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1 SEÇÃO EMPÍRICA Entre o saber popular e a ciência O saber popular na base da nossa sociedade • Sem saber, você utiliza ciência no cotidiano • Ervas: comércio motivado pela tradição • O sagrado e o popular • Mitos e verdades da nossa culinária • As comidas afrodisíacas existem? ANO 1 - NÚMERO 1 - JULHO/2014

Empírica - O saber popular e a ciência

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Trabalho realizado para a disciplina de Redação Jornalística IV, do curso de Jornalismo da UFPE.

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SEÇÃO

Empírica

Entre o saber popular e a ciência

O saber popular na base da nossa sociedade • Sem saber, você utiliza ciência no cotidiano • Ervas: comércio motivado pela tradição • O sagrado e o popular • Mitos e verdades da

nossa culinária • As comidas afrodisíacas existem?

ANO 1 - NÚMERO 1 - JULHO/2014

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EDITORIAL

A ciência da experiência

A construção de Empírica foi uma lição! Imagine o que são estudantes de jornalismo, com o pensamento sempre voltado para o caminho da análise crítica, entrando em contato com um conhecimento que, num primeiro momento, legitima-se tão so-mente pela crença popular. Foi nesse misto de descrença com curiosidade que começamos nossas apurações.

As vias pelas quais a investigação jornalística nos leva são má-gicas. No contato com a rua e sua gente, o povo de cada dia, que encontra na natureza e nas ervas um refúgio para males do corpo e, em alguns casos, até da alma, cada um de nós se tornou o solo ideal para que germinasse o encontro da sabedoria popular com a erudita. Fomos surpreendidos! Como era de se esperar, depara-mo-nos com muitas falácias. No entanto, é imenso o número de receitas populares, caseiras que possuem grande embasamento científico.

Para nós, uma lição: subestimar a milenar sabedoria do povo? Nunca. Quem se atrever não conseguirá resistir a tamanha sa-piência, preservada e retocada pelo tempo. É muito interessante notar que, hoje, somos mais sábios por termos aberto espaço em nossas mentes para um tipo de ciência que, antes de qualquer coisa, é experiência.

Boa leitura!

EXPEDIENTE

Edição: Eric FerreiraConcepção gráfica: Thiago MoreiraFotografia: Kácia Guedes, Marcela de Aquino e Mário RolimFoto de capa: Kácia GuedesReportagem: Bruno Gualberto, Débora Miriam, Eric Ferreira, Kácia Guedes e Marcela de AquinoCoordenação e orientação: Isaltina Gomes

Esta publicação foi criada para a disciplina Redação Jornalística IV, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco.

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SUMÁRIO

EntrevistaA antropóloga Danielle Perin Rocha Pitta explica que o mito está na base da cultura ocidental, mesmo que ele não seja tão prestigiado atualmente.

Artigo“A sabedoria popular nasceu junto com nossa família, nossos antepassados e se desenvolve, com tempo, em conjunto com a nossa sociedade”

CuriosidadesMesmo sem ter plena consciência disso, você utiliza princípios científicos no cotidiano doméstico.

Reportagem A possibilidade de se curar ou amenizar os sintomas em casa, sem consultar um médico e sem medicamentos é o principal atrativo das ervas medicinais.

Curiosidades 2Conversamos com a nutricionista Jailma Santos Monteiro e listamos algumas crenças populares na gastronomia que estão arraigados em nossa cultura

DôssieEntre o popular e o sagrado: “Desvela-se o saber popular na busca de dar sentido ao inexplicado. Podem já estar privados de tudo. Ao menos de fé não estão despidos”.

Reportagem 2Ostra, o ovo de codorna e o amendoim. Será que certas comidas realmente são capazes de deixar alguém em “ponto de bala”?

Crônica “O contato com terra, lama e mato fazia das crianças alvo constante de doenças. Uma das mais misteriosas era conhecida como ‘espinhela caída’”.

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ENTREVISTA

“Se você acredita em algo, então funciona”

Numa sociedade cada vez mais racional, crendices estão ficando cada vez mais raras. No entanto, Danielle Perin Rocha Pitta, que é antropóloga, líder do Núcleo Interdisciplinar

de Estudos sobre o Imaginário e professora da UFPE, explica que o mito está na base da cultura ocidental, mesmo que ele não seja tão prestigiado atualmente. Na entrevista, ela

ainda fala a respeito da influência que o meio tem sobre o cotidiano das pessoas e comenta como isso ajuda a sociedade a organizar sua vida diária.

Para a Antropologia, o que é o mito? O mito é uma questão polêmica. Ele existe na linguagem popular como consequência das escolhas da cultura ocidental, que acha que o mito é sinônimo de mentira. Tanto é que tem programa na televisão que procura esclarecer se algo é “mito ou realidade”, como se fossem duas coisas opostas. Mas para a Antropologia não é o caso, porque a gente sabe que toda cultura é embasada em mitos. Não há nenhuma cultura, muito menos a ocidental, que não esteja assentada em cima de uma mitologia. Então o mito, para a Antropologia, é o relato que funda todas as culturas. Então é a verdade primeira, se a gente quiser dizer assim.

Há diferença entre mito e crença popular? A di-ferença seria tênue. Você tem os mitos de base, que co-mandam a cultura como um todo. Mas, dentro da pró-pria cultura, você tem subdivisões, tem subculturas, não no sentido de sub como algo inferior, mas, sim, de divisões internas. Então, você tem divisões por classe social ou por grupos étnicos, que formam uma mesma sociedade. A crença das pessoas, na verdade, está toda baseada em mitos. O que pode ocorrer também é um grupo que é politicamente predominante, que se acha superior, dizer que o que o outro acredita é crendice, com um significado pejorativo, “o fulano acredita nessa besteira”. Mas nós todos acreditamos em coisas. Quan-

TEXTO Débora Mirian ILUSTRAÇÃO Eduardo Oliveira

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ENTREVISTA

do os cientistas dizem para a gente que não pode beber tal água, porque ela tem microorganismos, a gente acre-dita. Não tem muita diferença entre acreditar numa coisa dita cientificamente ou acreditar numa coisa dita religiosamente, nem crer em algo de sabedoria popular. A meu ver, é a mesma coisa.

Essas crendices são conhecimentos como, comer manga e tomar leite, usar sal grosso ou uma fer-radura para afastar mal olhado, saberes que pas-sam por gerações e se disseminam na sociedade? Eu estudei a cultura dos índios Fulni-ô, aqui de Pernam-buco e assim como qualquer cultura, a deles tem uma maneira específica de organizar a natureza. A cultura ocidental considera que existem minerais, vegetais, animais. Ela cria categorias. E, cria categorias em cada uma dessas categorias. Por exemplo, os vegetais são divididos em tais e tais categorias. Então, os estudio-sos descobriram que os índios Fulni-ô colocavam uma série de plantas dentro de uma mesma categoria e isso saiu na imprensa há muitos anos. No entanto, essa no-tícia veio acompanhada de comentários jocosos, como: “Coitadinhos. são tão burros que colocam várias plan-tas numa mesma categoria, quando não tem nada a ver”. Alguns anos depois, os químicos fizeram estudos dessas plantas e descobriram que todas as plantas colocadas numa mesma categoria pelos índios Fulni-ô tinham componente de chumbo em comum. Então, a crendice deles tinha alguma sabedoria. O que é chamado cren-dice é consequência de uma série de experiências, às vezes milenares, de uma sociedade. É consequência de uma criação do imaginário, de carisma. Há pessoas ca-rismáticas que de repente passam uma ideia. Qualquer coisa pode fazer com que as pessoas acreditem nisso ou naquilo. O problema é não desvalorizar, porque eu acho que acreditar nisso ou naquilo tem o mesmo valor.

Qual a importância das crenças e dos costumes como necessidade simbólica sócio-culturais? São absolutamente necessários. Eles organizam o convívio social. Toda a realidade é imaginada. A primeira coisa que uma cultura faz é estabelecer uma imagem do tem-po e do espaço. Isso é à base de toda a cultura. Por exem-plo, você tem uma imagem do universo em que o bem fica em cima e o mal, em baixo. Você organizou tudo, a sociedade, a arquitetura, a economia. Tudo vai decorrer dessa imagem primeira. E ela se atualiza no cotidiano de diversas maneiras. Isso ocorre em nível simbólico, porque você dizer que o bem está em cima e mal está em baixo, por exemplo, é uma imagem simbólica, uma imagem que atribui significado às coisas. Você atribui ao céu uma imagem positiva. Atribui ao subsolo uma imagem negativa, seria o inferno. E assim por diante. E

isso é que organiza a sociedade. Então, todas essas cren-ças no cotidiano são a expressão desses mitos mais pro-fundos. Por outro lado, elas são a dinâmica da vivência desse mito no cotidiano. Temos que transformar esses mitos de base em alguma coisa com a qual dê para a gen-te conviver.

Sociedades tidas como desenvolvidas têm menos crendices, menos costumes e vice-versa? Não. O mito é básico. É a primeira história, a fundamental, não tem para onde correr. O Ocidente, por exemplo, deu mais valor a certas partes do que a outras dos mitos que vinham da Grécia e de outras culturas, como a egípcia. Toda cultura, toda sociedade faz isso. E isso é dinâmi-co, no tempo e no espaço, quer dizer, as culturas se me-xem. A cultura ocidental valorizou a razão e passou a fazer uma hierarquia. Quanto mais racional a cultura, mais desenvolvida. Só que a gente vê no que é que dá as culturas mais desenvolvidas. Dá em bomba atômica, em agrotóxico, em matança geral, em genocídio. Então, essa valorização da racionalidade fez com que o mito, que é um discurso simbólico, fosse desvalorizado. Por-que o símbolo não se enquadra numa lógica racional, numa lógica cartesiana da racionalidade do Ocidente, que é binária. O Ocidente pensa por oposição, tanto é que fizeram os computadores, ou é isto ou é aquilo. Ou-tras culturas não pensam assim, como as orientais e as indígenas. Elas não pensam por oposições, pensam por complementaridade. Essas eram, e ainda são conside-radas inferiores. A cultura ocidental continua achan-do que o racional é superior a qualquer outra forma de

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“Não há nenhuma cultura, muito

menos a ocidental, que não esteja

assentada em cima de uma mitologia”

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ENTREVISTA

apreensão das coisas. A superioridade do racionalismo é uma opção cultural, para quem trabalha na perspecti-va do simbolismo imaginário. Na sociedade brasileira, como as pessoas lidam com as crendices? Aqui, a coisa é meio diferente. O Brasil se caracteriza pela multiplicidade de culturas em interação. Não existe obrigatoriamente essa supe-rioridade do racionalismo. Existe em certos meios oci-dentalizados, como, por exemplo, no meio dos negócios, nas universidades, onde a formação foi ocidental. Mas o povo em geral lida muito bem com a dinâmica que ocor-re entre as diversas culturas, que convivem no dia a dia. Eu trago a minha cultura africana, você traz a tua cultu-ra oriental, fulano traz a dele ocidental, a gente conver-sa e faz uma média. Há muito diálogo entre as diversas culturas, entre os diversos mitos em presença e como é que eles se articulam para formar outra coisa, para for-mar outra dinâmica. No meio dessa dinâmica, você tem crendices que vigoram. Quando dizemos, por exemplo, que manga com leite dá dor de barriga, o problema é acreditar. Tanto é que a definição do mito é um relato no qual se acredita. A fé é que determina essa crença, senão é um conto. O mito só é mito quando as pessoas acham que ele é verdade. Por exemplo, Adão e Eva foram expul-sos do paraíso. Isso é um mito. Ele existe enquanto mito e enquanto as pessoas acreditarem. No dia que disserem “olha que história mais sem pé, nem cabeça”, deixa de ser mito. Então, o que caracteriza um mito é a fé que a gente tem nele. Se eu tenho fé na história da manga com leite,

eu vou ficar com dor de barriga, não tenha dúvida. Tem também o componente do clima. Muitas vezes, coisas que são ditas na Europa como normas de alimentação ou de comportamento aqui não têm a menor validade. Eu sou de origem francesa. Lá, se dizia que, depois que você comer, você deve passar três horas sem entrar na água, porque senão você pode ter uma congestão. Isso é muito verdade lá, onde a água é gelada. Aqui no Nordes-te, onde a água está a vinte e sete graus, você pode comer e nadar que não tem problema nenhum. Tem que ter uma adaptação ao clima, ao tipo de sociedade, ao tipo de atividades. É dessa dinâmica que nascem as crenças. Outro exemplo da importância da fé é o fato de algumas pessoas terem feito exame de sangue e o diagnóstico ter sido o de AIDS. Mas esse diagnóstico estava errado. A pessoa não tinha a doença. Então, a pessoa morreu de AIDS, sem estar doente. É você ter fé, tanto na manga com leite, como nas máquinas usadas pelos médicos. Dá na mesma, acredite que funciona.

Por que culturas tão próximas, como países da América, por exemplo, possuem crenças e acre-ditam em coisas tão diferentes? Como se deu essa diferenciação? Existiam teorias que dizem que as culturas são consequência do meio. Se você vive em um lugar frio, você desenvolve um tipo de cultura. Se mora nos trópicos, desenvolve outro tipo de cultura com outras crenças. A antropóloga Margaret Mead estudou três culturas no mesmo ambiente físico. Culturas indí-genas, pequenas. Ela descreve essas três culturas, que são absolutamente diferentes. Então, ela colocou abaixo essa ideia de que o meio ambiente é que determinava a cultura. A cultura se forma a partir do meio ambiente, de uma sensibilidade própria de um grupo, inexplicável, da hierarquia de valores que esse grupo vai formando historicamente. Isso tudo lembrando que na base tem o mito. Porque se fulano nasce nas montanhas e acha que as montanhas são deuses, ele vai se organizar de um jeito. Mas, se achar, por exemplo, que as montanhas são impedimentos à língua dos deuses, ele vai agir comple-tamente diferente. Então tudo vai desse mito de origem. A partir daí é que vão se formar as crendices. Na Amé-rica é mais complicado, porque é muito diferente. Você tem culturas completamente diferentes. Na França, existem espaços com uma cultura rural, uns vilarejos pequeninos. Claro que isso tende a se diluir com a mí-dia, mas ainda existe. Você vê que é normal, cada can-tinho tem a sua cultura. É só você pensar numa família, que cria seus valores internos. Na sua família, você diz “não, os vizinhos acreditam nisso e naquilo, mas eu não vou por esse caminho, não”. Com as culturas é a mesma coisa. Cada uma vai escolhendo seus valores, acreditan-do neles e isso as diferencia de outras.

“O que é chamado crendice é

consequência de uma série de experiências, às

vezes milenares, de uma sociedade”

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ARTIGO

Antes de tudo, são irmãsTEXTO Kácia Guedes

Na escola, quaNdo aiNda estamos eNga-tiNhaNdo em nossas descobertas, ve-mos que as novidades que o mundo nos oferece são infinitas. São tantas coisas que nem imaginávamos que existiam. A ciência em todas as suas formas – dos seres vivos, dos números - nos surpre-ende a cada aula e um gás de motivação e curiosidade toma conta da imaginação da maioria dos alunos da classe. Come-çamos a nos orgulhar por saber porque o céu é azul, porque o grão de feijão ger-mina depois de alguns dias num algodão úmido. E com o passar dos anos, por coi-sas mais complexas como o motivo das guerras, a forma de fazer funções mate-máticas e como e porque aparecem os sintomas quando estamos doentes.

Inconscientemente, deixamos para lá coisas que aprendemos em casa, con-selhos que são repassados como lei a cada geração, como não tomar banho de piscina depois de comer, colocar palha de aço na antena para melhorar a qua-lidade da imagem etc. E nos sentimos o dono do mundo, do conhecimento. Mas quando adoecemos, por exemplo, vamos logo atender os conselhos da fa-mília. Banho de cabeça e chá de ervas para abaixar a febre e tudo mais o que for necessário. Apesar de no momento não acreditar, tudo funciona e nos dei-xa melhor e então você volta a respeitar tais ensinamentos.

E quanto mais crescemos, mais des-cobrimos que esses conselhos, além de conforto, também possuem explicações científicas. A troca de calor do corpo com a água do banho, as propriedades das ervas etc e ficamos abismados como nossa família sabia e como a ciência conseguiu explicar.

A relação entre a sabedoria popular e a ciência em nosso cotidiano é mais ou menos assim. Primeiro é uma integra-ção envolta de conflitos porque acha-mos que precisamos escolher um desses

tipos de conhecimento para acreditar. Mas quem disse que é necessariamente uma escolha excludente? A sabedoria popular nasceu junto com todos nós, com nossa família, nossos antepassados e se desenvolve, com tempo, em conjun-to com a nossa sociedade. Ela é formada por resultados empíricos de séculos e séculos, repassados pela oralidade, em vários ramos do conhecimento.

A ciência veio por consequência dessa sabedoria. Queríamos saber se o que acreditávamos realmente aconte-cia, queríamos provar e explicar com resultados de experiências científicas o que por vezes já era praticado. Tudo é registrado, escrito, publicado. Em meio a todo esse processo, novas outras coi-sas surgem incessantemente.

Algumas vezes a sabedoria popular e a ciência divergem. Nenhuma delas é perfeita. Como os seres humanos, e sen-do ambas construídas pelos próprios homens, elas podem falhar, podem estar erradas em determinados momentos. Mas ambas merecem respeito. Cabe reconhecer o que aprendemos com a sabedoria popular e com a ciência. Cabe entender que são conhecimentos com-plementares e que ambas procuram so-lucionar problemas vividos pelos seres humanos.

“A sabedoria popular nasceu junto com todos nós, com nossa família, nossos antepassados e se desenvolve, com tempo, em conjunto com a nossa sociedade”

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CURIOSIDADES

VOCÊabriga a

CIÊNCIA!Se a televisão está com a imagem ruim, palha de aço na antena. A pilha descarregou? Põe no freezer. Para não ter ressaca depois do encontro em família: não misture bebidas. Sem precisar ser versado em ciência, o brasileiro usa diariamente princípios científicos para resolver problemas que aparecem na maioria dos lares diariamente. Às vezes eficazes e,

outras vezes, nem tanto, o importante é que as práticas cotidianas que fazem uso de técnicas científicas (ou que, pelo menos tentam) estão no cerne da característica brasileira de sempre dar um “jeitinho”. Abaixo, cinco práticas que podem ser facilmente encontradas nas casas do

Brasil e a opinião de especialistas sobre a validade (ou não) delas.

TEXTO Eric Ferreira FOTOS Mário Rolim

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CURIOSIDADES

É verdade que a revolução da televisão digital deu o golpe de misericórdia nessa atitude tão corriqueira de quem queria ter uma imagem perfeita na TV analógica. No entanto, uma questão permanece: colocar palha de aço na antena melhora a qualidade da imagem? O engenheiro elétrico Igor Dornellas diz que depende. Segundo ele, o que determina a qualidade da imagem e do som, em primeira instância, é a posição da antena em relação à fonte transmissora. Por isso, se a antena estiver perfeitamente alinhada com o dispositivo emissor, a palha de aço só vai piorar a qualidade do que aparece na tela. “Contudo, há a possibilidade da palha funcionar. Como o aço é um material condutor, ele altera o perfil das correntes elétricas no interior da antena. Quando a palha metálica é colocada na ponta dessa vareta, ele passa a captar os sinais transmitidos em todas as direções”, diz o engenheiro. É por isso que uma antena não alinhada pode repassar sinais mais completos e, ao contrário, uma que esteja em perfeito alinhamento com a emissão acaba sofrendo interferências indesejáveis, fazendo a recepção perder qualidade. “Podemos até fazer um teste: se colocarmos uma palha de aço e a imagem da TV piorar, é porque a antena já está na melhor posição possível”, explica Igor.

Poucas coisas dentro de uma casa são tão desagradáveis quanto uma geladeira com mau cheiro. Quando a situação é essa, tudo que está dentro do refrigerador também assimila o odor ruim, até a água. Nessas horas, o carvão mineral ativo e o pó de café são agentes muito eficazes. O motivo para isso é um só nos dois casos: os pequenos poros que as duas substâncias possuem. “O carvão, por exemplo, é madeira queimada e tratada com oxigênio, o que abre milhares de poros minúsculos entre os átomos de carbono”, conta o químico Paulo Vieira. Segundo ele, quando as partículas de mau cheiro passam por esses poros, elas ficam aprisionadas e não conseguem retornar ao refrigerador. “Com o café, a lógica é a mesma. Quanto mais fino o pó, mais poros haverá entre cada grão”, aponta. Mas é preciso ficar atento, porque, se a geladeira estiver muito fedorenta, o carvão ou o café precisarão ser trocados em alguns dias, já que seus poros estarão saturados das moléculas do mau odor.

Palha de aço na antena da TV Carvão vegetal e café contra o cheiro ruim da geladeira

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CURIOSIDADES

Em algum momento da sua vida, você já deve ter visto pilhas comuns dividindo a paisagem do freezer com alimentos congelados. O intuito disso é um só: tentar recarregar as pilhas que já não cumprem a função de fazer aparelhos eletrônicos funcionarem. Mas será que as pilhas realmente são recarregadas dentro do refrigerador? Sim e não. É verdade que uma pilha pode voltar a funcionar se colocada no freezer. Porém, o que aconteceu não foi uma recarga, mas uma ativação de carga. O engenheiro elétrico Igor Dornellas explica que a pilha seca, como é conhecida a bateria mais comum utilizada em brinquedos e aparelhos eletrônicos, não é recarregável. Ela só descarrega. “Isso acontece devido ao seu líquido condutor de elétrons, selado e imobilizado. A pilha funciona com um polo positivo e outro negativo, separados por gases, fazendo passar uma corrente elétrica pelo líquido”, diz Igor. Ele ainda completa, falando que as temperaturas baixas diluem a camada isolante de gases no líquido, despolarizando a pilha, que funcionará até polarizar-se novamente, logo a seguir. “Por isso, que elas conseguem ter uma sobrevida de poucos minutos em equipamentos que exigem uma baixa corrente elétrica, como controles remotos”. As próprias pilhas têm produtos químicos para diluir a camada de gases, mas eles tendem a perder o efeito com o tempo.

Pilha dentro do freezer

Grande parte da ciência que as pessoas utilizam sem saber está relacionada à culinária. Por exemplo, não é raro de ser ver grãos de arroz dentro de saleiros, para que o sal continue soltinho. Mas o que é que leva o arroz a ter essa propriedade? A professora de gastronomia da Universidade Mauricio de Nassau (Uninassau) Maria Florência, explica que a água é o que faz o sal ficar grudento. Como o tempero tem muita afinidade com esse líquido, o ar úmido já é suficiente para que o sal absorva vapor de água e fique compacto dentro do saleiro. “Em cidades como o Recife, em que a umidade do ar é muito grande, esse é um problema recorrente, impossibilitando o sal de passar por entre as estreitas aberturas do saleiro”, afirma a professora. O arroz se torna útil nesses momentos, porque os grãos são muito secos e naturalmente capturadores da água do ambiente. “Assim, esse cereal vai absorver um pouco da água impregnada nos flocos úmidos de sal. Isso já faz com que o sal fique naturalmente um pouco mais solto”. No entanto, na briga pelo roubo de água, o sal acaba ganhando do arroz, porque o grão fica logo saturado e perde poder de absorção. “Para solucionar esse problema, é só renovar o arroz do saleiro constantemente”.

Arroz dentro do sal

Sempre utilizada para cozinhar alimentos em um espaço de tempo reduzido, a panela de pressão é uma das engenhocas mais científicas que as pessoas têm em casa. “O funcionamento dela se dá por um aumento da pressão interna da vasilha, maior que a atmosférica, que consequentemente faz com que a temperatura de ebulição do líquido aumente”, aponta o químico Paulo Vieira. Ao fecharmos a panela, ela já contém uma quantidade de ar que está com a pressão igual a da atmosfera. Como, na panela, há uma borracha que veda sua boca, quando o conteúdo interno é aquecido, os vapores de água vão aumentando, sem possibilidade de escapar. “Assim, a pressão do ar aprisionado se soma com a dos vapores, fazendo com que a pressão interna se torne ainda maior. Com uma alta pressão, o líquido demora mais para entrar em ebulição, chegando a temperaturas mais altas e cozinhando mais rapidamente os alimentos”, diz Paulo. A pressão atmosférica é de 1 atm, ou 760 mm de mercúrio, ao nível do mar. No entanto, dentro da panela de pressão, ela pode variar de 1,44 atm a 2 atm. Isso faz com que o ponto de ebulição da água, que é de 100°C ao nível do mar, chegue a 120°C dentro da panela. “Por isso que os alimentos são cozidos mais rapidamente. No entanto, por medida de segurança, a pressão dentro da panela aumenta só até um limite. Qualquer pressão a mais que esse teto empurra o pino no centro da tampa, chamado de válvula de contrapeso, liberando o vapor”, conclui o químico.

A tecnologia da panela de pressão

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OLHAR

Entre idas e vindas, centenas de pessoas compram os mais variados produtos nas tradicionais barracas do Mercado de São José. Os mais vendidos são as ervas terapêuticas.

O registro feito por Mário Rolim mostra mais um dia da rotina destes comerciantes.

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REPORTAGEM

Um comércio motivado pela tradição

De acordo com a tradição popular, métodos que utilizam ervas para tratar doenças são repassados de geração a geração. A possibilidade de se curar ou amenizar os sintomas em casa, sem consultar um médico e sem ter a necessidade de comprar medicamentos tradicionais é o principal atrativo da população no uso desses tratamentos. Entretanto,

é necessário saber bem o que está sendo ingerido pelo paciente. O ditado “se não fizer bem, mal não faz” não condiz com a realidade das plantas medicinais. Apesar de extraídas

diretamente da natureza, elas exigem cuidados especiais para que as pessoas não desenvolvam complicações no futuro.

quaNdo a questão é tratar doeNças, exis-tem várias receitas caseiras, como chás e inalações. Às vezes, as pessoas prefe-rem utilizar o recurso das ervas do que os remédios convencionais, o que não deixa dúvidas sobre a influência da sa-bedoria popular nesses momentos do cotidiano, sendo vista por vezes como um tratamento paralelo ou até mesmo como cura.

A médica fitoterapeuta e professora da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) Evani Araújo (65) explica que quando começou a trabalhar com plan-tas medicinais, há 40 anos, não havia SUS e nem assistência farmacêutica. As

pessoas não tinham dinheiro para com-prar os medicamentos convencionais e a equipe começou indicar o uso de ervas, mas ainda com insegurança.

Nos dias atuais, a regulamentação de todos os medicamentos – convencio-nais, fitoterápicos [medicamentos ela-borados à base de plantas] e as plantas medicinais em estado natural - está sob a responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Entretanto, a fiscalização está pre-sente somente em lojas especializadas e não em feiras populares que comer-cializam tais ervas. “Para eles [os ven-dedores] funcionarem naquela área do

mercado [de São José], eles tem uma liberação, mas com um comércio qual-quer”, explica Evani.

Há duas importantes questões, se-gundo a fitoterapeuta, na utilização das plantas medicinais: a identificação e a segurança. “Eu conheço quatro espécies diferentes de plantas chamadas anador [que também é o nome de um medica-mento tradicional], uma delas é inclu-sive abortiva. Se você vai a um barra-queiro e pede um anador, qual delas ele vai entregar?”, alerta a profissional que sempre mostra as plantas que o pacien-te precisa tomar.

Sobre a segurança do consumo,

TEXTO Kácia Guedes FOTOS Mário Rolim

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REPORTAGEM

Evani explica que, em primeiro lugar, a erva precisa ter sido usada por várias gerações sem causar efeitos adversos. Depois, é necessário um estudo sobre sua toxidade que pode ser aguda, quan-do proporcionar um efeito colateral de imediato, ou crônica, quando o uso contínuo da planta traz prejuízos para o organismo do paciente. “Poucas as plantas têm estudo de toxicidade aguda e menos plantas ainda tem um estudo de toxicidade crônica”, comenta a médica. Precisa-se saber qual é a parte da planta que é segura e foi liberada para o consu-mo, pois existem substâncias diferentes - com propriedades também distintas - nas diversas partes do vegetal.

“A gente precisa encarar as plantas como medicamentos, então todo me-dicamento tem indicação e contraindi-cação, dose e duração de tratamento”. Muitas plantas são tóxicas para o fígado, rins e pulmões e podem causar efeitos colaterais, como náusea, vômitos e diar-reia. Um exemplo de uso indiscriminado é o da erva confrei que por anos foi uti-lizada pela população, por meio de chás, para tratar de problemas gastrointesti-nais, mas que se for usada sem controle e por muito tempo, traz malefícios ao fí-gado. O chá de boldo, por exemplo, pode causar abortos se utilizado nos três pri-meiros meses de gravidez.

O professor de farmácia da Univer-sidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luiz Alberto Lira (43), também afirma que para aquelas pessoas que já tomam medicamentos controlados, deve-se ter muito cuidado com o uso de plantas e fitoterápicos, pois a utilização desses produtos pode aumentar ou diminuir a

ação dos remédios.Sobre as condições de preservação

das ervas, os dois especialistas des-tacam a importância de desidratá-las antes de colocá-las à venda, pois a água propicia o aparecimento de fungos e bactérias e, consequentemente, a dete-rioração do produto. “Muitos dos fungos que acometem plantas têm uma toxina cancerígena. Às vezes você vai no mer-cado e ver uma casca que está cheia de placas de fungos”, atenta Evani, aconse-lhando às pessoas que tenham um culti-vo doméstico de plantas medicinais.

Outro fator, mais de cunho social, é o conhecimento de quem vende esses produtos. Evani afirma que se o comer-ciante trabalhar há muito tempo na área, pode ter um conhecimento acu-mulado, o que, na maioria das vezes, não ocorre. “Tem um livro chamado Plantas medicinais de A a Z que alguém saiu coletando nomes de plantas e para que serve, sem nenhum estudo, e colocou para vender. Então eu já encontrei bar-baridades escritas ali” alertou a fitote-

rapeuta. As ervas, de acordo com a médica,

são utilizadas geralmente para a assis-tência primária - doenças em que a po-pulação pode se tratar em casa, como parasitoses, bronquite, asma e sinusite. Evani trabalha com a disseminação des-se conhecimento no Recife, através da capacitação de agentes de saúde pela Prefeitura.

O conhecimento tradicional, de acordo com os dois especialistas, está se perdendo. A fitoterapeuta explica que o desmatamento, para conseguir as plan-tas através do extrativismo, e a grande oferta dos remédios convencionais con-tribuem para enfraquecer essa sabedo-ria popular.

Lira destaca também que os novos interesses econômicos que permeiam as comunidades possuem um impor-tante papel para esse enfraquecimento.

Hoje, ao invés de divulgarem esse conhecimento para melhorar a saúde das pessoas, tais comunidades usam o mercado de plantas para se sustentarem financeiramente, o que gera o repasse de informações falsas. “Todo mundo sabe que tem um interesse forte do mercado em obter aquelas espécies para poder fabricar o medicamento e consequente-mente ganhar dinheiro. Então hoje você não consegue encontrar nenhuma co-munidade isolada em que aquele conhe-cimento tradicional não tenha sido con-taminado”, explica o farmacêutico. O surgimento de novas espécias de plan-tas medicinais também é muito difícil, devido à mudança do perfil econômico e da escassez de comunidades.

O tratamento de doenças a partir de ervas é uma característica cultural das comunidades, pois está associado a hábitos e tradições. “Um bom exemplo são os indígenas. Qual a importância da pessoa que tem o conhecimento da uti-lização de plantas dentro da comunida-de? Como ela interfere? Como é que or-ganiza a comunidade? Como é que passa esse conhecimento? Junto com esse conhecimento de plantas, passa-se toda a experiência de uma vida para quem vai dar continuidade aquela atividade”, analisa Lira.

De acordo com o farmacêutico, a re-lação entre as comunidades que conhe-cem a utilização das ervas e a academia é realizada por profissionais da etno-botânica e da etnofarmacologia. “Isso é

“O tratamento de doenças a partir de ervas é uma

característica cultural das comunidades,

pois está associado a hábitos e tradições.”

Ervas, infusões, “garrafadas” e lambedores. Variedade de artigos atrai os mais curiosos

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REPORTAGEM

muito importante porque na academia, o que é um sintoma para a gente, para a população representa outro, tem outra definição”, explica Lira

Maria da Conceição de Lima Tava-res, mais conhecida como Dona Ceça (56), é uma das pessoas responsáveis para que essa sabedoria popular não desapareça. Com tradição indígena na família e vendedora de ervas há 32 anos, ela conta que seu primeiro contato mar-cante com plantas medicinais ocorreu ainda na adolescência. Formada em En-fermagem, Dona Ceça nunca exerceu a profissão por acreditar que a ocupação proporcionava um contato “mentiro-so” com as ervas. “Eu sempre fui criada nisso. Meus irmãos que vieram depois de mim e meus filhos e meus sobrinhos e os filhos das minhas irmãs. Todos nós fomos criados com ervas”.

Ervas são infinitasLocalizada na Rua Praça Dom Vital, atrás do Mercado São José, no centro do Recife, a venda da comerciante não é a única. A rua abrange inúmeras barracas, consideradas parte externa do mercado, com variadas espécies de ervas que são expostas em sacos grandes, cada um com placas que exibem o nome da plan-ta e para que “servem”: dor de fígado, gases, infecção intestinal e até hiperten-são arterial, diabetes e alto colesterol.

A vendedora acredita que para algu-mas doenças não se faz necessário ir a um médico, pois o tratamento é possível através do consumo de plantas medici-nais. “Você não vê um índio num con-sultório médico, é a coisa mais difícil, porque ele tem o remédio lá dentro. Ele entrando ali na mata, ele tem riquezas”, explica Dona Ceça.

“Ervas são como números: infini-tas”, diz a comerciante que afirma ven-der plantas medicinais em atacado e a varejo para mercados públicos e vários bairros, como Casa Amarela, Cordei-ro, Prazeres, Boa Viagem, Graça e Casa Forte. A vendedora comenta que a pro-cura pelas ervas aumentou por causa de uma maior discussão sobre plantas en-tre a população, incentivada, por exem-plo, pela televisão. “Antigamente eram as pessoas de baixa renda. Hoje não. Todas as elites, todas as classes sociais estão procurando as ervas porque estão sabendo que remédio de farmácia não está mais valendo à pena. Além disso,

quando ele faz bem para uma coisa, ele provoca outras e as ervas não”, garante Dona Ceça. Consumidores jovens tam-bém estão mais frequentes.

O farmacêutico Lira lembra que no passado havia bastante preconceito por parte dos prescritores com a sabedoria popular sobre ervas, mas que hoje to-dos possuem ciência da relevância e da eficácia desses produtos como qualquer outro medicamento. A Relação Nacio-nal de Medicamentos, inclusive, já in-corporou vários produtos derivados de plantas.

Entre os clientes de Dona Ceça, es-tão as farmácias de manipulação. “Não vou dizer o nome porque eles me pedem para não falar, mas esses remédios ma-nipulados são feitos com ervas”, afirma a vendedora. Médicos também compram os produtos naturais. “Eles vêem buscar aqui, ou eu mando levar, agora isso num maior sigilo porque senão eles vão aca-bar com a formatura deles”, conta a ven-dedora aos risos. Apesar de brincar com a formação dos médicos, Dona Ceça reconhece que alguns já estão aderindo

à prática de maneira aberta, receitando remédios caseiros atrás das receitas tra-dicionais.

De acordo com o farmacêutico, as farmácias que recebem as ervas são as chamadas “homeopáticas”, que utilizam a matéria-prima vegetal para fabricar produtos naturais. Já as farmácias co-merciais, que possuem marcas conheci-das, recebem o extrato da planta pronto, fluido ou em pó. Elas não possuem um ambiente ideal para armazenar as ervas.

A fitoterapeuta Evani Araújo tam-bém comenta sobre o uso de plantas medicinais nas “Farmácias Vivas”, cria-das primeiramente no Ceará na década de 80, e que se alastraram pelo país com o objetivo de dar uma assistência médi-ca à população de baixa renda. Nelas, as pessoas eram atendidas pelos médicos e recebiam gratuitamente os fitoterápi-cos que eram prescritos por esses pro-fissionais.

Sobre os benefícios das ervas, Dona Ceça destaca a procura e a eficácia de suas “garrafadas”. “São ervas em várias qualidades, curtidas. Então a compo-sição delas juntas é o que cura. Minhas garrafadas curam herpes que os douto-res não curam. Curam CA [câncer]. Eu tenho pessoas curadas de CA compro-vadas. Pessoas que estavam com man-cha no útero que hoje não tem mais”, garante a vendedora.

Já a médica e o farmacêutico con-traindicam o uso das “garrafadas”. De acordo com eles, o maior problema é a mistura de ervas presentes no produto. “Eu posso causar uma incompatibili-dade: uma substância que está numa

“O mais importante nisso tudo não é só o dinheiro que fica. É o troféu que eu ganho da pessoa chegar a mim e dizer que foi

curado”

“Dona Ceça” acredita no poder terapêutico das ervas e comercializa seus produtos há 32 anos.

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planta, quando misturar com a da outra planta, pode neutralizar e deixar de fun-cionar, ou gerar um produto que pode ser tóxico para o paciente”, explica Lira. Além disso, de acordo com o farmacêu-tico, quando um produto tem um grande número de recomendações é típico de que não tenha eficácia. “Quanto menos plantas, mais seguro é o uso”, garante o profissional. Para Evani, o produto pode até curar, mas não traz nenhuma segu-rança para o paciente, podendo ocasio-nar prejuízos futuros. “Deve-se sempre usar uma coisa só porque a gente sabe o que e como funcionou”, adverte a médi-ca.

Dona Ceça acredita que a procura pelas ervas no comércio aumentou, mas não pensa em contratar funcionários para ampliar seu negócio. Ela mesma vende os produtos. “Primeiro, as garra-fadas são muito parecidas. Eu não vou deixar vender uma coisa, servindo para a outra. O mais importante nisso tudo não é só o dinheiro que fica é o troféu que eu ganho da pessoa chegar a mim e dizer que foi curado como um casal que já foi curado de herpes. Aqui você está lidan-do com vida humana e com saúde. Boa vendedora é aquela que conhece o que vende”, explica a comerciante.

Ao comentar um pouco sobre o pe-ríodo em que a sociedade está vivendo, de descobertas tecnológicas, Dona Ceça faz uma reflexão. “É um modernismo que não tem nada a ver com a verdade. A verdade é aquela origem, aquela coisa

nativa, aquela coisa divina que vem lá de baixo”, conclui a comerciante.

Consumidores Uma prova de que, apesar das inúme-ras transformações, a sabedoria popu-lar ainda exerce muita influência na maneira de como as pessoas se tratam são as histórias da diarista pernambu-cana Maria Rosely (44), mais conheci-da como Rose, e universitária Sophia Winkel (19), de São Paulo.

Tratada com ervas desde de infân-cia, devido ao difícil atendimento médi-co no interior de Pernambuco na década de 70, Rose conta que aprendeu sobre os tratamentos com plantas medicinais com a mãe, a sogra e com as avós. Hoje, educa e cuida de seus filhos da mesma forma. “Soube que elas [as ervas] davam certo por ver que realmente funciona-vam, os chás, os sumos de ervas e flores, as garrafadas. Eu cresci vendo as pesso-as ficarem boas utilizando praticamente só ervas”, explica a diarista.

Rose reconhece que em casos mais sérios as pessoas precisam procurar ajuda médica, mas aconselha que to-dos deveriam ao menos testar os tra-tamentos naturais antes de tomarem os medicamentos tradicionais. Ela cita exemplos de várias plantas que já utili-zou como lambedor de ervas para tosse, chá de eucalipto ou da folha de colônia para febre, chá de folha de laranja ou canela como calmante, sumo da flor de jerimum para dor de ouvido e a mistu-

ra de matruz com leite que precisa ser tomada em jejum para o tratamento de verminoses.

Assim como Rose, Sophia também possui uma relação com ervas desde a infância. Tudo começou quando sua pediatra – que praticava a homeopatia (terapia em que utiliza doses diluídas de substâncias para estimular o siste-ma imunológico do paciente) - indicou um tratamento fitoterápico. Como teve eficácia, toda sua família começou a recorrer à homeopatia, à fitoterapia e a outras formas de tratamento, como a acupuntura, por acreditarem ser mais saudáveis para o corpo do que o trata-mento convencional.

Sobre o comércio de ervas e de pro-dutos derivados, a universitária atenta para as questões econômicas da indús-tria farmacêutica que prioriza a venda dos remédios convencionais para uma maior geração de lucro em comparação com a venda de fitoterápicos.

Sophia acredita que a homeopatia, a fitoterapia e outros tratamentos deno-minados popularmente de “medicina al-ternativa” cuidam do paciente como um todo, prezam pelo equilíbrio do corpo e não só buscam tratar sintomas como os medicamentos convencionais. “É uma maneira de tentar melhorar a relação do paciente com o corpo dele. Isso tudo é muito mais válido na minha concepção, num sentido mais consciente de vida e tratar sua saúde”, explica.

SAIBA MAIS • Algumas ervas e suas aplicações práticas no dia a dia

Plantas Indicações Modo de preparo

CANELA (Cinnamomum zeylanicum Ness) Digestivo, gases.Cozinhe a entrecasca do caule em fogo baixo.

Utilize 3 pedaços grandes para cada meio litro de água. Tome uma xícara de chá após as refeições.

CRAVO-DA-ÍNDIA (Syzygium aromaticum (L.) Merr. et Perry Expectorante, bronquite.

Em uma xícara de chá com água fervente acrescente 4 a 5 cravos. Abafe por 10 minutos e

coe. Beba uma xícara após as principais refeições. ATENÇÃO: o consumo exagerado pode provocar

problemas gástricos.

ERVA CIDREIRA (Lippia alba (Mill.) Brown) Nervosismo, cólicas uterinas e intestinais.Em uma xícara de chá com água fervente acres-

cente 2 colheres de sopa de folhas picadas. Abafe por 10 minutos e cor. Beba 1 a 3 xícaras ao dia.

GOIABA VERMELHA (Psidium guajava L.) DiarreiaEm uma xícara de chá com água fervente coloque

3 olhos da goiabeira. Abafe e coe depois de frio. Beba uma xícara 2 a 3 vezes ao dia.

MARACUJÁ (Passiflora edulis Sims) Nervosismo, inquietação, insônia.

Em uma xícara de chá com água fervente coloque 2 colheres de sopa de folhas picadas. Abafe por

10 minutos e coe. Tome 1 a 2 xícaras por dia, principalmente antes de deitar. ATENÇÃO:

pessoas que sofrem de pressão baixa não devem beber o chá de maracujá.

FONTE: “Fitoterapia: Uma Alternativa Para Quem?”, de Ulysses Paulino de Albuquerque e Laise de Holanda Cavalcanti Andrade.

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CURIOSIDADES

COMIDAque

CURAe que

ENGANAListamos algumas crenças populares na gastronomia

que estão arraigados em nossa cultura

TEXTO Débora Mírian FOTOS Mário Rolim

“A compreensão das experiências alimentares cotidianas nos revela a dimensão simbólica e subjetiva do ato de comer, ajustadas aos determinantes e condicionalidades sociais que

se reproduzem em um sistema de crenças relacionadas ao conhecimento prático do mundo cotidiano”. É o que explica a professora do Departamento de Nutrição da UFPE Jailma

Santos Monteiro a respeito do que chamamos de crenças populares na gastronomia, tema de pesquisa desenvolvida por ela. Depois de um bate-papo, trazemos agora alguns dos mitos

mais populares sobre alimentos que são contemplados por seus estudos.

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“Ao beber água em jejum, o estômago dilata

temporariamente, o que é compreendido pelo cérebro

como um sinal de que algo foi ingerido”

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CURIOSIDADES

A famosa dupla manga com leite

Não há comprovação científica em relação às reações fi-siológicas dessa mistura. O que se aborda são os aspec-tos históricos, ligados a uma herança colonial e a escra-vidão de africanos que marcaram a desigualdade étnica no Brasil. Em relação ao consumo de frutas e verduras, havia uma formação de um sistema de crenças e tabus alimentares como esse, imposto por parte dos coloni-zadores, a fim de que esses alimentos fossem negados pelos escravos e preservados à elite escravista da época.

Piscina depois da refeição

Há dois aspectos a serem considerados: um relativo ao processo de digestão e outro às diferenças de tempera-tura entre o corpo e a água. Quando há alimento para ser digerido, o estômago precisa receber fluxo sanguíneo, mas ao fazer exercícios, o organismo passa a priorizar a distribuição do sangue para os músculos, deixando o estômago de lado. Depois de comer, é natural que ocorra maior fluxo sanguíneo para o centro do corpo, onde está o sistema digestivo. Se o indivíduo mergulhar em água fria, pode ocorrer choque térmico, o que ocasiona maior requisição de fluxo de sangue para a pele, a fim de corri-gir o choque. Assim, deixa de existir sangue suficiente para as duas necessidades, a de digestão e a de aumen-tar a temperatura da pele. Dependendo da intensidade da atividade física, podem ocorrer vômitos, mal estar e até mesmo disfunção cardíaca.

Chá de alho para gripe

O alho tem sido usado como medicamento desde a épo-ca dos faraós. Mais recentemente, pesquisas têm de-monstrado alguns desses efeitos, principalmente em relação a suas atividades imunoestimulante, antiate-rosclerótica, anticancerígena e antimicrobiana.

Beber água em jejum para emagrecer

Ao beber água em jejum, o estômago dilata tempora-riamente, o que é compreendido pelo cérebro como um sinal de que algo foi ingerido. Essa dilatação gera sen-sação de saciedade e faz com que a pessoa sinta menos fome e retarde um pouco mais o horário do café da ma-nhã.

Leite contra veneno

No que se refere à intoxicação por contaminantes am-bientais, não existe até o momento, nenhum estudo

científico que comprove o poder antitóxico dos compo-nentes do leite. Um erro grave é a utilização da bebida contra a intoxicação de agentes como tintas, vernizes, chumbo, solventes como benzeno e tolueno, e contra a inalação de grandes quantidades de fumaça.

Maracujá para acalmar

O maracujá é considerado uma planta medicinal pelo seu efeito sedativo, tranquilizante, antiespasmódico e diurético. Os extratos de Passiflora, seu principal com-posto farmacológico, encontrado em maior concen-tração nas folhas, são fontes potenciais em atividades ansiolíticas, sem, no entanto, causar os efeitos na me-mória, como ocorre com os grupos tratados com dia-zepam. Devido às frações alcaloídicas e flavonoídicas, o maracujá age como depressor inespecífico do siste-ma nervoso central, resultando em uma ação sedativa, tranquilizante e antiespasmódica da musculatura lisa. O seu uso diminui por instantes a pressão arterial e ati-va a respiração, deprimindo a porção matriz da medula. Ele também possui efeitos analgésicos, o que justifica o seu emprego nas nevralgias. No entanto, deve-se fi-car atento. Gestantes não devem utilizar o maracujá-sem orientação médica. Também é preciso controlar o uso das folhas na forma de chá, pois existem riscos de intoxicação cianídrica, consequente ao uso de doses exageradas. Pessoas com pressão arterial baixa devem consumir a fruta com cautela. O maracujá ainda pode potencializar o efeito com álcool, anti-histamínicos, do sono induzido pelo pentobarbital, dos efeitos da morfi-na e pode provocar bloqueios parciais das anfetaminas.

Banana reduzindo a cãibra

Existem vários motivos que podem levar as pessoas a terem cãibras. Um dos motivos é a falta de cálcio, pela produção de ácido láctico, quando se faz força muscu-lar. Outra razão é a falta do potássio. A banana é rica em potássio e realmente pode contribuir para o desapare-cimento das cãibras, se este for o motivo das mesmas. O mais importante é descobrir o motivo das cãibras e procurar o tratamento mais adequado.

Água com açúcar é calmante

O açúcar não tem propriedades sedativas. O que acon-tece é a facilitação da liberação pelo sistema nervoso do hormônio serotonina, uma substância neuromodulado-ra, que produz uma sensação de bem estar temporário.A produção de endorfinas também é elevada, graças à circulação do açúcar na corrente sanguínea.

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CURIOSIDADES

Cenoura faz bem para a visão A cenoura contém betacaroteno, que no nosso organis-mo se converte em vitamina A. A vitamina A é essencial para o processo visual, particularmente a visão notur-na. Isso é mais verdadeiro no sentido preventivo. Não se sabe se há um efeito eficaz na cura de doenças do siste-ma visual.

Oito copos de água por dia

Essa informação surgiu em 1945, quando o National Research Council divulgou um artigo sugerindo que o consumo médio de água, para um adulto, deveria ser de aproximadamente 2,5 litros por dia, considerando que parte dessa água já está contida nos alimentos que con-sumimos diariamente. Essa última parte da informação não ficou bem esclarecida para a população e a partir daí se estabeleceu que teríamos que ingerir oito copos de água diariamente. Vale ressaltar que a ingestão di-

ária é individual e depende do clima, da intensidade, frequência de exercício e atividade física, dos aspectos metabólicos e genéticos individuais e, em especial, da quantidade de água presente também nos alimentos ingeridos diariamente. Isso quer dizer, que não neces-sariamente são necessários oito copos de água por dia. Um bom indicador é a cor da urina que deve ser o mais clara possível.

Suco de beterraba põe fim na anemia

Por ser uma fonte de sais minerais, a beterraba protege o organismo contra uma série de doenças, e neste caso os principais personagens são as fibras e o ferro que ela contém. Vale ressaltar que a melhor forma de aproveitar e facilitar a absorção do ferro vegetal é acrescentar uma fonte alimentar ácida, como a laranja ou o limão. É im-portante lembrar que a anemia pode ter várias causas e o suco de beterraba não substitui o diagnóstico médico preciso para um direcionamento terapêutico efetivo.

“Não há comprovação científica em relação às reações fisiológicas dessa mistura (manga com leite). O que se aborda são os aspectos históricos, ligados a uma herança colonial e a escravidão de africanos que marcaram a desigualdade étnica no Brasil”

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Entre o sagradoe o popular

“Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemén, doutrina dele, de Cardequé. Mas quando posso, vou no

Mindubim, onde um Matias é crente, metodista (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas tudo é muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo.”

TEXTO Marcela de Aquino FOTOS Marcela de Aquino (depoimentos) e Mário Rolim (reportagem)

São tantaS veredaS, e um meSmo Sentimento. Assim tantos Riobaldos seguem o curso da vida com o terço entre os dedos e os amuletos da sorte a lhes amparar. Como se o fardo de estar no mundo pesasse demasiado sobre si mesmos. A finitude, desamparo e impotência assombram o homem. Desvela-se o humano e o saber popular na busca de dar sentido ao inexplicado, ao des-conhecido. Podem já estar privados de tudo. Ao menos de fé não estão despidos. Sentem-se apenas desvalidos diante do grande Sertão.

Entre ervas, maços de velas e defumadores se tecem as relações com o sagrado. Mais prevenido se está, nas diversas práticas religiosas que se apega. Nos Mercados

Públicos, a tradição se mescla com uma aura espiritu-al de tantos seres místicos, como os gatos que povoam esse imaginário. Lá, os vendedores de ervas e artigos re-ligiosos se tornam curandeiros que receitam e orientam quando nenhum remédio ou prece parece funcionar e seus assistentes nascem sob a proteção de Ogun, Xangô e Yasãn.

Há de tudo contra as dificuldades do dia a dia: defu-mador para olho grande, para tirar mandinga e vencer demanda (situação difícil ou adversário). Mas também tem quem queira alavancar a vida abrindo caminhos, chamando freguês, ou ter um pouco mais de sorte.

“Todo mundo tem um pouco de macumbeiro. A si-

- Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa.

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tuação apertou recorre-se a isso”, cita Margarete Gomes, referindo-se aos artigos de candomblé e umban-da que vende na praça Dom Vital, extensão da rua do Mercado de São José. Cardecista, divide a barraca há 17 anos com seus irmãos Mauricéia, católica, e o babalorixá Marcos, e afirma viver a religião livre de pre-conceitos.

Ela declara trabalhar com o sim-bólico, algo referente à religião que transpassa os limites das barreiras sociais. Vende a um público diver-sificado, que tem em comum a fé. “A gente vê aqui que para a maioria da população essas coisas existem né...superstições, crendices. E a gente pensa que é só na população mais pobre, mas não, tem gente aqui de todas as classes sociais, cada um com seus problemas”, sublinha.

O ponto já é reduto tradicional de contato com o transcendental. “O pessoal geralmente que vem aqui é porque tá se sentindo carregado, acha que tá com os caminhos fecha-

dos, acha que alguém fez macum-ba”. Também na esfera do amor, o apelo é forte: “Ou é gente querendo negócio de amor pra prender, prin-cipalmente, mulher, essas coisas de amarrar homem, amarrar mulher.”

As recomendações para agir contra uma adversidade ou conse-guir algo relembram os conselhos de tantas mães e avós a quem se pedia à benção. “Quando é no caso que as pessoas dizem que não tão arrumando trabalho, a gente passa banho pra abrir caminho. Quando a gente acha que tá com mal olha-do, a gente manda tomar banho de sal grosso... pra prender as pessoas, geralmente tem perfumes, tem pós, tem banhos.” Muitas dessas crenças populares têm ligações com a cultu-ra afro-brasileira, principalmente da umbanda que significa curandei-ro, e o candomblé. Para Mauricéia, “muitos não assumem por causa do preconceito e por ser uma religião perseguida.”

No ano novo, as crendices se re-

vigoram e o sincretismo torna-se mais visível. Esta data festiva na cultura ocidental que põe em pri-meiro plano a razão científica dia-loga com o simbolismo da crença. O fim do ano é como se fosse o final de um ciclo que dará lugar a outro, por isso que a transição, a passagem é tão importante. “Tem gente que pas-sa o ano todinho e não liga pra isso, mas quando chega naquela época determinada aí inventa, acha, acha não, quer começar o ano limpo, de corpo limpo pra poder absorver coi-sas boas”, reflete Margarete.

O principal artigo a que se re-corre nesse espaço de tempo é o defumador. “É pra fazer limpeza na casa pra começar o ano com a casa limpa ou então tem o pessoal que vai pra praia, vem aqui e compra coisa que simbolize Iemanjá”. Para ela, o que importa mesmo é a força no que se acredita. “Depende da crença, a partir do momento que você crê, consegue. Tudo está ligado ao pen-samento”, enfatiza.

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O Poder do Catimbó “Naqueles que acreditam ela pode pegar, mas

eu sei que quando não acredita, não acontece não...”

Eunice Correia da Silva (Protestante)Quando vai acontecer alguma coisa trágica,

sente algo estranho

Ana Gomes de Amorim (Católica) Faz se benzer quando sai às quatro da manhã

para o trabalho

Fim de ano mais próspero “Defumador, gosto mais de alfazema,

colibri, essas coisas... porque dizem que épra dar limpeza na casa, entrar o ano novo feliz.”

Anderson da Silva Catunga (Evangélico) Já passou por todas as outras religiões

por curiosidade

Roberta Meira Melo (Católica) Frequenta também espiritismo e outras religiões que “tem Deus no meio”, como assim define. Não acredita

mais nas crenças populares

Superstições“Quem fazia era minha mãe, eu num faço não.

Ela fazia jogar arroz, essas coisas dela que era do interior... essa questão do interior tem sua religião

que é católico”

Simpatias“Quando eu era jovem eu botei aquelas

baciazinhas com o nome de quem eu iria casar... não tem nada a ver, casei com uma pessoa totalmente

diferente, não tem lógica”

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Com um amuleto protetor no dedo e pedras no bolso da calça, o estudante de enfermagem Danilo José da Sil-va, de 23 anos se sente mais protegido e seguro diante da vida. Antes de sair de casa, joga o tarô egípcio que revela sua predisposição durante o dia, ritual que diariamente pratica na tentativa de desvelar o oculto e que, como dis-se, serve de representação do seu subconsciente.

“Superstições... tenho várias. Assim, eu creio no po-der dos cristais, no caso as pedras, porque elas têm uma força magnética”, afirma. Para Danilo, os cristais as-sim como qualquer matéria tem capacidade de irradiar energia. “Eles tem um poder de melhorar nossa vibra-ção de várias formas, a nível físico e espiritual... mudan-do nossa capacidade anímica que é da alma”, explica.

Cada pedra tem um poder terapêutico, então tem gente que se acha tímido, tem uma pedra que ela ajuda a pessoa a se expressar. Para problemas psicológicos e emocionais, por exemplo, Danilo recomenda a ametista.

Essas crenças tão comuns no cotidiano das pessoas ganham uma conotação maior no campo do sagrado na Associação Gnóstica de Estudos Antropológicos, Cul-turais, Arte e Ciência, a qual faz parte. É o gnosticismo, ou, como é comumente definido de cristianismo primi-tivo.

Está voltado desde a época de Cristo na busca de questões metafísicas que tem base nos quatro pilares do conhecimento. Como define Danilo, é uma arte, uma ciência, ela é uma filosofia e também é uma religião. É uma ciência que vai ao encontro dos recentes resultados da física moderna, dialoga com a filosofia pré-socrática através da crença nos quatro elementos antigos, aproxi-ma-se do misticismo oriental com a autotransformação

em busca do conhecimento dentro de si através da me-ditação e tem suas práticas, cultos e ensinamentos.

Os gnósticos acreditam que todo o ser humano tem dentro de si mesmo uma parte do sagrado, que as reli-giões institucionalizadas chamam de Deus. Para eles, essa parte sagrada se nomina de essência. “Todo ser humano tem uma essência dentro de si que ela está aprisionada pelos vários defeitos que acometem toda a humanidade, a gente chama dos sete pecados capitais”, pontua. E complementa: “Com o trabalho de reconexão com o divino, é possível fazer a eliminação com muito trabalho, muito esforço desse ego. De fazer essa essên-cia, essa luz, se expressar”.

Desde pequeno, esteve muito ligado à crença no ho-róscopo e a simbologias consideradas místicas. Ele também acredita no que a natureza pode oferecer aos homens para usar em favor do bem. “Acredito no poder das plantas, das ervas, dos minerais por causa da argi-la, na magia do ar”, defende Danilo. Sem contar sobre a energia passada pelo poder do catimbó. “Um olhar pode lançar uma energia psíquica sobre as pessoas que podem prejudicar. Então, quando uma pessoa faz uma prática que ela evoca outras energias aí realmente tem um poder maior”, explica.

Sobre uma experiência que teve antes de entrar na associação, conta que já se utilizou de magia ( jogar sal em cima do fogão) que é popularmente conhecida para afastar o indivíduo. “Eu queimei um pedaço de papel, peguei um pouquinho de sal e joguei, e ainda pronunciei algumas palavras: tire ele da minha casa. Não deu cinco minutos, ele ficou com febre e disse ‘vou pra casa tomar um banho’”, conta Danilo.

O poder dos cristaisTEXTO, FOTO E ILUSTRAÇÕES Marcela de Aquino

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o Saber popular, o Sagrado e a magia se fundem nesta religião que é originária das matas de Pernambuco e de outros estados nordestinos. Essa tradição tem 400 anos de existência em que crenças indígenas se mesclaram com os quilombos, e com a bruxaria portuguesa e seu catolicismo.

“Ser filho de jurema é uma religião que quando a gente nasce já traz ela, não precisa se cortar porque tem gente que se corta , que dá bode, boi (candomblé)...a mi-nha não, a minha já veio de berço. Eu já vim com o saber, com o dom da sabedoria”, afirma Jessina da Silva. Há 50 anos, que pratica na Bomba do Hemetério os cultos da jurema, que guarda relações com a umbanda e o catim-bó, muitas vezes tornando-se inseparáveis.

Desde cedo, ela se viu entre o dever da obrigação de exercer sua mediunidade e viver sua vida livremente. Os seus antecedentes, incluindo sua mãe, também eram juremeiros. Até hoje, trabalha para o público fazendo caridade, só aceitando donativos para as suas consul-

tas. Adora na sua vida pessoal os orixás do candomblé e os santos católicos por quem aprendeu a gostar nos 10 anos que passou em um internato cristão.

Mas seu trabalho é em intermédio com vários ca-boclos que a incorporam. Seu Zé bebinho que gosta de cerveja, pitu e uísque, o canindé é o dono da casa que é o menino que gosta de fruta e mel, a pomba-gira para tra-tar de relacionamentos afetivos, a Luciaria, Paulina, e o Malunguinho que já cumpriu sua missão na terra e fora embora.

Um produto muito importante no momento de suas orações às entidades é o mel. “Trabalho com azeite de dendê, mais o mel é que me traz muita felicidade por-que é doce, adoça.” Um dos ensinamentos é que pode interferir na mudança de humor no indivíduo. “Você pode está com uma ira muito grande se você tomar uma colher de mel, você sente dentro de si que aquilo vai lhe ajudando”.

“Eu também benzo com erva, é sagrada porque eu

O saber popular de quem é de Jurema

TEXTO Marcela de Aquino FOTOS Mário Rolim

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rezo. Eu imploro primeiro o dono das ervas, que são os caboclos, eles foram quem batizaram, e eles foram quem botaram o nome, porque viviam dentro do mato”, ressal-ta. Quando a pessoa vem com alguma entidade que a faz ficar doente, deprimida ou quando as coisas dão errado, o saber empírico entra em ação. “Banho de ervas como alfavaca de caboclo, macassá, arruda, pinhão roxo, a pessoa passar vela”, e uma infinidade de possibilidades.

Jessina tem uma relação forte com as entidades sa-gradas da Jurema, e em uma de suas consultas o Mestre fala a um trabalhador de plantação que está com fungo, o qual corria risco de perder o pé segundo a medicina tradicional. “O mestre disse vinte e uma qualidade de ervas e ele fez três meses esse tratamento, e graças a deus e aos mestres ficou bom”, afirma.

O poder terapêutico das ervas com a ajuda das pre-ces cura diversos tipos de males. “O arruda tem muitos

poderes, arruda tem o poder de benzer, ela tira maus fluidos, ela serve pra banhos, ela serve pra doenças, ser-ve pra mal olhado. A canela serve pra calmantes, serve pra vômito”.

Segundo ela, a babosa batida com o mel no liquidi-ficador serve para tratar o câncer, mas os efeitos posi-tivos das ervas só é sentido com a força do pensamento. “Quando você for fazer um banho com alfavaca (tira mau olhado) tem que saraivar os caboclos e pedir aos caboclos o que você quer”, sublinha.

Esse poder mágico fazia parte do modo de vida da população de outrora. “Isso vem da antiguidade, anti-gamente não existia o médico, o médico eram as ervas. Você ia pras casas das benzedeiras.” Mas ainda hoje, es-ses conhecimentos têm tantos adeptos que encontram na mãe Jessina à sabedoria de uma tradição secular.

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REPORTAGEM

alimentoS afrodiSíaCoS São aqueleS ConheCidoS po-pularmente por despertar e prolongar a libido (desejo sexual) e também por provocar uma sensação de bem estar nas pessoas. Como toda sabedoria popular, a cren-ça no poder afrodisíaco de certas comidas é antiga. A palavra “afrodisíaco” vem de Afrodite, deusa da mitolo-gia grega que simbolizava o amor, a beleza, a fertilidade e que teria nascido das espumas do mar. A divindade era famosa por seu poder de seduzir a todos com a sua bele-za. Desde os antigos gregos, o negócio era comer e partir literalmente para o abraço. Os egípcios, já na Antiguida-de, também tinham lá seus petiscos “levanta-defuntos”.

Segundo a nutricionista Carla Ionara, supervisora do Restaurante Universitário, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é certo que “na literatura cien-tífica não existe o termo ‘alimento afrodisíaco’, o que

temos são as classificações em: alimentos enriquecidos, orgânicos e funcionais”. Isso quer dizer que não há com-provações científicas de que determinados alimentos têm ação eminentemente afrodisíaca, mas se reconhece que os nutrientes contidos em certas comidas auxiliam no desempenho sexual e na sensação de bem estar.

Dentre os aqueles afrodisíacos que teriam a proprie-dade de garantir a sensação de bem estar, muito mais do que o desejo sexual, o mais conhecido é, sem dúvida, o chocolate. Não tem nada mais romântico e sedutor que presentear a pessoa amada com chocolates, em come-morações festivas, sobretudo no dia dos namorados. O alimento é praticamente uma unanimidade em ma-téria de se proporcionar prazer, sem falar que o termo “chocólatra”, que designa o vício de comer tal alimento, atesta seu poder. Isso tudo é justificado, segundo Carla

Certamente todos já ouvimos falar que determinados alimentos, como a ostra, o ovo de codorna e o amendoim, ajudam a melhorar o desempenho sexual de homens e mulheres.

Mas será que certas comidas realmente são capazes de deixar alguém em “ponto de bala”? Podemos dizer que o melhor caminho para se chegar à cama é começando pela mesa?

TEXTO Bruno Gualberto FOTOS Mário Rolim

ALIMENTOS AFRODISÍACOS:

O PRAZER COMEÇA NA MESA

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REPORTAGEM

Ionara, por sua capacidade de agir na produção da serotonina no corpo, genericamente conhecida como “o hormônio do prazer e do bem estar”. Além disso, o chocolate, em formato de ovo de Páscoa, é associado ao co-elho, animal símbolo da fertilidade.

Já os alimentos que se constitui-riam, segundo a crença popular, em verdadeiras “fórmulas do amor”, ou seja, ligados diretamente ao apetite sexual, são vários.

Existem aqueles que, já pelo for-mato, sugeririam um poder de des-pertar o desejo sexual em homens e mulheres. A ameixa, a pêra, e o pêssego, por exemplo, são associa-dos a partes do corpo feminino e, por isso, teriam valores afrodisía-cos, segundo Marina Rosana Basso, especialista em Gastronomia, pela Universidade de Brasília (UNB), em seu livro Alimentos Afrodisíacos: lendas, ritos, crenças e verdades. Enquanto o abacate, a banana e a cenoura, por sua vez, para a pesqui-sadora, também são estimulantes sexuais, pois remetem ao formato do órgão sexual masculino.

Embora não haja referências bí-blicas que identifiquem claramente qual fruta “abriu os olhos” de Adão e Eva para suas partes íntimas, há muito tempo se acredita que a ser-pente tentadora lhes oferecera uma maçã. Essa associação com a libido faz sentido. É o que diz um estudo realizado pelo Hospital Regional Santa Clara, na Itália, e publicado em 2014, na revista “Archives of Gynecology and Obstetrics”. Após analisar centenas de mulheres, que comiam maçã diariamente, os pes-quisadores concluíram que uma substância encontrada no alimento, chamada “florizina”, teria papel im-portante na excitação sexual.

Quando o assunto é apetite sexu-al, as ostras também fazem sucesso. Encontrado nas mãos de vendedo-res em praias, bares e restaurantes, esse molusco leva a fama de “fazer a cama” de muita gente. As ostras

têm realmente efeito no desejo se-xual. Pois, assim como a castanha e as sementes de abóbora, são ricas em zinco, mineral que desempenha um importante papel na formação do testosterona, hormônio sexual do homem, e do esperma, garante a nutricionista.

No Nordeste, para alguém com falta de disposição, aconselha-se em geral, além do ovo de codorna, o caldo de mocotó, feito da pata do boi. Com alto teor de gordura, esse cozi-do é popularmente conhecido por provocar o “suador”, sensação re-pentina de calor, que deixaria qual-quer um disposto para uma epopeia sexual. Mas Carla Ionara alerta que alimentos muito gordurosos, devem ser evitados, pois, assim como as frituras e doces, “impedem a circu-lação adequada de sangue e dificul-ta a digestão”. Embora seja fonte de ferro, vitaminas e cálcio, o ovo de co-dorna não interfere na libido, afirma a supervisora em nutrição.

O licor de jenipapo, o vinho da catuaba e a famosa vitamina de gua-raná do Amazonas, disponíveis em grandes quantidades nos mercados públicos e nas feiras, são conside-rados combustíveis para se ganhar

disposição para a relação sexual. A catuaba, que é a casca de uma árvore amazônica, por exemplo, teria ação vasodilatadora, aumentando o fluxo sanguíneo para as regiões genitais. Além disso, tem “uma substância chamada feniletilamina, que dá a sensação de prazer”, garante a nutri-cionista. O guaraná, principalmente em pó, teria uma substância à base de cafeína, que estimula a dilatação dos vasos periféricos e aumenta a disposição do organismo. O jenipa-po, assim como a catuaba, também melhoraria a circulação sanguínea.

Embora a cachaça seja popu-larmente considerada uma bebida afrodisíaca - quem já não ouviu al-guém aconselhar: “toma um trago que ajuda”? -, seu afeito é justamen-te contrário. Carla Ionara adverte que tomar bebidas alcoólicas em excesso provoca impotência sexual.

O amendoim, por sua vez, se-ria responsável por muitas noites de prazer entre casais que aliam comida e sexo. É fácil se verificar a presença aos montes dessa legumi-nosa em locais de muita circulação de pessoas, sobretudo em merca-dos públicos. Segundo Wellington Ferreira, comerciante do produto que trabalha próximo ao Mercado São José, no Recife, muita gente vai comprar o amendoim, garantindo: “eu hoje vou levar! Hoje eu vou dar dez!” O amendoim, de acordo com a nutricionista, é rico em arginina, que promove um aumento do fluxo sanguíneo do pênis, devido à vaso-dilatação. Ou seja, quem come o ali-mento está sim contribuindo para uma vida sexual de qualidade.

Mesmo sendo uma crença emi-nentemente cultural, os alimentos afrodisíacos despertam a curiosi-dade de muita gente. A sabedoria popular, por vezes, está em sintonia com a ciência, outras não. Mas isso é secundário, quando o assunto é fa-zer do simples hábito de comer um ritual amoroso que melhora a vida de muitos casais.

“Na literatura científica não existe o termo

‘alimento afrodisíaco’”,

mas “alimentos enriquecidos,

orgânicos e funcionais”,

garante a nutricionista.

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REPORTAGEM

Cleópatra, a mais famosa rainha do Egito Antigo, utilizava pasta

de mel e amêndoas moídas para seduzir

os homens mais poderosos de sua

época.Os astecas, no México, chamavam o abacate

de “ahuacati”, ou testículos, e proibiam

suas virgens de saírem de casa durante a colheita da fruta.

Marquês de Sade teve que fugir para a Itália, acusado de servir a seus convidados

a “cantaridina”, um pó da “mosquinha azul”, que,

além de provocar ereções persistentes, podia levar à

morte.

No Kama Sutra, escrito no século V, há um capítulo

com receitas afrodisíacas, dentre elas, um néctar derivado da mistura de manteiga, mel, açúcar,

alcaçuz, suco do bulbo da erva-doce e leite.

LENDAS E CURIOSIDADES

Fonte: Alimentos Afrodisíacos: lendas, ritos, crenças e verdades, de Marina Rosana Basso.

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CRÔNICA

a Criançada quando padeCia de algum mal, os pais se desesperavam. O conta-to com terra, lama e mato, comuns no Recife dos anos 1980, fazia das crian-ças alvo constante de doenças. Uma das mais misteriosas era conhecida popu-larmente como “espinhela caída”.

Essa enfermidade deixava meninos e meninas com um fastio desgraçado e sem ânimo para fazer qualquer coisa. Naturalmente eu, moleque nas brinca-deiras de rua, contraí a doença. Depois de uns dois, três dias sem eu comer di-reito, minha mãe desconfiou logo. As vizinhas, que não perdiam a chance de

palpitar, seja lá qual fosse o assunto, começaram a especular. Uma, de voz arrastada, dizia: “ah, minha filha, o meu menino já teve isso! Isso é mal olhado!”. A outra, uma baixinha sisuda, não per-deu tempo: “isso é espinhela caída! Leva ele pra dona Irene benzer”. Minha mãe, na verdade, é uma mulher descrente de quase tudo, mas inteligente o bastante para não bancar a cética numa hora des-sas.

As rezadeiras eram uma tábua de salvação de muitas donas de casa. Aque-las mulheres, além de estarem quase sempre à disposição, não cobravam qua-

se nada. Seu instrumento de trabalho era, na maioria das vezes, um galho do olho (parte mais alta) do pé de pinhão roxo, uma planta de cor escura, que tan-tas famílias preventivamente cultiva-vam no quintal.

Dia seguinte, pouco antes do almo-ço, fomos, minha mãe e eu, em busca da iniciada. Confesso que eu estava receoso. Sabia quem era, do que se tra-tava, mas era a primeira vez que eu iria ser consultado com uma rezadeira. O semblante preocupado de minha geni-tora me deixava sem argumentos para reclamar. Depois de uns dez minutos de caminhada sob o sol recifense, minha moleira latejava de dor. Passamos algu-

mas ruas de barro batido e chegamos ao destino.

Numa casa simples (pequeno terra-ço, sala na penumbra e um quarto que era um breu de tão escuro), entramos e aguardamos. Sentamos no átrio daquele templo, onde seria exorcizado de mim o demônio da espinhela caída. Contem-plamos uma mulher sambuda e cabelos desgrenhados ir avisar a sacerdotisa de nossa presença. Cerca de uns cinco lon-gos minutos depois, a secretária voltou, dizendo com um sorriso: “ela já vem”. Naquele momento, eu e minha mãe so-nhamos em ter olhos biônicos para en-xergar a anfitriã lá dentro daquele túnel escuro.

Andando lentamente, arrastando uma par de sandálias, que pelo barulho eu já tinha identificado a marca Havaia-nas, até os dois pregos da Gerdal, pren-dendo as correias – sou expert nisso -,Dona Irene mostrou sua silhueta. Uma senhora negra de uns sessenta e poucos anos. Seu rosto gordo tinha um ar sério, e o lenço claro amarrado na cabeça não

A ESPINHELA CAÍDA E A MINHA FÉ NA FÉ

DOS OUTROSTEXTO E ILUSTRAÇÕES Bruno Gualberto

“As rezadeiras eram uma tábua de salvação (...).

Aquelas mulheres, além de estarem quase sempre à disposição, não cobravam quase

nada.”

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CRÔNICA

escondia seus poucos cabelos, também brancos. Seus demais trajes eram sim-ples: camisa branca com uma foto sorri-dente, legendada por um número e o slo-gan: “por um Recife melhor!”; e uma saia estampada de flores verdes e cinzentas. Parecia nos ignorar, pois ela não olhava nos olhos de ninguém.

Minha genitora destemidamente foi logo contando do meu caso. Eu encolhi-do na cadeira de tiras flácidas de plásti-co azul, fiquei olhando fixamente para a senhora. Seu aspecto compenetrado me chamava aatenção. Mas de repente, a se-nhora mirou os olhos na minha direção e disse algo que me surpreendeu.

Com um sorriso zombeteiro, a sa-cerdotisa disparou: “esse menino tá doente?! Mas tá gordo que nem filho de ladrão!” Minha mãe entendeu aquelas palavras como um jeito de dizer: “fui com a cara de vocês!”, e logo sorriu para a senhora. Eu, por minha vez, fiquei sem graça. Voltando-se para o interior da casa, a rezadeira acenou para que aden-trássemos.

Aos poucos, descobri um mundo diferente do que eu estava acostumado. Quadros com retratos antigos, um ter-ço pendurado na parede, um pôster de Nossa Senhora e, numa moldura gran-de, Jesus dizia “Cristo reina neste lar”. O catolicismo estava estampado logo na sala, para todo mundo ver, ou então camuflando de visitas desinteressadas e cristãs o conteúdo dos cômodos mais interiores.

Já no quarto, a idosa pegou uma toa-lha branca de cima da cama. Dona Irene levantou meu braço direito e mediu meu antebraço com aquele pedaço de pano e depois o esticou de um de meus ombros ao outro. A diferença entre as medidas dava o diagnóstico preciso e já suspeito

por todos nós. Era mesmo a espinhe-la caída. Minha mãe passou a mão em meus cabelos, e eu passei a vista pelo quarto.

Era um espaço pequeno. Cabiam apenas uma cama de casal, um guar-da-roupa velho, desses de madeira de compensado, um quadro com a imagem de Preto Veio, talhado numa madeira es-cura e, perto da porta, uma mesinha, de um metro de altura aproximadamente. Nesse móvel, um pano bordado o forrava de branco. Em cima, diversas imagens coloriam meus olhos de menino.

Pequenas imagens de gesso. Eram crianças, vestidas com um pano amare-lo. Seus olhos, pintados com uma tinta grossa, pereciam verdadeiros, porém petrificados em algo no invisível. Perto da parede, velas aos montes, empilha-das, algumas com nomes escritos.

Tempos depois, vim saber que pai-xões incontroláveis levavam algumas pessoas a darem os nomes de seus ama-dos a Dona Irene, que os escrevia na cera abaixo do pavio, solicitando a ajuda de algum santo cupido. Além desses, havia um pequeno objeto, não mais que uns dez centímetros. Era um galo, acho que de plástico, curiosamente azulado, que poderia ser cor-de-rosa, se o dia fosse chuvoso. Era uma espécie de camaleão do clima. Mas a imagem que me chamou mais atenção foi a de um índio.

Uma imagem imponente, a maior de todas naquela mesa. Era um guerreiro indígena, pois com um arco teso, apon-tava uma flecha na direção de entrada do vestíbulo. Reparei-lhe nos adornos, tudo pintado. Penas na cor vermelha, verde e branca enfeitavam o cocar com-

prido, os punhos, a cintura e os tornoze-los da estátua. Imaginei então a seguinte cena: um sujeito mal encarado invadin-do o cômodo, o “Peri” de gesso ganhan-do vida e, num movimento ágil, flecha o inimigo no peito. Mas de repente vi mi-nha mãe passando para rezadeira uma sacola.

Eram os galhos de pinhão, que ela havia colhido pela manhã cedo. Dona Irene segurou e, apertando os olhos, exa-minou um por um. A idosa me chamou pra mais perto dela e se colocou diante de mim. Começou então seu ritual.

Enquanto deslizava aquelas folhas por meus braços e pelo meu corpo, co-meçou a murmurar baixinho algumas palavras. Certamente era alguma reza. O toque suave dos galhos e a voz mur-murante da rezadeira me fizeram arre-piar todos os pelos do corpo. Durou uns três minutos. Depois, ela mostrou para nós as folhas do pinhão. Todas murchas.

Minha mãe conversou com ela num canto, acertando algum tipo de retribui-ção. Mexendo nas suas coisas, a idosa parecia querer retornar para sua vida. Olhei pela última vez, aquelas persona-gens de gesso. As meninas douradas, o galo celeste e o índio protetor continu-aram estáticos e encantados naquele quarto.

Saímos agradecidos. Eu, me sentin-do agora melhor, parecia mais relaxado, e minha mãe com o semblante mais leve. Sou grato à rezadeira, mesmo não acre-ditando muito no transcendente, mas tendo muito respeito pela fé com a qual ela me curou.

Com um sorriso zombeteiro,

a sacerdotisa disparou: “esse

menino tá doente?! Mas tá gordo

que nem filho de ladrão!”

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