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Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa 1 VERBO

Enciclopédia...canto. O carácter abrangente desta defi-nição decorre não só da complexidade da arte construtiva que dá forma à Canção como também da diversidade dos signifi-cados

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EnciclopédiaVERBO

das Literaturasde Língua Portuguesa

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VERBO

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Edição realizadasob o patrocínio da

SOCIEDADE CIENTÍFICADA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Direcção[osã AUGUSTO CARDOSO BERNARDES

(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

ANfBAL PINTO DE CASTRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

MARIA DE LOURDES A. FERRAZ(da Faculdade de Letras - Universidade Clássica de Lisboa)

GLADSTONE CHAVES DE MELO(da Faculdade de Letras - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

MARIA APARECIDA RIBEIRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

Secretaria-GeralA cargo do

Departamento de Enciclopédias da Editorial Verbosob a direcção de João Bigotte Chorão

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ê.ANÇÃO 922

CANÇÃOEm sentido lato, composição em ver-

so, dividida em estâncias, destinada aocanto. O carácter abrangente desta defi-nição decorre não só da complexidade daarte construtiva que dá forma à Cançãocomo também da diversidade dos signifi-cados que, ao longo dos tempos, o ter-mo tem vindo a assumir.

Já na Grécia Antiga, em época remota,os trabalhos agrícolas, ou os rituais reli-giosos que acompanhavam casamento emorte, eram seguidos com cantos muitoparticulares (cf. Od. IX 220-223; Il XVIII491-493, 569-571). Mas é abusivo falar--se, a este propósito, de canção. Encon-tramos canções na tradição folclórica detodos os povos e culturas. Apesar da di-versidade da sua origem geográfica, osseus temas e as suas formas apresentam,frequentemente, muitas semelhanças en-tre si. Na Alemanha, foi Herder o gran-de compilador de Lieder. Em França, é o[eu de Robin e de Marion o seu mais im-portante reposirório, cuja origem re-monta ao séc. XIII.

Excertos de peças populares, fragmen-tos, muito provavelmente, de poemas maisvastos, são intercalados em obras france-sas, de géneros muito diversos, que re-montam aos sécs. XII e Xlll. A C. carac-teriza-se, nas suas origens, por um teornarrativo ou dramático, mais do que líri-co. O tipo mais antigo que se conhece éa canção de gesta, poema narrativo queplasma um núcleo histórico, com grandeliberdade criativa. Coube aos provençaiso mérito de terem sido os grandes artífi-ces medievos da C. Já na segunda metadedo séc. Xl é cultivada a C. de fundo amo-roso, cuja inspiração se alargará à esferado religioso e do político, sendo a cruza-da um dos grandes temas versados. Mas

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também o satírico, o erótico ou o báqui-co lhe oferecem matéria. Própria daFrança do Norte é a C. d'histoire ou detoile (assim chamada por ser entoada pormulheres que executam trabalhos de te-celagem). Entre 1160 e 1170, a C. pro-vençal é levada até à França do Norte.Em Portugal, este modelo encontra-serepresentado pelas chamadas cantigasdos cancioneiros galego-portugueses, eperdura até ao séc. XVII. A C. provençalé composta por estrofes curtas; o últimoverso de cada uma delas repete-se na se-guinte, e, de acordo com o seu cânonetradicional, também as mesmas rimas serepetem, na mesma ordem, de estânciapara estância; o refrão, entoado por umcoro, marca o ritmo da dança, mostran-do o carácter eminentemente musical dacomposição.

Com o declínio das cortes francesas,que se verifica a partir do séc. XIII, passaa ser a Itália o terreno cultural onde seprocessam evoluções que determinarão afisionomia desta forma poética nos qua-tro séculos que se seguem. Se no Nortede Itália se encontram activos trovadoresem língua d'oc, os poetas que gravitamem torno do Imperador Frederico IItransferem para o vulgar italiano formase modos de compor provençais, que sedifundem a um ritmo vertiginoso, emvirtude do carácter itinerante da corte si-ciliana. A sua dispersão tem como suce-dâneo, em área central, a produção dossículo-toscanos. Mas já em finais doséc. XIII a C. stilnovista é cultivada emtoda a área centro-setentrional. Uma es-cala de difusão tão vasta e rápida comoesta não pode deixar de ter por conse-quência uma enorme diversificação demodelos, uma grande liberdade na suaregulamentação (a verificar-se), e o esva-necimento da unidade formal interestró-fica. É este o pano de fundo da acçãonormalizadora do Dante que, no Deuulgari eloquentia, define a C. como«conjugação, em estilo trágico, de umpensamento uno, em estâncias iguais,sem repetição» (lI 8 8), diferenciando-adefinitivamente da cançoneta, mais fácile leve, de estilo cómico. A abolição nãosó do refrão, como também de qualquertipo de artifício de repetição versífica, e aalteração das rimas de estrofe para estro-

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fe, apesar de o esquema rimático se man-ter, ao contrário do que acontecia comos provençais, fazem-se sintoma da pro-gressiva autonorniz açâo do texto literá-rio em relação à melodia. Ao eleger a C.como supra-sumo das formas literárias,Dante introduzia profundas alteraçõesna hierarquia do sistema das formas, atéaí dominado pela balada. A preferênciado verso de 10 sílabas acentuadas (alémdo decassílabo, apenas o senário e o qua-ternário são admitidos; os metros ímpa-res são excluídos, enquanto considera-dos de origem popular), faz-se sinal deum gosto aristocrático, que tem por em-blema «Dorme ch'avete intellerto d'amo-re», inteiramente escrita nessa medida.Mas o grande génio da chamada cançãoitaliana foi Petrarca, criador de um mo-delo cornpositivo dotado de um valor ca-nónico absolutO que se estende até aoromantismo; o que se deve à mestriacom que soube superar a mecanicidadede um esquema estrófico repetido regu-larmente, tirando partido da harmoniaentre feitura técnica e intimidade dossons, e fazendo brotar as estrofes suces-sivamente umas das outras, num fluircontínuo.

A C. italiana, que teve como primeirocultor, em Portugal, Francisco de Sá deMiranda, é formada, regra geral, poruma série de estâncias, 5 ou 7, por vezesem maior número, cada uma das quais seencontra dividida por 2 partes, a fronte,espécie de exórdio onde são apresenta-dos Zoei a re e Zoei a persona, e a sirima,onde são desenvolvidos os temas ante-riormente apresentados. A fronte, porsua vez, subdivide-se em 2 pés, cujosversos têm a mesma estrutura métrica.Também a sirirna é divisível em 2 partesiguais e simétricas. Liga-se à fronte atra-vés do verso inicial, designado como ver-so-chave, que retoma a rima do último.A estrofe final, chamada comiato, repeteo esquema métrico de uma destas partes.

A partir do romantismo, os moldesem que é vazada a C. fazem-se muitomais livres, flexíveis e variados. A asso-ciação entre texto literário e melódicovolta a estar em voga, como o simbolizao canto heróico da M arselhesa, ou o re-crudescente interesse que os músicoseruditos manifestam por este género de

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cornposrçoes. Com o Victor Hugo deChansons des rues et des bois e o Verlai-ne de La chanson grise, a C. abre-se à ex-pressão de todas as emoções. Entre nós,Guerra Junqueiro foi um dos cultoresdesta forma lírica que melhor soube ex-plorar as sugestões de Hugo.

A criação do café-concerto, na Françade 1846, consagra definitivamente a suapopularização. Durante a II GuerraMundial, Montmartre e o Quartier Latinenchem-se de cabarés onde são entoadascanções da Resistência, e, no imediatopós-guerra, o espectáculo do rnusic-balltrauteia alegres melodias pelos quatrocantos do mundo. Hoje em dia, a noçãode C. é indissociável da de texto musica-do, numa variedade de registos que vaidesde a C. patriótica à C. engagée e aonacional cançonetismo. Mas, desta feita,é o uso de tecnologias como o microfo-ne, a rádio, a gravação, ou o sintetizador,a ditar as suas regras.BIBLIOGRAFIA: A. Jeanroy, Les origines de lapoésie lyrique en France au Moyen Age, Paris,'1925; R. Dragonetti, La technique poétique destrouoêres dans la chanson courtoise. Contribution àl'étude de la rhétorique médiévale, Genebra, '1979;M. Fubini, Metrica e poesia. Lezioni sulle formemetriche italiane, Milão, '1975.

Rita Marnoto