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ENEGRESCÊNCIA
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ENEGRESCÊNCIA
PerSe Editora
São Paulo, 2013
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À minha família, em especial, à minha mãe
Vera, que sempre esteve apreciando os meus
poemas.
David Alves Gomes
Ao meu padrinho e tio Luiz Gonzaga in
memorian e à minha família.
Lidiane Ferreira
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“A escolha de tornar-se um intelectual negro é
um ato de auto-imposição da marginalidade.”
Cornel West
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Prefácio
A primeira vez que tive contato com os
poemas de Lidiane Ferreira foi em sala de
aula, na disciplina Etnicidade e Literatura
Brasileira, ministrada em meu estágio docente.
A leitura foi feita por seu companheiro de luta
e de vida, David Alves Gomes. Naquele
momento percebi a potência da escrita dessa
jovem poetisa, até então não sabia que David
também escrevia suas enegrescências. O
convite para fazer o prefácio do primeiro livro
desses escritores me deixou surpresa e feliz,
sinto-me honrada por descrever um pouco da
beleza das palavras negras descrita de uma
forma fascinante, e ao mesmo tempo revoltosa.
Força e beleza, delicadeza e a resistência,
contrastes que se complementam no universo
múltiplo de raízes africanas.
Os poemas que compõem esse livro
deságuam nas almas negras, despertam
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emoções que há muito tempo estavam
trancadas nos porões da memória, pela
hipocrisia da sociedade brasileira, palavras que
são como armas, como alvos certeiros em
questões que nos são tão caras, nós negros, que
não somos representados na historiografia
brasileira. Liberdade não só de circular pelos
lugares, mas de vivenciar determinadas
experiências.
O livro é dividido em dois momentos
que se alternam: o primeiro desvela os escritos
de Lidiane, o segundo o de David, trajetórias
diferentes, mas convergentes, de histórias que
calam profundo na subjetividade do leitor
ideal, a população negra, o título não nega:
Enegrescência. Mas não se engane, a poesia
não está restrita a um leitor, a leitura está
aberta a todos, e convidamos à viagem, desde
que reconheçam a proposta, não são poemas
para acomodar as almas cansadas, não são
simplicidades, e sim, chamamentos, de
resistência, de luta e revolta, desalinhando
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costuras históricas, e não o contrário, a
verdade dói e nem todos estão preparados para
ouvi-la.
Os poemas de Lidiane mostram os
questionamentos sobre as representações e a
identidade negra, odes como Luto, Oculta raiz
robusta, Transform-ação, Canais afribrancos,
revelam a dor de milhares de famílias que
veem sonhos negros cravados no asfalto, sem
esperança de retorno, apontam as dificuldades
de inserção do negro na sociedade. Como se
vê em um espelho que não reflete a imagem
desejada, em um mundo povoado de
essências? Gritos de resistência, de libertação,
contestando as “verdades-veleidades”
disseminadas na sociedade, preto do morro é
ladrão, mulher negra só um corpo sexualizado,
e as costuras seguem na contramão das
tessituras históricas, rasurando e enegrecendo
as brancas histórias nacionais, “Quebrando
fortes cadeados enferrujados/Mãos calejadas
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são/as chaves da libertação/de mais uma que
luta contra/ os princípios dessa nação.”
Já os poemas de David trilham o
caminho da transgressão, questionam as bases
de uma sociedade padronizada, rasurando a
língua, status que define o indivíduo, podendo
marginalizá-lo em determinados contextos. O
poema Colé é agressivo, penetra na ossatura
linguística de nosso cotidiano, quebrando a
rigidez da nossa fala, inserindo outras
perspectivas, outros mundos, outras
linguagens, “Colé de mermo? Minha língua é
essa! A periferia se entende!”, os
marginalizados têm sua própria língua e
rejeitam os padrões castradores, a vigilância, a
representação estereotipada.
A poesia ressignifa espaços, como o
cais, por exemplo, lugar tão sofrido para o
povo negro, assim como o navio em Atlântico
Negro de Paul Gilroy, aponta na direção de
outros movimentos, mostra as raízes africanas,
os saberes, mudam os rumos, revertendo dessa
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forma a imagem de “coitados” criada e
cristalizada por outros poetas canônicos.
Rumos e Ciclos são gritos de alforria, de
rebeldia, não sigo seus padrões, faço meu
próprio destino, crio minhas próprias histórias,
enegreço seus brancos papéis.
A obra versa sobre as memórias negras,
sobre as dialéticas e os preconceitos vividos
pela população negra. Estrelas, protagonistas,
princesas, as representações apontam outras
possibilidades de corporeidade para os olhares
negros, outras trajetórias, outras perspectivas.
Seja bem-vindo a um mundo negro de
escrita, a escrevivência de Conceição Evaristo,
na poesia de Lidiane Ferreira, e a escrita
revolta, resistência, de José Carlos Limeira, na
poesia de David Alves Gomes.
Ana Maria Silva Carmo
Mestranda em Literatura e Cultura pela Universidade
Federal da Bahia, integrante do projeto EtniCidades:
escritoras/es e intelectuais afro-latinas/os.
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David Alves Gomes
A mente faz curvas
“Quero sexo!
Apenas!
Com uma negra sensual…
O seu corpo curvilíneo
Apaga a sua cabeça.
E tem cabeça?”
Como não?
A minha cabeça
Não deixará que possua
O meu corpo.
Curvilíneo pode ser (ou não),
Mas minha mente circula
Pelos quilombos…
Encontra a sua projeção…
Cabecinhas retilíneas
Não entrarão em mim:
São tão pequenas
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Frente à grandeza
Da minha negritude.
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Lidiane Ferreira
V ABUSO COLONIAL: F
I E
N PRETA M
G I
A N
N I
Ç N
A
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Lidiane Ferreira
Afogamento
Microbactérias abraçam
aquele emaranhado de células-tronco
afogado no vaso sanitário
em uma casa de barro…
excreção de uma mulher
do subúrbio ferroviário.
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David Alves Gomes
Afro-caminhos
A sua diferença
Não me incomoda.
Nem a sua pele
Nem o seu cabelo
Nem a sua MPB
O que me perturba
É o seu clareamento
Até em você mesmo
Tem medo de empretecer?
Tem medo de saber-se preto?
Tem medo dos afro-caminhos
Que lhe invadem na calada da noite?
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David Alves Gomes
Águas
Ouça o ruído das águas
Das subterrâneas mensagens
Que preenchem
Todo um vazio…
As águas contidas
Atravessarão os poros,
Destruindo a crosta
Até ontem eterna…
Águas represadas,
Surgidas do suor dos escravos:
Enchentes ignoradas
Que alagarão a palidez.