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1
Enfrentando os desafios Político
Institucionais de Belo Monte
Uma análise dos pontos de tensão antes, durante e depois do
licenciamento ambiental da Usina Hidroelétrica de Belo Monte.
Clínica de Direitos Humanos e Empresas Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas
Ana Carolina Bracarense, Ana Luiza Bandeira,
Leonardo Massi, Mariel Sato, Olavo Rossi,
. Stella Kusano e Tamara Brezighello
2
Indíce
I ) Introdução ......................................................................................... 03
II) Breve contexto e justificativa para as questões a serem tratadas ..... 05
i) Leilão ................................................................................ 05
ii) BNDES ............................................................................. 07
iii) Questão Indígena .............................................................. 14
iv) Ministério Público Federal ............................................... 16
III) Análise dos pontos de Tensão a partir do Fluxograma ................... 17
IV) Análise das Ações Civis Públicas a partir da Tabela ...................... 23
i) ACPs relacionadas às comunidades e regiões afetadas ..... 25
ii) ACPs relacionadas à questão indígena .............................. 28
V) Conclusão ......................................................................................... 30
3
I) Introdução:
O presente trabalho tem como principal objetivo fazer um levantamento das
ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) do Pará quanto
a questões sociais e ambientais relacionadas à construção da Usina Hidrelétrica
(UHE) de Belo Monte, buscando, através desse estudo, propor uma mudança no
enfoque crítico que se tem dado ao processo de licenciamento ambiental e de respeito
às condicionantes da obra. Propõe-se, para isso, um estudo legal qualitativo que irá
identificar os argumentos apresentados em relação aos instrumentos de controle de
impacto – tanto no âmbito ambiental, quanto no social, incluindo-se nesse espectro as
contingências envolvendo as populações indígenas –, com ênfase nas razões para a
suspensão da obra.
A relevância de se estudar qualitativamente os argumentos trazidos pela
procuradoria da República no Pará reside não somente em suprir a ausência de
qualquer outra pesquisa que faça esse tipo de análise, mas principalmente em trazer
para o debate uma apreciação crítica dos diferentes momentos em que são
identificáveis os variados impactos da obra e os correspondentes custos a serem
suportados em função dessas contingências ("pontos de tensão"). Sabe-se que esses
custos supervenientes acabam por encarecer substancialmente a obra como um todo,
não somente no aspecto econômico, mas também no aspecto politico e social. Sabe-
se, também, que a forma comumente adotada de solução posterior dessas
controvérsias acabam por se mostrar insuficientes na solução efetiva dos diversos
problemas que orbitam uma obra de tais proporções - haja visto, por exemplo, o
grande volume de ações civis públicas visando ao embargo das operações de Belo
Monte.
Diante disso, o objetivo da pesquisa é, a partir da apuração desses custos,
sugerir a sua integralização já nas fases iniciais dos estudos de viabilidade, de
negociação e contratação da obra, de forma que esses impactos possam ser
previamente considerados, reduzindo-se o custo total da obra, e não remediados
posteriormente, pela via das ações civis públicas. Assim, é possível que o trabalho
possa ser aproveitado tanto pelos empreendedores privados, tradicionalmente voltado
à apuração dos seus custos financeiros e judiciais relacionados ao megaprojeto,
4
quanto pelos agentes públicos, no estudo dos custos institucionais e políticos dele
decorrentes.
Acredita-se que esses diferentes momentos podem ser identificados por meio
da construção de um fluxograma histórico - que parte dos primeiros estudos do
potencial hidrelétrico da região do Xingu, e vai até a etapa de concessão da licença de
operação de Belo Monte, dentro do processo de licenciamento ambiental -, resultando
na formação de um mapeamento dos importantes momentos de tomada de decisão ao
longo de todo do tempo de vida do projeto.
Assim, estabelecidas no fluxograma as diferentes etapas do processo de
viabilização e operação da obra, e destacados os pontos de tensão ao longo desse
fluxo temporal, a análise do mérito das questões trazidas pelo MPF do Pará em juízo
permitirá vislumbrar quais pontos de tensão foram efetivamente materializados, na
forma de ações judiciais. A partir disso, procura-se demonstrar que os ônus a serem
repartidos entre o poder público e o setor privado, bem como os momentos de tomada
de decisões relevantes, na realidade ocorrem em diversas fases da regulamentação da
obra, seja antes, durante ou depois do processo de licenciamento ambiental.
A principal motivação para a elaboração do presente trabalho é que a atual percepção
do processo de licenciamento ambiental de projetos de infraestrutura hidro-energética
como um procedimento complexo, e que deve ser simplificado em nome da
"celeridade", é equivocada. Além disso, também suspeita-se ser errôneo o
entendimento de que as etapas do processo de licenciamento da obra, por meio da
criação e imposição de condicionantes, consistem em mecanismos suficientes para
abarcar a efetiva mitigação dos impactos sócio-ambientais1. Isso porque, como
pretende-se demonstrar, os impactos da obra e os custos a eles associados remetem
aos mais diversos momentos de vida do projeto.
1 Existem diversos Projetos de Lei em tramitação na Câmara que revelam uma concentração de críticas em cima
das condicionantes impostas à obtenção das Licenças (Prévia, de Instalação e Operação). Dentre os mais recentes,
pode-se verificar uma que propõe um processo de licenciamento ambiental diferenciado para hidrelétricas. Dentre
outras considerações o parlamentar líder da Comissão do PL alega que “sob a bandeira de conceitos
constitucionais de sustentabilidade e equilíbrio ambiental, observa-se no processo de licenciamento a “demora
injustificada, exigências burocráticas excessivas, decisões pouco fundamentadas e, por vezes, a contaminação
Ideológica”.
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/MEIO-AMBIENTE/449075-COMISSAO-
DEBATE-LICENCIAMENTO-AMBIENTAL-DIFERENCIADO-PARA-O-SETOR-ELETRICO.html. Acesso
em: 02/12/2013
5
II) Breve contexto e justificativa para as questões a serem tratadas
i) Leilão
O setor elétrico brasileiro, nas últimas duas décadas, passou por duas reformas
em seu marco regulatório. A primeira delas se deu com a edição da Lei 9.648/1998,
que determinava a desestatização das empresas elétricas. A segunda reforma ocorreu
com a edição da Lei 10.848/2004, cuja regulamentação da comercialização e geração
de energia elétrica e do processo de outorga de concessões é dada pelo Decreto
5.163/2004.
Nesse cenário legislativo, a comercialização de energia elétrica é feita em dois
ambientes: o Ambiente de Contratação Regulada (“ACR”) e o Ambiente de
Contratação Livre (“ACL”), conforme o art. 1o, §1
o da Lei 10.848/2004. Neste último
ocorre a livre negociação da compra e venda de energia elétrica, podendo os grandes
consumidores escolherem seu próprio fornecedor de energia elétrica (agentes de
comercialização ou agentes de distribuição).
Por sua vez, no ACR é assegurada maior proteção aos consumidores de menor
porte em termos de garantia de efetiva distribuição de energia pelos agentes
distribuidores (art. 2o, II, Lei 10.848/2004). Tal se dá por intermédio de leilões
promovidos, direta ou indiretamente, pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(“ANEEL”) para que os agentes distribuidores adquiram, de forme transparente, a
energia elétrica destinada ao suprimento de seu mercado.
Os leilões podem se referir tanto à energia elétrica proveniente de
empreendimentos de geração existentes (são estes os chamados “leilões de energia
velha”) quanto de empreendimentos de geração novos (por sua vez, denominados
“leilões de energia nova”). Em ambos os casos, a o critério de decisão pela
contratação é o de menor tarifa, e não mais o da maior oferta pela utilização dos
recursos hídricos2.
Especificamente, no caso da UHE Belo Monte, ocorreu, em 20 de abril de
2010, um leilão de energia nova, que originou a celebração dos contratos (i) de
concessão de uso de bem público com duração de 35 anos; e (ii) de comercialização
2 REGO, Erik Eduardo. Usinas hidrelétricas “botox”: aspectos regulatórios e financeiros nos leilões de
energia. Dissertação apresentada no Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia – PIPGE. São Paulo:
USP, 2007, p. 61.
6
de energia elétrica no ACR. Estes dois instrumentos contratuais servem ao objetivo do
Poder Público de equilibrar “a maximização dos pagamentos à União e a minimização
do impacto do preço da energia elétrica aos consumidores regulados” 3.
Apesar do intuito de proteção aos consumidores de menor porte ser algo que
não deve ser menosprezado, o modelo de contratação pública utilizado no setor
enérgico é guiado por um critério de seleção (a menor tarifa) que exclui, tanto do
edital quanto da contratação posterior, uma série de exigências de proteção à direitos
humanos que poderiam atuar como condicionantes para cada uma das fases do
empreendimento – inclusive, do próprio leilão.
Considerando que a opção das empresas por um determinado projeto de
infraestrutura depende da alocação de riscos entre o setor público e o privado, é
importante que todos os custos sejam calculados. Dentre estes custos, incluem-se as
possíveis violações a direitos humanos, que se materializam, principalmente, em
ações civis públicas. A antecipação das obrigações das empresas para com os direitos
humanos em decorrência do empreendimento já em etapa de estudo de viabilidade e
de produção de edital poderia tornar a relação contratual entre a empresa e o Poder
Público mais eficiente, bem como tornar mais estável a relação da empresa com a
comunidade afetada.
Na esfera ambiental, a falta de previsibilidade das obrigações impostas à
empresa ou ao Poder Público em decorrência do licenciamento ambiental ou de ações
judiciais (que, em sua maioria, como aqui será evidenciado posteriormente, incidem
sobre o descumprimento de condicionantes do licenciamento ambiental) gera uma
desequilíbrio contratual significativo para ambos os contratantes. Um exemplo é a
necessidade de revisão do valor da tarifa de energia acordada em razão da paralisação
da obra pela concessão de liminar pelo Poder Judiciário.
O planejamento de uma agenda que contemple obrigações ambientais e sociais
para com a comunidade afeta, já em fases anteriores ao licenciamento ambiental do
projeto, nesses termos, teria o potencial de gerar externalidades positivas para todos
aqueles que estão direta ou indiretamente envolvidos com o empreendimento.
Isso, no entanto, ainda não é praticado no cenário brasileiro, o que induz ao
questionamento do por quê as empresas ainda participam de leilões de megaprojetos
3 Idem, p. 126.
7
de infraestrutura mesmo não havendo compartilhamento de riscos no edital. Algumas
hipóteses são: (i) a ocorr ncia de um erro de avaliação na tomada de decisão pelo
setor privado; (ii) considerar que a questão ambiental e ou social ser tão
problem tica que se elevar ao status de problema nacional (vale ressalvar que tal
atitude decorre sobretudo do fato de que aqueles que empreendem tais projetos de
grande porte tem significativa tradição em contratar com o poder público) e (iii) a
efetiva presença do poder público (direta, por meio de empresas membro do
consórcio, e indireta, por meio do financiamento via B E ) promover por si só a
alocação dos riscos.
Não há nada que impeça a inserção de políticas públicas voltadas à proteção
dos direitos humanos e do meio ambiente nas contratações públicas. Ocorre que a
lógica das decisões do governo referentes às UHEs tem um caráter individualista, no
sentido de serem as diferentes etapas do processo de estudo de construção e
construção propriamente do empreendimento delegadas a diferentes órgãos públicos
que não se comunicam. Infelizmente, constraints externas, como o Ministério
Público, ainda parecem ser mais eficientes para afetar a tomada de decisão do Poder
Público.
ii) Banco Nacional de Desenvolvimento (“BNDES”)
É sabido que, desde a década de 1950, a maioria dos empreendimentos
brasileiros, privados ou públicos, vêm sendo suportados pelo BNDES. O BNDES é
uma empresa pública federal e, atualmente, representa o “principal instrumento de
financiamento de longo prazo para realização de investimentos em todos os
segmentos da economia, em uma política que inclui as dimensões social, regional e
ambiental”. Em linhas gerais, o objetivo do BNDES é financiar projetos de
investimentos, aquisição de equipamento e exportação de bens e serviços, atuando
também de forma a fortalecer a estrutura de capital das empresas privadas. Nas
diretrizes de seu Planejamento Corporativo 2009/2014, foram eleitos como aspectos
mais importantes do fomento econômico no contexto atual, a inovação, o
desenvolvimento local e regional e o desenvolvimento socioambiental4.
4 http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/index.html
8
Bancos estatais, como o exemplo do BNDES, são utilizados, muitas vezes,
para suprir crédito e capital quando o setor privado não o faz. Entretanto, em diversos
casos, esses bancos, que deveriam ser um meio temporário de promover o
desenvolvimento, acabam por se tornar um agente econômico importante, passando a
atuar em conjunto com grandes empresas em setores mais lucrativos do mercado.
Na verdade, a presença do Estado como um estratégico agente financeiro é
característica marcante do capitalismo brasileiro, historicamente dependente do
Estado. Desde os primórdios das políticas de desenvolvimento nacional, diante da
carência das fontes privadas de capital, constituiu-se um modelo em que o Estado
atuava como indutor e regulador institucional do sistema de financiamento5, atuando
basicamente em setores da indústria de base e de insumos básicos (energia, mineração
e siderurgia, petroquímica, telecomunicações). Só para o setor de energia elétrica,
entre 2003 e 2012, o BNDES já concedeu financiamentos no total de R$ 121,7
bilhões para mais de 535 projetos, sendo 353 empreendimentos de geração, 86 de
transmissão, 77 de distribuição e 19 projetos de eficiência energética, projetos esses
que, juntos, representaram investimentos totais da ordem de R$ 204,7 bilhões.
Não por acaso, sabe-se também que é o próprio BNDES o maior agente
financiador do projeto de implementação da UHE Belo Monte, sendo, inclusive, o
financiamento aberto para o projeto o maior tem toda sua história. Em 16/06/2011, o
Banco assinou um primeiro empréstimo ponte no valor de R$ 1,1 bilhão a favor do
Consórcio Norte Energia S.A. (NESA), seguido de um novo financiamento, em
fevereiro de 2012, de R$ 1,8 bilhão, repassados pela Caixa Econômica e pelo Banco
ABC S.A. Finalmente, em novembro de 2012, o BNDES anunciou a aprovação de um
empréstimo no valor de R$ 22,5 bilhões, totalizando assim mais de R$ 25 bilhões
destinados somente ao projeto de Belo Monte.
Caracteristicamente, nesse típico arranjo de liderança estatal, as decisões
alocativas dos recursos residem na mão dos agentes públicos, sendo recorrente a
associação das decisões desses agentes a motivações político-partidárias, que sugerem
a captura da instituição por interesses privados. E muito embora esse formato tenha
funcionado como uma importante alternativa de superação das falhas de mercado,
esse modelo padece de problemas que são comuns aos arranjos dessas localidades,
5 TAUTZ, Carlos et all. O BNDES e a reorganização do capitalismo brasileiro: um debate necessário., p.1.
Disponível em: <http://www.riosvivos.org.br/arquivos/site_noticias_77225852.pdf>. Acesso em: 11/06/2013.
9
fundados em bancos públicos, mas com diversos desafios estruturais e, sobretudo,
institucionais. Entre as principais deficiências institucionais, destacam-se a frouxa
estrutura de governança e a ausência de um mecanismo público de controle e
fiscalização do processo de financiamento e das próprias decisões alocativas dos
agentes públicos, problemas típicos de uma estrutura carente de accountability, isto é,
uma estrutura capaz dar respostas às demandas oriundas de diversos setores
diretamente impactados pelos projetos que o Banco financia.
A propósito, a despeito das Resoluções 2023/10 e 2025/10, aprovadas por sua
Diretoria Executiva, que instituíram a nova Política de Responsabilidade Social e
Ambiental e uma nova Política Socioambiental do Sistema BNDES, o banco ainda
não conta com um guia definido e claro de salvaguardas socioambientais para orientar
financiamentos para o setor hidrelétrico6.
Em outubro de 2010 e novembro de 2011, o Banco também recebeu
notificações extrajudiciais assinadas por diversas organizações da sociedade civil,
com advertências sobre os riscos financeiros, legais e de reputação de seu
envolvimento no financiamento do Complexo Belo Monte, sem que isso tenha
provocado mudanças efetivas na postura da instituição7.
De fato, constata-se que até hoje o Banco não dispõe de um sistema
transparente de monitoramento e avaliação do cumprimento de condicionantes de
licenças ambientais, de violações de direitos humanos, da legislação ambiental e
demais impactos socioambientais de empreendimentos como o aqui estudado.
Ademais, o recorrente descumprimento de condicionantes das licenças ambientais
durante a execução da obra, sem que isso tenha afetado as decisões do Banco quanto à
continuidade do financiamento do projeto Belo Monte, gera a sensação de conivência
da instituição com relação aos impactos e contingências ocasionados pelo
empreendimento.
Nesse atual contexto, portanto, não é difícil perceber o crescimento das
discussões e das pressões em direção à própria responsabilidade do BNDES pelos
diversos efeitos socioambientais provenientes projeto do Complexo Belo Monte,
tendo em vista sua qualidade de principal financiador da obra e considerando que a
6 Representação ao Ministério Público Federal sobre a atuação do BNDES no financiamento do Complexo
Belo Monte. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/sites/default/files/documentos/representacao-bndes1.pdf>.
Acesso em 09/12/2013. 7 Idem.
10
concessão do financiamento deve estar atrelada ao respeito às condicionantes
ambientais e sociais. A propósito, no ordenamento jurídico brasileiro, a Lei
6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece em
seu art. 4º, inciso I, como um de seus objetivos, a compatibilização do
desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente
e do equilíbrio ecológico8, de modo que esta seja uma condição do próprio processo
de desenvolvimento, e não tratada como um aspecto paralelo das políticas públicas.
Nessa perspectiva, cumpre ao Sistema Financeiro Nacional, através das
instituições financeiras que o compõem, o dever de defesa e de preservação do meio
ambiente, na forma com que prevê o artigo 225 da Constituição Federal9. Com efeito,
se acredita que o dinheiro que financia a produção e o consumo fica atrelado à
moralidade e à legalidade dessa produção e desse consumo, pois a destinação do
dinheiro não é, evidentemente, neutra ou destituída de qualquer juízo de valor sobre
os efeitos do projeto financiado10
. Ora, nem recursos privados, nem recursos públicos
podem financiar a degradação do meio ambiente ou projetos relacionados a práticas
8SOUZA, Paula Bagrichevsky de. As instituições financeiras e a proteção ao Meio Ambiente. In Revista do
BNDES, v. 12, n. 23, jun. 2005, pp. 267-300. Disponível em: <
http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev23
12.pdf>. Acesso em: 09/12/2013 9 Constituição Federal:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para
as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e
ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas
à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem
risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo
com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas
ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que
assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias,
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que
não poderão ser instaladas 10 SOUZA, Paula Bagrichevsky de. As instituições financeiras e a proteção ao Meio Ambiente. Op. cit.
11
de violação de direitos humanos. Dessa forma, no atual contexto, é indispensável a
inserção da variável ambiental nas políticas de concessão de crédito das instituições
financeiras.
A propósito, na ocasião da Rio+20, em 2012, o Banco Central anunciou o
lançamento de duas propostas regulatórias para a adoção de uma política
socioambiental por todo o sistema financeiro no país, abrindo audiência pública para a
divulgação do conteúdo das normas e para participação direta dos diversos setores da
sociedade, incluindo especialistas e representantes da sociedade civil11
. A primeira
dessas resoluções pretende atribuir às instituições financeiras a obrigatoriedade de
programar uma política de responsabilidade socioambiental, e exige que tais políticas
atendam requisitos mínimos que contemplem os impactos socioambientais dos
produtos e serviços ofertados e o gerenciamento do risco socioambiental. A segunda
delas prevê a divulgação anual, por parte das instituições financeiras, de Relatórios de
Responsabilidade Socioambiental, que contenha informações relacionadas ao
cumprimento da política de responsabilidade socioambiental, de forma a possibilitar
ao usuário da informação compreender de forma clara as ações desenvolvidas pela
instituição nesse âmbito.
De fato, essas propostas normativas se alinham com o crescimento gradativo
da relevância do tema no Sistema Financeiro Nacional, sobretudo a partir da década
de 90, antes da qual os bancos não demonstravam estar preocupados com os aspectos
socioambientais das atividades de seus clientes. Em grandes bancos como o BNDES,
especialmente em razão da possibilidade de perdas financeiras, já é reconhecida a
importância na identificação e mitigação dos riscos socioambientais associados às
atividades financiadas, com vistas a evitar a vinculação da imagem da instituição a
empreendimentos com impacto socioambiental negativo12
. Além disso, na avaliação
do próprio presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, a incorporação de dos
valores socioambientais dever ser um “incentivo adicional para aumento de
efici ncia, diminuição de custos e ganhos de produtividade do setor financeiro”13
.
Ademais, por meio de diversos acordos voluntários, padrões e políticas
socioambientais já vêm sendo assimilados como uma realidade do mercado financeiro
11 GUIMARÃES, Glauco L. E. Boletim Responsabilidade Social e Ambiental do Sistema Financeiro.
Disponível em: < http://www.bcb.gov.br/pre/boletimrsa/BOLRSA201206.pdf>. Acesso em: 09/12/2013. 12 Idem. 13 Idem.
12
em todo mundo, há mais de vinte anos. Por exemplo, em 1992, por iniciativa do
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a Declaração dos
Bancos para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável foi assinada em
Nova York por mais de 30 bancos comerciais de 23 países que se comprometeram,
pela primeira vez, a observar a questão ambiental na análise e na concessão de
crédito14
.
Em 1995, o BNDES também ratificou sua participação como empreendedor
de políticas e práticas bancárias em harmonia com a promoção do modelo de
desenvolvimento comprometido com as necessidades das gerações futuras. Citam-se,
ainda, como evidência da percepção de que a incorporação da responsabilidade
socioambiental pode, até mesmo, traduzir-se em vantagens competitivas, a produção
de outros acordos como o Protocolo Verde de 1995, e a implementação de
compromissos e diretrizes como as estabelecidas pelos Princípios do Equador (2003),
que objetivam a observância de critérios mínimos de responsabilidade ambiental e
social para a concessão de crédito, pelas instituições privadas, para projetos com custo
total de R$ 50 milhões ou mais15
.
Na esteira dessa evolução, o processo de regulação das questões
socioambientais no Sistema Financeiro Nacional teve início em 2008, quando o
Conselho Monetário Nacional (“CMN”) editou a Resolução nº. 3.545, de 29 de
fevereiro de 2008, estabelecendo requisitos ambientais como precondição para
concessão de financiamentos agropecuários no bioma da Amazônia16
. A partir desse
marco, foram progressivamente editadas outras normas atinentes a essa preocupação,
que tratam de temas como crédito rural, trabalho escravo e inclusão do risco
socioambiental na avaliação de adequação de capital.
Na verdade, a sinalização da evolução e irreversível desse processo regulatório
se alinha inclusive com a cobrança da sociedade e com o próprio ordenamento
jurídico nacional. Enfim, a questão socioambiental emerge em uma posição
estratégica e determinante para a consolidação de políticas que se voltem à
estruturação de um sistema financeiro capaz de “promover o desenvolvimento
equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade”, conforme preconiza o art.
192 da Constituição Federal.
14 SOUZA, Paula Bagrichevsky de. As instituições financeiras e a proteção ao Meio Ambiente. Op. cit 15 Idem. 16 GUIMARÃES, Glauco L. E. Boletim Responsabilidade Social e Ambiental do Sistema Financeiro. Op. cit
13
Desse modo, por mais que se perceba que as políticas de regulamentação das
atividades do Sistema Financeiro Nacional tenham ainda um grande potencial a ser
explorado nesses aspectos, os padrões de responsabilidade social têm a alegada
capacidade de induzir comportamentos dentro do setor, de forma a direcionar recursos
para o apoio a projetos de desenvolvimento fundamentado não apenas em bases
quantitativas e na estrita lógica do mercado, mas também qualitativas. Essas novas
diretrizes devem ter especial peso para o BNDES, considerando que se de uma
instituição financeira cujo funcionamento não deve ser norteado segundo a lógica dos
bancos comerciais privados, mas sim deve atuar como um banco fomentador do
desenvolvimento nacional sustentável, em harmonia com toda uma regulamentação
pertinente, bem como com toda a ordem econômica conforme desenhada pelos
princípios da Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, portanto, natural que diversos segmentos da sociedade civil
tenham exercido pressões a favor da maior transparência do Banco em suas
operações, bem como do debate aberto acerca do modelo econômico de
desenvolvimento adotado atualmente para realização dos investimentos. Por isso,
considerando ainda que os pontos de tensão associados à implementação da UHE
Belo Monte emergem ao longo de diversas etapas do projeto, inclusive nas etapas de
estudos preliminares, é pertinente considerar a necessária presença do Banco no
acompanhamento de toda a vida do projeto. Primeiramente porque, segundo a nova
diretiva emergente para as instituições financeiras a partir da década de 90, os
critérios para a concessão de financiamentos, bem como mecanismos gerenciadores
de risco das operações, passarão a ser realidade e, portanto, uma nova estrutura de
governança e de transparência para com a sociedade serão tidas como fundamentais.
Em segundo lugar, porque, quando se estabelecem critérios definidos e alinhados à
observância de condicionantes socioambientais, os sucessivos repasses aos
Empreendedores de projetos financiados, especialmente os de alto impacto como os
da UHE Belo Monte, serão condicionados à sucessiva comprovação de que tais
atividades não estejam relacionadas a violações de direitos humanos e a impactos
ambientais perversos.
14
iii) Questão Indígena
O objetivo de estudar a questão indígena é o de mapear de que forma tem se
entendido o papel dos povos afetados no que se refere à sua participação passiva em
todo o procedimento de construção de Belo Monte. Essa posição passiva pode ser
avaliada através da análise de como o Ministério Público tem usado de ações civis
públicas para propor demandas referentes aos direitos indígenas e seus prejuízos
sentidos conforme a obra avança, já que não tem havido espaço para posturas ativas
de participação indígena, como oitivas e audiências públicas. Conforme as ações civis
públicas são propostas, pode ser traçada uma linha de assuntos indígenas e o objetivo
deste trabalho é ver como essas demandas se localizam no tempo e como elas têm
sido respondidas pelo Judiciário.
O Programa de Aceleração do Crescimento (“PAC”), criado em 2007,
promoveu a retomada de obras de grande porte de infraestrutura do país. Entre as
grandes obras previstas no plano estratégico deste programa está a UHE Belo Monte.
A construção de um empreendimento deste porte na região amazônica impacta
diretamente territórios indígenas, em suas dimensões ambientais e culturais.
Por isso, foram compreendidas medidas de proteção aos indígenas entre as
condicionantes do licenciamento ambiental, que deveriam ser cumpridas pelos
empreendedores. Antes mesmo da licitação deveria ter havido uma oitiva prevista
constitucionalmente pelo artigo 231, que dispõe:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
[...]
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional,
ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação
nos resultados da lavra, na forma da lei. (g.n)
15
A partir de 2007, quando a construção da usina recebeu impulso para sua
continuação, em função do PAC, os debates já existentes sobre os impactos
ambientais e sociais se intensificaram. No entanto, apesar do momento propício, não
foram realizadas as oitivas que deveriam ter ocorrido antes da publicação do Estudo
de Impacto Ambiental (EIA). Somente em 2009, quando o EIA é publicado, é que
começaram a haver audiências públicas mediadas pela FUNAI, que tinham o objetivo
de obter a concordância sobre os impactos previstos pelo documento, mas não de
debater outros possíveis impactos enxergados por eles.
Essas audiências tinham apenas o caráter formal, mas não foram debates com
vistas a de fato entender a condição indígena. Sobre esse ponto, destaca-se a Ação
Civil Pública interposta pelo Ministério Público Federal em 2009 (n.
2009.39.03.000575-6) que questiona as audiências realizadas em Altamira, por não
serem coerentes com os objetivos determinados pela Constituição Federal:
“Consciente do papel essencial da participação popular no licenciamento ambiental e
seguros que o atendimento meramente formal a um procedimento sem que se tenha
em vista a sua efetiva finalidade, não condiz com o comando constitucional (...)”.
Com base nessas audiências meramente formais, a FUNAI liberou a obra sem
saber quais os reais impactos sob a população indígena, em outubro de 2009. Em
fevereiro de 2010 o Ministério do Meio Ambiente concedeu a Licença Ambiental,
mesmo com estudos que mais tarde serão questionados judicialmente quanto à sua
incompletude e incapacidade de prever impactos sociais nas terras indígenas. Em
junho de 2011, o IBAMA também anuncia a liberação definitiva para a construção,
com o argumento de que 40 condicionantes já haviam sido atendidas.
Hoje, em 2013, alguns daqueles impactos sociais que teriam sido mitigados
pelo cumprimento das condicionantes e outros impactos que não chegaram a ser
previstos pelos documentos, já podem ser sentidos: a falta de saneamento básico nas
cidades que receberam um grande contingente populacional prejudica a saúde e a
higiene do local e graves alterações na qualidade da água; a ausência de professores
indígenas e a existência de escolas que só vão até o primeiro ciclo do Ensino
Fundamental; o prejuízo irremediável à cultura, dado pela alteração da rotina indígena
pelos impactos ambientais (incapacidade de pescar pela falta de peixes, por exemplo);
a forma indenizatória escolhida pelos empreendedores, sem considerar dimensões de
impactos culturais; entre outros.
16
O desrespeito à legislação se dá em níveis nacionais e internacionais. O não
cumprimento das condicionantes, a não realização das oitivas e as audiências públicas
feitas de forma puramente formal desrespeitam a Constituição de 1988 e o Estatuto do
Indígena (Lei 6.001/1973). Internacionalmente, o Brasil desrespeitou a Convenção
169 da OIT e por isso recebeu a condenação por uma medida cautelar pela Comissão
Interamericana de ireitos Humanos, para que “suspenda imediatamente o processo
de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impeça a realização de
qualquer obra material de execução até que sejam observadas condições mínimas
(...)”, como o processo de consulta17
.
Observar e entender como esse tipo de obra afeta a população indígena é
altamente relevante. Uma análise como essa permite que próximos empreendimentos
que possam ter efeitos semelhantes ao de Belo Monte (e que estão previstos como
metas para o desenvolvimento do país) atentem para esse tema e atuem de maneira
regular, entendendo suas responsabilidades diante do projeto a ser implementado e
evitando não só irregularidades, mas também desrespeito aos direitos dos envolvidos.
Uma melhor compreensão de questões como a dos indígenas garante maior segurança
jurídica e maior previsibilidade para o empreendimento, dois conceitos importantes
para o bom andamento de um investimento.
Além disso, a relevância desse estudo está no fato de se buscar uma análise
jurídica que permita entender os fundamentos para a defesa dos direitos dos
indígenas, especialmente a partir das ações civis públicas analisadas. Muitos desses
grupos indígenas sequer tinham contato com a população urbana, o que evidencia a
necessidade de um entendimento abrangente sobre como lidar com essa questão.
Tratar dos direitos dos índios vai além da necessidade de uma indenização financeira,
mas abarca também a preservação de uma cultura e de um patrimônio nacional,
considerações necessárias para o início e continuidade de uma obra que afete essa
população.
17 Comissão CIDH, MC 382/10.
17
iv) Ministério Público Federal
Os pontos expostos acima evidenciam a necessidade de haver um controle
sobre todo o processo da construção de Belo Monte. A fim de analisar como é feito o
controle na prática, será estudada a atuação do MPF, uma instituição que tem entre
suas funções a defesa do meio ambiente, dos indígenas e dos interesses difusos e
coletivos.
Essa atuação, que se dá por meio de ações civis públicas, está prevista no
artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
[...]
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos;
[...]
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações
indígenas;
É importante ressaltar que há outros legitimados para a propositura de ações
civis públicas, como por exemplo, associações civis constituídas há mais de um ano, e
que tenham a finalidade de proteção ao meio ambiente. No entanto, o fato de o MPF
ser uma instituição independente de outras, e com poderes de investigação, tem
permitido que ele assuma um papel de destaque na defesa dos interesses citados
acima.
Conforme se verificará mais adiante, algumas ações propostas pelo MPF têm
resultado em concessões de liminares que, por vezes, paralisam as obras, a fim de
assegurar o cumprimento de condicionantes. Esse meio de atuação do MPF gera
impactos gravíssimos às obras, visto que a supressão de um dia de trabalho já
representa um prejuízo financeiro altíssimo às empresas do consórcio.
Como esse é um meio bastante efetivo de fazer com que as condicionantes
sejam cumpridas e os direitos respeitados, o presente trabalho analisará as ações civis
propostas pelo MPF desde 2001, em um período pré-leilão.
18
III) Análise dos pontos de tensão a partir do Fluxograma (Anexo 1)
A partir do fluxograma apresentado no anexo1, é possível perceber que os
“pontos de tensão” materializados nas alegações presentes nas ações civis públicas
concentram-se em momentos anteriores ao início do processo de licenciamento
ambiental. No entanto, cumpre definir, preliminarmente, o que se entende por “pontos
de tensão”, segundo a abordagem adotada no presente trabalho. Acredita-se, que em
todo momento em que haja a criação de um espaço de negociação resultante da
interação entre agentes públicos, agentes privados e membros da sociedade civil –
apresentada pelos mais variados graus sancionatórios, seja em forma de diálogo,
alguma espécie de multa/advertência ou imposição estatal – surge o que se denomina
“pontos de tensão”.
Apesar de o termo se referir diretamente às questões de mérito das ações civis
públicas, não importa, para sua identificação, se a decisão sobre o mérito dessas
questões foi tomada a favor ou contra o MPF do Pará. Até porque a grande maioria
das ações civis públicas encontra-se em andamento no Judiciário, a serem apreciadas
em sede de recursos. Assim, o que importa, para a configuração de um ponto de
tensão, é alguma contingência trazida pelo MPF com fundamento na violação de
alguma norma. Na prática, os pontos de tensão têm como efeito o aumento do custo
global do projeto, em razão das sucessivas contingências que surgem no decorrer de
todo o ciclo de vida do empreendimento. Note-se, a alocação desses custos – que são
não somente econômicos, mas políticos, sociais, ambientais – é justamente o que, na
prática, se discute dentro dos referidos espaços negociais, que na maioria dos casos
envolvem os três setores da sociedade, concomitantemente.
O primeiro momento de tensão perceptível no fluxograma, ocorre em 1988,
em que Empreendedor apresenta seus estudos aos entes públicos, ANEEL e
Ministério de Minas e Energia. A partir do que se percebe da Ação Civil Pública nº
2009.39.03.000326-2, a concomitância na elaboração da Avaliação Ambiental
Integrada – que diagnostica questões socioambientais - e do Inventário da Bacia
Hidrográfica do Riu Xingu é imprescindível segundo o Manual de Inventário –
expedido pelo Ministério de Minas e Energia – vigente a partir de 2007. Essa foi
razão pela qual o Ministério Público Federal do Pará pede a nulidade do ato
administrativo que aprovou o Inventário, cujo mérito foi apreciado e aprovado na
ausência da Avaliação Ambiental.
19
Nesse sentido, nota-se que o próprio ato administrativo de aprovação dos
estudos preliminares ao licenciamento deve, para sua legitimidade, exigir que
questões socioambientais já tenham sido consideradas e colocadas em pauta, inclusive
para se considerar sobre a própria viabilidade do empreendimento. Ou seja, é possível
vislumbrar a criação, já nessa fase, de condicionantes que induzam à integralização
prévia desses custos como, por exemplo, a necessidade de se prever e incorporar com
a maior precisão possível os riscos socioambientais associados à obra, para que não
surjam prejuízos e urgências na fase de aprovação. Além disso, resta claro, a partir
das normas da Resolução 398/2001 da Aneel, que, para sua regularidade, o Inventário
deve levantar um mapeamento esmiuçado da área explorada, e isso inclui o conteúdo
da Avaliação Ambiental Integrada que, portanto, deve ser elaborada ao mesmo tempo.
As oitivas dos povos indígenas, bem como sua inclusão de um modo geral,
também podem ser consideradas um ponto de tensão. Na Ação Civil Pública nº
2006.39.03.000711-8, o MPF do Pará demanda a nulidade do processo legislativo do
Decreto nº 788/2005, que aprovou a implantação do projeto sem consulta às
comunidades indígenas afetas, violando-se os preceitos do art. 231, §3º da
Constituição Federal18
. No pleito, o MPF ressalta ainda que, enquanto minorias
étnicas, os povos indígenas são protegidos por diferentes convenções internacionais,
várias das quais o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção 107 da OIT, bem
como da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), ratificada pelo
Brasil em 2002.
Na realidade, segundo consta da ação em questão, o próprio Governo Federal
já admitiu em seu Plano 2015 que o empreendimento de Belo Monte requer o
cumprimento de exigências constitucionais, por causar interferências em áreas
indígenas, razão pela qual está sujeito a restrições constitucionais19
. Sabe-se, no
entanto, que a própria história aponta para a sensação de que indígenas não provam da
efetividade de uma voz ativa na elaboração, discussão e implementação de grandes
18 Consituição Federal:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
[...]
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das
riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. 19 A petição da ação civil pública em questão pode ser acessada em
http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2011/ACP%20Belo%20Monte%202006.pdf/at_download/file
20
projetos de infra-estrutura que envolvam a realocação de suas tribos e mudanças
profundas no modo de vida de sua população. Em conversa com Dinael Cardoso20
, no
Colóquio Internacional de Direitos Humanos realizado na Pontifícia Universidade
Católica (PUC-SP) em 2014, foi possível perceber que há um déficit de interação
entre os povos nativos e os agentes públicos. As medidas compensatórias pela
realocação de tribos ou até etnias inteiras estão longe de atender a expectativa desses
povos habitantes da Amazônia. Em transcrição literal de trecho da conversa gravada,
inael faz a seguinte comparação: “(...) não existe uma fórmula indenizatória ou
compensatória. O que foi tirado da gente não tem preço. (...) Mas como propor
compensações e pra onde nós vamos, acima de tudo? Não é nos oferecendo carros ou
dinheiro. Essa solução parece que voltamos à mil e quinhentos, quando os
portugueses nos ofereciam espelhos”. e fato, as sucessivas conting ncias
envolvendo a questão indígena na viabilização do empreendimento sugerem que,
antes de formas compensatórias ou indenizatórias, o que se almeja são meios
institucionais de inclusão e participação conjunta desses povos no próprio processo
decisório.
Afinal, se a população indígena é diretamente afetada pelos impactos
associados à implantação da usina, os efeitos das decisões políticas e econômicas
incidirão naturalmente em seu entorno, surgindo daí diversos riscos e externalidades
associados e que, da maneira como se apresentam no caso da UHE Belo Monte, estão
sendo majoritariamente suportados pelos povos locais. A partir da análise, realizada
pelo MPF, das notas taquigráficas da sessão do Senado Federal que aprovou o
Decreto nº 788, não passaram despercebidas, também, a pressa com que foi aprovada
do diploma e a forma clara como isso afronta o princípio constitucional de
participação dos indígenas, bem como os de transparência e publicidade, essenciais a
qualquer atuação do Estado em empreendimentos de tamanha magnitude e impacto
como a UHE Belo Monte.
Outra forte tensão ocorreu em 2001, quando o MPF do Pará entra com ação
questionando a competência da Fadesp (Fundação de Amparo ao Desenvolvimento e
à Pesquisa), pois nessa ocasião questionou-se o fato desse órgão não possuir
notoriedade e expertise técnica no concernente a projetos ambientais, cabendo tal
20 Indígena da etnia Arapium, habitante da porção amazônica do norte do Pará no município de Santarém e ativista
na defesa de Direitos Humanos para Povos Indígenas.
21
análise ao IBAMA, em competência exclusiva e originária. Os quase quatro milhões
de reais gastos na contratação da Fadesp para a elaboração do EIA/RIMA nada
valeriam sem a aprovação prévia do Congresso Nacional. A autorização deu-se em
um momento posterior, no entanto ela poderia nunca ter ocorrido. Esse risco poderia
ter sido melhor administrado se houvesse uma maior e mais profunda interação entre
os órgãos federativos competentes.
Além do conflito de competência em relação ao órgão licenciador e da
controvérsia levantada pela contratação da FADESP, a elaboração do termo de
referência, crucial para a obtenção da licença prévia, foi elaborada única e
exclusivamente pela Eletronorte, unilateralmente, sem a consulta dos demais órgãos
competentes. Isso poderia tornar nulo todo o processo, desde o próprio termo de
referência até todos os outros estudos prévios. Seria interessante que, em busca de
dirimir esse risco, desde o princípio todos os órgãos nacionais discutissem e
elaborassem conjuntamente do termo de referência. Essa colaboração é positiva, pois
se trata do legalmente estipulado e faria com que todos os requisitos fossem
cumpridos, além de garantir maior detalhamento dos mesmos. Ainda, é importante a
participação de vários órgãos pois eles podem atuar como fiscais uns dos outros e
apresentar questões específicas de suas áreas de atuação, o que geraria um termo de
referência completo e em conformidade com a legislação, impedindo quaisquer
problemas futuros que viriam a causar nulidade de todo o procedimento.
Em 2005 e 2006, outro ponto de tensão surge, novamente por conta dos povos
indígenas. O Empreendedor busca concluir seus estudos e o decreto 1785/05 autoriza
tal continuidade, o problema é que os povos nativos deveriam ter sido ouvidos para
que se completasse o estudo e isso não ocorreu. O ponto de tensão é visível no ano
seguinte em que o poder Judiciário concede liminar (requerida pelo MPF de Pará),
para que os indígenas fossem ouvidos. Seria interessante que, desde o primeiro
momento dos estudos até sua concretização final, o empreendedor levasse em
consideração aquilo defendido tanto pelas populações locais, quanto pelos povos
indígenas; isso beneficiaria não somente essas minorias, mas aceleraria o processo
como um todo, uma vez que, da forma que se gerencia atualmente, diversas Ações
Civis Públicas são impetradas pelo MPF e liminares são concedidas pelo judiciário,
isso faz com que a obra pare e recomesse diversas vezes causando prejuízos tanto
econômicos, quanto políticos ao desenvolvimento do projeto.
22
No período do leilão os pontos de tensão se intensificam, principalmente por
conta da desconsideração das audiências públicas realizadas em 2009 para a
concessão de Licença prévia. O IBAMA foi acusado pelo MPF de não verificar todas
as condicionantes da licença prévia, principalmente no que tange às populações locais
e graves danos ao meio ambiente. A tensão ocorre no momento em que se assina o
contrato do leilão e a licença prévia é concedida. É perceptível o fato de que os órgãos
agem independentemente, “empurrando com a barriga” uma questão que ser
levantada pelo Ministério Público. Viu-se, mais uma vez, o judiciário concedendo
liminar pela desconsideração dos posicionamentos defendidos pelas populações
locais. A materialização da demanda judicial poderia ter sido evitada caso tivesse-se
levado em consideração as críticas ao projeto manifestadas durante as audiências
públicas em momento anterior à concessão da Licença Prévia. Isso também aceleraria
todo o processo e torná-lo-ia mais barato, evitando os custos da ação judicial.
Após o leilão, questões de direitos humanos foram colocadas em pauta, tanto
pelo MPF quanto pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.
Questiona-se tanto o comportamento do IBAMA na concessão de Licença de
Instalação, desconsiderando todos os impactos gerados às populações locais, como o
BNDES, agente financiador crucial para o desenvolvimento da obra. O ponto de
tensão aqui é a relação do BNDES – como banco do governo – com as construtoras,
ao financiar obras que podem vir a causar graves danos sociais e ambientais, como
também o papel do IBAMA, órgão que tem como maior função a proteção do meio
ambiente e mesmo estando adstrito às Resoluções editadas pelo CONAMA e aos
princípios e diretrizes estabelecidos na Política Nacional do Meio Ambiente, vem
sendo conivente a alguns atropelos de ritos formais concedendo manifestando seu
aceite, por exemplo, à obtenção de Licença Prévia da obra de Belo Monte mesmo não
tendo sido observadas questões de ritos processuais administrativos, tal qual a análise
concomitante da Avaliação Ambiental Integrada e do EIA/RIMA – o que não foi
feito, pois a Avaliação Ambiental Integrada foi concluída em período bastante
posterior à conclusão do EIA/RIMA.
Dessa maneira, poder-se-á concluir a presente análise considerando por
demonstrado que a maioria dos pontos de tensão exsurgidos ao longo de todo o
espaço de tempo do planejamento (elaboração dos estudos prévios para averiguar a
viabilidade do projeto) e da execução (o período temporalmente representativo da
23
execução do projeto é o período em que se levou para concluir o processo de
licenciamento ambiental trifásico, contando desde o momento de obtenção da licença
prévia até a obtenção da licença de operação) do projeto da UHE de Belo Monte estão
em grande parte localizados no espaço temporal referente ao período de
planejamento. Ou seja, muitas das demandas que foram materializadas em forma de
Ações Civis Públicas questionam aspectos relacionados aos estudos iniciados desde o
final dos anos 80, anteriores à obtenção da licença prévia e ao início propriamente
dito do processo trifásico de licenciamento ambiental.
Isso pode ser um forte indício da insuficiência de soluções como as que vem
sido tentadas por via legislativa para mitigar os riscos advindos da construção de
Usinas Hidrelétricas, apresentadas em forma de Projetos de Lei que almejam
simplificar o processo de licenciamento ambiental especificamente para Hidrelétricas,
tornando-o mais célere e reduzindo o número de condicionantes a serem cumpridas
para a obtenção das Licenças (Prévia, Instalação e Operação). A mudança desse
enfoque crítico pode ser bastante agregadora no que tange projetos hidrelétricos que
estão por vir, prestando os agentes públicos e empreendedores privados uma maior
atenção nos possíveis pontos de tensão que exsurgem nos momentos iniciais do
projeto, nos primeiros estudos de viabilidade, pois como tentou demonstrar essa
análise os problemas apontados pelo MPF derivam de momento bem anterior ao
processo de licenciamento ambiental, revelando que as condicionantes impostas à
obtenção das Licenças não devem ser tratadas como o principal - e isolado - motivo
do travamento de tais megaprojetos de infraestrutura de matriz hidroenergética.
IV) Análise das Ações Civis Públicas a partir da Tabela (Anexo 2)
O fluxograma das obras da UHE Belo Monte evidencia que os pontos de
tensão entre o setor público e o privado não se concentram unicamente durante o
processo de licenciamento ambiental, mas também se materializam em momentos
anteriores. O estudo das petições iniciais das ações civis públicas relacionadas à
construção da UHE Belo Monte complementa qualitativamente tal indicação, haja
vista que permite identificar como o MPF do Pará tem atuado como agente de
constraint externo nos momentos de tomada de decisão.
24
Tal é o intuito deste capítulo, que se realiza na elaboração e respectiva análise
de tabela (ANEXO 02) que detalha as petições iniciais de 19 ações civis públicas
constantes da lista “Processos caso Belo Monte” (A EXO 03), fornecida pelo próprio
MPF do Pará.
Para tanto, foram utilizados 19 critérios, que estão elencados na primeira
coluna da tabela. Apesar de alguns deles não necessitarem de explicações – como, por
exemplo, os critérios “pólo passivo” e “ objeto da demanda” - há, no entanto, alguns
outros que o necessitam. ão eles os critérios: “impactos gerados”, “transpar ncia”,
“descrição das etapas e suas falhas” e “possíveis conseqü ncias da obra”.
O critério “impactos gerados” foi elaborado tendo em vista as violações
sociais, ambientais, econômicas e políticas que emergiram em razão das tensões nas
regiões e comunidades afetadas apresentadas pelo MPF do Pará.
Já “transpar ncia” foi algo pensado com o intuito de que ficasse evidenciado que, por
diversas vezes, o momento de tomada de decisão propositalmente exclui a
participação de agentes interessados e da sociedade civil como um todo. Nesse
sentido, a carência na divulgação de informações, que parece permear tanto fases
anteriores da construção da UHE Belo Monte, quanto a construção em si da usina
hidrelétrica.
O critério “descrição das etapas e suas falhas”, por sua vez, busca identificar
precisamente em qual momento do licenciamento ambiental ocorreu a violação
socioambiental que é levantada.
Por fim, o “possíveis conseqü ncias da obra” trata sobre os potenciais
impactos da construção da UHE Belo Monte caso o Poder Judiciário não acate o
pleiteado pelo MPF do Pará nas diferentes peças processuais.
Uma vez claros os critérios que poderiam gerar interpretações dúbias, se passa
à análise comparativa das petições iniciais das ações civis públicas apresentadas pelo
MPF do Pará no âmbito da construção da UHE Belo Monte. Neste momento, o
presente capítulo se subdivide em dois itens, sendo um deles exclusivamente dedicado
às petições iniciais que tratam de violações de direitos dos indígenas. Tal se deve em
razão das particularidades do status jurídico desses indivíduos, que lhes é atribuída
pelos arts. 215, §1o , 231 e 232 da Constituição Federal.
25
Alem disso, cabe ainda dizer que as petições iniciais em exame serão aqui
referidas por meio de uma numeração de 01 à 19, conforme ordem disposta no
ANEXO 02 que, por sua vez, segue aquela do ANEXO 03 – onde constam os
números processuais e a integra das peças.
i) Ações Civis Públicas relacionadas às comunidades e regiões afetadas
Neste item serão analisadas comparativamente as petições iniciais das ações
civis públicas de 01, 03 a 12 e 14, conforme numeração constante no ANEXO 02. As
ações civis públicas que tratam somente de questões indígenas serão analisadas em
item que segue.
No que tange o pólo passivo, é interessante notar que o IBAMA é elencado em
seis das ações em questão e a Eletrobrás em cinco. As construtoras responsáveis pelo
empreendimento da UHE Belo Monte, por sua vez, aparecem nominalmente apenas
em duas ações – a 04 e a 06 – e por meio do consórcio Norte Energia S.A. em três – a
11, a 12 e a 14.
As demandas do MPF do Pará, nesse sentido, se direcionam em grande
maioria ao Poder Público, representado pelo órgão institucional responsável pela
tomada de decisão, seja com ou sem o setor privado. Curioso, no entanto, que o
BNDES seja mencionado somente na petição inicial da ação 11, haja vista que a
instituição é responsável por parte significativa do financiamento do empreendimento
– o que a torna presente em diferentes estágios da obra.
No que diz respeito ao momento da demanda, se destaca a ação civil pública
04, dado que fora impetrada em momento anterior ao processo de licenciamento
ambiental. Mais especificamente, trata do momento do Estudo de Viabilidade
Técnico, Econômico e Ambiental da UHE Belo Monte. Assim, é única na qual a
relação entre as empresas construtoras se dava não pelo consórcio, mas sim por meio
de um Acordo de Cooperação Técnica celebrado também com a Eletrobrás.
A ação civil pública 07, por sua vez se destaca em relação ao objeto da
demanda. Isso porque almeja a responsabilização, por atos de improbidade
administrativa, de uma pessoa física – o Coordenador de Energia Elétrica Substituto
do IBAMA. Cabe ressaltar, além disso, que esta pessoa é a única elencada no pólo
passivo da ação.
26
Esse objeto de demanda do MPF do Pará se relaciona com aquele da ação civil
pública 06. Isso porque tal apresenta como um de seus objetivos a declaração de
nulidade do aceite do EIA/RIMA da UHE Belo Monte, proferido justamente pelo
Coordenador de Energia Elétrica Substituto do IBAMA.
No mais, ainda quanto ao objeto da demanda, a correção ou supressão de
violações aos direitos da população afetada são também alvos. O cerceamento à
participação popular efetiva no processo de licenciamento ambiental é presente nas
ações civis públicas 08 e 14. Nesta última emerge também o pleito por respeito à
inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5o, XI da Constituição Federal.
Quanto às condicionantes do licenciamento ambiental, se observa que, apesar
de a maioria das ações em questão não as mencionar, as ações civis públicas 11 e 12
englobam todas as condicionantes da Licença Prévia. Tal se deve ao fato de ambas
tratarem do cumprimento parcial ou descumprimento das quarenta condicionantes
gerais impostas pelo IBAMA. A ação 11, frise-se, trata ainda do cumprimento parcial
ou descumprimento das 26 condicionantes indígenas.
Os pleitos do MPF do Pará, bem como a inobservância de condicionantes do
licenciamento ambiental se materializam em razão dos impactos gerados pela UHE
Belo Monte nas regiões e respectivas comunidades afetadas. Estes impactos podem
ser agrupados em quatro categorias distintas. A primeira delas se refere à ausência do
devido processo licitatório e conseqüente assimetria informacional entre os atores
interessados, identificada nas ações civis públicas 01 e 04.
Uma segunda categoria alude aos impactos ambientais no Rio Xingu e sua
conseqüente influência no modo de vida das populações locais, que se verificam nas
ações 03, 09 e 10. Em razão da construção da UHE Belo Monte, melhorias de
infraestrutura são necessárias nas regiões afetadas. É disto que trata a terceira
categoria de impactos, identificada nas ações 11 e 12.
A quarta categoria dos impactos gerados que ensejam as demandas do MPF do
Pará diz respeito ao prejuízo da efetiva participação da população no processo de
licenciamento ambiental em razão de ilegalidades no aceite do EIA/RIMA (ACPs 06
e 07) e conseqüentes vícios nas audiências públicas que o tiveram como objeto de
discussão (ACP 08). No mais, nessa categoria, cabe destacar a ação civil pública 14,
27
que trata do cerceamento do acesso da população afetada às informações sobre
desapropriação e realocamento de pessoas.
A dificuldade no acesso à informação é matéria analisada na transparência. O
direito à informação emerge sobretudo a partir do momento em que houve o aceite do
EIA/RIMA, conforme se observa nas ações 06 a 08. Isso porque o aceite foi proferido
(i) sem que se atentasse às informações exigidas pelo Termo de Referência; e (ii) sem
os motivos para reformulação da decisão anteriormente dada pelo IBAMA, que
devolvia o EIA/RIMA por não estar em consonância com o Termo de Referência.
Nesse sentido, os estudos de impacto ambiental não terem sido divulgados a todas as
comunidades afetadas (ACP 08).
Não à toa, a declaração de nulidade do ato administrativo do aceite do
EIA/RIMA é um dos pedidos da ação civil pública 06, assim como a
responsabilização do Coordenador de Energia Elétrica Substituto do IBAMA é
pleiteada na ação 07. Quanto ao pedido desta última, vale ressalvar que trata de
obrigações a serem impostas para uma pessoa física. O mesmo ocorre na ação civil
pública 04, que traz em seu pólo passivo tanto as empresas construtoras quanto seus
gestores no momento de celebração do Acordo de Cooperação Técnica.
No mais, no que tangem os pedidos jurídicos das ações, se nota que muitas
vezes emerge a sustação do processo de licenciamento ambiental, bem como sua
especificidade – a declaração de nulidade ou suspensão dos efeitos de determinada
licença ambiental concedida pelo IBAMA. Esses pedidos são, inclusive, reiterados em
sede liminar.
As afinidades entre as demandas do MPF do Pará se estendem também à
legislação utilizada. Os arts. 1o, 5
o, 37, 225 e 176 da Constituição Federal são
dispositivos mencionados por diversas vezes, assim como a Lei 6.938/81, a Lei
7.347/85, a Resolução CONAMA 237/97 e a Instrução Normativa 184/2008 do
IBAMA.
Por fim, no que diz respeito às possíveis conseqüências da obra da UHE Belo
Monte, se observa que as ações 01, 11 e 12 tratam da intensificação de complicações
ambientais que alterarão o modo de vida das comunidades afetadas.
Nesse critério emerge mais uma vez, nas ações 06 e 07, a violação do direito à
informação no momento do aceite do EIA/RIMA. Isso porque as falhas de tal ação
28
impedem que a população obtenha informações corretas sobre o empreendimento e,
portanto, participe de seu debate público de maneira efetiva.
A ausência de informação também é presente nas conseqüências pensadas a
partir da ação civil pública 14, haja vista que a não disponibilização de informações
sobre a área a ser desapropriada agrava cada vez mais a situação de incerteza da
população quanto ao seu realocamento e indenização.
ii) Ações Civis Públicas relacionadas à questão indígena
Em seguida, serão analisadas comparativamente as ações civis públicas que
tratam da questão indígena (ACPs 2, 8, 10, 14, 15, 16, 17, 18, e 19). Embora algumas
delas já tenham sido abordadas anteriormente, visto que não tratam apenas da
população indígena, a presente análise buscará ressaltar os argumentos relacionados a
essa comunidade.
Como já mencionado anteriormente, o tema dos indígenas é extremamente
relevante considerando a localização onde se dá o empreendimento de Belo Monte.
Sendo uma das poucas regiões do país que possuem uma grande área natural
preservada, é também uma região com grande concentração de população indígena,
inclusive de algumas aldeias que não tinham contato algum com a população urbana.
Nesse sentido, é relevante observar que algumas das “tensões” tratadas nas ações civis
públicas analisadas a seguir indicam que em vários momentos da obra os indígenas se
viram prejudicados, seja por não atenção aos seus reais interesses, seja por não
cumprimento das condicionantes (que teoricamente deveriam, em alguma medida,
reparar os danos causados pelo empreendimento).
A análise dos pedidos das iniciais das ações civis públicas que tratam da
questão indígena evidencia a tentativa por parte do MP de impedir a continuação do
empreendimento em qualquer situação de descumprimento de deveres por parte das
empresas consorciadas, especialmente considerando que os impactos causados por
esses descumprimentos são responsáveis por grandes prejuízos à população indígena.
Sobre esse aspecto, os pedidos incluem medidas que visem cancelar a licença (ACPs
10, 15, 19) ou impedir que a licença de uma próxima fase seja concedida, ou ainda
que se dê continuidade a essa mesma fase (ACPs 2, 8, 10, 14).
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Os pedidos das iniciais, portanto, revelam uma preocupação por parte do
órgão público de que sejam garantidos os direitos dos indígenas. Além das
possibilidades mencionadas, também aparecem nos pedidos que as empresas
consorciadas sejam obrigadas a cumprir as condicionantes ou outras medidas
necessárias (ACPs 14, 16, 17, 18 e 19).
Quanto às demandas, cabe ressaltar que elas visam a responsabilização das
empresas consorciadas e, em alguns casos, de alguma autarquia como IBAMA ou a
FUNAI. As condicionantes refletem tanto prejuízos que já haviam sido calculados no
momento de elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, quanto novos prejuízos que
foram sendo descobertos na medida em que as novas licenças foram sendo emitidas.
Levando em consideração os pedidos feitos, pode-se observar que alguns
pontos relevantes de tensão são refletidos nos momentos em que o Ministério Público
decide interpor os pedidos. Eles se concentram em alguns eventos principais: antes de
haver o licenciamento ou após a concessão de alguma licença, haja vista que, como
mencionado, eles visam cancelar os efeitos de uma licença ou torná-la nula e/ou
impedir que uma licença seja concedida.
Nas ações civis públicas analisadas, verifica-se a interposição de ações antes
do licenciamento ambiental (ACPs 2 e 8), após a concessão de Licença Prévia (ACP
10), quando acaba de haver a emissão da Licença de Instalação (como foi o caso da
ACPs 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19).
É presente a argumentação do Ministério Público no sentido de ressaltar a
falta de atenção ao cumprimento dos direitos indígenas na aprovação das licenças,
tendo em vista que condicionantes previstas há muito tempo ainda não foram
cumpridas. São também muito repetidos os argumentos que ressaltam a
vulnerabilidade indígena diante da obra e o descumprimento das audiências públicas
que serviriam para debater formas de diminuição do impacto na vida dos povos
afetados. Obrigações de fazer e de não fazer, para conter o avanço da construção,
estão sempre acompanhadas de pedidos liminares que refletem a urgência no
cumprimento das ações.
É interessante observar que os momentos em que as demandas são interpostas
não são tão relevantes para identificar os pontos de tensão. Em relação às principais
questões analisadas nas ações, os problemas verificados em relação aos indígenas
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estão presentes em todos os momentos do processo. Desde o início, com a falta de
comunicação com os povos indígenas - e a consequente não inclusão dos interesses
destes nos estudos preliminares - até a implementação das condicionantes, que
acabaram por, em muitos casos, não serem cumpridas.
A análise permite constatar também que são poucos os casos em que as
liminares são concedidas e, ainda que sejam, as que possuem o efeito de paralisar as
obras duram por um período de tempo muito curto.
V) Conclusão
Os estudos para a construção da UHE Belo Monte se iniciaram em 1975, mas
o longo período de tempo para se analisar a viabilidade e os impactos do projeto não
foi suficiente para evitar diversos problemas sócio-ambientais ao longo da execução
do empreendimento. Nesse sentido, e diante da possibilidade de que sejam executados
outros projetos como esse em um futuro próximo, é relevante a análise de como se
deu o processo e quais as condições estabelecidas para que a UHE Belo Monte fosse
viabilizada.
A análise elaborada ao longo deste trabalho teve como objetivo entender, a
partir das ações públicas propostas pelo MPF do Pará, os argumentos utilizados para a
construção de instrumentos de controle sobre questões ambientais e sociais que
surgiram a partir do empreendimento de Belo Monte. Se buscou, em outras palavras,
entender os diferentes momentos em que os impactos da obra são identificados e
colocados em discussão através d ações civis públicas.
A partir dessa análise se observa que é altamente relevante que se criem outros
mecanismos, além das condicionantes do licenciamento ambiental, para abarcar a
mitigação dos impactos sócio-ambientais. Primeiro, porque as condicionantes nem
sempre levam em consideração as reais necessidades e os interesses envolvidos (no
caso dos indígenas, o cumprimento formal das audiências não foi o suficiente para
que se buscasse a preservação, por exemplo, da cultura e dos hábitos dos povos
afetados). Segundo, porque muitas condicionantes não são cumpridas e, ainda assim,
as licenças são concedidas - o que significa que diversos direitos estão sendo
desrespeitados em detrimento do andamento da obra e do suposto desenvolvimento
nacional.
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Os pontos de tensão evidenciados no fluxograma e na sua análise revelam que
ao longo de todo o processo, o desrespeito à direitos humanos e ambientais - alguns,
inclusive, decorrentes da falta de debate logo no início do projeto – foi considerado, .
O MPF foi, em grande medida, responsável por instaurar o debate, influenciando as
diferentes tomadas de decisão, conjuntas ou não, do setor público e privado.
Ocorre que o Poder Judiciário sozinho não foi capaz de proteger todos os
direitos e garantir o cumprimento de todos os deveres impostos. Isso pode ser um
indicador de que questões sócio-ambientais devem ser abarcadas durante todo o
processo de desenvolvimento do projeto. Por exemplo, as partes que são responsáveis
por se manifestar em defesa de alguma questão específica devem atentar para o
cumprimento da devidas obrigações que visem proteger certos direitos antes de
decidirem favoravelmente para a continuação da obra.
Esse relevante papel do MPF também foi demonstrado na análise das ações
civis públicas. Verificou-se que sua atuação se deu em todos os momentos do
processo de licenciamento, de maneira a evitar ilegalidades e impedir o
descumprimento de condicionantes. Embora poucas ações tenham sido julgadas
procedentes, a sua atuação é extremamente importante, pois exerce uma forte pressão
para que haja o cumprimento de deveres impostos ao longo do processo de
licenciamento. Mesmo nos casos em que houve concessão de liminar e, após dois
dias, tenha sido suspensa, o custo de dois dias de paralisação de obras já é altíssimo.
A importância de uma análise como a que se buscou fazer nesse trabalho está,
em grande medida, na necessidade de se estabelecer alguns critérios básicos e
necessários para a análise de impactos de obras como a da UHE Belo Monte. Tanto
para as empresas quanto para as comunidades afetadas é relevante que haja maior
segurança jurídica em relação aos direitos e deveres de cada um dos atores
envolvidos. Todos haverão de incorrer com custos para a execução do
empreendimento, no entanto, é necessário estabelecer um discernimento crítico para
decidir quais são os limites aceitáveis desses custos e quais são as mitigações
necessárias.
Além da necessidade de se repensar a condução do processo de licenciamento,
é relevante que sejam previstos meios de fazer um estudo realmente participativo
sobre os impactos da obra, ou seja, que sejam ouvidas as partes envolvidas e levados
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em consideração todos os interesses, com abertura para a discussão e com a abertura
de informação a todas as partes. A partir desse debate com a sociedade e seu
conseqüente estudo será possível avaliar os impactos a serem considerados e pensar
em condicionantes e/ou outros métodos de mitigação que sejam cumpridos nos prazos
devidos, evitando as ações no âmbito do judiciário e os custos de paralização da obra.