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Em cada conta um lamento

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Marluce Lima de Morais

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Coleção VOX MUSEI arte e património

Volume 1

2013 – Em cada conta um lamento. Incelências,

benditos e rezas.

ISBN 978-989-8300-55-3

Impressão e acabamento: Gráfica Halley

Tiragem: 1000 exemplares

PVP: 10€

Autora: Marluce Lima de Morais

Coleção | Conselho Editorial

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes,

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de

Lisboa (CIEBA, FBAUL) · Grupo de Pesquisa

CNPq Memória, Ensino e Património Cultural,

Universidade Federal do Piauí

DIREÇÃO

Áurea da Paz Pinheiro

PESQUISA

Marluce Lima de Morais

FOTO CAPA

Cássia Moura

PROJETO GRÁFICO

Jorge dos Reis

PAGINAÇÃO

Inês Chambel

CONCEÇÃO E COMPOSIÇÃO

Cássia Moura, Jorge dos Reis

RELAÇÕES PÚBLICAS

Isabel Nunes

LOGÍSTICA

Lurdes Santos

GESTÃO FINANCEIRA

Cristina Fernandes, Isabel Pereira

PROPRIEDADE E SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS

FBAUL · CIEBA · Grupo de Pesquisa - CNPq

Memória, Ensino e Património Cultural

Aquisição de exemplares e permutas

VOX MUSEI arte e património

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa ·

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes ·

Grupo de Pesquisa - CNPq Memória, Ensino

e Património Cultural

Largo da Academia Nacional de Belas-Artes,

1249-058 Lisboa, Portugal

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689

Mail: [email protected]

[email protected]

site: www.voxmusei.fba.ul.pt

FICHA TÉCNICA

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PREFÁCIO

PÁG. 10

INTRODUÇÃO

PÁG. 14

1. A MORTE COMO TEMA

PÁG. 17

2. ATITUDES DIANTE DA MORTE

PÁG. 20

3. A MORTE E O MORRER

PÁG. 21

4. A MORTE E OS MORTOS NA

HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

PÁG. 22

5. A MORTE É UMA FESTA

PÁG. 24

CAPÍTULO I – A DEVOÇÃO E O PIAUÍ

1. MORRER AOS CUIDADOS DE CASA

PÁG. 33

2. UM PIAUÍ (A)FEITO A FÉ

PÁG. 35

3. E NO ALTO DO RIO NASCE ALTO LONGÁ

PÁG. 44

4. O FLOR DO DIA

PÁG. 45

5. GENTE DE FÉ E DEVOÇÃO

PÁG. 48

6. ENTREOLHARES

PÁG. 48

CAPÍTULO II – TEMPO DA NARRATIVA

1. SENHORA ERLENE MARIA DE OLIVEIRA

PÁG. 55

2. SENHORA MARIA JOSÉ SILVA DOS REIS

PÁG. 78

3. SENHOR ANTÔNIO PEREIRA DA SILVA

PÁG. 87

CAPÍTULO III – AS INCELÊNCIAS

1. EM CADA CONTA UM LAMENTO

PÁG. 109

2. O CARPIR

PÁG. 110

3. O QUE CANTAM?

PÁG. 118

4. POR QUE FOTOGRAFAR OS MORTOS?

PÁG. 133

5. O SABER DO POVO: O FOLCLORE COMO FONTE

PÁG. 144

CONCLUSÃO

PÁG. 155

REFERÊNCIAS E FONTES

PÁG. 158

ANEXOS

INCELÊNCIAS

PÁG. 162

SUMÁRIO

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PREFÁCIO

POR ÁUREA DA PAZ PINHEIRO

Marluce Lima de Morais é uma jovem pesquisadora e educadora, revela-se, ao longo desses últimos cinco anos, uma historiadora competente e dedicada ao ofício tão bem descrito por Marc Bloch, historiador francês das mentalidades, que em suas memó-rias enfatizou a necessidade dos profissionais da História buscarem uma diversidade de testemunhos, para ele quase infinita, dizia que “[...] Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele.”

Ao longo da experiência de investigação da autora destaco o período entre 2008 a 2013, quando do Curso de Licenciatura Plena em História e Programa de Pós-Gradu-ação em História da Universidade Federal do Piauí e no Grupo de Pesquisa — CNPq Memória, Ensino e Patrimônio Cultural; conquistou amigos, com os quais estabeleceu diálogos no campo da História, da Memória Social e do Patrimônio Cultural.

Nas reuniões no Grupo de Pesquisa, aprendeu que o valor do patrimônio não está impresso em si mesmo, mas nas relações estabelecidas em um tempo e espaço dados, que é preciso considerar os indivíduos que ocupavam o solo, as formas de utilização dos recursos naturais, as formas de produção elaboradas ao longo do tempo por culturas an-cestrais, as relações com o patrimônio cultural, com a paisagem cultural — uma porção peculiar do território, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, em que a vida e a ciência humana imprimem marcas e atribuem valores.

Este livro, editado como o primeiro volume da Coleção VOX MUSEI arte e patri-mônio, Grupo de Pesquisa — CNPq, Universidade Federal do Piauí “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, e CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, adensa os espaços de debates, de reflexões e de interlocução de investigadores iberoamericanos que pretende ser VOX MUSEI; o desafio que se propõe aos investigadores e profissionais é apresentarem trabalhos que possam ser publicados com o selo deste Coletivo Cultural, estudos que permi-tam análises sobre o papel da arte, do património e dos museus, nomeadamente nes-te século, marcado pela dinâmica informativa e comunicacional, pela diversidade de culturas, perspectivas e olhares sobre o mundo.

O selo VOX MUSEI seleciona e publica o livro por se tratar de resultado de pes-quisa acurada, árdua e criteriosa. A investigadora optou por dialogar com conceitos e métodos da História, da Antropologia e da Etnologia, valeu-se da Etnografia e da História Oral, consultou acervos públicos e privados no Nordeste e no Rio de Janeiro, documentação correspondente a um tempo longo, do século XIX ao século XXI, que traduz a natureza deste trabalho. Valeu-se de estudos clássicos sobre as atitudes diante da morte e dos mortos, investigações de Philippe Aries e Michel Vovelle, que influen-ciaram profundamente a historiografia brasileira, sobretudo, quanto a variedade de fontes usadas: testamentos, registros de óbitos, estatutos de irmandades, dados estatísticos, relatos folclóricos, dentre outros.

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A perspectiva historiográfica francesa atravessa o trabalho de Marluce Morais e a permite traçar comparações das atitudes diante da morte no cenário brasileiro, nomeadamente no sertão do Piauí, no Nordeste do Brasil.

A autora apaixona-se pela transversalidade do conhecimento e não teme os ca-minhos tortuosos já descritos por Lilia K. Moritz Schwarcz, quando diz: “Práticas de fronteira podem ser marcadas por ‘relações de boa vizinhança’, na feliz expressão de Robert Darnton em O beijo de Lamourette, mas, também, e com freqüência, são palco de litígio. O espaço para a verificação de limites e para a demarcação de parte a parte nem sempre é objeto de consenso. Na delimitação da divisão geográfica, assim como na separação de disciplinas e de objetos, os critérios diferem, as justificativas são sempre múltiplas, assim como é nesse local que se estabelece o jogo da alteridade”.

Marluce Lima de Morais, para os amigos simplesmente Malu, nos conta histórias e memórias de uma tradição ancestral, de um patrimônio oral em risco em uma peque-na comunidade no sertão do nordeste brasileiro, a cidade de Alto Longá, no interior do Piauí, um território no qual “a morte é celebrada com um lamento conhecido por ince-lência, expressão cultural materializada no ritual de acompanhamento de um defunto e que se realiza diante de uma morte preparada, assistida, domesticada”.

Tece uma narrativa fluida e nos convida a leitura de seu texto, fruto de reflexões sobre um corpus documental de arquivo, bibliográfico, relatos diversos que regis-tra ao longo da etnografia que elabora, corpus que informa sobre questões ricas e complexas que envolvem não apenas os problemas teóricos-metodológicos do patrimônio cultural, mas igualmente da memória.

À pretexto de falar do Piauí, da presença da religião católica no Estado, constrói o caminho longo de uma tradição e espiritualidade cotidiana, elege uma referência cultural, não se intimida com as críticas mordazes daqueles que consideram os estudos dos folcloristas dispensáveis, lê aqueles relatos, observa-os com atenção analítica, em um trabalho arqueológico, a contra-pêlo, atravessa as narrativas, captura percepções ainda não sentidas, interpela os relatos, constrói novos registros, dialoga com os per-sonagens que elege para a sua história, compara os depoimentos, apresenta-nos uma cultura híbrida, fluida, móvel, latente, pulsante, singular.

De forma apaixonada e competente, Malu nos apresenta as relações intrínsecas entre patrimônio, memória e história, sobretudo, os desafios que se apresentam ao ofício, mo-dos de fazer do historiador. Escolhe um tempo longo, três personagens, descobre e regis-tra singularidades da história das atitudes diante da da morte no Brasil, notadamente no Piauí; dialoga com os personagens, descobre fragmentos, cacos, restos, mas, sobretudo, permite que seus informantes atualizem, trabalhem as suas memórias. Descobre que é possível encontrar histórias e memórias até mesmo onde os outros não as vêem, cria um ponto de reflexão sobre as assertivas de Pierre Nora, para quem “[…] tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória, mas já história; tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de seu desaparecimento no fogo da história. A necessidade de memória é uma necessidade da história”. No campo das mentalidades, das religiosidades e das espiritualidades há histórias, muitas memórias, ritualizadas dia-a-dia.

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Marluce Morais, historiadora, nos apresenta um Piauí afeito a fé, marcado pela presença de gerações com memórias coletivas e individuais complexas, situadas nos “quadros sociais da memória” (Halbwachs); nos apresenta pessoas que vivem inten-samente os afazeres de suas vidas religiosas; capta memórias e lembranças imersas em comunidades que ainda não sofreram os desatinos da modernidade e da modernização.

Ao acreditar que a memória é experiência e trabalho, ao mesmo tempo coletiva e individual, a autora usa a História Oral e a Etnografia como instrumentos de pesqui-sa histórico-antropológica; percebe a memória a partir da localização das lembran-ças conforme os grupos sociais e suas relações recíprocas; acredita em um tempo longo, complexo, perceptível ao historiador atento e sensível, não crê em um tempo linear, cartesiano.

Segue a trilha de Alessandro Portelli e Paul Thompom, realiza entre-vistas, aden-tra os sentimentos mais profundos, localizados nos recônditos da alma e do lar dos informantes e devotos católicos; a autora comunga com a ideia de que a memória só tem sentido em relação a um grupo, que os acontecimentos rememorados devem ter sido vividos em comum, que deve haver a participação de outras pessoas de um mesmo grupo social; o “eu” só se torna relevante enquanto parte de uma “comunidade afetiva” de um “meio efervescente”, adentra e participa do cotidiano da comunidade Flor do Dia; faz pesquisa, participa do dia-a-dia dos informantes, sabe ouvir, esperar, registrar, tomar notas, narrar — nos conta uma história dentre tantas outras possíveis.

Como Halbwach, acredita que a memória individual só tem sentido dentro de relações sociais, a rememoração pessoal se faz em contextos de solidariedades múl-tiplas, as lembranças estão inseridas em lugares sociais e afetivos, em experiências históricas, culturais. Halbwachs foi um observador atento da vida cotidiana, só conseguia perceber as pessoas integradas, umas em relação a outras, logo não é pos-sível lembrar quando se estar só. Seguindo o raciocínio do sociólogo, nunca estamos ou refletimos sozinhos, não chegamos as ideias ou aos modos de pensar de forma isolada; portanto, para que alguém recorde um acontecimento precisa de outras pessoas, não necessariamente presentes sob a forma material e sensível, mas que façam parte do contexto social, onde os acontecimentos e testemunhos se desenrolariam.

Malu consegue entender os conceitos, os aplica em seu texto, sabe que a capaci-dade de lembrar algum acontecimento está diretamente relacionada a um ou mais grupos. As discussões sobre as memórias individuais e coletivas consideram o indivíduo participante das duas espécies de memórias – a autora tece a teia, constrói a sua narrativa com base nos testemunhos, lê com calma, leveza e nos convida a entrar na alma devota do sertão brasileiro; narra histórias de vida, faz críticas a história tra-dicional, claramente simples e ingênua, por desconsiderar uma infinita diversidade de possibilidades de representar o real, frágil e sub-reptício.

Marluce Morais problematiza a história e o patrimônio cultural, adere a aproxi-mação da história de outras ciências: sociologia, antropologia, etnologia, traz para a cena principal o homem e a mulher simples, não o grande personagem, percebe uma multiplicidade de pessoas, aproxima-se da micro-história.

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Na condição de historiadores trabalhamos com discursos, vozes e imagens do passado e do presente, nesse particular, a autora é dinâmica e nos apresenta uma multiplicidade de indivíduos que elege para sua investigação, revela-nos as diver-sas práticas discursivas que foram construídas com e ao seu redor da tradição, da cultura, do patrimônio cultural; reconstitui um dado contexto histórico-social no qual se desenrola os acontecimentos, valoriza formas de comportamentos, de práti-cas culturais e políticas; procura entender que os comportamentos normalizados es-tão inseridos em um meio social, retrata de forma competente uma época, não reduz as condutas a comportamentos-tipos, mas interpreta as vicissitudes de um tempo, de personagens a luz de um contexto.

É com a certeza da qualidade da investigação realizada por Marluce Lima de Morais que o selo VOX MUSEI publica esta obra, que pode ser apreciada por doutos e leigos.

Boa leitura!

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INTRODUÇÃO

Alto Longá, cidade do interior do Piauí, Nordeste do Brasil, é um território no qual a morte é celebrada com um lamento conhecido por incelência, expressão cultural materializada no ritual de acompanhamento de um defunto e que se realiza diante de uma morte preparada, assistida, domesticada.1

As atitudes cristãs diante da morte e dos mortos foram trazidas pelos coloniza-dores portugueses ao Brasil; eram, sobretudo, clérigos que, em ritos e manuais reli-giosos de alcance expressivo, transmitiam aos cristãos católicos na colônia tradições milenares. A maioria dos cristãos leigos assumiu e ressignificou aquelas práticas e as repassaram, ao longo de gerações, por tradição oral.

Para compreender e interpretar essas práticas, nomeadamente incelências, usa-mos a metodologia da história oral e etnografia, privilegiamos as entrevistas temáti-cas e a observação participante. Manifestamos preferência por entrevistar as pessoas que vivenciaram ou praticaram o ritual das incelências em espaços diversos de so-ciabilidade. O território de investigação e estudos foi Alto Longá2,

pequena cidade no sertão do Piauí.

Encontramos o senhor Antônio Pereira da Silva, conhecido na comunidade por “Antônio Pequeno”, um guardião de memórias, transmissor de tradições populares marcadas por uma religiosidade devocional.

Ao longo do tempo, ocorreram mutações nas atitudes diante da morte. Na con-temporaneidade, é comum o “afastamento” dos vivos em relação aos mortos; por-quanto os velórios, anteriormente nas casas das famílias, são, agora, realizados em casas funerárias.3

Incelências, Excelências ou Incelenças se configuram como uma forma de ritualização, de expressão, de exteriorização de sentimentos dos vivos em relação aos mortos que ainda estão presentes no sertão do Piauí, na memória coletiva e indi-vidual de muitas pessoas e comunidades; onde há ainda o costume fúnebre de velar a passagem do vivo para o mundo dos mortos. Trata-se de um ritual em que a morte é viva, vez que experienciada.

As pessoas selecionadas para a realização deste estudo conhecem o ritual, as Ince-lências, lembram-se de forma imediata de algum velório do qual participaram logo que mencionamos as orações ou as canções entoadas nessas cerimônias, geralmente cantadas por mulheres, conhecidas como carpideiras. Nos diálogos com as pessoas, conseguimos que as lembranças se presentificassem e surgissem imagens de mulheres chorosas na sentinela, momento de despedida de entes queridos.

Nesse sentido, fizemos uso da metodologia da história oral para reconstruir me-mórias e realizar uma descrição etnográfica dos rituais e atitudes diante da morte, materializados nas Incelências, que se constituiu elemento central da investigação. Foram entrevistadas quatro pessoas, dois homens e duas mulheres.4

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Imagem 1 - Mapa de localização do município de Alto Longá-PI

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Em Alto Longá, entrevistamos o sr. Antônio Pereira da Silva – sr. Antônio Pequeno, morador do bairro Flor do Dia, casado, pai de nove filhos, criados e educa-dos ouvindo as suas rezas. A família cultiva a tradição de rezar aos santos protetores, realizar peregrinações e novenas. Na cidade, conversamos ainda com o responsável pela paróquia Nossa Senhora dos Humildes, padroeira do município, o Pe. Francisco Miguel Soares Xavier, que conhece bem a região, pois além dos oito anos a frente da paróquia, nasceu no município de São Miguel do Tapuio5, próximo a Alto Longá; vivenciou manifestações de religiosidade devocional desde a infância,como partos realizados por rezadeiras a velórios com Incelências.

As duas mulheres são da cidade de Parnaíba-PI6, a senhora Maria José Silva dos Reis — dona Teteia, indicada por alguns moradores da cidade como “boa rezadeira”7. A entrevista foi realizada em sua casa, em Ilha Grande de Santa Isabel,8 bairro onde mora com dois de seus filhos, dona Teteia conhece algumas Incelências, mas não realiza a atividade de carpir, apenas benzimentos. Por fim, entrevistamos a senho-ra Erlene Maria de Oliveira, professora de História do ensino fundamental em uma escola da cidade de Parnaíba-PI, lugar onde mora com a mãe e a filha Isabel. Movida pela curiosidade do tema e por conhecer mais sobre o ritual, dona Erlene nos contou a sua experiência e vivência em velórios, marca significativa de sua infância. Assim, Marias, Joãos, Antônios, Zefas se diferem nos nomes, não na devoção.9

Construímos neste trabalho as trilhas de uma fé e de uma espiritualidade de pes-soas simples do sertão do Piauí, expressões que dão sentido ao seu presente em uma religiosidade marcada por rezas, benzimentos, procissões, romarias, benditos10 e In-celências. A nossa busca foi por compreender e interpretar os sentidos do ritual das Incelências na contemporaneidade. Questionamos: Haveria lugar para as Incelências na sociedade contemporânea? Quais as continuidades e rupturas das atitudes diante da morte e dos mortos?

Martine Segalen11, ao tratar de rituais contemporâneos, propõe uma conceitua-ção para o termo ritual. Para ela, a sociedade contemporânea não atualiza os rituais tradicionais, por considerá-los sem conexão com o tempo que se vive; tempo que pode ser lido no presentismo de François Hartog12 ou na supermodernidade de Marc Augé13. O novo regime de historicidade é tratado por François Hartog como presen-tismo, tempo onipresente e carregado de agoras, em que cada experiência é vista pela velocidade do tempo e das novas atualizações. Esse tempo acelerado muda a perce-ção dos indivíduos em relação aos rituais, alterando a sua realização e ritualização.

Nesta pesquisa, os referidos autores auxiliam na reflexão sobre os impactos do tempo em relação aos rituais e atitudes diante da morte; morte cada vez mais afas-tada dos vivos, do lar; de um velório marcado pela ausência dos olhares atentos da família, e com mais frequência realizado por empresas funerárias ou em capelas. Nesse sentido, os vivos separam-se gradativamente dos mortos, do convívio anterior-mente praticado no lar. Norbert Elias percebe esse afastamento como um estágio do processo civilizador:

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O afastamento dos vivos em relação aos moribundos e o silêncio que gradual-

mente os envolve pode ser visto, por exemplo, no tratamento dos cadáveres e

no cuidado com as sepulturas. As duas atividades saíram das mãos da família,

parentes e amigos e passaram para especialistas remunerados.14

Martine Segalen percebe que os ritos mortuários na contemporaneidade têm se mostrado cada vez mais modestos e com períodos menores de tempo para o luto e cerimônias religiosas:

Tanto o retraimento dos sinais exteriores da morte, quanto o desenvolvimen-

to da descrença no além atrapalham o trabalho de luto, de modo que novas

práticas, como a incineração, cada vez mais difundidas, deixam todos pouco

a vontade, sem referências para realizar os gestos que acalmam a tristeza dos

vivos e fazem o defunto assumir o seu lugar entre os mortos, a começar pelo

lugar físico.15

Ao seguirmos a perspectiva de Segalen, é possível compreender as mudanças, as atitudes e a ideia de privatização dos ritos de morte evidenciados por Norbert Elias no início do século XX. A morte continua a ser celebrada em rituais, em novas ex-pressões, em atitudes e rituais ressignificados.

As atitudes diante da morte e dos mortos configuram temáticas que devem ser investigadas como “criadoras de cultura”16, que motivam e informam de suas consti-tuições, permanências e rupturas na atualidade. Propomo-nos a descrever e analisar como os indivíduos criam e recriam a cultura e as atitudes através de expressões e manifestações diante da morte e dos mortos.

1. A MORTE COMO TEMA

A descrição do testamento de Cornélio José Avelino17 representa uma fonte valiosa para se compreender as atitudes diante da morte e dos mortos no interior do Piauí. Testamentos, inventários, registros de óbito, estatutos de irmandades e arquitetura ce-miterial nos permitem localizar sensibilidades e atitudes diante da morte e dos mortos.

No dia seis de dezembro de 1861, na cidade de Teresina, foi lavrado o termo de abertura do testamento do Major Cornélio José Avelino, sepultado no cemitério da mesma cidade, conforme desejo expresso no documento escrito pelo próprio testa-dor. Cornélio José Avelino era natural da cidade de Barras,18 província do Piauí; filho legítimo de Joaquim José Avelino e da Senhorinha Antunes da Silva, já falecidos. Dei-xou viúva Mathilde Maria Mozza, a quem declarou ser casado segundo as leis do Império,19 sendo ela filha legítima de Bartolomeu Nicolau Mozza e Guiomar Carolina

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da Silva Mozza. Como testamenteiros, declarou em primeiro lugar, seu irmão Anfrozio José Avelino, em segundo, seu irmão José Joaquim Avelino e, em terceiro, sua esposa.

Por não ter herdeiros ascendentes nem descendentes, instituiu seus sobrinhos legítimos, filhos de seus irmãos. Oito meses antes de morrer, aquele senhor escreveu seu testamento, expressou sua perfeita saúde e nos permitiu ler os sentidos e signifi-cados da necessidade de escrever seu testamento – o temor de uma morte repentina. Em abril de 1861 notificou:

Em nome de Deus, amém. Eu, Cornélio José Avelino como cristão que sou em

a qual religião nasci e fui criado e educado, e em que me tenho conservado

e espero morrer tendo-me deliberado a fazer meu testamento, como faço de

minha livre vontade e em meu perfeito juízo e saúde perfeita, declaro minhas

disposições pela maneira e forma seguinte [...].20

Percebemos que a prática testamentária foi usada pela iminência de morte do

testador. Ciente de que seu estado de saúde pudesse piorar, ou vir a falecer, afirmava ter boa disposição física e mental, o que constituía um mecanismo de legitimação da escritura testamentária, além de uma forma de garantir que os seus desejos fossem aprovados, porque o fez consciente e sem interferência de terceiros. Era comum se deixar por escrito as orientações dos procedimentos após a morte:

Primeiramente, que meu testamenteiro logo que eu faleça, mande me sepul-

tar no lugar onde eu falecer, e recomendo [que] seja feito meu enterro, sem

pompa alguma, mandando dizer no dia seguinte ao meu enterro uma missa

por minha alma [...] Declaro que deixo para ser distribuído por pessoas pobres

no lugar onde falecer a quantia de sessenta mil réis, nunca dando-se a cada um

destes pobres, menos de dois mil réis a cada.21

Os desejos do sr. Cornélio informam sobre um período em que as atitudes em relação a morte e aos mortos passavam por um processo de secularização.22 À luz das políticas de higienização, os enterramentos, anteriormente feitos dentro das igrejas, passaram a ser realizados em cemitérios distantes do centro das cidades. Há raras descrições nos testamentos daquele período, de sufrágios necessários para uma “boa morte”. Ainda assim, sem muita pompa, o sr. Cornélio recomendava que se realizassem os ritos da igreja católica.

O testamento se constituía na principal expressão dos desejos quanto a realiza-ção dos sufrágios, contendo sobretudo as declarações de uma vida cristã, presente tanto na família como na vida pública do testador.

Além de declarar os poucos bens que possuía, dedicava uma parte em segredo a esposa.23 Não descrevia dívidas, nem perdões, o que poderia ser uma demonstração

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do testador de uma vida correta e cristã. Quanto aos sufrágios, mesmo sem pompa, pedia que se distribuíssem esmolas aos pobres, símbolo da bondade do morto e da família, bem como uma última ação no caminho da “boa morte”.

O sr. Cornélio, assim como outros piauienses do oitocentos, letrados ou não, expressavam os desejos post-mortem por meio da escrita testamentária, instrumen-to fundamental para os desígnios de uma “boa morte”. A escrita refletia, segundo a liturgia, os elementos necessários de preparação: invocação a Santíssima Trindade, indicação dos testamenteiros, reconhecimento das culpas (dívidas, filhos bastardos, escravos, etc.), distribuição de bens (igreja, família), desejos em relação aos sufrágios (missas, cortejo, esmolas, etc.)

Buscamos analisar a “morte viva”, uma morte presente nos rituais domésticos e comunitários, do acompanhar o moribundo desde a doença aos últimos momentos de sua vida, bem como os cuidados com o velório.

Elegemos descrever e interpretar as Incelências como expressão cultural, ritual e de atitude diante da morte e dos mortos; bem como alargar as possibilidades de es-tudo de fontes tradicionais, como os testamentos, para compreender as experiências presentes nos relatos dos entrevistados.

Contemporaneamente, para compreender as atitudes diante da morte e dos mor-tos, é preciso refletir acerca de uma tradição historiográfica sobre o tema. Com o ad-vento da Escola dos Annales, a história, enquanto disciplina, promoveu uma virada paradigmática. A busca por novos objetos, problemas e abordagens, olhares e possi-bilidades de diálogo constituem os interesses dos precursores Lucien Febvre e Marc Bloch, críticos de uma narrativa histórica cuja marca estava acentuada nos eventos políticos. Eles propõem que a história ou a “nova história” utilize os conhecimentos e as descobertas feitas por outras ciências em uma análise interdisciplinar, diálogos com a antropologia, a geografia e a sociologia, por exemplo.

O pluralismo de temas veio com o surgimento da terceira geração dos Annales (1968), nomes como André Burguiere24, Jacques Revel25 e Jacques Le Goff26 continua-ram o policentrismo deixado por Febvre27 e Braudel.28 Novos temas, novos problemas e novas abordagens ocuparam o centro das produções historiográficas, com a inserção de explorar matérias antes inexploradas, “estendendo as fronteiras da história de for-ma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e, mesmo, do odor.”29

Tida como a história vista de baixo, com a história dos excluídos alargaram-se os temas. Como uma proposta de história das mentalidades, a morte e os mortos tornaram-se um assunto caro aos medievalistas, dentre eles, Michel Vovelle e Phili-ppe Ariés surgiram como especialistas em matéria de morte, sobretudo, das atitudes diante da morte, como evidencia Ariés nos dois volumes de O homem diante da morte.

Como a morte foi percebida pelos historiadores? Philippe Ariés30 constitui uma das principais referências na área e originou tendências. Na historiografia brasileira, há dois marcos: a coletânea organizada por José de Souza Martins, A morte e os mortos na sociedade brasileira31 e a obra de João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.32

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2. AS ATITUDES DIANTE DA MORTE

Philippe Aries propõe um estudo das atitudes diante da morte em uma perspectiva de longa duração, entende que as atitudes (mentalidades) são mudanças que demo-ram longos períodos para ocorrer. O que poderia, a primeira vista, parecer imóvel, sofre mudanças lentas.

Aries elabora os conceitos de morte domada ou morte domesticada ao analisar a conjuntura medieval nos séculos XII e XIII. Analisa uma morte repleta de preparati-vos, “não se morre sem ter tido tempo de saber que vai morrer”33 morte acompanha-da, esperada, planejava, vivida, como a morte de Guilherme, O Marechal, descrita por George Duby.

Agora tudo o que resta é deixar correr o tempo, é aguardar, seguir o andamen-

to dessa agonia que se arrasta. Ela já demora dois meses, e com ela o grande

espetáculo que estou descrevendo, cujo ritmo se estira excepcionalmente. O

público poderia cansar-se. Porém, persevera. A câmara não se esvazia. Para ver

como morre o marechal, os espectadores se acotovelam ao lado do filho mais

velho, quase sempre sentado, paciente, fiel, cumprindo perfeitamente o papel

que é o seu, a cabeceira do leito de morte.34

Uma morte repleta de atos: o lamento da vida, o perdão, o voltar-se para Deus, a última oração, a espera da morte seguida do cerimonial público. No entanto, com a individualização das relações sociais, a “morte de si” passa a ser “selvagem”, repleta de dor e sofrimento, deixando de ser vivida, teatralizada e dividida. A mudança de atitudes no século XIX evidencia uma morte interdita, torna-se vergonhosa e objeto de não-ditos e silenciamentos. “O moribundo deve um dia saber, mas nesse momento os parentes não têm mais a coragem cruel de dizer eles próprios a verdade.”35 Os rituais permanecem, segundo Aries, mas a evolução material da sociedade desloca o lugar da morte, “já não se morre em casa, em meio aos seus, mas sim no hospital, sozinho.”36

Nesse sentido, Aries sofre a censura de Norbert Elias, que percebe a morte e o processo do morrer por meio de um recalcamento social; a morte do outro funciona como um lembrete de sua própria morte, causando assim um afastamento. A crítica se relaciona a uma leitura descritiva e unilateral de Aries.

Por outro lado, Norbert Elias recrimina a “morte pacífica”37 do passado medieval analisado por Ariés, uma vez que as vicissitudes enfrentadas pelos homens medie-vais, como as guerras e a peste, eram uma constante, provocando ondas de terror: “A vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido de culpa e o medo da punição depois da morte, a doutrina oficial”38; avaliação a um “bom passado”, no qual a morte era domesticada e um mal presente com uma morte interditada.

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A crítica de Norbert Elias é pautada em perspectivas de análises diferentes, no entanto, ambos percebem que as atitudes, as mentalidades ou o processo civiliza-dor só podem ser entendidos por uma leitura do processo histórico, em uma análise comparativa com outras temporalidades.

Elias e Aries corroboram a ideia de que as mudanças em relação aos moribundos e a morte ocorrem lentamente; percebem que o processo de materialização da sociedade no decorrer do tempo e o avanço tecnológico que aumentam a qualidade de vida tor-nam a morte indesejada, modificam as atitudes diante dos moribundos e dos mortos.

3. A MORTE E O MORRER

Herman Braet e Werner Verbeke39 organizaram uma coletânea de artigos sobre a morte, apresentada no Colóquio Internacional, realizado em maio de 1979, sob o título A morte na Idade Média; os artigos apresentam, de forma interdisciplinar, uma análise da morte como elemento “criador de cultura”.

Michel Vovelle40 abre a coletânea e propõe reflexões sobre questões teóricas liga-das a morte. Nesse sentido, usa como metáfora o homem, que, ao mirar-se no espe-lho, confronta-se com a morte. Faz uma análise sugestiva relacionada intimamente ao título da comunicação com o texto A história dos homens no espelho da morte. Vovel-le reforça a ideia de que um estudo sobre a morte deve ser realizado e entendido na longa duração, em um fio que ligue a temática diretamente a ideia das mentalidades. A morte surge como perspectiva definidora e invariável na vida dos homens, que perpassa culturas, marca o presente não somente no momento propriamente dito da morte, perspectiva que nos obriga a um estudo paciente e ambicioso,

[...] prudente, porque é preciso evitar conclusões muito rápidas propondo-se

um ‘modelo’ de história da morte. Seria fugir ao aspecto multiforme da morte.

Ambiciosa, porque é preciso tomar a morte como um todo. É preciso passar

da morte biológica ou demográfica (do fato material ou bruto da morte) até as

produções mais elaboradas, literárias ou estéticas, do sentimento da morte.41

Vovelle propõe estudos sobre a morte e as atitudes diante dela em uma perspectiva de longa duração, que considerem fontes as mais diversas, a fim de que seja possível entender as suas especificidades culturais e temporais, interpretando-se a morte so-frida, a morte vivida, a morte bruta e os discursos sobre a morte. Para Vovelle, a mor-te sofrida é compreendida em uma análise quantitativa, em leitura demográfica de dados: depende da curva relacionada ao número de óbitos, relacionados e separados dos componentes sociais como idade e sexo (morte do homem, da mulher, da criança). Segundo o autor, estudar a morte sofrida a partir de dados demográficos seria um primeiro aspecto de análise; os dados quantitativos auxiliariam a perceber o contraste entre o

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campo e a cidade, “semelhante contraste permite explicar como o campo pode ser, na sociedade tradicional, o elemento conservador dos antigos sistemas da morte folcló-rica ou folclorizada.”42 A conservação dos ritos de morte tradicionais no campo, dife-rentemente da cidade, evidencia, para Vovelle, que dados demográficos mostram uma diferença social entre ricos e pobres, entre dominantes e dominados.

Ao analisar a morte vivida, Vovelle abre um leque de formas de interpretação dos rituais religiosos e cívicos. No interior dos ritos, percebe-se a sensibilidade con-tida no cerimonial que perpassa o conhecimento e as atitudes do homem diante da morte, que poderíamos localizar para além do tempo histórico vivido, nesse sentido, a longa duração auxiliaria a compreender a morte. Para Vovelle, as sensibilidades diante da morte sofrem avanços e recuos, “estamos atualmente num desses períodos; no momento em que admitimos a morte-tabu, que rejeitamos e expulsamos, a morte hoje onipresente significa que volta a nos bloquear de maneira muito viva.”43

Os discursos sobre a morte preenchem as análises. Assim, além dos discursos cole-tivos expressos nos rituais funerários, há, ainda, os discursos organizados sobre a mor-te que evoluem com o tempo, discursos que informam sobre o imaginário de uma época, sobre a situação histórica; discursos que, segundo Vovelle, emergem sobre diversas formas: filosófico, cívico ou científico.

A partir desses três níveis, a morte nos auxilia na compreensão do tema, na pers-pectiva da longa duração, vez que esses níveis provocam o pesquisador a alargar o tempo para compreender os avanços e recuos nos discursos sobre o assunto em foco.

4. A MORTE E OS MORTOS NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

José de Souza Martins organizou, em 1982, em formato de livro coletânea, as comu-nicações apresentadas no Seminário Interdisciplinar “A morte e os mortos na socie-dade brasileira”, realizado na Universidade de São Paulo – USP. Essa obra é conside-rada pelos historiadores brasileiros um marco nos estudos sobre a morte no Brasil. Os estudos sobre o tema nasceram dos interesses em pôr fim aos silêncios sobre a morte na historiografia brasileira, trazendo o tema para um primeiro plano, “negan-do os silêncios que pesam sobre o assunto; descobrir por que a morte é tema interdito e interditado até mesmo para a pequena burguesia acadêmica.”44

A coletânea apresenta uma diversidade de perspectivas sobre os estudos referen-tes a morte. Divide-se em seis partes: A modernização do modo de morrer relaciona a morte com a prática médica; História da morte reflete sobre o culto aos mortos no século XIX, usam-se os necrológios e as práticas fúnebres localizadas em recortes específicos; A morte na literatura, analisa o romance Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, e a peça de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida;45 O negro e a morte relaciona a temática as crenças e práticas religiosas dos negros; A morte e os mortos en-tre caipiras e caboclos discute sobre as práticas do campo, manifestações tradicionais do sertão; e, por fim, Os povos indígenas e a morte, que reflete sobre a escatologia indígena.

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As subdivisões abrangem vinte e quatro artigos, que apresentam abordagens va-riadas referentes a morte e ao ato de morrer. Os autores estão vinculados a proposta pioneira da historiografia francesa no trato com a morte, principalmente aos trabalhos de Michel Vovelle e Philippe Aries. Nessa perspectiva, há análises das atitudes diante da morte bem como a base documental, que considera testamentos e registros de óbito.

Dos citados artigos, analisaremos aqueles referentes a quinta parte, A morte e os mortos entre caipiras e caboclos, por estarem diretamente relacionados as práticas mortuárias, aos saberes tradicionais recorrentes nas cidades do interior do Brasil, sobretudo, no sertão do Piauí, na região Nordeste.

O primeiro texto, Morte e faixa etária – os anjinhos de Oracy Nogueira, nos remete a denominação utilizada pelos entrevistados, ao se referirem a morte de crianças, em que os lamentos são diferentes dos cantados pelos adultos, e as crianças são descritas como anjinhos. O autor utiliza dados estatísticos do censo de 1980 sobre os municí-pios paulistas de Guaratinguetá, Lorena e Cunha, e percebe na realidade daqueles locais a existência de empresas funerárias especializadas em artigos fúnebres, ela-borados de forma artesanal; uma pesquisa realizada a base de dados demográficos e comparativos com o ritual descrito por Câmara Cascudo. Nogueira conclui cons-tatando que os anjinhos continuam a ser sepultados em caixões brancos tais como aqueles descritos pelo folclorista, no entanto, percebe que tanto as cores das mor-talhas quanto os cantos festivos, o choro de sinos e a prática de luto fechado estão prestes a desaparecer.

Com uma escrita direta e quantitativa, Nogueira constata que os rituais fren-te a morte de crianças e adultos tendem a se equiparar, com algumas modifica-ções apenas no que se refere a desigualdade social, que se impõe aos interesses das “indústrias” funerárias.

No texto de Renato da Silva Queiroz, A morte e a festa dos vivos, o autor narra as atitudes diante do falecimento de um adulto em Ivaporunduva, interior de São Paulo: “Quando morre um, vai bastante gente para ajudar no velório. Todo mundo larga o serviço e vai para a casa do morto”46, que é acompanhado pela família, ao receber os amigos para a guarnição e os sete dias seguintes de reza. O autor interpreta esses costumes como formas de encontros privilegiados, que intensificam sociabilidades entre os moradores, porquanto “colaboram na manutenção de uma estrutura igua-litária, indiferenciada”,47 tratando-se de verdadeiros fatos sociais totais. A preocupa-ção dos moradores com a família do defunto e com o sentimento em relação a ele nos remete a prática das Incelências e as atitudes que os indivíduos lançam frente a sua comunidade afetiva quando se trata de um conhecido.

José de Souza Martins apresenta notas de seu “caderno de campo”, que intitula de A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça. Inicialmente, apresenta sr. José Rodrigues, um senhor maranhense morador de um povoado em Mato Grosso do Sul chamado Santo Antônio do Rio das Mortes. De acordo com o autor, o serta-nejo vive, mas sabe o dia de morrer, pois “ao se falar da vida, não se pode deixar de falar da morte, porque são uma coisa só”.48 Na fala do sertanejo existem rezas para

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não morrer antes do tempo nem depois do tempo, revelando assim a morte presen-te, vivida, bem como os conflitos frente a morte, de acordo com o saber tradicional. Morte e morto possuem interpretações distintas; os rituais da agonia do moribundo são ritos de tempo assim como os rituais de morte são relativos aos ritos de espaço, diferenciando a alma do corpo.

Martins descreve os passos dos cuidados do corpo, como o lavar, sempre destina-do a estranhos, nunca as pessoas da família; a posição do corpo, com os pés voltados para a porta “da rua”, o inverso da posição de nascimento, em que as camas são vol-tadas com os pés para dentro da casa, nunca para a porta.49 Segundo o autor, “no que diz respeito aos vivos, esse é um modo de não atrair a morte. No que diz respeito aos mortos, é um modo de evitar que a alma permaneça na casa, e com ela a morte. A alma deve acompanhar o corpo, embora separada dele”.50 Ao longo do texto, o autor descreve as atitudes e as crenças em relação ao morto e a morte; trata-se de um relato de campo, rico em descrições etnográficas, que permite uma aproximação das atitudes no povoado Flor do Dia, em Alto Longá, crenças e ritos perpetuados pela tradição oral.

5. A MORTE É UMA FESTA

No Brasil, outro marco nos estudos sobre a morte é do historiador João José Reis, que discute as manifestações fúnebres durante o século XIX. Em seu livro A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, o autor analisa os percursos que desencadearam a revolta popular conhecida como “Cemiterada”, protagonizada por irmandades e ordens terceiras na Bahia, Brasil.

As irmandades, as ordens terceiras, a população pobre e, principalmente, as mulheres, saíram as ruas ao som de badaladas dos sinos rumo a câmara municipal para protestar contra a aprovação da lei dos cemitérios, que proibia os enterramen-tos dentro das igrejas. As irmandades eram as responsáveis pelos rituais fúnebres, e a transferência para o cemitério afastaria os mortos do convívio dos vivos, de suas lembranças e cuidados, além de afastá-los dos santos de proteção, que estavam nas igrejas. Vale ressaltar que as irmandades também não queriam perder a assistência aos mortos, um dos seus principais deveres depois da ajuda aos necessitados.51

Ao analisarmos aquele evento e o imaginário em torno dos cuidados com a morte, João José Reis nos auxilia quanto a perceber os elementos que significa-vam a religiosidade popular. Durante as mudanças do século XVIII e XIX, a morte foi entendida em três dualidades: da morte doméstica a morte selvagem, eviden-ciada por Aries; da morte barroca a morte moderna; e, da morte corporativa a morte individual. Para Reis, embora mudasse a nomenclatura, o fenômeno de transição era o mesmo.

A morte se evidenciava, antigamente, pelo acompanhamento e preparação de todos os detalhes pelo próprio indivíduo e sua família, diferentemente do século XIX, em que se apresentava esvaziada de sentido devido as propostas de funerais

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econômicos, atitudes explicadas pelo processo de medicalização que altera as concepções em torno do cadáver e da sepultura.

Reis apresenta ainda os rituais fúnebres domésticos, comparando os relatos de jornais da época com os dos folcloristas, sobretudo, Câmara Cascudo. O autor apre-senta os preparativos realizados com o morto, iniciando os trabalhos com o anúncio das carpideiras, comumente presentes em Portugal, que assumiam a função de preparar e conduzir o velório, “atuavam também as vizinhas carpideiras, ‘velhas devotas de lágrima fácil e gestos teatrais.”52

Outro aspecto analisado por Reis são o uso e as cores das mortalhas, vinculados a cor da morte, o preto e os hábitos que remetem a santos de devoção do defunto. O luto também foi abordado por Reis, evidenciando que a existência dos enlutados não se resumia unicamente a família, mas também aos serviçais e escravos.

Estudos como os de Philippe Aries e Michel Vovelle se tornaram inspirações para a escrita sobre a morte na historiografia brasileira, sobretudo, quanto a utilização de fontes: testamentos, registros de óbitos, estatutos de irmandades, dados estatísticos e relatos folclóricos. A perspectiva francesa auxilia o conhecimento do panorama francês diante da morte e as perspectivas sobre o tema, bem como a possibilidade de traçar comparações com as atitudes diante da morte no cenário brasileiro, nomeada-mente no sertão do Piauí, no Nordeste do Brasil.

Como fontes e objetos de análises, citemos, para este estudo, os testamentos, disponíveis no Arquivo Público do Estado do Piauí, referentes a Teresina entre os anos de 1856 e 1899, equivalente a trinta e um Estatutos de Irmandades, relatos de folcloristas, entrevistas realizadas com rezadores e rezadeiras que formam o corpus documental desta investigação, que nos permitem ler, compreender e interpretar o ritual das Incelências; bem como fotografias, álbuns de família, jornais, dados esta-tísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, e “cadernos de cam-po”. Elegemos ainda as mudanças, as permanências, os símbolos, os sentidos e os significados das Incelências, as transformações do ritual na contemporaneidade, as entre/vistas e as descrições de folcloristas como fontes significativas nesta pesquisa.

Sobre os relatos folclóricos como fonte de pesquisa, E. P. Thompson adverte:

Desde que burilizado com cautela, o material recolhido pelos folcloristas oitocentistas

ainda pode ser útil [...] as perguntas dos folcloristas raramente procuram saber de sua

função ou uso corrente [...] o significado de um ritual só pode ser interpretado quan-

do as fontes (algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como

fragmento folclórico, uma ‘sobrevivência’ e são reinseridas no seu contexto total.53

O desafio está em comparar o ritual descrito pelos entrevistados com o coletado pelos folcloristas, para preencher lacunas e perceber as possíveis mudanças e perma-nências nesse aspecto da cultura religiosa popular. Assim, entendemos a cultura do povo em sua singularidade, guiada pela perspectiva de Áurea Pinheiro:

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Não buscamos compreendê-la por seu contraste ou a tomamos como refe-

rência a cultura erudita, letrada ou dominante, de onde poderia ser possível

caracterizar o “popular” ou buscar para essa compreensão o público de certas

produções e expressões culturais, ou poderíamos até entender o popular como

forma cultural pura, social e historicamente tida como pura, singular, fruto

de populações rurais, com pouco ou nenhum contato com o urbano, com a

modernização ou com a modernidade, preferimos entender a cultura popular

a partir de sua historicidade, singularidade.54

Os relatos de folcloristas marcam um tempo de vivências e observações do pes-quisador, bem como uma proposta de pensar a cultura e as tradições em pesquisas informadas por uma ideia de cultura, registros e preocupações desses pesquisadores em relatar diversas expressões culturais, que forjaram a particularidade da cultura brasileira. Os estudos realizados por folcloristas informam do desejo de inventariar a cultura popular; nesse sentido, as descrições nos auxiliam a construir uma perspectiva do ritual fúnebre das Incelências, pois os folcloristas pormenorizam as cerimônias, as canções e as formas de fazer.

As entrevistas temáticas e de vida55 com rezadeiras e rezadores que conhecem e praticam o ritual nos permitem discutir, a partir das narrativas tecidas, as represen-tações dos indivíduos, suas motivações, as formas de transmissão e de aprendizagem. Ao elegermos para análise os aspectos subjetivos e qualitativos das narrativas, perce-bemos o processo da entre/vista como um momento de construção da memória, um trabalho de significação das lembranças a partir do presente vivido pelos entrevistados.

As fotografias foram usadas na medida em que funcionam como registros, ins-trumentos da memória, formas de rememorar e localizar o tempo da família e as várias etapas da vida. Dessa forma, elegemos as fotos ou retratos mortuários para marcar o momento da morte ou o velório.

Nesse sentido, a metodologia da história oral foi necessária para a captura e aná-lise das entrevistas, uma vez que a pesquisa se constituiu, inicialmente, em represen-tações que os entrevistados fizeram do ritual fúnebre. Podemos perceber, portanto, as contribuições da oralidade a partir dos questionamentos de Paul Thompson:

‘O que é história oral? É um método? É uma disciplina? É um tema novo?’

Bem, na minha opinião, é uma abordagem ampla, é a interpretação da história

e das sociedades e culturas em processo de transformação, por intermédio da

escuta as pessoas e do registro das histórias de suas vidas. A habilidade funda-

mental na história oral é aprender a escutar.56

As fontes orais possibilitam ao historiador o ato de escutar e, por meio desse gesto, identificar como os indivíduos representam o seu tempo e suas vivências em socie-dade. Avaliar o ritual das Incelências a partir dos relatos pressupõe pensar a questão:

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como determinados grupos, famílias ou pessoas, mantêm a tradição em meio as mu-danças das atitudes diante da morte?

A memória dos informantes apresentará os elementos para a reconstrução dos modos de fazer o ritual. Buscamos, na perspectiva de Walter Benjamin, entender o ato de narrar, como nos informa o tempo do narrador e a significação que este faz do seu próprio tempo:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no

campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num sentido, uma forma artesa-

nal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da

coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na

vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrati-

va a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.57

Compreendemos assim o ato narrativo como uma construção de si e, nesse enten-dimento, a memória constitui um acervo de situações marcantes, escolhidas e traba-lhadas voluntária ou involuntariamente. A memória é trabalho, silêncios, esqueci-mentos, não ditos; como defende Ecleia Bosi, “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia.”58

Narrar histórias de fé e devoção constitui-se o objetivo central nesta pesquisa, cujo fio está nas sensibilidades diante da morte, especialmente, aquelas presentes nos la-mentos das Incelências que exaltam o “bem morrer”. A partir da devoção, analisamos como os sujeitos representam as suas práticas religiosas.

Notamos que a devoção esteve presente durante a realização das entrevistas e, com efeito, o termo foi utilizado com frequência como um elemento diferenciador para a realização da prática das Incelências e de outras manifestações religiosas59. A devoção estaria entre o fazer e o crer, entre a realização da prática e o que se percebe como religiosidade. O ritual pode ser descrito por dois elementos que se fazem recor-rentes nas falas dos entrevistados, as cantadeiras de excelências que “puxam a reza”, e os lamentos – as Incelências.

A imagem dessas mulheres foi consolidada ao longo do tempo, estando relacionada as pessoas que desempenharam, e ainda desempenham, um papel fundamental no ritual de morte, assim como o fato de serem pagas para realizar esse ofício. Segundo João José Reis, “a morte era anunciada por carpideiras, com frequência, especialistas contratadas para a ocasião.”60 Além dessa perspectiva, existem percepções diferentes, rezadeiras e rezadores que também acompanham o momento da morte com as Incelências e que o fazem por devoção, nesse caso, percebem a manifestação como uma última homenagem ao morto.

Em tese, as Incelências são canções e orações em forma de lamentos que servem para celebrar o momento da passagem do vivo para o mundo dos mortos. Câmara Cascudo relata que as Incelências se tratam de um “canto entoado a cabeça dos moribundos ou

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dos mortos, cerimonial de velório [...] cantam sem acompanhamento instrumen-tal, em uníssono, em série de doze versos ritualmente.”61 O canto segue a forma de sete, nove e doze repetições, possuem a função de provocar o choro nos presentes ao velório. A melodia dessas canções é unívoca, no entanto, percebemos mudanças no tom dos lamentos quando entoados no momento do velório, geralmente as le-tras se referem ao momento de separação do mundo dos vivos, retratam o caminho que deve ser percorrido pelo morto com a ajuda de anjos e de santos de proteção, de devoção.

Eu vou ler um ABC que Jesus Cristo mandou

É uma luz do dia, é uma maravilha

É uma luz perpétua, é um esplendor

Eu vou ler um ABC que Jesus Cristo mandou

É uma luz do dia é uma maravilha

É uma luz perpétua, é um esplendor

Eu vou ler um ABC que Jesus Cristo mandou

É uma luz do dia é, uma maravilha

É uma luz perpétua, é um esplendor

Eu vou ler dois ABC que Jesus Cristo mandou

É uma luz do dia, é uma maravilha

É uma luz perpétua, é um esplendor...

... e assim repete sete vezes, repete sete vezes, aí são vários, aí é cantiga de mais.62

As canções ressaltam o momento da passagem, principalmente para que o morto faça a separação de um mundo pertencente anteriormente em vida para seguir uma nova jornada junto a divindade. O ritual incorpora a função de reafirmar a fé e os laços da comunidade, confortar a dor e celebrar o momento da passagem.

A análise do ritual se pauta nos aspectos ligados a sua realização e motivação pela devoção das pessoas em fazê-lo. A busca está em perceber como o ritual das Incelências informa uma manifestação diante da morte e como o rito é percebido ou significado pelos sujeitos históricos que o vivenciam, além de entender como a prá-tica permanece na atualidade nas manifestações diante da morte, vivenciadas pelo afastamento entre o moribundo, o morto e os familiares.

O diálogo entre a História e a Antropologia compõe também uma proposta de leitu-ra das Incelências neste estudo; região de fronteira que nos permite aproximações de mé-todos e técnicas para compreendermos e analisar elementos simbólicos, signos presentes na celebração, áreas que nos auxiliam na compreensão do preparo e na preocupação com os rituais de morte, das atitudes e sensibilidades diante da morte e dos mortos.

As fontes eleitas para esta pesquisa nos informam, uma perspectiva histórico-antro-pológica que nos permitem análises pormenorizadas das narrativas, nesse aspecto, priorizamos o tempo marcado pela tradição e experiência dos entrevistados. Assim,

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o período desta investigação corresponde entre 1980 e 2011, no qual priorizamos o tem-po de reza de cada entrevistado.

À luz desse entendimento, a etnografia nos auxilia na descrição do ritual das In-celências, bem como de sua análise, foco antropológico que permite compreender o ritual e seus elementos, como textos, como perspectivas de um tempo, como fatos sociais totais de indivíduos e das relações sociais pertinentes a celebração.

Tempo, memória e tradição são categorias eleitas e primordiais para esta pes-quisa; daí a preferência por sujeitos e vivências, daí o diálogo com o tempo presente, com o tempo da memória, evidenciando as construções e representações pertinentes ao exercício de ver e ouvir.

No Capítulo I, apresentamos um Piauí construído a base da fé católica, que influen-ciou, diretamente, o desenvolvimento e constituição de práticas religiosas e ritos do-mésticos dispersos pelo estado; em seguida, elaboramos o percurso que desencadeou a escolha da cidade de Alto Longá como ponto de partida, locus desta investigação.

No Capítulo II, Tempo da narrativa, descrevemos o momento da entrevista e o encontro com cada um dos entrevistados, ocasião em que analisamos os relatos das experiências de vida dos narradores: Erlene Oliveira, Maria de Jesus ou Teteia, e An-tônio da Silva ou Antônio Pequeno.

No Capítulo III, As Incelências, realizamos a descrição do ritual e analisamos os elementos utilizados para registrar o momento da morte; recorremos aos lamentos e as fotografias, e, ainda, apresentamos uma discussão sobre o que seria o saber do povo a partir das análises dos folcloristas.

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 ARIÈS. Philippe. História da morte no Ocidente. São Paulo: Ediouro, 2001.

2 Município brasileiro do estado do Piauí, localiza-se 80km da capital Teresina. Com uma população de

13.646 habitantes segundo os dados do último censo do IBGE, de 2010. Disponível em: <http:www.ibge.

gov.br/cidades/painel/painel.phpWcondmun=220030#>. Acesso em: 2 de jan. 2013. o Distrito foi criado

com a denominação de Humildes, pela resolução provincial nº 852, de 22 de junho de 1874, subordinado a

Teresina, elevado a vila dos Humildes pela Resolução Provincial nº 891, de 05 de junho de 1875, desmem-

brando de Teresina, com distrito-sede instalado em 05 de abril de 1877, passando a se chamar Alto Longá

por decreto nº 8 de 20 de janeiro de 1890. Dados IBGE disponíveis em <http:/www.ibge.gov.br/cidadesat/

link.php?uf=pi>. Acesso em 1o jan. 2013.

3 Atualmente, é comum as casas funerárias comercializarem o ritual fúnebre em lugar devidamente pre

parado para os velórios; a família estabelece relações contratuais com a empresa funerária, e o valor a ser

pago é contabilizado a partir do tipo de serviço a ser prestado.

4 Não apresentamos uma pesquisa por amostragem, os quatro entrevistados informam as escolhas que

ocorreram durante o estudo e se relacionam diretamente entre a investigadora e os sujeitos, entre

pesquisadores e cooperadores. Os interesses dos entrevistados variam: curiosidade em falar sobre o

tema e/ou tentar compreender os objetivos da pesquisa; indicação de pessoas próximas, o que evidencia

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um reconhecimento social do papel desempenhado por rezadores e rezadeiras nas comunidades

que estudamos.

5 São Miguel do Tapuio é um município brasileiro do estado do Piauí localizado no centro norte do estado,

distante 190km da Capital — Teresina.

6 Município brasileiro do estado do Piauí, segundo mais populoso do estado e um dos quatro litorâneos do Piauí.

7 Boa rezadeira é uma expressão que qualifica a rezadeira por realizar muitas curas, o que demonstra

reconhecimento do papel desempenhado na comunidade.

8 Ilha Grande de Santa Isabel é um dos bairros da cidade de Parnaíba, Piauí. Brasil. Ilha Grande de Santa

Isabel se divide em quatro comunidades: Fazendinha, Vazantinha, Alto do Moreno e Bairro Vermelho.

9 Analisamos a devoção como um sentimento particular dos indivíduos em relação as potências divinas.

Esse termo surgiu nas entrevistas como um elemento diferenciador, caracterizando um sentimento das

pessoas mais velhas em relação a religiosidade, bem como um elemento diferenciador para a realização

das manifestações religiosas.

10 Segundo Câmara Cascudo, os benditos são cantos religiosos com que são acompanhadas as procissões e,

outrora, as visitas do Santíssimo. Disponível em <http: www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/bendi-

tos.htm>. Acesso em 20 jan. 2012.

11 SEGALWN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

12 HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, v. 22, n. 36. jul/dez 2006.

13 AUGÉ. Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994

14 ELIAS. Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 37.

15 SEGALWN, Martine. Op cit., 2002, p. 59.

16 BRAET, Herman; VERBEKE, Werner. A morte na Idade Média. São Paulo: USP, 1996.

17 Arquivo Público do Estado do Piauí. Livro de registro de testamento da cidade de Teresina (1838-1902),

testamento de Cornélio José Avelino. Caixa 0034, fundo judiciário.

18 Barras é município brasileiro do estado do Piauí, situa-se na região norte do estado, distante 126 km da capital Teresina.

19 Na coleção de Leis do Império do Brasil, o decreto de n. 1.144 de 11 de setembro de 1861 aprovava que o

Império reconhecia os casamentos bem como os registros de óbito e nascimentos mediante uma certidão

de comprovação da cerimônia. No caso dos casamentos, reconhecia os efeitos civis realizados fora do Im-

pério e professados em religiões diferentes da do estado. Disponível em: <http:memória.bn.br/DocReader.

aspx?bib=231444&pagfis=2015&pesq=>. Disponível em: www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/

colecoes/legislacao/leis1861/leis1861-1pdf>. Acesso em 1o jan. 2013.

20 Arquivo Público do Estado do Piauí. Livro de registro de testamento da cidade de Teresina (1838-1902),

testamento de Cornélio José Avelino. Caixa 0034, fundo judiciário.

21 Arquivo Público do Estado do Piauí. Livro de registro de testamento da cidade de Teresina (1838-1902),

testamento de Cornélio José Avelino. Caixa 0034, fundo judiciário.

22 Claudia Rodrigues, em seu livro Nas fronteiras do além trata do processo de secularização das atitudes dian-

te da morte; processo que se acentua devido a difusão do saber médico, a relação dos vivos com os mortos

sofre mudanças significativas, uma vez que os defuntos passam a ser enterrados em cemitérios afastados

das cidades, distanciando-os do convívio dos vivos, tendo em vista que os enterramentos ocorriam dentro

ou próximo as igrejas. Cf: RODRIGUES, Claudia. Nas Fronteiras do além. Secularização da morte no Rio de

Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

23 No documento referente ao seu testamento, o testador deixa por escrito este desejo, não informando,

Page 31: Em cada conta um lamento

porém, o valor, mas relata ter deixado uma quantia em segredo a sua esposa. Arquivo Público do Estado

do Piauí. Livro de registro de testamento da cidade de Teresina (1838-1902), testamento de Cornélio José

Avelino. Caixa 0034, fundo judiciário.

24 Historiador francês nascido em Paris em 1938, uma de suas principais obras consiste no Dicionário das

Ciências Humanas. BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

25 Historiador francês nascido em 1942 em Avignin, diretor da École dês Hautes Études em Sciences Sociales.

REVEL, Jacques. Fernand Braudel Et l’histoire, Hachette, 1999.

26 Historiador medievalista francês nascido em Toulon em 1924 com obras de destaque: LE GOFF, Jacques.

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc. 2002; LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente

medieval. São Paulo: Edusc, 2005.

27 Historiador modernista francês [1878-1956].

28 Idem.

29 BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo: Universidade

Estadual Paulistana, 1991 p. 79.

30 ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003; ______. O homem diante da

morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1962.

31 MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983.

32 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:

Companhia das Letras, 1991.

33 ARIÈS. Philippe. Op. cit., 2003.

34 GEORGES, Duby. Guilherme, o marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987,

p. 24.35

35 ARIÈS, Philippe. Op. cit., 2003, p. 82.

36 ARIÈS, Philippe. Op. cit., 2003, p. 83.

37 Morte pacífica para o autor consiste naquela esperada, assistida, a exemplo da morte de Guilherme, o

Marechal, descrita por George Duby. Ver: GEORGES, Duby. Guilherme, o marechal, ou, o melhor cavaleiro

do mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987

38 ELIAS, Norbert. Op. cit., 2001. p. 22.

39 A obra A morte na Idade Média reúne textos apresentados no colóquio internacional em 1979 no instituto

de Estudos Medievalistas de Leuven; a coletânea tem texto de introdução de Michel Vovelle, que analisa

as questões teóricas; os outros artigos versam sobre a temática da morte relacionando-a com a literatura da

Idade Média, o vocabulário, o imaginário coletivo, as concepções do além, dentre outros aspectos ligados

ao tema no medievo. Reúne nomes como: Michel Vovelle, Otto Gerhard Oexle, Philippe Aries, Joseph

Avril, Rolf Sprandel, Jacques Chiffoleau, Gerhild Scholz Williams, Joel Saugnieux, Philippa Tristram, Da-

niel Poiirion, Jean Charles Payen, Claude Thiry e Claude Blum.

40 VOVELLE, Michel. A história dos homens no espelho da morte. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner.

A morte na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1996.

41 VOVELLE, Michel. A história dos homens no espelho da morte. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner.

A morte na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 12.

42 VOVELLE, Michel. Op. cit.,1996 p. 13

43 VOVELLE, Michel. Op. cit.,1996, p. 14.

44 MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 11.

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45 QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Dos mortos e sua volta. In: MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na

sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 104.

46 O autor cita uma passagem da fala de uma moradora da cidade. QUEIROZ, Renato da Silva. A morte e a festa dos

vivos. In: MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 248.

47 Ibidem, p. 251.

48 MARTINS, José de Souza. A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça.In:______. A morte

e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 258-259.

49 MARTINS, José de Souza. Op. cit.1983,p. 266.

50 Idem.

51 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

52 CASCUDO, Câmara apud João José Reis. Op. cit., 1991, p. 130.

53 THOMPSON, E.P. A peculiaridade dos ingleses costumes em comum. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 238

54 PINHEIRO, Áurea. MOURA, Cássia. PEREIRA, Decleoma Lobato. Santos e devotos na tradição brasileira

[os escravos da mãe de deus]. Anais do Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural, 2010.

55 Para feitura e análise das entrevistas utilizamos referências como: PORTELLI, Alessandro. Tentando

aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História, São Paulo, n. 15,

1997; PORTELLE, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010; HALBWCHAS, Maurice.

A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 29); BOSI, Ecleia. Tempo de lembrar. Memória e sociedade:

lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

56 THOMPSON, Paul. Histórias de vida como patrimônio da humanidade. In: WORCMAN, Karen; PEREIRA,

Jesus Vasquez. (org.) História falada: memória, rede e mudança social. São Paulo: SESC, 2006.

57 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: _____. Magia e técnica,

arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 205.

58 BOSI, Ecleia. Tempo de lembrar. In: _____. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: companhia

das letras, 1994.

59 Como tirar Reisado ou folia de Reis; outra manifestação seria dançar ou tirar São Gonçalo e a própria procura

por rezadeiras para interceder a cura de algum mal (mal-olhado, quebranto, tirar sol na cabeça, etc.)

60 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando (org) História da vida

privada no Brasil: império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.109

61 CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001, p. 218-219.

62 Entrevista com Naldinho na comunidade quilombola Custaneira e Canabrava/Paquetá/PI, realizada por

Maria Sueli, coordenadora do Inventário de Referências Culturais (INRC, Iphan no Piauí) de comunidades

quilombolas em 10 dez. 2008

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CAPÍTULO I

A DEVOÇÃO E O PIAUÍ

1. MORRER AOS CUIDADOS DE CASA

Em Alto Longá, no Piauí, o ar de cidade pequena, de província se mantém, não obs-tante a proximidade da capital, Teresina. As tradições permanecem, materializadas em promessas, rezas de cura, rezas de morte, danças e reisados, que ainda resistem nos bairros e convidam todos a prestigiar e ajudar a “tirar promessas”, tocar sanfona e pandeiro por entre as ruas de pedras e de asfalto de cada bairro.

A cidade foi eleita para este estudo por entendermos, durante a realização da pesquisa de campo, das entrevistas, que fundamentam parte desta investigação as permanências de rezas, as ladainhas e lamentos, os quais constituem a prática das Incelências. A cidade não foi escolhida por ser extraordinária dentre tantas outras do Piauí, mas pela simplicidade e acesso as pessoas que ali residem. Assim, busca-mos nos costumes simples, e nas práticas particulares da vida cotidiana dos moradores construir uma expressão escrita dos rituais de morte, das atitudes, da espiritualidade, e da devoção do piauiense.

Outro aspecto que motivou a escolha do lugar foi o número expressivo de mor-talidade em residência (e não em hospital ou em outro local), o que nos causou certa inquietação. Os dados do gráfico a seguir foram apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):

Gráfico 1 - Estatística do registro civil dos anos de 2004 a 2010. Fonte: IBGE

No gráfico acima estão demonstrados dados divulgados pelo IBGE entre os anos de 2004 até o último censo 2010. Percebemos que o número de mortos em residência, em todos os anos de registro, supera o número de mortos em hospi-tal ocorrido durante o ano no lugar de registro. Com algumas ressalvas e cautela, ao analisarmos os elementos disponíveis, podemos ler esta informação como um dado importante no que se refere a Alto Longá, em relação ao local de morte. No entanto, poucas informações são acrescentadas a estatística de registro civil divul-gada pelo IBGE, como idade do falecido, causa mortis, o que dificulta uma análise mais acurada.

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Todavia, na falta de “linha para costurar esse tecido”, buscamos construir outras possibilidades de interpretação, a partir de alguns indícios:

• decerto a cidade possui um hospital e ambulâncias, que, dependendo da gravida-de da enfermidade, o paciente é transferido para hospitais mais aparelhados na capital do estado;

• vamos supor que esse acesso não seja democratizado à população, visto que mui-tos hospitais do interior do estado sofrem com a falta de verbas públicas para suas atividades – nesse caso, os dados poderiam evidenciar que muitos morrem em casa por falta de assistência médica.

• podemos ainda inferir que muitos desses mortos sejam moradores de bairros afas-tados do centro da cidade ou até mesmo de povoados distantes, o que dificultaria o acesso aos hospitais. Mas, ainda assim, os dados manifestam que morriam mais pessoas no interior que na cidade.

Para além das causas e impactos da morte em casa, poderíamos apontar, com algumas ressalvas, para uma prática diante da morte celebrada e vivenciada, atitude corriqueiramente evidenciada nas décadas de 1980, e um pouco antes, nas memórias de rezadores que, costumeiramente, acompanhavam pessoas da doença a morte, e da sentinela ao cemitério. Não revelamos que pouco mais de 50% dos mortos em residências tenham sido acompanhados com os lamentos das Incelências e dos pu-xadores de rezas, sujeitos desta pesquisa.

Os dados evidenciam uma fonte para análise. Percebemos mudanças nas formas de morrer no Piauí e em boa parte do Brasil. Hoje, as atitudes diante da morte e dos mortos estão mais distanciadas dos vivos. No entanto, os dados abrem uma “janela” para percebermos que existem diversas temporalidades em um mesmo tempo, que as mudanças não ocorrem homogeneamente. Sendo assim, constatamos que exis-tem várias formas de celebrar a morte e os mortos.

Para este trabalho, não propomos uma tese, apenas apresentamos inquietações frente aos dados que nos informam pouco, mas que provocam nossa curiosidade diante das práticas fúnebres da cidade, pelos rezadores e rezadeiras espalhados por todo o estado do Piauí. Esses dados nos permitem lançar comparações com outras cidades próximas e até mesmo conexões com outras fontes, como os registros de óbi-tos, que compõem um quadro mais quantitativo de dados e permitem análises para além das hipóteses lançadas.

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2. UM PIAUÍ (A)FEITO À FÉ

Santos e Santas de devoção fazem parte das vivências religiosas de muitos piauienses. Promessas, rezas, ladainhas, benditos, orações e canções permeiam a la-buta de todos os dias e acompanham devotos e devotas em peregrinações, festejos e locais considerados sagrados por muitos deles, lugares de memória de milagres e expressões de fé.

De São, eu lembro de:

São Jeremias, São Bartolomeu,

São Bernardo, São Gregório,

São Francisco de Assis [...]

São Jorge, São Dimas, São Lázaro,

São Lucas, São Quirino, São Zebedeu,

São Giovanni e São Florêncio.

De Santa, eu lembro da:

Santa Bárbara, Santa Clara,

Santa Rita dos Impossíveis, Santa Maria,

Santa Eremita, Santa Joana D’arc e Santa Edwiges.

De Nossa Senhora, eu lembro de:

Nossa Senhora da Anunciação,

Nossa Senhora dos Aflitos,

Nossa Senhora dos Milagres, Nossa Senhora das Neves,

Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da Cabeça.

De Santo, posso lhe dizer: Santo Agostinho e Santo André Avelino.1

Santa Cruz dos Milagres, Betânia, Pedra do Castelo2, dentre outros locais de pa-gamento de promessas e peregrinações, não constituem uma exclusividade em solo piauiense, foi possível constatar também em parte significativa do Nordeste do Brasil, principalmente nas cidades do interior, onde há permanências de um catolicismo de-vocional e de celebrações que invadem as fronteiras territoriais e se expandem em caminhadas pelo sertão rural, litoral e cidades do Nordeste e do Piauí, espaço que es-colhemos para narrar histórias de fé, de espiritualidade de pessoas ordinárias, simples, que habitam essas plagas.

Um Piauí de pátrios sertões, repleto de manifestações culturais materializadas em rituais, “[...] peregrinações, estandartes nos terreiros de tambor, cantorias e la-mentações feitas por devotos que entoam as incelências a partir de um latim matuto que cultiva a lágrima e irriga a dor”3. Convém ressaltar que a religiosidade sempre

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esteve presente desde o início da colonização do sertão e do litoral do Estado. Nes-se sentido, a fé se aliou ao processo de expansão do domínio português. Gado, ban-deirantes, fazendas e capelas marcam o povoamento, a colonização do Piauí, assim como a “pata do boi”. Desse modo, o Piauí tem sua formação no início do século XVII com a seguinte descrição:

Tem o sertão do Piauí, pertencente a nova matriz de Nossa Senhora da Vitória,

quatro rios correntes, vinte riachos, com cinco riachinhos, dois olhos d’água

a beira das quais estão 129 fazendas de gado, que moram 441 pessoas entre

brancos, negros, índios, mulatos e mestiços [...] fazem o número de 605, em

que entre um arraial de paulistas, com muitos tapuias cristãos, o qual governa

o capitão Francisco Dias Siqueira.4

O padre Miguel de Carvalho nos informa da existência de terras pertencentes aos senhores Domingos Afonso Mafrense e Leonor Pereira Marinho. A freguesia de Nossa Senhora da Vitória foi criada por ordem “do Ilmo. e Revmo Sr.” Dom Frei Fran-cisco de Lima, bispo de Pernambuco que localiza o distrito e povoação “situada em 3 graus para a parte sul, no meio do sertão que se acha entre o rio São Francisco e a cos-ta do mar, que corre do Ceará para o Maranhão, da qual distará, pelo caminho sabido 80 léguas”5; entre rios e com a presença marcante de fazendas de gado e apresamento de indígenas, os movimentos que constituíram e expandiram as fazendas de gado e o domínio colonial português, expansão que se explica devido a riqueza dos rios e as condições para criação. Segundo Pinheiro e Moura:

Atraídos pela largueza das terras, pela abundância dos rios – condição propi-

cia para a criação do gado – contingentes de desbravadores se espalharam pela

área intermediária entre a bacia do rio São Francisco e a região do Maranhão.

Tornaram-se donos de currais, expulsaram e dizimaram as populações indíge-

nas, conquistaram as terras e constituíram as elites locais que se mantiveram

secularmente a frente da organização política e social aristocrática e interiora-

na que marcou a história deste espaço.6

Embora de solo fértil, pois “em se plantando, tudo dá”, a freguesia N. S. da Vitória nasceu sob o jugo de ambições de grandes sesmeiros, situação que teve reflexo quase inevitável na vida dos habitantes; tornou-se capitania somente em 1718, com instala-ção sempre adiada, mas sem desvio da vocação da terra – terra de criar,7 evidenciando a criação de gado como um interesse para a freguesia. Na conquista de terras, a religião esteve presente, com grupos de missionários franciscanos e, principalmente, jesuítas, que antes mesmo da criação da Capitania de São José do Piauí, já pregavam a fé católi-ca nas terras, ministravam sacramentos, evangelizavam e expandiam o cristianismo.

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A Freguesia da Mocha e a paróquia de Nossa Senhora das Vitórias só foram cria-das em 1696, a “igreja católica antecedeu a chamada ordem colonial e obteve conco-mitantemente uma inserção com os primeiros pecuaristas que adentraram no sertão do Piauí”.8 Juntamente com os sertanistas, a igreja católica possuía muitas terras no Piauí, a maioria delas adveio de desejos testamentários de muitos cristãos que viam na doação uma ação para alcançar uma boa morte.

Convém acentuar que a igreja católica não esteve sozinha na exploração terri-torial, os sertanistas também andaram pelo território e criaram fazendas, dentre eles destaca-se Domingos Afonso Mafrense, que comandou o arraial dos paulistas de 1641 a 1703 e ficou conhecido por suas posses de terras e índios. O sertanista foi descrito pelo bispo de Pernambuco, em 1697, D. Francisco Lima, como um homem cruel:

Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado [...] porque

nem falar [português] sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia [...], e

não obstante o haver-se casado de pouco, lhe assistem sete índias concubinas,

e daqui se pode inferir como procede no mais; tendo sido a sua vida [...] até

o presente, andar metido pelos matos a caça de índios e de índias, estas para

o exercício de suas torpezas, e aqueles para os granjeios dos seus interesses.9

Ao considerarmos as controvérsias em relação ao comportamento do sertanista, não é difícil afirmar que na hora da sua morte, Domingos Afonso Mafrense, ou Sertão, como também era conhecido, desejou uma boa morte, e preocupou-se em enco-mendá-la, como segue:

Primeiramente encomendo minha alma a S.S Trindade, que a criou; e rogo

ao Padre Eterno, pela morte e paixão de seu unigênito filho, a queira receber,

como recebe a sua, estando para morrer na árvore de Vera Cruz; e a nosso se-

nhor Jesus Cristo peço por suas chagas, já que nessa vida me fez merecer de dar

seu precioso sangue e os momentos de seus trabalhos, me faça também mercê

na vida, que esperamos, dar o prêmio deles – que é a glória; e peço e rogo a glo-

riosa Virgem Maria, Senhora Nossa, Mãe de Deus, e a todos os santos da corte

celestial, particularmente ao Anjo da minha guarda, e ao santo do meu nome,

queiram por mim interceder e rogar a meu senhor Jesus Cristo, agora quando

minha alma deste corpo sair; porque, como verdadeiro cristão, protesto viver

e morrer em a santa Fé católica, e crer o que tem Santa Madre Igreja de Roma;

e em esta fé espero salvar minha alma, não por meus merecimentos, mas pela

santíssima paixão do unigênito filho de Deus.10

Com efeito, vida e morte estão fortemente marcadas pela religiosidade e devoções católicas neste testamento. A fé em uma “boa morte”, o medo de morrer despreparado,

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por vezes ainda solitário, motivava a feitura de um testamento, tendo em vista a falta de padres que ministrassem os últimos sacramentos. Assim, falamos de um Piauí re-ligioso, que se constituiu pela caminhada de muitos homens em busca de terras, de devotos, diálogos recorrentes com o sagrado, na morte e intempéries da vida.

Ao apresentarmos as preocupações de Domingos Sertão frente a iminência da morte, evidenciamos as mesmas preocupações de muitos homens e mulheres piauienses, desde o período colonial português. Sertão expressou a sua fé, deu boa parte de seus bens para a realização de missas e aos Jesuítas. Assim:

Nomeio e instituo por meus testamenteiros, em primeiro lugar o Padre Reitor da Companhia de Jesus desta cidade da Bahia [...] mando que no dia do meu falecimento se me digam 150 missas de corpo presente em cada uma das Igrejas seguintes: na Santa Sé, na Igreja de S. Francisco, na dos Irmãos do mesmo santo, na de N. S. Do Carmo, na de Santa Teresa, na de S. Bento e na da Misericórdia [...] Declaro que nas minhas fazen-das do Piauí, em uma chamada a Grande, e outra a Gameleira, estão algumas cabeças de gado, que dei de esmola a Santo Antônio, sem de-clarar a qual deles, e agora aplico a Santo Antônio além do Carmo, e os curraleiros declararão quanto é, porque estão com divisas. Mando que o meu administrador, que foi da capela, de que, agora ei de tratar, faça entregar o dito gado, que se achar na divisa a irmandade de Sato, e lhe dê mais RS 200$000 réis, que lhe deixo de esmola.11

Domingos Mafrense legou grande parte de seus bens e terras a igreja católica, or-dens terceiras e irmandades. Trechos de seu testamento evidenciam as preocupações dos católicos com os sacramentos, com a uma “boa morte”, que deveria ser acompa-nhada por clérigos e assistências constantes de missas, bem como para salientar o po-der da igreja católica e da Companhia de Jesus nos rituais eclesiásticos, no território colonial português, nomeadamente, os sertões do Piauí.

O ato de testar, de deixar um testamento foi amplamente divulgado pela igreja católica, que o utilizou como ferramenta de poder e persuasão junto aos fiéis, justi-ficativa para realizar ritos de “bem morrer”. Os católicos, para terem seus pecados perdoados, pagavam por missas, davam esmolas; muitos deles, para aplacar a ira di-vina, dedicavam suas almas e bens aos santos de devoção, que passavam a ser seus legítimos herdeiros. As ações testamentárias, para além de demonstrarem fé, religio-sidade e espiritualidade, revelavam na prática do testador o interesse e o desejo de viver em harmonia com os ritos religiosos a fim de garantir uma boa morte. Esses atos aumentavam o poder da igreja católica, como destaca Claudia Rodrigues:

Ainda que se possa questionar se a vida daqueles indivíduos fora, efetivamente,

marcada por aquela religiosidade que demonstram em seus testamentos,

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o fato é que nos últimos momentos de sua vida, ou diante da possibilidade de

morrerem, fizeram questão de dar sinais de que teriam vivido daquela forma.12

Em nome da fé e dos bens,13 a “religiosidade católica fez parte da emergência po-lítica e cultural da província, e os laços entre religião e ações administrativas, ao longo do tempo, foram difundidas, principalmente pela elite local”.14 Os desejos expressos por Domingos Sertão se unem a vários testadores que dedicavam ações para um “bem morrer”, pois, embora as ações eclesiásticas fossem dispersas durante a coloni-zação, os ensinamentos eclesiásticos se faziam presentes e necessários.

As devoções católicas trazidas pelos portugueses marcaram o cotidiano dos piauienses, materializadas em vivências diárias, em missas, procissões e orações. A relação com a fé foi “instituída” na colônia, não como uma imposição, mas por encon-trarem um ambiente favorável a sua consolidação, e assim se fizeram parte integrante das crenças, sobretudo, populares, que por muito tempo ficaram longe da organização litúrgica da igreja católica, que tolerava a concomitância de vários costumes.

Dentro desses espaços de “tolerância” se formaram as ressignificações populares aos cultos tradicionais. Formas de devoção que se adequavam as vivências sociais, apresentando assim um quadro de tolerância entre práticas eclesiásticas e o uso po-pular das celebrações. Catolicismo devocional que se formava e que evidencia boa parte das manifestações religiosas encontradas no Piauí na contemporaneidade.

Essa marca da presença católica é responsável pelo substrato cultural profun-

damente religioso que permanecerá, com modificações e interferências, na for-

mação cultural do Piauí nas formas de religiosidade popular, nas práticas como

na reza do terço, nas novenas, nas procissões, nos festejos e nas celebrações aos

padroeiros de cidades do interior.15

Os ritos cristãos transmitidos pelos missionários jesuítas logo dialogaram com as práticas populares. Os rituais católicos com a devoção popular do culto as ima-gens, as promessas e peregrinações marcaram a religiosidade, a espiritualidade ca-tólica portuguesa. Segundo Gilberto Freire, evidencia a tendência a coexistência de diversas expressões religiosas na colônia, que se deve a “plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu.”16

A constante falta de párocos e as distâncias contribuíram para uma prática religio-sa menos ortodoxa dos ritos, pois os costumes foram incorporados as manifestações de fé, as necessidades e pedidos diários, adaptando-se aos costumes da sociedade.17 No entendimento de Sodré, a religiosidade na colônia:

[...] comungava com todas as suas peculiaridades. Adaptava-se aos costumes

frouxos, tanto mais que eram compostos de homens, e de homens saídos a

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esse caldeiamento acelerado [...] eles viviam o seu tempo. Seguiam a medida

da existência de todos os homens.18

Os missionários distribuíam sacramentos, mas não eram capazes de controlar o processo de evangelização, realidade da colônia, não apenas no Piauí, outras provín-cias que contavam com um bispado próprio chegavam a ter longos anos de vacância.

Podemos assim elencar os dois motivos para a falta de padres no Piauí: primeiro, as distâncias entre as vilas e freguesias; segundo, a falta de um bispado que regulasse a vida religiosa.

Monsenhor Chaves registra que a fé se mantinha simplesmente por obra e gra-ça da tradição; a situação se agravava devido ao isolamento das paróquias e a gran-de extensão territorial entre elas: “[...] para serem atingidas as populações rarefeitas do interior, funcionava o regime das desobrigas.”19

Ao analisar essas dificuldades, Monsenhor Chaves relata que, nas fazendas e povoados piauienses, os brancos, os negros e os mulatos já batizados faziam as prá-ticas espirituais “que mais conduzem a emenda da vida”. Afirmações que dialogam com a perspectiva de Sodré ao analisar que os cultos, ritos e rezas das vilas eram partilhados de acordo com suas necessidades diárias. As ações cotidianas podem ser comparadas a algumas cidades no interior do Piauí, como Alto Longá, onde senhores e senhoras rezantes20 fazem “as vezes de padre” e realizam batizados de anjinhos, curas espirituais e celebrações fúnebres. A presença de desobrigas na cidade não remonta apenas ao período colonial, segundo Pe. Francisco Miguel Soares Chavier, residente da Paróquia Nossa Senhora dos Humildes,21 as desobrigas aconteciam na época em que ele ainda era um seminarista:

A minha experiência é que quando morei aqui [Alto Longá] em 1990, como

seminarista, desde 1980 comecei a andar aqui, [...] e participei muito daquelas

desobrigas, porque não tinha padre, e naquela época era uma viagem chamada

as desobrigas, aonde uma vez por ano o padre vinha aos interiores para fazer

batizado, rezar uma missa, era casamento e assim era uma desobriga, uma

missão. Interessante, é que me lembro que existia muita gente nessas desobri-

gas, o povo vinha de longe e de perto para confessar, escutar a missa, batizar os

filhos e manter um pouco a tradição da fé.22

A realidade apresentada por Monsenhor Chaves é ainda a marca de algumas

cidades do Piauí, onde persiste um número reduzido de padres. Atualmente, o Pe. Miguel, como é mais conhecido, reza uma missa por mês nas capelas dos bairros da cidade e, a cada mês, visita as cidades do interior de Alto Longá, mantendo as missas frequentes na catedral de Nossa Senhora dos Humildes.

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Quanto aos estudos do Pe. Chaves, destacamos que não se evidenciam claramen-te os rituais praticados pelos fiéis católicos piauienses, no entanto, sinalizam para o fato de leigos assumirem o “lugar dos padres” e realizarem os rituais eclesiásticos. Como explicar o conhecimento dos rituais pelos leigos?

Os sacerdotes, ao fazerem as visitas, realizavam as desobrigas e administravam os sacramentos:

Deixando em cada lugar um catequista que devia fazer, na sua ausência, a dou-

trina em relação ao local de morte aos pequeninos e instituir os adultos para

o batismo, em perigo de morte [...] não havia lugar para participação, para as

relações de fraternidade e mutualidade.23

Embora os padres não estivessem presentes para fazer as assistências e celebrar os sacramentos, durante as desobrigas deixavam pessoas “catequizadas” por onde passavam, fiéis leigos, que podiam ministrar os sacramentos, ações que visavam mi-nimizar a orfandade do sagrado que as vilas passavam, bem como “garantir” que os fiéis tivessem os sacramentos realizados da forma correta. A falta de clérigos e as distâncias, tanto territoriais como fraternais, dificultavam a maior participação dos fiéis nos cultos católicos, evidenciando um solo fértil para as apropriações individu-ais da fé e consolidação das práticas populares; práticas que atualmente a igreja cató-lica aceita e administra mediante a ordenação de diáconos e respeitando a realidade:

Essas rezas a igreja mantém [...] veja que essas rezas nascem diante de situações

que não havia sacerdote e as pessoas substituíam, eu me lembro que na época

que me ordenei padre, que nem tinha tanto padre assim como hoje, as irmãs

em São Miguel do Tapuio, elas batizavam, não tinha padres, padres eram pou-

cos e as primeiras irmãs que vieram morar aqui para fazer o trabalho pastoral,

batizavam e casavam os cristãos. Para confirmar, a igreja apoia porque você

jamais vai deixar de tirar essa tradição belíssima do humilde e simples, mas

que sabiam chegar a Deus.24

A presença dos padres assegurava a boa passagem do mundo dos vivos para o

mundo dos mortos, de acordo com a liturgia cristã, mas a falta deles não significava o abandono das formas religiosas, nem mesmo das preocupações com o “bem mor-rer”. Na compreensão de João José Reis, as tradições religiosas no Brasil podem ser comparadas as de Portugal: “Como em Portugal, contava a força gerada pela soma de orações recitadas pela multidão em benefício daquele que se preparava para par-tir.”25 Assim, os cultos cristãos se mesclaram aos costumes populares, as imagens dos santos, as novenas, “as procissões e pagamentos de promessas com a produção de ex-votos, capelas e altares domésticos.”26

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Com a mescla cultural religiosa, um dos aspectos que se difundiu na colônia foi a presença marcante de altares domésticos, como ainda pode ser visto atualmente em lugares reservados das casas no interior do Piauí. Podemos comparar e perceber a permanência de altares domésticos geralmente nas salas próximas as portas ou na privacidade dos quartos, elemento marcador da presença do sagrado, representado nas imagens de santos, terços, fitas e velas. Segundo Luiz Mott:

No Brasil colonial, seguindo o costume português, desde o despertar o cristão

se via rodeado de lembranças do reino dos céus. Na parede contígua, a cama

via sempre um símbolo visível da fé cristã: um quadrinho ou caixilho com

gravura do santo anjo da guarda ou santo onomástico; uma pequena concha

com água benta; o rosário dependurado na própria cabeceira da cama.27

Mott informa da presença constante da fé, da importância da oração para os ibé-ricos, costume e significado dedicados as tradições religiosas populares desde a co-lonização. A oração é considerada a base da espiritualidade da fé cristã e se tornou presente nas devoções populares, seja em forma de organizações religiosas, como as Irmandades no século XIX,28 ou em celebrações particulares em uma comunidade, seja em novenas ou rezas de terços, como permanece atualmente em parte significa-tiva do Nordeste brasileiro, reminiscências de rituais leigos de Irmandades e orações tradicionais transmitidas por tradição oral.29

Até o final do século XVIII, o Piauí não possuía um bispado próprio e o Brasil contava com apenas “uma província eclesiástica, com o arcebispado da Bahia, e as dioceses do Rio de Janeiro, Olinda, São Luís do Maranhão, Pará, Mariana e São Paulo, e as prelazias de Goiás e Cuiabá”.30 A aquisição de poder e de bens talvez fosse a de-dicação dos interesses religiosos, pois, segundo Tânia Brandão, no Piauí, parece ter se consolidado uma espécie de “catolicismo político”, visto que o poder econômico e religioso estava amplamente veiculado as elites locais, figurada na criação de um bispado no Piauí:

O bispado era entendido, então como uma ferramenta de poder que poderia

colocar-se a serviço de diversas famílias. Acreditava-se que um bispado inde-

pendente, além do status que representava, poder-se-ia facilitar a ampliação

de suas redes de aliança sem terem de arcar com demorados e caros processos

de dispensas.31

Inicialmente administrado pelo bispo do Maranhão, a criação do bispado do Piauí foi de acordo com as determinações da bula Supremum Catolicam Eclesiam, de 1903, com o primeiro bispo a tomar posse em 13 de março de 1906, Monsenhor Joaquim Antonio de Almeida.32 A criação do bispado contou com os desejos e articulações da

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sociedade civil como a imprensa local nos diversos jornais.33 Pinheiro assevera que “a argumentação para criação da nova Diocese do Piauí era justificada pela distância que ficava Teresina da sede episcopal do Maranhão, o que provocava dificuldade, morosidade e dispêndio com os recursos espirituais.”34

Antes da criação do bispado, as visitas pastorais não eram regulares e organiza-das, favorecendo o predomínio e consolidação do catolicismo devocional. Com as visitas, o bispo pretendia aproximar os fiéis e distribuir os sacramentos. Pinheiro relata que havia interesse do Bispo em empregar uma linguagem mais simples e as-pectos da cultura e vivências diárias:35

As últimas visitas as paróquias de Amarante, Regeneração, Valença, Picos,

Pio IX, Jaicós, Paulista, São Raimundo Nonato, São João do Piauí, Simplício

Mendes, Oeiras, realizadas de julho a novembro de 1907, a igreja do Piauí teve

como resultado dos trabalhos pastorais: 23,246 comunhões, 17.760 crismas e

477 casamentos legítimos. Isso prova a presença do bispo pastor, evangeliza-

dor e não mais político e distante das questões espirituais de seu rebanho.36

Um Piauí de formação religiosa marcada por longos períodos de vacância do poder eclesiástico, com uma igreja que por muito tempo se dedicou aos interesses comerciais e políticos, fez florescer uma religiosidade na qual os rituais eclesiásticos continuavam importantes e principais quando se encontravam disponíveis, já que eram eles, os padres e bispo, que estabeleciam o diálogo com Deus, os vínculos como e para o céu, mas a falta dos eclesiásticos não interferia na realização dos rituais do-mésticos (benzimentos, promessas, pedidos por chuva).

O medo da morte sem sacramento, sem cerimoniais, sem padre não intervinha em orações e rezas praticadas pelo catolicismo devocional. Os fiéis leigos, como informa Monsenhor Chaves, faziam “as vezes de padres” e realizavam rituais de batizados, curas e de morte.

A preocupação de Domingos Afonso Sertão em garantir seu caminho e estada no céu se aliava a necessidade de outros tantos que, como ele, tinham bens para arcar com as despesas de um grandioso funeral, mas também se aproximam das necessi-dades de outros tantos que não possuíam bens, mas que partilhavam do medo da morte e do inferno.

As Incelências encontraram nos costumes e valores devocionais presentes no Piauí um campo fértil para se consolidar em meio as tradições religiosas presentes na colônia, que se propagaram até o presente por meio da tradição oral. Naldinho, rezador, dançador de lezeira37 e membro de uma comunidade quilombola situada em Custaneira, Paquetá, Piauí, assim se expressa:

Tem, lá ainda tem, próximo da gente, nas mais distantes se perdeu, até porque

não tem quem mais reza, por conta dessas coisas que nosso povo fazia, que nós

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continuamos fazendo, tem muita gente que morre, os mais velhos, e os novos

não querem mais saber, esse povo vai estudar na cidade, aprende uma cultura

diferente, aí chega energia, tem uma cultura diferente, aí vai se perdendo.38

Naldinho nos fala de um esforço em manter a tradição e os modos de fazer as celebrações religiosas. Tal como as Incelências, outras manifestações religiosas re-alizadas no interior do Piauí sofrem os efeitos do tempo, com poucos adeptos para transmitir, situação que diminui a ocorrência das manifestações. Pe. Miguel obser-va: “assim [como] vocês, essa raça nova não é muito de buscar o passado, isso ainda se mantém nos idosos.”39

Retomamos a formação religiosa do Piauí na tentativa de evidenciar um local marcado por manifestações populares, que se consolidaram no tempo repassadas pela tradição oral.

As Incelências, como parte dos rituais de morte encontrados no nordeste, e parti-cularmente no Piauí, retratam uma “morte viva”, acompanhada, e que se confronta com as diversas formas de celebrar a morte no presente. Buscamos, pois, compreender como esse ritual permanece e se ressignifica no tempo, sendo repassado, sobretudo, por senhores e senhoras rezantes piauienses.

Nesse sentido, entendemos que o tempo presente informa o passado, que os ho-mens e mulheres piauienses estão imersos em diversas temporalidades, embora con-temporâneos vivem e pratiquem as mesmas celebrações de forma e realidades distintas.

3. E NO ALTO DO RIO NASCE ALTO LONGÁ

Alto Longá nasceu das terras da localidade Lagoa do Longá, onde brota o Rio Longá, que se debruça entre as pedras, forma a cachoeira do Urubu40 e ajuda a alargar o Rio Parnaíba, como um de seus principais afluentes no lado piauiense,41 passando por Altos, Campo Maior, Barras, Batalha, Esperantina, Piracuruca, Joaquim Pires e desaguando em Buriti dos Lopes.

Recortada ao norte do Piauí, margeia Coivaras e Campo Maior; a leste, Novo Santo Antônio e São João da Serra; a oeste, Beneditinos e, mais ao sul, se define nas fronteiras de Prata do Piauí e São Miguel do Tapuio. Eis, então, onde está localizada Alto Longá,42 cidade “pequena”, de dias morosos e conversas na praça da Igreja Ma-triz, que homenageia Nossa Senhora dos Humildes e evoca histórias curiosas sobre a Santa que fugia da igreja para a capela, o que exigiu que se mudasse a sua frente para confundir a “fuga” de N. S. dos Humildes. Histórias também de uma pedra encon-trada durante a construção da igreja, que foi colocada ao lado de sua porta principal, transformando-se em local onde velas são acesas, bem como no cruzeiro.

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Terras e fazendas construídas no início do século XIX têm no coronel Benedito José de Souza Brito seu fundador, a quem, junto com a família, se instalou e onde se si-tuava sua fazenda de gado, próximo ao rio Gameleira onde havia um “olho d’água”, que por muito tempo abasteceu a população longaense, ou altolongaense ou ainda altoense.

O gado também constitui marcas nas formas de viver e na cultura da população piauiense, representado na figura do vaqueiro, admirado pelos longaenses por causa do aboio e da cumplicidade nas missas dedicadas a eles durante os festejos da cidade.

Com a fazenda, ergueu-se uma capela consagrada a Nossa Senhora dos Humil-des a qual, em doação, o fundador lhe ofereceu muitas cabeças de gado. Em 1870, foi criado o Curato dos Humildes, transformado, tempos depois, em Paróquia de N. S. dos Humildes.

O povoado foi elevado a categoria de vila em abril de 1877, pelo então Juiz da Comarca de Oeiras, Eneas José Nogueira. Um ano depois da promoção, contavam-se apenas três casas de telha e uma pequena capela e, devido a proximidade da nascente do rio Longá, a Vila dos Humildes teve o nome mudado para Alto Longá. Em junho de 1931, foi anexada ao município de Altos, e só conseguiu restaurar sua autonomia administrativa em 17 de agosto de 1934.

4. O FLOR DO DIA

O Flor do Dia e o Matadouro são dois bairros um pouco afastados do centro da cidade de Alto Longá, de casas e gente simples, que vive em meio ao barro e aos buracos das ruas enviesadas, constituídos em sua maioria por membros da mesma família.

“Pai Pequeno,” como é chamado por netos, sobrinhos, afilhados e vizinhos, tem uma família grande de nove filhos, sendo oito deles legítimos e uma “de criação”, que ele acolheu desde que nasceu e a quem carinhosamente se refere.

Antônio “Pequeno” é casado com dona Marina, uma senhora simples, quieta e com um olhar um pouco desconfiado, diferente do marido, sempre sorridente e que abraça os que chegam. Está sempre pronto para rezar quando alguém lhe pede.

Em Alto Longá, nos deparamos com um cemitério de anjinhos, onde também está enterrada a matriarca da família do sr. Antônio Pequeno, dona Romana, a Iaiá, que era parteira. Ela deixou por testamento oral o desejo e o legado do pagamento de uma promessa de três anos a Santo Reis, finalizada por suas filhas em 2012.

A comunidade vive em meio a rezas, novenas e devoções diárias, apresentadas a quem chega a suas casas, marcadas pela presença de muitas imagens de santos, espa-lhadas pela cômodos das residências; nos quartos são organizados altares domésticos.

Sr. Antônio é uma pessoa simples, de sorriso fácil e farto, aprendeu a rezar com sua mãe de criação e é um guardião da memória de saberes tradicionais, de rezas de curas, de danças, de festas, de promessas, e de peregrinações. Guarda os modos de fazer e as cantorias na cabeça, é reconhecido por todos do bairro. Seus familiares, assim como ele, rezam e mantêm os santos próximos da vida com rezas e promessas.

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Imagem 2 - Sr. Antônio Pequeno e os preparativos para o reisado. Alto Longá-PI

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Imagem 3 - Casa do sr. Antônio Pequeno com altar arrumado para tirar terço, seguido de leilão. Alto Longá-PI (2010)

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5. GENTE DE FÉ E DEVOÇÃO

Como conceituar devoção? Poderia ser entendida como um conjunto de crenças reli-giosas que informa sobre as atitudes de homens e mulheres diante do sagrado, como promessas, peregrinações, novenas, etc.

Para entender a devoção, buscamos os símbolos, os gestos, que evidenciam uma espiritualidade particular das manifestações populares43. Para André Vauchez, essas manifestações são vitais como uma integração de crenças:

[...] os humildes integram em sua experiência religiosa, tanto pessoal quanto

coletiva, elementos provenientes da religião que lhes fora ensinada e outros

fornecidos pela mentalidade comum do seu ambiente e do seu tempo, marca-

da por representações e crenças estranhas ao cristianismo.44

Conforme leciona Vauchez, a espiritualidade das pessoas comuns, dos humildes, liga-se diretamente as experiências e as vivências de pessoas em suas comunidades afetivas, uma coletividade. O meio, o tempo, a religião marcam as representações e apropriações que os indivíduos fazem da doutrina religiosa. Nesse sentido, entende-mos a espiritualidade presente nas pessoas humildes como uma unidade dinâmica, entre o saber construído coletivamente e institucionalizado na religião que praticam.

Com efeito, a devoção molda a identidade e a perspectiva de mundo dos indi-víduos; experiências religiosas marcam e informam sobre um tempo em que essas práticas são realizadas e guiadas por pessoas de uma mesma família, vividas e par-tilhadas por um grupo; gente que vive a religiosidade doméstica pari passu com os ritos institucionalizados, ações que não invalidam as crenças individuais.

Dessa forma, entendemos que os rituais tradicionais necessitam da crença de um grupo, sobretudo, de indivíduos para sua realização, devoção que buscamos tratar apre-sentando os sujeitos que dão corpo a esta pesquisa, analisando suas falas e suas posturas. São elas: Erlene, Teteia e Antônio Pequeno os personagens desta narrativa histórica, que nos auxiliam a compor o ritual e as análises que pretendemos elaborar das Incelências.

6. ENTRE OLHARES

Por meio da linguagem, o narrador tece sua história, com marcas do passado e do presente, convidando o ouvinte a encantar-se, a encontrar-se na narrativa, nos li-mites da análise desta pesquisa – narrativas orais. Nesse entendimento, buscamos interpretá-las para além dos elementos da fala, nos valendo da perspectiva do tra-balho com a história oral. Daí, nosso objetivo é pensar o momento do encontro, da entre/vista, dos entre/olhares e, dessa forma, procurando refletir como o narrador se constrói e se apresenta na fala, nos tons, nos olhares, nos silêncios e nos gestos, como

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ele, “o narrador, no momento de sua fala, exerce sobre o outro o poder de seduzir, desviando atenções para as cenas de fulgor de sua vida.”45

Ouvir, ver e sentir palavras que se ligam para expressar as sensações de um en-contro. Quando nos referimos a um encontro, falamos da experiência da entrevista, do momento de escuta (ou tentativa) e de trocas entre o entrevistador e o entrevis-tado. Sentimos o desejo de expressar e analisar essa arte multifocal46 que a história oral possibilita ao pesquisador, uma análise para além do suporte que produzimos (escrito, áudio, audiovisual, fotográfico, etc.). Em outras palavras, agregamos a aná-lise dos conteúdos quantitativos e qualitativos da entrevista uma perspectiva de compreender os gestos, os silêncios, os tons e o volume dos relatos orais, bem como a construção da narrativa por meio do encontro fonte-pesquisador, sujeito da pes-quisa – historiador, pessoa-pessoa, notando que as diferenças valiosas e importantes para a construção da narrativa, e que a distância dos sujeitos (pesquisador e “fonte”) definem as escolhas e os silêncios durante o contar de histórias.

Por meio do encontro, traçaremos as relações entre história, memória e narrati-va. Apoiando-nos na perspectiva, dentre outros autores, de Alessandro Portelli, para quem o encontro dos sujeitos muda a forma de contar a história, uma vez que as perguntas e o encontro face a face modela os discursos, permitindo uma construção diferente das histórias contadas em uma roda de conversa, falas e conhecimentos por vezes conhecidos no imaginário coletivo e individual. Nesses termos, entende-mos a entrevista como uma troca de experiências, um diálogo.

A história de que existe um “observado” e um “observador” é uma ilusão po-

sitiva: durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o

narrador olha para ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu

próprio discurso a partir dessas percepções. A entre/vista, afinal, é uma troca

de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é

um gênero multifocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de

autores em diálogo.47

Cumpre notar que essa pluralidade a qual tentamos expressar refere-se a análise e interpretação de quatro entrevistas: duas com Erlene Maria de Oliveira, uma com Maria José Silva dos Reis e outra com Antônio Pereira da Silva, rezadores que contam e cantam as Incelências, sempre presentes no momento de velar o morto, e nas atitudes diante da morte.

O primeiro contato com os entrevistados e os encontros seguintes permitem re-fletir e conhecer o narrador nos seus detalhes, sutilezas e escolhas de palavras e de gestos, que estão para além do escrito e ajudam a contar suas histórias.

Na avaliação de Walter Benjamin, o ato de narrar informa o tempo do narrador e a significação que este faz do seu próprio tempo.

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A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no

campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num sentido, uma forma arte-

sanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em

si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a

coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime

na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.48

Por meio do contar, o narrador imprime uma marca, expressão da experiência individual, bem como elementos da coletividade que partilha em muitas falas, quan-do transmite o conhecimento coletivo, seja cantando benditos ou ensinando rezas para evitar ou curar males do corpo. Buscamos no contar as construções narrativas e as nuances entre falas e gestos, além de elementos quantitativos e qualitativos que nos permitem localizar as falas circunscritas em um tempo e na realidade de cada entrevistado. Tal como assinala Benjamin, é preciso aprender a ler as informações a contra pelo, que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria expe-riência ou relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas as experiências dos seus ouvintes.”49

O momento do encontro evidencia um diálogo entre experiências, entre tempos diferentes, o tempo do narrador e o tempo do ouvinte. Por esse viés, Alessandro Por-telli nos permite compreender que:

[...] realmente importante é não ser a memória apenas um depositário passivo

de fatos, mas também um processo ativo de criação de significações. Assim, a

utilidade específica das fontes orais para o historiador repousa não tanto em

suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanças forjadas

pela memória. Estas modificações revelam o esforço dos narradores em buscar

sentido no passado e dar forma as suas vidas, e colocar a entrevista e a narração

em seu contexto histórico.50

Dessa forma, buscamos nas narrativas as questões que podem nos revelar quanto ao objeto de estudo e como as experiências pessoais se posicionam em relação ao tempo, principalmente no que tange aos sentimentos e a percepção dos narradores. Daí, situarmos no tempo o ritual expresso nas Incelências, que perpassa o tocar em momentos que se fazem delicados nas vivências individuais. Investigamos nas falas aspectos que as unem ao momento da dor, da religiosidade, do lamento, da espiritua-lidade, das sensibilidades ligadas a devoção, que, conforme relato dos entrevistados, informam e diferenciam a realização do ritual e a crença em rezas e benditos.

A devoção é que indica sobre a escolha dos ritos e as suas práticas, se é uma escolha da família, do devoto-defunto ou de uma prática da comunidade. Nesse sentido, propomos re-fletir sobre o ato narrativo e as nuances que podem enunciar acerca do ritual das Incelências.

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Sendo assim, apresentamos a análise e interpretação das entrevistas e do encon-tro com os entrevistados, para dar cor e forma a este trabalho. Nesse mister, conver-samos com pessoas comuns, simples, que se prontificaram a colaborar na construção deste texto, ora narrando suas experiências não só em relação a morte, ora contando um pouco de suas vidas, o que nos permitiu particularizar a relação do narrador com o ritual das Incelências, compreendendo que a oralidade deve ser percebida com paci-ência e cuidado, como alerta Jan Vansina:

Fu Kiaui, do Zaire, diz, com razão, que é ingenuidade ler um texto oral uma

ou duas vezes e supor que já o conhecemos. Ele deve ser escutado, decorado,

digerido inteiramente, como um poema, e cuidadosamente examinado para

que se possam apreender seus muitos significados – ao menos, no caso de se

tratar de uma elocução importante. O historiador deve, portanto, aprender a

trabalhar mais lentamente, refletir, para embrenhar-se numa representação

coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que

se explica em si mesma.51

Assim, procuramos, pacientemente, analisar e interpretar as narrativas seguin-do o rastro de feitura, a ordem dos encontros. Inicialmente, com Erlene Maria de Oliveira; em seguida, com Maria José Silva dos Reis, por fim, com Antônio Pereira da Silva, cuja experiência como “guardião da memória” possibilitou sua indicação para nortear a narrativa neste trabalho.

Erlene, Teteia e Antônio, nomes que se juntam as marcas de devoções e experiên-cias que encontramos dispersas no Nordeste brasileiro, em particular no Piauí, onde se mudam os nomes, não as devoções.

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 Fragmentos do filme Cipriano, que tem como mote de sua narrativa os conflitos de um homem velho,

morador do sertão do Piauí, diante da morte e o caminho a ser percorrido por seus filhos para enterrá-lo

junto ao mar. Repleto de rezas, o filme traz uma representação das carpideiras e dos lamentos das Incelên-

cias e dos benditos. Sinopse: um homem velho, de nome Cipriano, está prestes a morrer. Ele passou a vida

inteira atormentado por sonhos e agora vaga solitário em um deles. Seus filhos, Bigail e Vicente, buscam

um cemitério de frente ao mar, onde ele deve ser enterrado. Vida e morte. Contos, sonhos e religiões.

Uma viagem no imaginário latino-americano através de uma longa peregrinação pelos sertões piauienses.

Trata-se do primeiro longa-metragem piauiense dirigido por Douglas Machado. Cf: MACHADO, Douglas.

Cipriano. Ficção. Teresina: Trinca filmes, 2001; MACHADO, Douglas, Cipriano. Roteiro do filme Teresina:

Trinca filmes, 2001.

2 Esses locais situam-se no estado do Piauí, que está localizado a noroeste da região Nordeste, na sub-região

chamada Meio-norte do Brasil, e sua capital é Teresina.

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3 SANTOS NETO. Antônio Fonseca dos. Apresentação In: PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia.

Celebrações|Celebration. Teresina: Educar: artes e ofícios, 2009, p. 11.

4 CARVALHO, Miguel de (padre). Descrição do Sertão do Piauí. Teresina: APL; FUNDAC, DETRAN, 2009, p. 21.

5 Idem.

6 PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Op. cit., 2009, p. 16.

7 BRANDÃO, Wilson de Andrade. Os primeiros tempos (1674-1759) fixação do homem no espaço piauien-

se. In: SANTANA, Raimundo Nonato Monteiro de. (org.) Piauí: formação, desenvolvimento, perspectivas.

Teresina: Halley, 1995.

8 BRANDÃO apud ARAÚJO, Pedrina Nunes. Senhoras da fé: história de vida das rezadeiras do norte do Piauí

(1950-2010). 2011. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) Universidade Federal do Piauí, Teresina,

2011, p. 40.

9 SILVA, Reginaldo Miranda da. Caldeirão de Mestiços. REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIO-

NAL, Rio de Janeiro, nº 34, 2008.

10 PIAUÍ. Testamento de Domingos Afonso Mafrense. Acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí, fundo

do Poder Judiciário.

11 PIAUÍ. Testamento de Domingos Afonso Mafrense. Op. cit.

12 RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e

XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 38.

13 NETO, Marcelo de Sousa. Em nome da fé e dos bens: a criação da Diocese do Piauí (1822-1903). Revista

Brasileira de História das Religiões, n.10, ano IV, maio, 2011.

14 ARAÚJO, Pedrina Nunes. Op. cit., 2011.

15 PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Op. cit., 2009, p. 18.

16 FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala: a formação da família brasileira sob o regime da economia pa-

triarcal. São Paulo: Global, 2006, p. 265.

17 NETO, Marcelo de Sousa. Op. cit., 2011, p. 2.

18 SODRÉ apud NETO. Op.cit., 2011, p. 2.

19 Desobrigas são incursões da Igreja Católica a regiões de difícil acesso, praticando a catequese e oferecendo

os sacramentos a pagãos. A obra de Monsenhor Chaves é uma contribuição significativa aos estudos de

História do Piauí; como clérigo, partilhou espaços dos fiéis e acompanhou suas dificuldades e práticas

religiosas. Para além da grande quantidade de fontes apresentadas, Monsenhor traz para cena dos estudos

na década de 1950 no Piauí uma história dos subalternos, sobre os índios, vaqueiros, traz a vida prática

em forma de expressão escrita. Cf: MONSENHOR CHAVES. Obra completa. Teresina: Fundação Cultural

Monsenhor Chaves, 1998;

20 ARAÚJO, Pedrina Nunes. Op. cit., 2011.

21 Paróquia que tem como área de abrangência a cidade de Alto Longá e povoados próximos como Novo Santo

Antônio. Pe. Francisco Miguel Soares Chavier foi ordenado padre na década de 1990 e, por duas vezes,

assumiu a paróquia dessa cidade. Inicialmente por três anos (1990-1992) e atualmente onde já somam 14

anos no mesmo lugar.

22 Entrevista do pe. Francisco Miguel Soares Chavier, concedida a Marluce Lima de Morais em 11 out. 2012,

em Alto Longá-Piauí.

23 MONSENHOR CHAVES. Op. cit., 1998.

24 Entrevista do Pe. Francisco Miguel Soares Chavier, concedida a Marluce Lima de Morais, op. cit.

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25 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando (org.) História da vida

privada no Brasil: império. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 107.

26 PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Op. cit., 2009, p. 25.

27 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: Sousa, Laura de Melo e. (org.).

História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. das

Letras, 1997.

28 Cf. LIMA, Ariane dos Santos. Por entre reza, procissões e enterros: o universo sócio-cultural das Irmandades

Católicas no Piauí (1835-1875). Monografia. Curso de Graduação em História. Universidade Federal do

Piauí: Teresina, 2010.

29 Manifestações que permanecem na atualidade como exemplos a Irmandade da Boa Morte na Bahia, Cf.

BAHIA, GOVERNO DO ESTADO, SECRETARIA DE CULTURA – IPAC. Festa da Boa Morte. Salvador: Fundação

Pedro Calmon, 2011, Incelências cantadas em Latim matuto no sertão de Pernambuco; Procissão de Bom

Jesus dos Passos em Oeiras, Piauí. Cf: Passos de Oeiras. Documentário Etnográfico Rio de Janeiro: Centro

Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2008.

30 SOUSA NETO, Marcelo. Fé, bens e política: Piauí e Maranhão em Disputa (1822-1903). Mneme, Revista de

Humanidades, n. 11, janeiro/julho 2011.

31 Sousa Neto apresenta os impasses e disputas para a criação do bispado do Piauí, em meio a provações e

negativas do bispado do Maranhão e uma conjuntura de padroado onde o vaticano desejava separar-se. Cf:

SOUSA NETO, Marcelo. Op. cit., 2011.

32 PINHEIRO, Áurea da Paz. As ciladas do inimigo: tensões entre clericais e anticlericais no Piauí. Teresina:

Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2001, p. 37.

33 Jornal O Piauí, O Norte, a notícia e a República.

34 Ibidem, p. 35.

35 Ibidem, p. 51.

36 Ibidem, p. 52.

37 Dança de Roda Lundu de Lezeira, participam oito mulheres e oito homens, que dançam em círculos ao ritmo

de pandeiro e zabumba. A dança é realizada na sexta-feira santa como parte das celebrações da Semana Santa na

comunidade. Disponíveis em: <http://www.encontrodeculturas.com.br/2010/noticiasDetalhes.phpWid=399>.

38 Entrevista com Naldinho, concedida a Maria Sueli, na comunidade de Custaneira-PI, em dez 2008.

39 Entrevista do Pe. Francisco Miguel Soares Chavier, concedida a Marluce Lima de Morais em 11 out. 2012,

em Alto Longá-PI.

40 Localizada entre os municípios de Esperantina e Batalha, no Piauí.

41 ARAÚJO, José Luís Lopes. O rio Longá e o povoamento do Norte do Piauí. HISTÓRIA REVISTA – Revista

da Faculdades de História do Programa de Pós-Graduação UFGO. Goiás, 2009. Disponível em: <http:www.

revistas.ufg.br/index.php/história/article/view/9556/6610>. Acesso em 1o jan. 2013.

42 É um município brasileiro do Estado do Piauí, localiza-se a uma latitude. 05°15’04” sul e longitude 42°

12’37” oeste com altitude de 170 metros, sua população pelo censo de 2010 IBGE é de 13.654 habitantes

com uma área de 1.621,354 km2 microrregião de Campo Maior e Meso região Centro Norte Piauiense

43 Tratamos por populares as manifestações leigas ligadas a igreja católica (mas, não somente), realizadas

por rezadores e rezadeiras, que informados por uma tradição oral transmitem práticas religiosas como

novenas, benzimentos, partos, dança de São Gonçalo, realizadas com o fito de pagamento de promessas,

servem ainda como exemplos os Reisados.

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44 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 4.

45 GROSSI, Y.S; FERREIRA, A.C. Razão narrativa: significado e memória. História Oral, n. 4, 1999, p. 30.

46 Expressão eleita por Alessandro Portelli para designar as múltiplas possibilidades de uma entrevista de

história oral, do encontro e das experiências de trocas, percebendo que nem tudo pode ser gravado, os

olhares e sutilezas da entrevista estão no encontro. PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São

Paulo: Letra e Voz, 2010.

47 PORTELLI, Alessandro. Op. cit., 2010, p. 20.

48 BENJAMIM, Walter. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In:

_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Brasiliense,

49 Ibidem, p. 201.

50 PORTELLI, Alessandro. Op. cit., 1997, p. 33.

51 VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO. Joseph (ed) História Geral da África, I:

Metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 140.

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CAPÍTULO II

O TEMPO DA NARRATIVA

1. SENHORA ERLENE MARIA DE OLIVEIRA (DONA ERLENE)

A seguir, a análise da primeira entrevista, o início de uma troca de olhares e de expe-riências, que permitiu construir vários caminhos e possibilidades de interpretação.

Erlene Maria de Oliveira é professora de História do ensino fundamental e médio de escola pública na cidade Parnaíba.1 Orgulha-se de seu trabalho, de sua profissão, a qual exerce há trinta anos. Formou-se em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI, “na primeira turma”, como faz questão de destacar: “[como] não tinha, esperei chegar um curso de História para eu fazer.”2

Erlene Oliveira é uma senhora de semblante afável, embora com uma expressão um pouco séria; apresentou-se como uma pessoa ativa, curiosa, que adora pesquisar e ler. Contou-nos que, quando criança, presenciou um velório no interior do municí-pio onde mora; lembra-se da imagem das carpideiras.

Vimo-nos pela primeira vez numa manhã de quarta-feira, em Parnaíba-PI, numa sala repleta de pessoas que participavam de um encontro de História e assistiam as apresentações de trabalhos sobre patrimônio cultural, com a colaboração do grupo de pesquisa CNPq-Memória, Ensino e Patrimônio Cultural. Naquele encontro, apre-sentávamos a primeira versão do nosso projeto de investigação.3 Inquieta durante toda a nossa fala, D. Erlene levantou a mão e começou a relatar um velório que pre-senciara, o qual incluía canções que havíamos referido na comunicação. As suas pa-lavras despertaram a nossa curiosidade e o desejo de conversar longamente com ela.

Feito o contato inicial, foram duas as entrevistas com dona Erlene, realizadas no Sesc Avenida (Serviço Social do Comércio), no centro da cidade de Parnaíba. Uma ocorreu no dia seguinte ao nosso encontro, quando ainda não havíamos marcado a entrevista. Naquele momento, esteve presente uma amiga sua, dona Cidinha Rabelo Alves, que permaneceu conosco a pedido de dona Erlene. Na segunda entrevista, dona Erlene pediu a uma outra amiga, dona Lúcia, para acompanhá-la, mas não quis participar. Isso causou um certo estranhamento: por que dona Erlene precisaria de companhia para falar conosco?

Vale ressaltar que, ao longo do Encontro de História, conversamos várias vezes, de maneira informal, com dona Erlene, que continuava a nos contar sobre o velório que presenciara. Era sempre espontânea e parecia querer falar muito sobre o assun-to, o que nos preocupava, pois temíamos que falasse “tudo” e não restasse “nada” sig-nificativo do ritual para posterior análise. Por entre risos e (des)conversas respondia que nos encontraríamos ali mesmo durante o Encontro de História na Universidade.

Após as primeiras conversas, começamos a escrever um pré-roteiro para as entrevistas. Como dona Erlene não havia deixado nenhum contato, imaginamos

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que talvez ela não quisesse uma entrevista formal, e que o caráter de “entrevista” e os usos que faríamos das informações a tenham feito recuar ou recusar inicialmente a nossa proposta.

Por fim, depois de dúvidas e inquietações, realizamos a primeira entrevista, que durou aproximadamente 18 minutos e, da mesma forma repentina que se iniciou, também terminou. Em nossas notas, relatamos que pedimos várias vezes que a en-trevistada escolhesse um lugar apropriado para conversarmos. Numa análise pos-terior, percebemos que talvez a nossa insistência em conversar em outro momento tenha provocado uma entrevista tão curta, decerto falhamos em não ter aproveitado o momento que dona Erlene falava a mancheias4.

No primeiro momento, a entrevistada não queria demorar-se em seu relato, con-quanto se dispusesse a ajudar, não se sentia confortável em gravar uma entrevista para uma investigação. Falou pouco, embora estivesse na companhia da amiga Ci-dinha. Ainda que considerássemos estranho o fato de estar sempre ao lado de sua amiga, ela nos contou de uma conversa que tivera com sua tia, Maria dos Anjos, no dia anterior, sobre o velório da sogra, e que quando criança havia presenciado uma cerimônia fúnebre em sua cidade. Todavia, em uma segunda entrevista, não se esqui-vou e nos surpreendeu com uma narrativa repleta de detalhes sobre os velórios no interior do município de Parnaíba-PI.

Observando-a em sua narrativa, nos remetemos ao dia em que a conhecemos, e tudo nos leva a crer que dona Erlene Oliveira buscou levantar ou confirmar uma série de informações sobre o velório que presenciara, e pretendia narrar, ao descrever as suas lembranças, o tempo passado da experiência que viveu. Por isso a presença de uma pessoa para ajudá-la nas informações, haja vista os lapsos de memória, ou uma forma de não incorrer em erros, pois foi uma situação partilhada por outras pessoas, num misto de memória individual e coletiva.

A ação de dona Erlene evidencia uma tentativa de rememorar o acontecimento. Para fazermos tais inferências, recorremos a Maurice Halbwchas, que analisa os tes-temunhos como vividos coletivamente, experiências partilhadas em comunidades afetivas, lembranças marcadas de vivências individuais, que elegemos como impor-tantes, mas também as experiências e vivências de outros:

A nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas também na de outros, nossa confiança na exatidão de nossa recordação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada não apenas pela mesma pessoa, mas por muitas.5

Isso corrobora a atitude de dona Erlene, que se repetiria no decorrer das entrevis-tas seguintes, quando nos informa sobre conversas com a tia e com o amigo Gilmar, e diz que havia perguntado ao amigo se no bairro onde mora (um dos mais antigos da cidade), havia uma carpideira.

A busca por outros testemunhos evidencia a preocupação em reencontrar ou re-memorar informações de uma experiência que teve com outras pessoas, no caso o velório com a tia Maria dos Anjos, talvez sua parenta mais próxima, e que, pelo fato de se tratar do velório de sua sogra, confirmar-se-iam os pormenores daquela experiência.

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Nesse sentido, achamos interessante convidar a tia de dona Erlene para uma entre-vista. A busca/necessidade em levantar outras informações sobre o assunto, como a conversa com a tia, com amigos, nos dá algumas pistas sobre a entrevistada, que se diz curiosa: “Gosto muito de História, gosto de perguntar, sou muito curiosa, gosto de perguntar, não pesquiso como vocês, assim de forma sistematizada, lendo livros de autores para se aprofundar em pesquisa, eu vou pela curiosidade.”6

Sua atitude nos permitiu compreendê-la melhor, mas ainda não apontou um caminho para o nosso estranhamento inicial: por que temia ficar sozinha durante a entrevista? Ou, por que fazia questão da presença de alguém conhecido? A palavra temer suscita uma das hipóteses para o estranhamento, pois, a primeira vista poderia temer não conseguir responder a determinada pergunta lhe fosse feita, ou então, te-mia alguma pergunta em particular e o desdobramento de sua resposta – nesse caso, que pergunta seria essa? No final da segunda entrevista descobrimos o motivo.

Na primeira entrevista não houve pergunta inicial, dona Erlene começou a falar de um lugar chamado Carnaubal:7

Conversando com alguém lá no Carnaubal, que é pequeno, lá no Carnaubal

eles sabem informar, porque tem; lá ainda tem essa que a titia disse assim, essa

devoção, [...] porque os antigos chamam de devoção, ainda tem essas pessoas e

essa devoção, mas no caso lá no Carnaubal, lá no Curral Velho [...].8

Curral Velho e Carnaubal são duas localidades próximas a praia do Coqueiro, em Luís Correia, litoral do Piauí, locais onde, segundo dona Erlene, vivem pessoas que guardam e vivenciam rituais tradicionais como as Incelências. O distanciamento na fala de dona Erlene evidencia experiências diferentes de sua realidade, enunciando a chave para o entendimento das motivações para os rituais, e que só percebemos muito tempo depois da entrevista. De início, dona Erlene nos falou em devoção, uma forma de expressão dos “antigos”. Mas, o que seria essa devoção dos antigos?

A devoção parece pertencer a um sentimento particular e relacionado ao passa-do, a alguma coisa ou atitude espiritual que não se encontra mais; uma percepção diferenciada dos costumes e dos sentidos das tradições religiosas. Em sua fala e na percepção de muitos moradores, a expressão “dos antigos” se refere a um passado que só existe ou tem referência na memória dos que viveram diferentemente a reli-giosidade e os costumes de um tempo, relembrados por dona Erlene, não de forma saudosista, mas como um elemento diferenciador.

Nesse sentido, a devoção define a realização das práticas e das rezas para a cele-bração da morte, expressão que parece ser, para dona Erlene e sua tia, algo que vem se perdendo cotidianamente.

Durante sua fala, dona Erlene reafirma, em tom contundente, a certeza da existência de pessoas nessas comunidades que conhecem os lamentos e a devoção, evidenciando uma percepção diferenciada do “saber do povo”, da prática cotidiana de rezas fora da

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liturgia eclesiástica. Um pouco distanciada da igreja católica, dona Erlene enfatiza a devoção, o que nos leva a crer que ela partilha desse sentimento, e o avalia como “um sentimento forte ligado aos antigos, a experiência vivida”, diferente das experiências vivenciadas no presente.

Velórios com as incelências marcaram as lembranças de dona Erlene não só por-que eram diferentes ou porque ela sentisse medo das canções, dos lamentos, mas por algo mais que haveríamos de decifrar.

Como interpretar as sensibilidades presentes no ritual de velar os mortos com Incelências? Eis a questão, o fio e a motivação desta pesquisa. Sensibilidades que ca-minham, se manifestam em atitudes para com o outro e com o outro. Rezas, orações, peregrinações, terços, novenas, pagamento de promessas são marcas de um catolicismo devocional, coletivo e de reafirmação dos laços comunitários e de crenças individuais.

Em algum momento da entrevista, dona Erlene é interrompida pela amiga Cidinha, que relata um detalhe:

Dona Cidinha: – Tu falou aquele detalhe delas irem a casa de gente que desse

alguma coisa, aquilo que tu falou...

Marluce: – Elas cobravam?

Dona Erlene: – Tem, porque... Tinha uma... Teve uma época que elas só iam, ou

não sei [se] era do local, em casas ricas onde davam...

Dona Cidinha: [Interrompendo a fala de Erlene]: – Agradavam.

Dona Erlene: – Agradavam com dinheiro para elas, e, mesmo assim, o velório,

no interior de pessoas abastardas, eles matavam tantas galinhas, pato, carnei-

ro... Era aquela cumiduria [risos]. Às vezes, as pessoas iam porque uns ganha-

vam... as vísceras, as tripas, não sei mais, ou se tinha o dinheiro que o dono

da casa dava para as cantadeiras de excelências, para as rezadeiras. Não tinha

padre, padre era muito longe, elas faziam o papel de padre e de o que chamam

de excelências. Era uma cantagem muito feia aquele lamento, mas elas recebiam

dinheiro; mas a minha tia disse que lá no povoado dela não, elas iam por de-

voção, porque o pai tinha preparado, para elas... Era uma última homenagem

aquela pessoa morta; e era pobre, era rico, qualquer um que morria elas estavam

lá; era aquela família, cinco pessoas e o pai, a esposa com as três filhas, já era

tradição de ter aquela, aquele povo.

Para Walter Benjamin, “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”.9 Com efeito, a fala de dona Cidinha revela que as duas conversaram antes da entrevista sobre o assunto, atitude que informa que a presença da amiga serviu para auxiliá-la, no caso de dona Erlene esquecer algum detalhe da narrativa ou até mesmo para que se sinta mais segura em conversar com alguém que legitime e conheça sua experiência, ou ainda para não conversar sozinha com uma pessoa, até então, estranha.

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A presença da amiga de dona Erlene tornou a entrevista repleta de conversas entre as duas, por vezes suavizada pelas expressões da amiga e por vezes interrom-pida. Percebemos que a narrativa de dona Erlene é descontínua, onde predominam três construções, três vontades: a de dona Erlene, a de dona Cidinha, e a minha, na condição de pesquisadora.

Convém destacar que, por vezes, a presença da amiga atrapalhava ou interferia nas palavras e na conotação das escolhas de dona Erlene. Vejamos: dona Cidinha, por exemplo, sugere que dona Erlene use o termo agradavam em vez de davam, o que evidencia uma forma de suavizar a ação das mulheres, bem como a prática do “pagamento” pelas rezas, lamentos, pelas Incelências.

Dona Erlene segue seu relato afirmando que “as cantadeiras de excelências” “ga-nhavam dinheiro”, era o agrado dado pelos parentes do morto. A sua fala parece im-precisa, reticente, sem conseguir demarcar o tempo quando relata que “tem... porque tinha uma... teve uma época que elas só iam, ou não sei qual era o local, em casa ricas onde davam...”. Nesse sentido, sua fala revela certo conhecimento da prática de pa-gamento para as mulheres que rezavam o morto, embora desconheça a relação de pagamento no ritual que nos conta. O seu relato revela informação que se liga ao imaginário coletivo de mulheres rezadeiras, do carpir,10 que se expressa na ação de cobrar para se chorar nos velórios, vinculando-se, portanto, a profissionais, não a devoção ou a sensibilidades.

Assim, em uma primeira interpretação, a entrevistada reafirma ou consolida a ideia já cristalizada das carpideiras, para em seguida desconstruir com a afirmação do “pagamento”. Por outro lado, afirma que, nas cidades do interior, os velórios cos-tumam ser fartos em comida e reza, e que por vezes o “pagamento” não se dá apenas em dinheiro, mas em agrado, que pode assumir várias formas, até como alimento.11

Perceber que o pagamento, no sentido monetário, recorrente nos dias de hoje não necessariamente evidencia relações de trabalho, como um mercado de trocas ou negociações entre “vendedor” e “consumidor”, a ideia de pagamento, segundo dona Erlene, sugere mais uma relação de gratidão, de agrado entre a família do defunto e as cantadeiras.

A entrevistada ressalta que algumas mulheres rezavam por pagamento, no en-tanto, ao tentar confirmar suas lembranças com as de sua tia Maria dos Anjos, afirma que as mulheres do povoado ao qual se referia, realizavam o ritual por devoção, como uma última homenagem. Sendo assim, é válido nos perguntar como dona Erlene poderia saber sobre a forma de pagamento, se ainda era uma criança quando pre-senciou o velório? Suas afirmações podem estar relacionadas a ideia historicamente construída dessas mulheres, como dona Erlene, e se apoia no sentido comumente divulgado, e não na lembrança do acontecimento. Embora seu tom de voz seja de dú-vida, é a tia quem confirma o ofício como uma forma de devoção, informação na qual dona Erlene se apropria, mostrando as duas faces possíveis para a realização do ritual: o pagamento e a devoção. No entanto, se apoia na devoção e nos indica que se procure conhecer essa família no Carnaubal, e assim confirmar e aprofundar o seu relato.12

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Face o exposto, ressaltamos três palavras para definir o ritual das Incelências: devoção, homenagem e tradição, palavras que nos informam das percepções de dona Maria dos Anjos, tia de dona Erlene, possivelmente pessoas que acompanhavam os velórios com a presença das cantadeiras.

É possível afirmar ainda que as pessoas que realizavam tais rituais eram prepa-radas pela família, o que nos revela sobre a legitimação pela comunidade da família de rezadores da qual nos fala dona Erlene, ou seja, pessoas conhecedoras da tradição vinculada ao catolicismo devocional, pois “elas faziam o papel do padre”.13 Segundo Monsenhor Chaves, por não haver muitos padres no início da colonização portugue-sa no Brasil e no Piauí, em particular a fé se mantinha.

[...] simplesmente por obra e graça da tradição, devido a falta de padres. Agra-

vava a situação, o isolamento das paróquias devido a extensão territorial entre

as mesmas. [...] para serem atingidas as populações rarefeitas do interior, fun-

cionavam o regime das desobrigas.14

Durante muito tempo no Piauí adotou-se o regime das desobrigas, uma respostas criada devido as necessidades diárias da população, que vivia distante da liturgia da igreja católica. Dessa forma, os poucos padres que passavam pelas colônias portu-guesas procuravam deixar

[...] em cada lugar um catequista que devia fazer, na sua ausência, a doutrina aos

pequeninos e instituir os adultos para o batismo, em perigo de morte [...] não

havia lugar para participação, para as relações de fraternidade e mutualidade.”15

Embora os estudos de Mons. Chaves não correspondam a mesma época dos ve-lórios que investigamos, suas pesquisas nos permitem compor um quadro da vivên-cias religiosas no Piauí. Como as famílias eram “deixadas” as tradições e os poucos ensinamentos litúr-gicos católicos, podemos destacar que as práticas consuetudi-nárias, como os modos de proceder diante da morte, entraram em diálogo com a doutrina católica e forjaram uma autonomia leiga diante dos sacramentos.

Nas entrevistas, é possível perceber que a homenagem diante da morte feita pe-las carpideiras ou cantadeiras de excelências foram transmitidas por tradição oral e (re)significadas a cada ritualização. Nesse contexto, é importante ressaltar que com-preendemos o ritual a luz do que Jean-Claude Schimitt investiga, quando o autor adverte sobre a sua finalidade simbólica:

‘Uma sequência ordenada de gestos, sons (palavras e músicas) e objetos,

estabelecida por um grupo social com finalidades simbólicas’ esta poderia

ser uma forma de conceituar, no entanto, não comporta a universalidade

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dos ritos. O rito é pluridimensional e constrói um espaço e um tempo que lhe

são próprios.16

Se por um lado os praticantes não veem as canções como um dos elementos de um ritual diante da morte, mas como parte de suas vivências, de um momento que se faz necessário como uma última homenagem ao membro da comunidade no mo-mento de sua morte, da passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Por outro, a falta de padres informa acerca de uma aceitação das atitudes leigas para com as diversas fases da vida em comunidade, que deveriam ser atendidas por religiosos.

A família de cinco pessoas a qual dona Erlene se refere denota uma preocupação do chefe da família em transmitir o ofício, já que todos acompanhavam os lamen-tos, homenagem que independe da classe social ou do poder aquisitivo dentro de uma comunidade, mas da tradição. Os rezadores nos esclarecem duas questões im-portantes: primeiro, a legitimação da prática dentro da comunidade, circulando em todos os espaços das famílias de rezadores, o que demonstra que “todos” percebiam “o carpir” como necessário no momento de velar o morto. Segundo, por se tratar de uma última homenagem ao morto, reafirmavam-se os laços e a tradição de o velar com lamentos, herança cultural presente nas famílias de rezadores e dos demais membros da comunidade.

Dona Erlene: – É, acabou, porque os outros não quiseram, porque essa gente não le-

vava...

Marluce: – E depois a senhora foi em algum outro velório com incelências e chegou a

ver outra vez por aqui?

Dona Erlene: – Não, tanto que me marcou porque eu só vi esse... Ia o da cidade, mas

gostava muito do povoado, do interior, e me chocou porque eu vi aquele negocio lá e

eu fiquei... Apesar de curiosa e danadinha que eu sempre fui, eu não quis ficar, eu me

emocionei e não quis ficar.

Marluce: – Ficou com medo?

Dona Erlene: – Ai... Ficou na minha cabeça aquela... aquela lengalenga, aquelas voi-

zinhas de biata, sabe, fininha e tudo.

Dona Erlene afirma que a prática acabou, ou podemos imaginar que foram (re)

significadas quanto a sua função na comunidade, embora nos aconselhasse a ir ao Carnaubal para confirmar se ainda se mantinha essa tradição. No momento da entre-vista, relatou sobre a perda do costume de rezar17, em função da falta de interesse de outros membros da comunidade em aprenderem o ofício ou até mesmo a vontade em transmitir, já que diz que “essa gente não levava”. Dona Erlene se inquieta ao falar dessa família, provavelmente por não ter gostado do que viu e/ou ouviu durante o ritual, ou mesmo pelo temor de ter se sentido tão atraída por ele. Mais uma vez, ela

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demonstra um novo detalhe: a transmissão ou fim da manifestação. Talvez em suas conversas com a tia, ela tenha comentado sobre o fim da prática, já que evidencia que por muito tempo caminhando pelo povoado e pela cidade não tenha se deparado com essa atitude diante da morte, com lamúrias ou aquele “lengalenga”, diz com certo desdém.

A prática acabou ou foi (re)significada? Entre uma resposta e outra, nos valemos de outra pergunta: modificou-se a forma de expressão diante da morte?18 A mudança, segundo Walter Benjamin, estaria relacionada a ideia de eternidade: “hoje, a morte está cada vez mais expulsa do universo dos vivos”.19 Essa reflexão nos informa de uma relação presente entre os indivíduos e a morte.

Dona Erlene nos esclarece que os lamentos eram realmente feios, pois se trata-vam de “lengalenga, aquelas voizinhas de beatas, sabe, fininha e tudo”.20 Nesse peque-no trecho do relato, a ela nos informa três elementos das incelências: a repetição, o tom e a função do puxador de reza. Primeiramente, a lengalenga manifestou o ele-mento cíclico dos lamentos, cantados repetidamente em formato de 7, 9 ou 12 repeti-ções. De fato, as incelências são compostas de estrofes curtas e repetitivas, informan-do o “lengalenga” que a entrevistada se refere; o outro elemento das canções é o tom dos lamentos, ao se referir a uma “cantagem feia” e as vozes fininhas, haja vista o tom agudo das lamúrias, expressando o momento da dor e a função de cantar “arrastado”, o que poderia se aproximar do choro e do carpir; por fim, a função do “puxador”.21

Dona Erlene indica que as mulheres eram biatas, pessoas de dentro da igreja ca-tólica e que comumente nas cidades do interior eram as que conheciam os rituais e transitavam entre o ambiente litúrgico e o popular. Quando perguntamos se essas beatas eram de dentro da igreja católica ou apenas mulheres devotas da comunidade, ela assim nos respondeu:

São, são pessoas de dentro da igreja, de dentro da religião católica, por isso que

até a minha tia disse que era devoção, sabe que o pai, o pai preparou, aí até

pensei, o pai podia tá até em alguma irmandade e preparou as filhas e a família

para fazerem essa última homenagem aos mortos, tanto fazia ir num povoado

pequeno, tanto fazia ele ser da irmandade ou não elas iam prestar essa home-

nagem, como se fosse uma devoção que elas estão fazendo um último favor

divino aquele morto, mas acabou, mas tem no Carnaubal, não é muito longe

do SESC Praia não, o Carnaubal.

Dona Erlene revela certa preocupação em afirmar que as rezadeiras são católi-cas, talvez pelo estigma que geralmente elas e os rezadores carregam, porquanto são indivíduos que se situam em uma linha tênue entre o reconhecimento e a margina-lização, uma vez que são representados, de maneira pejorativa, como “macumbeiro” ou “espírita”. Ao afirmar a crença católica, o tom usado nos inquietou mais uma vez, devido a necessidade de (re)afirmar a devoção católica. Nesse sentido, ela também

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confirma o fato de ser uma homenagem e uma forma de devoção, manifestação que corrobora os laços de comunidade e fé. Segue-se, então, no relato, o que mais nos chamou a atenção em relação ao velório: as incelências.

Antes de prosseguirmos, dona Erlene nos disse que aquelas mulheres são conhe-cidas por “cantadeiras de excelências” e estranhou o fato de denominá-las “carpi-deiras”, quando até sorriu um pouco sem jeito, como se desconhecesse o termo. Ela também relatou que a sua tia visita o povoado Carnaubal com mais frequência, e acredita ter ainda três pessoas que cantam excelências. Talvez o fato de a entrevista-da evidenciar que a prática tenha acabado esteja relacionado ao seu distanciamento daquela comunidade, impossibilitando-lhe de presenciar tais rituais.

Dona Erlene: Agora por isso que eu achei quando a titia me contou, que elas esta-

vam... que era uma devoção religiosa dentro da igreja católica, que elas estavam a

caráter porque elas não se vestiam todas de preto no dia a dia delas. Elas estavam

todas de preto, tinha um velzinho na cabeça que cobria e tinha o livrinho, elas can-

tavam olhando, lendo aquele livrinho. Eram bonitas as palavras, mas era triste o tom.

Marluce: O tom do lamento.

Dona Cidinha: O lamento.

Dona Erlene: Triste era a melodia mesmo, o tom de lamento, porque via aquele

povo ali sentado, só rezando, tipo um choro, aquela coisa tão sentida, e tinha pes-

soas da comunidade que estavam lá que até acompanhava, cantando um refrão-

zinho que era acompanhado. Aí foi que eu... Meu Deus, aqui não dá não, essa can-

toria eu não fico, não fico nessa cantoria. E eu me arrepiava toda quando chegava

na sala. E sala no interior você sabe, a casa é só aquele salão, todo tempo tá vendo

a sala, o salão. Aí eu fui embora, não fiquei, [...] depois que eu fui ter a curiosidade

de perguntar; não, todo velório aqui tem as cantadeiras de excelências. [...] tinha

gente que decorava as incelências para acompanhar na hora.

Marluce: E a senhora se lembra de algum?

Dona Erlene: Não, a minha própria tia disse que até sabia de alguns, de alguns

cânticos, mas [...] esqueceu, porque nunca mais foi cantada, eu acompanhava tam-

bém, mas eu perdi as palavras. São orações, só que são orações, não são inventadas

e também não são repente, são de livro [...].

Dona Erlene evidencia que o ritual faz parte da igreja católica, por isso é acom-panhado por um livro, uma vestimenta característica, roupas e véu na cabeça em tons de preto e as senhoras faziam parte da igreja, eram beatas. Para ela, esses ele-mentos mostram uma organização e condições para a realização do ritual, em que as roupas e o livrinho marcam um acompanhamento, uma ritualização legitimada por elementos da própria igreja, no caso, as beatas.

Embora o lamento a assustasse, ela percebe beleza nas palavras, nas rezas, nos lamentos, ressaltando a função do tom, que marca o compasso das emoções, que toca

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e enfraquece os olhos para se pôr a chorar. O cantar arrastado se aproxima da dor e cultiva o choro, importante para a passagem do vivo para o mundo dos mortos. Acompanhar por meio de um livrinho indica uma sequência a ser realizada, bem como o véu e as roupas pretas singulares e o tom de lamúria constroem um ambiente propício ao choro, o que teria afastado a entrevistada do velório. Outro aspecto do lamento é o acompanhamento pelas pessoas presentes ao velório. O coro informa um conhecimento das canções por parte da comunidade, assim como a sua legitimação para os presentes. O acompanhar das orações também mostra uma vivência do cos-tume de velar o corpo com canções e lamentos. O lembrar das incelências está condi-cionado a prática, a sua feitura, uma explicação possível para o fato de as pessoas só conhecerem o refrão ou então reconhecerem o papel e função do “puxador da reza”.

No velório, existem os que “puxam” e os que acompanham. Dona Erlene reco-nhece a função dos lamentos, mas recua ao lembrar-se do tom e da sensação incômo-da que lhe causaram os lamentos. No entanto, nos diz: “Era bonita as palavras, mas o triste era o tom”. A sala ou salão torna-se um espaço marcante na lembrança de dona Erlene, pois o fato de ser amplo tornava possível a comunicação por meio de olhares e choros dos presentes, o salão representa um velório em casa; a sala se constitui um lugar de partida para a dona da casa.

Dona Erlene e a tia dizem que não se lembram das canções, mas conseguem acompanhá-las, talvez pelo fato de ser curiosa, ela tenha aprendido porque ouviu sua tia cantar. Notamos, ainda, que não se tratam de canções de repente ou cordel, ou até mesmo reza inventada, mas orações oficiais da igreja católica, próprias para o momento do velório. Sobre esses livrinhos, dona Erlene mais uma vez conta com a experiência da tia para auxiliá-la na narrativa que constrói sobre os velórios com a presença das carpideiras ou cantadeiras, como ela se refere:

É de livrinhos como catecismo, livrinho de missa, elas tinham os livrinhos,

acho que era o do terço, o do rosário, e tinha as excelências, como se fosse o

rosário de Nossa Senhora ou coisa assim. Ah, falei com a titia ontem mais de

meia hora no telefone, aí eu só tenho notícia do Carnaubal, mas lá onde ela

morava não tem mais não, é porque é uma coisa interessante. [...] é porque é uma

coisa muito interessante ver um saber que aquilo ali existiu e que acabou.22

A conversa com a tia dá conta de sua preocupação em levantar informações sobre os velórios, uma “conversa longa” na qual apresenta os elementos do ritual e possí-veis referências ao povoado Carnaubal. Os livros aos quais ela se refere parecem com os cadernos de exéquias amplamente divulgados desde o século XVIII como o “Breve aparelho para ajudar a bem morrer um cristão”23 e os livrinhos que na atualidade ensinam os passos para preparar e acompanhar os moribundos.24

Dona Erlene faz algumas pausas ao longo da entrevista. Pergunto-lhe sobre dona Maria dos Anjos, sua tia, e como devo proceder para realizar uma entrevista com

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ela, pois fiquei interessada, já que a sua relação com ela parece muito próxima. Quis colher mais informações sobre o velório da sogra, que presenciara, com mais porme-nores para compor a representação daquele ritual.

Dona Erlene não respondeu a pergunta e começou a falar de um projeto de brinca-deiras de roda na escola de sua filha, que a convidou para falar sobre as brincadeiras de outros tempos. Nesse momento, ela dá o tom da entrevista, suas lembranças a levam a falar da infância e lembrar não só do evento na escola, mas a reviver o passado e mostrar que percebe as mudanças nas pequenas coisas que em poucos anos se transformam.

Dona Erlene: Veja, teve um projeto na escola da minha filha, [...] era o projeto

brincadeiras de roda, brincadeiras de criança como era antigamente, [...] eu

conversando com ela, [...] disse pra professora: – A mamãe brincou de roda,

brincou demais de [...] A professora me chama pra eu dar uma palestra, [...] eu

fui falar das brincadeiras de infância, que a gente realmente brincava, hoje, a

criança não tá brincando, tá na televisão, no computador ou tá em brinquedos

eletrônicos. A gente brincava, fazia casinha no meio da rua, rodava... Disse as

brincadeiras que a gente fazia, os meninos adoraram, [...] quando eu cheguei

em casa a Isabel [a filha] disse: – Mamãe, todas as mães ficaram assim olhando

para a senhora... a senhora ficou tão velha naquela hora [risos] a senhora não

é velha, mais ficou tão velha naquela hora, não vá mais não, dar palestra não,

que a senhora fica é velha na palestra. – Olha, minha filha, até quinze anos

atrás, a gente brincava, tem uma década só que não estão mais brincando. A

gente confeccionava brinquedos, tinha prazer em fazer teatrim com aquelas

bonecas de pano. A gente comprava até no mercado aqui em Parnaíba, eu

ia para o mercado com o papai, porque tinha uma mulher com uma bacia

cheia de bonecas de pano, eu queria aquelas bruxinhas pra fazer aquelas

brincadeiras. A gente colocava um lençol e ficava um pessoal acolá e a gente

aqui atrás fazendo vozes e tudo, acho que a gente já tinha aquela coisa de ser

professora mesmo e já brincava disso. Hoje, a criança não brinca mais, ela tá

no computador, ou tá na televisão ou tá nos jogos eletrônicos. [...] Todo mundo

achou bonito, aí a Isabel: – Mamãe, é porque era de areia a rua, era? Era areia, tá

certo que o progresso tira muito o prazer da criança; era areia, a gente brinca-

va, oito horas a mamãe chamava pra banhar, escovar os dentes e dormir, hoje

é a hora que os meninos tão terminando de jantar pra ir pro jogo eletrônico ou

alguma coisa e a gente já ia dormir, porque tinha aula no outro dia, o horário

era mais cedo, mas a gente brincava. Eu fui cantar as musiquinhas de brinca-

deira de roda, essas meninas adoraram, que conhecem na escola, algumas na

escola são, já são mais populares, mas outras não conhecem e acharam lindo;

aí a Isabel: não vá mais não, mamãe, a senhora ficou muito velha ali, viu? Não

vá dá mais palestra em escola não [risos].25

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O convite da professora de Isabel (filha de dona Erlene) marca uma vontade de aproximar os alunos de outros tempos, bem como a aceitação de dona Erlene em falar sinaliza sua busca para resgatar suas experiências, lembranças que guarda, valoriza, atualiza. Ao contar como brincava, busca explicação para as mudanças nas brinca-deiras de hoje e percebe que a tecnologia tira muito do lazer das crianças. Além dis-so, esclarece que o diálogo, as brincadeiras com outras crianças aproximavam-nas e marcavam sensações e expressões, como o teatro de bonecos. O computador e a televisão individualizam as brincadeiras ou reduz o número de brincantes. Ao falar da rua de areia, das bonecas, que chamava de bruxinhas, e do “teatro de lençóis”, ela encontra uma motivação para ser educadora, professora, haja vista sua curiosidade e vontade de falar, de se expressar. Embora a filha não tenha aprovado o seu discurso, quando a classificou de “velha”, dona Erlene argumentou que os referenciais mu-daram em pouco tempo, mas as suas lembranças são suas e as tem como preciosas. Para ela: “Eu não esqueço as coisas que eu vivencio assim não, viu? ainda mais as que marcam como essas excelências que marcaram essas carpideiras”. Dona Erlene volta a falar das carpideiras e, na busca de novas referências, conversa com um amigo que mora em outro bairro da cidade de Parnaíba.

Dona Erlene: E ontem eu conversando com um colega meu, ele disse assim:

“Ah, eu sei”. Porque ele é aqui do bairro São José, que chamam Coroa, é o bairro

mais antigo na cidade.

Dona Erlene: – Tu não conhece pela Coroa alguém que cantava excelência?

Gilmar [o amigo]: – Ah, sei, tu quer falar das caspideiras?

Dona Erlene: – Rapaz, não é caspideira não, é car... carpideiras. [Risos]

Gilmar: – Tu quer falar de caspideiras?

Dona Erlene: – Não, cara, é carpideiras.

Gilmar: – Ai, é pra mim que era caspideiras, não acho que deve ter existido, mas

eu já não peguei nenhum desse período não.

Dona Erlene: – Rapaz, mas tu não conhece alguém na Coroa?

Gilmar: – Hiii, a Coroa já tá jovem. Porque os velhos já estão morrendo; lá, ó, o

pessoal jovem não tem mais essa, porque eles pesquisam coisa de festa, o que

acontecia em Cassino e coisas que já não existem, mas esse negócio de religio-

sidade, ele [Gilmar] disse que não.

Gilmar: Nunca andei perguntando nada não.

Em conversa com Gilmar, o amigo de um dos bairros mais antigos da cidade, dona Erlene continua sua busca para obter informações sobre as carpideiras. Gilmar conhece as excelências, mas se refere as carpideiras de outra forma, o que provoca risos em dona Erlene e em Gilmar, que se confunde com o nome. O diálogo evidencia que Gilmar buscou informações sobre o velório relatado por dona Erlene no Carnaubal, bem como na própria cidade, em um dos bairros mais antigos, referência aos lamentos,

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que talvez não existam mais pessoas que cantem ou que se interessem por aprender, pois, segundo Gilmar, o ritual não se apresenta aos jovens como uma forma de ma-nifestação frente a morte, o que pode nos informar que o ritual foi (re)significado. Gilmar avalia que o costume está se perdendo devido a falta de interesse dos jovens por religiosidade. Dona Erlene continua seu relato sobre a curiosidade para aprender as rezas, os lamentos, não obstante o sobrosso:

Quando meu avô estava um pouquinho mais velho, eu poderia ter ficado e

conversado, porque eu era curiosa em conversar, ou copiado alguma coisa das

excelências, mas me deu foi medo, eu gostava da velhinha e fiquei com medo

porque eu queria ir, ficar no velório da velhinha, mas eu não conseguia com

aquela lamentação ali, era lamento demais, era uma coisa triste demais, era

assim um tom..., não era monótono, era um tom choroso, as vezes elas até

choravam, e eu disse: – Meu Deus, como é que pode uma coisa dessas?26

Dona Erlene enfatiza a tristeza e a comoção dos presentes no velório. Nessa hora, o lamento regava a dor sentida e provocava ainda mais choro e tristeza. Embora curiosa em anotar, não perguntou nada ao avô, talvez pela lembrança da tristeza pre-sente na sala ou salão das casas típicas do interior, onde se cantava, se respondia, se chorava, tudo regado a comida.

Perguntei se a sogra de sua tia era muito devota, na tentativa de descobrir se era desejo daquela senhora ser velada com as canções, ou se era por uma escolha da famí-lia ou da comunidade. Dona Erlene nos diz que:

Era, ela era muito devota também, [...] era da capelinha [...] ela era das pessoas

que davam aquelas palestras religiosas ali no lugar do padre. E velinha, velinha

[muito velha], acho que ela já tinha uns [...] noventa anos quando morreu e as

pessoas, as cantadoras de excelências, as carpideiras, elas eram de dentro da

igreja, elas eram também devotas da igreja [bem enfática], que eu acredito que

elas faziam parte da Irmandade de Nossa Senhora, parece que tem uma Irman-

dade que é de Nossa Senhora, que elas dizem que sabem até o dia em que elas

vão morrer, como se assim, se eu sou devota de Nossa Senhora, eu sei que vou

morrer ou num sábado ou na segunda, porque são os dias consagrados, num

tem uma irmandade assim?

A pessoa devota podia fazer as palestras no lugar do padre, geralmente relacio-

nadas as aulas de catecismo ou aos terços e novenas, que, após a reza do pai-nosso, mistérios e ave-marias, seguem-se a leitura e comentários do evangelho. Ministras de eucaristia ou seguidoras de Maria, muitas mulheres e homens nos povoados, nos interiores e nas cidades, se dedicam aos afazeres da igreja católica e da evangelização.

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Talvez aquela senhora seja uma dessas mulheres. A “capelinha” citada por dona Erle-ne e a ênfase na devoção a igreja católica indicam uma disciplina desempenhada por mulheres que “tomam as vezes de padre”, cantadoras que faziam parte de alguma irmandade. Dona Erlene percebe a irmandade como um grupo ligado por devoção e afazeres religiosos, e relaciona a irmandade as seguidoras de Maria. No final de sua fala, faz uma pergunta direcionada a sua amiga Cidinha, que responde: “– Ah, tem, tem e elas guardam as roupas do dia do velório pra elas estarem vestidas na morte, pra estar no caixão com a roupa de Nossa Senhora.”27 Dona Erlene se inquieta, talvez pelo fato de ter falado sobre a igreja católica.

Dona Erlene: Com o manto azul e branco, acho que essas pessoas, que são mui-

to religiosas, que são... Na época, eram as carpideiras que a Lúcia [outra amiga

de dona Erlene], também ela é muito religiosa, [...] participa do movimento da

igreja, não gosto muito de movimento da igreja não, e ela... Eu disse: – Lúcia,

tu nunca ouviu falar das carpideiras ou de uma irmandade por aqui em Parna-

íba? – Não, num ouvi não [responde a amiga]. Pois agora a palavra é comuni-

dade, que também tem seus estatutos, tem tudo, porque ela já veio da versão

moderna das irmandades.

Ao analisarmos a entrevista de dona Erlene, percebemos que ela está muito in-formada pelas referências e tentativas de comparação que faz com as irmandades e com outros ofícios de rezadeiras. Embora reconheça a ação de “comunidades” ou “grupos religiosos”, como a Legião de Maria, a qual a entrevistada se refere, desta-ca a sua falta de interesse pelo fato de não gostar de movimentos da igreja. Talvez sua experiência com o cotidiano das práticas da igreja católica tenha frustrado suas expectativas. Relata, em seguida, sua falta de interesse ou descontentamento com a instituição, devido ao questionamento lançado por sua amiga, troca de olhares e gestos de dona Erlene.

É que a igreja é Nossa Senhora das Graças, e a comunidade é João Paulo II, aí

eu disse: – Menina, o que é que tem a ver, eu sei que João Paulo II foi um papa

carismático e tudo mais, mas o que é que tem a ver com a igreja Nossa Senhora

das Graças? Por que é que não botou comunidade Nossa Senhora das Graças?

Não, porque já tem a da matriz, porque a padroeira é Nossa Senhora das Gra-

ças; elas formam um grupo, que deve ter estatuto, não perguntei, mas deve

ter, elas formam um grupo que cuidam daquela igreja, até o dia que celebram

a missa lá, são elas... Parece que é a última sexta-feira do mês ou é a primeira,

uma coisa assim, que tem missa lá, tem catecismo, tem primeira eucaristia [...]

Porque eu acho que pelo menos elas vivem do que elas fazem, filha. Cidinha: –

É assim, ó, elas fazem brechó, elas fazem leilões, elas fazem bingos, rifas e tudo

para a manutenção daquela igreja, para arrecadar dinheiro para aquela igreja.

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Elas pagam água, pagam luz, elas compram cadeiras, bancos, porque a igreja

elas construíram, tá até bonitinha! Mas falta muita coisa, colocar o piso...28

As duas conversam sobre a formação das comunidades. D. Cidinha questiona sobre o lugar de conhecedora das ações da igreja das quais já participou, sobre gru-pos de jovens, e relata que aquelas senhoras é que sustentam a Casa de Deus, e que lá não existe ata nem estatuto, uma vez que suas práticas estão vinculadas a igreja católica e não se constituem comunidades leigas autônomas.

Dona Erlene enfatiza a dedicação daquelas senhoras no sentido de arrecadar dinheiro para as despesas da igreja, embora não haja reconhecimento desse tra-balho. Avalia que as suas ações deveriam ser em nome da padroeira, independen-te de existir uma igreja matriz com o mesmo nome. No tocante as carpideiras, a entrevistada falou pouco, pois parecia pouco a vontade para abordar o assunto, e preferimos respeitar isso. Depois, finalizou seu depoimento afirmando que “as carpideiras daqui, da nossa região, você pode até botar da região norte, elas eram católicas fervorosas”.

Os encontros, depoimentos e entrevistas com dona Erlene são repletos de in-formações e sentimentos. Diante disso, houve poucas perguntas, que surgiam atro-peladas pela sua ânsia de falar. Por vezes, as perguntas e as interferências de sua amiga Cidinha é que a detinham. Ao final da entrevista, terminada de forma in-tempestiva, dona Erlene continuava e completava reflexões iniciadas, na tentativa de responder ou fugir as perguntas que elaborávamos.

Acompanhamos dona Erlene para que assistisse a mostra de filmes etnográficos que organizamos como atividade do Encontro de História da UESPI. Pensamos que os documentários sobres sensibilidades, religiosidade popular poderiam ajudá-la a falar mais durante o nosso segundo encontro.

Continuamos a entrevista no dia seguinte, dessa vez com um pouco mais de tem-po. Nessa etapa, ela foi mais generosa nas informações sobre si e sobre o velório do qual participara em sua infância. Dessa vez, conversamos por mais de 44 minutos. Em alguns aspectos, podemos considerar essa entrevista mais esclarecedora.

Nosso encontro realizou-se no mesmo lugar da primeira entrevista, no SESC--Avenida, centro da cidade de Parnaíba. No dia 6 de novembro de 2009, por volta do meio-dia, entabulamos uma conversa logo após a exibição de filmes, um deles foi “As Benzedeiras de Minas”29. Talvez isso tenha motivado dona Erlene a falar. E retomamos a conversa sobre as incelências.

Nessa entrevista, conseguimos informações importantes, e fomos pegos de sur-presa, talvez por inexperiência, ou por ser também a nossa primeira entrevista. Na verdade, não soubemos bem o que fazer quando nossa entrevistada “disparou a falar”. Novamente, pediu a companhia de uma amiga, Lúcia, que se recusou a par-ticipar do encontro, a fim de que não ficássemos sozinhas. Dessa vez, a conversa se deu somente entre nós duas.30

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Sua amiga Lúcia preferiu se afastar um pouco: “Vou ficar bem aqui, quando aca-bar...”. Causando estranheza em dona Erlene, que fez o seguinte comentário: “Não sei por que a Lúcia não tá vindo, acho que é porque ela é de dentro das igrejas”31. Apa-rentemente, essas palavras poderiam passar despercebidas, no entanto, dona Erlene esclarece que a sua amiga faz parte dos movimentos da igreja católica, e que se pode-ria imaginar que ela não iria interferir em nossa conversa ou que as perguntas talvez fossem embaraçosas para alguém dessa religião, embora o assunto da entrevista não abordasse necessariamente sobre catolicismo.

Assim, de forma e tons diferentes, ela tece mais detalhes sobre canções e lamentos fúnebres. Dessa vez, iniciamos pedindo que se apresentasse, pois no dia anterior só falamos de carpideiras, velórios e rezas, e pouco falamos de Erlene Maria de Oliveira.

Meu nome é Erlene, sou professora de História do ensino fundamental e ensi-

no médio, atualmente, sou só do ensino fundamental, sou formada em Histó-

ria, foi a primeira turma de História da UESPI, que não tinha, esperei chegar

um Curso de História para eu fazer e... É isso, já vou fazer 30 anos como pro-

fessora, comecei cedo, posso me aposentar cedo [...], gosto muito de História,

gosto de perguntar, sou muito curiosa, eu gosto de perguntar, eu não pesquiso

como vocês, assim, sistematizada, lendo livros de autores para se aprofundar

em pesquisa, eu vou pela curiosidade.32

Um pouco contida e por vezes pouco direta, fala de seu interesse por História e de sua curiosidade, característica que parece motivar sua vida. Dona Erlene coman-da toda a entrevista, não nos permite falar ou fazer perguntas, fala sempre com um sorriso e, por vezes, inquieta-se. Antes que nós pudéssemos perguntar mais sobre a sua vida, relata que o “carpir” das mulheres marcou-a e nos pergunta a forma correta de se referir, se “carpideiras ou caspideiras?”, sempre entre risos. Aproveitamos o en-sejo para perguntar como ela sabe detalhes sobre as carpideiras. Nossa intenção era questionar o fato de suas lembranças serem bem detalhadas para uma criança que ficou pouco tempo no local, não que duvidássemos das informações de dona Erlene, apenas buscávamos aspectos que esclarecessem uma troca de informações, que a aju-dariam a compor seu quadro de memória. Ela responde:

Depois, eu fui perguntar por que aquelas mulheres, ali mesmo no interior...

Eu me admirei daquilo ali... Não, elas cantam as excelências, a família pede,

mas tanto pode ser pobre como pode ser rica. Depois, por curiosidade, eu ainda

cheguei a ler alguma coisa sobre as carpideiras, mas não lembro, não foi autor,

eu não lembro os autores, foi um livrinho explicativo quase como um livrinho,

um... quase com uma leitura de... de cordel, sabe; era um livrinho feito uma

capinha de cordel, mas não era cordel, porque não era em verso, mas era um

livrinho daqueles sobre as carpideiras, que não chamava carpideiras, chamava

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as cantadeiras, as cantoras de excelências, as pessoas que cantam excelências,

acho que era de igreja, eu cheguei a ler um livrinho desses de igreja, de alguém

que tinha e me emprestou, porque eu gosto de ler, eu leio tudo e acho que foi

de uma pessoa da igreja que me emprestou e tinha as excelências que são as

rezas antigas da igreja, que não é “Salve-Rainha”, nem “Ave-Maria”, embora

elas cantem também, mas são um lamento pela pessoa que está ali morta. São

lamentos, até o tom de voz é lamentoso, emociona a pessoa, eu só li este livri-

nho e vi, nessa época, eu vi com 10 anos, eu vi e não gostei de ficar e nem fiquei,

também era uma morte de uma pessoa rica, de um determinado local, uma

pessoa de posses, tinha aquela cumidoria, matava galo, matava pato, matava

porco e eu fui mais pela cumiduria, porque eu sou louca por galinha caipira...

Dona Erlene nos apresenta um aspecto novo, sua curiosidade nos informa que as pessoas da comunidade têm no ritual uma forma corriqueira de realizar um velório, e enuncia dois aspectos: primeiro, o fato de a família pedir os lamentos, revelando o costume local e a devoção no fazer; segundo, que a prática não tem distinção de pos-ses, é um costume local. O poder aquisitivo da pessoa talvez seja ressaltado durante o velório, já que esse é feito seguindo os costumes do interior, com muita fartura, o que requer muita comida e bebida. Salienta ainda que o ritual não se constitui apenas pelos lamentos das incelências, durante o velório são recitadas orações tradicionais, como “Salve-Rainha”, rezada ao final de cada terço, orações, ofícios, rezas de devoção, benditos e incelências.

Com abundância de alimentos, o velório se constitui em espaço de encontros e orações. Nesse sentido, convém destacar os vários momentos dessa cerimônia, quando algumas pessoas entram, se solidarizam com a dor da família; outras rezam, outras comem, outras conversam na porta da casa e outras bebem. São várias as mo-tivações que garantem a presença dos membros da comunidade em um velório.

Perguntamos se, quando chegou ao velório, as cantadeiras já estavam no local. Nossa entrevistada prontamente respondeu:

Estavam. Quando eu cheguei lá no local, porque eu fui até no carro, que foi dei-

xar o caixão dessa senhora, eu cheguei era mais ou menos meio-dia, porque o

almoço ia sair lá pra duas horas e eu não esperei pelo almoço, eu ainda vi mui-

ta galinha, elas cortando tudo, mas eu não esperei. Quando elas começam a can-

tar é o dia inteiro, se todo mundo for embora, elas ficam; se não ficar ninguém na

noite no velório, elas têm a obrigação de ficar, todo mundo pode sair do velório,

menos elas, elas fincam em... É a sentinela chamada, quem fazia mais eram elas.

Quando o corpo, já preparado, chegou a casa da família – o que indica que a senhora não morreu em casa –, os preparativos para o velório já estavam arranjados. E as

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cantadeiras iniciaram o lamento na presença do defunto. A notícia já era conheci-da na comunidade e, por se tratar de pessoa de posses, muita comida estava sendo preparada para receber os que viessem, por vezes parentes de outras localidades, os amigos e os vizinhos.

Decerto houve dificuldade para uma criança de 10 anos chegar a um velório no mesmo carro em que era conduzido o defunto. Daí, as lamúrias, o estranhamento, o medo e a tristeza daquela situação provavelmente causaram-lhe o desejo de não permanecer na cerimônia fúnebre. Dona Erlene diz que a reza começa quando o cor-po chega e só termina quando o corpo sai a caminho da sepultura, e que se canta o dia inteiro, todo o tempo, durante a sentinela. E mais: junto ao corpo do defunto as carpideiras devem estar continuamente presentes, durante a oração, como se fosse uma obrigação.

Para a comunidade, a prática e as crenças de uma última homenagem configu-ram uma situação de necessidade do fazer, entendido como algo que deve ser feito e, nesse caso, a obrigação é vista como algo importante, que faz parte da devoção, da fé da comunidade e da relação com o morto, vista ainda como um fazer necessário e sem constrangimentos, diferentemente do sentido lato da palavra obrigar. Assim, a obrigação se liga aos aspectos devocionais da religiosidade popular. A função está em acompanhar, o que remete ao percurso do velório. Segundo Câmara Cascudo, uma “vigília guardando o defunto até a hora do sepultamento. No norte se diz ‘fazer quarto ao defunto’, e não velório. Em algumas regiões, essa vigília é também chama-da de sentinela, significando um ato de assistência ao morto”33, conhecida por várias denominações: quarto, guarda, vigília, sentinela ou velório.

Um velório, no interior de Pernambuco, Alagoas e Ceará. Na Paraíba e Rio

Grande do Norte e também no Ceará onde ainda denominam guarda; o mes-

mo que em São Paulo, onde é conhecido por guardamento. Durante a sentinela,

sempre a noite, cantam as excelências, incelências.34

Ao continuar a falar sobre as carpideiras, dona Erlene afirma que:

Dona Erlene: [...] não eram padres, porque já me disseram que, agora, tem carpidei-

ras padres, que elas... A minha irmã foi pra Brasília e eu estava conversando com

ela ontem e ela disse:

Irmã de Dona Erlene: – Sim, eu sei o que é carpideira, eu digo o que é, [...] umas mu-

lheres em Brasília, que o pessoal pede nas agências de emprego, as carpideiras, elas

vão pra lá porque não tem ninguém que chore pelo defunto, a família não quer

chorar, aí as carpideiras vão, [...].

Dona Erlene: – Mas elas não vão rezar? Ela disse:

Irmã de Dona Erlene: – Não, elas rezam, mas elas choram [...] é contratado lá em

Brasília pra chorar por aquele morto, porque não tem as pessoas, não querem

Page 73: Em cada conta um lamento

chorar, a família não quer ir, mas vão receber o pessoal conhecido em determi-

nado local do velório e essas carpideiras vão.

Dona Erlene: Eu disse: – [...] pois as carpideiras que eu conheço não é assim não,

minha filha, elas cantavam incelências, [...] A minha irmã não gostava de in-

terior, ela disse:

Irmã de Dona Erlene: – Eu só conheci esse tipo de carpideira em Brasília, aí de-

pois eu liguei pra minha tia, aí ela disse:

Tia: – É! Eu também sabia porque o pessoal da região tão acostumado com ve-

lório... Tão acostumado com velório...

Irmã de Dona Erlene: Lá ela disse que eles até aprendia a cantar também ela...

Vamos dizer, acho que ela não sabia as palavras, o refrão, porque tem uma coi-

sa que repete aí, ela disse que aprendia, pois cante aí, titia, aí ela disse:

Tia: – Ora! eu não sei não, tô tão... não lembro, mais é coisa de idade, [...] eu lem-

brava quando ela falou pra mim que no Carnaubal têm pessoas que cantam exce-

lências, agora, eu não sei se é só em termo de quem pode pagar pra elas hoje, [...]!

Dona Erlene: Se é de todos ou se é só das pessoas que elas mais gostam também,

elas são as pessoas religiosas do local, são as chamadas beatas, que tomam o

lugar do padre.35

Embora interrompida por algumas crianças, que passaram correndo na nossa frente, dona Erlene continuou relatando sua conversa com a irmã. Mais uma vez, ela buscou informações sobre as carpideiras com a tia, com um amigo de um antigo bairro da cidade, e com as amigas da irmã. Dessa forma, nos apresentou uma série de experiências transmitidas com segurança, sobre outro tipo de prática, de mulheres que são pagas para chorar nos velórios, quando a família não deseja chorar ou acom-panhar o morto. Aqui está demonstrada uma relação de distanciamento da morte, do morto, que evidencia uma (re)significação das práticas de “bem morrer”.

Dona Erlene volta a falar do velório da sogra de sua tia:

Como era o velório de uma pessoa de posses, [...], era a sogra dessa minha tia,

tinha muita gente, as pessoas do povoado [...] vão pra ajudar, ela não tinha

mais o marido, morava ali, mas o filho morava perto, aí foram pra matar as

galinhas, para ajudar tudo, aí eu acho que as carpideiras que estavam lá, as

senhoras gostavam dela, ela era uma pessoa querida naquele local e ficaram e

iam ficar até a hora do enterro, cantando as excelências pra ela, mas não ouvi

falar de dinheiro não, não era pago, ela era uma pessoa querida e uma pessoa

de posses, mas a minha tia disse que não tinha isso não, era pobre ou rico elas

iam, elas iam cantar, elas iam ficar lá, eu digo é... Você num vai embora, mas elas

ficam porque era a última homenagem, que elas estão prestando aquela pessoa,

ou que goste ou que não goste elas ficam lá porque não vão ter mais oportunida-

de de fazer mais nada por aquela pessoa, eu acho que... foi a ideia que me passou.

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A narrativa de dona Erlene contribui para reafirmar que a presença das canta-deiras ocorre como uma forma de se prestar uma última homenagem ao morto, e que naquele velório em particular tratava-se de uma pessoa de posses, que morava sozinha e era fiel seguidora dos preceitos religiosos da igreja católica, muito querida e conhecida na comunidade. O fato de ser bem quista resultou em um velório com a presença de várias pessoas, por conseguinte, houve a necessidade de se preparar uma grande quantidade de alimentos. Notamos que todos ajudaram e participaram, rezando ou preparando as comidas, o café, presenciando a cerimônia fúnebre. Na sabedoria popular, comparecer ao velório do outro, não o deixando só, significa não somente prestar uma última homenagem a pessoa, mas “garantir” uma “boa morte”, preparar o caminho para o próprio velório.

Nossa entrevistada salienta que não havia pagamento para as cantadeiras e que a presença de muitas pessoas ocorria pelo fato de a defunta ser uma pessoa querida e conhecida. Disse ainda ter ido as pequenas comunidades e velórios:

Eu ia [...] nos velórios, eu assistia porque a minha avó era chamada, ela não era

parteira, mas ela era chamada pra ajudar porque era de idade, as parteiras, eu

ia por curiosidade, elas iam e me tiravam do quarto a tapa, porque eu queria

olhar, porque eu era pequena, [...] escutava o grito daquelas mulheres tendo a

criança, lá sem médico, sem nada, eu ia, eu gosto do interior, já vi que quan-

do eu me aposentar eu vou morar em qualquer interiorzinno mais perto que

eu possa ir para cidade e voltar, mas eu não gosto muito aqui da cidade, mas

só por curiosidade mesmo, e as carpideiras foi porque... não me traumatizou,

mas me deixou bastante curiosa, porque eu queria saber porque elas estavam

cantando ali e porque elas não podiam parar porque ia ter o almoço, que elas

parassem porque ia ter o almoço e depois a noite elas começassem a cantar,

mas disseram: – não, elas não podem parar porque é a homenagem que elas

estão fazendo pra dona aqui que morreu e você não pode mandar elas para-

rem, – pois então eu vou me embora, elas não vão parar; aí eu fui embora, não

fiquei pra almoço para nada, eu acho que eu gostava da pessoa que morreu e

eu ficava emocionada com aquilo, com aquelas vozinhas de beata, aí depois

foi que eu fui ter curiosidade, mas titia, porque... não porque elas gostam e

tem que tá cantando lá, num era porque ela tinha posse, não porque era rica,

não é pobre, é rico. Quem sabe é como uma missão que vai quando uma pessoa

morrer e vai como ela disse, tá acabando, porque eles morreram, era uma famí-

lia, o pai também participava, a família morreu, as pessoas novas que ficaram,

embora soubessem, a titia acha que elas devem ter ensinado pra alguém tem

vergonha porque, agora, no interior, já entrou a modernidade, não ia nem car-

ro lá na época que eu ia, agora entra carro, a gente andava pela beira da praia, e

elas não querem, não querem, não quiseram continuar; e lá no Carnaubal são

pessoas idosas que ainda rezam as excelências, cantam as excelências que elas

não sabem o nome carpideiras.

Page 75: Em cada conta um lamento

Em meio aos relatos sobre o velório que presenciara, dona Erlene contou outras experiências, de suas caminhadas com sua avó e a curiosidade em conhecer o ofício, vivências de comunidades, percorridas em situações de nascimento, de morte; sua avó, por ser uma senhora de idade, era chamada a acompanhar em casos de doença, nascimento, morte, embora não fosse parteira, mas era chamada por ser mais velha, atitude que mostrava um certo respeito em relação a sabedoria e experiência dos mais velhos de uma comunidade.

Quando criança, dona Erlene era muito curiosa, se inquietava com as “cantorias e lamúrias” das carpideiras, que não paravam de cantar e rezar para a alma do defunto. Repreendida pelos presentes ao velório, foi embora porque não conseguia ouvir, talvez por incitar o choro e provocar mais tristeza. Os demais participantes do velório conti-nuaram os preparativos e entenderam que as cantadeiras não podiam parar de cantar.

Segundo Câmara Cascudo, uma vez cantada, a incelência deve ser terminada, caso contrário, acarretaria pesares para os presentes, para o defunto e para as can-tadeiras. Na entrevista que realizamos com dona Erlene logo após a exibição do documentário Benzedeiras de Minas36, ela fez referência durante a entrevista:

Elas são... não é só em Minas, em qualquer lugar do Brasil tem as semelhanças

em todos os locais, acontece aqui em Parnaíba, aqui nos interiores de Parnaí-

ba, todas as benzedeiras, as curandeiras e as pessoas que rezam, como a gente

chama na cidade as pessoas que rezam em crianças com quebranto, essas coi-

sas elas têm uma... uma... não sei explicar, elas têm um limite de dizer, agora,

não é a reza, agora, você leva a criança ou a pessoa no médico; é inexplicável

esse limite que elas têm, agora de passar porque não tem quem eu passe as pes-

soas não querem mais, as pessoas acham que quem estuda, quem tá na escola

embora, eu more no interior não pode ficar com uma tradição de ter rezadeira

ou uma benzedeira, porque ela já acha que é uma coisa, uma coisa de pessoas

que não foram pra escola, é uma cultura que elas acham que não é cultura, as

pessoas mais novas, eu sei benzer pra quebranto, mas eu comecei a benzer pra

quebranto, eu aprendi de curiosa, eu aprendi com uma senhora, gosto muito

de criança, sempre gostei de criança; aí eu via aquelas criancinhas molinha,

oh! deixa eu, oh! alguém me ajude a fazer alguma coisa pra criança que tá com

quebranto, aí eu andei na família benzendo pra quebranto na família; aí eu

chego um dia da escola trabalhando de manhã e de tarde, tinham três senho-

ras com três crianças lá em casa aí, a mamãe: ah, minha filha – porque eu ainda

morro com a mamãe –, aí eu: – mamãe, o que é esse pessoal aí? E ela: – Graças

a Deus que tu chegou, Erlene, elas estão aí pra tu rezar. E eu: – Meu Deus, ma-

mãe, eu não quero isso pra mim, não quero isso, não quero isso pra minha

vida, eu sou é professora, mas benza, você não aprendeu? Você não benzeu

fulano e foi bem? É porque vai da fé daquela pessoa, não é de mim, porque são

palavras muitas vezes repetitivas, porque a gente tem [...]

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Nossa entrevistada se identifica com o documentário e nota a recorrência do sa-ber tradicional de rezas e curas, sempre referenciando uma tradição presente no Bra-sil como um todo e de “fácil” acesso, uma vez que na maioria dos lugares se conhece uma rezadeira. Assim como no documentário, percebemos que as rezadeiras têm um limite em suas rezas37, como lidar com as doenças, tudo isso deixa claro que nem to-das as doenças podem ser curadas somente com a oração, com reza, mas através dos ensinamentos da medicina.

O documentário parece ter mudado a sua percepção em relação as rezas, visto que, depois de muito relatar, dona Erlene passa a refletir, a reconhecer o ofício de re-zar de maneira diferente. Para ela, não significa um costume de quem “não foi para a escola”, pois mostra que tal prática perpassa essas sensações, a ideia de acreditar e ter fé; no processo da cura, a rezadeira representa apenas um agente, um elo entre aquele que realmente cura. Uma visão que vai além do fato de ser rezadeira, um ponto im-portante para entender sua perspectiva de mundo. No entanto, ela não se reconhece no ofício, porque é se sente professora.

O conflito dessa senhora descortina o seu estranhamento inicial. O fato de não querer ser identificada como rezadeira nos permite entendê-la, uma vez que confia seu “segredo”. Sem qualquer questionamento, ela assumiu que conhece e reza para curar crianças, o que não minimiza a preocupação que demonstrou com minhas perguntas sobre seu ofício. O receio não era que fosse descoberta, mas falar sobre o assunto, talvez por sentir-se marginalizada.

Ao relatar que a tradição não constitui um saber de quem não estudou, entra em conflito com seu papel social, porquanto se vê como professora, alguém que detém um saber que, para outros do seu meio social, não é valorizado, por ser um ofício tradicional. Talvez, dona Erlene tenha sido discriminada pelo ofício de rezadeira, daí não desejava e não se reconhecia como tal. Como ela mesma diz: “não deseja essa vida para ninguém”. Talvez isso explique a sua relação conflituosa com a igreja cató-lica enquanto instituição.

Seu interesse em rezar teria surgido da vontade de ajudar crianças, da curiosidade em saber sobre o ofício. Dona Erlene pode ser considerada uma rezadeira incompleta, porque reza contra poucos males, apenas para mau-olhado, quebranto, “sol da cabeça”:

Eu benzia com um terço, com o terço ou com folhinhas de uma planta chama-

da aqui, na nossa região, de vassorinha. Conhece a vassourinha? Com a vas-

sourinha, caso em adulto é que a gente reza com folha de pião roxo, mas é... eu

não gosto, eu faço isso quando a pessoa chega e pede, eu não vou dizer que não

faço, mas eu acabei lá em casa com isso. Olha, mamãe, eu não quero, mas vou

rezar, rezei no outro dia também durante três dias, tem benzedeiras que vão até

nove, eu disse: deixe com três que tá bom. Aí eu pergunto para mãe: – [...] bom,

você já sentiu a criança melhor? – Já. Então está bom! Aí eu falei para mamãe,

e de tanto eu falar “mamãe, eu não quero essa vida para mim”, porque a reza a

gente tem uma tradição de ser a tarde, de não ser no sol quente, de manhã cedo

Page 77: Em cada conta um lamento

ou tardinha [...] eu trabalhava de manhã e de tarde; um ano que eu trabalhei

a noite foi que mais me deixaram em paz, porque eu chegava só pra tomar

banho, trocar de roupa e voltar pra escola. Depois voltei a trabalhar manhã e

tarde, aí voltava, mas a mamãe sempre diz: chega alguém, cadê a Erlene? Eu

queria que ela rezasse em fulano... – Mas ela não gosta não, se quiser vir dizer

para pessoa vir falar com ela, mas ela não gosta. Eu não sou indelicada com a

pessoa que chega, eu rezo e tudo, aí digo, eu tô ocupada ou alguma coisa, você

venha tal hora novamente. Mas [...] depois eu digo: eu não gosto, eu gosto é de

criança, não gosto de ver o sofrimento de criança. Eu aprendi foi pela curiosi-

dade, mas eu não gosto muito não.

Dona Erlene é apreensiva em relação ao ofício, não se reconhece como pratican-te; a reza parece lhe exigir muito tempo e muita atenção. Às pessoas que chegam pedindo-lhe oração, não recusa, todavia, não se sente bem em fazê-lo, talvez para não ser alvo de comentários ou para não se envolver com outras pessoas, visto que as casas de rezadeiras nas pequenas comunidades costumam estar sempre repletas de pedidos de orações. Dona Erlene aprendeu a rezar com uma mestre de reza, mas en-fatiza que é professora, e não rezadeira:

Eu sou professora, não sou benzedeira, eu digo assim para elas [pessoas]: – quem

me ensinou foi uma... uma pessoa... uma espírita, ela era benzedeira antiga mes-

mo, velhinha, e ela benzia e eu pedi para ela me ensinar, mas ela benzia tudo, só

que ela não deu tempo, ela morreu logo, [...] não deu tempo de me ensinar mais

coisas, para cobreiro, essas coisas, que ela sabia, ela não sabia, mas essas coisas

de cobreiro, quebranto, moleiro, batuque... fui eu que fui no hospital naquele

depoimento que falei, que o pai não queria aceitar que a criança estava com que-

branto, aí levou para o hospital e a criança piorando e ela é minha amiga e pediu:

– Oh Erlene, vai no hospital que em ti, tu visitando, ele não vai pensar que é uma

rezadeira, eu levando uma senhora de mais idade ele vai pensar, se bem que não

tá público que tu é rezadeira e meu marido não vai pensar. Quando deu três dias,

a criança voltou, depois que a criança voltou em casa que ela contou que foi a Er-

lene que rezou, ele até riu, “mas Erlene, tu te prestar um papel desse [...]”! Não é

porque eu não gosto, não é isso que eu quero, eu aprendi porque eu sou curiosa,

mas não é isso que eu quero, essa vida de benzedeira, porque a gente não tem

paz, se deixar, é a manhã de 7 as 8h, é de 16 as 18h. Olha, eu tenho uma menina,

quando a minha menina era pequena, aí é o contrário, a gente benze e não con-

fia quando é a gente, eu saía atrás de rezador, sempre eu saía atrás de benzedores

homens. Tinha um velhinho lá perto de casa, e ele: “eu soube que você também

reza”. Aí você traz sua filha pra mim, pois é, santo de casa não faz milagre; eu

prefiro que você benza do que eu, ele disse assim: “– Não é não, é pra ninguém ir

pra sua casa”, ela já sabia que eu não gostava e eu aprendi foi por curiosidade.38

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Não obstante o apoio da mãe e da família, dona Erlene não se reconhece como rezadeira. Todavia, a opinião de pessoas de sua convivência parece pesar na sua de-cisão, uma vez que o marido de sua amiga comenta que sorriu do fato de ela rezar para a criança no hospital e questionar sobre ela “se prestar a um papel desses”. Sua escolha parece estar além da correria da vida de uma rezadeira, tendo em vista que a procura é intensa. O preconceito em torno desse saber popular e o fato de ser profes-sora de história divergem das suas opiniões e atitudes.

Convém enfatizar que dona Erlene teve mestre de reza e, apenas por “curiosida-de”, pediu que uma senhora “espírita” lhe ensinasse o ofício de rezar. A curiosidade parece ter levado a entrevistada a muitos espaços e experiências diversas, talvez o medo a que se referia inicialmente esteja relacionado ao espiritismo, mas a falta de confiança entre seus conhecidos e a sociedade parece ter influenciado sobremaneira as suas atitudes. Em vista disso, prefere manter seu conhecimento sobre rezas em sigilo, primando por seu lugar de professora, muito embora tenha respeito pela sabedoria tradicional, expresso quando fala sobre rezas, parteiras, carpideiras e brincadeiras de roda.

Nesse contexto, a teia de lembranças de dona Erlene remete a aspectos da de-voção relacionados as práticas de encomendação da alma do defunto, pois em um velório, além de se celebrar o momento da passagem, também constitui uma reunião familiar, um momento de encontro entre parentes, amigos e conhecidos e por vezes até desconhecidos. A comida farta e as orações também compõem os elementos para rezar e se reencontrar.

Assim, o fato de dona Erlene ter se permitido falar, facilitado que a ouvisse, de-monstra a riqueza de sua experiência para esta pesquisa; são vidas que se entrecru-zam para contar novas histórias. Após esse encontro, conhecemos a segunda entre-vistada, que se reconhece como rezadeira, mas, da mesma forma que dona Erlene, incomoda-se com os olhares e as opiniões por vezes depreciativas sobre seu ofício.

2. SENHORA MARIA JOSÉ SILVA DOS REIS (DONA TETEIA)

Após a entrevista com dona Erlene, e depois de conversar com minha orientadora, descobrimos uma rezadeira que morava no morro da Mariana, na Ilha Grande de Santa Isabel, em Parnaíba-PI.

Chegamos ao morro da Mariana sem saber ao certo onde morava a rezadeira. Ao perguntar para alguns moradores, nos deparamos com respostas e olhares curiosos e desconfiados daquelas pessoas que apenas indicavam o caminho a seguir em di-reção a casa da tal senhora; nenhuma informação precisa. Um pouco perdidas, pa-ramos em um mercadinho, onde a proprietária nos informou o lugar da morada da rezadeira e fez um pedido curioso: que não disséssemos a rezadeira que ela tinha ensinado como chegar a sua casa, que fingíssemos que a descobrimos sozinhas. O receio daquela senhora causou certo estranhamento, pois no dia anterior, havíamos

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conhecido uma rezadeira que se recusou a conversar conosco, ficara muito zangada com a nossa presença, dispensando-nos. Temendo algo semelhante, nos assustamos com aquela atitude da proprietária do mercado, mas continuamos em busca da casa da rezadeira, a poucos metros do mercadinho. Dessa vez, Ariane dos Santos Lima, colega no trabalho de grupo e de campo, nos acompanhou durante a entrevista.

Depois de caminharmos por uma rua pavimentada e com poucas árvores, sob um sol forte de quase 11horas da manhã, chegamos a frente de uma casinha no alto de um morro, com o entorno marcado por cercas retorcidas e uma fechadura im-provisada no portão. Batemos palmas e uma mulher de cabelos longos nos recebeu. Perguntamos se era rezadeira e, sem nos responder, foi para dentro de casa e chamou por Teteia. Voltou e nos ofereceu duas cadeiras enquanto esperássemos que dona Teteia chegasse. De um pequeno alpendre dona Teteia surgiu com um olhar simpáti-co e perguntou o que queríamos. Respondemos que gostaríamos de conversar sobre o seu ofício de rezadeira. Um pouco desconfiada, sentou-se e iniciamos a conversa.

Nesse mister, contamos com a ajuda de outra pesquisadora, e aos poucos os olha-res foram se acalmando. Então conversamos, rimos e nos emocionamos ao ouvir a tal senhora cantar um pequeno trecho de uma incelência. Nosso encontro durou pouco mais de 25 minutos e contou com a presença de dois dos filhos de dona Teteia que, sem interferir, apenas observavam, tão silenciosos que quase não notamos suas presença, provavelmente para não interferir na fala de sua mãe; talvez porque já es-tivessem acostumados com a presença de pessoas a procura por rezas bem como de curiosos sobre esta prática, ou ainda pelo respeito e postura altiva da mãe.

“Meu nome é Maria José Silva dos Reis, [...] atendo por Teteia”39. Apresentou-se indicando logo como gostaria de ser chamada – Teteia, como é conhecida na Ilha Grande de Santa Isabel, Morro da Mariana. Relatou que antes morava no município de Araioses40, no Maranhão.

Dona Teteia foi a primeira entrevistada que cantou trechos de incelências e que se emocionou ao lembrar, ao cantar. Rezadeira completa41, reza contra muitos males que afligem o corpo, aprendeu a rezar com seu pai e alargou os conhecimentos com uma vizinha, também rezadeira, revelando sua inclinação para aprender e “pegar”, facilmente, as rezas “de cabeça”.

A entrevista começou com perguntas sobre seu ofício de rezadeira, que começou muito cedo:

Rezo muito, muitas crianças... o que eu vejo que eu posso dar jeito, eu digo; o que

eu não posso, eu despacho... Porque a gente só bota o pé onde a mão alcança, eu

não gosto de rezar numa criança e aí vai ficar bom... Não sei, você traga de tarde;

de tarde, como é que tá? Tá do mesmo jeito. Pois não venha mais porque eu não

gosto de fazer ninguém de besta, porque eu não sou besta e não gosto que nin-

guém me faça de besta, não gosto que ninguém me engane e também não gosto

de enganar ninguém, os poucos que eu tenho dito não... rezo, porque eu não

dou jeito e acho que doutor também não dá mais. Outro dia, eu sei da notícia,

morreu, e os que eu rezo e digo assim: vai ficar bom! Eu digo: vai! E fica, rezo três

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vezes e pronto, eu rezo de quebranto, eu rezo de dor de dente; eu acho que foi

um dom que Deus me deu. Eu não sei, viu, diz os crentes que é o diabo é a ten-

tação do diabo, mas eu acredito que quem fala em nome de Deus o diabo não

atenta [...] Levanto arca, levanto espinhela caída, tiro o sol, rezo de dor de cabeça

também e outras coisas. Às vezes, vem gente perturbada, eu rezo.42

Dor de dente, “levantar arca”43, “tirar sol da cabeça”44, quebranto45, dor de ca-beça, cobreiro46, enfim, contra vários males dona Teteia já rezou e já curou muitas crianças e adultos. De início, ela apresentou uma variedade de rezas que conhece, sua crença no poder da reza, a relação com outras crenças religiosas e o aprendizado como um dom; elementos que sugerem a sua espontaneidade e, talvez, por ser muito procurada, um discurso direto com informações bem definidas, o que nos leva a crer que pode ter conversado com outros pesquisadores ou mesmo curiosos, ou, quem sabe, ter sido entrevistada outras vezes.

Compreende os limites de sua reza, mas avalia que as poucas rezas que recusou nem mesmo os médicos puderam curar. Dessa forma, entende sua reza em grau de igualdade com o saber médico, ou seja, compreende que são formas de curar realizadas de maneiras diferentes, mas não deixam de ser formas de curar.

Quando diz que não gosta de ser enganada e que não engana ninguém, indica que, talvez, tenha sido alvo de comentários, pois, muitas vezes as rezadeiras, se en-contram em uma linha tênue entre o que é possível e a charlatanice, entre o que é benéfico e o que não é, entre a cura e a feitiçaria. A palavra enganar põe em dúvida o grau do poder de cura das suas rezas.

Essa senhora pode ter sido alvo de comentários dos “crentes”, como se refere, des-se modo, demonstra o conflito entre o saber tradicional e outras crenças religiosas. Diante de tais comentários, dona Teteia parece não se incomodar e reza a qualquer hora, embora ressalte que algumas rezas necessitem de um horário em que o sol não esteja muito quente. Rezar depende do mal, ou seja, da enfermidade, da hora e do elemento de cura, além das orações e outros elementos do ritual, como ervas, tipo de vassourinha, pião roxo47, dentre outros:

Eu tenho visto muitos que rezam, que, ah, eu não gosto de rezar porque pega

em mim, me ofende, mas eu não tenho disso não; eu já tenho rezado em gente

que pipoca, de zipa [...], é a vremeia que chama, que ela dá de quatoze espécie,

que pipoca minha banda todinha do lado que eu rezo, pipoca, mas quando

eu rezo sem fumar, eu rezando com um cigarrim no dedo, ela não me ofende,

nem que eu bote no bolso – quando eu não quero fumar, eu boto o fumo no

bolso num... num, eu tô cansada de ver, eu vou deixar de rezar porque eu vou

deixar de fumar porque, eu ando com probrema [...] e aí... o doutor disse que eu

tenho que deixar e aí a vida da gente é melhor [...].48

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Muitas rezadeiras acreditam que o mal que se cura de uma pessoa pode ser trans-mitido a elas, como uma troca, e, para se resguardar desses males, algumas possuem rezas de devoção ou se benzem com amuletos. Dona Teteia assinala o uso do fumo, além da “vassourinha” na hora de rezar, livrar-se também de ofensas e contrair doen-ça. Todavia, isso não a impossibilita de continuar a rezar. Mas, deseja parar ou deixar de rezar, sobretudo pelo cansaço adquirido ao longo de muitos anos de reza; o fumo que “afasta os males” durante a reza está afetando sua saúde, mas suas expressões negam a vontade de parar de rezar.

As ervas funcionam como elementos que auxiliam na cura:

Do quebranto é o pião ou a vassourinha, um dos dois, fogo selvagem é o óleo

da mamona, é o olho da mamona... Agora mesmo nessa semana, sábado, eu

rezei em dois aqui; um, o rapaz bem aí, e em um moço já de idade, bem ali. Re-

zei [pois], ele não durmia a noite; aí eu rezei, e tá aí, todos os dois tão bom, não

foi pra frente [o mal, a insônia], e ficaram bom todos os dois; e de quebranto,

depois que eu cheguei aqui, se fosse pra mim ganhar dinheiro, a troco disso,

eu morava lá em cima num prédio, porque... tem muito, muito, que tem dia

que fica na fila. Quando eu cheguei aqui, assim que eu cheguei nesse lugar, eu

dizia assim: isso aí não é mais quebrante não, isso aí é servergonheza dessas

muié... Mas eu rezava e ficava bom [...].49

A mamona,50 diferente do pinhão e da vassourinha, a qual dona Teteia usa para rezar quebranto, serve na medicina popular para rezas contra fogo selvagem,51 o que evidencia que na tradição existem ervas diferentes para determinadas doenças. Dona Teteia aborda acerca do pagamento. Relata que assim que chegou na Ilha Grande de Santa Isabel foi bastante procurada pelas pessoas da comunidade e, até mesmo, de outros lugares e cidades, como relata em outro momento da entrevista, fama que valoriza e legitima seu lugar social de rezadeira. Ser requisitada por muitas pessoas demonstra o poder da reza de dessa senhora, bem como a crença das pessoas no saber tradicional. Como se tratavam de muitos atendimentos, dona Teteia brinca que pode-ria “morar lá em cima”, apontando para o lado da rua. Porém, quando perguntamos se recebe dinheiro pelo seu ofício, é enfática:

Não, não, eles procuram, eu digo, olha, eu não comprei essa reza, num [?]. Num

comprei, aprendi, Deus me deu essa... Eu não cobro, se a pessoa vê que eu me-

reço num [?]. O que fizer comigo eu aceito, só não aceito pancada... O que fizer

comigo eu aceito, não vou dizer porque aqui tem gente que cobra, tem uns por

aí que cobram e esses que cobram os que vão pra lá, que rezam, eles pagam, e

ainda vêm aqui e eu é quem curo.52

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O pagamento é entendido como um merecimento pelo ofício e um agradecimen-to pela cura almejada, relação que não se vincula a um acordo monetário, dinheiro, comida, roupa, etc. O que definirá o agrado será a valorização do “paciente” pela cura alcançada. Dona Teteia relata que alguns rezadores cobram, mas essa prática é con-denada, uma vez que esse mister é considerado um dom concedido por Deus. Dona Teteia responde que o fato de ter sido agraciada com o dom e não tê-lo comprado não justifica uma possível cobrança, reitera que aqueles que cobram não conseguem curar: “Os que vão pra lá que rezam, eles pagam e ainda vêm aqui e eu é quem curo”.

O dom é revelado pela fácil memorização das orações e a sua eficácia. Seu aprendizado perpassa dois momentos:

Foi vendo uma pessoa rezar... Eu vendo uma pessoa rezar, aí eu escutei tudo,

aí eu acho que é um dom mesmo, porque tem as vezes, a gente vai aprender

alguma coisa, aí precisa quatro, cinco vez pra ir aprendendo, né, e eu aprendi

[...] Aí eu de dor de dente, arca, isso aí, foi meu pai quem me ensinou, ele tava

perto de morrer e ninguém nem sabia, aí ele disse assim: – Teteia, tu tá bom de

aprender a rezar, meno de dor de dente, tirar um sol na cabeça de uma pessoa;

quando casar, aí adoece um filho, aí em fé de andar por as casa alheia atrás,

correndo, tu sabe. Aí rezou de dor de dente, a arca caída, de tirar sol, deixa eu

ver, até de engasgo ele rezou, tudo numa hora só, e eu aprendi tudo [...].53

Com quinze anos de idade, dona Teteia começou a rezar. Até no leito de morte, seu pai lhe ensinou algumas orações, talvez temendo que o saber não lhe fosse re-passado. Surpreendeu-se com a atitude do pai, pois “ninguém nem sabia”. As rezas iriam auxiliá-la no dia a dia com os filhos. O benzimento constitui uma prática fren-te as vicissitudes da vida cotidiana, males que a reza abranda e cura através da fé. A senhora segue seu aprendizado com uma vizinha rezadeira que rezou em um de seus filhos. Talvez desconhecesse os males que afligia a criança, já que aprendeu poucas rezas com o pai ou então não confiava ainda na sua oração. O dom estava vinculado a sua capacidade de memorizar, apenas assistindo o ritual de cura. Tradição de benze-dura e rezas que são repassadas através da realização, da experiência do ver e repetir. Repetições que permitem a (re)criação de novas formas de rezar. Algumas rezadeiras como dona Erlene rezam com um terço, já dona Teteia reza com um ramo de erva e fumo, acreditando com isto “afastar o mal”. Quando o oficio é aprendido, a forma de fazer é adaptada por cada rezadeira.

Durante a entrevista com dona Teteia, indagamos a respeito das carpideiras e das excelências. Nisso, o tom de sua voz se arrasta um pouco para dizer enfática: “REZEI muito”, pois conhece as canções e o ritual como um elemento presente em sua vi-vência religiosa. E reitera: “Rezei muito em defuntos lá no Mago, [rezei] incelência, bendito, [...] !”54. Sua voz continua arrastada, com um prolongamento da frase junta-mente com sua expressão corporal. Dona Teteia se afasta um pouco para trás, como

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para se apoiar no encosto da cadeira. O Mago a que ela se refere é o povoado em que nas-ceu e viveu no Maranhão; seu arrastado na fala parece levá-la para o passado, no qual atualiza suas memórias e diz que não lembra muito bem: “Eu me lembro aqui, acolá”.

Pedimos que cante uma incelência, no entanto, ela conta uma história para depois atender ao pedido:

Um dia desse eu tava aí e digo, olha menino, quando eu morrer... Um dia mor-

reu uma velha bem aí, aí ela disse que quando ela, ela queria que Deus desse

um tino pra ela saber quando ela tivesse perto de morrer, ela ir se embora, pra

dela, pra rezarem com ela, lá pro Maranhão. Aí ela morreu bem aí, aqui não

tem, porque eu... Aí ela morreu sozinha mesmo, mais uma menina que tava

mais ela, aí eu fui lá ajudar ela a morrer, mas não morri mais ela não [risos]. Aí

botemo aquela vizinha dali, aí banhemo, aí botemo pra cá, aí ela parece que

tava assim com a carinha ruim, aí eu digo: você se enganou, você pediu, mas

não foi atindida, mas vou cantar uma cantiguinha pra você; aí eu lá, ela assim

e eu aqui.55

Dona Teteia inicia a entrevista falando de si mesma, como se desejasse um ve-lório acompanhado com as incelências. Diz que expôs seu desejo ao filho, mas logo muda de assunto e começa a falar de uma senhora que faleceu em uma casa quase em frente a sua. Era sua conhecida, e foi ajudar a “preparar o corpo”. A senhora temia morrer sem reza e desejava, segundo dona Teteia, ir para o Maranhão, onde nascera, e lá seria acompanhada com as incelências. Isso evidencia que a prática de velórios com esses lamentos não se fazia presente, ao menos, nas proximidades da casa de dona Teteia.

Ao ajudar a “preparar o corpo”, nossa entrevistada revela a “tristeza” no rosto da defunta, para ela, o motivo seria falta de reza, então a rezadeira conversa com a senhora dizendo que estava enganada e canta uma incelência. Dona Teteia conhece as canções, não se define como uma “puxadora de reza”, pois apenas acompanhava os lamentos. Dona Teteia canta:

Meu anjo da guarda

Vamos no céu

Visitar Nosso Senhor

Um anjinho vai contigo

Meu divino resplendor

aí vai até sete, até nove, aí

Quem for lá pro Juazeiro

leve um rosário na mão

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pra rezar um padim nosso

pro padre Ciço Romão

o padre Ciço Romão

é um padre consolador

no céu ele é um pastor...

na terra ele é um só Deus

no céu ele é um pastor ...

ai, ai.56

Com uma pausa, dona Teteia parece se lembrar de ter a falecida nos braços, e canta para não deixá-la sem reza ou sem ter seu desejo atendido. Canta com um tom lamentoso, baixo e arrastado, que se confunde com o vento constante e forte da Ilha. Quando termina de cantar, seus olhos se enchem de lágrimas e se fixam diretamente nos meus, que igualmente se cruzam em meio a lágrimas. O tom triste comove Teteia, Ariane e eu. Letras que clamam pelo Anjo da Guarda, pelos santos de devoção como pe. Cícero que, segundo a crença, auxiliam e acompanham no caminho ao céu.

Perguntamos como as cantadeiras se vestiam ou se vestem, na tentativa de com-parar os elementos descritos por dona Erlene, para quem as carpideiras se vestiam a caráter. Dona Teteia parece não compreender a pergunta e responde: “Não, não, do mermo jeito que vai é, é que vai para uma missa, não como quem vai...” Ela não entendeu o sentido da pergunta, que pode lhe parecer algo sem sentido, uma vez que para ela não existe uma forma de ir ou se vestir. Sua resposta nos indica que os rituais de morte não possuem formas fixas e que muitas vezes as senhoras vestidas de preto, com véu, terço e livrinhos na mão, não se revelam da mesma forma. Não há regra fixa para o ritual e, provavelmente em muitos casos, a imagem seja a já amplamente divulgada e cristalizada das carpideiras.

Quanto as repetições na canção, dona Teteia informa um número de sete a nove, assim como reafirma o tom choroso e lamentoso ao qual Erlene se refere:

São, são, rezam, pra lá é muito que rezava, perguntava aquele bando só que

tinha uns que não gostava porque quando as vezes tava ali, o pessoal tudo cal-

mo, né, aí quando começava gente um bora rezar, um bora rezar, não tinha

ninguém chorando e quando começava a rezar aquelas rezas, tem umas pe-

nosas mesmos, aí mulher caía, era mulher gritando, gritava as mulheres, e aí

pode rezar, o dono do defunto dizia pode rezar, pode rezar, quem caiu, caiu;

quem não caiu, não caiu.57

Não gostar das incelências está vinculado ao tom que provoca o choro e a

lembrança da despedida; as pessoas que cantam os lamentos são rezadeiras que conhecem o ofício. Dona Teteia diz que no Maranhão, “pra lá muito que rezava”, demonstrando que a prática das rezas em Parnaíba e até mesmo na Ilha Grande

Page 85: Em cada conta um lamento

de Santa Isabel, não se fazem tão presentes, embora existam pessoas que conhecem as canções.

O velório segue com rezas por pedidos dos “donos do morto”: “É os donos do de-funto”, dizia, gente não tem as pessoas que rezam não, um borá, era cantada, aí reza um terço, né, aí quando acaba, agora pode quem quiser rezar, gente, pode rezar, pode rezar e, pode rezar ”.58

A bença, mamãe, voz queira botar

os anjim te chama e não pode esperar

os anjos te chama e não pode esperar

eu tenho um rosário para eu rezar

mas Nossa Senhora quando eu lá chegar.59

A sentinela ou velório acerca do qual dona Teteia nos fala trata-se de um ambien-te aberto as orações, onde existem momentos de silêncio, de rezar o terço, e qualquer um dos presentes pode se manifestar e rezar particularmente ou começar uma ora-ção para “puxar”, que os outros acompanham. Das diversas incelências que dona Te-teia conhece, mas não recorda, para cantar, pergunto se ela conhece a “Maria valei--me”, e rapidamente me responde que não, que nunca cantou, mas já viu rezando e alerta para o fato de ser uma reza forte:

É forte e a pessoa até diz que rezando quando tá chovendo demais, se a pes-

soa rezar passa até seis mês sem chover é... é... é... porque as vezes a pessoa

morre fazendo careta, berrando, coisando, né, porque lá no Magô acontecia

as pessoas que morriam lambendo a, porque levantava falso e o pessoal jo-

gava praga e as vezes devia, né, porque se não devesse não fazia, [...] mas

tem gente que reza mermo... eu não sei... que nunca... essa aí eu não vou

dizer eu sei.

Dentre os benditos e incelências, percebemos que eles não são cantados exclu-sivamente no momento da morte, há benditos que servem para guiar os caminhos de peregrinações, para fazer chover, e há rezas fortes que são cantadas, dependendo da morte, das expressões do corpo que são analisadas pelas rezadeiras, o que indica que o corpo, mesmo morto, ainda desempenha um papel importante na condução do ritual. Dona Teteia não conhece ou prefere não cantar essa oração “forte” devido as “consequências” que a ação acarreta:

A importância de um determinado bendito dentro do credo religioso peni-

tente está fortemente associada a sua capacidade de engendrar sofrimento e

produzir um espaço de penitência. Para os benditos considerados como fortes,

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geralmente se exige certa preparação antes do canto, como uma sucessão de rezas

e gestuais e até mesmo um local ou circunstância específica, como velórios.60

Sobre essa oração em particular, Ewelter Rocha avalia que os benditos fúnebres como a “Maria valei-me” reúnem duas funções: de purificar a alma quando rezadas ou cantadas no momento do velório, e quando funcionam como purificadores do corpo, e servem para afastar os perigos e vicissitudes da vida.61 Os entrevistados de Rocha relatam o mesmo receio para cantar a oração, rezadeiras do interior do Ceará que a consideram uma reza muito forte e poderosa.

Maria, valei-me

Maria, valei-me, Maria, Valei-me (Bis)

Aos vossos devotos

Vinde, socorrei

Vosso amor se empenha/Ó Virgem da Penha/Penha onde mora

Na fonte vital (Bis)

Salve, oh! Mãe de Deus (Bis)

Rainha suprema/Sobre os anjos seus

Sois Mãe de concórdia/De misericórdia/Vida e doçura

Esperança sois (Bis)

Oh! Mãe do Senhor (Bis)/Excelsa Maria/Do trono de amor

Salve, ouvi os brados/Pois que os degredados/Da triste Eva filhos

Vimos suspirar

Vimos suspirar (Bis)

Gemendo de dor (Bis)/Chorando de mágoa/Pedindo a Deus favor,

Neste vale triste/Onde a pena existe/De lágrima cheia

De miséria e ais (Bis)

Ouvi eia pois (Bis)/Nossa advogada/Mostrai quantos ais

Olhos piedosos/Misericordiosos/A nós degredados

Terna mãe valei (Bis)

Depois de acabar (Bis)/O cruel desterro/Dignai-vos mostrar,

A Jesus infinito/Que é o fruto bendito/Desse feliz ventre

Oh! Mãe de Jesus (Bis)

Oh! Clemente, ouve-nos (Bis)/Ó pia, valei-nos/Oh! Doce, acudi-nos,

Oh! Virgem Maria/Que é Deus que nos cria/Tristes dor no peito

Por todos rogai (Bis)

Para que por nós (Bis)/As promessas suas/Mereçamos nós,

Assim suplicamos/Para que vejamos/Na eterna glória

Para sempre amém (Bis)

Humilde oferecemos (Bis)/A Vós, Virgem Senhora/E ao Vosso bento Filho,

Do céu e da terra/Rainha da Glória/Louvores vos damos

Aceitai, Senhora.62

Page 87: Em cada conta um lamento

Assim como dona Teteia se recusa a cantar “Maria valei-me” por ser uma reza forte, a oração acima trata-se de um levantamento feito por E. Rocha, que ora oração pode ser cantada, ora pode ser rezada, como expressa nossa entrevistada. Ela invoca Nossa Senhora para que auxilie nos momentos de aflição, que acuda no perdão dos pecados das dívidas que o defunto possa ter.

O corpo e os lamentos se entrecruzam na medida em que um depende do outro para a realização do ritual, pois, mesmo após a morte o corpo fala das necessidades e cabe ao “puxador” interpretá-las e realizar o rito necessário para uma “boa morte”.

3. SENHOR ANTÔNIO PEREIRA DA SILVA – SR “ANTÔNIO PEQUENO”

O encontro com sr. Antônio se confunde com a pesquisa, com as experiências de vida da minha família. Conheci o rezador em algumas conversas com meu pai (José Maria) sobre o velório do meu avó (Joaquim Luciano). Quando meu avô morreu, meu pai tinha entre 15 e 16 anos; imaginei que sr. Antônio já tivesse morrido ou estaria bem idoso. Para minha surpresa, descobri que era muito jovem quando acom-panhou o velório de meu avó, que naquela época tinha aproximadamente 30 anos.

Sr. Antônio nasceu e continua a viver em Alto Longá, de onde nunca saiu, onde constituiu família e fama como rezador na comunidade e na cidade. Morador do bairro Flor do Dia, divide a vizinhança com sobrinhos, netos, afilhados, comadres, compadres, amigos e conhecidos. Criado e educado pela mãe adotiva, agraciada com o dom da reza, aprendeu a rezar, batizar, pagar e ajudar a pagar promessas, a realizar peregrinações e auxiliar os moribundos no momento da morte.

Seu Antônio foi o nosso último entrevistado para esta investigação e, desde o nosso primeiro encontro, o temos visitado e a sua família com certa frequên-cia, sobretudo, por ocasiões de celebrações, como oração do terço, que realiza dia 20 de setembro; “pagamento” de um reisado, promessa de sua esposa (dezembro de 2011-janeiro 2012) e homenagem a São Gonçalo, dia 30 de junho de 2012.

Entre encontros e desencontros, marcamos a primeira entrevista, e acreditamos ter aumentado a curiosidade de ambas as partes. Chegamos a Alto Longá por volta das 11h da manhã do dia 23 de julho de 2010. Amparo Moura, membro do grupo de pesquisa Memória, Ensino e Patrimônio Cultural, nos esperava um pouco aflita, devido ao atraso do ônibus que faz linha Teresina-Alto Longá. Há muitos anos não visitava a cidade, desde que minha avó mudara-se para Teresina.

Antes do almoço, fomos até a casa do sr. Antônio, somente para confirmar a en-trevista. Amparo Moura, que é da cidade de Alto Longá, conhece o nosso entrevista-do de longas datas, e foi quem nos apresentou e viabilizou as entrevistas. No entan-to, não o encontramos da primeira vez. Após o almoço, quase duas horas da tarde, encontramos sr. Antônio bastante apreensivo e curioso para saber o queríamos, já que as notícias em torno de sua procura circulavam entre os conhecidos no entorno de sua morada. Apresentei-me falando sobre minha avó, uma velha conhecida dele,

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e dessa forma iniciamos a entrevista. Em seguida, ele nos levou a uma pequena e agradável casa onde mora, e me ofereceu um tamborete para eu sentar enquanto Amparo ajeitava-se na rede.

Inicialmente, parecia um pouco curioso e desconfiado. Acenou positivamente com a cabeça quando perguntei se poderia gravar a conversa. Ao longo da entrevis-ta, sr. Antônio respondeu as perguntas sempre com pequenas indagações, por vezes diretas, repletas de “sim”, “não” ou apenas expressões de confirmação. Percebemos que talvez não estivesse a vontade, provavelmente por não entender o sentido das in-dagações, embora as informações sobre as rezas já fossem do conhecimento de toda a comunidade onde mora, que podia não saber rezar, mas as conhecia, daí por que perguntar sobre as rezas pareceu algo incomum.

Como notaremos no decorrer do encontro, sr. Antônio nos surpreende com sua construção narrativa e evocações da memória. Quando inquirimos sobre rezas que ajudam a morrer, ele responde francamente:

Sr. Antônio: Pois é. É que quando as vezes a pessoa tá pra morrer, [...] a pessoa

vai exaltar, [...] exalta a pessoa.

Marluce: E como são essas exaltações? São músicas ou é reza de igreja mesmo?

Sr. Antonio: Não, é assim, diz assim, pelo nome da pessoa: Fulano te lembra do

nome de Jesus/ Jesus vai contigo e tu vai com Jesus/Jesus é meu e eu sou de

Jesus/Jesus, Jesus, Jesus Maria e José / de Jesus você é/Jesus, Jesus, Jesus de Na-

zaré. Aí chama três vezes fulano pelo nome e vai dizendo as palavras [...], aí a

pessoa vai delatando a morrer... Pois é, aí a gente reza Creio em Deus Pai, reza a

Salve-Rainha, reza alguma oração que for preciso rezar, a gente reza.

Amparo: Sr. Antônio, e se demorar a morrer, aí canta ou não, como é?

Sr. Antônio: Que demora a morrer?

Amparo: Não tem uns que demoram, né, dão trabalho...

Sr. Antônio: Demora, aí a gente... É que as vezes é reza que tem por devoção, [...]

Sr. Antônio responde como se a ação de exaltar fosse algo comum, como se a resposta para a pergunta fosse óbvia e conhecida pelas pessoas que no momento da morte exaltam para ajudar a morrer; o tom de voz parece de alguém acanhado, per-cebemos por sua resposta direta e “óbvia”. Quando indagamos como são essas exalta-ções, dá uma pausa, como se a única forma encontrada para dizer fosse demonstrar. Sr. Antônio não descreve o momento, e sim a oração de exaltação, a qual é rezada no último momento durante o velório, não só fala da oração, mas sobre o ritual, o número de vezes que é rezada e as orações que se seguem quando a morte é evidente.

A demora para morrer parece ser um questionamento confuso para ele, que se faz a mesma pergunta com um tom de dúvida e estranhamento, talvez por consi-derar a demora como algo inerente aos últimos momentos, demora que se justifica por não ter certeza da hora da morte. A postura dele diante da morte é de espera,

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oração e vigília, para que no momento derradeiro seja feita a exaltação. Explica que a demora pode se dar pela falta de reza ou oração desejada pelo moribundo, como uma reza de devoção.

Relata que começou a rezar quando jovem, não consegue precisar a idade, mas indica o início da prática por volta dos vinte anos, quando talvez tenha feito sua pri-meira reza sem a presença da mãe. Como era rezadeira, decerto buscasse mais a si do que ao seu filho, ações que nos informam que o menino Antônio viveu em meio a orações, visto que, para aprender, primeiro é preciso observar, porquanto o ensino se dá através da memorização e repetição dos gestos. Assim, as rezadeiras que se uti-lizam da oralidade para transmitir seu conhecimento o fazem para seus escolhidos, acreditam que, se contarem como se reza, elas perdem a força da intercessão. Nor-malmente transmitidas de geração a geração, a tradição das rezas de curas e outras manifestações ligadas a ritos particularmente domésticos é transmitida pela tradi-ção oral. No entendimento de Jan Vansina:

Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunica-

ção diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ances-

trais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição

oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido

verbalmente de uma geração para outra.63

Por meio da fala, o conhecimento das rezas é transmitido. Destacamos que a transmissão oral não ocorre pelo conhecimento “palavra por palavra”, mas pelo en-tendimento universal. É preciso compreender a função do costume transmitido e a função a ser assumida dentro de um contexto mais geral, para além da família. Segundo A. Hampaté Bá, “a tradição oral se baseia em uma certa concepção de ho-mem, do seu lugar e do seu papel no seio do universo”.64 Aprender as rezas e assumir o papel de rezador perpassa a compreensão da importância do ofício tido como um dom, bem como a cura que pode ser realizada no outro. A tradição é transmitida pela compreensão do papel a ser desenvolvido pelo dom recebido.

Sr. Antônio se reconhece rezador e, em meio as perguntas, escolhe falar sobre as doenças que cura:

Marluce: E o senhor reza para curar que doença?

Sr. Antônio: De quebranto, mau-olhado, dor de barriga, dor de dente, carne

triada, carne triada é assim osso rindido, nervo torto, com os poder de Deus

que sou furtuoso... Osso rendido, nervo torto com os poder do furtuoso aqui

mesmo eu cozo, diz três vez aí a gente reza, aí fica bom.

Amparo: Sr. Antônio [...] o senhor passava esses dias nas casas das pessoas que

estavam perto de morrer, era acompanhando a morte, como era?

Sr. Antônio: Às vezes era, [...] pois é, aí a gente reza [para] dor de barriga, Santa Rita,

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Santa Iria... gotinha de água fria corre de noite, corre de dia, curai de dor de

barriga, Santa Rita, Santa Iria, gotinha de águia fria corre de noite, corre de dia,

curai de dor de barriga. Aí reza três vezes, aí passa.65

Sr. Antônio é um rezador “completo”, porquanto detém um vasto conhecimento

acerca de rezas contra diversos males. Nesse trecho da entrevista, em meio a uma listagem de rezas que conhece, interrompe e ensina a oração contra “carne triada”, uma espécie de jaculatória que descreve onde está situada a dor e invoca os poderes de Deus para realizar a cura por meio de dizeres e movimentos do terço ou do galho de pião ou vassourinha nas mãos. Ele ainda acrescenta o número de vezes que deve ser rezada.

Amparo Moura pergunta sobre as rezas nos velórios, e sr. Antônio ensina a ora-ção de exaltação e o Pai-Nosso pequenino (oração de devoção). Escolhe falar sobre as rezas, o que talvez assinale que é detentor de um conhecimento mais vasto sobre o assunto ou apenas um desejo em mostrar a quantidade de rezas que sabe recitar e realizar. Ele confirma sem querer responder a pergunta e continua a falar de reza, ensinando uma oração contra dor de barriga.

Dessa vez, a invocação é para Santa Rita, a oração é composta por uma frase que rima o nome da Santa com elementos da natureza, água, noite e dia. Assim, como a reza anterior, esta deve ser recitada três vezes. Percebemos que a sua vontade de con-versar está para além de descrever as rezas, seu desejo parece ser de ensinar, transmiti-las. Dessa forma, ele só consegue falar de seu mister ensinando, talvez seja uma marca de suas experiências de aprendizagem. Nesse sentido, convém lembrar Hampaté Ba:

O ensinamento não é sistemático, mas ligado as circunstâncias da vida. Este

modo de proceder pode parecer caótico, mas, em verdade, é prático e muito

vivo. A lição dada a ocasião de certo acontecimento ou experiência fica pro-

fundamente gravada na memória da criança”.66

A vontade de ensinar ou relatar as orações pode evidenciar uma escolha do entre-vistado em falar do seu ofício ou mesmo de uma lembrança, de um legado, uma vez que os conhecimentos são transmitidos oralmente e o aprendizado se realiza pela ex-periência do fazer. As perguntas podem tê-lo feito reviver lembranças, presentificar momentos de aprendizado, orações e gestos, como aprendera.

Assumir o ofício de rezador além de guardar na memória o conhecimento das re-zas e as formas de fazer, também perpassa o reflexo da prática para a comunidade. Seu Antônio assim se expressa: “– Porque a gente precisa das pessoas, as vezes chega um doente, oh! eu tô com um problema, aí a pessoa, a gente reza e a pessoa fica bom [...], pra ajudar”.67 O conhecimento das orações é apreendido respondendo as necessidades da comunidade, a continuidade da tradição informa a crença e a fé das pessoas nas rezas

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e benzeduras. Sr. Antônio responde que seu interesse era e é ajudar a quem o procura com algum problema.

Aproveitamos o ensejo para indagar se ele é chamado para rezar em velório. Ele assim responde:

Foi, me chamaram, [...] a dona Zezé, a Marieta, a minha madrinha, a Francis-

quinha do Góis, ela é minha madrinha, a finada Teresa, a Socorro [...] elas me

chamavam pra eu cuidar do velinho pra gente rezar, aí quando morre, a gente va-

mos rezar um terço, aí a gente reza o terço, aí a gente vai cantar aqueles benditos.68

As mulheres a que sr. Antônio se refere são suas conhecidas dele e da maioria dos moradores da comunidade onde mora e da cidade de Alto Longá. Nesse sentido, nossas histórias se intercruzam, visto que dona Zezé era minha avó; Marieta, Teresa e Socorro são minhas tias, filhas do primeiro casamento de meu avó Joaquim Luciano e Francisquinha do Góis, uma amiga e vizinha da família. A comunidade do seu Antônio não se resume aos parentes e conhecidos do seu bairro, mas se esten-de aos moradores da cidade de Alto Longá. As mulheres da família pedem ajuda ao exortador, que cuidará e rezará ao moribundo cantando vários benditos, como:

Ai meu Deus! Essa alma vai pro céu

Um anjin é quem vai levando

De tudo ela vai se esquecendo

Só de Deus vai se alembrando

Só de Deus vai se alembrando

Vai recostada no andor

O lado da mão direita

Nos pés de Nosso Senhor

Assim a gente chora e tudo mais é bom

que vai encomendando aquela alma, [...].69

Em seguida, ele canta várias incelências, a que chama de benditos. Perguntamos

como aprendeu as letras, se fora ouvindo na igreja, se buscava elementos de diálogo entre o ritual eclesiástico e as práticas domésticas. Sr. Antônio diz: “Era não, era um dote mesmo das pessoas, era dote mesmo que a gente tem que as vezes as pessoa vai, assim, as vezes, vão cantar, aí a gente aprende aquelas músicas, aí canta as outras”.70

Percebemos que o aprendizado das canções como um dom era não apenas de quem aprende e se põe a cantar em outras ocasiões, mas também daqueles indiví-duos que puxavam a reza e, dessa forma, tocavam a sensibilidade das pessoas com os lamentos, permitindo assim o aprendizado. Portanto, a cada ritual aprendia-se através da experiência, no ver-fazer-refazer, na repetição.

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Nesse sentido, o dom é entendido como graça divina, como uma dádiva, elemen-to de distinção, em que nem todos conhecem ou sabem desempenhar o ofício de re-zador ou puxador de reza. O dom não está na possibilidade de curar, mas em ser uma ponte entre a oração e a cura, uma vez que a maioria dos rezadores aponta a fé do indivíduo como a responsável pela cura. O benzimento por si só não cura, mas sim a crença no poder da bênção, a fé em ser curado por Deus e pelos santos de devoção, que intercedem pela graça.

Em seguida, sr. Antônio se anima ao falar que é bastante procurado, e ressalta que a fé é o elemento que cura o mal: “De Teresina mesmo vem gente, eu rezava, tá com problema eu rezo, é... de dor de barriga, rezo quebranto, rezo de dor... Oh, eu tô com dor nas costa, eu rezo, aí as pessoas... Aí a fé cura, né!71 Nesse momento, pergun-tamos se ele realiza romarias, sobre a crença na cura por meio da fé, o significado de vestir azul ou com botado azul. E, em meio ao barulho dos animais que cria, sr. Antônio tenta lembrar-se dos benditos, enquanto explica que vestir azul se trata de uma promessa para melhora a saúde.

Foi promessa, no Canindé, este ano parece que vai fazer 38 anos que eu vou

sem falhar, todos os anos eu vou, aí quando entra no ônibus... De primeiro era

pau de arara [...] [a gente] vai cantando aqueles benditos... Às vezes, diz assim...

o bendito de padre Ciço... deixa eu ver, meu Deus! Não lembro mais da toada...

hum... dos benditos.72

Sua expressão facial muda ao falar das romarias que o acompanhavam rumo a Canindé (no Ceará), talvez por se lembrar das imagens guardadas na memória, do percurso antes realizado em “pau-de-arara” e, agora, de ônibus. Sorri ao recordar-se das pessoas que viajavam com ele, dos benditos cantados na travessia. Com dificul-dade, desiste da tarefa e fica envergonhado, talvez só se lembre de trechos do meio ou fim. Por fim, sr. Antônio canta o bendito de São Francisco:

Graças a Deus São Francisco! Que eu em Canindé cheguei

Que beleza foi o encanto que em Canindé achei!

Graças a Deus e São Francisco que eu já fiz minha oração

Fiz com fé em São Francisco e a Virgem da Conceição

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

...

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

Contente com São Francisco e a Virgem da Conceição

Romeiro de São Francisco que vai pro Canindé

Tem muita felicidade em São Francisco ele tem fé.

...

A matriz do Canindé é o estado do Ceará

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Adeus, São Francisco, adeus, que eu já vou voltar

Oferecemos este bendito pro Senhor daquela Cruz

Com intenção de São Francisco para sempre amém, Jesus.

“Aí vai cantando aquele canto”73, finaliza sr. Antônio. O bendito relata o percurso da viagem, que marca o momento de oração, a chegada e a saída de Canindé. Há o agradecimento a Deus pela chegada a Canindé, fé que assegura a visita e o pagamen-to da promessa: “Graças a Deus e São Francisco que eu já fiz minha oração”, sinaliza que a fé na realização da oração não se dá apenas ao santo de devoção, que leva o nome do bendito, mas a Deus e a Virgem da Conceição. Feliz por conseguir pagar a promessa, o romeiro é mencionado no bendito com felicidade pela viagem, pela reza, e agradecido pela proteção de Deus em garantir o pagamento, assim, oferece o bendito em agradecimento, com a intenção do santo de devoção.

Os benditos não se caracterizam apenas no momento da morte, como, particu-larmente, acontece com as incelências. Com os benditos também se canta e se pede a interseção dos santos nos momentos de peregrinação, das romarias, e na necessidade frente as intempéries do tempo. Também costumam embalar romarias, terços, novenas e ajudam a pedir chuva, como o bendito de São José, cantado pelo sr. Antônio:

Meu divino São José... aqui tô nos vossos pé

Vim pedir água com abundância, meu Jesus de Nazaré...

Vim pedir água com abundância, meu Jesus de Nazaré...

Quem quiser chuva na terra se apegue com São José

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Aquele que for contrito no coração

Que a divide a santa hóstia e a chuva há de vir no chão

Ofereço este bendito pro Senhor daquela Cruz

Em intenção de São José e para sempre amém, Jesus.74

Após uma pausa, sr. Antônio recorda-se do bendito de São José, com uma me-lodia mais lenta e um tom mais contrito do que a altivez cantada no bendito de São Francisco; este bendito parece incorporar o sofrimento e o desejo de voltar a chover, em tempos de seca, as pessoas se “apegam” a Deus e aos santos pedindo chuva, pois “vim pedir chuva com abundância, meu Jesus de Nazaré”. Os santos aparecem nos benditos e incelências como interseções, como um elo entre o pedido e a graça dada por Deus. As-sim, pede-se a São José que interceda junto a Deus e a Jesus de Nazaré para mandar chuva.

A versão cantada por sr. Antônio em muito se assemelha ao bendito do relato de Cristina Pompa:

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Meu divino São José

Aqui estou em vossos pés

Pedindo água com abundância

Meu divino São José

Não mate seus filhos não

Nem de fome, nem de sede

Pela cruz que traz nas mão

Oferece este bendito

A meu divino São José

Que nos dê chuva na terra

Pela vossa santa fé.75

Ao terminar de cantar o bendito de São José, sr. Antônio canta outra oração:

Virgem mãe de Deus e nossa

Concebida sem pecado

Socorrei os vossos filhos

Oh, Senhora Aparecida!

Vem de pai e vem de mãe

Vem de toda a missão

Recorremos os vossos filhos

Oh, Senhora Aparecida!

Virgem Mãe de Deus e nossa

Concebida sem pecado

Recorreis vossos filhos

Oh, Senhora Aparecida!76

Conhecida como “Viva Mãe de Deus e Nossa” uma aclamação a Nossa Senhora Aparecida, é adaptada e reduzida por sr. Antônio:

Viva mãe de Deus e nossa,

Sem pecado concebida!

Viva a Virgem imaculada

A Senhora Aparecida

Aqui estão vossos devotos

Cheios de fé entendida

De conforto e esperança

Ó Senhora Aparecida!

Page 95: Em cada conta um lamento

Virgem santa, virgem bela

Mãe amável, mãe querida

Amparai-nos, socorrei-nos

Ó Senhora Aparecida!

Protegei a santa igreja

Ó mãe terna e compadecida!

Protegei a nossa pátria

Ó Senhora Aparecida!

Amparai todo clero

Em sua terrena lida

Para o bem dos pecadores

Ó Senhora Aparecida!

Velai por nossas famílias

Pela infância desvalida

Pelo povo brasileiro

Ó Senhora Aparecida!

Encontramos pontos semelhantes nas duas primeiras estrofes de cada uma das orações, embora mudem as estrofes, o fim do verso aclamando ó Senhora Aparecida! constitui ressonância nas duas orações. Cada pessoa constrói ou reconstrói, cria e recria versões de lamentos e orações, muitas vezes a partir da escuta e observação.

Sr. Antônio comenta que pode vir a “fazer as vezes de padre”: A gente batiza a criança quando nasce assim pagãozim, o filho nasceu morto ou as vezes nasce e mor-re na hora, [...]! Aí a gente vai e batiza... é... eu batizo é assim... A gente reza o “Creio em Deus Pai” depois do “Creio em Deus Pai” pergunta se vai querer para “Manelo” ou pra Maria, aí conforme for o menino. É, se for homem é “Manel” se for mulher, é Maria. Ele diz:

– Eu batizo.

– Você crê na Santa Igreja Católica, na remissão dos pecados, na comunhão

da carne?

– Creio!

– Você renuncia o Satanás?

– Renuncio.

– Diz... Pai, com um ramozin [...], Maria eu te batizo com este ramo e a água e o sal

e as três palavras de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo três vezes e aí tá batizado.

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Imagem 4 - São Gonçalo realizado por Cosme e Raimundinha, Alto Longá-PI, 2012

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Reza contra males que afligem a alma e o corpo, peregrinações, romarias e batizados. Sr. Antônio conhece uma quantidade expressiva de práticas tradicionais, informa-das, muitas vezes, pela necessidade e pela crença em um catolicismo devocional. A presença ou não de um padre não impede a realização das práticas. Batiza repetindo os gestos e as palavras, conhecimentos adquiridos por experiência. Segundo ele, “é que eu ia pra igreja e ouvia ele dizer, aprendia [...]”.77O aprendizado é marcado pelo ver-escutar-repetir e, muitas vezes, adaptar.

Indagamos se algum dos seus filhos se interessa por aprender a rezar, já que a reza deve partir da motivação, do interesse de alguém por aprender. Responde: “O Ribamar é o mais assim... mas... tá pra São Paulo... Tem que aprender a rezar pra tirar um terço, eu tiro todo tipo de terço, tiro terço cantado, tiro terço... tiro terço mesmo dito de todo jeito eu tiro terço”.78 Sr. Antônio parece não querer falar sobre ensinar a reza, responde, mas volta a atenção para as práticas que realiza. Em seguida, descreve uma das rimas criadas por ocasião da jornada de Dança de São Gonçalo, evidencian-do mais uma vez as manifestações religiosas que conhece:

O meu Senhor São Gonçalo

O meu Senhor São Gonçalo

A que tem duas bringela

A que tem duas bringela

Uma é moça donzela

Uma é moça donzela

E a outra falam dela.79

Entre risos, relata que fez a rima, que causou um desconforto em uma das mulhe-res que estava se ajoelhando e beijando o santo: “Oh rapaz!... [risos] tem aquela coisa mesmo que não fosse [...], não diz no meio do povo, oh, a pobre! nem acabou de beijar, saiu chorando, ficou morta de vergonha [...]! [...] um outro diz as vezes, assim que vai”

O meu Sinhor

Vamo, vamo, minha gente

Vamo, vamo, minha gente

Vamos no pés do altar

Vamos pedir no altar

Vamos dar uma trocada

Vamos dar uma trocada

Antes de nos beijar.

Aí assim troca um pro lado, outro pra outro, aí as vez, a pessoa vai e diz o dela, diz assim:

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Imagem 5 - Sr. Antônio Pequeno canta e dança São Gonçalo, Alto Longá-PI

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Ó meu senhor São Gonçalo

Ó meu senhor São Gonçalo

Aqui tem duas açucena

Aqui tem duas açucena

Uma é rosa açuncena

Uma é rosa açuncena

Outra é rosa paroá.

Aí se levanta, aí já vai outro pra dizer aquelas cantiga.

A dança de São Gonçalo se realiza mediante o pagamento de uma promessa, no final das jornadas, os presentes se beijam e se ajoelham diante do altar do santo. Falar sobre essa promessa o fez lembrar da promessa a Santo Reis,81 que auxilia a sua esposa a pagar. Nisso, pergunta se eu já vi um reisado, respondo-lhe que não. Muito contente, explica:

A gente chega nas casas meia noite aí diz assim:

Ô de casa, ô de fora e nas horas de Deus amém!

Oh, nas horas de Deus amem

Santo Rei, oh pede esmola, mas não é por precisão

Oh mais não é por precisão

O que lhe pede e torna a dar na hora da procissão

Oh no dia da procissão

Anda aqui de porta em porta pelo mundo padecendo

Oh pelo mundo padecendo

Fazendo minhas penitências e pagando que eu tô devendo

Oh pagando o que estou devendo

Que a dona dessa promessa se achou muito doente

Oh se achou muito doente

Se apegou-se com Santo Reis e ficou boa perfeitamente

Oh ficou boa perfeitamente

O sol entra no oitão e a lua na cumieira

Oh, a lua na cumieira

Senhor sono da casa e a bandeira é brasileira

Oh e a bandeira é brasileira

Senhor dono da casa não cuide que é muita gente

Oh, não cuide que muita gente

Que é os três reis magos da parte do Oriente

Oh, da partir do Oriente

Meu senhor dono da casa apanhe o pé no seu batente

Oh, apanhe o pé no seu batente

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Venha ver o seu terreiro como está cheio de gente

Oh, como está cheio de gente

Tô em pé na vossa porta como ouro na balança

Oh, como ouro na balança

Oh, senhor dono da casa me perdoe as confiança

Oh, me perdoe as confiança

Por ser a primeira vez que tô aqui na sua porta

Oh, tô aqui na sua porta

Senhora dona da casa bote azeite nas candeias

Oh, bote azeite nas candeias

Me desculpe senhora dona deu mandar nas casa alheia

Oh, dei mandar nas casa alheia

Que a fulô da Chicopira um chaco de pavão

Oh um chaco de pavão

Tô esperando a esmola dada de bom coração

Oh, dada de bom coração!

Aí a pessoa abre a porta, acende a luz, aí paga a esmola, bota os caretas pra sapatear o boi pra dançar. É assim.

O reisado é tirado pelo sr. Antônio e sua família apenas para o pagamento da promessa feita, a qual deve ser cumprida ou respeitada por três anos, não necessa-riamente consecutivos. O último ano dessa promessa foi entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012.

Depois de explicar como “se tira” um reisado, perguntamos-lhe se ele conhece mais alguma incelência e, após uma pequena pausa, responde cantando. Dessa vez, canta as sete repetições, não apenas uma estrofe, como nos lamentos anteriores.

Um apóstolo era um irmão, vos mandai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Dois apóstolo era um irmão, que vos mandai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Três apóstolo era um irmão que vos levai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Quatro apóstolo era um irmão que vos levai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Cinco apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Seis apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo

Sete apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus, irmão, adeus, oh, irmão, até dia de juízo.

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Imagem 6 - Saída do Santo Reis da casa do promesseiro, Alto Longá-PI

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Imagem 7 - Sr. Antônio aguardando a chegada do Santo Reis, Alto Longá-PI

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Perguntamos a seguir como são os passos para ajudar a morrer: “A gente fica, quando é as vezes diz assim, quando é alguma oração que tem por devoção a pessoa fica rezando, na hora que quer morrer que a gente exalta pra acabar de morrer”.

A função do Senhor que reza se constitui em vigiar para, no caso do moribundo vir a falecer durante a noite, não fazer a passagem sem a luz de Deus. Em seguida, questiono se há pagamento, se é pago para acompanhar o moribundo, responde prontamente que não e completa: “Não, eles me davam o agrado [...], não cobrava, é a pessoa que me dá”. Sr. Antônio confirma e relata o mesmo aspecto do pagamento que dona Erlene indicou sobre as cantadeiras de excelências. O pagamento é visto como um agrado, que depende de como a pessoa a quem o rezador ajudou significa e agracia a ajuda.

O sr. Antônio continua a cantar várias incelências seguidas, sempre repetidas sete vezes, relatando que “o povo todo ajuda, na hora que é pra gente começar todo mundo ajuda”. O fato de as pessoas ajudarem no momento da cantoria informa so-bre o conhecimento das canções por parte da comunidade, bem como a ajuda dos outros evidencia uma resposta positiva do ritual e dos lamentos confirmada pelo acompanhamento: “A gente vai dizendo e as outras pessoas vai respondendo [...].”

Indagamos também se ele conhecia mais alguma pessoa que rezava aos mortos:

Não, por aqui não tem não. Tinha, mas parece que ele já morreu, aí tinha a

Maria Dominga também, mas ela mora lá no Buritizal... Mas aqui, açula, pa-

rece uma pessoa rezando. Mas agora é difícil rezar incelência, reza mais esses

benditos de igreja, [...] Aqueles “segura na mão de Deus” eles cantam muito,

aquele “Te amarei, Senhor”, aquele da família também; essas pessoas mais ve-

lhas, que sabem que a gente reza e que no ponto de ir, as vezes tem um tempo

que a gente não pode ir, as vezes tá adoentado, tá com febre, tá muito gripado,

a gente... Não, me desculpe que eu não posso ir, [...], tando adoentado, doente

não adianta eu ir pro velório, a gente já doente, [...] Mas eu estando sadio e com

saúde, qualquer hora do dia ou da noite que vier atrás de mim eu rezo.

Constatamos a concentração do sr., que busca na memória referências de reza-deiras, bem como da prática de cantar incelências. Relata apenas que se cantavam nos velórios mais as músicas da igreja católica, como “Segura na mão de Deus”, do que as incelências, indica que a prática não constitui uma presença constante nos velórios. A devoção ou os pedidos da família são os fatores que informam sobre a permanência do lamento das incelências. Sua narrativa é marcada por canções, e ensina as orações.

O sr. Antônio busca em suas memórias, mas encontra poucas referências de rezadei-ras, bem como da prática de cantar incelências, relata que cantam nos velórios mais as músicas da Igreja Católica, como “Segura na mão de Deus”, do que as incelências, indica que a prática não constitui uma presença constante nos velórios. A devoção ou os pedidos da família são os fatores que informam sobre a permanência lamento das incelências.

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A narrativa do Sr. Antônio é marcada por canções, escolhe relatar e ensinar as orações e gestos dos rituais, com um ganho de planta ou com um terço. Seu aprendi-zado ocorreu pela observação e repetição dos gestos e orações, o aprendizado é reali-zado sem perguntas, como uma fase “muda”. na medida em que as ações são assimi-ladas e entendidas, o aprendiz desenvolve o oficio, uma forma de compreender seu universo e seu papel dentro da comunidade. A tradição transmitida molda o sujeito criando uma forma peculiar de compreender o mundo. Como percebe Hampaté Bá:

Os instrumentos ou ferramentas de um oficio materializam as palavras sa-

gradas; o contato do aprendiz com o oficio o obriga a viver a palavra a cada

gesto. Por essa razão, a tradição oral, tomada no seu todo, não se resume a

transmissão de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora

e formadora de um tipo particular de homem.82

Compreendemos o Sr. Antônio e suas vivências, tomamodo-o como um guar-dião da memória, das tradição, experiências cotidianas de rezas, romarias, procissões epagamentos de promessas. O Senhor é reconhecido pelos moradores da pequena comunidade Flor do Dia; as pessoas o chamam, carinhosamente, “Pai Antônio”, uma forma que revela a sua aproximação com os moradores do lugar. O Senhor Antonio vive um tempo particular, tempo de rezas e orações, marcado por pedidos constantes de interseção divina. As suas história e memórias expressam a relação que estabele-ce com o ofício, seu aprendizado está em cada reza ou bendito cantado, repetindo e mostrado com gestos e com o terço.

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 Segunda maior cidade do estado do Piauí, distante 336 km da capital Teresina, encontra-se próximo a Luís Cor-

reia, litoral norte do Piauí. É banhada pelo Rio Igaraçu (1º braço do Delta do Parnaíba) e pelo Oceano Atlântico.

2 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, em 06 nov. 2009,

em Parnaíba, Piauí.

3 MORAIS, Marluce Lima de. Emoção, lamentos e fé: a religiosidade popular através das incelências. 2010.

Monografia apresentada ao curso de História. Universidade Federal do Piauí: Teresina, 2010.

4 Conversamos em pé em frente ao SESC Avenida (centro de Parnaíba-PI).

5 ALBWCHAS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, p. 29.

6 Entrevista concedida senhora Erlene Maria de Oliveira,a Marluce Lima de Morais, no dia 6 de novembro de 2009.

7 Povoado pertencente ao município de Luís Correia-PI.

8 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira,a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de novembro

de 2009.

9 BENJAMIM, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ____. Magia e técnica,

arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 205.

Page 105: Em cada conta um lamento

10 O verbo carpir tem origem no latim carpere, que significa lamentar, extravasar a dor arrancando os cabelos.

11 O alimento nesse sentido está expresso na experiência de dona Erlene Oliveira, “pagamento” poderia ser

de outra forma, algo que tivesse valor naquele momento.

12 Não fomos ao Carnaubal ou no Curral Velho. Em conversa com a tia de dona Erlene, dona Maria dos

Anjos, ela nos informou que essa família não mora mais naquele lugar e que talvez não houvesse mais

ninguém para falar sobre as rezas nos velórios. Dedicamo-nos as entrevistas que até então tínhamos co-

letado, na tentativa de analisá-las por exaustão para, assim, buscarmos preencher as possíveis lacunas de

outros testemunhos.

13 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

14 CHAVES, Mons. Obra completa. Teresina: FCMC, 1998, p. 54.

15 Idem.

16 SCHIMITT, Jean-Claude. Ritos. In: Schimitt, Jean-Claude. Le Goff, Jacques. (orgs). Dicionário temático do

ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2002.

17 Segundo Eric Hobsbawm, “O objetivo e a característica das tradições, inclusive das inventadas, é a inva-

riabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõem práticas fixas (normalmente formali-

zadas) pela repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais tem dupla função motora e volante. Não

impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente tolhido pela exigência de que

deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. As tradições com o decorrer do tempo funcionam

como um guia da manifestação religiosa, informando como e a partir de que elementos a manifestação se

desenvolve, servindo como um fio que permeia o costume, este se diferencia, no sentido que possibilita o

diálogo dentro do costume, se faz mediante a prática repetitiva sem necessariamente estar em uma rotina.

O costume, segundo o autor, possibilita as mudanças e (re)significações da tradição sem deixá-la esvaziar na

sua essência e função. HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 10.

18 Elias faz uma reflexão que este distanciamento se explicaria pelo processo civilizador atual das socieda-

des, onde a tradição não responde as necessidades atuais. ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

19 BENJAMIM, Walter. Op. cit., 1994, p. 207.

20 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

21 A função de puxador de reza, geralmente, é desempenhada por homens ou mulheres, que conhecem

a manifestação a ser realizada; o conhecimento das rezas é passado de geração a geração por tradição

oral. São Gonçalo, Reizado, Incelências, terços e outras manifestações são acompanhadas pelos demais

membros da comunidade.

22 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

23 CASTRO, Estevam de. Breve Aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão, com compilação

da matéria de tratamentos e penitências, várias orações devotas, tiradas da Escritura Sagrada e do ritual

romano de N.S. Paulo V, com acréscimo da devoção das vá várias missas. Lisboa: Oficina Miguel Menescal,

1677. Biblioteca Nacional/ Rio de Janeiro.

24 CENTRO DE PASTORAL POPULAR. Na casa do pai: encontros para exéquias: velórios, sepultamentos e

Missa. Brasília s/d; DIOCESE DE OEIRAS (Piauí). Celebrações para: assistência aos doentes, assistência aos

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agonizantes, sentinelas (velórios), última encomendação, enterro, visita ao cemitério. Petrópolis:

Vozes, 1999.

25 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira a Marluce Lima de Morais no dia 5 de

novembro de 2009.

26 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

27 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira,a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

28 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

29 As Benzedeiras de Minas, de Andrea Tonacci. Sinopse: através de depoimentos, três reconhecidas benze-

deiras católicas do estado de Minas Gerais dão uma visão de suas histórias e práticas, expondo e revelando

uma tradição de medicina popular, cuja existência e eficácia tende a desaparecer no processo de urbanização

e desenraizamento de valores culturais e religiosos tradicionais. Disponível em: <http:www.etnodoc.org.br>.

Acesso em 1o set. 2012.

30 Nota de transcrição da segunda entrevista de dona Erlene Maria de Oliveira, concedida a Marluce Lima de

Morais, em 6 de novembro de 2009.

31 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, em 5 de

novembro de 2009.

32 Idem.

33 CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001, p. 724.

34 CASCUDO, Luís Câmara. Op cit.2001, p. 724., p. 629.

35 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira a Marluce Lima de Morais, no dia 5 de

novembro de 2009.

36 Sinopse: por meio de depoimentos, três reconhecidas benzedeiras católicas do estado de Minas Gerais dão

uma visão de suas histórias e práticas, expondo e revelando uma tradição de medicina popular cuja exis-

tência e eficácia tende a desaparecer no processo de urbanização e desenraizamento de valores culturais e

religiosos tradicionais. Direção de Andrea Tonacci. Disponível em: <http:www.etnodoc.org.br>.

37 Reza: oração dirigida aos espíritos superiores para obter proteção e auxílio na cura dos mais diversos

males: dores de garganta, de estômago, dos rins, da cabeça, ferimentos, picadas de bichos e muitos outros

problemas. Há reza para tudo, envolvendo Deus, homem, plantas e animais, simpatias. CASCUDO, Luís

Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001.

38 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

39 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

40 Município do estado do Maranhão, uma das portas de entrada para o delta do Parnaíba, distante 306 km

da capital do Maranhão; limite entre os municípios de Água Doce no Maranhão e Parnaíba-Piauí.

41 Termo utilizado por Pedrina Nunes Araújo para designar as diferenças entre o conhecimento de rezas

de benzedeiras. As rezadeiras completas são senhoras que rezam para todo tipo de doença e criam suas

próprias orações. ARAÚJO, Pedrina Nunes. Senhoras da fé: história de vida das rezadeiras do Norte do

Piauí [1950-2010], 2011. 162f. Dissertação [mestrado em História do Brasil]. Universidade Federal do Piauí,

Teresina, 2011.

42 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

Page 107: Em cada conta um lamento

43 Também conhecida por “espinhela caída”, trata-se de uma dor forte na região das costas e pernas, ocasio-

nada por esforço físico intenso. NEIVA, Anselmo de Souza. Espinhela caída: um estudo de caso na cidade

de Cotia-SP. In: Educação, Gestão e Sociedade: Revista da Faculdade Eça de Queirós. Nº 2, jun 2011. Dispo-

nível em: <http:www.faceq.edu.br/regs>. Acesso em: 10 fev. 2012

44 Geralmente, a pessoa se queixa de dores na cabeça, dores atribuídas a exposição ao sol. Para retirar “o sol

da cabeça” é utilizado um recipiente de vidro (garrafa) com água dentro. A garrafa é emborcada na cabeça

da pessoa e, com a reza, a água borbulha, amenizando assim as dores.

45 Quebrante, quebranto ou mau-olhado afeta desde crianças a adultos, geralmente as crianças são as mais

afetadas, causando dores no corpo e tristeza. Oração para quebranto: coloca-se a mão direita sobre a criança

e a cada sinal da cruz marcado faz-se o Nome do Pai sobre o corpo da criança e diz-se a oração seguinte:

“Nosso Senhor Jesus Cristo me ajuda onde eu ponho a mão. Pelo poder de Nosso Senhor Jesus Cristo este

quebranto vai sair pela cabeça, pelos lados, pelas costas, por cima, por baixo, por trás, pela frente. Assim

como digo com fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, assim se fará. Este quebranto vai sair pela frente, por trás,

por cima, por baixo. Amém! Rezar um Credo, um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e uma Salve Rainha”. Dispo-

nível em: <http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/2/TDE-2004-03-01T13:44:26Z-4/Publico/anexo.pdf.>

Acesso em: 9 de fev. 2013.

46 Herpes-Zoster, Doença na pele conhecida por Cobreiro, trata-se de uma infecção viral provocada pelo mes-

mo vírus da catapora, causando dores e lesões cutâneas. Disponível em: <http/drauziovarella.com.br.> Acesso

em: 9 de fev 2013.

47 A vassourinha (Scoparia dulcis) conhecida por vassoura, relógio, malva, vassoura-do-campo, vassourinha de

igreja; pinhão-roxo (Jatropha gosypiifolia), conhecida por erva-purgante, jalapa, mamoninha e raiz-de-tiu. Au-

xiliam durante a reza, mas a cura está vinculada ao acreditar e por quem é rezado.

48 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

49 Idem.

50 Mamona ou rícino é fruto da mamoeira (Ricinus communis L.) recebe outras denominações como: rícino,

carrapateira, bafureira, baga e palma-criste. Serve para reza e benzenções como cobreiro (irritação na pele).

51 Panacéia recolhidas por Silvio Romero e comentadas por Luis da Câmara Cascudo, fogo selvagem, cobrei-

ro, zona, herpes zoster ou cobrelo; segundo Fernando São Paulo, linguagem médica popular no Brasil, I, 240,

registrou-se excelentemente. Na explicação do povo, o cobreiro é provocado pela passagem de um animal pe-

çonhento por cima da pele. A inflamação terá vagamente a forma serpentina e se junta a cabeça com a cauda o

doente morrerá. Daí o recurso de cortar com orações; J. Leite de Vasconcelos, Carminha mágica do povo portu-

guês (In Era Nova, 521, Lisboa 1881). Disponível em: <http:www.jangadabrasil.com.br/maio/pn90500a.htm>.

Acesso em 1o mar 2012.

52 Disponível em: <http:www.jangadabrasil.com.br/maio/pn90500a.htm>. Acesso em 1o mar 2012.

53 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

54 Idem.

55 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

56 Idem.

57 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

58 Idem.

59 entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

60 ROCHA, Ewelter. Cantar para sofrer: lamentos fúnebres no nordeste do Brasil. Pacific Review of

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Ethnomusilogy, v. 15, 2010. p. 8 disponível em: <http:www.ethnomusic.ucla.edu/pre/vol15/vol15html/

V15Rocha.htm> Acesso em: 20 jul. de 2012.

61 ROCHA, Ewelter. Op. cit., 2010, p. 8.

62 ROCHA, Ewelter. Op. cit., 2010, p. 9.

63 VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História geral da África-I:

metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 142.

64 HAMPATÉ BÁ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História geral da África-I: metodologia e

pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 180.

65 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

66 Hamtapé Ba. Op. cit., 2010, p. 183.

67 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

68 Idem.

69 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

70 Idem.

71 Idem.

72 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

73 Idem.

74 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

75 POMPA, Cristina. Leituras do “fanatismo religioso” no sertão brasileiro. Novos Estudos n. 69, julho de

2004.

76 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

77 Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

em julho de 2010.

78 Idem.

79 Idem.

80 Neste São Gonçalo, sr. Antônio participou como contra-guia, ajudando a pagar a promessa de Cosme,

marido de sua sobrinha Raimundinha, em junho de 2012, em Alto Longá-PI.

81 Conhecido como Santo Reis ou Reisado, trata-se de uma promessa feita aos três Reis Magos e, como paga-

mento, leva-se a imagem do santo junto, acompanhado de música e dos Caretas (uma representação dos

Reis Magos) durante nove noites, encerrando dia 6 de janeiro, onde se comemora o dia de Santo Reis.

82 HAMPATÉ BÁ, A. a tradição viva. In: KI-ZERBO. Joseph (ed) História Geral da África, I: Metodologia e

pré-história da África. 2 ed. Brasília:UNESCO, 2010, p.180

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CAPÍTULO III

AS INCELÊNCIAS

1. EM CADA CONTA UM LAMENTO

Ao amanhecer, o senhor Antônio Pequeno e sua esposa, dona Marina, iniciam os faze-res domésticos. Ela já se habituou a ver a casa repleta de pessoas, a maioria da família, sobrinhos e filhos, que moram próximos, além de alguns desconhecidos, que procu-ram por seu marido, conhecido na região tanto por rezar para desfazer um quebranto, curar uma dor de barriga, ou de dente, ou “tirar sol da cabeça”, como para “ajudar” alguém a morrer. Sr. Antônio Pequeno é benzedor.

Sua esposa logo lhe informa: — Dona Zezé, esposa do Senhor Joaquim Luciano, deseja lhe falar. Prontamente, o senhor “Antônio Pequeno” arruma-se e caminha pelas ruas ainda em terra batida e adentra as ruas pavimentadas do centro da cidade de Alto Longá até chegar a uma casa, em frente a uma pequena praça, com um muro baixo, bate palmas a porta da casa e anuncia sua chegada: — Dona Zezé!! Dentro da casa, a Senhora grita: — Pode entrar!

O senhor abre o ferrolho da fechadura do pequeno portão, adentra o alpendre e en-contra dona Zezé, com semblante cansado e abatido, juntamente, com seu filho mais novo, que cuidam do senhor Joaquim Luciano, que há muito tempo encontrava-se doente, parecia estar cada vez mais próximo de fazer a passagem da vida para a morte.

Dona Zezé pediu ao senhor “Antônio Pequeno” que a ajudasse a cuidar de seu ma-rido, pois ela e o filho já cansados, não podem cuidar sozinhos do moribundo dia e noite. Ficou acertado que o senhor “Antônio Pequeno” passaria as noites em vigília do Senhor enfermo.

Ao entardecer, o senhor “Antônio Pequeno” chegou a casa de dona Zezé e fez a vigí-lia ao velho senhor que já agoniazava e tinha a respiração lenta; para o rezador parecia faltar rezava, um terço, e verificou o pulso do senhor Joaquim.

Por aproximadamente seis noites, o senhor “Antônio Pequeno” ficou vigiando e cuidando do moribundo; a sua preocupação e de dona Zezé era que o enfermo mor-resse durante a noite, sem nenhuma assistência espiritual, “sem a luz de Deus”. Em uma determinada noite, quando todos dormiam, o senhor “Antônio Pequeno” notou a pouca respiração de seu amigo Joaquim: “ — ele tava tão fraquim, pegava no pulso aqui [próximo a mão] e não achava, e aqui [indicando o outro pulso] e não achava. Aí a gente pega aqui [colocando os dedos no pescoço] tando batendo aqui, não tando pode achar bem aqui [nos pés] que tá, se não achar vem por debaixo do braço, aí depois que ele sai de baixo do braço, aí não volta mais”1

Quando notou que o pulso do senhor Joaquim não era mais perceptível, saiu do quarto e chamou Dona Zezé e o filho José, avisou-os que o Senhor Joaquim estava a morrer. Dona Mazé tomou a mão uma vela e levantou-se rapidamente com o filho, os

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três foram para o quarto, onde estava o senhor Joaquim. Ficaram em volta do enfermo e colocaram a vela acesa em sua mão, o senhor “Antônio Pequeno”, iniciou:

Seu Joaquim, Seu Joaquim, Seu Joaquim

Se lembre do nome de Jesus

Jesus vai contigo e tu vai com Jesus

Jesus é meu e eu sou de Jesus

Jesus, Jesus, Jesus Maria e José

De Jesus você é, Jesus, Jesus, Jesus de Nazaré

Sem forças para falar, o senhor Joaquim correu os olhos para as pessoas que es-tavam no seu leito de morte, olhou para o filho, segurando a vela acesa em sua mão, uma lágrima escorreu seu rosto, esticou-se de dor em um último suspiro e morreu.

2. O CARPIR

Elas estavam todas de preto, tinha um veuzinho na cabeça, que cobria e tinha

o livrinho,elas cantavam olhando, lendo aquele livrinho. Era bonita as palavras,

Mas era triste era o tom2

As carpideiras são mulheres dentro da comunidade ensinadas para prepar o cor-po do moribundo/defunto com rezas ao longo da sentinela/velório, elas estão viva-mente presentes no imaginário coletivo dos piauienses. Ao longo da investigação, encontramos relatos dessas mulheres e de suas performances rituais, assim como a participação de homens no ritual, desempenhando, igualmente o carpir.

O cuidado diante da morte e depois dela é expresso por homens e mulheres, por vezes as mulheres cantam as incelências e os homens cantam os benditos; funções conhecidas por capelão, aquele que realiza curas e faz orações, uma reunião eles “puxam as rezas”.

Segundo Alceu Maynard Araújo:

É o dirigente de uma reza de roça. Há muitos capelães. São homens que se especiali-

zam em dirigir rezas, quer ofícios fúnebres ou em rezas de dias festivos. É conhecedor

de um grande número de orações e, geralmente, é curandeiro, o benzedor. Suas rezas

curam certas doenças, quebranto, mau-olhado, dor de dente, erisipela, picada de cobre,

cachumba, etc... quando uma senhora se especializa em dirigir rezas e curar, chama-se

BENZEDEIRA. A benzendeira além de curas que pratica com suas rezas é a PRÁTICA,

isto é, a parteira. Assiste todas as parturientes da região e faz a família observar todas

as proibições e tabus por ela conhecidos. Tanto capelão como benzedeira são os que

têm o maior número de compadres que tem no bairro onde residem3

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Imagem 8 - Velório de Joaquim Luciano - Álbum de Família. Retrata o velório de Joaquim Luciano, a quem senhor

“Antonio Pequeno” ajudou a morrer, preparou a sua boa morte. Da esquerda para a direita, próximo ao caixão está

uma mulher com um lenço na cabeça, trata-se de sra. Maria José Barros de Morais, conhecida por dona Zezé, ao seu

lado, o filho José Maria de Morais e sua neta, Lourdes.

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O senhor “Antônio Pequeno” desempenha o papel de rezador, aquele que exalta a alma do defunto na hora da morte. Por conhecer um grande número de incelências, benditos, rezas de cura, ofícios, pagamento de promessas, como “tirar” Reisado e São Gonçalo4, podemos referenciá-lo como capelão, utilizando-nos da percepção do folclorista Alceu Maynard Araújo.

Benzer, rezar, chorar e lamentar constituem-se em elementos que são aprendidos por homens e mulheres no Brasil como um todo, evidenciando uma prática marcan-te de uma religiosidade popular associada a experiência e as tradições. Nesse sentido, percebemos que o ato de rezar não limita a participação de homens ou mulheres, am-bos participam, acompanhando aquele que dirige ou comanda a sentinela, homem ou mulher, o que define o “puxador de reza” é o conhecimento que a pessoa tem das rezas e sua representatividade dentro da comunidade.

A voz que ecoa nos velórios sugere pensar sobre quem entoa as canções, nesse sentido, analisamos algumas representações dos “puxadores de reza” expressas em filmes, peças de teatro, dentre outros produtos culturais.

Vestidas de branco, cabelos cobertos e fitas vermelhas, sinal de uma devoção po-pular, sentadas em frente de uma casa simples, feita com tijolo a vista – estamos no meio do sertão do Piauí. Assim, figuram-se as carpideiras retratadas no filme Cipria-no5; terços nas mãos e rostos marcados pelo tempo, vozes arrastadas e lamentosas; é esse cenário que tomamos como partida para analisar o carpir e as imagens das carpideiras ao longo do tempo.

Os presentes a sentinela cantam, mas nem todos conhecem o ofício, como e quando começam e terminam as rezas. É preciso que alguém “puxe”, conduza, inicie a reza. Conhecidas por carpideiras, cantadeiras de excelências ou como exaltadores, se des-tacam no ofício pela experiência saber-fazer, pelo cantar arrastado e lamentoso. Se-gundo a Sra. Erlene, as vozes marcam e ficam na lembrança após um velório através dos lamentos, “[...] aquela lengalenga, aquelas voizinhas de biata, sabe fininha [...] era bonita as palavras, mas triste era o tom”6

Durante a sentinela ou velório, o carpir constitui função significativa desem-penhada pelas mulheres, assim como função de preparar o corpo [lavar e velar os defuntos]. Diversas são as imagens constituídas ao longo do tempo sobre o papel e função dessas mulheres, representadas, algumas vezes, como profissionais sem sen-timentos, pagas para rezar em favor dos defuntos. Segundo João José Reis “a morte era anunciada por carpideiras, com freqüência especialistas contratadas para a oca-sião”7, a idéia de contrato, de pagamento e de profissionais estão relacionadas a fi-gura das carpideiras desde o Brasil colônia, como evidência João José Reis tratar da carta de um leitor do jornal da Bahia que mencionava a existência dessas mulheres e as críticas as suas atividades “como viveriam as carpideiras sem defuntos que fossem pranteados? O pranto é de outros, delas só é o ganho”8

Prática remunerada na Europa, da qual falam João José Reis e Câmara Cascudo indicam sua transposição para o Brasil; as carpideiras não teriam instituído a prática de cobrança, ao menos, não como um costume generalizado. “O Brasil não conhece

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a carpideira profissional, já Portugal conheceu as antigas carpideiras, que cantavam choram o defunto alheio/por uma quarta de centeio”9.

Ao analisar alguns jornais, João José Reis percebe a presença da religiosidade marcada pelo cotidiano: a prática das carpideiras ou a choradeira feminina, que se fazia comum nos velórios. Em 1832, o padre pernambucano, Lopes Gama, teria ava-liado o costume como indesejado, “sem nenhuma vantagem para os mortos e que apenas se somava a outras vaidades dos enlutados. Mas o costume, além de difundi-do, teve funções rituais no catolicismo tradicional e resistiu ao tempo”10 Percebemos que a presença das carpideiras não é aprovada entre os clérigos, a choradeira e a la-múria parecem cercadas por um imaginário de interesses por parte dessas mulheres.

Essa perspectiva percorreu o tempo e informa as imagens do carpir no tempo presente. A prática do carpir, embora questionada, tem resistido ao tempo, talvez por encontrar, como avalia João José Reis, lugar e significado na religiosidade popular; prática cotidiana presente nos momentos de rezas, orações e rituais domésticos, um campo de sociabilidade no qual são alimentadas as relações sociais em pequenas co-munidades como Alto Longá. O desenvolvimento das práticas estaria ligado a falta de padres, como no período colonial, quando a presença dos clérigos era rara no Bra-sil, fato que explica “a maior desenvoltura e veemência das carpideiras”11, fatores que auxiliariam na transmissão do ofício e da tradição em acompanhar e velar os mortos com muito choro, lamento e reza.

Manuel Mendes, ao escrever sobre “As Carpideiras”, na Folha da Manhã, em 1933, avaliou que essa prática possui resquícios ou trata-se de uma herança do período colonial, assim como outras manifestações religiosas:

Nosso ‘Pai’, ‘Encomendação das almas’, ‘bandeira do divino’ reagem, solenes

e liturgias contra a evolução permanente de tudo, amparadas pela crendice

ingênua dos sertanejos. E, uma vez que elas existem, têm a sua história, como

tudo o que foi glorioso e que hoje subsiste ainda12

O autor se posiciona sobre a continuidade da prática das carpideiras, por vezes de forma pejorativa, no entanto, compreendemos o texto como uma evidência de um tempo onde a prática foi notificada, assim como o autor também escolhe tomar nota e relatar a presença das atitudes, naquele momento histórico, diante da morte. Como um relato descritivo, o texto do jornal evidência as características da prática das mulheres

Quando não se vendem, ou não se entregam ao vício da embriaguez, assumem

encargo mais honroso – o de cantoras de côro pelas igrejas, onde não há vigá-

rio, capelas distantes em léguas sertanjas de calor moscardento, e onde a fé é

expressa por um instinto vago e inconsciente; ou, então, o de carpideiras, deplo-

rando em nênias desalmadas o trespasse de alguém. Nos dois casos, porém são

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as rezadeiras do lenço amarrado. Apesar da vida multiforme e duvidosa, não

as dispensam as famílias do sertão13

Mendes nos informa imagens das carpideiras: a de mulheres que cobram para

realização da prática; outra, que seria de pessoas que assistem os indivíduos frente aos ritos religiosos católicos diante da morte. Ressaltamos que por mais duvidosa que possa parecer a imagem das mulheres, o carpir, na concepção de famílias do ser-tão deve ser compreendido como um costume, cultural e historicamente elaborado e transmitido por tradição oral, uma tradição secular de exaltação dos mortos, presente na contemporaneidade.

A peregrinação, indicada por Mendes, evidência que as mulheres são conhecidas e reconhecidas como agentes em questões religiosas, pelo fato de não existirem pa-dres em muitas capelas no interior do Brasil, realidade que não se restringe a colônia, motivo pelo qual muitas das mulheres assumiram as funções próprias do ministro católico, fazendo, assim, “as vezes de padre”14.

Mendes relata ainda a postura das carpideiras durante o velório:

[...] embriagada, uma delas encostando o lenço dobrado em três a boca, experi-

mentou a voz de soluços, guiados. E um choro em arranques, abafado, quase

de criança, numa inconsciente dor, parecia ante pôr em ridículo o sombrio

silênco da morte do que, realmente, lamentar, no exaspero que só causa o

irremediável. Depois, descido o lenço num gesto teatral, ar grave, convita do

aparato triste das solenidades lúgubres, pediu pinga, bebendo três tragos

ansiosos e sedentos.15

O autor apresenta uma espécie de “encenação” de uma carpideira, a presença de choro e da pinga [cachaça] evidencia elementos importantes do ritual. O choro é provocado e encenado pela carpideira que leva o lenço a boca, talvez como um sinal de tristeza ou para auxiliar no tom de voz necessário ou desejado, tom que torna o ambiente com aspecto fúnebre e sombrio. A pinga ou cachaça se faz pre-sente devido a crença de “beber o morto”16, ou muitas vezes para esquentar durante o frio da noite.

Conhecida, reconhecida e significada como uma prática tradicional e por ve-zes tida em desuso ou insistente, o ofício de cantar e lamentar em velórios infor-ma a presença de uma morte “viva”, passos acompanhados pela família e pelos familiares e amigos de uma comunidade. A prática informa uma aproximação dos desejos de uma boa morte tanto para quem é velado, quanto para quem vive o momento, desejos dos mortos e principalmente dos vivos.

Embora tida como desgastada pelo tempo ou resignificada, encontramos mui-tas notas sobre as mulheres e sobre o ritual, particularmente em fontes ligadas

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as comissões ou associações de folclore, como informa Karol Lenko, pesquisadora da Comissão Paulista de Folclore, no jornal A gazeta de São Paulo, em 5 de Janeiro de 1963.

Houve carpideiras em S. Paulo? Assim, questiona a autora em um jornal repleto de notas sobre folclore. Ao dialogar com os relatos de Manoel Mendes, Lenko avalia que a existência das mulheres “carpideiras ou choradeiras” pagas ou não, são regis-tradas em povos antigos e na época moderna fazendo referência a existência desse tipo de prática no Egito, em Roma e em Portugal. Avalia ainda que o desaparecimen-to do ofício “foi promovido pelas proibições da Igreja Católica e dos órgãos adminis-trativos”17. Lenko busca ainda apresentar as reminiscências das carpideiras em São Paulo, apresenta referências aos estudos de Manuel Mendes, e relata acontecimen-tos no interior de Anjacehy “com o advento das estradas de rodagem, as carpideiras desapareceram, depois de 1927, dos sertões de Anjacehy”18: Embora com poucas re-ferências, o costume e ofício, desempenhado pelas mulheres e homens do interior, encontraram mecanismos para sua transmissão. Talvez por caminharem por diver-sos espaços dentro da comunidade, as mulheres encontraram formas de transmitir o conhecimento, “vivem em comum nos arranjos domésticos, sendo aproveitadas ora como cozinheiras, ora como lavadeiras, e até mesmo como madrinhas de batismo e amas de leite”19

Conhecidas nas comunidades e desempenhando vários funções além de carpi-deiras, o autor informa que o ofício não necessariamente limita o conhecimento e sua a feitura, eram “aproveitados” para outros afazeres. Ainda, informa que as eram mulheres conhecidas na comunidade, informa de suas aproximações no dia-a-dia dos demais membros de comunidades, evidenciando que quaisquer lavadeiras, amas de leite, cozinheiras poderiam ser uma carpideira em potencial.

Guilherme Santos Neves20, em artigo para A gazeta, de Vitória, Espírito Santo (ES), em Agosto de 1958, nota, a partir das descrições de Theo Brandão, que:

Nas localidades do interior, nos vilarejos, arruados, engenhos de açúcar ou

fazendas de criação de gado, sítios de coqueiros ou propriedades de lavoura,

há sempre indivíduos que se especializam no piedoso e meritório mister de

ajudar a morrer o próximo. Chama-se ‘exortadores’, parece, pois a função

que lhes cabe é exortar os moribundos nos terríveis momentos da passagem

para a outra vida, e porque exatamente assim é que são chamados em outras

regiões do Brasil21

Presente em várias localidades do Brasil, a tradição foi estudada, principalmente, pelos folcloristas, que oferecem notas de atitudes diante da morte, realizada pelas comu-nidades, aproximando-se da concepção de morte viva, que apresentamos nesta disserta-ção. Mudam-se as denominações daqueles que auxiliam os moribundos no momento da morte: carpideiras, cantadeiras de excelência, choradeiras, exortadores, personagem que fazem parte do cenário cotidiano das comunidades, das sensibilidades comunitárias.

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Segundo o folclorista, “sempre” há um indivíduo que se especializa em ajudar a morrer, prática que remete a ideia de uma morte acompanhada e piedosa, eviden-ciando que o moribundo, sentindo que é chegada a sua hora, o momento da passa-gem, continua a ser assistido pela comunidade, que se faz presente, solidária.

As referências as carpideiras ou aos exortadores também marcam o imaginário do tempo presente das comunidades no interior do Brasil e no Piauí, em particular; nas entrevistas que realizamos podemos observar que esses personagens são conhecidos. Observamos ainda a presença do ofício em artigos divulgados em jornais; em manifes-tações culturais como teatro e televisão, são expressões e representações recorrentes em um passado recente, que se mantém na atualidade.

“As centenárias”, peça teatral protagonizada pelos atores Marieta Severo, Andréa Beltrão e Sávio Moll, retrata a vida de duas amigas carpideiras no interior do Nordes-te brasileiro. Em meio ao fantástico mundo dos causos, assistimos ao percurso de duas carpideiras em um velório encontram-se com outra carpideira, se entusiasmam e sonham seguir. Segundo Marieta Severo “são personagens que enfrentam uma vida hostil, cheia de revezes, mas ainda assim seguem em frente com humor, imaginação e crença no fantástico”22

As sensibilidades do Nordeste do Brasil são permeadas por ritos e manifestações religiosas, um cenário marcado por práticas e estórias contadas e vividas cotidiana-mente, lendas e causos sobre a vida de pessoas simples do interior.

Outra referência ao Nordeste mágico e fantástico foi apresentado na novela Cordel Encantado23; as carpideiras aparecem compondo a cena do velório de um co-ronel da região. A cena revela que poucos choravam na ocasião e que o ritual era mar-cado pela presença do padre e das carpideiras, e somente elas, lamentavam a morte do coronel.

A cena se refere ao velório, a chegada dos conhecidos a casa do defunto; retrata um velório típico do interior, o caixão posicionado ao centro da sala principal da casa [bastante ampla], a presença dos parentes e conhecidos a volta do caixão; elementos do antigo ritual de velar se mesclam as recorrências presentes na contemporaneidade; os castiçais de metal e a coroa de flores usadas atualmente estão presentes no mesmo espaço em que estão as carpideiras, que cantam, choram, lamentam.

Segue-se o velório, com os diálogos dos personagens da novela, que comentam a postura dos filhos do defunto e dos demais presentes, enquanto as senhoras continu-am a lamentar, com pouco choro e mais rezas. É possível analisar os vários diálogos de marcam a cena do velório, há aqueles que rezam e os que, por vezes, se revezam com outras pessoas, que preparam alimentos, sorriem e conversam. Percebemos que o velório é também um momento de encontro de parentes, que se reúnem para velar um conhecido, bem como uma oportunidade de reunir uma expressiva parcela da família.

As carpideiras são representadas na cena por cinco senhoras, todas vestidas de preto com um véu de renda preta na cabeça; estão aos pés do morto e cantam com um terço na mão. Esse cenário dialoga com as observações de Câmara Cascudo, que afirma que as incelências são cantadas aos pés e os benditos a cabeça do defunto.

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Na cena, as senhoras cantam Uma Incelência chegou no paraíso/adeus irmãos adeus/até o dia do juízo, e seguem cantando até serem interrompidas pelo filho do defunto que, com uma expressão impaciente, pede para cantarem mais baixo ou diminuirem o tom da reza, que se expressem apenas com as mãos.

Na sequência da cena, apresenta-se o enterramento do coronel no interior de sua propriedade; o caixão é levado pelos conhecidos, os pés do defunto estão do lado de para fora do caixão. Segundo Alceu Maynard Araujo “os pés do defunto estão volta-dos para frente, ‘os que saíram de casa devem também entrar no cemitério’ é uma praxe que fazem questão de observar”24

A procissão é seguida pelo padre, que faz a encomendação e os últimos ritos de bênção e, também, pelas carpideiras, que continuam a cantar ao longo do percurso: uma incelência chegou ao paraíso/adeus irmãos adeus/até o dia do juízo, na sequência re-zam o Pai Nosso. O cenário tem a intenção de apresentar as carpideiras no velório de uma pessoa de posses no sertão, evidência uma das tradições e manifestações cultu-rais tradicionais e ainda presentes no sertão. A presença das mulheres carpideiras no velório com um padre evidência uma manifestação do catolicismo tradicional em diálogo com os rituais formais da Igreja Católica.

Outra personagem que, por vezes é representada, quando acontece a morte de alguém importante é Itha Rocha, uma carpideira conhecida no Brasil. Em entrevista ao portal de notícias on line Terra, contou sobre o interesse em estar presente no veló-rio do apresentador e deputado Clodovil Hernades (PR-SP)

Segundo a senhora, a sua presença se justifica por simpatizar com o apresenta-dor, personagem ilustre; ali estava por vontade própria “resolvi vir desde que eu sou-be da morte dele, ele fez muita entrevista comigo em que eu contei um pouco sobre minha profissão”25. Relata que nesse caso foi pelo dinheiro, mas também para ajudar o trespasse da pessoa. Avalia ainda que “as carpideiras são assim, não interessa se é de família, amigo, parente. O que interessa é o gesto humano, demonstrar laços como se fossemos parentes, irmãos”26. Ao reconhecer o seu ofício como profissão e cobrar para chorar nos velórios, a carpideira relata que sua função é ajudar na passagem e compreende que o choro se faz necessário no ritual.

Itha Rocha, 57 anos, é aceita como atriz27, mas se apresenta e se reconhece como carpideira, de uma família de exortadores, “para nós, a morte é uma passa-gem. E para que essa passagem seja feita de forma tranqüila e bonita, é necessário alguém chorar”28. Para a carpideira, o choro é necessário para uma boa morte, assim como a lamúria. Segundo os entrevistadores, a carpideira Itha Rocha co-meçou a chorar por dinheiro, o valor que cobra varia de acordo com a família, relata que nem sempre cobra pelo ofício “não me prendo a valores, as vezes, vou de cortesia”29

A presença da carpideira no velório do apresentador informa que a prática ainda é recorrente, as carpideiras são procuradas pelas pessoas, independente do lugar ser um grande centro como São Paulo ou pequenas cidades e até mesmo bairros como a Flor do Dia, onde mora o Senhor “Antônio Pequeno” em Alto Longá, no Piauí.

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A presença dos rezadores nos informa sobre a permanência da crença em uma co-munidade ou grupo de pessoas, que significam o ritual e o consideram indispensável no momento da morte; reconhecem a função social da carpideira ou exortador, agen-tes das canções, rezas e lamentos, figuras importantes no ritual de passagem. O Sr. “Antonio Pequeno” é agente, aquele que realiza o ritual, que presta uma última ho-menagem a pessoa [seja amigo, parente ou conhecido], que ajuda a morrer e se dedica ao ofício. O ritual ultrapassa o sentido de pagamento “monetário”, a ajuda, a presença e a atenção dedicada ao moribundo perpassa a crença, tanto do moribundo quanto do exortador. Embora a imagem desses agentes se relacione a uma prática profissional “cuja função é chorar para o defunto alheio, é feito um acordo monetário entre a carpideira e os familiares do defunto, a carpideira chorava e mostrava seus prantos sem nenhum sentimento, grau de parentesco ou amizade”30.

3. O QUE CANTAM?

Mesmo que as lamentações e repetições das rezas cantadas sejam algumas vezes interpretadas como lengalenga, lembramos a entrevista com a Sra. Erlene Oliveira, percebemos que a devoção se constitui em meios para perceber o sentimento reli-gioso em expressões como acreditar, agir, sentir; em sua expressão mais singular, as entendemos como prática individual de devoção aos santos e santas e práticas co-munitárias, como nos exemplos apresentados nas novenas e procissões, nas quais as canções e orações cantadas se fazem presentes.

São, portanto, momentos de encontro, em que a fé é expressa e o costume se man-tém, mas também resignifica uma tradição, a religiosidade popular, elementos asso-ciados a outros elementos, geralmente, adaptações as orações feitas por cada devoto.

No momento da morte, as comunidades ainda consideram importantes as ora-ções e as incelências para ajudar a morrer, como descrito pelos entrevistados com muita tristeza e inquietação devido ao tom das orações; no entanto as consideram necessárias no ritual fúnebre.

Segundo Luís Câmara Cascudo, a reza se constitui de “orações dirigidas aos espí-ritos superiores para obter proteção e auxílio na cura dos mais variados males[...] há rezas para tudo, envolvendo Deus, homem, plantas, animais, simpatias ”31. As rezas são entoadas ou faladas dependendo do mal, da doença ou do infortúnio [chuva ou seca]. As incelências caracterizam-se por rezas cantadas no momento da morte, se distinguindo nas letras das orações pela presença da devoção aos santos, presentes nas letras das devoções aos santos, pedidos por interseção que envolvem a natureza e Deus.

As rezas destinadas aos moribundos ou defuntos são cantadas diante do morto, para Câmara Cascudo, “além das Salve Rainhas e dos terços compreende os benditos e excelência”32. Os benditos não são cantados apenas no momento da morte, alguns servem para ajudar, por exemplo, nos pedidos de chuva, como o bendito de São José:

Page 119: Em cada conta um lamento

Meu divino São José to aqui nos vossos pé

Vim pedi água com abundância meu Jesus de Nazaré

Vim pedi água com abundância meu Jesus de Nazaré

Quem quiser chuva na terra se apegue com São José

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Aquele que for contritiu no coração

Que a divide a santa hóstia e a chuva a de vir no chão

Ofereço este bendito pro senhor daquela cruz

Em intenção de São Jose e para sempre amem Jesus33

Os benditos também são cantados em momentos de peregrinações, é o que nos in-forma o Sr. “Antônio Pequeno”, ao se referir as suas peregrinações a Canindé, Santa Cruz dos Milagres ou Juazeiro34:

Graças a Deus São Francisco que eu em Canindé cheguei

Que beleza foi o encanto que em Canindé achei

Graças a Deus e São Francisco que eu já fiz minha oração

Fiz com fé em São Francisco e a Virgem da Conceição

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

Contente com São Francisco e a Virgem da Conceição

Romeiro de São Francisco que vai pro Canindé

Tem muita felicidade em São Francisco ele tem fé

A matriz do Canindé é o Estado do Ceará

Adeus São Francisco adeus que eu já vou voltar

Oferecemos este bendito pro senhor daquela cruz

Com intenção de São Francisco para sempre amém Jesus

Aí vai cantando aquele canto35

O senhor traduz o bendito oferecido e devotado a São Francisco, a letra evidên-cia a alegria da peregrinação que permite o encontro com o santo, que se dá com o pagamento da promessa. O bendito também é cantado durante os terços ou novenas juntamente com outros benditos. Os benditos também são cantados no momento do velório, conhecidos como benditos fúnebres. Segundo Ewelter Rocha “o poder de um bendito está diretamente ligado, relacionado a sua capacidade de propiciar uma experiência de sofrimento, existindo, inclusive, baseada nesse parâmetro, uma

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hierarquia que organiza o repertório” 36. O autor analisa os benditos fúnebres reza-dos no interior do Cariri-Ceará, avalia que alguns deles são rezas muito fortes como: Maria valei-me.

Os entrevistados desta pesquisa se referiram aos benditos como uma reza muito pesada, entoada dependendo das feições do defunto, que pode ter morrido deixando algum pecado em terra, logo é cantada para o sofrimento do defunto ser amenizado. No entanto, os rezadores Sr. “Antônio Pequeno”, Sra. Teteia e Sra. Erlene não conheciam ou não quiseram cantar o bendito, pois segundo Sra. Teteia “é forte e a pessoa até diz que rezando quando tá chovendo demais, se a pessoa rezar passa até seis mês sem chover”37

Maria valei-me!

Maria valei-me (bis)/aos vossos devotos

Vinde socorrei/vosso amor se empenha/ o virgem da Penha

Penha onde mora na fonte vital/ na fonte vital(bis)

Salve, oh! Mãe de Deus (bis)/ Rainha suprema

Sobre os anjos seus/sois mãe de concórdia/ de misericórdia

Vida e doçura esperança sois/esperança sois (bis)

Oh! Mãe do Senhor (bis) Excelsa Maria/do trono de amor Salve, ouvi os brados

Pois que os degradados/da triste Eva filhos vimos suspirar/vimos suspirar (bis)

Gemendo de dor (bis) /Chorando de magoa/pedindo a Deus favor, neste vale

triste/ onde a pena existe/de lagrima cheia de miséria e ais/ de miseria e ais(bis)

Ouvi eia pois (bis) nossa advogada/mostrai quantos ais

Olhos piedosos / misericordiosos /a nós degredados

Terna mãe valei/terna mãe valei (bis)

Depois de acabar (bis) o cruel desterro/ dignai-vos mostrar, a Jesus infinito/ que é

fruto bendito/ desse feliz ventre Oh! Mãe de Jesus Oh! Mãe de Jesus (bis)

Oh! Clemente, ouvi-nos (bis) O pia, valei-nos/ oh! Doce, acudi-nos, oh Virgem Maria

Que Deus que nos cria/tristes dor no peito por todos rogai/por todos rogai (bis)

Para que por nós (bis) as promessas suas/mereçamos nós assim suplicamos/

para que vejamos/ na eterna gloria para sempre amém/para sempre amém(bis)

Humilde oferecemos (bis) a vós, virgem senhora/ e ao vosso bento filho, do

céu e da terra

Rainha da Glória/Louvores vos damos aceitai senhora38

O bendito foi registrado por Rocha, depois de uma série de rezas preparatórias. Segundo o autor, “os louvores a doçura e a misericórdia da condição de pecador, temáticas que emprestam ao bendito duas forças especiais: uma que aponta para a mística voltada para os rigores da justiça divina, outra que declara uma ascese que tem na relação afetiva com o sofrimento da mãe do salvador uma esperança de salva-ção”39. O autor compara o bendito fúnebre Maria valei-me com a oração Salve Regina, ou Salve Rainha, costumeiramente rezada ao término de cada terço.

Page 121: Em cada conta um lamento

Além dos benditos há as incelências, incelênça ou excelências, destinadas apenas ao momento da morte, trata-se, particularmente, de canto de exéquias. Segundo Câmara Cascudo, são cantadas ou entoadas a cabeça ou aos pés dos moribundos ou dos mor-tos e realizadas em doze versos40. O ritual deve começar e terminar no mesmo lugar para, com isso, evitar punições divinas, pois acredita-se que ao cantar os lamentos, eles devem ser contínuos até a saída para a sepultura, caso contrário, a alma não terá salvação. As canções teriam o poder e a função de livrar o morto dos pecados e esti-mular o arrependimento, “Dizem que quando se principia a cantar uma excelência, Nossa Senhora se ajoelha para só levantar quando terminar, e não sendo terminado, ela ficará de joelhos e o espírito, devido a esse desrespeito, não ganhará salvação”41

As incelências não são orações ou canções fixas, como podemos notar pelas características apontadas pelo folclorista Câmara Cascudo

Excelência para ajudar o moribundo a morrer. excelência da hora, cintando-se

a hora da morte. O ‘sol incrisou’ (eclipsou-se), excelência cantada se a morte se

verificar durante a tarde, e entoada quando do crepúsculo. Excelência para ele

ou dele, oferecida ao defunto. Terço rezado pelos assistentes e ‘tirado’ em voz

alta. Ofício de Nossa Senhora ou dos Defuntos ou ainda fieis defuntos. Exce-

lência da hora, quando o galo canta pela primeira vez. Excelência da barra do

dia, quando o dia vem clareando. Excelência Mariá, em que se canta as partes do

corpo do morto e as partes de sua roupa (informações do Maestro Guerra-Peixe)

(excelência da roupa ou da mortalha, quando vestem o defunto. Excelência do

cordão (da mortalha). Excelência da despedida. Reza da saída (do caixão). Canta-

-se reza até desaparecer o cortejo fúnebre. Ladainha de Todos os Santos.42

A multiplicidade dos lamentos, segundo o autor, é informada pelo passar do ve-lório, evidenciando uma forma ritual, as canções marcariam as horas e os momen-tos do velório até a saída do corpo, sendo assim, teria excelência para tudo, desde o preparo do corpo até a hora da barra do dia no amanhecer da sentinela. As várias canções também informam a necessidade do defunto, seja no ajudar a morrer, seja nas rezas cantadas por serem de devoção do mesmo. A seqüência das incelências variam de canção para canção e de comunidade para comunidade, a composição do repertorio fúnebre depende ainda do puxador da reza e das tradições, que foram repassadas a ele pela experiência, como avalia Martha Abreu “as pessoas comuns dão dinâmica e criatividade próprias as manifestações culturais”43, muitos reza-dores e rezadeiras criam ou adaptam suas rezas, sejam elas para as curas de males que afetam o corpo ou para ajudar a morrer, adaptações que ocorrem desde o ouvir, já que muitos costumes são transmitidos pela tradição oral, caso característico das incelências, que são transmitidas, não palavra por palavra, mas pelo sentido da tradição, pela experiência e entendimento de que as canções ajudam no momento da morte.

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Segundo Gulherme Santos Neves, na “boca do povo” a palavra se estropia em inselência ou no plural inselências44, um tipo de reza ou hino cantado, um certo número de vezes, sete, nove ou doze repetições. Nas incelências registradas nesta investigação só encontramos até sete repetições, e usadas para ter uma boa morte ou uma morte bonita. Para Cascudo, seria uma morte precedida de agonia calma, muitas vezes demorada, sem padecer, com estoicismo, despedindo-se dando ordens e conselhos ao contrário de ter morte feia, trágica a pontear temores45.

Repetida sete vezes, conta com um arremate de uma Ave-Maria. As incelências, geralmente, são rezas repartidas, “repartir significa que o capelão e o ajudante cantarão um trecho a duas vozes e os demais presentes mulheres e homens, outro a duas ou três vezes alternando”46. O puxador de reza canta a primeira estrofe repetindo-a duas vezes e os demais repetem o canto como na incelência abaixo:

Uma incelência da Virgem da Vitória

Uma incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Duas incelência da Virgem da Vitória

Duas incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Três incelência da Virgem da Vitória

Três incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Quatro incelência da Virgem da Vitória

Quatro incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Cinco incelência da Virgem da Vitória

Cinco incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Page 123: Em cada conta um lamento

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Seis incelência da Virgem da Vitória

Seis incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Sete incelência da Virgem da Vitória

Sete incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão47

A Incelência, em particular, relata o momento de partida, da passagem. A reza é cantada pedindo a Virgem da Vitória que ajude em oração e interceda pelo defunto que “vai embora”; segue-se, ainda, um canto de despedida personificando o que seria a fala do defunto quando o mesmo, embora sentido tristeza por deixar os entes que-ridos, se despede dos presentes “adeus meu povo todo, adeus meus irmãos”. Cantam a interseção dos santos para ajudar o corpo a encontrar um caminho junto as po-tências divinas, bem como o reconhecimento de que o tempo entre os vivos findou, reforçando a idéia de separação para que a alma não fique vagando ou “volte” para “assustar” os vivos.

As canções funcionam também para os vivos, que realizam o papel de ajudar no ritual de passagem relembrando ao morto que o “adeus” é necessário.

Outra incelência cantada pelo Sr. “Antôtnio Pequeno” relata a despedida do defunto:

Um apóstolo era um irmão, vos mandai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Dois apóstolo era um irmão, que vos mandai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Três apóstolo era um irmão que vos levai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Quatro apóstolo era um irmão que vos levai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Cinco apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Seis apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo

Sete apóstolo era um irmão que vos mandai pro paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmão até dia de juízo48

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Na incelência, o morto deixa de ser tratado como um corpo [como na reza anterior], é chamado de irmão, fazendo referência tanto a alguém da família como a um conhe-cido da comunidade. Em alguns bairros pequenos, como é o caso do bairro Flor do Dia, a maioria das pessoas se conhecem e mesmo que o puxador de reza seja chama-do para uma região distante para realizar o ritual, as denominações das incelências tendem a apresentar um caráter de aproximação entre morto-família-comunidade.

O irmão é comparado a um apóstolo, talvez fazendo referência a alguém que vive e crer em Jesus Cristo, que designou e foi acompanhado por doze apóstolos e vários discípulos. Algumas incelências são cantadas em número de 12 repetições que, se-gundo Alceu Maynard, se explicaria no saber popular da seguinte forma: “são exce-lências, isto é, 12 vezes a mesma coisa [...] alterando coro e capelão, até cantar as doze ‘excelências’ porque são 12 apóstolos” 49.

Apóstolos, santas, santos, Nossa Senhora, Deus, invocações e referências a ele-mentos e pessoas tocadas pelo divino são constante nas rezas, uma vez que podem ajudar a interceder pelo defunto. O irmão que viveu na fé, expressa pela canção, foi mandado ao paraíso, o cantar “que vós mandai pro paraíso” se refere a uma ação di-vina em relação aquele irmão, mandado para o lugar celeste, onde todos os cristãos desejam ir no pós-morte. Em seguida, a reza cantada é de despedida do defunto, como se o mesmo estivesse se despedindo dos que ficaram e projetando o reencontro de todos no dia do juízo final.

Os rezadores acreditam que essa incelência auxilia o defunto na passagem para o paraíso, informa a despedida, assim como o defunto relembra os vivos que o reen-contro acontecerá, que a morte é um destino de todos; como se o moribundo dissesse “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”50.

A incelência apresenta alguns pontos de encontro com o lamento apresentado na novela Cordel Encantado.

Sr. “Antônio Pequeno” Novela

Um apóstolo era um irmão Uma incelências

Vós mandai pro paraíso Entrou no paraíso

Adeus irmão, adeus oh irmãos Adeus irmãos, adeus

Até dia de juízo Até o dia do juízo

Quadro 1 - Pontos de encontro entre o lamento e a novela Cordel Encantado

As aproximações se mantêm apenas na letra, o tom ou a melodia de cada uma se faz de forma diferente; mais vagarosa e arrastada, se apresenta a incelência cantada

Page 125: Em cada conta um lamento

pelas carpideiras da novela. A diferença permanece na primeira estrofe, contada na primeira coluna pelo número de apóstolos [um apóstolo, dois ...] e na segunda co-luna contada pelo número de incelências [uma, duas, três incelências...] Em outro lamento, que o Sr. “Antônio Pequeno” canta é a caminhada da alma para o céu:

Uma incelência do Nosso Senhor

Se forem pro céu se me chamar também vou

Meus inimigos que eu não tenho pavor

Que eu levo na mão a imagem do Senhor

incelência do nosso senhor

Se forem pro céu se me chamar também vou

Meus inimigos que eu não tenho pavor

Que eu levo na mão a imagem do Senhor...51

“Uma incelência do Nosso Senhor” remete ao lamento, a um canto dedicado ao Nosso Senhor, diferentemente das outras que apresentamos, que pedem aos Santos e a Nossa Senhora. Aquela remete a Jesus Cristo; desta vez, apresentando a caminhada até o céu, onde o chamado divino, que seria a morte, é aceito sem temor ou medo, “se forem pro céu, se me chamar eu também vou”. O trespasse é cantado pela incelência como algo sem temor, uma vez que, atendendo ao chamado divino, seria acompanhado pelo divino até chegar ao céu, sem ser tentado pelo inimigo de Deus.

Podemos fazer referência a incelência em algumas passagens ou até mesmo a idéia geral presente no Salmo 23 do livro sagrado para os católicos, a Bíblia:

O Senhor é meu pastor; nada me faltará

Deitar-me faz em pastos verdejantes; guia-me mansamente a águas tranqüilas.

Refrigera a minha alma; guia-me nas veredas da justiça por amor ao seu nome.

Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum,

porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.

Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos; unges com

óleo a minha cabeça, o meu cálice transborda.

Certamente que a bondade e a misericórdia me seguiram todos os dias da mi-

nha vida, e habitarei a casa do Senhor por longos dias52

A crença estar no caminho da salvação e na presença de Deus, no desejo expres-so na incelência, bem como nas frases presentes do salmo; principalmente, na frase “Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam”.53 Podemos relacionar ao tre-cho da incelência “se foram pro céu, se me chamar eu também vou/meus inimigos que não tenho pavor/que eu levo na mão a imagem do senhor”54

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Além de se referir a santos e santas de devoção, outras canções utilizam elemen-tos da natureza para falar sobre a morte, chamada pelo Sr. “Antônio Pequeno” por Sangue de Jesus:

Era um cravo era uma rosa

Era um mimo dessa mesma natureza

Valei-me Nossa Senhora e Senhora Santa Teresa

Vamos fazer oração lá nos pés da Santa Cruz

Quem tiver dor e pranto

De Jesus

Aí começa de um até sete [...]55

Repetida sete vezes, assim como as outras incelências, o lamento se refere as flo-res [cravo e rosa] como mimos, elementos delicados da natureza para evocar e se va-ler de Nossa Senhora e Santa Teresa; a oração é lembrada como elemento para buscar acalentos, “quem tiver dor e pranto” deve rezar, fazer oração as potencias divinas. A canção chama para os pés da Santa Cruz, lugar de sofrimento e para serem feitas as orações e pedidos. Relembra que a dor também foi sentida por Jesus e que a ele deve-se recorrer quando tiver na mesma situação de sofrimento.

O lamento a seguir refere-se a natureza e a morte mais diretamente

Só um irmãozim que eu tinha e esse hoje foi embora

Foi embora, foi embora

Foi lá pro rei da gulória

Meus filhim chore por mim

Que eu já vou por entre o céu

Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpetua

Dois irmãozim que eu tinha e esse hoje foi embora

Foi embora, foi embora

Foi lá pro rei da guloria

Foi lá pro rei da guloria

Meus filhim chore por mim

Que eu já vou por entre o céu

Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpetua

Três irmãozim que eu tinha e esse hoje foi embora

Foi embora, foi embora

Foi lá pro rei da guloria

Foi lá pro rei da guloria

Meus filhim chore por mim

Que eu já vou por entre o céu

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Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpetua

Seis irmãozim que eu tinha e esse hoje foi embora

Foi embora, foi embora

Foi lá pro rei da guloria

Meus filhim chore por mim

Que eu já vou por entre o céu

Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpetua

Sete irmãozim que eu tinha e esse hoje foi embora

Foi embora, foi embora

Foi lá pro rei da guloria

Meus filhim chore por mim

Que eu já vou por entre o céu

Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpetua56

Com pesar e tristeza, a reza é mais lamentosa, uma forma de diálogo entre o pa-rente e o morto. Lamentando a morte do irmãozim, relatado como o único, repete a tristeza como a ida para o reino da Glória; na estrofe seguinte, a alma do irmão pede que chorem por ele: “meus filhim chorem por mim, que eu já vou por entre o céu”, como uma forma de ajudar na passagem, o choro e as rezas se fazem necessárias.

“Coberto de cravo branco e cheirando a rosa perpétua”, as flores estão presentes em vários momentos da vida dos indivíduos, usadas em celebrações assumem função nos momentos de alegria e de tristeza, utilizadas em casamentos e batizados cele-bram os rituais de passagem, expressam o carinho e tristeza no momento da morte, as rosas também estão presentes. Cravo branco e cheirando a rosa perpetua infor-mam a situação do corpo com a última cor e odor, passagem eterna.

A passagem que é relatada na incelência abaixo, rezada para encomendar a alma:

Ai meu Deus essa alma vai pro céu

Um anjin é quem vai levando

De tudo ela vai se esquecendo

Só de Deus vai se alembrando

Só de Deus vai se alembrando

Vai recostada no andor

Do lado da Mao direita

Nos pés de nosso Senhor57

Dedicada a Deus, o lamento pede que olhe para a alma que chegará ao céu acom-

panhada de um anjo, evidência uma passagem informada pela fé na salvação rumo ao paraíso. A canção relata que no caminho ao céu, guiado pelo anjo, a alma vai es-quecendo de tudo, da vida terrena, só lembrando de Deus. O esquecimento da vida

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auxilia no momento de separação, a alma deve seguir o caminho da salvação e pen-sar em Deus, deixando todas as preocupações e sentimentos para trás, assegurando, assim, uma boa passagem e uma segurança para os vivos.

Os anjos também se fazem presentes na incelência abaixo, como guardiões das almas e acompanhantes:

Meu Anjo da Guarda

vamos no céu

visitar nosso Senhor

um anjinho vai contigo

meu divino resplendor58

Os Anjos da Guarda levam ao caminho de céu, a morte é suavizada pela visita a Nosso Senhor. A companhia do anjo assegura, assim, a entrada no Paraíso e a crença dos vivos, que após a morte, a alma, também, contará com ajuda para encontrar o caminho; na terra os vivos rezam e velam para ajudar o moribundo a morrer e faze-rem a passagem de separação da alma do mundo dos vivos, “do outro lado”, os anjos e santos invocados pelos vivos auxiliaram na passagem.

A bença mamãe, voz queira botar

os anjim te chama e não pode esperar

os anjos te chama e não pode esperar

eu tenho um rosário para eu rezar

mas Nossa Senhora quando eu lá chegar59

O chamado do anjo suaviza e caracteriza a morte após cumprimentar a mãe, uma forma de consolo aos parentes e amigos presentes na letra da incelência, a alma informa que deve comparecer ao encontro com Nossa Senhora, que a espera para rezar um rosário, a pressa ou a forma por vezes repentina que a morte se apresenta na perspectiva que os vivos devem se preparar para a morte, “o cha-mado”, pois as rezas continuam presentes no céu. A partida, justificada pela não espera do anjo, o chamado deve ser atendido de bom grado, a alma deve deixar e se desvincular dos parentes e amigos para seguir caminho com o anjo para o Paraíso.

As incelências são cantadas, diferentemente no momento do velório, em que as emoções se expressam mais facilmente devido a tristeza que se espalha naque-le momento. O tom de voz e o arrastado de cada lamento permeiam o corpo e os sentidos, provocando o choro dos presentes. São rezas cantadas durante o velório e só começam quando o corpo chega e terminam quando o corpo sai de casa para a última morada.

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A exaltação antes de morrer não é precedida por canções, segundo o Sr. “Antônio Pequeno” o rezador, ou o acompanhante, fica vigiando e, quanto está para morrer, exalta chamando pelo nome da pessoa:

Fulano te lembra do nome de Jesus

Jesus vai contigo e to vai com Jesus

Jesus é meu e eu sou de Jesus

Jesus, Jesus, Jesus Maria e José

De Jesus você é

Jesus, Jesus, Jesus de Nazaré.60

A exaltação é repetida por três vezes até a pessoa falecer, em seguida rezam o terço, Salve Rainha ou outra que o moribundo tenha por devoção. As orações se assemelham a uma oração de exaltação recolhida por Ewelter Rocha, fornecida por Sr. Severino:

Jesus, Maria José

Jesus é meu, eu sou de Jesus

Valei-me Jesus, José e Maria

Jesus e Maria, Sant’Ana também

No reino da gloria

Para sempre amém61

As duas orações clamam a interseção da Sagrada Família, no entanto, a oração relatada pelo sr. “Antônio Pequeno” é dita ao moribundo nos últimos momentos, com o peso de relembrá-lo que Jesus lembrará e o acompanhará não devendo temer a morte. Em seguida, rezam uma oração de devoção, como o Pai Nosso Pequenino

Pai Nosso Pequenino

Pai Nosso Pequenino Deus lhe leve no bom caminho

Sete anjo me acompanha, sete estrela me ilumina

Aí.....deixa eu vê meu Deus

Pai Nosso Pequenino deus lhe leve no bom caminho

Que me fez a cruz na testa

Nossa Senhora meu padri..

Nossa Senhora minha madrinha

São João é meu padrim

Sete anjo me acompanha sete estrela me alumia

Que me fez a cruz na testa

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Pro demônio não me atentar

Nem de dia nem de noite nem na hora da minha morte62

Oração de devoção que se refere ao menino Jesus, como analisa Guilherme Santos Neves:

Dentre as orações que o povo contritamente reza implorando os favores do

Céu, está o conhecido ‘Padre Nosso Pequenino’ oração dirigida ao Menino

Deus que, na fé e simplicidade popular, passa a ser assim carinhosamente

chamado de ‘pequenino’63

O folclorista retrata a presença da reza no interior do Espírito Santo, em Santa Leopoldina, nos informa a recorrência da oração, bem como a devoção em rezá-la. A oração descrita pelo sr. “Antônio Pequeno” informa outras variantes da mesma devoção:

Sr. Antônio “pequeno” Folclorista Fernando

Pires

Variante

Santa Leopoldina

Variante

Afonso Cláudio

Pai nosso pequenino

Deus lhe leve no bom

caminho/

Que me fez a cruz na

testa/

Nossa Senhora minha

madrinha

São João é meu pa-

drim /

Sete anjo me acom-

panha sete estrela me

alumia/

Que me fez a cruz na

testa/

Pro demônio não me

atentar/

Nem de dia nem de

noite nem na hora da

minha morte

Padre Nosso peque-

nino/sete tocha pelo

meio/ Nosso Senhor

meu padrinho/nossa

senhora minha madri-

nha/que fizeste o sinal

na testa/que o demônio

me atentar/nem de

noite nem de dia/nem a

pino do meio-dia/gloria

ao Padre, ao filho ao

espírito santo, Amém.

Padre nosso peque-

nino/erguei no meu

caminho/ sete tocha

me alumia sete anjo

me acompanha N.

Senhor meu padrinho/

Nossa senhora minha

madrinha/ pela cruz de

fronte/ para o demônio

não me atentar/ de noi-

te/nem de dia/nem em

pino de meio dia/nem

na hora de me deitar/S.

Pedro Poe a mesa/Jesus

Cristo no altar/Senhor

benza esta cama/eu

quero me deitar

Padre Nosso Pequenino/

Deus me guia em meu

caminho/sete velas me

alumeia/sete anjo me

acompanha/ a tentação

não me atenta/ nem de

dia, nem de noite/nem

agora, nem na hora/ da

nossa morte. Amém.

Jesus

Quadro 2 - Versões do Pai Nosso Pequenino

Page 131: Em cada conta um lamento

A versão apresentada pelo folclorista Fernando Pires relatada por Guilherme Neves foi citada no livro Tradições populares de Entre-Douro-e Minho em 1938, em que a presença nas tradições portuguesas informa a continuidade e as variantes da oração no Brasil. Santa Leopoldina e Afonso Claudio são duas cidades no Espírito Santo nas quais o folclorista Guilherme Santos Neves recolheu as orações.

O Pai Nosso Pequenino, rezado pelo Sr. “Antônio Pequeno” em muito se asse-melha as orações registradas pelo folclorista, podendo se caracterizar como mais uma variante da oração, relatadas em 1938, 1949 e 2010, respectivamente, a pers-pectiva geral da oração se manteve, mudaram apenas algumas palavras.

Além das orações recitadas pelo Sr. “Antônio Pequeno”, há, ainda, orações que eram rezadas no dia da visita e durante sete dias: o terço das almas. Rezado como um terço convencional; a mudança estava que em lugar de rezarem as 10 [dez] Ave Marias de cada mistério rezavam uma jaculatória. Assim, se divide o terço das almas:

Creio em Deus Pai/

Pai nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha nos ao vosso

reino seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu, o pão nosso de

cada dia nos daí hoje, perdoai as nossas ofensas, levai as almas para o céu e

socorrei aquelas que mais precisar

Oh Maria concebida sem pecado, rogai por nos que recorremos a vós

Ai começa de novo

É cruz é eterna ajudai senhor ai até as dez ai rezava o glória ao pai e o pai nosso

e continuava de novo, ate o fim

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

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A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

É cruz é eterna ajudai senhor

A luz perpetua é o resplendor

A gente rezava ate o final, né o terço ai dizia

Gloria ao pai, ao filho e ao Espírito Santo assim como era no principio agora

e sempre amém

Há meu Jesus perdoai livrai-me do fogo do inferno

Levai as almas todas para o céu e socorrei principalmente aquelas que mais

precisar

oh Maria concebida sem pecado

Rogai por nos que recorremos a vos

Ai ate terminar o terço64

O terço descrito pelo sr. “Antônio Pequeno” é composto por jaculatórias65, esse terço também é conhecido como terço do repouso eterno ou terço dos mortais. Segundo Ewelter Rocha, essa forma de rezar é exclusiva dos ritos de morte, que se assemelha ao terço convencional, distinguindo-se pelo acréscimo jaculatórias antes dos Pai--Nosso e da Ave-Maria: “encontra-se na liturgia dos defuntos do catolicismo oficial: réquiem aternam dona eis, Domine/Et lux perpetua luceat eis;Requiescat in pace/Amem”66

Percebemos diferenças no terço relatado pelo autor e descrito pelo Sr. “Antônio Pequeno”, Rocha percebe a presença da jaculatória “Daí-lhe Senhor o eterno descan-sa/Entre o resplendor da luz perpetua/Descansa em paz/Amém”67 e antes de cada Pai-Nosso e após cada Ave Maria é recitado “repouso eterno daí-lhe Senhor/ a luz perpétua, o resplendor”68. No terço informado pelo Sr. “Antônio Pequeno”, as Ave--Maria são substituídas pela jaculatória “é cruz eterna, ajudai senhor/a luz perpetua é o resplendor”69.

As rezas cantadas e dedicadas aos santos protetores por interseção no momento da morte não possuem letras fixas, a multiplicidade ou variações das incelências in-formam as escolhas, bem como a evocação das memórias no momento do velório, que fazem rezar determinadas orações. A escolha também se dá por devoção dos pre-sentes, do puxador de reza e do defunto. As canções e a prática de ajudar a morrer e a preparar a alma para partida, para a separação do corpo servem tanto para o defunto como para os vivos. O corpo também desempenha seu papel, ele (re)lembra os vivos que aquele caminho será trilhado por todos, assim o ritual se mantém neces-sário para aqueles indivíduos que crêem que o acompanhamento e as rezas são importantes para a passagem.

O desinteresse dos mais jovens por manterem os costumes e aprender as canções é sentido pelos rezadores e puxadores de reza, no entanto, o conhecimento geral dessas

Page 133: Em cada conta um lamento

canções ainda permanece, assim como podemos localizar no presente a continuidade dessas práticas, seja nos estados do Nordeste do Brasil como Piauí, Maranhão e Ceará70.

4. POR QUE FOTOGRAFAR OS MORTOS?

Esse questionamento surgiu frente a um costume amplamente utilizado no final de 1950. Segundo Mauro Koury71, a prática de fotografar os mortos encontra-se interdi-ta na sociedade ocidental contemporânea, há mudanças nas atitudes diante da morte.

Para o autor, interdito significa uma ação com o fim de proteção e se caracteriza-ria por um preceito proibitório, seja um impedimento do uso, de bens ou de acesso a lugares tidos ou considerados sagrados72. A prática da fotografia mortuária estaria interditada por uma espécie de “imposição imaginária” da sociedade e sua eficácia estaria na aceitação pelo grupo, uma vez que a prática está em desuso, e outras solu-ções sociais são levadas a justificarem a proibição, por vezes explicada por ser con-siderada macabra, ou uma falta de respeito para com o morto ou ainda como uma loucura por parte dos parentes em guardar/tirar fotos do momento da morte.

Essas mudanças ou (re)significações no trato com a morte são perceptíveis pela relação dos indivíduos com os elementos e costumes rituais realizados ou tidos como tradicionais, vistos principalmente nas práticas comunitárias e familiares, ligadas aos grandes centros. Falamos do uso de velas, fitas dedicatórias, flores, foto-grafias (moribundo, da morte e santinhos), terços (práticas dedicadas no momento do velório), elementos que sofrem mudanças frente a perspectiva da morte cada vez mais afastada do “convívio” dos vivos.

A morte, como conceito e expressão, encontra-se interdita na sociedade oci-

dental contemporânea. O modo de vida atual impede a vivência da morte sob

um discurso de juventude eterna e dominação da natureza; a morte acontece

e é entendida como uma forma de fracasso tecnológico. Como não pode ainda

ser evitada, é aventurada como a morte do outro e como tal, as formas rituais e

as expressões de dor são minimizadas e tratadas de modo higiênico73

A minimização da dor e do sofrimento, evidencia o trato diferenciado dado a morte. Morrer em casa, os lamentos de orações, choros e benditos não constituem o cotidiano da morte na contemporaneidade, no entanto percebemos que o costume de velar com incelências e ofícios continuam a ser praticados, assim como o uso de fotografiar os parentes falecidos.

O ato de fotografar os moribundos e de tentar capturar o último momento do indivíduo constituem a perspectiva de análise de Mauro Koury sobre a re-lação entre a fotografia e o ritual de morte na população urbana brasileira. Sua hipótese inicial está relacionava ao ato de fotografar os mortos nos pequenos

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centros urbanos; após analisar depoimentos dos vinte e sete estados brasileiros, constatou que não havia processo de equivalência entre a prática grandes nos centros urbanos74. Das respostas encontradas pelo autor, a fotografia surge como um interdito, sendo a maioria das respostas vinculam o costume de fotografar ao originário de uma tradição familiar, de álbuns de família de parentes, sejam eles próximos ou distantes75

O retrato almejado parece ser não apenas do que se foi, mas, segundo o autor, de como foi. A tentativa de capturar o momento da morte se relaciona tanto ao sentido da boa morte para o morto como e, principalmente, elemento de afago para os vivos

Fotografia mortuária parece possuir a intenção não apenas deter o processo

de deteriorização do cadáver, mas também a de fixar uma espécie de imagem

de tranqüilidade e quase felicidade na face de morte do retrato. Uma espécie de

máscara que enovela o movimento imaginário de eterna presença de garantia

de sua boa morte e de sua presença eterna junto ao Senhor e no olhar para os

seus que ainda vivos76.

A fotografia como um símbolo dentro do processo ritual do momento da morte parece ser mais um elemento de consolo para os vivos; no que se refere as práticas re-alizadas e necessárias para o morto, para o trespasse (seja ele familiar ou não) quanto para a assembléia dos presentes, que realizam e, por vezes, produzem símbolos e sig-nificados. Com a difusão da fotografia, o ato de fotografar tornou-se cada vez mais co-mum, não sendo necessária a ajuda de um profissional especializado, embora Koury avalie que muitas empresas funerárias disponibilizem desses serviços77.

As fotografias de mortos podem se dividir em duas categorias: fotografias mortu-árias 78 e/ou retratos mortuários, que constituem as representações de pessoas já sem vida, e os retratos fotográficos usados como elementos cemiterial. Fotografias e vidas que passam a representar os corpos sepultados79, como nas imagem presentes nos túmulos e nas “lembrancinhas” ou cartões de presença/agradecimento, conhecidos também como santinhos.

Nesta perspectiva analisamos algumas fotografias de falecidos, organizadas em um álbum de família80. Utilizamos apenas os retratos mortuários que tentam captu-rar a morte “em si”. Selecionamos imagens que retratam o momento da morte, algu-mas fotografias não possuem datas ou nome do fotógrafo ou, até mesmo, o nome do defunto, mas fazem parte das fotografias guardadas, juntamente com os santinhos e os missais de sétimo dia e missas de mês(es) de uma família especifica. Encontramos fotografias de diversas formas:

A pessoa morta, na cama ou em um sofá, já com suas vestes funerárias, como se

estivesse a dormitar, ou o morto no caixão adornado com flores, mãos cruzadas

com um terço na mão ou uma cruz em oração, sozinho ou acompanhado de

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Imagem 9 - Velório (anônimo) 82

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parentes mais próximos, fazem parte do cenário do registrar fotograficamente os

mortos queridos. Outras fotos mortuárias retratam o morto durante o velório ou

no cemitério rodeado dos parentes, amigos e pessoas influentes da comunidade81

As fotografias retratam, em sua maioria, o momento do velório ou a caminhada para a sepultura que parece ser o caso da imagem 9. Na imagem, não conseguimos precisar a data ou o lugar, o que se justifica pelo desgaste do retrato, sendo difícil até precisar se é uma fotografia de um adulto ou uma criança. Aparentemente (com doze pessoas presentes) pensamos ser o corpo de um adulto (homem ou mulher), carre-gado por homens observados por mulheres e crianças, uns olham para o fotografo e outros para o corpo, que parece estar sendo carregado, talvez o momento da chega-da ou deslocamento do corpo, não necessariamente para a sepultura, pois o caixão encontra-se aberto com o corpo coberto de flores.

A imagem faz parte de um álbum de família, “instrumento privado em que se depositam as lembranças iconográficas, familiares, de amigos próximos e pessoas importantes que, de forma direta ou indireta estiveram presentes na vida e na orga-nização familiar”83trata-se de um instantâneo durante a realização do velório.

Há imagens que retratam momentos do velório ou sentinela, as pessoas fotogra-fadas, em alguns casos não acompanham o movimento do caixão. No retrato mor-tuário é comum notamos a presença de crianças que, pelas feições, parecem olhar curiosas para o corpo e para os demais presentes, meninos e meninas que parecem estar em maior número que os adultos.

A imagem seguinte retrata o caixão exposto sobre uma cama, a qual podemos imaginar que seja da falecida, esse velório possui duas fotos (imagem 10 e 11) uma de-las captura apenas do corpo e outra consta do corpo e as pessoas presentes no velório.

Na imagem 10, podemos perceber que os olhos permanecem abertos e o corpo vestido com um hábito branco e os cabelos cobertos. O caixão repousa sobre uma cama de solteiro sem colchão coberto por um tecido e ao seu lado duas velas acesas, uma na cama e outra em uma mesa pequena. Na mesinha, encontram-se um terço, alguns livros empilhados, que poderiam ser de oração e uma Bíblia junto com uma pequena imagem de Cristo crucificado, nela percebemos ainda as marcas de devo-ção, presumimos que a cama era do defunto, bem como o terço longo e com contas pretas que informa a prática de reza. Repleta de flores e acompanhada por olhares tristes de jovens mulheres ao redor, na cabeceira da cama notamos um semblante contido, aparece um senhor com a mão encostada na cama esta imagem parece nos apresentar a família em volta do morto, costume que evidência a proximidade do morto com seus familiares, a vontade dos presentes em participar da foto e marcar presença no momento derradeiro para a recordação da família, dos familiares e ami-gos que receberam e guardaram a foto.

O reverso da imagem evidência possui quatro linhas e uma segmentação dividi-da em duas partes com uma palavra ao meio agfa84, que nos faz lembrar um cartão

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Imagem 10 - Velório (anônimo)

Imagem 11 - Velório (anônimo)

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Imagem 12 - Velório (anônimo)

Imagem 13 - Velório (anônimo) 86

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postal, embora não tenha dedicatória informa a prática de enviar fotos de parentes falecidos para familiares distantes que não puderam comparecer ao velório.

A imagem 12 parece ter sido tirada em um local aberto fora da casa, o caixão com a tampa aberta evidência um corpo vestido com uma batina, típica dos freis capuchinhos ou franciscanos85e com corda branca amarrada na cintura. A cor escura da mortalha, mesmo que se referisse a outro santo de devoção podemos inferir que se trata de um símbolo de devoção além de nos informar uma certa preparação do defunto para a morte, uma vez que ele possa ter escolhido a própria mortalha, ação comum entre os devotos. A foto confirmaria, assim, a morte e os desejos cumpridos. O defunto possui nas mãos uma imagem de cristo pregado na cruz, com a frente voltada para seu rosto o que indica que essa imagem tenha sido retirada no momento do enterramento.

Também notamos a presença de crianças, mulheres e homens em maior número, sem contar com o defunto, compõem a imagem, alguns compenetrados olhando para o morto embora danificada percebemos que já outros olham diretamente para a câmera.

Assim, na imagem 13, podemos notar um maior número de pessoas e a pre-sença do corpo em uma área aberta, fora da casa e com um pouco mais de cinquenta pessoas, notamos várias pessoas ao redor do corpo do defunto mais uma vez muitas crianças e algumas delas próximas a cabeça do morto que poderíamos inferir, seriam parentes ou netos. Vestido com um hábito branco87, um dos defuntos (imagem 13) é observado por muitos olhares contritos e curiosos. A presença de muitas pessoas no velório pode informar o quanto os mortos eram queridos entre os demais membros da comunidade, ou ainda que possuiam uma família grande e, até mesmo, que além de conhecidos tinham posses.

Na imagem 14 a seguir, já bem clara e amarelada pelo tempo, poucas pessoas aparecem, dois meninos e quatro adultos velam uma criança outro que parece, pelo semblante, tranquilo como em um estado de sono.

Esta é a única fotografia de criança falecida dentre as outras guardadas pela família. Crianças que nas incelências são chamados de anjinhos.

A imagem 8 trata-se do velório de Joaquim, descrito anteriormente, onde vemos os parentes mais próximos ao morto e o restante das pessoas presentes no alpendre da casa. A imagem marca os momentos antecedentes a saída do corpo para a sepultura, apoiado por tamboretes; é uma das poucas fotos em que aparece alguém tocando na cabeça do defunto.

Esta imagem evidência um caixão com pouca altura, visto ser possível ver os pés do morto calçado com sapatos e vestido com o terno usado possivelmente em seu casamento. Esse velório possui três fotos, uma que retrata uma parte das pessoas pre-sentes no velório e duas do corpo. Talvez as imagens repetidas tenham sido feitas para entregar como recordação.

A prática de fotografar não situa-se apenas no “passado” da família com imagens em preto e branco, informam a democratização das câmeras fotográficas uma vez que não foi tirada por um fotografo profissional, como podemos perceber na escolha do ângulo da imagem.

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Imagem 14 - Velório (anônimo)

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Imagem 15 - Velório Joaquim Luciano - álbum de família

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Na imagem 16, percebemos que poucas pessoas estão reunidas na sala da casa, o corpo repleto de flores e folhas simples comuns nas casas de Alto Longá. Com a imagem colorida percebemos que as roupas das pessoas não observam a tradição de usar a cor que representa o luto, com roupas simples velam o familiar com duas velas acesas e uma mesinha com maços de velas, para manter a luz para o morto, que tem junto as mãos um crucifixo de madeira, o mesmo podemos ver na imagem 17. Com olhares cansados da noite do velório, seus filhos prestam a última home-nagem, antes da saída do corpo. A pedido de um dos filhos essa e outras imagens foram capturadas e reveladas, atitude que ainda guarda o costume de capturar e guardar fotos da sentinela.

O retrato ou fotografia mortuária representa o “ato da morte”, indica não só a recordação da morte em si, mas o sofrimento, a dor dos parentes. Esse tipo de foto-grafia fecha o ciclo iniciado desde a concepção da criança, nos álbuns de família, os primeiros passos na infância, a adolescência, a vida adulta e a morte, que finaliza o ciclo. A fotografia, assim, associa-se as práticas de guardar e acompanhar momen-tos importantes dentro da família, capturando, assim, a realização das cerimônias, casamentos, batizados, aniversários, velórios.

As fotografias podem ser objeto de leitura sociológica, possibilitam a leitura de vários aspectos como evidência Pierre Bourdier, na análise ou no confronto entre ex-periência e conhecimento “averiguar-se quem participou da cerimônia; como eram constituídos os casais; o campo de relações sociais de cada família é analisado; repa-ra-se em quem falta, indicador de discórdias, e as presenças que conferem honra.90

Nas imagens apresentadas nesta seção do trabalho podemos evidenciar várias escolhas que podem ter sido feitas pelo fotógrafo ou por desejo da família, imagens nas quais aparecem apenas os familiares mais próximos em destaque; imagem que evidenciam a quantidade de presentes no velório (imagens 8, 10, 11,12), nas quais podemos apenas insinuar os parentes mais próximos do morto, como mãe, filhos, pai ou marido, pela posição próximo a cabeça do morto; nas fotografias podemos também perceber fotos quase em movimento de retiradas ou chegada do caixão; e, ainda, closes do caixão, evidenciando apenas o morto.

As escolhas informam os desejos de guardar as recordações, não apenas o morto como também das pessoas que se fizeram presentes no velório. A escolha em foto-grafar vai ao encontro dos desejos dos familiares em registrar e guardar os últimos momentos, tal prática não constitui uma regra, o que evidência uma manifestação ou hábito construído dentro de cada família, um registro privilegiado e de uso particular, íntimo e familiar.

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Imagem 16 - Velório de Antonio Luciano, álbum de família. Na Imagem estão presentes alguns parentes próximos do

defunto, da esquerda para a direita: Sra. Maria José Barros de Morais, Sra. Lourdes Luciano de Morais, Sra Socorro

Luciano de Morais e a senhora situado no canto direito da foto Sra. Socorro Gois Melo

Imagem 17 - Velório de Maria José Barros de Morais, álbum de família 88

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5. O SABER DO POVO: FOLCLORE COMO FONTE

Rituais, crenças, crendices e celebrações tradicionais perpassam a construção de um imaginário coletivo repleto de saberes e fazeres; de costumes transmitidos por tradição oral que formam uma expressão consuetudinária e informam sobre as atitudes de homens e mulheres devotos. O saber do povo nordestino está nos causos, na litera-tura de cordel, nas histórias fantásticas de lendas de um nordeste mágico e religioso.

Os estudos realizados por folcloristas, bem como as análises da antropologia e da sociologia foram os primeiros refletirem sobre a construção de identidades culturais a partir da analise in loco, embora, contemporaneamente, os estudos de folclore apre-sentem-se como desgastados e repletos de críticas pejorativas. Tomamos os cadernos de campo como um texto passível de ser analisado e comparado pois, “todo texto é revela-dor de uma determinada leitura de mundo e é a partir daí que ele precisa ser discutido”91.

Percebemos que a história da morte também é uma história repleta de silêncios, expressos nas falas, nas atitudes e, principalmente, nas fontes. Na busca por refe-rencias sobre as Incelências, encontramos uma série de fontes puramente descriti-vas e sem datas precisas, o que dificultou a localização. Os cadernos de campo dos folcloristas surgem como um detalhe revelador dos gestos, vestimentas e sentidos expressos no ritual. No entanto, como avalia Michel Vovelle, “o folclorista deixa sis-tematicamente de lado tudo aquilo que é a norma oficial”92, nesse sentido, as críticas recaem sobre a utilização dessas fontes.

O folclore surgiu na Europa, como relata Martha Abreu:

Depois dos iluministas, no século XVIII, terem visto os camponeses e os ho-

mens comuns como o local do inculto, onde tudo faltava, muitos românticos,

ao longo do século XIX, procuraram conhecer os costumes populares, as ex-

pressões dos subalternos do mundo rural, elevando-as ao patamar das marcas

da nacionalidade contra o estrangeirismo e a modernidade externas.93

No Brasil, no final do século XIX e início do século XX, os folcloristas ganharam

renome nacional por meio do projeto que visava identificar a identidade brasileira a partir da integração cultural, a partir do diálogo, conhecimento e relação das diver-sas manifestações culturais existentes nas regiões do Brasil. Os folcloristas valoriza-vam o saber tradicional e as formas de fazer.

Segundo Martha Abreu:

Valorizaram os registros obtidos a partir da cultura rural oral de seus infor-

mantes, e defenderam a concepção de que inexistiam autores entre as mani-

festações populares. Ambas perspectivas eram importantes para a construção

de seus veredictos sobre a autenticidade do que definiam como cultura popular

(posto que reprodutora de tradições de tempos imemoriais). A autenticidade

Page 145: Em cada conta um lamento

da cultura popular era fundamental para que pudesse legitimar a expressão da

verdadeira singularidade nacional.

A particularidade cultural do Brasil consistia na preocupação dos pesquisadores. No entanto, o projeto de integração se deparou com a dificuldade em trabalhar com a classificação da cultura no Brasil, devido a diversidade cultural das regiões e as suas práticas culturais distintas, o que dificultava a formação de uma “única” cultura brasi-leira. As críticas assim passam a recair sobre a idéia de popular e de pureza das manifes-tações, críticas lideradas pelos sociólogos da Universidade de São Paulo.

Para Abreu:

Os folcloristas e o folclore passaram a receber críticas profundas por defen-

derem uma prática tida como não científica se tomada em função de seu pre-

tenso caráter mais descritivo que interpretativo e por ficarem identificados as

forças mais conservadoras da sociedade brasileira94.

As críticas ao modelo dos folcloristas em analisar a cultura surge da resigni-ficação do conceito, pois a cultura era vista pelos sociólogos como uma forma de dominação, de domesticação da sociedade:

[...] A segmentação social e o preconceito racial não permitiriam a criação de

uma cultura nacional ou de uma sociedade e cultura integradas, pois povo,

nesta concepção, não mais poderia ser visto como o produtor de cultura au-

têntica tornara-se o proletariado. A integração nacional não se realizou via in-

tegração cultural, como pretendiam os folcloristas, mas através da dominação

dos estratos dominantes. 95

Os folcloristas perderam espaço nas universidades, eram vistos como conserva-dores na busca de identidades e continuidades “Numa sociedade que rapidamente se transformava, cheia de conflitos sociais”96. Embora as pesquisas dos folcloristas sejam vistas como acríticas, suas descrições em muito contribuem para o trabalho do historiador, que busca no fato folclórico informações que os folcloristas des-crevem minuciosamente, não deixa de ser uma investigação, pautada no detalha-mento das manifestações. Entendidas como registros de tradições de tempos ime-moriais, percebemos que essas descrições auxiliam nos estudos que se dedicam as mani-festações de populações tradicionais, assim as descrições dos folcloristas devem ser lidas com o mesmo rigor das fontes documentais, comumente utilizadas pelos historiadores.

Por folclore entende-se, segundo Câmara Cascudo a cultura do popular mo-vida e normatizada pela tradição. O folclore se divulga ou se propaga por meio da

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coletivização anônima de quem cria – podendo ser uma pessoa ou um grupo – onde se conhece e se reproduz por meio da tradição97. Tradição, costume e oralidade marcam o folclore, tal percepção corrobora com a perspectiva de Carlos Rodrigues Brandão:

O folclore pode-se abrir a campos mais amplos da cultura popular (a cultura

feita e praticada no cotidiano e nos momentos cerimoniais da vida do povo,

ou dos diferentes povos que há no povo) e incorpora aquilo que, sendo ainda

de um autor conhecido, já foi coletivizado, incluído no ‘vivido e pensado’ do

povo, as vezes até de todos nós, gente ‘erudita’ cuja vida e pensamento estão

mergulhados nesse ancestral anônimo que nos invade o mundo de crenças,

saberes, falares e modos de viver.98

O folclore apreende as várias manifestações que as pessoas comuns significam como

caras as suas vivências, ligadas as tradições consuetudinárias e, sobretudo, a identifica-ção da comunidade com a manifestação ou celebração. A percepção desses autores não se distancia do conceito de folclore elaborado pela Carta do Folclore Brasileiro99:

Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas

suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua

identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação fol-

clórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade.

Ressaltamos que entendemos folclore e cultura popular como equivalentes, em

sintonia com o que preconiza a Unesco. A expressão cultura popular manten-se-á

no singular, embora entendendo-se que existem tantas culturas quantos sejam os

grupos que as produzem em contextos naturais e econômicos específicos.100

Perceber cada cultura como particular, valorizar as criações comunitárias e as re-presentações individuais e coletivas. As fontes produzidas pelos folcloristas são reple-tas de descrições e detalhes sobre o objeto pesquisado, no entanto, como avalia Vovelle, o historiador ao se deparar com tal fonte fica perplexo e esmagado: “esmagado porque há lá uma informação enorme, difusa, profusa, que nos dá acesso a conhecimentos colhidos por meio de pesquisa oral a que nenhuma escrita nos faria chegar.”101, o autor mostra-se perplexo por todos esses dados não darem a lugar a história.

Então, o que encontramos nos folcloristas que nos inebria com tantos dados?

Para os sertanejos dos campos e de pequenas cidades sertanejas,enquanto o ca-

dáver está sobre a terra, ainda há possibilidade de o salvar das chamas do in-

ferno não somente pela encomendação e pelas missas que se mandam celebrar

pelos padres católicos, mais ainda com as rezas tradicionais, passadas de geração

a geração, que continua a ser entoadas com o máximo fervor e respeito.102

Page 147: Em cada conta um lamento

Nos relatos simples, captados pela observação, percebemos que estão repltos de pos-turas pessoais, encontramos além das descrições análises de categorias que auxiliam a dividir as expressões populares. Getulio César classifica as manifestações culturais de crendices e crenças em quatro partes: as superstições, amuletos, devocionismo e magia.

Devocionismo é entendido pelo folclorista como uma religiosidade exagerada e defeituosa e nela se inclui “pedidos, promessas, orações, benditos, velórios e excelências e cruzes das estradas”103

No mesmo sentido, Alceu Maynard Araujo divide o folclore nacional em ritos, saben-ça, linguagem, artes populares e técnicas tradicionais. Os ritos religiosos são entendidos dentro da organização social, dos quais destaca os rituais de morte. O autor atenta para explicar o fato folclórico em si que divide em três espécies: sobrevivências; fatos advindo de imitações de outros costumes e criações populares104, ritos transmitidos de geração a geração. Dos rituais de velório, sentinela ou granições descritos por Alceu Maynard, Pedro Silva e Getulio César em diferentes regiões encontramos pontos de conexões:

Folclorista Localidade

pesquisada

Moribundo e o

Anúncio da morte

Preparo do cadáver Orações

Pedro Silva Piauí Nas sentinelas,

as preces que eles

[sertanejos] entoam,

em forma de hinos,

são cantadas por

velhotas habituadas

aquele misticismo

esquisito, em vozes

altas e em tonalidade

aguda com um sabor

de lamento.

Colocado sobre uma

esteira de palha de car-

naubeira... forrada com

lençol branco e já amor-

talhado... o defunto fica

com ambas as mãos

cruzadas sobre o peito,

nas quais se coloca a

imagem de cristo cruci-

ficado. Um lenço branco

cobre-lhe o rosto; um

segundo une-lhe os pés;

um terceiro amarado

debaixo do queixo...em

volta do corpo comu-

mente acessa somente

três velas: uma junto

a cabeça e duas outras

nos pés simbolizando a

família sagrada... assim

colocado o cadáver

entoam-se os benditos.

Servindo o café, as

velhotas enchem

os grande cachim-

bos de barro com

canudos de taquari

soltando grandes

baforadas de fumaça

sobre o cadáver...

apos um ligeiro des-

canso, recomeçam os

benditos, destacan-

do-se entre eles, no

gênero das chama-

das incelenças, hinos

do mesmo estilo.

Quadro 3 - Pedro Silva

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Folclorista Localidade

pesquisada

Moribundo e o

Anúncio da morte

Preparo do cadáver Orações

Alceu

Maynard

Araújo

São Luiz do

Piratinga -

São Paulo

Ao agonizante coloca-

-se uma vela acesa na

mão e rezam o oficio

da agonia... logo que a

pessoa morre vai um

próprio ate a cidade

buscar a mortalha

A lavagem do

cadáver, coloca-se

água com creolina

ou pinga...vestem o

defunto, amarram

queixo com um lenço

e nos pés uma faixa,

não presta enterrar

defunto amarrado

As velas são acesas

e depois que trazem

mortalha, e a reza

somente tem inicio

após terem colocado

o corpo na sala...

cantam todas as rezas

conhecidas; são as

excelências.

Quadro 4 - Alceu Maynard Araújo

Folclorista Localidades

pesquisadas

Moribundo e o

Anúncio da morte

Preparo do cadáver Orações

Getúlio

César

Pernambuco,

Alagoas e

Piauí

Tudo é resolvido em

um quarto ou senti-

nela...em um quarto

o defunto é esque-

cido; o sentimento

religioso desaparece

e o cafezinho com

bolachas aparece se-

guido de aguardente

e cigarros.

Uma mulher, sempre

uma mulher, quando

o doente principia a

agonizar, entra em

cena pondo uma

vela acesa na mão do

agonizante...

nota que o agoni-

zante entre no seu

fim, canta o bendito

de ajudar a morrer.

O cadáver vai então

ser amortalhado. No

bendito de visti o

difunto, as vistidera,

pessoas especiali-

zadas nesse mister

desempenham a sua

tarefa cantando.

Depois de vestido e

posto na sala para o

quarto, o velório, as

cantadeiras cantam

ao lado do mesmo, a

noite toda, benditos

e incelencias. Exce-

lencas ou incelenças

como dizem os ro-

ceiros são benditos e

frases rimadas que as

cantadeiras entoam

junto de um defunto...

as incelencias não tem

nenhuma significação

religiosa... são catadas

sempre ate doze.

Quadro 5 - Getúlio César

Page 149: Em cada conta um lamento

Os rituais catalogados no nordeste e sudeste do Brasil, por volta de 1930-1940105, referenciados acima, informam uma aproximação dos rituais de morte em diversos sertões ou interiores do Brasil, práticas que apresentam uma morte viva no cotidiano de pessoas comuns, em que a religiosidade aproxima os membros de uma determinada comunidade. As formas de vestir, cantar e os papeis assumidos pela comunidade se aproximam muito das memórias dos nossos entrevistados: Sr. “Antônio Pequeno”, Dona Teteia e Dona Erlene. Eles vivenciaram rituais com características bastante comuns aos relatados pelos folcloristas, uma morte vivida e sentida que, apesar das mudanças de atitudes na contemporaneidade, continuam sendo uma forma diante da morte em algumas comunidades tradicionais.

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo

Holanda em julho de 2010, em Alto Longá

2 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, em novembro de

2009, em Parnaíba, PI.

3 ARAUJO, Alceu Maynard. Ritos de morte. Correio Paulistano, São Paulo, 17 de abril de 1949.

4 Essas duas práticas particularmente foram presenciadas durante a pesquisa por convite do rezador o sr.

“Antônio Pequeno”. O Reisado, segundo Luis Câmara Cascudo é uma denominação erudita para os grupos

que cantam e dançam na véspera e Dia de Reis, composto de um grupo de músicos, cantores e dançarinos

que percorrem as ruas das cidades e até propriedades rurais, de porta em porta, anunciando a chegada do

Messias, pedindo prendas e fazendo louvações aos donos das casas por onde passam. CASCUDO, Luis Câ-

mara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001. O Reisado realizado pela família de

“Antônio Pequeno” constitui-se um pagamento de uma promessa feita por sua esposa Marina. Diferente

dos reisados que cantam ou se apresentam publicamente em folguedos. A prática da família constitui-

-se de nove noites cantando, dançando e pedindo esmola ao santo reis, terminando no dia de Reis [06 de

janeiro] com uma ladainha e muita comida para todos os presentes. O ano de 2012 foi o último do paga-

mento da promessa, que deveria ser comprida em 3 [três] anos. Já a Dança de São Gonçalo segundo dados

do Tesauro de Folclore e Cultura Popular, constitui de uma dança de origem portuguesa, em louvor a São

Gonçalo do Amarante, organizada geralmente em pagamento de promessa ou voto de devoção em frente

ao altar com imagem do santo, formam-se duas fileiras composta por homens e mulheres, é dividida em

jornadas. Também presenciamos uma dança de São Gonçalo com 7 [sete] jornadas de danças mediante o

pagamento de uma promessa, “Antônio Pequeno” participou como um dos contra-guias, ou seja, auxi-

liando e ajudando no pagamento da promessa. Dança de São Gonçalo Disponível em: www.cnfcp.com.br/

tesauro/00000094.htm . Acesso em: 03 ago. 2012.

5 O filme Cipriano tem direção, roteiro e produção de Douglas Machado, produção executiva de Cássia

Moura e Gardênia Cury, é o primeiro longa-metragem do estado do Piauí. Sinopse: Um homem velho, de

nome Cipriano, está prestes a morrer. Ele passou a vida inteira atormentado por sonhos e agora vaga so-

litário em um deles. Seus filhos Bigail e Vicente buscam um cemitério de frente ao mar, onde ele deve ser

enterrado. Vida e Morte. Contos, sonhos e religiões. Uma viagem no imaginário latino-americano através

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de uma longa peregrinação pelos sertões piauienses. O filme Cipriano compreende essencialmente, uma

abordagem de dois temas universais: a morte e os sonhos -, tendo como eixo a cultura nordestina.

6 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira, a Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009.

7 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A (org). História da

vida privada no Brasil: Império. São Paulo: companhia das Letras, 1997, p.109

8 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A (org). História da

vida privada no Brasil: Império. São Paulo: companhia das Letras, 1997, p.109.

9 CASCUDO, Luis Câmara. Op.Cit. 2001, p.117

10 Ibidem

11 REIS, João José. Op. Cit. 1997, p. 110

12 MENDES, Manuel. As Carpideiras. Folha da Manhã, 2 de julho de 1933. disponível em: <HTTP://almana-

que.folha.uol.com.br/ilustrador02jul1933.htm > acessado em: 08 de março de 2012

13 Ibidem.

14 Expressão usada pelo sr. “Antônio Pequeno” para designar a prática de batizados de anjinhos, a prática

dos sacerdotes. Entrevista concedida pela senhor Antonio Pereira da Silva a Marluce Lima de Morais e

Maria do Amparo Moura, julho de 2010, em Alto Longá

15 MENDES, Manuel. Op cit. 2012

16 Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira a Marluce Lima de Morais em novembro de 2009.

17 LENKO, Karol. Houve carpideiras em S. Paulo. A gazeta, São Paulo 5 de janeiro de 1963, pagina 8.

18 Ibidem.

19 Ibidem

20 Guilherme Santos Neves é professor, pesquisador da cultura popular; nasceu em 14 de Setembro de

1906 em Porto Final, município de Baixo Guandu ES. Ativo e entusiasta da cultura, publicou dezenas

de títulos, monografias, ensaios, separatas, conferências, artigos desde 1948 até 1976. Cf.: Sem identifi-

cação de autoria. Guilherme Santos Neves, 70 anos de amor e cultura capixaba. A Gazeta. Vitória, 12 de

Setembro de 1976. Disponível em: www.jangadabrasil.com.br/temas/abril2011/te14604f.asp. Acesso em:

12 jan. 2012.

21 NEVES, Guilherme Santos. Incelência para uma boa morte. A Gazeta, Vitória-ES, 15 de Agosto de 1958

22 Entrevistas em Nossa Dica. Disponível em: www.nossadica.com/as_centenarias.php. Acesso em: 12 jan. 2012.

23 O universo ficcional da novela Cordel Encantado foi construído por Duca Rachid e Thelma Guedes, a

novela foi ao ar em 2011 na emissora de Televisão Rede Globo, Brasil.

24 ARAUJO, Alceu Maynard. Ritos de Morte. Correio Paulistano. São Paulo 17 de abril de 1949

25 MAGALHÃES, Vagner. Carpideira vai a velório e lamenta morte de Clodovil. Terra. Disponível em: <ht-

tpnoticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3642404-EI7896,00-carpideira+vai+a+velório+e+lamente+mo

rte+de+Clodovil.html> Acesso em: 08 mar. 2012

26 Ibidem

27 Característica usada para adjetivar a entrevistada pelo blog eduexplica. Disponível em: <www.eduexplica.

com/2009/07/profissao-de-carpideira.html > Acesso em: 08 mar. de 2012

28 Ibidem

29 Ibidem

30 Disponível em: <www.eduexplica.com/2009/07/profissao-de-carpideira.html > Acesso em: 08 mar. de 2012

31 Verbete Reza. CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001. p. 587

32 Verbete reza de defunto. CASCUDO, Luis Câmara. Op. cit,2001 p.587

Page 151: Em cada conta um lamento

33 Bendito recolhido durante uma entrevista com sr. “Antonio Pequeno”. Entrevista concedida pelo senhor

Antônio Pereira da Silva,a Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo Moura Alencar, em julho de 2010,

em Alto Longá.

34 Canindé situa-se a 108 km de Fortaleza, na área do sertão do Ceará; é o segundo maior destino de peregri-

nação devotada a São Francisco durante 26 de Setembro a 4 de Outubro; Juazeiro, distancia-se de Fortaleza,

capital do Ceará 570km; é o maior centro de romarias do Ceará, de todo o Nordeste partem romeiros a ci-

dade do Pe. Cícero Romão Batista; Santa Cruz dos Milagres é um município localizado no Estado do Piauí,

com peregrinações nos meses de Março, Setembro e Novembro

35 Ibidem

36 ROCHA, Ewelter. Deus me livre de cantar essas coisas. Revista Iluminuras, publicação Eletrônica do banco

de Imagem e Efeitos Visuais NUPECS/LAS/PPGAS/ILEA/UFRGS. Rio Grande do Sul. n.25, v. 11, 2010, p.9

37 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis, a Marluce Lima de Morais e Ariane dos

Santos Lima, em novembro de 2009.

38 ROCHA, Ewelter. Cantar para sofrer: lamentos fúnebres no nordeste do Brasil. UCLA Ethnomusicology. v.

15, 2010

39 ROCHA, Ewelter. Op. Cit., 2010

40 CASCUDO, Luís Câmara. Op Cit. , 2001, p.218

41 Verbete excelência. CASCUDO, Luis Câmara. Op Cit., 2001, p. 218-219

42 CASCUDO, Luís Câmara. Op Cit. 2001, p 218-219

43 ABREU, Martha. O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESPI, 1999.

44 NEVES, Guilherme Santos. Incelências para uma boa morte. A Gazerta Vitória ES, 15 de agosto de 1958

45 Verbete excelência. CASCUDO, Luis Câmara. Op. cit. 2001, p. 397

46 ARAUJO, Alceu Maynard. Ritos de morte. Correio Paulistano. São Paulo, 17 de abril de 1949

47 Incelência registrada na entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí,

a Marluce Lima de Morais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

48 Incelência registrada na entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí,

a Marluce Lima de Morais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

49 ARAUJO, Alceu Maynard. Op. Cit. 1949, loc cit.

50 Utilizamos a expressão “Nós que aqui estamos por vós esperamos” para remeter o momento da morte

como um destino para o homem. A expressão faz referência ao filme documentário brasileiro dirigido

por Marcelo Masagão, uma leitura cinematográfica da obra Era dos Extremos de Eric Hobsbawm. A

produção mostra em montagem de imagens produzidas no século XX e de uma música melancólica

e penetrante, composta por Wim Mertens, o período de contrastes entre um mundo que se envolve

em dois grandes conflitos internacionais, a banalização da violência, o desenvolvimento tecnológico, a

esperança e a loucura das pessoas.

51 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

52 Salmo 23. disponível em: <www.pessoa.com/salmos.htm> . Acesso em: 02 ago. 2012

53 Salmo 23. disponível em: <www.pessoa.com/salmos.htm> . Acesso em: 02 ago. 2012

54 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

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55 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

56 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

57 idem.

58 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

59 idem

60 Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis, a Marluce Lima de Morais e Ariane dos

Santos Lima, em novembro de 2009

61 ROCHA, Ewelter. Cantar os mortos: benditos fúnebres nas sentinelas do Cariri (CE). Revista Anthropolo-

gicas, v. 17, ano 10. 2006 p. 52

62 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Mo-

rais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010.

63 NEVES, Guilherme Santos. Padre nosso pequenino... Vida Capixaba, temas de folclore, 30 de outubro de 1949

64 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de Morais

e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010

65 São pequenas orações ou invocações incluídas ao começo ou final de cada dezena do rosário.

66 ROCHA, Ewelter. Cantar os mortos: benditos fúnebres nas sentinelas do cariri(CE). Revista Anthropolo-

gicas, ano 10, v.17, 2006 p. 53

67 Ibidem

68 ibidem

69 Entrevista concedida pelo senhor Antônio Pereira da Silva em Alto Longa Piauí, a Marluce Lima de

Morais e a Maria do Amparo Alencar, em julho de 2010.

70 Em todo Piauí encontramos notícias de mulheres rezadeiras, principalmente, em pequenas cidades. No

Maranhão, encontramos referência em Coelho Neto, no Ceará, em Cariri, por meio da pesquisa de Ewelter

Rocha sobre benditos fúnebres.

71 No Brasil, a fotografia foi largamente utilizada nas classes altas e médias da sociedade até o final de 1950,

quando fotógrafos retratavam mortos para álbuns privados. O desuso desse tipo de trabalho deu-se no

final dos anos 1950, embora ainda seja freqüente o envio dessas fotos com dedicatórias. KOURY, Mauro

Guilherme Pinheiro. Fotografia e Interdito. Revista Brasileira de Ciências Sociais RBCS, São Paulo, vol. 19,

n. 54, fevereiro, 2004. p. 132

72 Ibidem, p.130

73 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Fotografia e Interdito. Revista Brasileira de Ciências Sociais RBCS,

São Paulo, vol. 19, n. 54, fevereiro, 2004. p. 130

74 Para composição de análise o pesquisador utilizou 1.304 questionários de indivíduos na faixa etária entre

15 e 60 anos que tinham experienciado ou não o trabalho de luto. O objetivo inicial da pesquisa se rela-

cionava as formas de luto da população brasileira. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Você fotografa os

seus mortos? Fotografia e morte no Brasil urbano. In: KOURY, M.G.P. (org) Imagem e memória: ensaios

em antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. Segundo o autor, no Brasil urbano, o equilíbrio

das respostas frente a pergunta: você fotografa seus mortos? Constatou-se uma média percentual por ci-

dade de 18 a 25% afirmativas e uma média nacional de 20,78% . KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. O

imaginário Urbano sobre fotografia e morte em Belo Horizonte, MG, nos anos finais do século XX. VARIA

Page 153: Em cada conta um lamento

HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 22, n.35, jan/jun 2006. p. 102

75 KOURY, M.G.P. (org) Imagem e memória: ensaios em antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond,

2001, p. 67.

76 KOURY, M.G.P. Op., Cit., 2001, p.68

77 Mauro Koury percebe que o uso de fotografias mortuárias ainda constitui um recurso ou um símbolo

possível e acessível, tendo em vista que com o estabelecimento de empresas cemiteriais, torna-se mais um

produto dentro do mercado da morte. Para o autor “ainda está longe de sua plena aceitação mercadológica

pelos consumidores” KOURY. Op., Cit., 2006.

78 Registros com função de preservar o corpo morto para a posteridade de cunho privado e íntimo KOURY,

Mauro Guilherme Pinheiro. Op., Cit., 2006.

79 SOARES, Miguel Augusto Pinto. Representações da morte: fotografia e memória. 2007, 149f. Dissertação

(mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2007, p.20

80 As imagens analisadas compõem o acervo fotográfico de Maria José Barros de Morais, que colecionava

santinhos e fotografias de sua família. Esses retratos compõem parte das fotos de minha família, minha

avó aguardou cuidadosamente essas fotos ao longo de sua vida.

81 KOURY, Mauro Gulherme Pinheiro. Op., Cit., 2006. p.107

82 Dimensões de 8x10 cm

83 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Op. Cit., 2004. p. 131-132.

84 Agfa-graphics trata-se de uma empresa com mais de 140 anos, no mercado de segmento de imagem im-

pressão e pré-impressão. Produzida em papel Agfa no formato postal, dimensões: 9,1 x 14,1 cm.

85 Supomos que o hábito seja marrom com cordão branco (foto preto e branco), também pode fazer referência

a Santo Antônio ou a outros santos que são representados com um hábito parecido. Segundo Reis, vestir há-

bitos de santos era muito comum usado em Portugal desde a Idade Média, devoção a santos e santas repassa-

das e representadas pelo diálogo religioso durante a colonização “São Francisco tinha um lugar de destaque

na escatologia católica [...]diz a tradição que certamente com a permissão de Deus, ele fazia expedições perió-

dicas aquela zona celeste com objetivo de resgatar almas ali cerceadas. Imaginava-se que os mortos vestidos

com seu habito pudesse ser favorecido nessas aventuras franciscanas” REIS, João José. Op. Cit, 1997, p.112.

86 Dimensões 6,3 x 9,2 cm

87 Hábito branco, segundo Reis, eram populares entre africanos no Rio e em Salvador e também têm rela-

ções simbólicas com a morte cristã, relacionanda a cor do Santo Sudário, veste com o qual Jesus Cristo

ressuscitou. REIS, João José. Op. Cit. 1997, p.111

88 Dona Maria José Barros de Morais, vela e enterra seu marido Joaquim Luciano, meu avó. Na imagem, a

senhora com o lenço na cabeça é minha avó e meu pai o rapaz ao lado dela.

89 Esta imagem foi captura em abril de 2011, dona Maria José Barros de Morais, minha avó, foi velada em sua

casa na cidade de Alto Longá e por alguns familiares. O Sr. Antônio Pequeno cantou algumas incelências

antes de saírmos para o cemitério.

90 BOURDIEU, Pierre; BOURDIEU, Marie-Claire. O camponês e a fotografia. Revista Sociologia Política,

Curitiba, n.26, jun 2006

91 SEFFENER, Fernando. Leitura e escrita na História. In: NEVES, I. C. B.; SOUZA, J. V. ; SCHAFFER, N. O.;

GUEDES,P.;KLUSENER, R. Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: UFRGS, 2001.

92 VOVELLE, Michel. A historia dos homens no espelho da morte. In: In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner.

A morte na Idade Média. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 p. 19

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93 Abreu critica veementemente a perspectiva dos folcloristas, sua discussão nos remete a visão dos aca-

dêmicos sobre os folcloristas. ABREU, Martha. Cultura Popular, Festas e Ensino de História. X Encontro

Regional de História – ANPUH-RJ História e Biografias – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – 2002

94 ABREU, Martha. Op. cit. 2002

95 Ibid. id

96 Ibid. id.

97 CASCUDO, Luis Câmara apud BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore? São Paulo: Brasiliense, 1994.

98 Carlos Rodrigues. Op. cit., 1994. p.35 -36

99 A carta do folclore brasileiro foi elabora da inicialmente em 1951, durante o I Congresso Brasileiro de Fol-

clore realizado no Rio de Janeiro e revista no VIII Congresso Brasileiro de Folclore realizado em Salvador-

-BA, frente as transformações da sociedade brasileira. Disponível em: www.fundaj.gov.br/geral/folclore/

carta.pdf. Acesso em 12 jan. 2012

100 Ibidem.

101 VOVELLE, Michel. O historia dos homens no espelho da morte. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner.

A morte na Idade Média. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 p. 19

102 SILVA. Pedro. O Piauí no folclore. Teresina: fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1988.p.74

103 CESAR. Getulio. Crendices: suas origens e classificações. Rio de Janeiro, 1975.p.125

104 ARAUJO, Alceu Maynard. Folclore nacional III: ritos, sabenças, liguagem,artes e técnicas. São Paulo:

edi ções melhoramentos. 1967

105 Referência a algumas datas enunciadas durante o texto da reza coletada. Alceu Maynard Araújo Cesar.

10 VOVELLE. Michel. A historia dos homens no espelho da morte. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner.

A morte na Idade Média. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996

107 Denominação eleita por Pedrina Nunes para designar as praticas de rezas. Rezadeiras completas: senho-

ras que rezam para uma gama ampla de doenças e também ampliam suas praticas, algumas senhoas re-

zantes fazem partos, rezam em animais e rezam para acontecimentos reais da vida cotidiana. Rezadeiras

especificas: senhoras que rezam somente para algumas doenças, pode ser uma ou duas, mas não chegam a

obter uma amplidão ao certo grau de inventividade como as rezadeiras completas. Ver: ARAUJO, Pedrina

Nunes. Senhoras da fé: história de vida das rezadeiras do norte do Piauí [1950-2010] 2011. 162 f. Dissertação

(Mestrado em História do Brasil) Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2011

Page 155: Em cada conta um lamento

CONCLUSÃO

[...] na aventura dos homens, eis uma invariável ideal e essencial. E uma

invariável muito relativa, alias, porque a relação dos homens com a morte

mudou, o modo como ela os atinge também; mas a conclusão permanece a

mesma: é a morte”106

A cada conta do terço uma reza, a cada reza um lamento, a cada lamento um choro de saudade.

Relatamos o caminho percorrido por rezadores e cantadores, de rezas e benditos que busquei descrever e registrar ao longo das entrevistas, assim como descrever e analisar os elementos rituais e as funções sociais que as incelências desempenham frente a morte e sua significação para quem reza, para quem escuta e repassa a tradição dos lamentos.

Para compor os espaços dessas canções encontramos um Piauí criado ao lado da fé e da “pata do boi”, percurso histórico que particulariza as devoções e as permanências de rituais que marcam as vivências diárias de comunidades tradicionais em todo o Estado.

Diante da grandeza de tempos, pessoas e realidades do Piauí elegemos a cidade de Alto Longá como partida para levantar os elementos que compõem as práticas de bem morrer realizadas por rezadores e rezadeiras. Principalmente para entender conceitos específicos destes ofícios, como o de rezador completo, representado neste trabalho por pessoas como o sr. Antônio “Pequeno”107 que nos apresentou um ritual rico em rezas, orações e devoções. Percebemos seu depoimento e sua trajetória de vida como elemento importante, assim elegemos sua experiência como mote, como um tecido do passado que reconstituimos com linhas coloridas de outras entrevistas na busca por preencher lacunas e tentando tecer uma analise que refletisse a realida-de de rituais como: acompanhamento, velório ou sentinela com Incelências a partir dos relatos dos entrevistados e da etnografia. Assim, outros nomes e outras cidades dialogaram para compor o ritual.

Pensamos o Piauí, Alto Longá e, particularmente o bairro Flor do Dia, como norte para as analises, para assim, seguindo a idéia de devoção traçamos uma perspectiva do ritual a partir da percepção dos rezadores e suas práticas. Em seguida, apresentamos nossa leitura e percepção do ritual, dialogando vivências e devoções que ultrapassam os limites territo-riais e de fé para constituir uma religiosidade própria e hibrida em devoções. Vidas marca-das pela fé e diálogos quase que diários e corriqueiros com as potências divinas, devoção que não anula manifestações, mas agrega e dialoga valores culturais, principalmente vi-vencias religiosas, seja presentes na religiosidade popular ou na Instituição Católica.

Percebemos no trabalho com entrevistas que a relação entre entrevistador e entre-vistado pode resultar num diálogo profícuo e render boas conversas e boas amizades.

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Além da possibilidade de encontro com as lembranças de sra. Erlene, sra. Teteia e sr. Antonio, memórias que permitiu-nos estabelecer relações entre memorias de ho-mens e mulheres que significam as rezas e praticas devocionais como significativas em suas vidas, vidas marcadas por promessas e uma relação “próxima” com o divino.

Nestes anos de pesquisa, somam quase 6 anos, pude encontrar nas incelencias uma manifestação de religiosidade popular rica em emoção e certeza por parte dos praticantes ao passo que estas mesmas celebrações encontram-se em vias de desapa-recer. A transmissão dessas tradições populares para as gerações futuras estão com-prometidas por falta ou interesse das pessoas em manter a pratica de rituais sejam eles frente a morte ou os rituais de cura aos diversos males que no saber popular, invadem o corpo.

A correria do tempo e as mudanças sociais que possibilitam um acesso maior as informações, bem como a busca por praticas e perspectivas de mundo diferentes, tem mudado a percepção das pessoas diante da morte. A morte passou a ser vista como tabu, interdita, afastada dos vivos, seus cuidados que não cabem mais aos “es-pecialistas” das comunidades ou mesmo das famílias, o afastamento do morto e do moribundo explica a preocupação em não lembrar do fim inevitável a todos. A mor-te do outro, que surge como um espelho, na atualidade é um reflexo que a sociedade tende a afastar.

Rituais como o das Incelências não acabam, eles se resignificam de acordo com as necessidades do tempo e dos indivíduos, para alguns esses rituais de cura e de morte podem soar caducos e sem significados, enquanto para outros são compreendidos como a forma tradicional diante da boa morte, o que não torna nenhuma das pos-turas errônea, apenas indica que existem diversas temporalidades em um mesmo tempo, em uma mesma época e que as atitudes e sensibilidades dos homens mudam ao longo do tempo histórico.

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TESTAMENTOS

· PIAUI. Testamento de Cornélio José Avelino. Arquivo Público do Estado do Piauí. Livro de registro de testamento

da cidade de Teresina (1838-1902). Fundo do poder judiciário

· PIAUI. Testamento de Domingos Afonso Mafrense. Acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí, fundo do Poder Judiciário

FOTOGRAFIAS

· ANÔNIMO. Álbum de família. S/d 13. fotos.

· LEJAB, Marli. Imagem do filme Cipriano de Douglas Machado.

· MORAIS, Marluce. Sr. Antônio Pequeno e os preparativos para o reisado, Alto Longá 1. fot. dez, 2011.

· MORAIS, Marluce. Casa de sr. Antônio Pequeno com um altar arrumado para tirar terço seguido de leilão. 2010, 1. fot. Alto Longá

· MORAIS, Marluce. 2012,são Gonçalo realizado por Cosme e Raimundinha na cidade de Alto Longá-PI,1 fot. Alto Longá

· MORAIS, Marluce. 2012, Sr. “Antônio Pequeno” canta e dança São Gonçalo, 2012 1. fot. Alto Longá

· MORAIS, Marluce. 2011, saída do santo Reis da casa do promesseiro,1 . fot. Alto Longá

· MORAIS, Marluce. 2011 Sr. “Antônio Pequeno” aguardando a chegada do Santo Reis, 1. fot. Alto Longá

ENTREVISTAS

· Entrevista concedida pelo senhor Antonio Pereira da Silva à Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo Holanda em

julho de 2010, Alto Longá – Piauí

· Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira e Sidinha Rabelo Alves à Marluce Lima de Morais, em

novembro de 2009, Parnaíba – Piauí.

· Entrevista concedida pela senhora Erlene Maria de Oliveira à Marluce Lima de Morais, em novembro de 2009,

Parnaíba – Piauí.

· Entrevista concedida pela senhora Maria José Silva dos Reis à Marluce Lima de Morais e Ariane dos Santos Lima,

em novembro de 2009, Parnaíba – Piauí.

· Entrevista concedida pelo Pe. Francisco Miguel Sousa Xavier à Marluce Lima de Morais, em outubro de 2012, Alto Longá – Piauí

· Entrevista de Naldinho, na comunidade de Custaneira-PI, concedida à Maria Sueli, em dezembro de 2008

CINEMATOGRAFIA

· MACHADO, Douglas. Cipriano. Ficção. Teresina: Trinca filmes, 2001

· Passos de Oeiras Documentário Etnográfico Rio de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2008

· TONACCI, Andrea. Benzedeiras de minas. Documentário etnográfico. Produzido via edital do Programa Monumenta/Iphan, do

Ministério da Cultura, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e apoio técnico da Unesco. 2008.

ESTATÍSTICA

· Fonte: IBGE, Estatística do Registro civil dos anos de 2004 a 2010. Rio de Janeiro: IBGE

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ANEXOS

INCELÊNCIAS

ORAÇÕES DE DONA MARIA JOSÉ SILVA DOS REIS:

1.

Meu anjo da guarda

Vamos no céu

Visitar nosso senhor

Um anjinho vai contigo

Meu divino resplendor

2.

Quem for lá pro Juazeiro

Leve um rosário na mão

Pra rezar um Pai Nosso

Pro padre Ciço Romão

O padre Ciço Romão

é um padre consolador

no céu ele é um pastor...

na terra ele é um só Deus

no céu ele é um pastor ...

3.

A benção mamãe, voz queira botar

os anjim te chama e não pode esperar

os anjos te chama e não pode esperar

eu tenho um rosário para eu rezar

mas nossa senhora quando eu lá chegar”

ORAÇÕES DO SR. ANTONIO PEQUENO 1.

Pai Nosso Pequenino

Pai Nosso Pequenino deus lhe leve no bom caminho

Sete anjo me acompanha, sete estrela me ilumina

Pai nosso pequenino deus lhe leve no bom caminho

Que me fez a cruz na testa

Nossa Senhora minha madrinha

São João é meu padrinho

Sete Anjo me acompanha sete estrela me alumia

Que me fez a cruz na testa

Pro demônio não me atentar

Nem de dia nem de noite nem na hora da minha morte

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2.

Ai meu Deus essa alma vai pro céu

Um anjin é quem vai levando

De tudo ela vai se esquecendo

Só de Deus vai se alembrando

Só de Deus vai se alembrando

Vai recortada no andor

Do lado da mão direita

Nos pés de nosso senhor

3.

Uma incelência do Nosso Senhor

Se forem pro céu se me chamar também vou

Meus inimigo que eu não tenho pavor

Que eu levo na mão a imagem do Senhor

4.

Sangue de Jesus

Era um cravo era uma rosa

Era um mimo dessa mesma natureza

Valei-me nossa senhora e senhora santa Teresa

Vamo fazei oração lá no céu a santa cruz

Quem tiver dor e pranto nesse chão

De Jesus

5.

Bendito de São José

Meu divino São José tô aqui nos vossos pé

Vim pedi água com abundância meu Jesus de Nazaré

Vim pedi água com abundância meu Jesus de Nazaré

Quem quiser chuva na terra se apegue com são José

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Que é um santo milagroso e pela vossa santa fé

Aquele que for contrito no coração

Que a divide a santa hóstia e a chuva a de vir no chão

Ofereço este bendito pro senhor daquela cruz

Em intenção de São José e para sempre amem Jesus

6.

Um aposto era irmão vos andai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Dois aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Três aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Quatro aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

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Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Cinco aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Seis aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

Sete aposto era o irmão que vos mandai pro Paraíso

Adeus irmão adeus o irmão ate dia de juízo

7.

Só um irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filhos chore por mim que eu já vou pro entre o céu

Coberto de cravo branco cheirando a rosa perpetua

Dois irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filin chore por mim que eu já vou pro entre o céu

Três irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filin chore por mim que eu já vou pro entre o céu

Coberto de cravo branco cheirando a rosa perpetua

Quatro irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filin chore por mim que eu já voi pro entre o céu

Coberto de cravo branco cheirando a rosa perpetua

Seis irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filin chore por mim que eu já voi pro entre o céu

Coberto de cravo branco cheirando a rosa perpetua

Sete irmãozin que eu tinha e este hoje foi embora

Foi embora foi embora foi lá pro rei da glória

Meus filin chore por mim que eu já voi pro entre o céu

Coberto de cravo branco cheirando a rosa perpetua

8.

Uma incelência da Virgem da Vitória

Uma incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Duas incelência da Virgem da Vitória

Duas incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Page 165: Em cada conta um lamento

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Três incelência da Virgem da Vitória

Três incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Quatro incelência da Virgem da Vitória

Quatro incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Cinco incelência da Virgem da Vitória

Cinco incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Seis incelência da Virgem da Vitória

Seis incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

Sete incelência da Virgem da Vitória

Sete incelência da Virgem da Vitória

Orai por este corpo que ele hoje vai embora

Ele hoje vai embora com uma dor no coração

Adeus meu povo todo adeus meu povo todo

Adeus meu povo todo adeus meus irmão

9.

É cruz eterna ajudai senhor

A luz eterna perpetua é um resplendor

É cruz eterna ajudai senhor

A luz eterna e perpetua é um resplendor

É cruz eterna ajudai senhor

A luz eterna e perpetua é um resplendor

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10.

Diz pelo nome da pessoa

Fulano lembra do nome de Jesus

Jesus vai contigo e tu vai com Jesus

Jesus é meu e eu sou de Jesus

Jesus, Jesus, Jesus, Maria e José

De Jesus você é Jesus, Jesus, Jesus de Nazaré

Ai fala três vez...

11.

Graças a Deus São Francisco que eu em Canindé cheguei

Que beleza foi o encanto que em Canindé achei

Graças a Deus e São Francisco que eu já fiz minha oração

Fiz com fé em São Francisco e a virgem da conceição

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

Se for lá pro Canindé vai contente no coração

Contente com São Francisco e a virgem da conceição

Romeiro de São Francisco que vai pro Canindé

Tem muita felicidade em São Francisco ele tem fé

A matriz do Canindé é o Estado do Ceará

Adeus São Francisco adeus que eu já vou voltar

Oferecemos este bendito pro senhor daquela cruz

Com intenção de São Francisco para sempre amém Jesus

LAMENTOS RETIRADOS DO FILME CIPRIANO DE DOUGLAS MACHADO

1.

Meu anjo da Guarda e eu quero saber

do dia e da hora que eu é de morrer...

eu é de morrer quando Deus for servido,

o meu anjo da guarda meu Jesus querido.

Meu Jesus querido do reino da gulóra...

me dê meu rosário que eu quero ir mimbóra.

Eu quero ir mimbóra lá pro céu também...

Deus me dê a glóra para sempre, amém!”

2.

Um anjinho da minha guarda

que minh’alma eu já te dei...

fala sino e fala igreja dela nunca eu esqueci,

fala sino e fala igreja dela nunca eu esqueci.”

Page 167: Em cada conta um lamento

3.

Um anjim da minha guarda cadê alma que eu te dei?

Enquanto ela foi minha, nunca eu dela eu me apartei.

A igreja bem sabia que eu no mundo era nascido...

fala a Igreja e bate o sino, ai meu Deus eu bem sabia,

fala a Igreja e bate o sino, ai meu Deus eu bem sabia.

4.

Vamo rezá um terço,pras alma do purgatório...

Pro Arcanjo São Miguel,todos os anjos a postos no céu.

E o arcanjo São Miguel...todos os anjos a posto no céu.

Vamo rezar dois terço,pras alma do purgatório...

Pro Arcanjo São Miguel,todos os anjos a postos no céu.

E o arcanjo São Miguel...todos os anjos a posto no céu.

Vamo rezar três terço,pras alma do purgatório...

Pro Arcanjo São Miguel,todos os anjos a postos no céu.

E o arcanjo São Miguel...todos os anjos a posto no céu.

Ô Miguel, Ô Miguel...esta alma eu não Te dou.

quem mandou Eu ver esta'lma,foi a Mãe do Pai Eterno...

quem mandou Eu ver esta'lma,foi a Mãe do Pai Eterno..

Ô Miguelo, Ô Miguel...esta alma eu não Te dou.

Que hoje fazem três dia,que esta alma aqui chegou...

hoje já fazem três dia,que esta alma aqui chegou.

Nem que faça três milhões,esta alma Eu a levo...

e quem mandou Eu ver esta'lma,foi a Mãe do Pai Eterno...

quem mandou Eu ver esta'lma,foi a Mãe do Pai Eterno.

Ô Miguelo, Ô Miguel...esta alma eu não Te dou.

Hoje já fazem três dia,que esta alma aqui chegou.

Nem que faça vinte ano,esta alma Eu a levo...

levo ela em minha guia,vou entregar ao Pai Eterno...

levo ela em minha guia,vou entregar ao Pai Eterno.

Minha gente venham vê,o milagre de Maria...

Minha gente venham vê,o milagre de Maria...

Quem ontem estava no inferno,hoje no céu de alegria...

Quem ontem estava no inferno,hoje no céu de alegria...

5.

Uma incelença de Deus, da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Duas incelença de Deus, da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Page 168: Em cada conta um lamento

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Três incelença de Deus, da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

da Virgem da Conceição,adeus irmão das alma,

as alma são meus irmão. Adeus irmão das alma,

Quatro incelença de Deus,da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma,as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma,as alma são meus irmão.

Cinco incelença de Deus,da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma,as alma são meus irmão.

...adeus irmão das alma,as alma são meus irmão.

Seis incelença de Deus, da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Sete incelença de Deus, da Virgem da Conceição...

adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

Adeus irmão das alma, as alma são meus irmão.

9.

Uma incelência, de Nosso Senhor...

uma madrugada, uma alma chegou;

e no romper d'aurora ela se arretirou.

Minha Santa Madalena, meu São Salvador.

E vamo a uma visita, uma visitação...

visitar os morto em cima do chão.

E vamo a uma visita, uma visitação...

visitar os morto em cima do chão.

10.

De São, eu lembro de:

São Jeremias, São Bartolomeu,

São Bernardo, São Gregório,

São Francisco de Assis [...]

São Jorge, São Dimas, São Lázaro,

São Lucas, São Quirino, São Zebedeu,

São Giovanni e São Florêncio.

De Santa, eu lembro da:

Santa Bárbara, Santa Clara,

Santa Rita dos Impossíveis, Santa Maria,

Santa Eremita, Santa Joana D’arc e Santa Edwiges.

De Nossa Senhora, eu lembro de:

Nossa Senhora da Anunciação,

Nossa Senhora dos Milagres, Nossa Senhora das Neves,

Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da Cabeça.

De Santo, posso lhe dizer: Santo Agostinho e Santo André Avelino

Page 169: Em cada conta um lamento

Maria Valei-me

Maria valei-me!

Maria valei-me (bis)/aos vossos devotos

Vinde socorrei/vosso amor se empenha/ o virgem da Penha

Penha onde mora na fonte vital/ na fonte vital(bis)

Salve, oh! Mãe de Deus (bis)/ Rainha suprema

Sobre os anjos seus/sois mãe de concórdia/ de misericórdia

Vida e doçura esperança sois/esperança sois (bis)

Oh! Mãe do Senhor (bis) Excelsa Maria/do trono de amor Salve, ouvi os

brados

Pois que os degradados/da triste Eva filhos vimos suspirar/vimos suspirar

(bis)

Gemendo de dor (bis) /Chorando de magoa/pedindo a Deus favor, neste

vale triste/ onde a pena existe/de lagrima cheia de miséria e ais/ de miseria e

ais(bis)

Ouvi eia pois (bis) nossa advogada/mostrai quantos ais

Olhos piedosos / misericordiosos /a nós degredados

Terna mãe valei/terna mãe valei (bis)

Depois de acabar (bis) o cruel desterro/ dignai-vos mostrar, a Jesus infinito/

que é fruto bendito/ desse feliz ventre Oh! Mãe de Jesus Oh! Mãe de Jesus (bis)

Oh! Clemente, ouvi-nos (bis) O pia, valei-nos/ oh! Doce, acudi-nos, oh Virgem

Maria

Que Deus que nos cria/tristes dor no peito por todos rogai/por todos rogai

(bis)

Para que por nós (bis) as promessas suas/mereçamos nós assim suplica-

mos/ para que vejamos/ na eterna gloria para sempre amém/para sempre

amém(bis)

Humilde oferecemos (bis) a vós, virgem senhora/ e ao vosso bento filho,

do céu e da terra

Rainha da Glória/Louvores vos damos aceitai senhora

Page 170: Em cada conta um lamento

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171

Áurea da Paz Pinheiro, Presidente

Universidade Federal do Piauí

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Alice Nogueira Alves

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Fernando António Baptista Pereira

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

João Paulo Queiroz

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Jorge dos Reis

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Luís Jorge Rodrigues Gonçalves

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Cristiane de Andrade Buco

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Edvania Assis

Universidade Federal do Piauí

Eloisa Capovila da Luz Ramos

Universidade do Vale dos Sinos

Manuel Calado

Faculdade de Belas-Artes da Universidade

de Lisboa

Maria de Fátima Pereira Alves

Universidade Aberta de Portugal

Miridan Bugyja Britto Falci

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Érica Rodrigues Fontes

Universidade Federal do Piauí

Enrique Caetano Henriquez

Universidade de Sevilha

José Antonio Aguiar

Universidade de Sevilha

Marta Rosa Borin

Universidade Federal do Santa Maria

Marta Rovai

Universidade Federal do Piauí

Mila Simões de Abreu

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Nuno Sacramento

Scottish Sculpture Workshop

Olga Duarte Piña

Universidad de Sevilla

Roseli Farias Melo de Barros

Universidade Federal do Piauí

CONSELHO EDITORIAL

Page 171: Em cada conta um lamento
Page 172: Em cada conta um lamento

FICHA CATALOGRÁFICA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

BIBLIOTECA COMUNITÁRIA JORNALISTA CARLOS CASTELLO BRANCO

SERVIÇO DE PROCESSAMENTO TÉCNICO

Morais, Marluce Lima de

Em cada conta um lamento: incelências, benditos e rezas / Marluce Lima de Morais. — Lisboa :

FBAUL : CIEBA : Grupo de Pesquisa – CNPq Memória, Ensino e Património Cultural, 2013.

172 p.: il. color – (Coleção VOX MUSEI arte e património; V.1)

Direção de: Áurea da Paz Pinheiro.

ISBN.:978-989-8300-55-3

Inclui fontes e bibliografia

1. Rituais fúnebres. 2. Incelência. 3. Cultura popular. I.Título. II. Série

CDD – 265.85

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