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revista da abem numero 6 setembro de 2001 Engajando-se na considerafOeS sobre a tecnica ea compreensao musical Cecflia Cavalieri FranQa Resumo: A partir dos referenciais filos6ficos da Educaryao Liberal e da Educaryao Vocacional, propoe-se uma reflexao sobre a tecnica e a compreensao musical. Eslas sao vistas como aspectos complementares dentro das diversas formas de conhecimento, as vozes que formam a dinamica conversaryao concebida por Oakeshott. Atraves do desenvolvimento da compreensao critica e de competencias tecnicas funcionais para a realizac;:ao de alividades musicais especificas, e possivel expandir a capacidade de pensar e agir musicalmente, permitindo 0 engajamento ativo nesta forma de conversaryao. Discute-se a natureza da tecnica e seu impacto sobre 0 fazer musical, enfatizando-se a possibilidade ea necessidade de se promover 0 desenvolvimenlo musical dos alunos atraves de experiencias musicalmente ricas e tecnicamenle acessiveis. Desenvolver a propria voz Somos herdeiros de uma diversidade de formas simb6licas. Atraves da mUltiplicidade de elementos culturais, compreensoes, significados, crenyas, aquisiyoes e praticas, elaboramos e damos sentido a nossa experiencia. Oakeshott (1962, p.198) se refere a esses elementos como vozes que, juntas, formam uma conversar;8o: uma "aventura intelectual nao ensaiada" na qual somos convidados a nos engajar. Cada uma dessas vozes contribui de uma maneira particular e enriquecedora (Hirst, 1965, p.52) para a conversar;8o, devendo, portanto, integrar a Educar;80 Liberal de todos os indivfduos. o debate entre os defensores da Educar;80 Liberal e os da Educar;80 Vocacional data do tempo de Arist6teles (Silver e Brennan, 1988, p.3). Essas duas visoes da educa9ao carregam diferentes valores, significados, prop6sitos e virtudes. 0 ideal grego da Educar;80 Liberal emergiu das doutrinas filos6ficas que acreditavam que a busca do conhecimento e da verdade era uma vocayao da pr6pria mente (Hirst, 1965, p.30-31). Embora 0 termo assuma significados especfficos em contextos diversos, sua essencia e sempre preservada: a busca do pleno desenvolvimento do ser e a conquista de uma vida igualmente plena. Para tanto, enfatiza a amplitude do conhecimento, favorecendo estudos que aumentam a capacidade de compreensao e raciocfnio (Pring, 1985, p.184). A partir de exemplos paradigmaticos dentro das varias formas simb61icas, encoraja-se 0 exercfcio da compreensao crftica e da generalizayao para uma ampla gama de conhecimento dentro das disciplinas (Hirst 1965, pAl -48) - as diversas vozes que formam nossa heranya cultural. 35

Engajando-se conversa~ao - ceciliacavalierifranca.com.br · ou de cunho especialista tende para um tipo de treinamento de natureza mais tecnica, visando prop6sitos mais especfficos

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revista da

abemnumero 6

setembro de 2001

Engajando-se na conversa~ao:

considerafOeS sobre a tecnica e acompreensao musical

Cecflia Cavalieri FranQa

Resumo: A partir dos referenciais filos6ficos da Educaryao Liberal e da EducaryaoVocacional, propoe-se uma reflexao sobre a tecnica e a compreensao musical. Eslassao vistas como aspectos complementares dentro das diversas formas de conhecimento,as vozes que formam a dinamica conversaryao concebida por Oakeshott. Atraves dodesenvolvimento da compreensao critica e de competencias tecnicas funcionais paraa realizac;:ao de alividades musicais especificas, e possivel expandir a capacidade depensar e agir musicalmente, permitindo 0 engajamento ativo nesta forma deconversaryao. Discute-se a natureza da tecnica e seu impacto sobre 0 fazer musical,enfatizando-se a possibilidade e a necessidade de se promover 0 desenvolvimenlomusical dos alunos atraves de experiencias musicalmente ricas e tecnicamenleacessiveis.

Desenvolver a propria voz

Somos herdeiros de uma diversidade deformas simb6licas. Atraves da mUltiplicidade deelementos culturais, compreensoes, significados,crenyas, aquisiyoes e praticas, elaboramos edamos sentido a nossa experiencia. Oakeshott(1962, p.198) se refere a esses elementos comovozes que, juntas, formam uma conversar;8o: uma"aventura intelectual nao ensaiada" na qual somosconvidados a nos engajar. Cada uma dessas vozescontribui de uma maneira particular e enriquecedora(Hirst, 1965, p.52) para a conversar;8o, devendo,portanto, integrar a Educar;80 Liberal de todos osindivfduos.

o debate entre os defensores da Educar;80Liberal e os da Educar;80 Vocacional data do tempode Arist6teles (Silver e Brennan, 1988, p.3). Essasduas visoes da educa9ao carregam diferentes

valores, significados, prop6sitos e virtudes. 0 idealgrego da Educar;80 Liberal emergiu das doutrinasfilos6ficas que acreditavam que a busca doconhecimento e da verdade era uma vocayao dapr6pria mente (Hirst, 1965, p.30-31). Embora 0

termo assuma significados especfficos emcontextos diversos, sua essencia e semprepreservada: a busca do pleno desenvolvimento doser e a conquista de uma vida igualmente plena.Para tanto, enfatiza a amplitude do conhecimento,favorecendo estudos que aumentam a capacidadede compreensao e raciocfnio (Pring, 1985, p.184).A partir de exemplos paradigmaticos dentro dasvarias formas simb61icas, encoraja-se 0 exercfcioda compreensao crftica e da generalizayao parauma ampla gama de conhecimento dentro dasdisciplinas (Hirst 1965, pAl-48) - as diversas vozesque formam nossa heranya cultural.

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Botstein (1991, p.17) sugere que os indivf­duos devem ser encorajados a romper "0 veu dascrenc;:as dominantes e verdades dogmaticas", afazer questionamentos mais amplos e a reinterpre­tar 0 que Ihes e dado. Assim, "0 aprendiz e Iibertadodo pensamento limitado para reconhecer asconex6es entre ideias diversas" (Grugel, 1995,p.52). Eprecise saber interpretar a informac;:ao paraque esta seja reconhecida em circunstanciasdiferentes (Fuller, 1989, p.57), pois essas vozes naosao blocos estaticos ou cristalizados de informac;:ao:sao elementos dinamicos sujeitos a uma contfnuaexplorac;:ao intelectual. Participar da conversa9aoimplica nao simplesmente em replicar 0 mundo, masaborda-Io criticamente e acrescentar aquelas vozesas vozes individuais.

Em contraposic;:ao, a Educa9ao Vocacionalou de cunho especialista tende para um tipo detreinamento de natureza mais tecnica, visandoprop6sitos mais especfficos e utilitarios (Good,1973, p.337). Ela se concentra no domfnio dedetalhes do conhecimento, objetivando suautilizac;:ao pratica (Hirst, 1965, pA7-48). Entretanto,critica-se: 0 domfnio de tecnicas especializadaspara a realizac;:ao de tarefas especfficas naogarantem que 0 indivfduo seja capaz de "avaliar,questionar, desafiar, ou transformar seu mundo emum grau significativo" (Barrow e Milburn, p.184).Desta forma, ela poderia se tornar excessivamentelimitada, ou nao liberal (Silver e Brennan 1988, pA).

A compreensao e a tecnica sao, portanto,facetas complementares do engajamento nas variasformas de conhecimento, pais para 0 indivfduoarticular sua voz, e necessaria dominardeterminadas habilidades praticas e tecnicas(Fuller, 1989, p.25-26). Podemos dizer que ha umanoc;:ao essencial permeando a Educa9ao Liberal, aqual podemos nos referir como a possibilidade defuncionar criticamente (Cavalieri Franc;:a, 1998,p.24): a capacidade de exercer 0 julgamento quepermite ao indivfduo reconstruir, questionar e darsentido a sua experiencia. Este funcionamentocritico pode preencher a lacuna entre a utilidadeda Educa9ao Vocacional e a busca da verdade daEduca9ao Liberal e permitir ao indivfduo participarda dinamica conversa9ao, acrescentando-Ihe a suavoz.

Essas reflex6es sugerem implicac;:6esimportantes para a educac;:ao musical.

Primeiramente, dentro do ideal liberal dedesenvolvimento plena do ser, as artes assumemum papel essencial. Eisner (1989, p.7) acredita que"se as caracterfsticas essenciais da Educac;:ao

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Liberal incluem 0 amplo desenvolvimento dasracionalidades humanas e das multiplas realidadesque tais racionalidades tornam possfveis, as artesparecem ter seu espac;:o assegurado". Na musica,a simbolizac;:ao adquire uma forma unica, contri­buindo para 0 desenvolvimento da mente e para abusca da auto-compreensao humana (Swanwick,1994; Reimer, 1989). Para Paynter (1997, p.10),atraves dela articulam-se pensamentos, ideias eargumentos contidos nos gestos musicais. Deacordo com Wishart (1982, p.314), a informar;;aogestual e veiculada at raves dos agrupamentossonoras, dos contornos, frases e estruturas maislongas: "gesto e essencialmente uma articulac;:aodo contfnuo". Qualquer que seja a conteudo e anfvel de complexidade, musica e pensamentoarticulado, podendo ser uma fonte de significadosrevelados em ideias sonoras. Tais significadosmusicais podem ser criados, compartilhados eapreendidos atraves das modalidades centrais do

·fazer musical - composic;:ao, performance eapreciar;;ao. Ao se engajar com a musica, aspessoas podem participar em uma forma dediscurso organizado, coerente e significativo. Issoa torna uma poderosa voz entre aquelas queformam a conversa9ao concebida por Oakeshott.

Segundo, para que a educac;:ao musical sejarelevante e significativa, tanto 0 desenvolvimentoda tecnica quanta a da compreensao devem serpercebidos como aspectos interativos ecomplementares. Todo fazer musical envolveprocedimentos tecnicos, indispensaveis asespecificidades da realizac;:ao musical, bem comoum certo grau de compreensao. Sloboda (1985,p.89-90) comenta que a compreensao (aconcepc;:ao, a qual ele se refere como um 'planomental') e a tecnica (a 'pragramac;:ao motora') saofreqOentemente encontradas separadamente:observam-se casos extremos de indivfduos quepossuem grande sensibilidade e musicalidade, mastem um domfnio motor insuficiente, enquanto outrospossuem uma habilidade motora refinada e revelamuma compreensao musical Iimitada. Para que aindivfduo desenvolva sua pr6pria voz em musica,e necessaria expandir sua compreensao musicalpara que possa ter um desempenho criativo e umposicionamento crftico em relac;:ao a outras vozes.Aspin escreve:

Estudantes de arte estarao constantemente procurandoexercer sua imaginavao, nao apenas para compreendere apreciar 0 mundo conforme os criterios jf! existentesno reino da estetica, mas tambem para tentar acrescentaraquele reino, reestruturando-o, acrescentando-Ihe novasconjunvoes de formas e ideias que os permitamreinterpretar e expandir a gama de significados eaquisivoes possiveis no mundo. (Aspin, 1981, p.47)

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A terceira implicayao esta intrinsecamenteIigada a segunda. Existe uma dicotomiaaparentemente irreconcifiavel entre duas visoesopostas da educayao musical: a especialista e aabrangente. A primeira e direcionada ao desenvol­vimento da excelencia em uma modalidade do fazermusical. Observa-se que esta tende a se concentrarno desenvolvimento de habilidades tecnicas emdetrimento de uma compreensao mais ampla e deum fazer musical mais expressivo. A segunda incluias varias modalidades da experiencia musical,objetivando 0 desenvolvimento do ser. Um pontocrftico desta e 0 desenvolvimento de habilidadespraticas e perceptivas que permitam aos indivfduosrealizarem atividades musicais progressivamentecomplexas. Alem disso, se a educayao musical fordemasiadamente ampla, ela pode se tornarsuperficial e, consequentemente, irrelevante elimitadora.

Logo, e precise encontrar um meio termoentre 0 que e filosoficamente desejavel e 0 que eviavel na pratica. Embora a compreensao e atecnica estejam conectadas na experienciapsicol6gica da musica, julgamos ser pertinentedesvencilha-Ias conceitualmente, buscando-seclarear sua importancia relativa no desenvolvimentoe no fazer musical.

A compreensao e a tecnica em perspectiva

Segundo Swanwick (1994), a compreensaomusical consiste na consciencia dos significadosincorporados nos elementos do discurso musical ­materiais, carater expressivo, forma e valor.Compositores, instrumentistas e ouvintes desen­volvem a sensibilidade ao potencial dos materiaissonoros, articulam os gestos expressivos queconferem as peyas seu carater peculiar e projetamas relayoes entre os motivos, frases e partes. Estacompreensao pode ser desenvolvida de forma maisconsistente atraves de experiencias musicaisvariadas, pela participayao ativa e imaginativa navida fenomenol6gica das obras musicais (Reid,1986).

A compreensao e nao apenas desenvolvida,mas tambem demonstrada atraves do fazer musicalativo (Swanwick, 1992, p.25; Reimer, 1970/1989,p.204; Zimmerman, 1971, p.29; Stubley, 1992). Asmodalidades centrais da experiencia musical(composiyao, apreciayao e performance) saoindicadores comportamentais apropriados dacompreensao musical. Podemos dizer que acompreensao permeia e guia todo 0 fazer musicaldo indivfduo, sendo assim revelada. A compreensaodo interprete se manifesta, por exemplo, atraves

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do andamento escolhido para realyar os gestosexpressivos e a coerencia entre as partes. LeopoldMozart dizia que a pr6pria obra leva 0 interprete ainferir 0 andamento ideal: "isso mostrainfalivelmente a qualidade de um musico" (apudDonington, 1973, p.249). Uma compreensaorefinada se revela tambem na capacidade dedestacar elementos importantes na obra, comocadencias e pontos culminantes, e de realizarmicrovariayoes de tempo, dinamica e altura(Sloboda e Davidson, 1996, p.173).

Se e atraves do fazer musical ativo que acompreensao se desenvolve e se revela, 0 cuidadocom 0 desenvolvimento tecnico e inevitavel. 0 fazermusical envolve tanto a compreensao de (ousensibilidade a) tais elementos quanta ashabilidades tecnicas necessarias para identifica­los e controla-Ios. Embora 0 pr6prio conceito detecnica seja bastante amplo, persiste uma nOyaocentral no que diz respeito a sua natureza eprop6sito praticos. Podemos considerar a tecnicacomo 0 conjunto das competencias funcionaisnecessarias a realizayao de atividades musicaisespecfficas, como, por exemplo, produzir umcrescendo na performance ou transformar ummotive na composiyao. 0 cuidado que devepermear a educayao musical e evitar que 0

desenvolvimento tecnico se sobreponha aodesenvolvimento da pr6pria musicalidade,ofuscando-a.

Este cuidado, entretanto, ja pode serobservado mesmo em alguns contextos de ensinomusical de nfvel superior. Davidson e Smith (1997,p.251-269) relatam um programa desenvolvidoatualmente na Guildhall School of Music andDrama, que adota uma abordagem mais holfsticada pratica instrumental, visando a formayao demusicos flexfveis e versateis. Alem de atividadesde centramento da mente, a proposta incluiexercfcios ffsicos com movimentos plasticos eexpressivos diretamente analogos a performance(princfpios que Dalcroze pregava ha um seculo!).A improvisayao e a composiyao sao usadas comocanais para os alunos exercerem a capacidade dejulgamento e decisao criativa dentro de umaatmosfera de confianya. Estes sao encorajados arealizarem sua interpretayao pessoal das obras,trazendo a tona elementos afetivos; assim, acomunicayao e expressao pessoais ganhamautenticidade. Iniciativas desta naturezademonstram que, mesmo na educayao musicalespecialista, ha espayo para um fazer musical maiscriativo, explorat6rio, espontaneo e com umsentimento de aventura.

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A funcionalidade da tecnica na educa~ao

musical abrangente

Outra quesUio que torna a tecnicaproblematica e de natureza conceitual: suaassocia9ao com nlveis avan9ados de realiza9aomusical. Tal associa9ao tende a afastar pessoasdo engajamento com a musica. Tecnica "tambempode ser simplesmente fazer 0 que voce pode como que voce tem, com 0 melhor da sua capacidade"(Paynter, 1977, p.9). No contexte da educa9aomusical abrangente, pode-se encarar 0 desenvol­vimento destas compettmcias funcionais como umprocesso de crescimento organico, fluente enatural. Mesmo no nivel tecnico mais elementar, eposslvel envolver as crian9as em experienciasmusicalmente ricas que possam propiciar seudesenvolvimento. Payne (1986, p.v-vi) acredita quese promove a assimila9ao de princfpios musicaisgerais a partir de experiencias acesslveis,explorando-se habilidades vocais e percussaocorporal. Cantar, acompanhar can90es e tocar emconjuntos de percussao sao oportunidadesacessiveis para se explorar nuances de carater eestruturas musicais.

A partir de experiencias dessa natureza, osalunos podem desenvolver uma compreensaomusical funcional sobre a qual habilidades maiscomplexas poderao ser trabalhadas. 0 mesmoocorre na aprecia9ao, onde experiencias com pe9asmenos complexas podem ser igualmentesignificativas e iluminadoras. A compreensaoadquirida nestas situa90es pode ser transferidapara outras experiencias que demand emgradativamente habilidades perceptivas maisavan9adas. Assim, 0 desenvolvimento tecnico setorna uma consequencia natural do desenvolvi­mento da pr6pria musicalidade. Amedida que asensibilidade aos materiais sonoros se refina,cresce a necessidade de controla-Ios: 0 aluno sesente mais estimulado a manipular os sons de umamaneira adequada as suas necessidadesexpressivas e estilfsticas.

Nesse contexto, a composi9aO aparece comoum poderoso instrumento para 0 desenvolvimentotecnico, legitimado pelo impulso em dire9aO aexpressao. Mesmo com um domlnio aindaelementar, os alunos podem produzir pe9asmusicalmente sofisticadas (Cavalieri Fran9a, 2001,p.1 09). Eles empregam frequentemente elementosmusicais mais complexos do que os conteudosabordados em aula. Durante a explora9aO de ideiasmusicais, eles descobrem acordes, temas outecnicas e decidem incorpora-Ios em suas cria90esde uma forma surpreendentemente adequada

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(Loane, 1984, p.211) - como, por exemplo, usandoum acorde aumentado para provocar maior tensaoharmonica. Este exercfcio explorat6rio e guiado porum ouvir cuidadoso e uma capacidade de julga­mento, escolha e rejei9ao de possibilidades.Quando um aluno pesquisa como usar as baquetaspara produzir um fortfssimo, e a sua COnCep9aOmusical que 0 leva a explorar as maneiras diversasde abordar 0 instrumento (ibid.). Assim, ele percebeque 0 prop6sito da tecnica e atender suasnecessidades expressivas imediatas. Da mesmaforma, articula90es, alternancia de toques legato estaccatto, pianissimos e crescendos saoempregados naturalmente, contribuindo para afluencia do discurso musical.

Paynter (1992, p.65) tambem sugere quetodo novo elemento tecnico pode se tornar umponto de partida para a experimenta9aO criativa ea composi9aO: "criatividade e desenvolvimentotecnico devem caminhar paralelamente", pois atecnica e mais facilmente consolidada dentro deum contexte musical. Mesmo os exercfcios (quandonecessarios e adequados) podem ser exploradosmusicalmente: questoes harmonicas, intervalos,modula90es, transposi90es, elementos da grafiatradicional ou contemporanea podem ser utilizadasem improvisa90es, composi90es e varia90es (Gane,1996, p.61).

A pr6pria nota9ao e um aspecto delicado dodesenvolvimento musical. Ha um certo fascfnio emtorno do aprendizado da leituralescrita tradicional,a ponto de, frequentemente, a inicia9aO a leituradominar a maior parte do tempo de aula emdetrimento do fazer musical ativo. Embora a leituraseja uma ferramenta importante e necessaria queabre horizontes e possibilita 0 registro e 0 acessoa obras mais longas e complexas, observa-se umavaloriza9ao excessiva desta habilidade. 0 temporeservado para a realiza9ao musical criativa egradativamente reduzido e substituldo pelotreinamento de leitura, ocorrendo uma lamentavelsepara9ao entre a Iiberdade de criar e improvisare a 'seriedade' de se ler uma partitura. Seraonecessarios anos de treinamento de leitura ate queos alunos sejam capazes de dominar a nota9ao deobras tao interessantes, ricas ritmicamente eamplas em tessitura quanta tudo aquilo que elespodem tocar desde a inicia9aO, seja de ouvido, porimita9aO ou improvisa9ao. Deve-se evitar que aescolha das pe9as seja guiada unicamente pelonlvel de leitura dos alunos. Pode-se equilibrarpequenas pe9as que eles possam ler na Integracom pe9as de escrita mais complexa onde a ajudado professor sera necessaria. Tambem e posslvelenriquecer 0 processo de inicia9ao a leitura

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acrescentando as pec;:as acompanhamentos emestilos variados e harmonias interessantes.Igualmente relevantes sao as experiencias com agrafia contemporanea, desde os signos maissimples ate a leitura e performance de pec;:as maiselaboradas. A leitura e um instrumento, nao um pre­requisito para 0 fazer musical. Eimportante que asobras sejam adequadas ao nfvel musical e tecnicodos alunos para que promovam seu desenvol­vimento; assim eles percebem que a tecnica e umaferramenta util, funcional e relevante (Barrett, 1996,p.68). Eela que permite expandir a capacidade depensar e agir musicalmente, pois mesmo a maisrefinada compreensao precisa de canais atravesdos quais possa se tornar explfcita: sem 0 domfniotecnico nao e possfvel se engajar ativamente naconversa9ao.

o nfvel tecnico apropriado

As habilidades tecnicas podem serdesenvolvidas em diferentes nfveis atraves dasmodalidades (composic;:ao, apreciac;:ao e perfor­mance) e mesmo dentro destas, em relac;:ao aosdiversos estilos e pec;:as (Cavalieri Franc;:a, 1998).Podemos ilustrar este argumento citando adiscrepancia que ocorre entre a compreensaoconceitual e a capacidade de articulac;:ao nalinguagem verbal: a fala de uma crianc;:a pequenarevela uma compreensao funcional da linguagembastante avanc;:ada, mas ela somente aprendera alinguagem esc rita bem mais tarde. Conse­quentemente, a escrita seria um indicadorinadequado de sua compreensao musical. Asituac;:ao inversa pode acontecer no aprendizadode outro idioma: se alguem aprende somenteatraves dos livros, pode nao ser capaz de secomunicar oralmente - uma habilidade que nao foidesenvolvida.

Este paralelo com a linguagem pode iluminarnosso argumento em relac;:ao a musica.Acreditamos que s6 e possfvel ao indivfduodemonstrar 0 nfvel 6timo da sua compreensaomusical um vez que ele domine as demandastecnicas da atividade em questao. Um competentecompositor, por exemplo, pode nao ser capaz dedemonstrar toda sua compreensao musical tocandouma pec;:a instrumental de nfvel avanc;:ado, pois seudesenvolvimento tecnico se deu em nfveisdiferentes nas duas modalidades. Nao estamosquerendo dizer que 0 indivfduo tenha quedesenvolver 0 mesmo nfvel tecnico nas variasmodalidades e nem que seja possfvel equiparar asdificuldades entre elas. Nosso argumento e queeste s6 podera revelar a sofisticac;:ao de suacompreensao musical se a atividade em questaoIhe for acessfvel - e nao sao raras as situac;:oes

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nas quais 0 domfnio tecnico exigido ultrapassa aspossibilidades do indivfduo, nao permitindo que suacompreensao musical se revele plenamente.

Isso e observado nao apenas entremodalidades de comportamento musical, mastambem dentro de uma mesma modalidade emrelac;:ao a atividades ou pec;:as diferentes. Porexemplo, um pianista de concepc;:ao musicalrefinada, mas que nao pratica, pode nao ser capazde demonstrar sua compreensao tocando pec;:as deum nfvel tecnico que ele nao domina. Ele podeinclusive saber 0 que deve fazer (0 andamento idealda pec;:a, por exemplo), mas nao ser capaz derealiza-Io (e ter que toca-Ia mais devagar). Esteproblema inclui tambem peculiaridades estilfsticas:tocar Bach ou jazz requer habilidades especfficas,envolvendo decisoes sobre andamento, dinamica,articulac;:ao, pedal, arcadas, qualidade de som,ornamentac;:ao etc. 0 mesmo vale para acomposic;:ao e a apreciac;:ao: compor (ou ouvir) jazzou uma fuga tambem requerfamiliaridade e domfniodo idioma especffico.

Portanto, dentro das modalidades (compo­sic;:ao, apreciac;:ao e performance) e atraves deexperiencias dentro destas, a compreensao s6 serademonstrada de forma satisfat6ria ate 0 ponto emque as habilidades especfficas tiverem sidorefinadas.

Podemos, entao, delinear a natureza dorelacionamento entre a compreensao musical e atecnica, no que diz respeito ao fazer musical e aodesenvolvimento musical.

Primeiro: tanto a aquisic;:ao quanta ademonstrac;:ao da compreensao musical acontecematraves do fazer musical ativo, 0 que envolve aarticulac;:ao de habilidades tecnicas especfficas acada atividade.

Segundo: a demonstrac;:ao da compreensaoe comprometida quando as habilidades tecnicasenvolvidas na atividade ultrapassam 0 limite dentrodo qual 0 indivfduo pode tomar decisoesexpressivas (Cavalieri Franc;:a, 1998; Swanwick eCavalieri Franc;:a, 1999). Isto gera implicac;:oesimportantes para a avaliac;:ao em musica: s6 epossfvel observar 0 nfvel6timo de desenvolvimentomusical se as atividades forem acessfveis aoindivfduo.

Terceiro: queremos ressaltar a relac;:ao entremanifestare desenvolver a compreensao musical.Devemos considerar 0 nfvel tecnico envolvido numaatividade e 0 nfvel de compreensao musical que epromovido atraves dela. Uma atividadetecnicamente complexa pode nao envolver nem

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promover 0 desenvolvimento da compreensaomusical - e vice-versa. as seguidos desafiostecnicos podem nao deixar oportunidades para quea compreensao se desenvolva: como e possfveldesenvolver um nivel mais refinado decompreensao se as dificuldades tecnicas dasatividades nao permitem se exercitar em tal nfvel?5e os alunos nao trabalharem em um nivel ondepossam exercer julgamento e tomar decis6es, comopoderao desenvolver uma qualidade de pensa­mento musical mais sofisticada?

Referencias Bibliograticas

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Eprecise que se tenha clareza sobre 0 quequeremos quando escolhemos uma determinadape<;:a ou atividade para nossos alunos. 5e nossoobjetivo e musical, as atividades devem sertecnicamente apropriadas para permitir que acompreensao se expanda no seu nivel 6timo e sedesenvolva. Promoverfamos, assim, um fazermusical crftico e criativo e, gradativamente,habilidades tecnicas especfficas as diferentesmodalidades, para permitir aos individuos produ­zirem express6es musicais que revelem umacompreensao musical genufna.

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