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Ioannes Paulus PP. II Laborem exercens dirigida aos veneraveis Irmãos no Episcopado aos Sacerdotes às Familías religiosas aos Filhos e Filhas da Igreja e a todos os Homens de Boa Vontade sobre o Trabalho Humano no 90° aniversário da Rerum Novarum 1981.09.14 Benção Veneráveis irmãos e dilectos filhos e filhas: Saúde e bênção Apostólica! É MEDIANTE O TRABALHO que o homem deve procurar-se o pão quotidiano 1 e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. E com a palavra trabalho é indicada toda a actividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a actividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de actividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade. Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus 2no universo visível e nele estabelecido para que dominasse a terra, 3 o homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja actividade, relacionada com a manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a

Encíclica Laborem Exercens - João Paulo II

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Encíclica Laborem Exercens, do papa João Paulo II

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Ioannes Paulus PP

Ioannes Paulus PP. IILaborem exercensdirigida aos veneraveis Irmos no Episcopadoaos Sacerdotess Familas religiosasaos Filhos e Filhas da Igrejae a todos os Homens de Boa Vontadesobre o Trabalho Humano no 90 aniversrio daRerum Novarum

1981.09.14

Beno

Venerveis irmos e dilectos filhos e filhas:Sade e bno Apostlica!

MEDIANTE O TRABALHO que o homem deve procurar-se o po quotidiano 1 e contribuir para o progresso contnuo das cincias e da tcnica, e sobretudo para a incessante elevao cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os prprios irmos. E com a palavra trabalho indicada toda a actividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas caractersticas e das circunstncias, quer dizer toda a actividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de actividades para as quais o homem tem capacidade e est predisposto pela prpria natureza, em virtude da sua humanidade. Feito imagem e semelhana do mesmo Deus 2no universo visvel e nele estabelecido para que dominasse a terra, 3 o homem, por isso mesmo, desde o princpio chamado ao trabalho. O trabalho uma das caractersticas que distinguem o homem do resto das criaturas, cuja actividade, relacionada com a manuteno da prpria vida, no se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existncia sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificao interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua prpria natureza.

I. INTRODUO1. O trabalho humano a noventa anos da Rerum Novarum Dado que a 15 de Maio do corrente ano se completaram noventa anos da data da publicao que se ficou a dever ao grande Sumo Pontfice da questo social , Leo XIII daquela Encclica de importncia decisiva, que comea com as palavras Rerum Novarum, eu desejo dedicar o presente documento exactamente ao trabalho humano; e desejo mais ainda dedic-lo ao homem, visto no amplo contexto dessa realidade que o trabalho. Efectivamente, conforme tive ocasio de dizer na Encclica Redemptor Hominis, publicada nos incios da minha misso de servio na Sede Romana de So Pedro, se o homem a primeira e fundamental via da Igreja , 4 e isso precisamente sobre a base do imperscrutvel mistrio da Redeno de Cristo, ento necessrio retornar incessantemente a esta via e prossegui-la sempre de novo, segundo os diversos aspectos, nos quais ela nos vai desvelando toda a riqueza e, ao mesmo tempo, tudo o que de rduo h na existncia humana sobre a terra.

O trabalho um desses aspectos, perene e fundamental e sempre com actualidade, de tal sorte que exige constantemente renovada ateno e decidido testemunho. Com efeito, surgem sempre novas interrogaes e novos problemas, nascem novas esperanas, como tambm motivos de temor e ameaas, ligados com esta dimenso fundamental da existncia humana, pela qual construda cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a prpria dignidade especfica, mas na qual est contido, ao mesmo tempo, o parmetro constante dos esforos humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustias que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das naes e no plano internacional. Se verdade que o homem se sustenta com o po granjeado pelo trabalho das suas mos 5 e isto equivale a dizer, no apenas com aquele po quotidiano mediante o qual se mantm vivo o seu corpo, mas tambm com o po da cincia e do progresso, da civilizao e da cultura ento igualmente verdade que ele se alimenta deste po com o suor do rosto; 6 isto , no s com os esforos e canseiras pessoais, mas tambm no meio de muitas tenses, conflitos e crises que, em relao com a realidade do trabalho, perturbam a vida de cada uma das sociedades e mesmo da inteira humanidade.

Celebramos o nonagsimo aniversrio da Encclica Rerum Novarum em vsperas de novos adiantamentos nas condies tecnolgicas, econmicas e polticas, o que na opinio de muitos peritos ir influir no mundo do trabalho e da produo, em no menor escala do que o fez a revoluo industrial do sculo passado. So vrios os factores que se revestem de alcance geral, como sejam: a introduo generalizada da automao em muitos campos da produo; o aumento do custo da energia e das matrias de base; a crescente tomada de conscincia de que limitado o patrimnio natural e do seu insuportvel inquinamento; e o virem ribalta, no cenrio poltico, povos que, depois de sculos de sujeio, reclamam o seu legtimo lugar no concerto das naes e nas decises internacionais. Estas novas condies e exigncias iro requerer uma reordenao e um novo ajustamento das estruturas da economia hodierna, bem como da distribuio do trabalho. E tais mudanas podero talvez vir a significar, infelizmente, para milhes de trabalhadores qualificados o desemprego, pelo menos temporrio, ou a necessidade de um novo perodo de adestramento; iro comportar, com muita probabilidade, uma diminuio ou um crescimento menos rpido do bem-estar material para os pases mais desenvolvidos; mas podero tambm vir a proporcionar alvio e esperana para milhes de homens que hoje vivem em condies de vergonhosa e indigna misria.

No compete Igreja analisar cientificamente as possveis consequncias de tais mutaes para a convivncia humana. A Igreja, porm, considera sua tarefa fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situaes em que so violados e contribuir para orientar as aludidas mutaes, para que se torne realidade um progresso autntico do homem e da sociedade.

2. Na linha do desenvolvimento Orgnico da aco e do Ensino Social da Igreja fora de dvida que o trabalho, como problema do homem, se encontra mesmo ao centro naquela questo social , para a qual se tm voltado de modo especial, durante os quase cem anos decorridos desde a publicao da mencionada Encclica, o ensino da Igreja e as mltiplas iniciativas tomadas em continuidade com a sua misso apostlica. Dado que meu desejo concentrar as reflexes que se seguem no trabalho, quero faz-lo no de maneira deforme, mas sim em conexo orgnica com toda a tradio deste ensino e destas iniciativas. Ao mesmo tempo, porm, quero faz-lo segundo a orientao do Evangelho, para extrair do patrimnio do mesmo Evangelho coisas novas e coisas velhas . 7 O trabalho, certamente, uma coisa velha , to antiga quanto o homem e a sua vida sobre a face da terra. A situao geral do homem no mundo contemporneo, diagnosticada e analisada nos vrios aspectos geogrficos, de cultura e de civilizao, exige todavia que se descubram os novos significados do trabalho humano e, alm disso, que se formulem as novas tarefas que neste sector se deparam indeclinavelmente a todos os homens, famlia, a cada uma das naes e a todo o gnero humano e, por fim, prpria Igreja.

Neste espao dos noventa anos que passaram desde a publicao da Encclica Rerum Novarum, a questo social no cessou de ocupar a ateno da Igreja. So testemunho disso os numerosos documentos do Magistrio, emanados quer dos Sumos Pontfices, quer do II Conclio do Vaticano; so testemunho disso, igualmente, as enunciaes dos diversos Episcopados; e testemunho disso, ainda, a actividade dos vrios centros de pensamento e de iniciativas concretas de apostolado, quer a nvel internacional, quer a nvel das Igrejas locais. difcil enumerar aqui, de forma pormenorizada, todas as manifestaes da viva aplicao da Igreja e dos cristos no que se refere questo social, porque elas so muito numerosas. Como resultado do Conclio, tornou-se o principal centro de coordenao neste campo aPontifcia Comisso Justitia et Pax . A mesma Comisso encontra Organismos seus correspondentes no mbito das Conferncias Episcopais singularmente consideradas. O nome desta instituio muito significativo. Ele indica que a questo social dever ser tratada no seu aspecto integral e complexo. O empenhamento em favor da justia deve andar intimamente unido aplicao em prol da paz no mundo contemporneo. Constitui, certamente, um pronunciamento a favor deste dplice empenhamento a dolorosa experincia das duas grandes guerras mundiais que, ao longo dos ltimos noventa anos, abalaram muitos pases, tanto do continente europeu, quanto, ao menos parcialmente, dos outros continentes. E pronuncia-se a seu favor, especialmente desde o fim da segunda guerra mundial para c, a ameaa permanente de uma guerra nuclear e, a emergir por detrs dela, a perspectiva de uma terrvel autodestruio.

Se seguirmos a linha principal de desenvolvimnto dos documentos do supremo Magistrio da Igreja, encontramos neles a confirmao explcita precisamente de um tal modo de enquadrar o problema. Pelo que diz respeito questo da paz no mundo, a posio-chave a da Encclica Pacem in Terris do Papa Joo XXIII. Por outro lado, se se considera o evoluir da questo da justia social, deve notar-se o seguinte: enquanto no perodo que vai desde a Rerum Novarum at Quadragesimo Anno de Pio XI, o ensino da Igreja se concentra sobretudo em torno da justa soluo da chamada questo operria no mbito de cada uma das naes, na fase sucessiva o mesmo ensino alarga o horizonte s dimenses do mundo inteiro. A distribuio desproporcionada de riqueza e de misria e a existncia de pases e continentes desenvolvidos e de outros no-desenvolvidos exigem uma perequao e que se procurem as vias para um justo desenvolvimento de todos. Nesta direco procede o ensino contido na Encclica Mater et Magistra do Papa Joo XXIII, bem como na Constituio pastoral Gaudium et Spes do II Conclio do Vaticano e na EncclicaPopulorum Progressio do Papa Paulo VI.

Esta direco seguida no desenvolvimento do ensino e tambm da aplicao da Igreja, quanto questo social, corresponde exactamente ao reconhecimento objectivo do estado das coisas. Com efeito, se em tempos passados se punha em relevo no centro de tal questo sobretudo o problema da classe , em poca mais recente posto em primeiro plano o problema do mundo . Por isso, deve ser tomado em considerao no apenas o mbito da classe, mas o mbito mundial das desigualdades e das injustias; e, como consequncia, no apenas a dimenso da classe, mas sim a dimenso mundial das tarefas a assumir na caminhada que h-de levar realizao da justia no mundo contemporneo. A anlise completa da situao do mesmo mundo dos dias de hoje manifestou de maneira ainda mais profunda e mais cabal o significado da anterior anlise das injustias sociais; e o significado que hoje em dia se deve atribuir aos esforos que tendem a construir a justia na terra, no encobrindo com isso as estruturas injustas, mas demandando a reviso e a transformao das mesmas numa dimenso mais universal.

3. O problema do trabalho, chave da questo socialNo meio de todos estes processos quer da diagnose da realidade social objectiva, quer paralelamente do ensino da Igreja no mbito da complexa e multplice questo social o problema do trabalho humano, como natural, aparece muitas vezes. Ele , de certo modo, uma componente fixa, tanto da vida: social como do ensino da Igreja. Neste ensino da Igreja, alis, o dedicar ateno ao problema remonta a tempos muito para alm dos ltimos noventa anos. A doutrina social da Igreja, efectivamente, tem a sua fonte na Sagrada Escritura, a comear do Livro do Gnesis e, em particular no Evangelho e nos escritos dos tempos apostlicos. Dedicar ateno aos problemas sociais faz parte desde os incios do ensino da Igreja e da sua concepo do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas pocas. Um tal patrimnio tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontfices sobre a moderna questo social , a partir da Encclica Rerum Novarum. E no contexto de tal questo , o problema do trabalho foi objecto de uma continua actualizao, mantendo sempre a base crist daquela verdade que podemos chamar perene.

Ao voltarmos no presente documento uma vez mais a este problema sem ter a inteno, alis, de tocar todos os temas que lhe dizem respeito no tanto para coligir e repetir o que j se encontra contido nos ensinamentos da Igreja, mas sobretudo para pr em relevo possivelmente mais do que foi feito at agora o facto de que o trabalho humano uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questo social, se ns procurarmos v-la verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do homem. E se a soluo ou melhor, a gradual soluo da questo social, que continuamente se reapresenta e se vai tornando cada vez mais complexa, deve ser buscada no sentido de tornar a vida humana mais humana , 8 ento por isso mesmo a chave, que o trabalho humano, assume una importncia fundamental e decisiva.

II. O TRABALHO E O HOMEM4. No Livro do Gnesis A Igreja est convencida de que o trabalho constitui uma dimenso fundamental da existncia do homem sobre a terra. E ela radica-se nesta convico tambm ao considerar todo o patrimnio das mltiplas cincias centralizadas no homem: a antropologia, a paleontologia, a histria, a sociologia, a psicologia, etc.: todas elas parecem testemunhar de modo irrefutvel essa realidade. A Igreja, porm, vai haurir esta sua convico sobretudo na fonte da Palavra de Deus revelada e, por conseguinte, aquilo que para ela uma convico da inteligncia adquire ao mesmo tempo o carcter de uma convico de f. A razo est em que a Igreja vale a pena acentu-lo desde j acredita no homem. Ela pensa no homem e encara-o no apenas luz da experincia histrica, no apenas com os subsdios dos multplices mtodos do conhecimento cientfico, mas sim e em primeiro lugar luz da Palavra revelada de Deus vivo. Ao referir-se ao homem ela procura exprimir aqueles desgnios eternos e aqueles destinos transcendentes que Deus vivo, Criador e Redentor, ligou ao homem.

A Igreja vai encontrar logo nas primeiras pginas do Livro do Gnesis a fonte dessa sua convico, de que o trabalho constitui uma dimenso fundamental da existncia humana sobre a terra. A anlise desses textos torna-nos cnscios deste facto: de neles por vezes mediante um modo arcaico de manifestar o pensamento terem sido expressas as verdades fundamentais pelo que diz respeito ao homem, j no contexto do mistrio da Criao. Estas verdades so as que decidem do homem, desde o princpio, e que, ao mesmo tempo, traam as grandes linhas da sua existncia sobre a terra, quer no estado de justia original, quer mesmo depois da ruptura, determinada pelo pecado, da aliana original do Criador com a criao no homem. Ouando este, criado imagem de Deus... varo e mulher , 9 ouve as palavras Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a , 10 mesmo que estas palavras no se refiram directa e explicitamente ao trabalho, indirectamente j lho indicam, e isso fora de quaisquer dvidas, como uma actividade a desempenhar no mundo. Mais ainda, elas patenteiam a mesma essncia mais profunda do trabalho. O homem imagem de Deus, alm do mais, pelo mandato recebido do seu Criador de submeter, de dominar a terra. No desempenho de tal mandato, o homem, todo e qualquer ser humano, reflecte a prpria aco do Criador do universo.

O trabalho entendido como uma actividade transitiva , quer dizer, uma actividade de modo tal que, iniciando-se no sujeito humano, se enderea para um objecto exterior, pressupe um especfico domnio do homem sobre a terra ; e, por sua vez, confirma e desenvolve um tal domnio. claro que sob a designao terra , de que fala o texto bblico, deve entender-se primeiro que tudo aquela parcela do universo visvel em que o homem habita; por extenso, porm, pode entender-se todo o mundo visvel, na medida em que este se encontra dentro do raio de influncia do homem e da sua procura de prover s prprias necessidades. A expresso submeter a terra tem um alcance imenso. Ela indica todos os recursos que a mesma terra (e indirectamente o mundo visvel) tem escondidos em si e que, mediante a actividade consciente do homem, podem ser descobertas e oportunamente utilizadas por ele. Assim, tais palavras, postas logo ao princpio da Bblia, jamais cessam de ter actualidade. Elas abarcam igualmente todas as pocas passadas da civilizao e da economia, bem como toda a realidade contempornea, e mesmo as futuras fases do progresso, as quais, em certa medida, talvez se estejam j a delinear, mas em grande parte permanecem ainda para o homem algo quase desconhecido e recndito.

Se por vezes se fala de perodos de acelerao na vida econmica e na civilizao da humanidade ou de alguma nao em particular, coligando tais aceleraes ao progresso da cincia e da tcnica e, especialmente, s descobertas decisivas para a vida scio-econmica, pode ao mesmo tempo dizer-se que nenhuma dessas aceleraes faz com que fique superado o contedo essencial daquilo que foi dito naquele antiqussimo texto bblico. O homem, ao tornar-se mediante o seu trabalho cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar ainda mediante o trabalho o seu domnio sobre o mundo visvel, em qualquer hiptese e em todas as fases deste processo, permanece na linha daquela disposio original do Criador, a qual se mantm necessria e indissoluvelmente ligada ao facto de o homem ter sido criado, como varo e mulher, imagem de Deus . E, ao mesmo tempo, tal processo universal: abrange todos os homens, todas as geraes, todas as fases do progresso econmico e cultural e, simultneamente, um processo que se actua em todos e cada um dos homens, em todos os sujeitos humanos conscientes. Todos e cada um so contemporneamente por ele abarcados. Todos e cada um, em medida adequada e num nmero incalculvel de modos, tomam parte em tal processo gigantesco, mediante o qual o homem submete a terra com o seu trabalho.

5. O trabalho em sentido objectivo: a tcnicaEsta universalidade e, ao mesmo tempo, esta multiplicidade de tal processo de submeter a terra , projectam luz sobre o trabalho humano, uma vez que o domnio do homem sobre a terra se realiza no trabalho e mediante o trabalho. Assim, vem ao de cima o significado do mesmo trabalho em sentido objectivo, o qual tem depois a sua expresso nas vrias pocas da cultura e da civilizao. O homem domina a terra quer pelo facto de domesticar os animais e tratar deles, granjeando assim o alimento e o vesturio de que precisa, quer pelo facto de poder extrair da terra e dos mares diversos recursos naturais. Mas o homem, alm disso, submete a terra muito mais quando comea por cultiv-la e, sucessivamente, reelabora os produtos da mesma, adaptando-os s suas prprias necessidades. A agricultura constitui assim um campo primrio da actividade econmica e, mediante o trabalho humano, um factor indispensvel da produo. A indstria, por sua vez, consistir sempre no conjugar as riquezas da terra quer se trate dos recursos vivos da natureza, quer dos produtos da agricultura, quer, ainda, dos recursos minerais ou qumicos com o trabalho do homem, tanto o trabalho fsico como o intelectual. Isto vlido, num certo sentido, tambm no campo da chamada indstria dos servios e no campo da investigao pura ou aplicada.

Hoje em dia na indstria e na agricultura a actividade do homem, em muitos casos, deixou de ser um trabalho prevalentemente manual, uma vez que os esforos das mos e dos msculos passaram a ser ajudados pela aco de mquinas e de mecanismos cada vez mais aperfeioados. No somente na indstria, mas tambm na agricultura, ns somos testemunhas das transformaes que foram possibilitadas pelo gradual e contnuo progresso da cincia e da tcnica. E isto, no seu conjunto, tornou-se historicamente causa tambm de grandes viragens da civilizao, a partir das origens da era industrial , passando pelas sucessivas fases de desenvolvimento graas s novas tcnicas, at se chegar s da electrnica ou dos microprocessores nos ltimos anos.

Se pode parecer que no processo industrial a mquina que trabalha , enquanto o homem s cuida nela, tornando possvel e mantendo de diversas maneiras o seu funcionamento, tambm verdade que, precisamente por isso, o desenvolvimento industrial serve de base para se repropor de um modo novo o problema do trabalho humano. Tanto a primeira industrializao, que fez com que surgisse a chamada questo operria, como as sucessivas mudanas industriais e ps-industriais demonstram claramente que, mesmo na poca do trabalho cada dia mais mecanizado, o sujeito prprio do trabalho continua a ser o homem. O desenvolvimento da indstria e dos diversos sectores com ela ligados, at se chegar s mais modernas tecnologias da electrnica, especialmente no campo da miniaturizao, da informtica, da telemtica e outros, indica o papel imenso que, na interaco do sujeito e do objecto do trabalho (no sentido mais amplo desta palavra), assume precisamente aquela aliada do mesmo trabalho gerada pelo pensamento humano, que a tcnica. Neste caso, entendida no como uma capacidade ou aptido para o trabalho, mas sim como um conjunto de meios de que o homem se serve no prprio trabalho, a tcnica indubitavelmente uma aliada do homem. Ela facilita-lhe o trabalho, aperfeioa-o, acelera-o e multiplica-o; favorece o progresso em funo de um aumento da quantidade dos produtos do trabalho e aperfeioa mesmo a qualidade de muitos deles. Mas um facto, por outro lado, que nalguns casos a tcnica de aliada pode tambm transformar-se quase em adversria do homem, como sucede: quando a mecanizao do trabalho suplanta o mesmo homem, tirando-lhe todo o gosto pessoal e o estmulo para a criatividade e para a responsabilidade; igualmente, quando tira o emprego a muitos trabalhadores que antes estavam empregados; ou ainda quando, mediante a exaltao da mquina, reduz o homem a ser escravo da mesma.

Assim, se as palavras bblicas submetei a terra , dirigidas ao homem desde o princpio, forem entendidas no contexto de toda a poca moderna, industrial e ps-industrial, elas encerram em si indubitavelmente tambm uma relao com a tcnica, com aquele mundo de mecanismos e de mquinas, que fruto de um trabalho da inteligncia humana e a confirmao histrica do domnio do homem sobre a natureza.

A poca recente da histria da humanidade, e especialmente a de algumas sociedades, trouxe consigo uma justa afirmao da tcnica como um coeficiente fundamental de progresso econmico; ao mesmo tempo, porm, juntamente com tal afirmao surgiram e continuamente esto a surgir as interrogaes essenciais respeitantes ao trabalho humano em relao com o seu sujeito, que precisamente o homem. Tais interrogaes contm em si uma carga particular de contedos e de tenses de carcter tico e tico-social. E por isso elas constituem um desafio contnuo para muitas e diversas instituies, para os Estados e os Governos, bem como para os sistemas e as organizaes internacionais; e constituem um desafio tambm para a Igreja.

6. O trabalho no sentido subjectivo: o homem-sujeito do trabalhoPara continuar a nossa anlise do trabalho em aderncia s palavras da Bblia, em virtude das quais o homem tem o dever de submeter a terra, preciso concentrarmos agora a nossa ateno no trabalho no sentido subjectivo; e isto muito mais do que fizemos pelo que se refere ao significado objectivo do trabalho, porquanto tocmos s com brevidade aquela vasta problemtica, que perfeita e pormenorizadamente conhecida dos estudiosos nos vrios campos e tambm dos mesmos homens do trabalho, segundo as suas especializaes. As palavras do Livro do Gnesis, a que nos referimos nesta nossa anlise, falam de maneira indirecta do trabalho no sentido objectivo; e de modo anlogo falam tambm do sujeito do trabalho; no entanto, aquilo que elas dizem assaz eloquente e carregado de um grande significado.

O homem deve submeter a terra, deve domin-la, porque, como imagem de Deus , uma pessoa; isto , um ser dotado de subjectividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. como pessoa, pois, que o homem sujeito do trabalho. como pessoa que ele trabalha e realiza diversas aces que fazem parte do processo do trabalho; estas, independentemente do seu contedo objectivo, devem servir todas para a realizao da sua humanidade e para o cumprimento da vocao a ser pessoa, que lhe prpria em razo da sua mesma humanidade. As principais verdades sobre este tema foram recordadas ultimamente pelo II Conclio do Vaticano, na Constituio Gaudium et Spes, especialmente no captulo primeiro dedicado vocao do homem.

E assim aquele domnio de que fala o texto bblico, sobre o qual estamos a meditar agora, no se refere s dimenso objectiva do trabalho, mas introduz-nos ao mesmo tempo na compreenso da sua dimenso subjectiva. O trabalho, entendido como processo, mediante o qual o homem e o gnero humano submetem a terra, no corresponder a este conceito fundamental da Bblia seno enquanto, em todo esse processo, o homem ao mesmo tempo se manifestar e se confirmar como aquele que domina . Este domnio, num certo sentido, refere-se dimenso subjectiva ainda mais do que objectiva: esta dimenso condiciona a mesma natureza tica do trabalho. No h dvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor tico, o qual, sem meios termos, permanece directamente ligado ao facto de aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre, isto , um sujeito que decide de si mesmo.

Esta verdade, que constitui num certo sentido a medula fundamental e perene da doutrina crist sobre o trabalho humano, teve e continua a ter um significado primordial para a formulao dos importantes problemas sociais ao longo de pocas inteiras.

A Idade Antiga introduziu entre os homens uma prpria diferenciao tpica em categorias, segundo o tipo de trabalho que realizavam. O trabalho que requeria do trabalhador o emprego das foras fsicas, o trabalho dos msculos e das mos, era considerado indigno dos homens livres, e por isso eram destinados sua execuo os escravos. O Cristianismo, ampliando alguns aspectos j prprios do Antigo Testamento, neste ponto operou uma transformao fundamental de conceitos, partindo do contedo global da mensagem evanglica, e sobretudo do facto de Aquele que, sendo Deus, se tornou semelhante a ns em tudo, 11 ter passado a maior parte dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual. Esta circunstncia constitui por si mesma o mais eloquente evangelho do trabalho ; a se torna patente que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano no em primeiro lugar o gnero de trabalho que se realiza, mas o facto de aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da dignidade do trabalho devem ser procuradas sobretudo no na sua dimenso objectiva, mas sim na sua dimenso subjectiva.

Em tal concepo quase desaparece o prprio fundamento da antiga diferenciao dos homens em grupos, segundo o gnero de trabalho que eles faziam. Isto no quer dizer que o trabalho humano no possa e no deva ser de algum modo valorizado e qualificado de um ponto de vista objectivo. Isto quer dizer somente que o primeiro fundamento do valor do trabalho o mesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se com isto imediatamente uma concluso muito importante de natureza tica: embora seja verdade que o homem est destinado e chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada o trabalho para o homem e no o homem para o trabalho. E por esta concluso se chega a reconhecer justamente a preeminncia do significado subjectivo do trabalho sobre o seu significado objectivo. Partindo deste modo de entender as coisas e supondo que diversos trabalhos realizados pelos homens podem ter um maior ou menor valor objectivo, procuramos todavia pr em evidncia que cada um deles se mede sobretudo pelo padro da dignidade do mesmo sujeito do trabalho, isto , da pessoa, do homem que o executa. Por outro lado, independentemente do trabalho que faz cada um dos homens e supondo que ele constitui uma finalidade por vezes muito absorvente do seu agir, tal finalidade no possui por si mesma um significado definitivo. De facto, em ltima anlise, a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem ainda que seja o trabalho mais humilde de um servio e o mais montono na escala do modo comum de apreciao e at o mais marginalizador permanece sempre o mesmo homem.

7. Uma ameaa hierarquia dos valoresEstas afirmaes basilares sobre o trabalho, precisamente, resultaram sempre das riquezas da verdade crist, em particular da mesma mensagem do evangelho do trabalho , criando o fundamento do novo modo de pensar, de julgar e de agir dos homens. Na poca moderna, desde os incios da era industrial, a verdade crist sobre o trabalho teve de se contrapor s vrias correntes do pensamentomaterialista e economicista. Para alguns fautores de tais ideias, o trabalho era entendido e tratado como uma espcie de mercadoria , que o trabalhador especialmente o operrio da indstria vendia ao dador de trabalho, que era ao mesmo tempo possessor do capital, isto , do conjunto dos instrumentos de trabalho e dos meios que tornam possvel a produo. Este modo de conceber o trabalho encontrava-se especialmente difundido na primeira metade do sculo XIX. Em seguida, as formulaes explcitas deste gnero quase desapareceram, cedendo o lugar a um modo mais humano de pensar e de avaliar o trabalho. A interaco do homem do trabalho e do conjunto dos instrumentos e dos meios de produo deu azo a desenvolverem-se diversas formas de capitalismo paralelamente a diversas formas de colectivismo nas quais se inseriram outros elementos, na sequncia de novas circunstncias concretas, da aco das associaes de trabalhadores e dos poderes pblicos, e da apario de grandes empresas transnacionais. Apesar disso, o perigo de tratar o trabalho como uma mercadoria sui generis ou como uma fora annima necessria para a produo (fala-se mesmo de fora-trabalho ) continua a existir ainda nos dias de hoje, especialmente quando a maneira de encarar a problemtica econmica caracterizada pela adeso s premissas do economismo materialista.

Para este modo de pensar e de julgar h uma ocasio sistemtica e, num certo sentido, at mesmo um estmulo, que so constitudos pelo acelerado processo de desenvolvimento da civilizao unilateralmente materialista, na qual se d importncia primeiro que tudo dimenso objectiva do trabalho, enquanto a dimenso subjectiva tudo aquilo que est em relao indirecta ou directa com o prprio sujeito do trabalho fica num plano secundrio. Em todos os casos deste gnero, em todas as situaes sociais deste tipo, gera-se uma confuso, ou at mesmo uma inverso, daquela ordem estabelecida desde o princpio pelas palavras do Livro do Gnesis: o homem passa ento a ser tratado como instrumento de produo; 12 enquanto que ele ele s por si, independentemente do trabalho que realiza deveria ser tratado como seu sujeito eficiente, como seu verdadeiro artfice e criador. precisamente esta inverso da ordem, prescindindo do programa ou da denominao sob cujos auspcios ela se gera, que mereceria no sentido indicado mais amplamente em seguida o nome de capitalismo . Como sabido, o capitalismo tem o seu significado histrico bem definido, enquanto sistema, e sistema econmico-social, em contraposio ao socialismo ou comunismo . No entento, luz da anlise da realidade fundamental de todo o processo econmico e, primeiro que tudo, das estruturas de produo qual , justamente, o trabalho importa reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produo, como um instrumento e no segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produo.

Sendo assim, compreende-se que a anlise do trabalho humano feita luz daquelas palavras que dizem respeito ao domnio do homem sobre a terra, se insira mesmo ao centro da problemtica tico-social. Uma tal concepo deveria tambm ter um lugar central em toda a esfera da poltica social e econmica, quer escala dos diversos pases, quer a uma escala mais ampla, das relaes internacionais e intercontinentais, com referncia em particular s tenses que se esboam no mundo, no s centradas no eixo Oriente-Ocidente, mas tambm no outro eixo Norte-Sul. O Papa Joo XXIII, num primeiro momento, com a sua Encclica Mater et Magistra, e o Papa Paulo VI, depois, com a Encclica Populorum Progressio, dedicaram uma decidida ateno a tais dimenses dos problemas ticos e sociais contemporneos.

8. Solidariedade dos homens do trabalhoAo tratar-se do trabalho humano, encarado pela dimenso fundamental do seu sujeito, isto , do homem-pessoa que executa esse trabalho, partindo deste ponto de vista deve fazer-se uma apreciao pelo menos sumria dos processos que se verificaram, ao longo dos noventa anos transcorridos aps a Encclica Rerum Novarum, em relao com a dimenso subjectiva do trabalho. Com efeito, embora o sujeito do trabalho seja sempre o mesmo, isto , o homem, deram-se todavia notveis modificaes quanto ao aspecto objectivo do mesmo trabalho. E embora se possa dizer que o trabalho, em razo do seu sujeito, um (um e, de cada vez que feito, irrepetvel) todavia, considerando os seus sentidos objectivos, tem de se reconhecer que existem muitos trabalhos: um grande nmero de trabalhos diversos. O desenvolvimento da civilizao humana proporciona neste campo um enriquecimento contnuo. Ao mesmo tempo, porm, no se pode deixar de notar que, no processar-se de um tal desenvolvimento, no somente aparecem novas formas de trabalho humano, mas h tambm outras que desaparecem. Admitindo muito embora, em princpio, que isto um fenmeno normal, importa, no entanto, ver bem se nele se no intrometem, e em que medida, certas irregularidades que podem ser perigosas, por motivos tico-sociais.

Foi precisamente por causa de uma dessas anomalias com grande alcance que nasceu, no sculo passado, a chamada questo operria, definida por vezes como questo proletria . Tal questo bem como os problemas com ela ligados deram origem a uma justa reaco social e fizeram com que surgisse e, poder-se-ia mesmo dizer, com que irrompesse um grande movimento de solidariedade entre os homens do trabalho e, em primeiro lugar, entre os trabalhadores da indstria. O apelo solidariedade e aco comum lanado aos homens do trabalho sobretudo aos do trabalho sectorial, montono e despersonalizante nas grandes instalaes industriais, quando a mquina tende a dominar sobre o homem tinha um seu valor importante e uma eloquncia prpria, sob o ponto de vista da tica social. Era a reaco contra a degradao do homem como sujeito do trabalho e contra a explorao inaudita que a acompanhava, no campo dos lucros, das condies de trabalho e de previdncia para a pessoa do trabalhador. Uma tal reaco uniu o mundo operrio numa convergncia comunitria, caracterizada por uma grande solidariedade.

Na esteira da Encclica Rerum Novarum e dos numerosos documentos do Magistrio da Igreja que se lhe seguiram, francamente tem de se reconhecer que se justificava, sob o ponto de vista da moral social, a reaco contra o sistema de injustia e de danos que bradava ao Cu vingana 13 e que pesava sobre o homem do trabalho nesse perodo de rpida industrializao. Este estado de coisas era favorecido pelo sistema scio-poltico liberal que, segundo as suas premissas de economismo , reforava e assegurava a iniciativa econmica somente dos possuidores do capital, mas no se preocupava suficientemente com os direitos do homem do trabalho, afirmando que o trabalho humano apenas um instrumento de produo, e que o capital o fundamento, coeficiente e a finalidade da produo.

Desde ento, a solidariedade dos homens do trabalho e, simultaneamente, uma tomada de conscincia mais clara e mais compromissria pelo que respeita aos direitos dos trabalhadores da parte dos outros, produziu em muitos casos mundanas profundas. Foram excogitados diversos sistemas novos. Desenvolveram-se diversas formas de neo-capitalismo ou de colectivismo. E, no raro, os homens do trabalho passam a ter a possibilidade de participar e participam efectivamente na gesto e no controlo da produtividade das empresas. Por meio de associaes apropriadas, eles passam a ter influncia no que respeita s condies de trabalho e de remunerao, bem como quanto legislao social. Mas, ao mesmo tempo, diversos sistemas fundados em ideologias ou no poder, como tambm novas relaes que foram surgindo nos vrios nveis da convivncia humana, deixaram persistir injustias flagrantes ou criaram outras novas. A nvel mundial, o desenvolvimento da civilizao e das comunicaes tornou possvel uma diagnose mais completa das condies de vida e de trabalho do homem no mundo inteiro, mas tornou tambm patentes outras formas de injustia, bem mais amplas ainda do que aquelas que no sculo passado haviam estimulado a unio dos homens do trabalho para uma particular solidariedade no mundo operrio. E isto assim, nos pases em que j se realizou um certo processo de revoluo industrial; e assim igualmente nos pases onde o local de trabalho a predominar continua a ser o da cultura da terra ou doutras ocupaes congneres.

Movimentos de solidariedade no campo do trabalho de uma solidariedade que no h-de nunca ser fechamento para o dilogo e para a colaborao com os demais podem ser necessrios, mesmo pelo que se refere s condies de grupos sociais que anteriormente no se achavam compreendidos entre estes movimentos, mas que vo sofrendo no meio dos sistemas sociais e das condies de vida que mudam uma efectiva proletarizao , ou mesmo que se encontram realmente j numa condio de proletariado que, embora no seja chamada ainda com este nome, de facto tal que o merece. Podem encontrar-se nesta situao algumas categorias ou grupos da intelligentzia do trabalho, sobretudo quando, simultaneamente com um acesso cada vez mais ampliado instruo e com o nmero sempre crescente das pessoas que alcanaram diplomas pela sua preparao cultural, se verifica uma diminuio de procura do trabalho destas pessoas. Um tal desemprego dos intelectuais sucede ou aumenta: quando a instruo acessvel no est orientada para os tipos de emprego ou de servios que so requeridos pelas verdadeiras necessidades da sociedade; ou quando o trabalho para o qual se exige a instruo, pelo menos profissional, menos procurado e menos bem pago do que um trabalho braal. evidente que a instruo, em si mesma, constitui sempre um valor e um enriquecimento importante da pessoa humana; contudo, independentemente deste facto, continuam a ser possveis certos processos de proletarizao .

Assim, necessrio prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condies da sua existncia. Para se realizar a justia social nas diversas partes do mundo, nos vrios pases e nas relaes entre eles, preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho. Uma tal solidariedade dever fazer sentir a sua presena onde a exijam a degradao social do homem-sujeito do trabalho, a explorao dos trabalhadores e as zonas crescentes de misria e mesmo de fome. A Igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a considera como sua misso, seu servio e como uma comprovao da sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a Igreja dos pobres . E os pobres aparecem sob variados aspectos; aparecem em diversos lugares e em diferentes momentos; aparecem, em muitos casos, como um resultado da violao da dignidade do trabalho humano: e isso, quer porque as possibilidades do trabalho humano so limitadas e h a chaga do desemprego quer porque so depreciados o valor do mesmo trabalho e os direitos que dele derivam, especialmente o direito ao justo salrio e segurana da pessoa do trabalhador e da sua famlia.

9. Trabalho e dignidade da pessoaPermanecendo ainda na perspectiva do homem como sujeito do trabalho, conveniente tocar, ao menos de maneira sinttica, alguns problemas quedefinem mais de perto a dignidade do trabalho humano, porque isso ir permitir caracterizar mais plenamente o seu valor moral especfico. E importa faz-lo tendo sempre diante dos olhos a sobredita vocao bblica para submeter a terra , 14 na qual se expressou a vontade do Criador, querendo que o trabalho tornasse possvel ao homem alcanar um tal domnio que lhe prprio no mundo visvel.

A inteno fundamental e primordial de Deus quanto ao homem, que Ele criou ... Sua semelhana, Sua imagem , 15 no foi retratada nem cancelada, mesmo quando o homem, depois de ter infringido a aliana original com Deus, ouviu estas palavras: Comers o po com o suor da tua fronte . 16 Tais palavras referem-se quela fadiga, por vezes pesada, que a partir de ento passou a acompanhar o trabalho humano; no entanto, elas no mudam o facto de o mesmo trabalho ser a via pela qual o homem chegar a realizar o domnio que lhe prprio no mundo visvel, submetendo a terra. Esta fadiga um facto universalmente conhecido, porque universalmente experimentado. Sabem-no os homens que fazem um trabalho braal, executado por vezes em condies excepcionalmente difceis; sabem-no os que labutam na agricultura, os quais empregam longas jornadas no cultivar a terra, que por vezes apenas produz espinhos e abrolhos ; 17 como o sabem tambm aqueles que trabalham nas minas e nas pedreiras, e igualmente os operrios siderrgicos junto dos seus altos-fornos, e os homens que exercem a actividade no sector da construo civil e em obras de construo em geral, frequentemente em perigo de vida ou de invalidez. Sabem-no bem, ainda, os homens que trabalham agarrados ao banco do trabalho intelectual, sabem-no os cientistas, sabem-no os homens sobre cujos ombros pesa a grave responsabilidade de decises destinadas a ter vasta ressonncia no plano social. Sabem-no os mdicos e os enfermeiros que velam de dia e de noite junto dos doentes. Sabem-no as mulheres que, por vezes sem um devido reconhecimento por parte da sociedade e at mesmo nalguns casos dos prprios familiares, suportam dia-a-dia as canseiras e a responsabilidade do arranjo da casa e da educao dos filhos. Sim, sabem-no bem todos os homens do trabalho e, uma vez que o trabalho verdadeiramente uma vocao universal, sabem-no todos os homens sem excepo.

E no entanto, com toda esta fadiga e talvez, num certo sentido, por causa dela o trabalho um bem do homem. E se este bem traz em si a marca de um bonum arduum bem rduo para usar a terminologia de Santo Toms de Aquino, 18 isso no impede que, como tal ele seja um bem do homem. E mais, no s um bem til ou de que se pode usufruir, mas um bem digno , ou seja, que corresponde dignidade do homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta. Querendo determinar melhor o sentido tico do trabalho, indispensvel ter diante dos olhos antes de mais nada esta verdade. O trabalho um bem do homem um bem da sua humanidade porque, mediante o trabalho, o homem no somente transforma a natureza, adaptando-a s suas prprias necessidades, mas tambm se realiza a si mesmo como homem e at, num certo sentido, se torna mais homem .

Sem esta considerao, no se pode compreender o significado da virtude da laboriosidade, mais exactamente no se pode compreender por que que a laboriosidade haveria de ser uma virtude; efectivamente, a virtude, como aptido moral, algo que faculta ao homem tornar-se bom como homem. 19 Este facto no muda em nada a nossa justa preocupao por evitar que no trabalho, mediante o qual a matria nobilitada, o prprio homem no venha a sofrer uma diminuio da sua dignidade. 20 sabido, ainda, que possvel usar de muitas maneiras do trabalho contra o homem, que se pode mesmo punir o homem com o recurso ao sistema dos trabalhos forados nos lager (campos de concentrao), que se pode fazer do trabalho um meio para a opresso do homem e que, enfim, se pode explorar, de diferentes maneiras, o trabalho humano, ou seja o homem do trabalho. Tudo isto depe a favor da obrigao moral de unir a laboriosidade como virtude com a ordem social do trabalho, o que h-de permitir ao homem tornar-se mais homem no trabalho, e no j degradar-se por causa do trabalho, desgastando no apenas as foras fsicas (o que, pelo menos at certo ponto, inevitvel), mas sobretudo menoscabando a dignidade e subjectividade que lhe so prprias.

10. Trabalho e sociedade: familia, naoConfirmada deste modo a dimenso pessoal do trabalho humano, deve-se passar depois para a segunda esfera de valores, que com ele anda necessariamente unida. O trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que um direito fundamental e uma vocao do homem. Estas duas esferas de valores uma conjunta ao trabalho e a outra derivante do carcter familiar da vida humana devem unir-se entre si e compenetrar-se de um modo correcto. O trabalho, de alguma maneira, a condio que torna possvel a fundao de uma famlia, uma vez que a famlia exige os meios de subsistncia que o homem obtm normalmente mediante o trabalho. Assim, trabalho e laboriosidade condicionam tambm o processar-se da educao na famlia, precisamente pela razo de que cada um se torna homem mediante o trabalho, entre outras coisas, e que o facto de se tornar homem exprime exactamente a finalidade principal de todo o processo educativo. Como evidente, entram aqui em jogo, num certo sentido, dois aspectos do trabalho: o que faz dele algo que permite a vida e a manuteno da famlia, e aquele outro mediante o qual se realizam as finalidades da mesma famlia, especialmente a educao. No obstante a distino, estes dois aspectos do trabalho esto ligados entre si e completam-se em vrios pontos.

Deve-se recordar e afirmar que, numa viso global, a famlia constitui um dos mais importantes termos de referncia, segundo os quais tem de ser formada a ordem scio-tica do trabalho humano. A doutrina da Igreja dedicou sempre especial ateno a este problema e ser necessrio voltar ainda a ele no presente documento. Com efeito, a famlia , ao mesmo tempo, uma comunidade tornada possvel pelo trabalho e a primeira escola interna de trabalho para todos e cada um dos homens.

A terceira esfera de valores que se apresenta, na perspectiva aqui mantida a perspectiva do sujeito do trabalho abarca aquela grande sociedade de que o homem faz parte, em virtude de laos culturais e histricos particulares. Tal sociedade mesmo quando no tenha ainda assumido a forma completa de uma nao no s a grande educadora de cada um dos homens, se bem que indirectamente (pois cada pessoa recebe na famlia os contedos e os valores que constituem, no seu conjunto, a cultura de uma determinada nao), mas tambm uma grande encarnao histrica e social do trabalho de todas as geraes. Tudo isto faz com que o homem ligue a sua identidade humana mais profunda ao facto de pertencer a uma nao, e encare o seu trabalho tambm como algo que ir aumentar o bem comum procurado juntamente com os seus compatriotas, dando-se conta assim de que, por este meio, o trabalho serve para multiplicar o patrimnio da inteira famlia humana, de todos os homens que vivem no mundo.

Estas trs esferas conservam de modo permanente a sua importncia para o trabalho humano visto na sua dimenso subjectiva. E esta dimenso, ou seja, a concreta realidade do homem do trabalho, tem precedncia sobre a dimenso objectiva. Na dimenso subjectiva que se realiza, antes de mais nada, aquele domnio sobre o mundo da natureza, que o homem sempre chamado a exercer, desde o princpio, segundo as palavras do Livro do Gnesis. O prprio processo de submeter a terra , quer dizer, o trabalho sob o aspecto da tcnica, caracterizado no decorrer da histria, e especialmente nestes ltimos sculos, por um imenso desenvolvimento dos meios produtivos disposio; e isso um fenmeno vantajoso e positivo, contanto que a dimenso objectiva do trabalho no tome o predomnio sobre a dimenso subjectiva, tirando ao homem ou diminuindo a sua dignidade e os seus direitos inalienveis.

III. O CONFLITO ENTRE TRABALHO E CAPITAL NA FASE ACTUAL DA HISTRIA11. Dimenses de tal conflitoO esboo da problemtica fundamental do trabalho, conforme foi delineado acima, do modo que se refere aos primeiros textos bblicos, assim constitui, num certo sentido, a estrutura basilar do ensino da Igreja, que se mantm inalterado atravs dos sculos, no contexto das diversas experincias da histria. Todavia, sobre o pano de fundo das experincias que precederam a publicao da Encclica Rerum Novarum e daquelas que a seguiram, este ensino adquire uma particular possibilidade de expresso e um carcter de viva actualidade. O trabalho aparece em tal anlise como uma grande realidade, que exerce uma influncia fundamental sobre a formao, no sentido humano, do mundo confiado ao homem pelo Criador e sobre a sua humanizao; ele tambm uma realidade intimamente ligada ao homem, como ao seu sujeito prprio, e sua maneira racional de agir. Esta realidade, no curso normal das coisas, preenche a vida humana e tem uma forte incidncia sobre o seu valor e sobre o seu sentido. Muito embora unido com a fadiga e o esforo, o trabalho no cessa de ser um bem, de tal sorte que o homem se desenvolve mediante o amor pelo trabalho. Este carcter do trabalho humano, totalmente positivo e criador, educativo e meritrio, deve constituir o fundamento das avaliaes e das decises que nos dias de hoje se tomam a seu respeito, mesmo as que tm referncia aos direitos subjectivos do homem, como o atestam as Declaraes internacionais e igualmente os mltiplos Cdigos do trabalho, elaborados tanto pelas competentes instituies legislativas dos diversos pases, como pelas organizaes que consagram a sua actividade social ou cientfico-social problemtica do trabalho. H um organismo que promove a nvel internacional tais iniciativas: a Organizao Internacional do Trabalho, a mais antiga das Instituies especializadas da Organizao das Naes Unidas.

Mais adiante, no seguimento das presentes consideraes, tenho inteno de voltar de maneira mais pormenorizada a estes problemas importantes, recordando ento ao menos os elementos fundamentais da doutrina da Igreja sobre este tema. Antes, porm, conveniente tratar com brevidade de um crculo muito importante de problemas, rodeado pelos quais se foi formando tal ensino da Igreja na ltima fase, isto , naquele perodo cujos incios se podem situar, num certo sentido simblico, no ano de que data a publicao da Encclica Rerum Novarum. sabido que, durante todo este perodo, o qual alis ainda no terminou, o problema do trabalho foi sendo posto no clima do grande conflito que, na poca do desenvolvimento industrial e em ligao com ele, se manifestou entre o mundo do capital e o mundo do trabalho ; ou seja, entre o grupo restrito, mas muito influente, dos patres e empresrios, dos proprietrios ou detentores dos meios de produo, e a multido mais numerosa da gente que se achava privada de tais meios e que participava no processo de produo, mas isso exclusivamente mediante o seu trabalho. Tal conflito foi originado pelo facto de que os operrios punham as suas foras disposio do grupo dos patres e empresrios, e de que este, guiado pelo princpio do maior lucro da produo, procurava manter o mais baixo possvel o salrio para o trabalho executado pelos operrios. A isto h que juntar ainda outros elementos de explorao, ligados com a falta de segurana no trabalho e tambm com a ausncia de garantias quanto s condies de sade e de vida dos mesmos operrios e das suas famlias.

Este conflito, interpretado por alguns como conflito scio-econmico com carcter de classe, encontrou a sua expresso no conflito ideolgico entre o liberalismo, entendido como ideologia do capitalismo, e o marxismo, entendido como ideologia do socialismo cientfico e do comunismo, que pretende intervir na qualidade de porta-voz da classe operria, de todo o proletariado mundial. Deste modo, o conflito real que existia entre o mundo do trabalho e o mundo do capital, transformou-se na luta de classe programada, conduzida com mtodos no apenas ideolgicos, mas tambm e sobretudo polticos. conhecida a histria deste conflito, como so conhecidas as exigncias de uma e de outra parte. O programa marxista, baseado na filosofia de Marx e de Engels, v na luta de classe o nico meio para eliminar as injustias de classe existentes na sociedade, e eliminar as mesmas classes. A realizao deste programa prope-se comear pela colectivizao dos meios de produo, a fim de que, pela transferncia deste meios das mos dos privados para a colectividade, o trabalho humano seja preservado da explorao.

para isto, pois, que tende a luta, conduzida com mtodos no s ideolgicos, mas tambm polticos. Os agrupamentos inspirados pela ideologia marxista como partidos polticos, em conformidade com o princpio da ditadura do proletariado e exercitando influncias de diversos tipos, incluindo a presso revolucionria, tendem para o monoplio do poder em cada uma das sociedades, a fim de introduzir nelas, mediante a eliminao da propriedade privada dos meios de produo, o sistema colectivista. Segundo os principais idelogos e chefes deste vasto movimento internacional, a finalidade de tal programa de aco a de levar a cabo a revoluo social e introduzir no mundo inteiro o socialismo e, por fim, o sistema comunista.

Ao entrar rapidamente neste importantssimo crculo de problemas, que constituem no apenas uma teoria, mas sim o tecido da vida scio-econmica, poltica e internacional da nossa poca no se pode e nem sequer necessrio entrar em pormenores, porque tais problemas so conhecidos, quer graas a uma abundante literatura, quer a partir das experincias prticas. Em lugar disso, deve-se remontar do seu contexto at ao problema fundamental do trabalho humano, ao qual so especialmente dedicadas as consideraes contidas no presente documento. Com efeito, evidente que este problema capital, encarado sempre do ponto de vista do homem problema que constitui uma das dimenses fundamentais da sua existncia terrena e da sua vocao no pode ser explicado se no for tido em conta o contexto global da realidade contempornea.

12. Prioridade do trabalhoDiante da realidade dos dias de hoje, em cuja estrutura se encontram marcas bem profundas de tantos conflitos, causados pelo homem, e na qual os meios tcnicos fruto do trabalho humano desempenham um papel de primeira importncia (pense-se ainda, aqui neste ponto, na perspectiva de um cataclismo mundial na eventualidade de uma guerra nuclear, cujas possibilidades de destruio seriam quase inimaginveis), deve recordar-se, antes de mais nada, um princpio ensinado sempre pela Igreja. o princpio da prioridade do trabalho em confronto com o capital . Este princpio diz respeito directamente ao prprio processo de produo, relativamente ao qual o trabalho sempre uma causa eficiente primria, enquanto que o capital , sendo o conjunto dos meios de produo, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princpio uma verdade evidente, que resulta de toda a experincia histrica do homem.

Quando lemos no primeiro captulo da Bblia que o homem tem o dever de submeter a terra , ns ficamos a saber que estas palavras se referem a todos os recursos que o mundo visvel encerra em si e que esto postos disposio do homem. Tais recursos, no entanto, no podem servir ao homem seno mediante o trabalho. E com o trabalho permanece igualmente ligado, desde o princpio, o problema da propriedade. Com efeito, para fazer com que sirvam para si e para os demais os recursos escondidos na natureza, o homem tem como nico meio o seu trabalho; e para fazer com que frutifiquem tais recursos, mediante o seu trabalho, o homem apossa-se de pequenas pores das variadas riquezas da natureza: do subsolo, do mar, da terra e do espao. De tudo isso ele se apropria para a assentar o seu banco de trabalho. E apropria-se disso mediante o trabalho e para poder ulteriormente ter trabalho.

O mesmo princpio se aplica, ainda, s fases sucessivas deste processo, no qual a primeira fase continua a ser sempre a relao do homem com os recursos e as riquezas da natureza. Todo o esforo do conhecimento com que se tende a descobrir tais riquezas e a determinar as diversas possibilidades de utilizao das mesmas por parte do homem e para o homem, leva-nos a tomar conscincia do seguinte: que tudo aquilo que no complexo da actividade econmica provm do homem tanto o trabalho, como o conjunto dos meios de produo e a tcnica a eles ligada (isto , a capacidade de utilizar tais meios no trabalho) pressupe estas riquezas e estes recursos do mundo visvel, que o homem encontra, mas no cria. Ele encontra-os, em certo sentido, j prontos e preparados para serem descobertos pelo seu conhecimento e para serem utilizados correctamente no processo de produo. Em qualquer fase do desenvolvimento do seu trabalho, o homem depara com o facto da principal doao da parte da natureza , o que equivale a dizer, em ltima anlise, da parte do Criador. No princpio do trabalho humano est o mistrio da Criao. Esta afirmao, j indicada como ponto de partida, constitui o fio condutor do presente documento e ser mais desenvolvida ainda, na parte final das presentes reflexes.

A considerao do mesmo problema, que se far em seguida, h-de confirmar-nos na convico quanto prioridade do trabalho humano no confronto com aquilo que, com o tempo, passou a ser habitual chamar-se capital . Com efeito, se no mbito deste ltimo conceito entram, alm dos recursos da natureza postos disposio do homem, tambm aquele conjunto de meios pelos quais o homem se apropria dos recursos da natureza, transformando-os medida das suas necessidades (e deste modo, nalgum sentido, humanizando-os ), ento h que fixar desde j a certeza de que tal conjunto de meios o fruto do patrimnio histrico do trabalho humano. Todos os meios de produo, desde os mais primitivos at aos mais modernos, foi o homem que os elaborou: a experincia e a inteligncia do homem. Deste modo foram aparecendo no s os instrumentos mais simples que servem para o cultivo da terra, mas tambm graas a um adequado progresso da cincia e da tcnica os mais modernos e os mais complexos: as mquinas, as fbricas, os laboratrios e os computadores. Assim, tudo aquilo que serve para o trabalho, tudo aquilo que, no estado actual da tcnica, constitui dele instrumento cada dia mais aperfeioado, fruto do mesmo trabalho. Esse instrumento gigantesco e poderoso qual o conjunto dos meios de produo, considerados, at certo ponto, como sinnimo do capital nasceu do trabalho e portador das marcas do trabalho humano. No presente estdio do avano da tcnica, o homem, que o sujeito do trabalho, quando quer servir-se deste conjunto de instrumentos modernos, ou seja, dos meios de produo, deve comear por assimilar, no plano do conhecimento, o fruto do trabalho dos homens que descobriram tais instrumentos, que os projectaram, os contruiram e aperfeioaram, e que continuam a faz-lo. A capacidade de trabalho quer dizer, de participar eficazmente no processo moderno de produo exige uma preparao cada vez maior e, primeiro que tudo, uma instruo adequada. Obviamente, permanece fora de dvidas que todos os homens que participam no processo de produo, mesmo no caso de executarem s aquele tipo de trabalho para o qual no so necessrias uma instruo particular e qualificaes especiais, todos e cada um deles continuam a ser o verdadeiro sujeito eficiente, enquanto que o conjunto dos instrumentos, ainda os mais perfeitos, so nica e exclusivamente instrumentos subordinados ao trabalho do homem.

Esta verdade, que pertence ao patrimnio estvel da doutrina da Igreja, deve ser sempre sublinhada, em relao com o problema do sistema de trabalho e igualmente de todo o sistema scio-econmico. preciso acentuar e pr em relevo o primado do homem no processo de produo, o primado do homem em relao s coisas. E tudo aquilo que est contido no conceito de capital , num sentido restrito do termo, somente um conjunto de coisas. Ao passo que o homem, como sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que faz, o homem, e s ele, uma pessoa. Esta verdade contm em si consequncias importantes e decisivas.

13. Economismo e materialismo luz de tal verdade v-se claramente, antes de mais nada, que no se podem separar o capital do trabalho e que de maneira nenhuma se pode contrapor o trabalho ao capital e o capital ao trabalho, e, menos ainda como adiante se ver se podem contrapor uns aos outros os homens concretos, que esto por detrs destes conceitos. Pode ser recto, quer dizer, em conformidade com a prpria essncia do problema, e recto ainda, porque intrinsecamente verdadeiro e ao mesmo tempo moralmente legtimo, aquele sistema de trabalho que, nos seus fundamentos, supera a antinomia entre trabalho e capital, procurando estruturar-se de acordo com o princpio em precedncia enunciado: o princpio da prioridade substancial e efectiva do trabalho, da subjectividade do mesmo trabalho humano e da sua participao eficiente em todo o processo de produo, e isto independentemente da natureza dos servios prestados pelo trabalhador.

A antinomia entre trabalho e capital no tem a sua fonte na estrutura do processo de produo, nem na estrutura do processo econmico em geral. Este processo, de facto, manifesta a recproca compenetrao existente entre o trabalho e aquilo que se tornou habitual denominar o capital; mostra mesmo o ligame indissolvel entre as duas coisas. O homem, ao trabalhar em qualquer tarefa no seu banco de trabalho, seja este relativamente primitivo ou ultramoderno, pode facilmente cair na conta de que, pelo seu trabalho, entra na posse de um duplo patrimnio; ou seja, do patrimnio daquilo que dado a todos os homens, sob a forma dos recursos da natureza, e do patrimnio daquilo que os outros que o precederam j elaboraram, a partir da base de tais recursos, em primeiro lugar desenvolvendo a tcnica, isto , tornando realidade um conjunto de instrumentos de trabalho, cada vez mais aperfeioados. Assim, o homem, ao trabalhar, aproveita do trabalho de outrem . 21 Ns aceitamos sem dificuldade esta viso assim do campo e do processo do trabalho humano, guiados tanto pela inteligncia quanto pela f, que vai haurir a luz na Palavra de Deus. Trata-se de uma viso coerente, teolgica e, ao mesmo tempo, humanista. Nela, o homem aparece-nos como o senhor das criaturas, postas sua disposio no mundo visvel. E se no processo do trabalho alguma dependncia se descobre, esta a dependncia do homem do Doador de todos os recursos da criao e, por outro lado, a dependncia de outros homens, daqueles a cujo trabalho e a cujas iniciativas se devem as j aperfeioadas e ampliadas possibilidades existentes para o nosso trabalho. De tudo isto, que no processo de produo constitui um conjunto de coisas , de instrumentos, do capital, podemos afirmar somente que condiciona o trabalho do homem; no podemos afirmar, porm, que isto constitua como que o sujeito annimo que coloca em posio de dependncia o homem e o seu trabalho.

A ruptura desta viso coerente, na qual se acha estritamente salvaguardado o princpio do primado da pessoa sobre as coisas, verificou-se no pensamento humano, algumas vezes depois de um longo perodo de incubao na vida prtica. E operou-se de tal maneira que o trabalho foi separado do capital e contraposto mesmo ao capital, e por sua vez o capital contraposto ao trabalho, quase como se fossem duas foras annimas, dois factores de produo, postos um juntamente com o outro na mesma perspectiva economista . Em tal maneira de ver o problema, existiu o erro fundamental a que se pode chamar erro do economismo , que se d quando o trabalho humano considerado exclusivamente segundo a sua finalidade econmica. Tambm se pode e se deve chamar a este erro fundamental do pensamento um erro do materialismo, no sentido de que o economismo comporta, directa ou indirectamente, a convico do primado e da superioridade daquilo que material; ao passo que coloca, directa ou indirectamente, numa posio subordinada realidade material, aquilo que espiritual e pessoal (o agir do homem, os valores morais e semelhantes). Isso no ainda o materialismo terico, no sentido pleno da palavra; mas, certamente, j um materialismo prtico, o qual no tanto em virtude das premissas derivantes da teoria materialista, mas sim em virtude de um modo determinado de avaliar as realidades, e portanto em virtude de uma certa hierarquia de bens, fundada na atraco imediata e mais forte daquilo que material julgado capaz de satisfazer as necessidades do homem.

O erro de pensar segundo as categorias do economismo caminhou a pari passu com o formar-se da filosofia materialista e com o desenvolvimento de tal filosofia, desde a fase mais elementar e mais comum (tambm chamada materialismo vulgar, porque pretende reduzir a realidade espiritual a um fenmeno suprfluo), at fase do que se denominou materialismo dialctico. Parece, no entanto, que no mbito das presentes consideraes para o problema fundamental do trabalho humano e, em particular, para aquela separao e contraposio entre trabalho e capital , como entre dois factores da produo considerados naquela mesma perspectiva economista , acima referida, o economismo teve uma importncia decisiva e influu exactamente sobre este modo no-humanista de pr o problema, antes do sistema filosfico materialista. Contudo, evidente que o materialismo, mesmo sob a sua forma dialctica, no est em condies de proporcionar reflexo sobre o trabalho humano bases suficientes e definitivas, para que o primado do homem sobre o instrumento-capital a possa encontrar uma adequada e irrefutvel verificao e um apoio. Mesmo no materialismo dialctico no o homem que, antes de tudo o mais, o sujeito do trabalho humano e a causa eficiente do processo de produo; mas continua a ser compreendido e tratado na dependncia daquilo que material, como uma espcie de resultante das relaes econmicas e das relaes de produo, predominantes numa poca determinada.

Evidentemente, a antinomia, que estamos a considerar, entre o trabalho e o capital a antinomia em cujo mbito o trabalho foi separado do capital e contraposto a ele, num certo sentido nticamente, como se fosse um elemento qualquer do processo econmico tem a sua origem no apenas na filosofia e nas teorias econmicas do sculo XVIII, mas tambm e muito mais em toda a prtica econmico-social desses tempos, que coincidem com a poca em que nascia e se desenvolvia de modo impetuoso a industrializao, na qual se divisava, em primeiro lugar, a possibilidade de multiplicar abundantemente as riquezas materiais, isto os meios, perdendo de vista o fim, quer dizer o homem, a quem tais meios devem servir. Foi exactamente este erro de ordem prtica que atingiu, antes de mais nada, o trabalho humano, o homem do trabalho, e que causou a reaco social eticamente justa, da qual se falou mais acima. O mesmo erro, que agora j tem uma fisionomia histrica definida, ligada ao perodo do capitalismo e do liberalismo primitivos, pode voltar a repetir-se ainda, noutras circunstncias de tempo e de lugar, se no modo de raciocinar se partir das mesmas premissas tanto tericas como prticas. No se vem outras possibilidades de uma superao radical deste erro, a no ser que intervenham mudanas adequadas, quer no campo da teoria quer no da prtica, mudanas que se atenham a uma linha de firme convico do primado da pessoa sobre as coisas e do trabalho do homem sobre o capital, entendido como conjunto dos meios de produo.

14. Trabalho e propriedadeO processo histrico aqui apresentado com brevidade que indubiamente j saiu da sua fase inicial, mas continua ainda e tende mesmo para se tornar extensivo s relaes entre naes e continentes, exige um esclarecimento tambm sob um outro ponto de vista. Quando se fala da antinomia entre trabalho e capital no se trata, como evidente, apenas de conceitos abstractos e de foras annimas que agem na produo econmica. Por detrs de um e de outro dos dois conceitos h homens, os homens vivos e concretos. De um lado, aqueles que executam o trabalho sem serem proprietrios dos meios de produo; e do outro lado, aqueles que desempenham a funo de patres e empresrios e que so os proprietrios de tais meios, ou ento representam os proprietrios. E assim, portanto, vem inserir-se no conjunto deste difcil processo histrico, desde o incio, o problema da propriedade. A Encclica Rerum Novarum, que tem por tema a questo social, pe em realce tambm este problema, recordando e confirmando a doutrina da Igreja sobre a propriedade e sobre o direito de propriedade privada, mesmo quando se trata dos meios de produo. E a Encclica Mater et Magistra fez a mesma coisa.

O princpio a que se alude, conforme foi ento recordado e como continua a ser ensinado pela Igreja, diverge radicalmente do programa do colectivismo, proclamado pelo marxismo e realizado em vrios pases do mundo, nos decnios que se seguiram publicao da Encclica de Leo XIII. E, ao mesmo tempo, ele difere tambm do programa do capitalismo, tal como foi posto em prtica pelo liberalismo e pelos sistemas polticos que se inspiram no mesmo liberalismo. Neste segundo caso, a diferena est na maneira de compreender o direito de propriedade, precisamente. A tradio crist nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocvel; pelo contrrio, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criao inteira: o direito propriedade privada est subordinado ao direito ao uso comum, subordinado destinao universal dos bens.

Por outras palavras, a propriedade, segundo o ensino da Igreja, nunca foi entendida de maneira a poder constituir um motivo de contraste social no trabalho. Conforme j foi recordado acima, a propriedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho. E isto diz respeito de modo particular propriedade dos meios de produo. Consider-los isoladamente, como um conjunto parte de propriedades, com o fim de os contrapor, sob a forma do capital , ao trabalho e, mais ainda, com o fim de explorar o trabalho, contrrio prpria natureza de tais meios e da sua posse. Estes no podem ser possudos contra o trabalho, como no podem ser possudos para possuir, porque o nico ttulo legtimo para a sua posse e isto tanto sob a forma da propriedade privada como sob a forma da propriedade pblica ou colectiva que eles sirvam ao trabalho; e que, consequentemente, servindo ao trabalho, tornem possvel a realizao do primeiro princpio desta ordem, que a destinao universal dos bens e o direito ao seu uso comum. Sob este ponto de vista, em considerao do trabalho humano e do acesso comum aos bens destinados ao homem, tambm para no excluir a socializao, dando-se as condies oportunas, de certos meios de produo. No espao dos decnios que nos separam da publicao da Encclica Rerum Novarum, o ensino da Igreja tem vindo sempre a recordar todos estes princpios, remontando aos argumentos formulados numa tradio bem mais antiga, por exemplo aos conhecidos argumentos da Suma Teolgica de Santo Toms de Aquino. 22

No presente documento, que tem por tema principal o trabalho humano, convm confirmar todo o esforo com o qual o ensino da Igreja sobre a propriedade sempre procurou e procura assegurar o primado do trabalho e, por isso mesmo, a subjectividade do homem na vida social e, especialmente, na estrutura dinmica de todo o processo econmico.Deste ponto de vista, continua a ser inaceitvel a posio do capitalismo rgido , que defende o direito exclusivo da propriedade privada dos meios de produo, como um dogma intocvel na vida econmica. O princpio do respeito do trabalho exige que tal direito seja submetido a uma reviso construtiva, tanto em teoria como na prtica. Com efeito, se verdade que o capital entendido como o conjunto dos meios de produo ao mesmo tempo o produto do trabalho de geraes, tambm verdade que ele se cria incessantemente graas ao trabalho efectuado com a ajuda do mesmo conjunto dos meios de produo, que aparecem ento como um grande banco de trabalho, junto do qual, dia-a-dia, a presente gerao dos trabalhadores desenvolve a prpria actividade. Trata-se aqui, como bvio, das diversas espcies de trabalho, no somente do trabalho chamado manual mas tambm das vrias espcies de trabalho intelectual, desde o trabalho de concepo at ao de direco.

Sob esta luz, as numerosas proposies enunciadas pelos peritos da doutrina social catlica e tambm pelo supremo Magistrio da Igreja 23 adquirem um significado de particular relevo. Trata-se de proposies que dizem respeito compropriedade dos meios de trabalho, participao dos trabalhadores na gesto e/ou nos lucros das empresas, o chamado accionariado do trabalho, e coisas semelhantes. Independentemente da aplicabilidade concreta destas diversas proposies, permanece algo evidente que o reconhecimento da posio justa do trabalho e do homem do trabalho no processo de produo exige vrias adaptaes, mesmo no mbito do direito da propriedade dos meios de produo. Ao dizer isto, tomam-se em considerao, no s as situaes mais antigas, mas tambm e antes de mais nada a realidade e a problemtica que se criaram na segunda metade deste sculo, pelo que se refere ao Terceiro Mundo e aos diversos novos pases independentes que foram aparecendo especialmente na frica, mas tambm noutras latitudes no lugar dos territrios coloniais de outrora.

Se, por conseguinte, a posio do capitalismo rgido tem de ser continuamente submetida a uma reviso, no intuito de uma reforma sob o aspecto dos direitos do homem, entendidos no seu sentido mais amplo e nas suas relaes com o trabalho, ento, sob o mesmo ponto de vista, deve afirmar-se que estas reformas mltiplas e to-desejadas no podem ser realizadas com a eliminao apriorstica da propriedade privada dos meios de produo. Convm, efectivamente, observar que o simples facto de subtrair esses meios de produo (o capital) das mos dos seus proprietrios privados no basta para os socializar de maneira satisfatria. Assim, eles deixam de ser a propriedade de um determinado grupo social, os proprietrios privados, para se tornarem propriedade da sociedade organizada, passando a estar sob a administrao e a fiscalizao directas de um outro grupo de pessoas que, embora no tendo a propriedade, em virtude do poder que exercem na sociedade dispem deles a nvel da inteira economia nacional, ou ento a nvel da economia local.

Este grupo dirigente e responsvel pode desempenhar-se das suas funes de maneira satisfatria, do ponto de vista do primado do trabalho; mas pode tambm cumpri-las mal, reivindicando ao mesmo tempo para si o monoplio da administrao e da disposio dos meios de produo, sem se deter quanto a isso nem sequer diante da ofensa aos direitos fundamentais do homem. Desde modo, pois, o simples facto de os meios de produo passarem para a propriedade do Estado, no sistema colectivista, no significa s por si, certamente, a socializao desta propriedade. Poder- se- falar de socializao somente quando ficar assegurada a subjectividade da sociedade, quer dizer, quando cada um dos que a compem, com base no prprio trabalho, tiver garantido o pleno direito a considerar-se comproprietrio do grande banco de trabalho em que se empenha juntamente com todos os demais. E uma das vias para alcanar tal objectivo poderia ser a de associar o trabalho, na medida do possvel, propriedade do capital e dar possibilidades de vida a uma srie de corpos intermedirios com finalidades econmicas, sociais e culturais: corpos estes que ho-de usufruir de uma efectiva autonomia em relao aos poderes pblicos e que ho-de procurar conseguir os seus objectivos especficos mantendo entre si relaes de leal colaborao recproca, subordinadamente s exigncias do bem comum, e que ho-de, ainda, apresentar-se sob a forma e com a substncia de uma comunidade viva; quer dizer, de molde a que neles os respectivos membros sejam considerados e tratados como pessoas e estimulados a tomar parte activa na sua vida. 24

15. Argumento personalistaAssim, o princpio da prioridade do trabalho em relao ao capital, um postulado que pertence ordem da moral social. Este postulado tem uma importncia-chave, tanto no sistema fundado sobre o princpio da propriedade privada dos meios de produo, como no sistema em que a propriedade privada de tais meios foi limitada mesmo radicalmente. O trabalho, num certo sentido, inseparvel do capital e no tolera, sob nenhuma forma, aquela antinomia quer dizer, a separao e contraposio relativamente aos meios de produo que, resultando de premissas unicamente econmicas, tem pesado sobre a vida humana nos ltimos sculos. Quando o homem trabalha, utilizando-se do conjunto dos meios de produo, deseja ao mesmo tempo: que os frutos desse trabalho sejam teis para si e para outrem; e ainda, no mesmo processar-se do trabalho, poder figurar como corresponsvel e co-artfice da actividade no banco de trabalho, junto do qual se aplica.

Disto promanam alguns direitos especficos dos trabalhadores, direitos que correspondem obrigao de trabalhar. Falar-se- deles em seguida. Entretanto, necessrio frisar bem, desde j, que em geral o homem que trabalha deseja no s receber a remunerao devida pelo seu trabalho, mas deseja tambm que seja tomada em considerao, no mesmo processo de produo, a possibilidade de que ele, ao trabalhar, ainda que seja numa propriedade comum, esteja cnscio de trabalhar por sua conta . Esta conscincia fica nele abafada, ao encontrar-se num sistema de centralizao burocrtica excessiva, na qual o trabalhador se v sobretudo como pea duma engrenagem num grande mecanismo movido de cima; e ainda por vrias razes mais como um simples instrumento de produo do que como um verdadeiro sujeito do trabalho, dotado de iniciativa prpria.

O ensino da Igreja exprimiu sempre a firme e profunda convico de que o trabalho humano no diz respeito simplesmente economia, mas implica tambm e sobretudo valores pessoais. O prprio sistema econmico e o processo de produo auferem vantagens precisamente do facto de tais valores pessoais serem respeitados. No pensamento de Santo Toms de Aquino, 25 sobretudo esta razo que depe a favor da propriedade privada dos meios de produo. Se aceitamos que, por motivos certos e fundados, podem ser feitas excepes ao princpio da propriedade privada e nos nossos tempos estamos mesmo a ser testemunhas de que, na vida, foi introduzido o sistema da propriedade socializada o argumento personalista, contudo, no perde a sua fora, nem ao nvel dos princpios, nem no campo prtico. Toda e qualquer socializao dos meios de produo, para ser racional e frutuosa, deve ter este argumento em considerao. Deve fazer-se todo o possvel para que o homem, mesmo num tal sistema, possa conservar a conscincia de trabalhar por sua prpria conta . Caso contrrio, verificam-se necessariamente danos incalculveis em todo o processo econmico, danos que no so apenas de ordem econmica, mas que atingem em primeiro lugar o homem.

IV. DIREITOS DOS HOMENS DO TRABALHO16. No vasto contexto dos direitos do homem Se o trabalho nos diversos sentidos da palavra uma obrigao, isto um dever, ele ao mesmo tempo fonte tambm de direitos para o trabalhador. Tais direitos ho-de ser examinados no vasto contexto do conjunto dos direitos do homem, direitos que lhe so conaturais, tendo sido muitos deles proclamados pelas vrias instituies internacionais e esto a ser cada vez mais garantidos pelos diversos Estados para os respectivos cidados. O respeito deste vasto conjunto de direitos do homem constitui a condio fundamental para a paz no mundo contemporneo: quer para a paz no interior de cada pas e sociedade, quer para a paz no mbito das relaes internacionais, conforme j muitas vezes foi posto em evidncia pelo Magistrio da Igreja, especialmente aps o aparecimento da Encclica Pacem in Terris. Os direitos humanos que promanam do trabalho inserem-se, tambm eles, precisamente no conjunto mais vasto dos direitos fundamentais da pessoa.

Dentro de um tal conjunto, porm, eles tm um carcter especfico, que corresponde natureza especfica do trabalho humano delineada em precedncia; e precisamente em funo desse carcter que necessrio consider-los. O trabalho, como j foi dito, uma obrigao, ou seja, um dever do homem; e isto nos diversos sentidos da palavra. O homem deve trabalhar, quer pelo facto de o Criador lh'o haver ordenado, quer pelo facto da sua mesma humanidade, cuja subsistncia e desenvolvimento exigem o trabalho. O homem deve trabalhar por um motivo de considerao pelo prximo, especialmente considerao pela prpria famlia, mas tambm pela sociedade de que faz parte, pela nao de que filho ou filha, e pela inteira famlia humana de que membro, sendo como herdeiro do trabalho de geraes e, ao mesmo tempo, co-artfice do futuro daqueles que viro depois dele no suceder-se da histria. Tudo isto, pois, constitui a obrigao moral do trabalho, entendido na sua acepo mais ampla. Quando for preciso considerar os direitos morais de cada um dos homens pelo que se refere ao trabalho, direitos correspondentes dita obrigao, impe-se ter sempre diante dos olhos este amplo crculo de pontos de referncia, em cujo centro se situa o trabalho de todos e cada um dos sujeitos que trabalham.

Com efeito, ao falarmos da obrigao do trabalho e dos direitos do trabalhador correspondentes a esta obrigao, ns temos no pensamento, antes de mais nada, a relao entre o dador de trabalho directo ou indirecto e o mesmo trabalhador. A distino entre dador de trabalho directo e indirecto parece ser muito importante, tendo em considerao tanto a organizao real do trabalho, como a possibilidade de se instaurarem relaes justas ou injustas no domnio do trabalho.

Se o dador de trabalho directo aquela pessoa ou aquela instituio com as quais o trabalhador estipula directamente o contrato de trabalho segundo condies determinadas, ento sob a designao de dador de trabalho indirecto devem ser entendidos numerosos factores diferenciados que, alm do dador de trabalho directo, exercem uma influncia determinada sobre a maneira segundo a qual se estabelecem quer o contrato de trabalho quer, como consequncia, as relaes mais ou menos justas no domnio do trabalho humano.

17. Dador de trabalho: indirecto e directo No conceito de dador de trabalho indirecto entram as pessoas, as instituies de diversos tipos, bem como os contratos colectivos de trabalho e os princpios de comportamento, que, estabelecidos por essas pessoas ou instituies, determinam todo o sistema scio-econmico ou dele resultam. O conceito de dador de trabalho indirecto , deste modo, refere-se a elementos numerosos e variados. E a responsabilidade do dador de trabalho indirecto diferente da responsabilidade do dador de trabalho directo, como indicam os prprios termos: a responsabilidade menos directa; mas permanece uma verdadeira responsabilidade, porquanto o dador de trabalho indirecto determina substancialmente um e outro aspecto da relao de trabalho, e condiciona assim o comportamento do dador de trabalho directo, quando este ltimo determina concretamente o contrato e as relaes de trabalho. Uma verificao deste gnero no tem como finalidade o eximir este ltimo da responsabilidade que lhe cabe, mas simplesmente chamar a ateno para todo o entrelaado de condicionamentos que influem no seu comportamento. Quando se trata de instaurar uma poltica de trabalho correcta sob o ponto de vista tico, necessrio ter presentes todos esses condicionamentos. E essa poltica ser correcta quando forem plenamente respeitados os direitos objectivos do homem do trabalho.

O conceito de dador de trabalho indirecto pode aplicar-se a todas e a cada uma das sociedades e, primeiro que tudo, ao Estado. o Estado, efectivamente, que deve conduzir uma justa poltica do trabalho. sabido, porm, que, no sistema actual das relaes econmicas no mundo, se verificam mltiplas ligaes entre os diversos Estados, ligaes que se exprimem por exemplo no processar-se da importao e da exportao, isto , na permuta recproca dos bens econmicos, quer se trate de matrias primas ou de produtos semi-elaborados, quer de produtos industriais j acabados. Tais processos criam tambm dependncias recprocas e, por conseguinte, seria difcil falar de plena autosuficincia, quer dizer, de autarquia, seja para que Estado for, ainda que se tratasse do mais potente no sentido econmico.

Um tal sistema de dependncias recprocas em si mesmo normal; todavia, pode facilmente dar azo a diversas formas de explorao ou de injustia e, por conseguinte, ter influncia na poltica do trabalho dos Estados tomados singularmente e, em ltima anlise, no trabalhador individual que o sujeito prprio do trabalho. Por exemplo, os pases altamente industrializados e, mais ainda, as empresas que em vasta escala superintendem nos meios de produo industrial (as chamadas sociedades multinacionais ou transnacionais), ditando os preos o mais alto possvel para os seus produtos, procuram ao mesmo tempo fixar os custos mais baixos possvel para as matrias primas ou para os produtos semi-elaborados. Ora isto, juntamente com outras causas, d como resultado criar uma desproporo sempre crescente entre as rendas nacionais dos respectivos pases. A distncia entre a maior parte dos pases ricos e os pases mais pobres no diminui e no se d a tendncia para o nivelamento, mas aumenta cada vez mais, em detrimento, como bvio, destes ltimos. Evidentemente que isto no deixa de ter os seus efeitos na poltica local do trabalho e na situao dos trabalhadores nas sociedades economicamente desfavorecidas. O dador directo de trabalho que se encontra num sistema semelhante de condicionamentos fixa as condies de trabalho abaixo das objectivas exigncias dos trabalhadores, especialmente se ele prprio quer tirar os lucros mais elevados possvel da empresa que dirige (ou das empresas que dirige, quando se trata de uma situao de propriedade socializada dos meios de produo).

Este quadro das dependncias em relao com o conceito de dador indirecto de trabalho, como fcil deduzir, muitssimo amplo e complexo. Para o determinar deve tomar-se em considerao, num certo sentido, o conjunto dos elementos decisivos para a vida econmica no contexto de uma dada sociedade ou Estado; ao mesmo tempo, porm, devem ter-se em conta ligaes e dependncias muito mais vastas. O fazer com que se tornem realidade os direitos do homem do trabalho, todavia, no pode ser condenado a constituir somente um elemento derivado dos sistemas econmicos, os quais, em maior ou em menor escala, sejam guiados principalmente pelo critrio do lucro mximo. E, pelo contrrio, precisamente a considerao dos direitos objectivos do homem do trabalho de todo o tipo de trabalhador, braal, intelectual, industrial, agrcola, etc. que deve constituir o critrio adequado e fundamental para a formao de toda a economia, na dimenso tanto da economia de cada uma das sociedades e de cada um dos Estados, como no conjunto da poltica econmica mundial e dos sistemas e das relaes internacionais que derivam da mesma poltica.

neste sentido que deveria exercitar-se a influncia de todas as Organizaes Internacionais que a isso so chamadas, a comear pela Organizao das Naes Unidas (O.N.U.). Parece terem a proporcionar novas contribuies particularmente quanto a isto a Organizao Mundial do Trabalho (O.I.T.), como tambm a Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura (F.A.O.) e outras ainda. E na contextura dos diferentes Estados existem ministrios e rgos do poder pblico e tambm diversos organismos sociais, institudos com esta finalidade. Tudo isto indica eficazmente a grande importncia que tem como foi dito acima o dador de trabalho indirecto, para se tornar realidade o pleno respeito dos direitos do homem do trabalho, porque os direitos da pessoa humana constituem o elemento-chave de toda a ordem moral social.

18. O problema do empregoAo considerar os direitos do homem do trabalho em relao com este dador de trabalho indirecto , quer dizer, em relao com o conjunto das instituies que, a nvel nacional e a nvel internacional, so responsveis por toda a orientao da poltica do trabalho, deve voltar-se a ateno antes de mais nada para um problema fundamental. Trata-se do problema de ter trabalho ou, por outras palavras, do problema de encontrar um emprego adaptado para todos aqueles sujeitos que so capazes de o ter. O contrrio de uma situao justa e correcta neste campo o desemprego, isto , a falta de lugares de trabalho para as pessoas que so capazes de trabalhar. E pode tratar-se de falta de trabalho em geral, ou ento de falta de emprego em determinados sectores do trabalho. O papel das aludidas instituies, que aqui so compreendidas sob a denominao de dador de trabalho indirecto, o de actuar contra o desemprego, que sempre um mal e, quando chega a atingir determinadas dimenses, pode tornar-se uma verdadeira calamidade social. E o desemprego torna-se um problema particularmente doloroso quando so atingidos sobretudo os jovens que, depois de se terem preparado por meio de uma formao cultural, tcnica e profissional apropriada, no conseguem um emprego e, com mgoa, vem frustradas a sua vontade sincera de trabalhar e a sua disponibilidade para assumir a prpria responsabilidade no desenvolvimento econmico e social da comunidade. A obrigao de conceder fundos em favor dos desempregados, quer dizer, o dever de assegurar as subvenes indispensveis para a subsistncia dos desempregados e das suas famlias, um dever que deriva do princpio fundamental da ordem moral neste campo, isto , do princpio do uso comum dos bens ou, para exprimir o mesmo de maneira ainda mais simples, do direito vida e subsistncia.

Para fazer face ao perigo do desemprego e para garantir trabalho a todos, as instituies que acima foram definidas como dador de trabalho indirecto devem pr