Emergência e Funcionamento Das Intercalações

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    Cadernos de Estudos Lingsticos 46(2) Jul./Dez. 2004

    Cad. Est. Ling., Campinas, 46(2):153-169, Jul./Dez. 2004

    1Esse estudo faz parte de uma tentativa ampla de reorientao da concepo desses fenmenos que,tendo sido relegados a um plano marginal nos estudos no enunciativos, permanecem, a meu ver, sem umaanlise enunciativa que os contemple adequadamente. Desenvolvi essa argumentao em minha tese de doutorado,defendida em maro de 2004, no Instituto de Estudos da Linguagem Unicamp.

    EMERGNCIA E FUNCIONAMENTO DAS INTERCALAES

    JULIENE DA SILVA BARROS(UAG/UFRPE)

    RSUM Cet article dveloppe une approche des intercalations phnomne mtaenonciatif qui inclutlinsertion, la digression et la note en bas de page. Cette approche est caractrise par deux proccupations

    spcifiques: en premier lieu, je considre les moments et les formes dmergence des intercalationsdans lestextes des lves niveau primaire; en second lieu, je propose une systmatisation des diffrents aspects

    rapports aux intercalations, comme les formes de notation, les moments demrgence, les lieux dematrialisation dans les textes et les fonctions. Ansin, j aborde le travail du sujet avec l criture et les procdures

    mises en oeuvre dans lnonciation des textes spcifiques.

    1. PRELIMINARES

    Neste trabalho, minhas consideraes estaro voltadas para aspectos relacionados

    emergncia e ao funcionamento de fenmenos de interposio como as chamadas inseres,digresses e notas de rodap os quais tenho abordado como variaes de um processomais geral chamado intercalao(Barros, 2000)1. A intercalao constitui-se tema de minhasreflexes no curso de doutorado e, na tentativa de propor-lhe uma interpretao diferenteda que tm feito estudos anteriores, articulo conceitos de duas reas do conhecimento Lingstica Textual e Anlise do Discurso. Ciente das diferenas de interesse e defundamentos dessas duas reas e ciente da constitutiva polmica (constitutiva para ambosos lados) que define as relaes entre os dois campos, tenho-me arriscado a descobrir ospontos de contato entre eles. Situando-me nas fronteiras no exploradas por conta dosriscos de invaso de terreno e de influncia recproca, assento minha reflexo nessa linha

    limite onde o discurso e o texto negam-se para poderem (a)firmar-se para explicar asintercalaes.

    Essa tentativa de interface entre texto e discurso (e entre estudos de texto e de discurso)ser percebida nas pginas seguintes, mas no empreenderei uma discusso terica aqui,pois a questo certamente extrapola os limites deste artigo. Neste texto, observarei apenasum aspecto mais especfico relacionado s intercalaes, que sua emergncia nos textosescritos da fase de aquisio, numa tentativa de descrever e analisar os momentos e formas

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    de emergncia, bem como as variaes relacionadas aos locais de emergncia no texto, sformas de marcao com que so destacadas e reconhecidas, e s funes que preenchemno texto.

    Para fundamentar essa anlise, adoto, alm dos fundamentos gerais que defini para

    minha tese, que consiste basicamente numa postura de interface na mobilizao de conceitosda Lingstica Textual e da Anlise do Discurso, o dilogo com os fundamentos especficosdo projeto de pesquisa intitulado A relevncia terica dos dados singulares para a aquisioda linguagem escrita (Projeto, doravante)2. Destaco, desse horizonte, especialmente umaquesto de ordem terico-metodolgica: a inspirao num raciocnio inferencial, que seefetiva por meio de um mtodo detetivesco, segundo o qual marcas empricas sointerpretadas como indcios para propor e desenvolver uma anlise e no como casos paracomprovar uma tese anterior um modelo epistemolgico por Ginzburg (1986) chamado

    paradigma indicirio.

    Numa primeira observao sobre dados da escrita infantil, pude reafirmar intuiesanteriores de que as intercalaes constituem marcas que podem ser interpretadas comoindcios de uma interveno do sujeito no texto. Esses indcios me permitiram a elaboraoda seguinte hiptese geral que guiar a reflexo neste trabalho: a emergncia renitenteapesar de no autorizada das intercalaes coincide com a emergncia da subjetividadeno texto, sendo, dessa forma, um lugar privilegiado para compreender as primeirasmanifestaes do trabalho do sujeito em sua relao de constituio recproca com alinguagem nesse caso especfico, a interveno do sujeito consistiria numaestratificao ordenada do texto por efeito das intercalaes.

    2. EMERGNCIA DAS INTERCALAES

    2.2. Quando eles (se) intercalam sem saber

    Articulando essa hiptese aos fundamentos mencionados e inspirando-me nas anlisesrealizadas no Projeto, nas quais as pesquisadoras (detetives) buscam (investigam) indcios(pistas) de um trabalho do sujeito (autor emergente?) com a escrita, a partir das re-elaboraes e outras marcas efetuadas em textos da fase de aquisio, buscarei tambm

    indcios de um trabalho do sujeito desde as primeiras escritas. Tomarei por base, nestemomento, textos das primeiras sries, para introduzir alguns dos muitos aspectosrelacionados s intercalaes.3

    2Esse projeto desenvolvido por Abaurre, Fiad e Sabinson, que, em dez anos de pesquisa, vm contribuindopara a reinterpretao de fenmenos ligados reescrita na fase de aquisio e, de modo inovador, para oentendimento da constituio do sujeito nos momentos de aquisio dos gneros do discurso, o que temdirecionado as pesquisas tambm para questes relativas a estilo. Sem querer sintetizar sua importncia, noposso deixar de enfatizar ainda sua contribuio de ordem terico-metodolgica para a pesquisa lingstica em

    geral e, de modo especial, para minhas reflexes.

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    J nas primeiras observaes dos dados, detectei vrias intercalaes nas primeirasescritas de vrios sujeitos, efetuadas de acordo com o que se consideraria suas exignciasformais. Mas esses textos me levaram alm do que eu me propunha analisar. Eu buscava asprimeiras intercalaes, por assim dizer, mas encontrei tambm algo que parece anteced-

    las e que acredito talvez nelas se transforme no decorrer dos anos. Fao essa suposioporque tenho fortes razes para pensar que muitos dos balezinhos, quadrinhos,nuvenzinhas, setinhas e tantos outros expedientes que permeiam os textos infantis comomeros suportes para recadinhos e similares so, na verdade, indcios das primeirasmanifestaes de uma necessidade de articular planos diferentes nos textos para separardizeres especficos (no para isso que servem as intercalaes adultas?).

    Diante dessa vastido de dados, resolvi trabalhar com as muitas intercalaes infantisencontradas considerando inicialmente o que estou propondo designar como intercalaespotenciais(ou pr-intercalaes, como me sugeriu Raquel Fiad) aspectos que, mesmo

    no se constituindo formalmente como intercalaes, seriam, tanto pelo propsitoenunciativo do que se insere quanto pela exposio diferenciada no texto, potenciais oufuturas intercalaes , deixando para apresentar no prximo subtpico as intercalaesefetivas.

    Os aspectos que vou destacar nos textos a seguir so marcas diversas de umaorganizao diferenciada do texto, as quais revelam um trabalho do sujeito. Esse trabalhopermite interpretar no apenas os rastros do sujeito que enuncia, mas tambm a considerao,direta ou indireta, da alteridade. Eis um primeiro dado:

    3

    Esses textos so parte do banco de dados do Projeto, o qual se constitui de milhares de textos, organizadosem corporadiferentes, como, por exemplo, dois longitudinais com a escrita de sujeitos particulares, alm de umterceiro corpuscom dados variados, que proporciona estudos de caso, pesquisas transversais, alm de outras.

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    Nesse texto, h, nitidamente, trs subsees (sem contar o ttulo). Inicialmente, amenina desenha uma nuvem para separar uma identificao, fazendo o chamado cabealho.No centro, separado ainda por duas linhas, est o chamado texto principal, e, abaixo, separadamais uma vez em um crculo, consta uma segunda identificao. Como transparece ao

    leitor, essa separao no gratuita. No h, no texto de Carmem (1 srie), invaso deterrenos: cada propsito enunciativo especfico se realiza no texto situado em um lugardiferente. Aspectos como estes apontados no texto de Carmem so to comuns eaparentemente sem segredos que no causam perplexidade (para usarmos um termo queadquire um sentido muito especial nas pesquisas de Abaurre) aos analistas. Contudo, maisque constatar a um modo infantil de escrever, chamo a ateno para uma explcitacoerncia na disposio desse texto.

    Essa separao de planos vai assumindo contornos mais explcitos e deixando maisclara a interveno do sujeito. No apenas se percebe que ele est no texto por meio de

    orientaes indiretas, digamos, mas por orientaes explcitas que evidenciamempiricamente o eu e o outro com quem dialoga em sua produo textual. No texto aseguir, h uma orientao ao leitor, mostrando no s que Julia (1 srie) trabalha, mastambm que direciona seu trabalho.4

    Nesse texto, destaco a orientao escrita, seguida de uma seta: VIRE . Essaorientao (que muito comum em textos escolares) indica a separao do texto, cuja

    4A anlise da representao do outro na escrita infantil preocupao especfica de Mayrink-Sabinson

    no referido Projeto.

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    continuao dar-se- na pgina seguinte. A advertncia direciona o olhar do leitor, e issoparece uma pista de que o sujeito sente a necessidade de organizar sua exposio, ante ofato de a pgina haver acabado, para que o outro no abandone a leitura. H uma sadado que se vinha tratando e o dizer, VIRE , de outra natureza. O sujeito coloca-se em

    um outro lugar textual, para, assim, alertar o leitor. Esse gesto metaenunciativo(Authier-Revuz, 1996) faz pensar nos mecanismos de coeso que Koch (1997) denominasinalizadores textuais, pois h no no plano da coeso local, mas da organizao do textoem termos mais amplos, uma ntida sinalizao que visa a orientar o interlocutor.

    E as interposies dos sujeitos em meio ao que enunciam no se resumem a marcaesindiretas ou orientaes com propsitos didticos, digamos. J nessa fase, os dizeresespecficos dos alunos vo muito alm disso, pois possvel observar tambm a interposiode outros atos de fala, cuja natureza revela questes afetivas, cognitivas.

    Jos Frederico (1 srie), mesmo escrevendo um chamado texto de cartilha, separacuidadosamente os planos verbal e no-verbal e, abaixo, ainda dirige-se professora, numagradesimento pelo trabalho realizado. Quantas vezes nos textos acadmicos e outrosso feitos agradecimentos, ressalvas e comentrios deslocados dos textos. Basta ver, porexemplo, que, em artigos cientficos, os agradecimentos direcionados s instituies defomento so devidamente colocados na chamada posio de rodap. Sem querer dizer queo aluno da primeira srie age a partir das mesmas motivaes e constries que um ps-graduando, ou, indo mais (pro)fundo, sem querer dizer que o mesmo agradecimento,

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    pode ser dito que h uma efetivao do ato de agradecer tanto em um momento quanto emoutro, num espao textual especfico.

    Os diferentes aspectos destacados revelam que, mesmo antes de fazerem intercalaesefetivas, os meninos e meninas j fazem uma separao multilinear de sua enunciao.

    Eles estratificam (ainda de um modo meio artesanal) o dizer, de acordo com os propsitosenunciativos que tm. Assim, mesmo antes de intercalarem de fato, eles fazem o que estouinterpretando como intercalaes potenciais, com base na hiptese de que servem apropsitos semelhantes aos das intercalaes efetivas. E esse trabalho do sujeito indiciatanto a assuno de si quanto a do outro em suas relaes com a linguagem escrita. Emmeio textualizao disso, destacam-se os primeiros bons ensaios de produo textual.So textos, inscritos, a seu modo, na situao histrica que os circunda, coerentes, coesos,que comprovam, desde muito cedo, o que se discute a respeito dos componentes textuais ediscursivos que esto envolvidos no processo de constituio dos sentidos

    2.2. Quando eles j sabem que (se) intercalam

    Se ao efetuarem intercalaes potenciais os sujeitos j revelam suas intuies emrelao textualizao de propsitos enunciativos, especialmente no que toca exposiodiferenciada e ordenada desses propsitos, mais claros se tornam os indcios dodesenvolvimento dessa competncia quando efetuam intercalaes efetivas. Mais que ummodo artesanal de intercalar, verifica-se j uma explorao sistemtica das intercalaesvrias, pois usam e com sofisticao parnteses, vrgulas, e, at mesmo, notinhas derodap. Assim, eles no apenas deixam seus rastros em meio ao texto, pela estratificaoque fazem, ou no apenas dependuram-se, antecipam-se ou anexam-se de modos vrios naperigrafia textual, como tambm entram efetivamente na escrita quando intercalam (-se),delimitando um terreno que do sujeito: deles pequenos sujeitos escreventes de textos.

    Passarei rapidamente por alguns textos raros das primeiras sries do EnsinoFundamental. Sujeitos na mesma idade escolar dos que escreveram os textos mostrados nosubtpico anterior, realizam intercalaes vrias, tal como o fazem os chamados escritoresproficientes. Observemos um primeiro texto.

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    O texto de Maria Lucia ML (2 srie)5 constitui um dado raro. No encontrei (ecertamente no encontrarei com facilidade em outros lugares), notas de rodap, efetuadasde modo sistemtico, com indicao remissiva o asterisco repetido , na segunda srie.Esse dado causa perplexidade tanto pelo que revela a natureza do contedo deslocado (o

    propsito enunciativo) como pela sofisticao formal que, certamente, rarssima nessaidade escolar6. Observe o leitor que, no tpico anterior, as intercalaes potenciais que seencontravam deslocadas eram do tipo antecipaes ou PS (Post Scriptum), algo que, emborase voltasse sobre o texto, referia-se a ele como um todo, ou a seu exterior (quando osalunos dirigiam-se professora). Aqui, sem deixar de mostrar o sujeito e seu dilogo como outro, a notinha aponta para uma questo especfica qual seja, a justificativa para ohomem ter ido embora (O homem foi embora porque ele tem vergonha), direcionadaprecisamente ao ponto do texto em que ela narra a fuga desse mesmo homem.

    Longe estamos de um defeito textual; longssimo, de um contedo sem relao

    pois, nesse sentido, h no s a articulao precisa a um ponto do texto, como tambm umaexplcita coerncia com seu ttulo. No me furtaria a admitir que, para o leitor adulto (ebuscador de essncias), essa intercalao pudesse ter um efeito acessrio, justamente porconta do ttulo; mas, para a menina que a efetua, a nota certamente resolve uma necessidadede explicitude, no sendo, de modo algum, um acrscimo contingente (se o dialogismo fundante e a coerncia contextualizvel, no se pode, por um lado, excluir um dos paresda relao o leitor e julgar o fenmeno aprioristicamente como acessrio; e, por outro,conceber um suposto leitor nico, que dispensaria a nota para a compreenso do texto, edizer que desnecessria). ML, com esse gesto (que no nico em seus dados, comomostrarei adiante), d um testemunho precioso de que as intercalaes emergem de acordocom as necessidades enunciativas, desde as primeiras escritas e justificam sempre suarazo de ser.

    O texto a seguir, que tambm de ML, mostra esse uso justificado da intercalao,desta vez com interposies feitas tanto no continuumcomo na perigrafia textual.

    5Esse texto foi analisado por Abaurre (1997) e muito do que dele direi j fora tratado por esta pesquisadora.6No estou querendo dizer que ela j saiba da sintaxe, da semnticae da pragmticade um texto; estou

    dizendo mais: ela sabe texto. E, claro, as intercalaes de seus textos no caem do cu; uma leitora, no apenasescrevente, e, aos poucos (ou aos muitos?), vai internalizando a gramtica da intercalao e desenvolvendo

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    sua competncia para us-la apropriadamente em lugares igualmente apropriados.7No estou dizendo que a nota no possa ser inserida aps uma re-leitura, aps o texto haver sido escrito.

    O que contesto ela ser tida como mero adendo. Como mostra o dado de ML, a nota surge de um ponto e sevolta sobre esse ponto, especificando-o. A considerao de adendo despenca rapidinho para acessrio, irrelevante...

    8Basta que o leitor observe o caso, j analisado por Abaurre (1997), da substituio vai/vo, onde acriana efetivamente corrige, substituindo uma forma pela outra. No caso, as idias de borboleta e sol com

    nuvem sobrepem-se literalmente!

    Iniciarei minhas consideraes pela perigrafia desse texto, voltando posteriormenteao continuum, pois quero aproveitar o gancho para tentar propor uma diferena entre doisfenmenos que s vezes so confundidos. ML (agora, na 3 srie) termina seu texto comum tpico PS (Esto chegando as frias !!). Perceba o leitor que no se trata de uma

    nota efetiva, tanto porque no tem marcao remissiva ao texto, como porque no sedireciona a um ponto especfico: trata-se de algo, que, embora tenha a ver com o textotodo, , como se diria, um adendo,postscriptum. Isso interessa para pensar nos muitosautores que de diferentes lugares tericos! chamam notas de rodap de acrscimoscontingentes, adjunes de contedos descentrados. A nota no acrescida ao texto,nem mesmo a chamada nota de fim de captulo, posto que se origina e, portanto, se remetea um lugar especfico a nota (como as outras intercalaes) uma especificao de umponto do texto; j o PS pode ser lido como acrescido, no devendo esse acrscimo serjulgado aprioricomo contingente7.

    No contingente como no so as interposies feitas no continuumdesse mesmotexto. ML faz trs intercalaes no corpo do texto, todas limitadas por parnteses. A primeiraexplica que o boneco de montar vira mergulhador; a segunda faz uma parfrase do conceitode borboleta, quando a escrevente d-se por conta (ooops...) posteriormente, pois osparnteses esto sobrepostos , que se trata de um sol com nuvem (talvez a borboletatenha sido desenhada a partir da juno de um sol e de nuvens, mas no d para saber aocerto; a no ser que ela faz uma reformulao retrica e no uma correo: ML no apaga,no exclui a borboleta, deixando que se leiam simultaneamente as duas idias)8; a terceira(nica ocorrncia desse ato de fala nessa srie em todo o corpus pesquisado) uma ressalva pelo menos d impresso (de que a ambgua borboleta se mexeria...).

    Alm da emergncia de intercalaes marcadas por parnteses, notas de rodap e PS, possvel encontrar nos textos infantis tambm intercalaes marcadas por travesses e,at mesmo, por marcadores verbais, como os marcadores de parfrase.

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    Neste texto de Raquel merece destaque o uso dos travesses. Ao falar do pai, a meninaafirma na segunda linha. O meu pai s vezes chato. A afirmao de que o pai svezes chato posta cuidadosamente entre travesses, num caso em que costumeiramentese usaria a vrgula. Ocorre que, desde as gramticas tradicionais, destaca-se que a vrgula

    pode ser substituda pelos travesses em casos onde se deseja dar nfase. E Raquel parecequerer enfatizar que seu pai apenas s vezeschato, porque, alm de destacar essa ressalva,arruma uma soluo bastante inteligente para nem isso ter de dizer dele. Se todos os paisseriam, segundo ela, s vezes legais e s vezes chatos, mico repeti-lo, como ela diz, demodo que prefere apagar e apaga. Desenha uma borracha em movimento do fim para ocomeo da frase e a apaga, para dizer o que seu pai realmente , num acrstico (PAI:Poderoso, Amado, Impressionante). Alm desse uso justificado do travesso, merecedestaque o ltimo pargrafo do texto, onde Raquel personaliza o marcador de parfrase,quer dizer, possivelmente para corrigir uma inadequao na forma de finalizar o

    texto:Tchau, quero dizer,fim o que pode ser interpretado como uma busca de adequaoao estilo do gnero(Bakhtin, 1979).As formas de marcao e as funes variadas das intercalaes permitem considerar,

    que, mesmo essas intercalaes sendo fruto de uma clara presso da prpria enunciao notexto (pois esses dizeres preenchem necessidades do texto, ligadas a constries da prpriaenunciao e no apenas veleidades dos pequenos sujeitos), no vejo por que nem comonegar que h um trabalho do sujeito. Assim, esses dados so suficientes para desenvolvera idia de que as intercalaes so fenmenos privilegiados para se observar a constituioda subjetividade entre controles e presses e o trabalho do sujeito com o texto. Proponho,portanto, uma primeira hiptese explicativa, a qual amplia meu ponto de partida: umaintercalao o resultado de uma interposio do sujeito, que constitui um planoenunciativo interposto e sobreposto, o qual instaura nveis enunciativos especificados,exigindo, portanto, formas de dizer igualmente especficas.

    Essa interposio do sujeito, pelos aspectos diferentes que mobiliza, pode revelartanto a organizao do texto quanto a constituio do prprio sujeito e talvez, justamentepor isso, podem ser detectados, no trabalho com as intercalaes, os primeiros indcios de

    autorianos textos (Possenti, 2002). Mas no quero tratar de autoria referindo genericamenteo trabalho do sujeito isso a teoria lingstica vem destacando h muito tempo comomarcas do sujeito no texto. Autores como Benveniste, Jakobson, Ducrot e outros, ainda

    dentro do Estruturalismo, j apontavam marcas pelas quais o sujeito se mostra, sem que aisso chamassem autoria. Atualmente em alguns lugares as coisas voltam a ser o quesempre foram, pois cada vez mais se vem trabalhos sobre a autoria, em que o supostoautor desenhado reflete facilmente o sujeito, o locutor, o enunciador e, se se procurardireito, at o emissor... Esse conceito precisa ser pensado cuidadosamente, indo alm deuma troca de nomes. Voltarei ao tema num prximo trabalho.

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    3. FUNCIONAMENTO DAS INTERCALAES3.1. Formas, momentos de emergncia e funes

    Contemplados brevemente alguns dos muitos aspectos envolvidos com a emergncia

    das intercalaes, a partir da discusso de alguns dados, passarei a uma abordagem maisespecfica que visa a sistematizar alguns dos aspectos envolvidos, explicitando os modosde funcionamento das intercalaes nos textos em que emergem. Para encaminhar essadiscusso, farei uma primeira tentativa de sistematizao, de acordo com a qual buscareicaptar os momentos e as formas de emergncia e as razes por que os pequenos sujeitosintercalam. Mesmo um estudo de base qualitativa no dispensa procedimentos comoclassificaes e descries, se os resultados fornecidos por estas servirem como argumentosa favor da anlise que propomos. Usarei aqui critrios elaborados em trabalhos anteriores(Barros, 2000, 2001). Inicialmente, lanarei mo de um critrio de posio, para classificar

    as intercalaes em presentes no continuumtextual ou deslocadas para a perigrafia (queinclui, no apenas a posio de rodap, mas o cabealho e as laterais do texto). Dentrodesse critrio, trabalhei com um outro de centrao , para dar conta dos possveis efeitosde afastamento do propsito geral do texto, e, por tal critrio, categorizo provisoriamente as intercalaes em digressivas e no digressivas9. Embora meu interesse seja com assries iniciais, observarei textos das demais sries do Ensino Fundamental para estabelecerelementos de comparao e melhor situar a discusso nas primeiras sries. Nas primeirasseis sries, trabalharei com 100 textos de cada, nas sries seguintes o nmero de textos serreduzido a setenta, por no haver quantidade similar nos dados selecionados. Abaixo constamquadros-sntese que mostram as formas de disposio e a freqncia de acordo com assries.

    3.2. Formas de disposio e freqncia de acordo com as sries

    1.1. Primeiros ciclos do fundamentalTIPO PRESENTE DESLOCADA

    digressiva no digressiva noPERODO digressiva digressiva

    1 srie -- 09 -- 19

    2 srie -- 30 -- 20

    3 srie -- 13 -- 08

    4 srie -- 16 -- 09

    9Na verdade, esse critrio tem uma utilidade apenas indireta neste trabalho, pois as chamadas intercalaes

    digressivas, reconhecidas como digresses, so a base de alguns dos descasos do ensino e da teoria com essaquesto o efeito de afastamento depe contra o fenmeno por conta do risco da descontinuidade sinttica e dafragmentao textual.

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    1.2. Segundos ciclos do fundamentalTIPO PRESENTE DESLOCADA

    digressiva no digressiva no

    PERODO digressiva digressiva

    5 srie -- 37 -- 11

    6 srie -- 35 -- 07

    7 srie -- 27 -- 04

    8 srie -- 26 -- 03

    No irei analisar esses quadros em detalhes. Meu objetivo apresent-los ao leitor etirar algum proveito de questes apontadas nos nmeros para encadear minha reflexoadiante. Dessa forma, destacarei alguns pontos. Esses quadros parecem dizer pouco emtermos quantitativos, se tivermos em mente que esse tipo de anlise deve apontar tendncias,evolues, enfim, permitir estatsticas sobre as variveis que levem a generalizaes. Claroque parece haver certos movimentos ascendentes ou descendentes de acordo com as sries,mas isso no contnuo, nem linear. H nmeros inesperados, como os da segunda srie,

    cuja possvel tendncia, um aumento, embora confirmada nas sries seguintes, mostra umsalto quantitativo desproporcional em relao s demais sries (o que pode ter a ver com oestilo do gnero em que tais intercalaes emergem). Alm dessa primeira impreciso,reconheo que h, mesmo dentro de movimentos ascendentes ou descendentes, diferenasmuito pequenas, as quais precisariam ser revistas para que pudessem ser assumidas de fatocomo tendncias.

    De qualquer forma, possvel, a partir dos nmeros, apontar algumas questes deinteresse. Alm de destacar a constncia de intercalaes em todas as sries e a variaoentre presentes e deslocadas, interessante falar de modo mais detalhado em trs outras

    questes as duas ltimas quase bvias. Primeira: no foram encontradas o que nosignifica que no se faa , em nenhuma das sries, o que estou chamando intercalaesdigressivas (costumeiramente chamadas digresses) isso interessante para se pensarque, se grande parte do descaso do ensino com as intercalaes d-se porque elas sovistas como digresses, sinnimas de desvio de tpico, divagao etc, essa questo podecomear a ser repensada: as intercalaes dos alunos no so digressivas (e se fossemmereceriam estudo e no descaso)10. Segunda: h um aumento progressivo da freqncia

    10Mantive o critrio e a categoria analtica, sem a realizao da varivel, para marcar a ausncia, justamente.Em minha tese, revejo essa categorizao.

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    de intercalaes presentes no digressivas ao longo das sries o que parece um sintomade maior nmero de leituras e da aprendizagem dos modos de intercalar e, por outro lado,um amadurecimento sinttico e textual que faz com que os alunos tenham um domniomaior das possibilidades de intercalar. Terceira: notada uma diminuio progressiva das

    intercalaes deslocadas no digressivas ao longo das sries o que parece uma contra-parte da questo anterior: com o amadurecimento sinttico e textual (e tambm pela idade...),os alunos comeam a intercalar com mais propriedade no corpo do texto, dispensando osquadrinhos, nuvenzinhas e outras, passando a usar outras formas. Mas no gostaria queessa tendncia levasse idia de que nas ltimas sries no h intercalaes deslocadas.11

    Fecho, por um momento, essa discusso para tratar de outros aspectos.

    3.3. Formas de marcao

    Apresentarei uma sntese dos modos como os sujeitos marcam as intercalaes quefazem em seus textos. Os dados permitem detectar marcadores bem variados. Trabalhareicom trs categorias principais, que buscam dar conta das formas de marcao conformesejam verbais, no-verbaisou combinadas em verbais e no-verbais. Dentro dessastrs categorias, observarei os marcadores especficos, por meio dos quais so destacadasas intercalaes. Dentre os marcadores verbais, incluo no apenas os bracketingdevices(marcadores conversacionais), mas tambm os verbos dicendi, ou verbos de elocuo que no so tratados dessa forma na literatura. Os no verbais incluem, alm de parnteses,vrgulas e travesses, outros marcadores no oficiais como bales, quadros, nuvens,asteriscos, setas, mudana de cor, etc. A marcao combinada leva em conta no apenasmarcadores no-verbais ou verbais diferentes, mas tambm verbais combinados com no-verbais e vice-versa, como pode ser visto a seguir.

    11No posso deixar de reconhecer que o nmero diferenciado de dados pode ter interferido na anlise.

    Mas no garantiria que o nmero igual por srie proporcionasse tendncias diretamente ou inversamenteproporcionais. O nmero de textos no pode ser a nica varivel envolvida para analisar essa questo.

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    M. MARCAO NO VERBAL MARCAO VERBAL COMBINADA

    1 PRE - 07 02 - - - - - - - - - - -DES - - 01 - - - 07 08 - - - 02 01 -

    2 PRE - 30 - - - - - - - - - - - -

    DES - - - - - - 16 03 - - - 01 - -

    3 PRE 01 08 03 - - 01 - - - - - - - -DES - - 06 - - 01 01 - - - - - - -

    4 PRE - 05 10 - - - - - - - - - - -

    DES - - 02 - - - 02 02 03 - - - - 01

    5 PRE - 07 17 01 06 - - - - 03 - - 03 -

    DES - - 05 - - - 01 02 - - - - - -

    6 PRE - 13 15 - 07 - - - - 01 - - - -DES - - 02 01 - - - 01 - - - 03 - -

    7 PRE 01 09 13 - 03 - 01 - - - - - - -DES - - 01 - - - - - - - - - - -

    8 PRE - 05 10 02 09 - - - - - - - - -DES - - 02 - - - 01 - - - - - - -

    Em relao a esse quadro, gostaria de destacar tambm algumas questes sempretenso de que isso seja lido como concluso, mas apenas como resultados circunstanciais,devidos metodologia aplicada. Assim, privilegiarei alguns pontos (que podem no ser osmais importantes). Inicialmente, destacaria a recorrncia de marcadores como os parnteses

    e os verbos dicendi, desde as primeiras sries at as ltimas sries do fundamental so osmarcadores mais caractersticos e normal que eles apaream e recorram. Outro fatodestacvel a quantidade grande de bales e quadros nas sries iniciais e o progressivodesaparecimento desses sinais nas ltimas sries isso sugere no apenas que os alunosvo deixando as formas infantis de intercalar, mas tambm que essas formas ou migraropara o continuumtextual ou, possivelmente, se transformaro em notas de rodap. Alis,bales e quadros deslocados, e o contedo que neles se insere, mostram os primeiros ensaiosdas futuras notas de rodap. Outra questo digna de nota o fato de praticamente noaparecerem nas sries iniciais marcadores como os b. devices e travesses e, de certaforma, at mesmo a vrgula o que pode ter a ver com o amadurecimento sinttico etextual exigido no uso de tais marcadores. Especialmente os b. devices, s os encontrei naltima srie do segundo grau, e em quantidade pequena, o que pode ser explicado assim: a

    PARNTE

    SE

    B.DEVIC

    ES

    VERBBO

    S

    DICENC

    I

    TRAVESS

    O

    VIRGULAS

    SETAS

    QUADROS

    ASTERIS

    CO

    QUADRO

    COR

    COR

    VERBBO

    S

    DICENC

    I

    B.DEVIC

    ES

    PONTUA

    O

    PARENTE

    SE

    OUTRO

    BALES

    E

    OUTRO

    S

    ENSINO

    FUNDAMENTAL

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    atitude de suspender verbalmente a enunciao para efetuar uma excurso maior exigeclculo e um certo controle, sob pena de no haver retorno ao que se tratava anteriormente.Outro aspecto interessante a destacar a presena, j nas sries iniciais, de marcaescombinadas. Esse tipo de marcao encontrado em textos de adultos e foi surpreendente

    ver que, a seu modo (e no sei se a explorao deliberada), as crianas j fazem uso dessamarcao.

    3.4. Formas enunciativas constitudas

    Vistas as formas de marcao, uma importante questo mostrar a que propsitosservem as intercalaes feitas. Como as intercalaes aparecem, j mostrei; mas por queos alunos as fazem, no exceto nos poucos casos discutidos anteriormente. Responder aesta questo um passo fundamental para pensar o funcionamento das intercalaes. So

    as funes desempenhadas que podero responder a que propsitos elas servem e por querazes as crianas as fazem, mesmo que no conheam das questes formais envolvidasem seu uso. Na primeira tentativa de anlise, pude notar funes que constituem formasenunciativas diversas.

    Por meio de intercalaes, presentes e deslocadas, so constitudas identificaes,anaforizaes, dedicatrias, tradues de termos, explicaes, reformulaes, correes,definies, avaliaes, ironias, citaes, ressalvas, especificaes, aluses, alm de marcardatas, orientar a leitura, indicando pginas seguintes ou anteriores, dentre outras. Advirto,contudo, que a nomeao dessas funes devida a uma interpretao, ao modo comoentendi os propsitos que as intercalaes preenchiam nos textos analisados; mas um outroanalista poderia interpret-las diferentemente. Uma outra advertncia que no meuinteresse primordial elencar funes particulares; na verdade, sempre critiquei (e critico) aatitude dos gramticos e de outros que se prendiam a funes especficas e noultrapassavam os dados em si, esbarrando no produto sem compreender o processo.

    Mas, se em outros trabalhos no considerei primordial enumerar funes especficas,aqui interessante essa uma questo crucial, porque explica a emergncia e serve paraengatar um rediscusso a respeito das intercalaes no ensino, onde, de maneira geral,sobrevive um discurso, em cuja base se pode ler uma condenao ao uso das intercalaes.12

    As funes justificam o uso, afastando a idia de que seriam defeitos textuais. Eis, portanto,

    algumas das formas enunciativas constitudas pelas intercalaes.

    12Digo apenas no ensino, porque as pesquisas em Lingstica Textual e Anlise do Discurso tm promovidoanlises importantes sobre as intercalaes, as quais em muito avanam em relao aos estudos tradicionais mesmo que permitam (e no seria bom se no permitissem) novos questionamentos e propostas explicativas.

    Meu olhar para o ensino porque constituo como outro dessa reflexo a gramtica, que , nesse caso e talvez emoutros, quem tem influenciado o trabalho com as intercalaes na escola.

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    RECONHEC

    IMENTO

    IDENTIFIC

    AO

    DATA

    ORIENTA

    O

    ANAFORIZAO

    DEDICAT

    RIA

    TRADUO/

    EXPLICA

    O

    DEFINIO

    ESPECIFICAO

    ALUSO

    CITA

    O

    RESSA

    LVA

    IRON

    IA

    AVALIA

    O

    REFORMU

    LAO

    ENSINO

    APOSI

    O

    FORMAS ENUNCIATIVAS

    1 PRE - - - - 01 - - - 01 - - - 07 - - -DES 14 02 02 01 - 02 - - - - - - - - - -

    2 PRE - - - - - - - - - - - - 30 - - -DES 13 04 02 01 - 01 - - - - - - - - - -

    3 PRE - - - - - - 01 01 - - - - 08 01 - -DES 06 01 - - 01 - - - - - - - - - - -

    4 PRE - - - - - - 15 05 - - - - 05 - - -DES 02 01 01 01 - - - 03 - - - - - - - -

    5 PRE 02 - 01 - 01 - 05 02 10 - 01 - 06 01 - -DES 04 - - - - - - - - - - - - - - -

    6 PRE 01 - - - 01 - 08 03 02 - 01 - 06 - - -DES 02 - 01 - - - - - - - 04 - - - - -

    7 PRE - - - - 01 01 01 01 10 - - - 10 - - 03DES 02 - - - - - - - - - - - - - - -

    8 PRE - - - - 03 - 01 04 03 - - 03 02 01 03 01DES 02 - - - - - - - - - - - - - - -

    Sobre essa tabela, importante mostrar que as intercalaes encontradas nos textosdos alunos preenchem desde funes mais simples (no estou opondo simplicidade importncia, mas complexidade), como identificaes, citaes e datas, at anaforizaes,

    aposies sobretudo medida que a competncia textual(-discursiva) vai sedesenvolvendo. curioso ver crianas de 4 srie efetuando ressalvas. Quem as ensinou? Quem lhes

    ensinou mecanismos pragmtico/discursivos de preservar a face, antecipar defesas, anularcontra-argumentos? Desde quando esses meninos e meninas sabem que um texto tempropsitos gerais que precisam ir sendo especificados localmente por meio de atividadescognitivas e atos de fala particulares? Desde quando esses meninos e meninas sabem quequando se interfere na sintaxe, preciso faz-lo em forma de bloco (da os pares de vrgulas,de travesses, de parnteses), para que se retome a estrutura sinttico-semntica do perodo?No quero sugerir que as crianas nasam sabendo, mesmo que no saibam que sabem.Mas apenas a condio de leitor que faz o aluno aprender a intercalar? E, no mais doponto de vista da aprendizagem, mas dos efeitos, como pensar que aquilo que os alunos

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    intercalam mero acrscimo contingente, que perturba a sintaxe, desviando os tpicos ecausando defeitos textuais?

    No est nas pretenses desse trabalho responder em especfico a cada uma dessasquestes, mas, sem dvida, todas elas so relacionveis numa possvel explicao, j que

    se colocam simultaneamente quando se pensa as intercalaes. Assim, mesmo sem haversoluo imediata, possvel, com base nesses questionamentos, a proposio de umasegunda hiptese explicativa, acrescentando novos elementos primeira: as intercalaesso fenmenos enunciativos, resultantes de uma interposio do sujeito, cujaemergncia exige, para ser textualizada, uma competncia textual-discursiva (em suasdimenses sintticas, semnticas, pragmticas), que se desenvolve no apenas pelaprtica de escrita, mas tambm pela de leitura.Essa hiptese devida observaotambm do funcionamento, pois este explica a emergncia, afastando a idia de que asintercalaes seriam a doida da casa (instncias dionisacas por definio...).

    Resta dizer que, por meio das intercalaes, os sujeitos voltam-se sobre o prpriotexto, sobre si mesmo, sobre o j-dito, projetam-se em direo ao outro, ao no-dito. Essaatitude, por Jaqueline Authier (1986) chamada metaenunciativa, constitui-se como umretorno do sujeito sobre a linguagem, o qual considero em todos os casos e em graumaior ou menor uma interveno do sujeito e uma presso discursiva. Conquanto pareaque agem por mera antecipao ou retomada, no sentido de sanar problemas relativos decantada incompletude textual, agem mesmo porque essa premente incompletude ospressiona desde muito cedo a considerar as possveis e inmeras fissuras do sujeito e dalinguagem. certo que no se revela, nos textos das crianas, um grande aparelho ideolgico,ou uma instituio com dispositivos explcitos, mas talvez no se possam negar indcios deuma micro-fsica de poder, cuja atuao se materializa por sutis e disfarados efeitos deconstrio, que fazem a ao do sujeito ser um emergir em meio a presses e no meradeliberao. E a, pela linguagem, pelo texto mais precisamente, que os sujeitos emergemnuma arena entre liberdade individual e presses exteriores.

    4. PERSPECTIVAS

    No tenho concluses alm das hipteses explicativas que elaborei localmente, em

    diferentes pontos desse texto. Apresentarei algumas perspectivas que se abrem a partirdesse olhar para a escrita inicial (e indicial) e dessa primeira tentativa de anlise. Sobreganhos de natureza terica, destacaria as vantagens em se adotar um modo de raciocnioinferencial, inspirado noparadigma indicirio, para as pesquisas em texto e discurso e, demodo especfico, para minha pesquisa, onde promovo uma interface, propondo como objetoo texto-discurso.

    No que respeita a contribuies de natureza terico-prtica, destaco que a partir deum olhar que mostre a recorrncia, a forma de disposio e de marcao, as funes maisespecficas e as implicaes dessas questes para a aquisio dos gneros e a constituioda autoria, necessrio e urgente que seja rediscutido o estatuto residual, sem importnciae prejudicial desse fenmeno na escrita escolar. A discusso do estatuto das intercalaespode levar a v-las no mais como dados residuais, nem ocasionais, mas como dados

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    singulares duplamente singulares: primeiro, so singulares por no caberem nem seremprevistos nas explicaes sintticas e textuais que, nesse caso, servem de base ao ensino;segundo, porque mostram que muito longe esto de serem meras impropriedades textuaisou sintticas, sendo, diferentemente, um lugar privilegiado para se pensar a relao do

    sujeito com a linguagem, um lugar da constituio da singularidade. Um lugar em que ossujeitos (desde sujeitinhos) metaenunciam, voltam-se sobre o prprio texto, ou dirigem-sea um interlocutor e, para tanto, usam lugares e recursos formais especficos.

    Por fim, se a teoria encarar esses fenmenos de modo que eles possam ser analisadoscoerentemente, sem se pautar em julgamentos superficiais que desconsideram sua natureza,sua constituio e as variaes, poder dialogar com o ensino, abrindo possibilidades deesclarecimento e de trabalho com essa questo. E quando digo isso, no quero sugerir quea escola deva ensinar intercalaes; acredito no ensino do texto, na tematizao dosgneros: essas outras questes passam pelo texto, fazem-se no texto. Assim, inspirando-

    me em Moreli, que fez novas atribuies de obras de arte nos museus da Europa por meiode um paradigma indicirio, quero contribuir para um reenvio das intercalaes, que vmsendo tratadas como marginais por estudos no enunciativos, para um lugar terico em quepossam ser explicadas e, ao lado disso, contribuir para uma melhor compreenso dessetema no ensino.

    __________________________REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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