fundador do império possui toda a autoridade; seu sucessor provavelmente virá a perder uma parte, ou então será o terceiro da dinastia. Isso depende do espírito de independência, que domina seus súditos, e de seus meios de resistência. O que acabamos de dizer se aplica a todos os Impérios; é uma lei observada por Allah para com suas criaturas86.

Sultão: Conforme Ibn Khaldun, a síntese da representação de um sultão seria a seguinte:

Não é a pessoa do rei, nem seu aspecto, nem sua formosura, nem seu belo porte, nem seu grande saber, nem a elegância de sua caligrafia, nem mesmo a penetração de seu espírito que são úteis ao povo. São, antes, as relações que existem entre ele e seus súditos que lhe são úteis e que mais lhe importam. Com efeito, o termo ‘sultão’ implica uma certa relação, um laço que prende duas coisas correlatas. O sultão é, na realidade, o dono, o possuidor do rebanho, aquele que apascenta e cuida de tudo o que lhe diz respeito. O sultão, pois, é quem possui súditos, e os súditos são os têm um sultão. A qualidade que lhe é própria, quanto às relações com eles, é a ‘posse’, propriedade, (mulk, malakat), e isto significa que ele é dono, o senhor. [...] 87.

Vizirato ou cargo de vizir: Segundo Ibn Khaldun, o cargo de vizir era de grande

responsabilidade, pois era diretamente vinculado ao sultão:

O cargo de Vizir ou Vizirato é como o tronco do qual nascem diversos cargos do Sultanato e as dignidades reais. Com efeito, esta palavra (na sua forma árabe de ‘uazir’, por si só, indica, de um modo geral, a idéia de assistência, porque deriva seja da 3ª forma do verbo ‘uazara’, que significa ‘fardo’. Compreender-se facilmente esta última derivação lembrando-se que o vizir ou uazir, simultaneamente com seu amo, o sultão, carrega ‘o peso’, ‘o fardo’ dos negócios do Estado: o que implica, de qualquer modo, a simples idéia de assistência. [...] Com os Omaiyas da Andaluzia, a palavra vizir não conservou seu primitivo significado

85 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.273. 86 Idem, p. 297-298. 87 Idem, p. 338-340.

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no começo da dinastia; foi mais tarde que eles dividiram as atribuições do vizirato em diversas classes, tendo cada uma delas um vizir especial. Houve um vizir para a contabilidade, outro para a correspondência, um outro para a reparação dos agravos e mais outro para atender às populações das fronteiras88.

TABELA DEMONSTRATIVA DA HIERARQUIA DA BUROCRACIA ISLÂMICA

CALIFA (IMANATO)

SULTÃO-----------------------------CÁDI ------------------------MUFTI

ADALA / HISBA

AMIR / HAJIB / VIZIR / SECRETARIADO

88 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op. cit., p.10-18.