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ELE, QUE AMAVA TANTO A DITADURA: O “SUBVERSIVO” SOB O PONTO DE VISTA DE UM DELEGADO DURANTE O REGIME MILITAR BRASILEIRO(1964- 1985). Dayane Rúbila Lobo Hessmann Orientadora: Profª. Drª. Marion Dias Brepohl Palavras-chave: Ditadura Militar Brasileira; Subversivo; Colaboradores do Regime. Há muitas maneiras de abordar a história do Regime Militar no Brasil e, nos últimos anos, tal tema tornou-se uma recorrente na historiografia. Não obstante, a abordagem propriamente histórica da Ditadura Militar é recente, posto que muito já foi tratado pelos sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e narrados pelos próprios partícipes (de cunho memorialístico). Todavia, ainda que recente, a bibliografia dedicada ao Regime Militar é extensa, com significativa predominância dos estudos sobre a oposição e resistência ao Período Ditatorial. Dessa forma, do lado da esquerda e dos “vencidos” já foram extraídos expressivas revelações. Mas, por outro lado, como afirma Jacob Gorender “do lado da direita, o acervo arquival apenas começou a ser explorado” 1 . Nesse sentido, optamos por privilegiar como objeto deste estudo, os estigmas e esteriótipos do crime político produzidos e colocados em circulação restrita por um simpatizante do Regime, que fazia parte dos estratos inferiores do sistema repressivo do Rio de Janeiro em 1977, enfocando, portanto, suas idéias sobre o “subversivo” e a necessidade da repressão. Para tanto a fonte privilegiada nesta pesquisa constitui-se no Dicionário: Segurança Nacional e Subversão (teórico e prático) 2 , documento de qualidade gráfica e redação precária, produzido por iniciativa do próprio do autor, o delegado Zonildo Castello Branco, “visando facilitar o trabalho dos policiais em exercício na Polícia Política” 3 , na medida que busca explicar a estes como reconhecer um subversivo, os jargões utilizados pelos comunistas, entre outros aspectos. Tal documento contém um total de 350 páginas, com aproximadamente 1750 verbetes. Assim, o primeiro capítulo tem como objetivo realizar um balanço historiográfico sobre a temática, assim como vislumbrar o quadro teórico-metodológico que constituiu o embasamento para a análise, quais seja, Hannah Arendt e seu conceito de “instrumentalização política do preconceito”; Michel Foucault no que concerne ao poder nas suas extremidades, aquele poder cotidiano, exercido não por homens públicos, mas por cidadãos comuns; e Pierre Ansart e suas considerações sobre a “ortodoxia terrorista”. O segundo capítulo destina-se a tratar dos órgãos de repressão e da comunidade de informação. Nosso interesse consiste em observar a complexidade do aparato informativo/ 1 Prefácio de Jacob Gorender da obra: FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. 2 CASTELLO BRANCO, Zonildo. Segurança Nacional e Subversão: Dicionário teórico e prático. Rio de Janeiro: Secretária de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. 1977 (RESERVADO). Tal documento encontra-se sob a guarda do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, no acervo do DOPS. Em 2001 esse “dicionário” foi reeditado pela Fundação de Amparo à Investigação do Rio de Janeiro, objetivando torná-lo público como um testemunho escrito da repressão que fez parte do cenário brasileiro durante o período ditatorial. 3 CASTELLO BRANCO, Zonildo. Op. cit, nota do autor.

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ELE, QUE AMAVA TANTO A DITADURA: O “SUBVERSIVO” SOB O PONTO DE VISTA DE UM DELEGADO DURANTE O REGIME MILITAR BRASILEIRO(1964-

1985). Dayane Rúbila Lobo Hessmann Orientadora: Profª. Drª. Marion Dias Brepohl

Palavras-chave: Ditadura Militar Brasileira; Subversivo; Colaboradores do Regime.

Há muitas maneiras de abordar a história do Regime Militar no Brasil e, nos últimos anos, tal tema tornou-se uma recorrente na historiografia. Não obstante, a abordagem propriamente histórica da Ditadura Militar é recente, posto que muito já foi tratado pelos sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e narrados pelos próprios partícipes (de cunho memorialístico). Todavia, ainda que recente, a bibliografia dedicada ao Regime Militar é extensa, com significativa predominância dos estudos sobre a oposição e resistência ao Período Ditatorial. Dessa forma, do lado da esquerda e dos “vencidos” já foram extraídos expressivas revelações. Mas, por outro lado, como afirma Jacob Gorender “do lado da direita, o acervo arquival apenas começou a ser explorado”1. Nesse sentido, optamos por privilegiar como objeto deste estudo, os estigmas e esteriótipos do crime político produzidos e colocados em circulação restrita por um simpatizante do Regime, que fazia parte dos estratos inferiores do sistema repressivo do Rio de Janeiro em 1977, enfocando, portanto, suas idéias sobre o “subversivo” e a necessidade da repressão. Para tanto a fonte privilegiada nesta pesquisa constitui-se no Dicionário: Segurança

Nacional e Subversão (teórico e prático)2, documento de qualidade gráfica e redação precária,

produzido por iniciativa do próprio do autor, o delegado Zonildo Castello Branco, “visando facilitar o trabalho dos policiais em exercício na Polícia Política”3, na medida que busca explicar a estes como reconhecer um subversivo, os jargões utilizados pelos comunistas, entre outros aspectos. Tal documento contém um total de 350 páginas, com aproximadamente 1750 verbetes. Assim, o primeiro capítulo tem como objetivo realizar um balanço historiográfico sobre a temática, assim como vislumbrar o quadro teórico-metodológico que constituiu o embasamento para a análise, quais seja, Hannah Arendt e seu conceito de “instrumentalização política do preconceito”; Michel Foucault no que concerne ao poder nas suas extremidades, aquele poder cotidiano, exercido não por homens públicos, mas por cidadãos comuns; e Pierre Ansart e suas considerações sobre a “ortodoxia terrorista”.

O segundo capítulo destina-se a tratar dos órgãos de repressão e da comunidade de informação. Nosso interesse consiste em observar a complexidade do aparato informativo/

1 Prefácio de Jacob Gorender da obra: FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. 2 CASTELLO BRANCO, Zonildo. Segurança Nacional e Subversão: Dicionário teórico e prático. Rio de Janeiro: Secretária de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. 1977 (RESERVADO). Tal documento encontra-se sob a guarda do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, no acervo do DOPS. Em 2001 esse “dicionário” foi reeditado pela Fundação de Amparo à Investigação do Rio de Janeiro, objetivando torná-lo público como um testemunho escrito da repressão que fez parte do cenário brasileiro durante o período ditatorial. 3 CASTELLO BRANCO, Zonildo. Op. cit, nota do autor.

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repressivo que deu sustentação e legitimação ao Regime ao longo de seus vinte e um anos de existência. Deve-se ressaltar ainda, que conforme Fico demonstra no seu livro “Como eles agiam”, o SNI (Serviço Nacional de Informação) oferecia cursos de especialização aos integrantes dos órgãos de repressão, tanto é que em 1971 criou a Escola Nacional de Informação (EsNI), a qual freqüentava não apenas militares, mas também civis4. Levando em consideração o nível de conhecimento de Zonildo Castello Branco em relação aos assuntos teóricos e práticos da Polícia Política, bem como suas leituras para elaboração do Dicionário,

nos leva a indagar a possibilidade deste em ter realizado algum curso ofertado por tal Escola. É interessante pensar nos motivos que um cidadão comum, sem nenhuma importância

ou reconhecimento teria para produzir um dicionário, documento que lhe deu exigiu bastante leitura, horas datilografando, enfim, que tomou muito de seu tempo. Provavelmente, influenciado pelas publicações do SNI, bem como as publicações de segmentos da sociedade, nas quais o inimigo é apresentado cotidianamente como dotado de força demoníaca, e a quem é necessário não só combater, mas destruir, o autor do Dicionário acreditava no “perigo vermelho”. Além do mais, permitimos-nos cogitar se Zonildo não estaria envolvido com o DOI(Destacamento de Operação de Informações), mesmo que por um curto período de tempo, na medida que demonstra um conhecimento minucioso do funcionamento interno dos órgãos de repressão bem como dos grupos de esquerda, oposicionistas do Regime. Sem contar que, como destaca Fico, os delegados e investigadores da polícia civil freqüentemente eram promovidos por merecimento depois de atuarem no DOI 5, então, talvez em fazer parte do DOI, e especialmente em redigir um Dicionário destinado ao pessoal da Polícia Política, não estaria Zonildo interessado em uma ascensão profissional?

O terceiro e último capítulo dedica-se a análise do documento. Além de tratar da subversão que é sinônimo de comunismo, como veremos adiante, o Dicionário versa ainda sobre o funcionamento interno do aparato repressivo, isto é, o que faz cada órgão, os limites e procedimentos destes, as punições e leis, e, também expressões e gírias usadas pelo pessoal da Polícia Política. Cabe ainda ressalvar que este aspecto não será contemplado nesta pesquisa. Nosso foco centra-se somente, como já afirmado anteriormente, na sua concepção a respeito do subversivo.

Antes de nos atermos ao conteúdo do documento, é preciso destacar que este vai além dos limites de um dicionário, pois por dicionário entendemos “conjunto das palavras de uma língua, dispostas em ordem alfabética contendo seus significados”6. Porém, no documento o autor utiliza expressões do tipo “o que é?”, “qual a?”, “como?”, ou seja, não é somente a definição de uma determinada palavra, mas perguntas e respostas, cujo conteúdo é repleto de conceitos e valores defendidos pelo autor e que visa além da propaganda contra o subversivo uma orientação para a ação.

Para Zonildo Castello Branco o “subversivo”, é aquele que “subverte ou pode subverter; contrário à ordem”7. Todavia, no decorrer de seu texto, fica evidente que o “subversivo”, ou seja, aquele que é insubordinado pelo poder constituído, é o comunista. Pois, nas palavras do autor, “o inimigo externo do Brasil é o comunismo internacional, que ameaça a liberdade de todos os povos, e o inimigo interno também é o comunismo, que ameaça um sistema de

4 FICO, Carlos. Op. cit, p. 82. 5 Ibid, p. 127. 6 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.p. 185. 7 CASTELLO BRANCO, Zonildo. Op. cit, p. 341.

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governo”8.O comunismo é o grande norteador de sua obra, é a ele que se deve conhecer e combater. O autor também alerta para que “não nos iludamos, comunismo e socialismo representam uma e só ideologia”9.

Mas, afinal quem são os comunistas e socialistas? “Quem são os que iludem os trabalhadores, ensinando-lhes uma doutrina anti-humana? A resposta é uma só: os que manobram os trabalhadores são médicos, engenheiros, advogados, farmacêuticos, professores, militares e jornalistas”. Pois, “nenhum líder do comunismo saiu de outras categorias sociais. Examine-se a lista dos chefes vermelhos no Brasil e ver-se-á que são todos intelectuais”10. Zonildo afirma ainda que é necessário que se realize “uma imunização eficiente contra a peste soviética”.

O termo “peste soviética” denota como que no Período da Ditadura Militar, mais do que em qualquer outro, o comunista representou um elemento perigoso, perturbador e nocivo. Um elemento a quem se devia temer. Peste, por definição, é uma doença contagiosa que deve ser destruída para não se alastrar e infectar mais pessoas; assim também é o comunismo, um mal absoluto que “ilude”, “seduz” e “convence” facilmente. Pois, os comunistas são “mentirosos”, “cínicos”, “cruéis”, “violentos”, “oportunistas”, “traidores” e além de tudo, drogados. É flagrante a relação entre o comunismo e as drogas, já que estas são abordadas em dez verbetes. Havia no imaginário social o estigma do comunista relacionado ao uso de entorpecente para encorajá-los de realizar atos violentos e para aliciar pessoas a sua causa

É evidente ainda no documento, que o comunista é representante de um coletivo (o comunismo, o socialismo, o terrorismo), que se pretende destruir, independentemente de suas subjetividades, destituindo assim, cada indivíduo de sua personalidade, desumanizando-o. Foi assim que aconteceu em relação aos judeus entendidos como uma raça. Tal reflexão nos remete a Hannah Arendt que cunhou a expressão “instrumentalização política do preconceito”, ou seja, o uso do ressentimento nas estratégias de poder. No caso na Alemanha Hitlerista o anti-semitismo tornou-se um campo de ação e uma fonte para demagogos11, e ainda que não possamos comparar as barbaridades dos crimes praticados contra os judeus na Alemanha nazista, o comunismo durante o período ditatorial tornou-se, sem dúvida, um instrumento político do Estado, na medida em que se condenou, legitimou e incitou o ódio aos comunistas, tornando-os criminosos, e, portanto, passíveis de repressão.

Conclusivamente, podemos afirmar que a “ideologia da segurança nacional” difundida pela Escola Superior de Guerra, bem como o imaginário anticomunista presente na sociedade brasileira da época foi partilhado pela baixa burocracia dos órgãos de repressão, influenciando decisivamente na construção do esteriótipo negativo do subversivo, leia-se, o comunista. Por fim, o Dicionário se revelou uma fonte riquíssima, vez que traz para a historiografia do Período novos atores políticos, como Zonildo Castello Branco, um anônimo, que não pertencia nem a elite dirigente, nem a ela fazia oposição, mas demonstrou-se disposto a colaborar, de maneira direta ou indireta como poder vigente, assumindo e legitimando o discurso dominante. Finalmente, destaca-se, que dado à extensão do documento, selecionou-se somente alguns aspectos para ser desenvolvido deste trabalho, contudo, trate-se de uma discussão que não se pretende esgotar, mas, pelo contrário, dar continuidade num programa de pós-graduação. 8 Ibid, p. 190. 9 Ibid, p. 328. 10 Ibid, pp. 49-50. 11 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (primeira parte: Anti-semitismo – pp. 23-143).