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ENREDAMENTOS ENUNCIATIVOS NAS PRIMEIRAS IFES A
ADOTAREM O NOME SOCIAL NO BRASIL
Catarina Dallapicula1
Miguel da Silva Fonseca2
Resumo
Este artigo aborda resultados parciais da produção de dados do projeto de iniciação científica
intitulado “O Nome Social nas IFES: suas implicações enquanto possibilidades de vida”.
Durante o período de pesquisa documental, descobrimos que cinco Instituições Federais de
Ensino Superior (IFES) – três Universidades e dois Institutos – haviam produzido documentos
que institucionalizavam o uso do nome social antes da homologação da Portaria nº 1.612, de
18 de novembro de 2011 do Ministério da Educação (que obrigava as IFES a reconhecerem o
uso do nome social de travestis, transexuais e transgêneros – pessoas trans*). A partir desses
dados, problematizamos quais enredamentos curriculares estas IFES (re)produziram
discursivamente em seus documentos de institucionalização do uso do nome social e suas
motivações. Utilizamos os conceitos de vida precária (BUTLER, 2015), jogos de verdade
(FOUCAULT, 2010), possível (DELEUZE, 2013) e usos (CERTEAU, 2014) para
problematizar o acesso e permanência das pessoas trans* nessas IFES. Observamos que
enredamentos enunciativos ligados aos direitos humanos, à Constituição Federal e à
universalização do acesso e permanência nas IFES foram parte dos discursos que embasam
esses documentos, visando a criação de possibilidades de vida para pessoas trans* nos
currículos cotidianos dessas instituições.
Palavras-chave: Currículo, Nome Social, IFES.
1. Introdução
1Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras. Mestre em Educação
(PPGE/UFES – Bolsa FAPES) na linha de pesquisa Currículo, Cultura e Formação de Educadores, atua nos
grupos de pesquisa GEPSs (CE/UFES), Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos
(PPGE/UFES). Contato: [email protected]
2 Graduando do curso de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA) e bolsista do Programa
de Bolsa de Iniciação Científica e Tecnológica Institucional pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de
Minas Gerais (PIBIC/FAPEMIG). Contato: [email protected]
Esse artigo surge no contexto da produção do projeto de iniciação científica intitulado O
Nome Social nas IFES: suas implicações enquanto possibilidades de vida.A partir da análise
de discursos (re)produzidos nos documentos elaborados pelas Instituições Federais de Ensino
Superior (IFES) buscamos problematizar as possibilidades de vida e existência de pessoas
trans*3 dentro dessas instituições.
Chamamos de nome social o nome adotado por pessoas que não se identificam
socialmente com a identidade de gênero atribuída no nascimento. Idealmente, a substituição
do nome de registro civil deveria ser mais fácil que a adoção de um nome social que difere do
nome que conta nos documentos oficiais. Porém, devido a haver no Brasil diversos entraves
judiciais e burocráticos que não caberiam nesse texto, o uso do nome social passa a ser uma
conquista para pessoas trans*. Consideramos por isso sua adoção nos processos internos e
relações cotidianas nas IFES como essencial para garantir o acesso e permanência dessas
pessoas ao ensino superior, de forma que não sejam expostas a situações vexatórias, ou que
algumas delas sejam evitadas.
A garantia, por parte do Estado, do uso nome pelo qual se identificam, dentro desses
ambientes, implica na possibilidade de acesso à educação e ao mercado de trabalho
qualificado. O uso do nome social cria o que Judith Butler (2015) chama de condição de
reconhecimento.
Se o reconhecimento caracteriza um ato, uma prática ou mesmo uma cena entre
sujeitos, então a “condição de ser reconhecido” caracteriza as condições mais gerais
que preparam ou modelam um sujeito para o reconhecimento – os termos, as
convenções e as normas gerais “atuam” do seu próprio modo, moldando um ser vivo
em um sujeito reconhecível, embora não sem falibilidade ou, na verdade, resultados
não previstos. (BUTLER, 2015, p.19)
O que a autora nos ajuda a pensar é que o reconhecimento garantido pelo uso do nome
social é apenas uma das muitas condições necessárias para que as pessoas trans* tenham
acesso pleno à vida. Reconhecer o uso do nome não significa, necessariamente, reconhecer a
pessoa enquanto sujeito e fornecer e/ou assegurar os meios para adentrar e permanecer nesses
locais. Essas ponderações não descreditam a importância desse direito garantido. Ainda que
3 O termo trans é utilizado para se referir a pessoas que não se enquadram nas normas sociais de
identidadede gênero fixadas a partir de características biológicas. O termo refere-se à travestis, transexuais e
pessoas que não se identificam com os gêneros binários (masculino e/ou feminino).
seja um direito parcial, consideramos importante visibilizar os discursos que o respaldam nos
documentos aqui analisados.
Nosso projeto de pesquisa visa sistematizar os dados de como essa institucionalização
está acontecendo na IFES, quais têm documentos reguladores e quais ainda não discutiram
essa demanda, com o objetivo de avaliar os discursos usados para respaldar a adoção do nome
social em seuas ccotidianos. Para atender esse objetivo iniciamos uma pesquisa que abrange
os documentos orientadores de políticas públicas em educação que abordam o uso do nome
social e os documentos reguladores desse uso dentro de cada IFES.
Atualmente, um dos principais documentos que norteiam as instituições de ensino sobre
o direito ao uso do nome social é a Portaria nº 1.612, de 18 de novembro de 2011, do
Ministério da Educação (MEC), que assegura a escolha do prenome por pessoas trans*,
cabendo a todas as autarquias vinculadas ao MEC reconhecer o uso do nome social e
viabilizar sua institucionalização em até 90 dias. Destaca-se, também, a Portaria nº 233, de 18
de maio de 2010, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que garante a
utilização do nome social aos servidores públicos federais.
Durante o processo de levantamento de dados da pesquisa observamos que, dentre as
cento e sete (107) IFES, cinco (5) instituições haviam produzido documentos que
regulamentavam o uso do nome social antes da homologação da Portaria MEC nº 1.612/2011.
São elas: a Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), o Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), o Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Catarinense (IFC), a Universidade Federal do ABC (UFABC) e a Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT).
Embora esse número represente uma pequena parcela do total de IFES (menos de 5%),
nos chama atenção o fato de tais medidas terem sido tomadas sem a necessidade de um prévio
posicionamento do MEC sobre a temática. Isso nos levou a indagar quais discursos foram
usados por essas IFES para embasar a regulamentação do uso do nome social.
2. Jogos de Verdade e Possibilidades de Vida
O sujeito negocia possibilidades de vida por meio de normas e saberes que se
modificam historicamente de acordo com operações de poder e visam “[...] maximizar a
precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros [...]” (BUTLER, 2015, p.15).
Essas relações de poder (re)produzem condições de sociabilidade pelas quais a pessoa se
reconhece e é reconhecida, ou seja, elas “[...] preparam ou estabelecem um jeito para o
reconhecimento[...]” (BUTLER, 2015, p.19).
As relações entre saberes, poderes e subjetivação que tornam possível o sujeito se
reconhecer e ser reconhecido, produzem e modificam constantemente as regras “[...] segundo
as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do
verdadeiro e do falso [...]” (FOUCAULT, 2006, p.235). Esses movimentos são o que Michel
Foucault denomina como jogos de verdade, ou seja, os “[...] jogos entre o verdadeiro e o falso,
através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e
devendo ser pensado [...]” (FOUCAULT, 1998, p.12).
Isso significa que com base nos jogos de verdade vigentes, nem todas as vidas são
reconhecidas enquanto vidas, ao contrário, o que atua nesse reconhecimento é um “[...]
enquadramento seletivo e diferenciado [...]” (BUTLER, 2015, p.13) que delimita as condições
de reconhecimento. Desse modo, seguindo Judith Butler, “[...] a condição de ser reconhecido
precede o reconhecimento [...]” (BUTLER, 2015, p.19).
Essas condições de reconhecimento não são fixas, se deslocam constantemente
buscando incluir aquilo que lhes escapa, mas é justamente essas fugas que oferecem as
pequenas libertações cotidianas expondo aquilo que a norma tentava ocultar, isto é,
evidenciam as vidas que, ainda, não são reconhecidas enquanto vidas. Os usos (CERTEAU,
2010) que os sujeitos criam cotidianamente nos enredamentos enunciativos para escapar aos
enquadramentos que os excluem emergem, no contexto educacional, nos currículos que se
tecem em seus encontros. Constituem as táticas (CERTEAU, 2010), pelas quais os sujeitos
escapam desses jogos de verdade, buscando (re)existir dentro desse terreno de precariedade.
As táticas (CERTEAU, 2014) correspondem à arte do fraco perante as situações sociais
de controle. Quando elas se fortalecem, resultam em resistências que conseguem alterar as
estratégias das relações de poder hegemônicas. É esse o movimento que percebemos ao
observar como o uso do nome social (tática do fraco perante as estratégias sociais de controle
de gênero) tem sido institucionalizado nas IFES. Se este processo se consolidar, prevemos a
emergência de novas estratégias hegemônicas de controle das possibilidades de vida nesses
espaços.
Essas estratégias traduzem-se em normas que delimitam as vidas reconhecíveis, os
espaços que elas podem ocupar e como devem ocupar dentro das instituições. Sua
consolidação resultará em maior ou menor precariedade da vida da pessoa trans* nesses
espaços, dependendo de como os jogos de verdade forem reconfigurados, de como os usos do
nome social potencializarem as possibilidades de vida ou estratégias de exclusão e
apagamento dessa população.
Nesse contexto, é preciso pensar a precariedade em termos de igualdade para que seja
possível alcançar acesso e permanência no nível superior para pessoas trans*. Desse modo,
“[...] não pode haver vida sustentada sem [...] condições de sustentação, [...] essas condições
são, ao mesmo tempo, nossa responsabilidade política e a matéria de nossas decisões éticas
mais árduas” (BUTLER, 2015, p. 43).
Os jogos enunciativos (FOUCAULT, 2012) que se enredam nessas IFES, produzem
sentidos de verdade que determinam as materialidades possíveis nos currículos que se tecem
nesses espaços. Os enredamentos curriculares se constituem em saberes resultantes dos jogos
de verdade negociados nas práticas de cerceamento e potencialização da vida.
Em outras palavras, o que estamos pensando é que os jogos de verdade utilizados nos
discursos que respaldam a criação dos documentos aqui problematizados são criadores de
possibilidades de vida. Sua existência permite a expansão de enquadramentos, o que resulta
em menor precariedade no acesso de pessoas trans* ao ensino superior. Essa expansão se dá
pela inclusão de outras vidas possíveis no reportório institucional.
As estratégias institucionais, pensadas para atender pessoais cisssexuais4, passam a ser
ressignificadas quando as práticas cotidianas são alteradas para atender pessoas trans*. Por
isso, os discursos que respaldam a existência desses documentos e resultam na expansão dos
enquadramentos de vidas possíveis nas IFES se tornaram o foco desse estudo.
3. Aproximações Metodológicas
4 Entende-se por cissexual a pessoa que reconhece sua identidade de gêneroem acordo com aquela que é
socialmente designada no nascimento de acordo com características biológicas, mais especificamente, as
genitálias.
O presente trabalho é um recorte específico, realizado em uma pesquisa mais
abrangente financiada pela FAPEMIG, que visa a análise dos enredamentos enunciativos
contidos nos documentos elaborados pelas diferentes IFES que asseguram o uso do nome
social para pessoas trans*.
Essa pesquisa, classificada como estratégica (GIL, 2010), visa a produção 5 de
conhecimento acerca dos discursos usados para embasar a institucionalização do nome social
por Instituições Federais de Ensino Superior. Mais especificamente, buscamos saber como os
discursos (re)produzidos nos textos elaborados por essa instituições respaldam possibilidades
de vida e existência em seus espaços.
A metodologia empregada aqui caracteriza nosso trabalho, de acordo com Antonio
Carlos Gil (2010), como um estudo qualitativo, em que as categorias e sistemas de análise dos
conteúdos foram sendo constituídos de forma indutiva, após a produção dos dados. A pesquisa
documental permitiu a produção de um banco de dados com documentos de todas as IFES
que já regulammentaram o uso do nome social. O banco de dados é uma ferramenta da
pesquisa documental (GIL, 2010) que visa sitematizar documentos elaborados internamente
por organizações, com propósitos variados. De forma concomitante, recorremos à pesquisa
bibliográfica em busca de fundamentação teórica para análise dos documentos identificados.
Verificamos na elaboração do banco de dados quais Instituições Federais haviam
institucionalizado o uso do nome social por meio de normativas. A organização e
disponibilização desses dados é importante não apenas para pesquisadores, mas
principalmente para as pessoas trans*. Por se tratarem de documentos internos, as
dificuldades em obter informações sobre quais IFES asseguram o uso do nome social e quais
documentos regem esse uso é recorrente e torna-se um agravante no que tange o acesso ao
Ensino Superior. Ao final desse projeto, pretendemos publicizar o banco de dados para que
seu conteúdo seja de fácil acesso a qualquer pessoa.
5 Usamos o termo “produzir” por entender que os discursos produzem efeitos de verdade sobre a
materialidade, significando o que é estudado. Sendo assim, não há dados prontos a serem “colhidos”, por isso
não faria sentido pensarmos “coleta” ou “levantamento” de dados. Sobre os mesmos documentos (materialidade)
diversas outras formas de classificação e/ou problemmatizações podem ser produzidas, dependendo da
abordagem da pesquisa.
Iniciamos o desenvolvimento da pesquisa elaborando uma lista com todas as IFES
cadastradas no portal e-MEC, obtendo um total de 107 Instituições Federais de Ensino
Superior: 2 Centros Federais de Educação Tecnológica, 1 Faculdade, 41 Institutos de
Educação, Ciência e Tecnologia e 63 Universidades. Em seguida, realizamos o levantamento
de informações referentes à regulamentação do uso do nome social por essas instituições,
compilando os documentos encontrados.
Nessa etapa, solicitamos a cada instituição, respaldados pela Lei 12.527, de 18 de
novembro de 2011 (Lei de Acesso a Informação), informações referentes à institucionalização
do nome social em seus espaços de ensino, e que nos fossem enviadas cópia dos documentos
existentes.
Durante esse processo constatamos que entre 2009 e 2011, 5 IFES haviam
institucionalizado o uso do nome social (precursoras ao MEC). Em 2012, após emissão da
Portaria MEC nº 1.612/2011, 7 IFES reconheceram esse direito, criando regulamentações para
o uso do nome social em seus ambientes de ensino. No ano seguinte, 2013, a média se
manteve, outras 7 instituições aprovaram normativas. Em 2014 o dobro de instituições, 14,
aderiram à utilização do nome social. Em 2015 ocorreu um aumento significativo em
comparação aos anos anteriores, outras 24 Instituições Federais de Ensino Superior
institucionalizaram o nome social. No primeiro semestre de 2016, 6 IFES aprovaram o uso do
nome social e 11 aguardam aprovação até o final do ano.
Obtivemos, até a elaboração deste artigo, respostas de 100 IFES, dentre as quais 62
enviaram documentos e, somando com a produção de dados feita via internet e com ativistas,
chegamos a um total parcial de 69 IFES (18 Institutos e 51 Universidades) assegurando,
através de normativas, o uso do nome social.
4. Documentos e Discursos
Considerando que os documentos selecionados neste estudo foram criados antes de
haver uma resolução ou documento normativo do MEC que tratasse do uso do nome social,
nos interessa saber quais discursos são usados para respaldá-los. Nossa leitura de seu
conteúdo foi guiada por esse intuito.
4.1 UNIFAP
De acordo com matéria publicada no site da Agência Brasil, a Universidade Federal do
Amapá aprovou a Resolução nº 013, de 19 de outubro de 2009, após solicitação do Grupo das
Homossexuais Thildes do Amapá (GHATA). Esse fato destaca-se por ser um marco na
educação superior brasileira, permitindo o uso do nome social antes de homologação das
Portaria MEC nº 1.612/ 2011 e Portaria MPOG nº 233/2010. Trata-se de uma normativa
precursora, por parte de uma IFES, ao institucionalizar o uso do nome social, permitindo sua
inserção nos registros acadêmicos com intuito de garantir a inclusão e a permanência de
pessoas trans*. A resolução afirma que
[...] ao incluir o nome social de Travestis e Transexuais nos registros acadêmicos
favorece o processo de inclusão desta população nos espaços educativos impedindo
a evasão das pessoas Transexuais e Travestis ao serem chamadas por seus nomes
civis que se diferem de sua orientação sexual e identidade de gênero. (UNIFAP,
2009, 5)
A normativa leva em consideração a Constituição Federal de 1988 que determina os
Princípios Fundamentais (Título I, Art. 1º, 3º, 4º e 5º) e o direito a Educação, Cultura e
Desporto (Capítulo III, Seção I, Art. 205 e Art. 206). Esse trecho do documento retoma
conceitos como cidadania e diginidade da pessoa humana, trazendo em seu discurso a
ampliação do enquadramento de cidadão de forma que nesse conceito caibam também as
pessoas trans*. A importância de tal afirmação é justamento o que ela nega, a exclusão que a
precede.
O documento considera, também, as diretrizes e bases estabelecidas pela Lei 9.394/1996
(Art. 1º, 2º e 3º) da educação nacional que respaldam a igualdade de condições de acesso e
permanência, assim como os ideais de solidariedade humada e igualdade. Novamente nos
chama atenção o que essas afirmações negam. A existência de desigualdade e a falta de
garantias de acesso e permanência ligados ao não reconhecimento da identidade de gênero de
pessoas trans* pode resultar em evasão, como o próprio documento afirma.
Essa resolução aponta, ainda, para o Regimento Geral da instituição (Resolução nº 09,
de abril de 2002), que busca promover o desenvolvimento e garantir a autonomia e pluralismo
de ideias e concepções pedagógicas (Art. 3º e 5º). O item 4 da Resolução nº 013/2009 da
UNIFAP, destaca
As mudanças sociais e o papel da universidade na criação de novos princípios éticos
pautados na cidadania e na justiça social como forma de garantir direito da igualdade
e da diferença contra os processos históricos de exclusão e discriminação [...]
(UNIFAP, 2009)
Com base nos discursos apresentados, a resolução prevê que
O nome social de Travestis e Transexuais será registrado entre parênteses seguido
junto com o nome civil em diários de classe, cadastros, fichas, formulários,
históricos , certificados, carteiras e demais documentos internos. (UNIFAP, 2009)
Questionamos se efetivamente essa ação promove cidadania, diginidade, solidariedade
humada e igualdade se sua proposta inclui a exposição do nome civil em todos os
documentos internos. Se o nome social será sempre seguido do nome civil, as situações
vexatórias serão evitadas? Professores, servidores e colegas não incorrerão no uso do nome
civil ao se reacionar com pessoas trans* por desinformação ou preconceito? A pessoa não será
exposta a ter que explicar seus dois nomes e sua própria existência em diversas situações?
Esse documento é um marco na institucionalização do uso do nome social em IFES, por
ter sido o primeiro. Entendemos que os recursos utilizados também eram alternativas à
ausência de legislação federal que respaldasse o trabalho de inclusão ao qual a instituição se
propunha, mas nos questionamos se seu conteúdo realmente promove a apliação dos
enquadramentos institucionais de possibilidades de vida, ou melhor, o quanto os promove.
Pois, algum reconhecimento, ainda que limitado, é melhor do que nenhum.
4.2 IFSC
Em 2010, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina
(IFSC) aprovou a Deliberação nº 006, de 05 de abril de 2010, tonando-se o primeiro Instituto
Federal a regulamentar o uso do nome social. Assim como a UNIFAP, o IFSC garantiu o uso
do nome social como forma de inclusão de pessoas trans* em seu ambiente de ensino.
De acordo com informações no site da instituição, a aprovação se deu para superar as
dificuldades de uma aluna. A estudante explicita que a maior dificuldade enfrentada era que
“[...] Alguns professores concordavam em usar meu novo nome, outros não [...]” (IFSC,
2010b).
A Deliberação nº 006/2010 (IFSC, 2010a), determina a possibilidade de inclusão do
nome social nos registros acadêmicos em todos os campi do instituto, objetivando garantir o
acesso e a permanecia, levando em consideração a Constituição Federal de 1988, que
estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (Art. 5º) e
seguindo as Políticas de Inclusão adotadas pela própria instituição.
Nos chama atenção nesse texto, que usa discursos em comum com o texto da UNIFAP,
no tocante à contintuição e à afirmação da postura institucional pró-inclusão, uma maior
efetivação da ampliação dos enquadramentos discursivos que proporcionem possibilidades de
vida às pessoas trans* em seus campi. A instituição determina que em todos os documentos
internos constará o nome social adotado pelo ou pela estudante. Isso significa que em nenhum
espaço do convpicio cotidiano circulará o nome civil da pessoa trans*.
Nesse sentido, esse documento, cujo embasamento discursivo é muito menos elaborado
que o anterior, nos parece mais coerente, embora preveja que em documentos externos
constará apenas onome do registro civil. Entendemos, novamente , que essa possa ter sido
uma estratégia discursiva para negociar com a legislação federal vigente, garantindo direitos e
acessos viáveis naquele momento.
A instituição prevê ainda que estudantes menores de 18 anos deverão ter a autorização
dos pais para utilizarem o nome social na instituição, o que pode acarretar em mais uma
limitação, visto que muitas famílias negam a identidade de gênero das pessoas trans*.
4.3 IFC
Ainda em 2010, no dia 29 de junho, foi emitida a Resolução Ad Referendum nº
019/2010 pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense (IFC),
aprovada, posteriormente, pela Resolução nº 001/2011após reunião ordinária do Conselho
Superior do IFC.
Assim como a Deliberação nº 006/2010 (IFSC), esta resolução considera a Portaria
MPOG nº 233/2010, referindo-se ao Art. 5º da Constituição Federal de 1988, ressaltando o
inciso XLI que determina que “[...] a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos
e liberdades fundamentais [...]” (BRASIL, 1988). Consideramos curioso como o argumento
punitivo é utilizado para respaldar o acesso qo que o documento afirma ser uma garantia de
acesso, permanência e sucesso para as pessoas trans*.
Essa deliberação cita, também, o Parecer nº 580/09 do Conselho Estadual de Educação
de Santa Catarina (CEE/SC), que aprova a inclusão do nome social nos registros escolares,
regulamentando o uso do nome social não apenas para os discentes, mas também a alteração
nos registros de servidores públicos.
Seu texto tem como diferencial iniciar-se pela afirmação do uso do nome social por
servidores, o que não era o foco dos documentos anteriormente citados. Novamente, é
garantido a miores de 18 anos o acesso ao uso do nome social mediante pedido e de menores
de 18 anos, mediante autorização dos pais. Apesar dessa litimação que, entendemos, parece
legalmente incontornável, esse texto destacasse positivamente. Suas especificações de meios
em que o nome social será usado parecem ter inspirado o documento emitido pelo MEC no
ano seguinte, por conterem referências a diversos itens em comum, como e-mail
instituicional, por exemplo.
Esse preciosismo de detalhes na listagem nos parece uma maior preocupação com o que
chamamos de ampliação dos enquadramentos de vida existentes no repertório institucional.
Consideramos que podem reduzir a exposição de pessoas trans* a situações vexatórias no
convívio cotidiano.
4.4 UFABC
No ano seguinte, 2011, após deliberação em sessão ordinária, o Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão (ConsEPE) da Universidade Federal do ABC (UFABC) aprovou a
Resolução nº 105, de maio de 2011. O texto dessa resolução reproduz quase que totalmente o
conteúdo da Resolução da UNIFAP, o que nos leva a crer que tenha tido essa Resolução como
referência.
Mais uma vez isso indica a importância do documento cirado pela UNIFAP em 2009,
embora nos incomode que três anos depois, outra instituição, ao ler esse texto não tenha
percebido as contradições discursivas aqui apontadas.
Assim como a UNIFAP, o texto da UFABC prevê que
§ 2º O nome social de travestis e transexuais será registrado em diários de
classe, cadastros, fichas, formulários, históricos, certificados, certidões,
atestados, carteiras, documentos, seguido pelo nome de registro entre
parênteses. (UFABC, 2011)
Isso significa que também nessa instituição as pessoas trans* terão seu nome de registro
civil, que nçao corresponde a sua identidade de gênero, expostos nos diversos ambientes
instituicionais. Novamente questionamos se os enredamentos curriculares resultantes dessa
exposição efetivamente garantirão a igualdade de condições de reconhecimento necessária
para ampliar os enquadramentos de vidas possíveis nesses espaços. Acreditamos ser um
ganho, mas muito precário para ser considerado garantia de vida.
4.5 UFMT
Em julho de 2011, a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) regulamentou,
através da Resolução nº 01, de 27 de julho de 2011, a utilização do nome social nos registros
acadêmicos como medida para garantir a inclusão e permanências de travestis e transexuais.
Assim como as normativas citadas anteriormente, a Resolução nº 01/2011, toma em
consideração o Art. 5º da Constituição Federal de 1988, citando que todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza.
Esse documento acrescentou ao repertório discursivo das IFES uma preocupação de que
o nome social não seja apenas um dado burocrático em documentos, mas efetivamente
utilizado nos cotidianos, conforme determina:
Artigo 5º - Garantir que as pessoas travestis e transexuais, matriculadas nesta IFES
sejam chamadas oralmente pelos nomes sociais na freqüência de classe e em
solenidades como colação de grau, entrega de certificados, premiações e eventos
congêneres. (UFMT, 2011)
Consideramos que, assim como a previsão de que os documento internos e cotidianos
dessa IFES tenham apenas o nome social da pessoa, essa determinação pode efetivammente
ampliar enredamentos curriculares que resultem nas conquistas constituicionais a que o
documento se refere.
Ficamos felizes em perceber que essa preocupação se estende ao próximo artigo,
pensando também a cerimônia de formatura:
Artigo 6º - Na cerimônia de Colação de Grau, a outorga será realizada considerando
o nome social, porém, na ata constará apenas o nome civil. (UFMT, 2011)
5. Considerações finais
Com base na leitura das resoluções aqui apresentadas percebemos que os discursos
utilizados para o embasamento da institucionailzação do uso do nome socia nas IFES (antes
da criação de uma documento oficial que as instruisse a isso) utilizou de forma recorrente o
apelo aos direitos humanos e à Constituição Federal (BRASIL, 1988) para justificar suas
prescrições.
O que esse estudo preliminar de um recorte dos resultados da pesquisa indica é que a
existência de um documento que institucionalize o uso do nome social não necessariamente
amplia os enquadramentos de vidas possíveis no âmbito institucional. Algumas articulações
discursivas podem até mesmo contradizer os princípios que dizer defender ao expor nomes
civis e sociais em documentos de uso cotidiano.
Por outro lado, é importante ressaltar o vanguardismmo das cinco instituições aqui
citadas, que utilizaram de recursos disponíveis nos jogos de verdade vigentes para criar
estratégias que permitam o uso do nome social, anteriormente possível apenas como tática
cotidiana das pessoas trans*.
Sendo assim, o que percebemos é que os enredamentos discursivos usados para
respaldar a adoção institucional do uso do nome social de pessoas trans* em diferentes IFES
precisa ser pensado com cuidado pelos órgãos reguladores para que os efeitos de verdade
produzidos por esses documentos não resultem na negação dos direitos que pretendem
assegurar.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 1988.
______. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. In.: Diário Oficial da União. Brasília, DF, n.
248, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27833.
_____.Portaria nº 1.612, de 18 de novembro de 2011. In.: Diário Oficial da União. Brasília,
DF, n. 222, 21 nov. 2011. Seção 1, p. 67-68.
______.Portaria nº 233, de 18 de maio de 2010.In.: Diário Oficial da União. Brasília, DF, n.
94, 19 mai. 2010. Seção 1, p. 76.
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SANTA
CATARINA (IF-SC:Brasil). Deliberação nº 006, de 05 de abril de 2010. Florianópolis, SC,
05 abr. 2010a.
______IF-SC regulamenta o uso do nome social de travestis e transexuais na instituição.
28 jun. 2010b. Disponível em: http://www.ifsc.edu.br/contato/9-noticias/1082-2806-if-sc-
regulamenta-uso-de-nome-social-de-travestis-e-transexuais-na-instituicao. Acesso em: 29 jun.
2016
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA CATARINENSE
(IFC:Brasil). Resolução Ad Referendum nº 019, de 29 de junho de 2010. Blumenau, SC, 29
jun. 2010.
______. (IFC:Brasil). Resolução nº 001, de 02 de maio de 2011. Blumenau, SC, 02 mai.
2011a.
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