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A sociedade moderna foi construída sobre uma fé na razão e na ciência. Diante de uma crise ecológica profunda, é natural que nossas mentes se voltem para o desenvolvimento de novas tecnologias e técnicas capazes de reverter a situação atual. No entanto, a construção de um futuro sustentável passa também por uma mudança de mentalidade e uma revisão daquilo que definimos como progresso. Nesse sentido, a sustentabilidade talvez nos conduza a adotar uma vida mais simples. Ser sustentável por opção, é ser simples por consequência.
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Ensaio teórico Autor: Bruno Ganem Coutinho Orientadora: Profa. Raquel Blumenschein
1
UNIVERSIDADE DE BRÁSLIA
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
SUSTENTÁVEL por opção
SIMPLES por consequência
Autor: Bruno Ganem Coutinho
Orientadora: Profa. Raquel Naves Blumenschein
Brasília, 2015
2
Fonte imagem da capa: http://www.srsalme.com/
3
Este documento apresenta o Trabalho Final da disciplina Ensaio
Teórico da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília,
em cumprimento com os parâmetros estabelecidos para o mesmo
pelo Plano de Curso da disciplina.
Bruno Ganem Coutinho
Matricula: 10/0008534
Orientadora: Profa. Raquel Naves Blumenschein
__________________________________________________________
Profa. Raquel Naves Blumenschein (orientadora)
_________________________________________________________
Bruno Ganem Coutinho (autor)
Data:
4
5
RESUMO
A sociedade moderna foi construída sobre uma fé na razão e
na ciência. Diante de uma crise ecológica profunda, é natural que
nossas mentes se voltem para o desenvolvimento de novas
tecnologias e técnicas capazes de reverter a situação atual. No
entanto, a construção de um futuro sustentável passa também por
uma mudança de mentalidade e uma revisão daquilo que
definimos como progresso. Nesse sentido, a sustentabilidade
talvez nos conduza a adotar uma vida mais simples. Ser
sustentável por opção, é ser simples por consequência.
Palavras Chave: Sustentabilidade, Razão, Ciência, Progresso,
Ser Simples
6
7
SUMÁRIO
1. Introdução 9
2. Sustentabilidade em risco 17
3. A racionalidade instalada 27
4. Ser sustentável 39
Bibliografia 47
8
9
1. INTRODUÇÃO
O começo do século XX foi marcado por uma revolução no
mundo da física. A luz de novos experimentos e mentes brilhantes
como de Albert Eistein, abriu-se diante dos homens um novo
mundo, tão pequeno que sua existência depende de uma
capacidade incrível de abstração, tão absurdo que sua
compreensão desafia paradigmas da física clássica, mas tão real
que inevitavelmente determina uma nova visão de mundo.
Até então, a Física entendia o mundo através de um modelo
rigidamente definido por leis universais, de modo que qualquer
fenômeno, em tese, poderia ser compreendido pela extensão de
princípios determinados a priori. O exercício da mente tinha nos
sentidos uma base sólida de apoio. O universo se encerrava em
um modelo linear de causa e efeito, funcionando como uma
grande máquina, extremamente complexa, mas ainda assim
necessariamente definida por leis mecânicas. (CAPRA, 1986)
Essa visão de mundo sofreu um abalo quando se tornou
possível a exploração do mundo numa escala incrivelmente
pequena. A mecânica quântica é um ramo da física que se ocupa
do estudo dos sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou
abaixo da escala atômica. Essa exploração do mundo atômico e
subatômico revelou fenômenos inteiramente novos e estranhos,
inexplicáveis pela Física Clássica, e exigiram profundas mudanças
nos conceitos de espaço, tempo, matéria, causa e efeito. Exemplo
dessa mudança é o fato de que os cientistas se depararam com
uma dualidade partícula/onda, até então inconcebível.
Perceberam que a luz, em determinados experimentos, se
comportava como partícula, em outros como onda. Essa natureza
dual, não apenas restrita à luz, mas também observada na matéria,
na acepção clássica, seria inconcebível. Parecia absurdo admitir
que algo poderia ser ao mesmo tempo, uma partícula, restrita a
10
um volume bem definido com massa, e uma onda, que se espalha
numa vasta região.
Na realidade, ninguém deveria ter dito que a luz é uma onda,
ou é uma partícula. Tudo que podemos dizer é que, sob certas
circunstâncias, a luz se comporta como uma onda ou como uma
partícula. No entanto "não há paradoxo ou conflito. As limitações
recaem sobre nossos modelos e nossa imaginação humana,
porque estamos tentando descrever algo que, em sua essência, é
diferente de qualquer coisa que já experimentamos através de
nossos sentidos, um reflexo de um incontrolável, mas vão desejo
de entender tudo com base em termos familiares" (GRIBBIN,
2008, p.5). Nenhuma única imagem mental da vida cotidiana será
satisfatória em nos dar uma ideia do mundo subatômico. Um
aparente conflito surge apenas quando tentamos explicar o
mundo subatômico com base em termos da Física Clássica.
É importante perceber que quando um cientista diz que sabe
algo, quer dizer que possui um modelo. Mas modelos científicos
são representações da realidade, não a realidade em si. A Física
anterior ao século XX, que entendia o universo como uma
máquina, com suas engrenagens e peças individuais, numa lógica
racional linear de causa e consequência, para todos os efeitos nos
dava uma explicação coerente da realidade e nos permitia
entender o mundo.
O que a Mecânica Quântica demonstra é que nossa visão de
mundo, aquilo que tomamos como verdade, na realidade varia de
época em época e depende de conceitos e raciocínios não
absolutos. Antes da estranheza do mundo, a Mecânica Quântica
nos revela primeiro as limitações da Física Clássica. As leis de
Newton não são verdades definitivas, tampouco mentiras.
Serviram-nos para entender o mundo, e de fato ainda nos servem
(não é necessário Einstein se quisermos calcular a trajetória de
um planeta, as leis de Newton nos bastam). Mas frente a novos
desafios, a nossa disposição para questionar nossas próprias
11
verdades é fundamental e é nessa capacidade de reflexão e
criatividade que reside a resiliência humana.
O raciocínio mecanicista faz parte de um pensamento que
surgiu a partir do século XVI baseado na razão e no método
cientifico que impulsionou o homem à era industrial e tecnológica.
Prolongamento da vida, redução da mortalidade infantil, melhoria
na qualidade de vida, aumento da produção, crescimento material,
satisfação de necessidades básicas, são conquistas inegáveis desse
pensamento.
Assim como a Física Clássica encontrou na mecânica
quântica suas limitações, essa visão de mundo mecanicista, que
surgiu impulsionada por mentes brilhantes como Galileu,
Descartes e Newton, diante de uma crise ecológica profunda nos
dias atuais se mostra obsoleta. O pensamento racional e o método
científico se tornaram forças tão bem sucedidas, que amarraram o
homem a crenças e o impossibilitaram de ver suas limitações. O
nosso conceito de progresso, a maneira como vivemos, uma
cultura materialista, estão intimamente ligadas a essa visão de
mundo e ao mesmo tempo na raiz de nossa crise ambiental.
No entanto, não se trata de uma questão de superioridade,
que uma maneira de enxergar o mundo seja superior a outra. É
uma questão de se adaptar e buscar abordagens complementares
na resolução de problemas. A história da humanidade é repleta de
sociedades distintas, com valores distintos, que existiram,
atingiram seu auge e, por um motivo ou outro, pereceram. Todas
deixaram sua marca na História, seja por monumentos erguidos,
pela passagem de conhecimentos ou pela difusão de princípios e
valores. O sucesso ou fracasso dessas civilizações depende de
inúmeros fatores, sendo que muitas têm suas ruinas atribuídas,
em última instância, a distúrbios ambientais. Uma crise ecológica,
portanto, não é exclusividade da civilização industrial. Mas a ruina
de outras civilizações por causas ecológicas nos aponta que
devemos estar atentos quanto ao nosso próprio futuro.
12
A sociedade moderna difere de povos antigos em duas
características fundamentais: possuímos uma superpopulação e
poderosa tecnologia. Essas duas características por si só não são
determinantes, são potencialidades. Nossa crise ecológica surge
do fato de nossa civilização industrial ter sido construída sobre
valores profundamente antiecológicos, o que revela o potencial de
destruição dessas duas características.
Antes de 1500, as sociedades humanas experimentavam a
natureza com base em relações orgânicas. Isso não significa que o
homem se identificasse e se encaixasse plenamente dentro de uma
ordem natural, como qualquer outro animal ou planta. De fato, a
dicotomia Homem x Natureza talvez tenha sempre existido. O
homem tem algo de diferente dos outros seres vivos, se diferencia,
quem sabe, por um profundo senso de autoconsciência e
tautologia, e essas características talvez expliquem porque desde
muito já se considerava apartado da natureza.
Uma relação orgânica provinha não de um entendimento e
profundo respeito em relação ao meio ambiente, mas pelo fato de
que existia uma clara diferença de força entre o homem e a
natureza. Nesse sentido, era uma relação orgânica não consciente,
fruto de um contato próximo e uma dependência. Não possuíamos
população suficientemente grande nem técnicas suficientemente
avançadas que nos possibilitassem causar um distúrbio ou uma
modificação catastrófica do qual a natureza como sistema global
não pudesse se recuperar.
Nosso conhecimento sobre o colapso de antigas civilizações
por fatores ambientais nos permite evitar um maniqueísmo
primário. Os povos do passado não eram bons administradores ou
entendiam a importância do meio ambiente, nada mais eram do
que pessoas como nós, enfrentando problemas como os nossos.
Infligiam modificações na paisagem assim como nós, mas uma
população reduzida e técnicas rudimentares os tornavam
consideravelmente mais submissos aos ciclos naturais. Ainda
13
assim, muitos desses povos foram capazes de causar distúrbios
significativos numa escala regional, a ponto de virem a ser
extintos.
De fato, modificar o meio parece ser uma característica
inerente não só ao homem, mas à própria vida. Como um castor
que constrói uma barragem, ou um joão de barro que constrói um
ninho são manifestações de ordem impostas por seres vivos. A
modificação em si, portanto, não é negativa. A espécie humana
sempre buscou a adaptação através da modificação do meio
natural, e existe valor no construído pelo homem. É provável que
os homens jamais tenham estado em equilíbrio real com seus
ambientes. Contudo, talvez seja o caso que homem e natureza
possam coexistir de maneira harmônica, mas não estática, num
equilíbrio dinâmico.
Alcançar essa harmonia é um dos grandes desafios da nossa
civilização. Esse texto busca entender os valores que moldam
nosso comportamento em relação à natureza e discutir a tese de
que vencer tal desafio depende de profunda mudança do
comportamento humano, no sentido de reduzir o consumo a
níveis compatíveis com a capacidade de suporte dos ecossistemas.
Não se trata de cercear a liberdade individual, mas de conduzir
nossas vidas com responsabilidade intra e intergeracional, reduzir
nossa pegada ecológica de modo a tornar compatível a viagem da
Humanidade rumo ao futuro nos limites da nossa única
espaçonave – a Terra.
Nesse sentido, o ensaio proposto se divide em três partes
principais: apresentar a urgência da questão ambiental; entender
as razões históricas que nos colocaram em uma realidade
insustentável do ponto de vista ambiental; e propor meios para a
construção de um futuro sustentável através de uma vida mais
simples.
14
.
15
16
Campos de Irrigação, Arábia Saudita
Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overview-satellite-
aerial-photography-earth/
17
2. SUSTENTABILIDADE EM RISCO
O Relatório Brundtland, publicado em 1987, definiu
sustentabilidade como o “desenvolvimento que satisfaz as
necessidades presentes sem comprometer a capacidade das
gerações futuras de suprir suas próprias necessidades.”
Sustentabilidade, portanto, é mais que um conceito; é um
compromisso com o futuro, em contraste com uma política de
crescimento desenvolvimentista que se preocupa apenas com o
aqui e agora. Como bem define uma frase de efeito, “não herdamos
a terra dos nossos ancestrais, apenas a pegamos emprestado dos
nossos filhos”.
A base de sobrevivência de toda e qualquer espécie se
encontra nos recursos naturais gerados pelo Planeta. A Terra
possui uma lógica de produção e renovação de recursos que
sustenta a vida em todas as suas manifestações. Nesse sentido,
pode ser considerado um sistema fechado que se baseia num
equilíbrio dinâmico de consumo e absorção.
A espécie humana, contudo, rompe com essa lógica no
momento em que nosso modelo de desenvolvimento passa a
consumir mais do que a capacidade de reposição do sistema e
lança resíduos e poluentes acima do que esse sistema consegue
absorver. O tempo do homem sobrepuja o tempo da natureza.
Nosso ritmo de exploração transforma numa linha reta o que a
Terra nos oferece como um ciclo.
É necessário perceber que o desenvolvimento da civilização
humana foi possível graças à resiliência do sistema natural. A
resiliência se define pela capacidade do sistema de se recuperar
de perturbações ou de atingir um novo estado de equilíbrio depois
de distúrbios (SCHWINGEL, 2012) .A sobrevivência da vida
humana depende da manutenção dessa resiliência de forma que o
ecossistema se mantenha dentro dos parâmetros que sustentem a
vida como ela é hoje.
18
Parâmetros de segurança da resiliência já vêm sendo
discutidos desde 1994 dentro do conceito de guard rails
planetários. Guard Rails foram definidos como “limites de perigo
quantitativamente definíveis, cuja transgressão, hoje ou no futuro,
teria tão intoleráveis consequências que mesmo benefícios de
larga escala em outras áreas não poderiam compensá-las”. Uma
vez que os guard rails sejam transgredidos, uma mudança
ambiental global torna-se um risco socialmente intolerável para a
civilização humana (WBGU, 2011 apud SCHWINGEL, 2012).
Um modelo linear de desenvolvimento ameaça a vida e se
mostra insustentável porque causa distúrbios profundos no
sistema. Em 2009, um grupo de cientistas adotou o conceito de
guard rails, sob o termo “limites planetários”, para apresentar
nove fronteiras ambientais que deveriam ser respeitadas. Com
demonstrações cientificamente embasadas, sete desses limites já
foram quantificados, sendo que três dessas fronteiras,
relacionadas a mudanças climáticas, distúrbios no ciclo de
nitrogênio e redução da biodiversidade, já teriam sido
ultrapassadas. A escassez de recursos hídricos, a degradação dos
oceanos e a perda de solos agricultáveis, da mesma forma, figuram
como problemas imediatos relacionados à exploração humana de
forma desmedida.
Atualmente, a humanidade necessita da capacidade
regenerativa de mais de 1.5 planeta Terra para produzir os
recursos consumidos anualmente (WWF, 2014). Isso significa que
estamos cortando árvores mais rápido do que elas crescem,
pescando mais peixes do que o oceano consegue produzir,
emitindo mais carbono na atmosfera do que as árvores e oceanos
conseguem absorver. A demanda humana ultrapassou a
capacidade de renovação do sistema, e essa é a questão
fundamental do problema.
Como método de comparação, os pesquisadores trabalham
com o conceito de Pegada Ecológica. Segundo a WWF (2014), essa
19
“é uma metodologia de contabilidade ambiental que avalia a
pressão do consumo das populações humanas sobre os recursos
naturais”. Nada mais é, portanto, do que uma medida que avalia o
impacto ecológico causado pelo homem. Analogamente, o conceito
de biocapacidade (WWF, 2014) representa a capacidade dos
ecossistemas em produzir recursos e absorver os resíduos
gerados. Ambos os conceitos são expressos em hectares globais
(GHA). Em 2010, a Pegada Ecológica Global era de 18.1 bilhões de
GHA, ou 2.6 GHA per capita. A biocapacidade total da Terra era de
12 bilhões de GHA, ou 1.7 GHA per capita. A contribuição para a
Pegada Ecológica Global, contudo, não é uniforme em relação a
todos os países. A Pegada Ecológica de uma nação pode exceder
sua biocapacidade através da exploração dos recursos nacionais
mais rápido do que sua capacidade de regeneração; pela
importação de produtos, dessa maneira se utilizando da
biocapacidade de outros locais; e pelo uso desmedido de sistemas
de absorção comuns a todas as nações, como o lançamento de gás
carbônico na atmosfera. Se todas as pessoas tivessem uma pegada
média dos habitantes do Katar, precisaríamos de 4.8 planetas. Se
todos tivessem um modelo de vida equivalente aos habitantes dos
Estados Unidos, seriam necessários 3.9 planetas Terra para suprir
nossa demanda de recursos. E o número de nações cuja Pegada
Ecológica supera sua biocapacidade vem aumentando. Além disso,
60% da biocapacidade global está localizada em apenas 10 países.
(WWF, 2014) Na medida em que aumenta a escassez de recursos,
eleva-se a competição, o que certamente tem implicações sociais,
econômicas e politicas.
A emissão de carbono tem sido o principal componente na
Pegada Ecológica humana e tem suas causas primárias na queima
de combustíveis fosseis – carvão, petróleo e gás natural.
O efeito estufa é um fenômeno natural, que mantem a vida
no Planeta. Parte da energia solar que incide sobre a Terra é
absorvida como calor. Mas o calor é também irradiado pela
20
superfície terrestre e, ao encontrar a barreira de Gases de Efeito
Estufa (GEE) na atmosfera, retorna à superfície. Assim, apenas
uma parte do calor irradiado pela Terra escapa para o espaço. É
esse calor retido que mantem a temperatura do Planeta ideal para
o desenvolvimento da Vida. Não fosse assim, seríamos um planeta
gelado.
O problema está no aumento da concentração de GEE na
atmosfera devido às ações humanas. É fato que a concentração de
CO2 aumentou de 280 ppm1 para 360 ppm, da era pré-industrial
para 1995, e já chegou a 400 ppm em alguns pontos do Planeta,
desde 2013 (AGNELO, 2015). O nível de CO2 atmosférico vem
crescendo ano a ano, sendo que a marca de 450 ppm é
considerada crítica pelos cientistas, porque implica um aumento
de 2°C na atmosfera. Esse é o nível limite de aumento da
temperatura, relativamente à segurança dos processos ecológicos.
Acima dele, “a Humanidade entra em um território climático
nunca antes explorado” (ANGELO, 2015). Acrescente-se que, além
do gás carbônico, outros gases acarretam aumento da
temperatura da atmosfera, principalmente o metano (CH4) e o
óxido nitroso (N2O).
As mudanças climáticas decorrentes da elevação da
temperatura implicam, entre outros impactos, aumento da
frequência de eventos extremos e o risco de desastres
relacionados a causas climáticas, elevação do nível do mar, perda
de cobertura de gelo, alteração da disponibilidade de recursos
hídricos, mudança nos padrões de distribuição de espécies da
flora e da fauna e risco de extinção, desertificação, mudanças nos
padrões de chuva que afetarão das culturas agrícolas e aumento
de doenças relacionadas ao calor e a mosquitos e outros vetores
tropicais (IPAM, 2015).
1 Partes Por Milhão.
21
Há pessoas que se colocam céticas em relação às
interferências humanas no aquecimento global e nas mudanças
climáticas. Afirmam que esse é um fenômeno cíclico natural do
Planeta e não pode ser atribuído ao Homem. No entanto, o tema
vem sendo estudado por milhares de cientistas de todo o mundo.
O alerta dos cientistas motivou a Organização Meteorológica
Mundial (OMM) e o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), órgãos da Organização das Nações Unidas
(ONU), a criar, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre
Mudança do Clima, o famoso IPCC, que congrega mais de 2.500
pesquisadores em todo o mundo e é aberto a todos os países
membros da ONU. O IPCC apresenta suas conclusões na forma de
relatórios, os quais foram publicados em 1990, 1995, 2001, 2007 e
– o quinto – entre os anos de 2013 e 2014 (JURAS, 2013).
O 5°º Relatório do IPCC apresenta “o estado da arte” em
relação às mudanças climáticas. Segundo esse documento, o
aquecimento global é inequívoco: houve um aumento de 0,78ºC°
na temperatura média da superfície terrestre, entre os períodos
de 1850-1900 e 2003-2012. As três últimas décadas foram as mais
quentes, desde 1850. Concentrações de GEE aumentaram e, com
“elevadíssimo grau de certeza”, são responsáveis pelo
aquecimento global. O 5°º Relatório do IPCC aponta alterações no
ciclo global da água, com aumento do contraste entre regiões
úmidas e secas e o recuo do gelo nas regiões frias (JURAS, 2013).
Os oceanos, especialmente, sofrem graves efeitos pelo
aumento da concentração de GEE na atmosfera. Segundo o IPCC,
houve elevação dos oceanos em 19 cm, entre 1901 e 2010. A
camada dos 75 m superiores das águas marinhas se aqueceu em
0,11°C por década, no período 1971–2010 (JURAS, 2013).
Um dos maiores impactos das mudanças climáticas sobre os
oceanos é sua acidificação, fenômeno que vem ocorrendo desde a
primeira Revolução Industrial, em meados do século XVIII, com a
emissão de poluentes a partir da Europa. No entanto, o processo
22
se intensificou ao longo dos últimos 250 anos (PBMC, 2015). Os
oceanos prestam grande serviço como sumidouros de GEE, pois
absorvem parte do CO2 atmosférico. Estima-se que 30% do gás
carbônico da atmosfera seja absorvido pelos mares. Ocorre que,
na água, o CO2 transforma-se em ácido carbônico, o que aumenta a
acidez dos oceanos, trazendo graves efeitos para a vida marinha.
Os corais, especialmente, que são verdadeiros berçários naturais
formados de carbonato de cálcio, são corroídos pela água
acidificada (PBMC, 2015). Além disso, os estudos apontam que
uma saturação de CO2 absorvido pelo ambiente marinho, somado
ao aumento da temperatura das águas, fará com que menores
quantidades desse gás sejam absorvidas, aumentando a
concentração do CO2 na atmosfera. Por sua vez, esse aumento
poderá contribuir para intensificar os efeitos do aquecimento
global. Dessa forma, é criado um ciclo vicioso entre a acidificação
dos oceanos e o aquecimento global (PBMC, 2015).
Um dos efeitos mais perversos das mudanças climáticas é
que elas afetam principalmente as nações mais pobres, que já
sofrem com a fome, a carência de água e energia e falta de
sistemas eficazes de saúde pública e estão despreparadas para
enfrentar as consequências e se adaptar às novas condições do
Planeta. Impactos sobre os sistemas agrícolas, doenças, eventos
meteorológicos extremos e maior frequência de desastres são,
sem dúvida, fatos que agravam ainda mais as condições de vida
das populações que, hoje, já não contam com recursos para
garantir uma vida digna e autoproteção. Portanto, as mudanças
climáticas afetarão a todos, mas serão mais impactantes para os
mais carentes.
Outro grave problema que afeta nossa resiliência é a crise da
biodiversidade. Além de ser fonte direta de recursos materiais, a
natureza provê diversos serviços ecossistêmicos, fundamentais
para a manutenção da vida humana, como a conservação da água
e do solo, a regulação da temperatura e do clima, a fixação de
23
carbono e a manutenção do teor de oxigênio na atmosfera, o
controle de predadores, a polinização de plantas e a dispersão de
sementes. A biodiversidade é ainda componente importante da
identidade cultural de muitas populações locais e é a base do
ecoturismo e do turismo rural, bem como da indústria
farmacêutica, que utiliza componentes da biodiverdade para o
desenvolvimento de seus produtos (GANEM, 2010).
Embora a extinção de espécies seja normal no processo
evolutivo, o atual declínio de espécies e o desaparecimento de
ecossistemas inteiros não são decorrentes de fenômenos naturais
e ocorrem em níveis dramáticos, em extensão e rapidez, o que
compromete a sua capacidade de recuperação. O Panorama Global
da Biodiversidade, publicado pelo Secretariado da Convenção
sobre a Diversidade Biológica (CDB, 2010), afirma que “existem
múltiplas indicações de contínuo declínio da biodiversidade em
todos os três dos seus principais componentes – genes, espécies e
ecossistemas” (p. 9). Entre as indicações de perda de
biodiversidade em nível global e regional, citam-se: declínio das
populações e ameaça de extinção de espécies, especialmente de
anfíbios, corais e plantas; queda na abundância de vertebrados,
sobretudo nas regiões tropicais e entre as espécies de água doce;
perda de hábitats, em extensão e integridade, principalmente
florestas tropicais, manguezais, zonas úmidas de água doce,
hábitats de gelo marinho, pântanos salgados, recifes de coral,
bancos de algas marinhas e bancos recifais de moluscos;
fragmentação de florestas; degradação de rios; e perda de
diversidade genética de espécies agrícolas e pecuárias.
A União Internacional para a Conservação da Natureza
(UICN) realiza a análise do risco de extinção de espécies de
plantas e animais em escala global e publica listas vermelhas de
espécies ameaçadas de extinção. A Lista Vermelha de 2008
apresenta a avaliação do estado de conservação de 44.937
espécies, das quais pelo menos 38% foram classificadas como
24
ameaçadas e 804 foram consideradas extintas. Tais números
representam apenas a ponta do iceberg, tendo em vista que
apenas uma parcela muito pequena das espécies existentes foi
avaliada (VIÉ, 2008, apud Ganem, 2010).
Considerando-se a escala de biomas, as perdas são mais
perceptíveis. Dos 14 grandes biomas da Terra, os prados
temperados, tropicais e inundados, as florestas mediterrâneas, as
florestas latifoliadas temperadas e as florestas secas tropicais já
perderam mais da metade de sua cobertura original. Nos
ecossistemas temperados, o desmatamento ocorreu antes de
1950. Entretanto, os ambientes tropicais vêm sofrendo com a
perda acelerada de hábitats nos últimos 60 anos. Entre as perdas
mais rápidas, destacam-se as florestas tropicais do sudeste da
Ásia, na região indo-malaia, nos últimos 20 anos do século XX,
bem como os prados tropicais e os prados inundados (WWF,
2006, apud Ganem, 2010).
No Brasil, país mais biodiverso do Planeta, é facilmente
perceptível a degradação dos biomas decorrente do
desmatamento. Levantamento do Ministério do Meio Ambiente
aponta que permanecia como remanescente de cobertura vegetal
nativa, em 2002: 85% da Floresta Amazônica, 87% do Pantanal,
60% do Cerrado, 62% da Caatinga, 22% da Mata Atlântica e 41%
do Pampa (MMA, 2007).
Outro grave problema que aumenta nossa Pegada Ecológica
é degradação de um dos recursos mais preciosos: a água doce. De
toda a água presente no planeta, 97.5% é salgada. Do restante de
água doce, a maior parte encontra-se além do alcance em geleiras
ou em lençóis freáticos longe da superfície. Apenas 1% da água
encontra-se disponível, sendo que se distribui de maneira
desigual pelo globo, o que significa que alguns países possuem
abundância, enquanto outros sofrem com a falta desse recurso.
(WWF, 2014)
25
Mais de 200 bacias hidrográficas, lar de mais de 2.5 bilhões
de pessoas, já passam por escassez significativa de água em pelo
menos um mês todos os anos. (WWF, 2014) Mudanças climáticas
e um aumento na demanda de água tendem a agravar esse
cenário.
O conceito de Pegada Ecológica direcionado à água é de
fundamental importância na medida em que expõe a existência de
dependências não evidentes em relação a esse recurso. É fácil
perceber a importância de energia na produção de alimentos e
processos de manufatura, mas a maioria dessas atividades se
utiliza também de grandes quantidades de água. De fato, produtos
deveriam ser apresentados em relação à quantidade de água
utilizada na sua produção.
Os índices aqui apresentados evidenciam claramente os
limites ecológicos a que estamos expostos. Para recolocar o rumo
da Humanidade nos trilhos da sustentabilidade, devemos
compreender o processo histórico que nos trouxe até aqui, os
modelos de pensamento que moldaram nosso comportamento
atual frente à natureza.
26
27
28
Campos de Sal, Austrália
Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overview-
satellite-aerial-photography-earth/
29
3. A RACIONALIDADE INSTALADA
Entre os séculos XVI e XVIII, foram formulados o sistema de
valores e a visão de mundo que estão na base de nossa cultura.
Entre 1500 e 1700, a Revolução Cientifica, o Iluminismo e a
Revolução Industrial foram eventos capazes de promover uma
mudança drástica na maneira como as pessoas descrevem o
mundo e em todo o seu modo de pensar.
Avanços na Física e na Astronomia impulsionaram o
desenvolvimento de uma nova percepção, permitindo que o
mundo fosse entendido não mais como um organismo, mas como
uma máquina. Essa nova compreensão mecanicista abriu caminho
para um processo de dominação do meio ambiente. O papel da
ciência é fundamental nesse processo, daí os historiadores
definirem os séculos XVI e XVII como a Idade da Revolução
Cientifica. (CAPRA, 1982) Esse período e a importância da ciência
podem ser compreendidos através de grandes pensadores e suas
contribuições, como as teorias de Galileu, Copérnico e Newton,
apoiadas num novo método de investigação defendido por Francis
Bacon, o qual envolvia o raciocínio inovador concebido por René
Descartes.
A Revolução Cientifica começou com Copérnico, que se opôs
a uma concepção geocêntrica de mundo. Após Copérnico, a Terra
deixou de ser o centro do universo para se tornar meramente um
dos vários planetas que orbitam em torno do sol; e ao homem foi
tirada sua posição de figura central da criação de Deus. É o inicio
de um processo no qual o homem se desprende de determinações
de ordem superior, o próprio homem se retira do centro de uma
criação divina para conquistar o mundo através de uma razão
fruto exclusivamente da mente humana. Exclui-se a metafísica, e
pela lógica do homem, o homem se engrandece, "ao mesmo tempo
o apoio e o triunfo, subindo pelas próprias costas, segundo uma
regra que ele mesmo promulgou”. (CASSIER, 1997)
30
A Galileu cabe a introdução da linguagem matemática no
processo de experimentação científica. Galileu baseava-se numa
abordagem empírica da natureza e numa descrição matemática
dos fenômenos, dois raciocínios que se tornaram características
fundamentais da ciência no século XVII, e permanecem como
importantes critérios de teorias até hoje. Nesse sentido, a fim de
possibilitar uma descrição matemática, as propriedades essenciais
dos corpos materiais foram reduzidas àquelas que poderiam ser
medidas e qualificadas. Outras propriedades seriam projeções
mentais subjetivas e sem utilidade prática dentro do método
científico. (CAPRA, 1982)
Francis Bacon foi responsável pela descrição de um método
empírico da ciência, baseada num processo indutivo - realizar
experimentos e extrair deles conclusões gerais, a serem testados
por novos experimentos. Para Bacon (xxxx), o objetivo da ciência
seria a busca por um conhecimento que poderia ser usado para
dominar e controlar a natureza.
Um novo método de raciocínio é inaugurado com René
Descartes e deu ao pensamento científico sua estrutura geral. É
analítico, e consiste em decompor pensamentos e problemas em
suas partes componentes e em dispô-los em sua ordem lógica. Em
sua essência é um método reducionista, sendo que o todo nada
mais é que a soma das partes. O ponto fundamental do raciocínio
de Descartes é a duvida. Ao se questionar sobre o conhecimento,
em busca de um alicerce que não pudesse duvidar e através desse
método reducionista é que formula sua famosa afirmação "cogito
ergo sum". A crença no conhecimento científico está na própria
base da filosofia cartesiana, e dessa crença deriva uma visão de
mundo presente até hoje em nossa cultura. Muitos ainda hoje
estão convencidos de que o método científico é o único meio
válido de compreensão do universo. Dessa decomposição do todo
em suas partes, reafirma-se a imagem da natureza como máquina,
e nada além de máquina, governada por leis naturais mecânicas
31
exatas, e cria-se uma ruptura entre mente e matéria de forma que
não há no universo material qualquer propósito ou
espiritualidade. (CAPRA, 1982)
De maneira alguma os pensadores até aqui citados
desenvolveram seus raciocínios de maneira isolada. É evidente
que a História está repleta de inúmeros outros nomes e figuras de
grande importância. Como disse Isaac Newton, "se enxerguei mais
longe, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes". Copérnico,
Galileu, Bacon e Descartes são alguns desses gigantes. A
concepção mecanicista da natureza encontrou em Newton sua
síntese matemática, porquanto até Descartes, a natureza como
máquina perfeita governada por leis exatas permanecia como
simples visão. Newton desenvolveu leis exatas do movimento dos
corpos sob influência da gravidade, e a aplicação universal dessas
leis parecia confirmar a visão cartesiana da natureza.
Desse modo, as descobertas e resoluções alcançadas por
esses grandes pensadores influenciaram a determinação de um
paradigma que dominou nossa cultura durante centenas de anos,
ao longo dos quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e
influenciou significativamente o resto do mundo. Esse paradigma
compreende os valores associados a essas descobertas e
resoluções. Inclui a crença de que o método científico é a única
abordagem válida de conhecimento; a concepção do universo
como um sistema mecânico composto de unidades materiais
elementares; e a crença no progresso material ilimitado, a ser
alcançado através do crescimento econômico e tecnológico.
Uma descrição matemática da natureza e um método de
investigação empírico aliados a um método de raciocínio
cartesiano determinaram uma abordagem extremamente bem
sucedida em desenvolver uma capacidade de modificação e
exploração do mundo material, impulsionando o homem à
civilização industrial. Esse desenvolvimento trouxe consigo
32
melhorias significativas na condição humana no sentido de que
livrou o homem de sofrimentos primitivos.
Entretanto, o século XXI se inicia imerso em uma crise
ecológica sem precedentes em escala e profundidade. Nossa crise
difere de qualquer outra que povos de outrora tenham enfrentado
por dois aspectos fundamentais. Uma explosão demográfica e o
desenvolvimento de técnicas altamente avançadas forneceram ao
homem uma capacidade de transformação profunda do meio em
uma escala global. Mas uma capacidade representa os meios, e não
os fins, o que significa que nossa crise ecológica na realidade é
uma manifestação de nossos valores como sociedade.
No momento em que assumimos a existência real de uma
crise, ela se faz eficiente em nos apontar as falhas de nossa
civilização industrial. Falhas na medida em que são pensamentos
e comportamentos que foram determinantes em nos trazer até a
situação atual.
É possível que a dicotomia Homem X Natureza sempre tenha
existido a partir do momento em que a raça humana se diferencia
no seu próprio galho de evolução na árvore da vida e se distancia
dos outros seres vivos. Ainda assim, a civilização industrial
inaugura uma nova postura de dominação através de uma visão
de mundo mecanicista e do desenvolvimento de técnicas
avançadas. A natureza rebaixada a nível de máquina perde
qualquer valor espiritual, se torna matéria apenas, e sugere que a
compreensão plena do sistema natural se encontra dentro do
alcance da racionalidade humana. Natural e artificial se tornam
extensões dos mesmos processos, apenas em níveis diferentes de
complexidade. “Os cientistas da Idade Média escutavam a
natureza; doravante, eles a questionarão. Integração no seio da
biosfera, liberação progressiva e enfim dominação – eis as etapas
da história do homem” (DORST, 1981, p.77).
Num contexto de frenesi cientifico, dentro de um
entendimento de universo feito máquina, parece natural o
33
surgimento de uma mentalidade que acredita no potencial de
criação, através da mente humana, de soluções técnicas cada vez
mais engenhosas. De fato, “muitos padrões culturais tem
provavelmente sua origem no caso de que uma inclinação em
atitudes, formas e técnicas iniciou um processo coletivo em certa
direção. Com o tempo, essa inclinação se tornou progressivamente
mais consciente e mais fortemente expressa e acabou por evoluir
para padrões de crença, de comportamento e de gosto que
ajudaram a definir filosofias e metas sociais” (DUBOS, 1972).
É nesse sentido que se desenvolve um conceito de Progresso
pautado numa constante linear aumentativa, de que mais é
sempre melhor. Na natureza todos os processos são cíclicos. É
dessa forma que o sistema se sustenta. Não obstante, nossa
cultura, ou a mente humana em si, tende a enxergar o universo de
forma linear. Algo sem começo nem fim, que retorna a si mesmo,
parece escapar a nossa intuição humana. Seguimos em busca
sempre do mais, mais complexo, maior, melhor. Esse conceito age
dentro de uma esfera material quantitativa, de forma que afasta o
ser de conceitos metafísicos, e foi determinante em produzir uma
atitude face à vida que busca realização na procura obstinada de
riqueza – em suma, o materialismo.
Evidente que qualidade de vida envolve uma dimensão
material. Alimento, água, matéria para produzir roupas e abrigos
são necessidades básicas inegáveis do ser humano e nesse sentido
“o interesse crescente dos homens pelos resultados práticos da
ciência foi por si mesmo tanto natural quanto legítimo” (GILSON
apud SHUMACHER, 1977, p.78).
Entretanto, progressivamente, passa-se a avaliar o padrão de
vida pela quantidade de consumo, supondo que aquele que
consome mais está em melhor condição do que aquele que
consome menos. Ainda na década de 1970, Schumacher coloca
que a própria paz universal, na crença dominante, teria como mais
sólida fundação a prosperidade universal. Essa proposição se
34
baseia basicamente em três ideias: de que a prosperidade
universal é possível; que sua obtenção é exequível baseado na
filosofia materialista de “enriqueçam-se”; e que este é o caminho
para paz (SCHUMACHER, 1977). Essa crença moderna torna-se
especialmente atraente porque não exige qualquer renúncia ou
sacrifício, temos a ciência e a técnica para nos ajudar a alcançar a
abundância. Mas num mundo de recursos limitados, como saber
se há bastante para todos? Mais importante, e é nesse ponto
primordial que o materialismo se revela insustentável, o que é
“bastante”? Uma vida pautada pelo material apenas, não se ajusta
a esse mundo por não conter em si qualquer principio limitador,
ou cíclico. O que era luxo para os nossos pais torna-se necessidade
para nós.
Ainda assim, uma paz que tem como pilar fundamental uma
prosperidade material, por mais que seja possível, dificilmente
tornar-se-ia permanente, porquanto uma vida devotada
primordialmente à procura de fins materiais coloca o homem
contra o homem e as nações contra as nações. Quando passamos a
nos definir pelo que temos, e não pelo que somos, não floresce de
fato um verdadeiro sentimento de fraternidade.
Faz-se expressa nossa individualidade quando nosso
progresso parece se medir pelo vertical. Até onde chegamos como
humanidade parece ser determinado por até onde alguém já
chegou. Mas na realidade existe um abismo. O espetacularmente
avançado e o espantosamente primitivo coexistem em um mesmo
planeta Terra. O homem já chegou à Lua, e ainda assim mais de
700 milhões de pessoas não têm acesso a água potável. Se o
objetivo do progresso é melhorar a condição humana, a quem
serve um modelo de progresso que se desenvolve a uma
velocidade espantosa, mas negligencia continentes inteiros? De
que vale a Lua para quem não tem o que beber?
Se existe um abismo entre o mais e o menos avançado,
aqueles à margem do desenvolvimento naturalmente buscam
35
alcançar os mesmos padrões de vida tidos como superiores, e
nesse percurso trazem consigo todas as mazelas associadas a esse
padrão. Nesse cenário, quem dita o futuro é aquele para quem o
futuro chega antes, e a consequência é a reprodução de um
modelo único de vida, de consumo, de exploração.
Quando buscamos soluções para a questão da
sustentabilidade, o consumo, a produção, o progresso, são
conceitos enraizados tão profundamente na nossa cultura, que às
vezes custamos a enxergar parte essencial (talvez a mais
importante) do problema. Nos Estados Unidos, embora alguns
códigos de energia adotados por estados e municípios nos últimos
anos tenham aumentado a economia de energia por metro
quadrado em edificações, o tamanho da casa padrão norte
americana parece estar aumentando mais rapidamente, anulando
qualquer economia.
Da mesma maneira, quando o assunto é sustentabilidade,
algumas grandes empresas parecem já ter comprado essa ideia. E
agir de maneira consciente se tornou uma estratégia de
marketing. Numa empresa de refrigerantes, por exemplo, isso se
traduz, talvez, na produção de latinhas que usem menos material e
que agora são "verdes", apesar de continuarem tão vermelhas
quanto antes. Mas o nível de produção, o numero de latinhas
produzidas todos os anos se mantem o mesmo. No final das
contas, latinhas mais ou menos leves tem praticamente o mesmo
impacto sobre o planeta? Uma análise desse fato nos permite
concluir que, em muitos casos, parte essencial do problema reside
não no produto em si, mas na quantidade que se produz.
O tamanho de nossas casas e a quantidade de latinhas
produzidas são nada mais que o reflexo do nosso padrão de
consumo. Por mais importantes que sejam, políticas e campanhas
adiantam pouco ou quase nada, se não aliadas a uma revisão dos
nossos valores e da maneira como vivemos.
36
Durante a maior parte da historia da humanidade, a energia
disponível era, em grande parte, ainda produto de músculos de
homens e animais. Em determinado ponto, o homem descobriu
como dispor de uma energia externa a seu próprio corpo, através
de forças elementares como o vento, as correntes fluviais e quedas
d’água. No entanto, de súbito, a partir do século XVIII, o carvão e
posteriormente a combustão do petróleo colocaram à disposição
do homem uma energia sem paralelo com a de qualquer outro
período. A energia disponível, doravante, animará máquinas
poderosas, cujas forças ampliarão a capacidade de ação do ser
humano. Os músculos encontraram-se, por sua vez,
completamente exteriorizados do processo de produção, sendo a
força das máquinas muito superior a força dos seres. A revolução
industrial foi, de fato, uma revolução energética.
Nas culturas pré-industriais cada individuo tomava da
natureza o que lhe era necessário numa relação mais evidente de
esforço e recompensa. Ainda assim, o trabalho humano, por si só,
foi capaz de transformar paisagens de vastas superfícies. A
Revolução Industrial foi responsável por modificar
completamente essa relação num processo de substituição do
homem pela máquina. Um novo potencial energético
transformado em mecânica permitiu aos homens empreenderem
trabalhos que outrora sequer podiam imaginar, o que se traduz
numa mudança significativa na escala de produção, exploração e
construção.
Essa transferência do trabalho do homem para a máquina foi
de extrema importância em determinar nosso atual padrão de
consumo material e energético. Dorst (1979) coloca que “de
repente, os investimentos em termos de energia passam a ser
incomparavelmente mais elevados, pois o homem vai precisar
acima de tudo de combustível para alimentar os monstros
famélicos em que se vão transformando suas máquinas” (DORST,
1979, p. 62).
37
Logo, a construção da civilização industrial se baseia num
aumento notável de recursos utilizados por individuo. Do
construído pelas mãos do homem ao construído pelas pás
mecânicas, da oca ao arranha-céu, cresce nossa demanda por
energia, e com ela nossa necessidade de exploração do mundo
natural.
A máquina, muito superior ao homem em força e eficiência,
transforma-se num modelo centralizado de produção e
exploração. Uma fábrica apenas é capaz de substituir uma
comunidade inteira, sendo que o homem que fica, quando a
comunidade se vai, como operário se transforma em mais uma
peça mecânica dentro do sistema industrial.
Essa lógica terceiriza os mais básicos itens de subsistência, e
nos torna alheios à produção. Numa mudança de escala, perdemos
a noção do processo, e consumir se tornou uma atividade livre de
qualquer reflexão sobre de onde vem e para onde vai o que se
consome. Através de um método reducionista, perde-se a noção
do todo. Além disso, tornamo-nos reféns de nossa própria
engenhosidade, porquanto a indústria centraliza e se configura
como modelo rígido. Com sua complexidade de esteiras e
engrenagens, foge à nossa compreensão mundana e caminha sem
perguntar, ainda que, se o fizesse, poucos talvez se interessassem
em responder.
Somos viciados em energia e dependentes de um sistema
que não compreendemos totalmente. Seguimos consumindo sem
consciência do real impacto que causamos como indivíduos.
Podemos acreditar que, num primeiro momento, nosso nível de
produção e exploração industrial nada mais era que um reflexo da
capacidade humana, o homem em frenesi com sua própria
engenhosidade, entendendo o mundo e se descobrindo uma força
transformadora. Esse ímpeto, no entanto, evolui para uma
obsessão pelo crescimento material. Nossas necessidades passam
a ser determinadas pela capacidade, de modo que os meios
38
tornam-se os fins. Passamos a consumir e possuir não
simplesmente o que se precisa, mas o que se consegue e o que se
quer.
Mais que isso, a crença na contínua necessidade de aumento
da produção, apoiado em valores materialistas de autoafirmação e
expansão, de forma consciente ou não, representa a
instrumentalização do consumo. Nesse sentido, consumir se torna
um instrumento de manutenção da lógica industrial.
O investimento em tecnologias é de vital importância, e
nessa escala o desenvolvimento sustentável escapa à nossa
realidade cotidiana. Entretanto, sem nos darmos conta, nos
acostumamos a pensar que a tecnologia é capaz de resolver todos
os nossos problemas e deve avançar para compensar nossos erros
de comportamento (erros numa perspectiva da sustentabilidade,
dado que o homem possui um componente cultural subjetivo).
Muitas vezes, tendemos a transferir a responsabilidade de
criar uma realidade sustentável para instituições maiores do que
nós. Mas, se assumimos que grande parte do problema está no
consumo, entendemos que, como indivíduos, temos o poder para
mudar o jogo, a responsabilidade é de todos nós. Assim, o caminho
para uma real sustentabilidade passa também por uma mudança
de mentalidade e uma revisão daquilo que chamamos de
progresso.
39
40
Porto de Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos
Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overview-
satellite-aerial-photography-earth/
41
4. SER SIMPLES
Diversas filosofias orientais se baseiam numa relação de
respeito em relação à vida em suas múltiplas formas, dado que
todas são manifestações de um ser superior uno. Nesse sistema se
inclui o homem como nada senão um dos muitos elementos que
fazem parte de um todo indissociável. Não há hierarquia de seres,
posto que Deus é imanente a todas as criaturas.
Nesse sentido, são filosofias que interagem com a natureza
dentro de uma postura de não violência; não cabe ao homem
assumir uma posição de dominação, ele se integra a uma corrente
dinâmica do universo e consome e retira do meio aquilo que é
necessário a sua sobrevivência. “Deus está em tudo e tudo está em
Deus. O homem deve respeitar o mundo vivo em virtude da
unidade de todas as existências.” (DORST, 1979, p.86)
Parece impossível, ou pelo menos altamente improvável, que
uma comunidade que se dedicasse a qualquer filosofia que
enxergasse o mundo dessa maneira viria a conhecer uma crise
ecológica fruto da ação humana. Entretanto, não é necessário
assumir Deus em todos os seres para respeitar a natureza. Quem
sabe o espirito humano, por si só, diante de uma manifestação
natural por demais bela, busque uma conexão. Desenvolver um
respeito profundo pela natureza de modo que preservá-la não seja
apenas uma questão de sobrevivência, seria talvez o caminho mais
sustentável possível.
Ainda assim, não é preciso se converter ao budismo, ou
acreditar numa conexão espiritual para adotar uma postura mais
ecológica. Sem abdicar da razão ou da eficiência do método
cientifico, no ponto em que estamos, o que uma crise ambiental
inevitavelmente exige de nós é mudança.
Jared Diamond (2012) coloca que, dentre os fatores que
influenciaram o colapso ou não de civilizações antigas, aquele que
sempre se mostrou significativo envolve a maneira como uma
42
sociedade responde aos seus problemas. Essa resposta depende
de instituições políticas, econômicas e sociais e de valores
culturais.
Cada sociedade tem suas imagens do futuro. René Dubos
(1975) nos apresenta uma versão curiosa desse fato:
“Pouco antes de 1900, os redatores das revistas
americanas se empenhavam em imaginar como seria o
mundo no século seguinte. No final do século XIX, a
máquina a vapor levava rapidamente ao desenvolvimento
de luxuosos transatlânticos com duas ou três chaminés
muito altas. Os profetas previram, em vista disso, imensos
barcos a vapor de muitas chaminés capazes de atravessar o
Atlântico em poucos dias, mas não fizeram menção de
aviões a jato. Entre os criadores de plantas falava-se então
de morangos do tamanho de maças, mas não de almoços
congelados”. (página)
Imaginar o futuro, acrescenta Dubos, é uma tarefa arriscada,
não só porque novas tecnologias e descobertas científicas são em
parte imprevisíveis, mas também porque homens não são robôs. O
futuro que parece lógico na realidade difere do futuro
determinado pela vontade humana. O que é tecnologicamente
viável não é necessariamente o que os seres humanos querem ou
tem que de fato fazer.
A ciência nos apresenta um futuro grandioso, prédios cada
vez maiores, exploração espacial, velocidades supersônicas, um
mundo de distâncias cada vez menores, e vidas cada vez mais
longas. Todos esses avanços são incríveis, e fazem revelar a
genialidade humana. Mas, diante de uma crise ecológica, num
mundo de recursos limitados, permitamo-nos também pensar
simples e pequeno.
43
A maneira como vivemos é resultado de uma capacidade
técnica incrivelmente avançada, mas orientada de maneira
profundamente antiecológica, incompatível com os sistemas
naturais. Desenvolvemos tecnologias altamente eficientes em
produção e exploração, mas que afastam o homem de um cultivo
de suas reais necessidades e o tornam amarrado a um sistema
centralizado.
“Cada vez maiores máquinas, impondo concentrações
ainda maiores de poderio econômico e exercendo violência
sempre maior ao meio ambiente não constituem progresso:
elas são uma negação da sabedoria. A sabedoria exige uma
nova orientação da ciência e da tecnologia para o orgânico,
o suave, o elegante, o não-violento, o belo” (SCHUMACHER,
1973, p.28).
Precisamos então, de uma orientação que nos dê invenções e
máquinas que sejam capazes de inverterem as tendências
destrutivas que nos ameaçam. Pensar simples e pequeno,
portanto, seria valorizar aquilo que é feito tendo como referencia
de fato o ser, de forma a construir um futuro pautado nas reais
necessidades do homem e não manipulado por valores de
expansão e lucro.
Essa nova orientação seria direcionada a uma escala
humana. Aquilo que pode ser feito numa escala não industrial, que
seja capaz de conectar o homem as suas reais necessidades e que
trabalha dentro de um principio de descentralização.
Investir numa escala humana significa empoderar o
indivíduo e as comunidades de forma que qualquer um possa
construir o futuro. É uma questão de resiliência, na medida em
que promove autonomia, diversidade de pensamentos e maneiras
de viver, da mesma forma que um ecossistema biodiverso possui
flexibilidade e é capaz de se adaptar a novas situações.
44
É numa escala não-industrial que se torna possível enxergar
o trabalho não como sacrifício, mas como tendo uma função
positiva no mínimo tríplice: dar ao homem a oportunidade de
utilizar e desenvolver suas capacidades; possibilitá-lo a superar
seu egocentrismo unindo-se a outras pessoas em uma tarefa
comum; e gerar os produtos e serviços necessários a uma
existência digna. Nesse sentido, Schumacher (1973) introduz o
conceito de produção pelas massas em contraste com o sistema de
produção em massa. A tecnologia de produção em massa, diz ele,
“......é intrinsecamente violenta, ecologicamente
nociva, motivadora de frustrações em termos de recursos
não-renováveis, e embrutecedora para a pessoa humana. A
produção pelas massas, ao fazer uso do melhor do
conhecimento e da experiência atuais, é propicia à
descentralização, compatível com as leis da ecologia,
sensível no uso dos recursos escassos e planejada para
servir à pessoa humana, em vez de torna-la escrava da
máquina” (SCHUMACHER, 1973, p.136).
E dessa forma direcionar a energia humana ao que
realmente nos tem importância, reintroduzindo os músculos na
construção de uma realidade sustentável.
Trabalhar dentro de uma escala humana significa fortalecer
comunidades em detrimento do individual, numa celebração da
nossa capacidade, não pelo que podemos fazer em série, não como
indivíduos-máquina, mas como indivíduos criativos num
ambiente que promova o compartilhamento de informação e
conexões imateriais, valorizando pessoas, ambientes, momentos,
experiências.
De uma mentalidade construída sobre a valorização do ser
pode surgir um conceito de progresso que se baseia na
pluralidade, na diversidade, e que tenha o desenvolvimento da
45
tecnologia não como os fins, mas como os meios, uma ferramenta
de empoderamento e resiliência que capacite as pessoas a
construir o futuro. Um conceito de progresso que surge da
descentralização, que permita a expressão do potencial criativo
humano num sistema onde o homem não representa uma peça
mecânica, mas é o próprio criador; que, dentro de uma
comunidade, compartilhe informação; e que estimule a
cooperação em detrimento da competição. Dessa maneira,
podemos caminhar rumo ao futuro não em fila indiana, mas lado a
lado.
Tendo em mente civilizações que surgiram e pereceram
vitimas do próprio sucesso, Dorst (1979) nos coloca uma questão
fundamental:
“.....a civilização industrial, de que tanto nos
orgulhamos, não terá chegado ao mesmo estágio fatal, o da
irreversibilidade? Seus êxitos tecnológicos e industriais não
a fizeram ir muito longe, sonhar demais e estender pelo
mundo inteiro os processos elaborados dentro de condições
muito especificas e um gênero de vida que talvez não seja o
melhor para todos?” (DORST, 1979, p.61)
Nesse todos, inclui-se nossa própria sociedade moderna.
Uma mudança de direção rumo a um futuro mais sustentável é
certamente um processo, podendo ser algo não exequível num
curto período de tempo. Exige uma reorientação dos nossos
esforços e uma mudança de mentalidade sobre o que é realmente
importante. Mas esse processo deve ter inicio hoje, sendo que uma
reorientação começa na esfera do individual através de uma
reflexão sobre a maneira como vivemos e consumimos. No
momento em que assumimos que há urgência na questão
ambiental, optar pela sustentabilidade exige de nós como
indivíduos uma atitude simples em relação à vida. Sem negar as
46
conquistas da modernidade, simples no sentido de valorizar uma
vida menos materialista, repensar nossas necessidades e
consumir de maneira responsável, consumir e possuir o que se
precisa, não simplesmente o que se consegue ou o que se quer;
simples no sentido de valorizar aquilo que pode ser produzido
numa escala humana de produção; de fortalecer comunidades em
detrimento do individual; de promover a diversidade, livrar-se de
preconceitos; de compartilhar conhecimentos e informações. E
assim tem que ser, porque talvez só assim será. Sustentável por
opção, simples por consequência.
47
48
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