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“O Balão Vermelho” e o realismo fantástico Idgie Pena Resumo Este ensaio tem como objetivo analisar passagens do curta-metragem francês “Le Ballon Rouge” tomando como base a visão de André Bazin e de Jacques Aumont a cerca do papel da montagem. Palavras-chave: montagem, Bazin, Aumont, cinema, Lamorisse, realismo O curta “Le Ballon Rouge”, do cineasta francês Albert Lamorisse, se tornou um clássico do cinema realista, tendo rendido a Lamorisse a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor roteiro original. O filme foi lançado em 1956 como uma narrativa de fantasia infantil off-Disney, seguindo a trilha de Crin-Blanc, outro premiado curta infantil lançado três anos antes pelo mesmo diretor. O protagonista de “Le Ballon Rouge” é interpretado pelo próprio filho do diretor, Pascal Lamorisse, e sua irmã Sabine também recebe um papel menor na narrativa. O curta viria a ganhar grande aceitação não somente como entretenimento infantil mas também entre o público adulto. O percurso desenhado durante os 34 minutos de filme – nos quais há pouquíssimas falas - tem início em um plano aberto de uma rua parisiense. A paisagem é dominada pelo cinza, no primeiro plano se vê um gato parado na rua e em último plano – possibilitada pela grande profundidade de campo - a cidade tomada pela luz da aurora. Observamos um menino também vestido em trajes cinzas entrar no quadro, alisar o gato e descer as escadarias de pedra. Antes que se complete o terceiro minuto do filme, o menino para no meio das escadarias, ao lado de um poste de luz, e olha para cima com certa curiosidade. O objeto que atrai o seu olhar

Ensaio: O Balão Vermelho (Le Ballon rouge)

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Este ensaio tem como objetivo analisar passagens do curta-metragem francês “Le Ballon Rouge” tomando como base a visão de André Bazin e de Jacques Aumont a cerca do papel da montagem.

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  • O Balo Vermelho e o realismo fantstico

    Idgie Pena

    Resumo

    Este ensaio tem como objetivo analisar passagens do curta-metragem francs Le

    Ballon Rouge tomando como base a viso de Andr Bazin e de Jacques Aumont a

    cerca do papel da montagem.

    Palavras-chave: montagem, Bazin, Aumont, cinema, Lamorisse, realismo

    O curta Le Ballon Rouge, do cineasta francs Albert Lamorisse, se tornou um

    clssico do cinema realista, tendo rendido a Lamorisse a Palma de Ouro em Cannes

    e o Oscar de melhor roteiro original. O filme foi lanado em 1956 como uma

    narrativa de fantasia infantil off-Disney, seguindo a trilha de Crin-Blanc, outro

    premiado curta infantil lanado trs anos antes pelo mesmo diretor. O protagonista

    de Le Ballon Rouge interpretado pelo prprio filho do diretor, Pascal Lamorisse,

    e sua irm Sabine tambm recebe um papel menor na narrativa. O curta viria a

    ganhar grande aceitao no somente como entretenimento infantil mas tambm

    entre o pblico adulto.

    O percurso desenhado durante os 34 minutos de filme nos quais h pouqussimas

    falas - tem incio em um plano aberto de uma rua parisiense. A paisagem

    dominada pelo cinza, no primeiro plano se v um gato parado na rua e em ltimo

    plano possibilitada pela grande profundidade de campo - a cidade tomada pela luz

    da aurora. Observamos um menino tambm vestido em trajes cinzas entrar no

    quadro, alisar o gato e descer as escadarias de pedra. Antes que se complete o

    terceiro minuto do filme, o menino para no meio das escadarias, ao lado de um

    poste de luz, e olha para cima com certa curiosidade. O objeto que atrai o seu olhar

  • nos foge vista de incio; ao passo em que o garoto comea a escalar o poste, a

    cmera o acompanha, e logo vemos um novo personagem entrar no quadro: o

    balo vermelho. O contraste nessa cena brutal: tudo ao redor do balo cinza,

    frio. Concreto e metal. O balo, pelo contrrio, vermelho, liso e brilhante. O

    menino prende o balo nos dentes e continua seu caminho cotidiano. As cenas

    seguintes mostram a construo do afeto entre o menino e o balo. Ele pede ao

    funcionrio de um estabelecimento que tome conta do balo enquanto assiste

    aula, e depois de retom-lo pula de guarda-chuva em guarda-chuva protegendo-o

    dos pingos. Quando o protagonista chega em sua casa, h uma perceptvel

    alterao na trilha sonora, um dos momentos em que fica evidente a funo rtmica

    da montagem (AUMONT, 1995). A composio, que antes alternava entre neutra

    nos momentos iniciais e bem humorada durante as peripcias pela cidade -,

    agora assume um tom oscilante e de leve suspense, acompanhando o momento da

    narrativa em que no sabemos o destino do balo. Por alguns segundos essa

    atmosfera se mantm enquanto assistimos a uma mulher mais velha no fica claro

    se me, av ou governanta abrir a janela e libertar o balo vermelho. O tom de

    suspense logo substitudo por uma mistura de enigma e de otimismo quando o

    balo ignora a fsica e espera pelo menino do lado de fora da janela. Nessa

    sequncia importante observar o realismo conferido pela ausncia da montagem,

    posto que em um mesmo plano aberto vemos a mulher soltando o balo, o balo

    vagando livremente pelo ar e depois retornando janela. Logo em seguida vemos o

    menino e o balo no mesmo plano, vistos de dentro da casa e depois de fora,

    provando a contiguidade dos objetos (BAZIN, 2004).

    Quando o filme chega aos dez minutos, comea a se delinear mais claramente uma

    outra caracterstica do balo: o zoomorfismo (BAZIN, 2014). O balo vai at o

    menino, mas em seguida se esquiva como se o provocasse, de brincadeira. Ele

    atende quando o menino o chama e sai voando quando um co o persegue. O

    garoto consegue engan-lo e o segura, para em seguida dirigir-se a ele com o dedo

    em riste, como se falasse com um animal de estimao. Ao chegar na escola, o

    balo corre para provocar os outros meninos, atitude que tambm lhe confere certa

    personalidade. Essa sequncia de cenas um bom exemplo da presena da

    montagem clssica no filme, na qual o Lamorisse opta por planos paralelos mais

    curtos, mostrando os garotos e o balo voando pela rua separadamente, para

  • depois mostr-los juntos num outro plano. Bastian somente neste momento que

    aprendemos o seu nome - se perde em meio aos colegas, o rosto tomado de

    angstia pela sbita concorrncia ao seu companheiro at ento exclusivo.

    Entre os quatorze e os dezesseis minutos do curta podemos ver vrios planos

    longos e abertos em sequncia, mostrando a perseguio do fiel balo ao diretor do

    colgio, que havia deixado o garoto de castigo no cenrio anterior. Essa sequncia

    apenas uma das muitas ao longo do filme em que o realismo fica evidente

    enquanto escolha do diretor. Lamorisse poderia facilmente ter dramatizado essa

    caada com cortes rpidos e ngulos instigantes. Ao invs disso, ele opta por

    planos e enquadramentos que mostram o maior nmero de informao possvel,

    mostrando a realidade dos acontecimentos ainda que seja evidente para

    espectadores adultos que truques de produo tenham sido usados no momento da

    filmagem em si.

    Pouco depois da metade do filme, um novo acontecimento nos introduzido.

    Bastian passa cruza com uma outra menina na calada interpretada pela irm do

    ator -, e o balo vermelho interage com o balo azul que a acompanha. De repente

    Bastian no mais o nico a ter um balo com personalidade, e por alguns

    instantes h certa expectativa sobre qual rumo a narrativa ir tomar, se as duas

    crianas iro continuar interagindo ou no. Entretanto, o garoto continua o seu

    percurso sem demora, a despeito da interrupo anterior. Podemos notar tambm

    nessa sequncia de acontecimentos o vis realista, que tende a superar eventos

    aparentemente relevantes sem maiores consequncias para a trama como um todo.

    Aos vinte e trs minutos, tm incio os percalos finais do menino e do balo

    vermelho. Bastian deixa o balo do lado de fora de uma confeitaria esperando por

    ele, e alguns garotos se aproximam sorrateiramente e conseguem amarr-lo,

    tomando-o para si. Bastian consegue recuper-lo, mas aps uma longa perseguio

    pelas ruas de Paris que mais parecem um labirinto acaba encurralado no topo

    de um pequeno monte, curiosamente o nico cenrio de natureza que aparece

    durante o filme. No incio da cena, uma das mais bonitas do curta, vemos o garoto

    cercado por alguns arbustos e pelo imenso cu azul. Por um segundo temos a

    impresso de que ele havia conseguido escapar. Ento surgem pelo outro lado

    dezenas de garotos, todos gritando ao seu redor em xtase pela possibilidade de ter

  • o balo para si. Em meio confuso, o balo atingido por uma pedra, um dos

    poucos acontecimentos no qual notamos certa dramatizao. O garoto que lana a

    pedra enquadrado num plano fechado, para em seguida assistirmos em silncio

    ao balo definhando lentamente, at que um p indistinto pe fim sua existncia.

    Em seguida, o silncio d lugar trilha, que retorna novamente em um tom ldico e

    instigante, enquanto assistimos a uma longa sucesso de planos abertos em que

    uma infinidade de bales se rene, voando pelo cu em direo a Bastian. A trilha

    crescente em otimismo se sobrepe imagem dos bales coloridos, garantindo que

    a angstia do evento anterior seja superada. Lamorisse ento nos surpreende com

    uma sequncia de belssimos planos areos, nos quais assistimos ao percurso dos

    incontveis bales, alguns em fila indiana, outros seguindo um caminho um pouco

    mais livre. O contraste entre as cores e a ambientao desses minutos finais com o

    resto do curta o muito grande. H mais luz em cena e muitos planos so quase

    que completamente tomados pelo cu azul, como se deixssemos o terreno da

    cidade acinzenta para trs para adentrar o terreno dos bales, da imaginao e da

    fantasia de uma vez por todas. O garoto ainda est sentado lamentando a sua

    perda quando envolto pelos bales multicoloridos. Com um grande sorriso no

    rosto, Bastian envolve os braos nas cordas dos bales e levado ao ar pelos seus

    novos amigos, solidrios pela perda do balo vermelho. O ltimo plano do filme

    um plano sequncia aberto em que vemos Bastian subir aos cus se distanciando

    mais e mais, at que vemos apenas o conjunto dos bales. Este ltimo plano, em

    comparao com o primeiro, consagra a transio feita atravs da narrativa, indo do

    mundano ao realismo fantstico.

    Um fato curioso sobre a narrativa, por fim, que muito pouco se diz sobre quem

    esse garoto. Seu nome citado apenas uma vez, no sabemos quem so seus

    pais, e os outros personagens que aparecem so muito pouco distintos. Cada

    minuto gasto na construo da relao entre o balo e o garoto, e ainda que as

    falas sejam quase que totalmente substitudas pela trilha, no terminamos com a

    sensao de que precisvamos saber mais do que nos foi mostrado. Na medida em

    que ficamos mais ntimos do balo, o mundo ao seu redor parece mais e mais

    enfadonho, de forma que parece realmente no importar.

  • Bibliografia

    AUMONT, Jacques. A montagem. In: AUMONT, Jacques et all. A esttica do filme.

    Campinas: Papirus, 1995.

    BAZIN, Andr. Montagem proibida. In: Bazin, A. O que o cinema. So Paulo:

    Cosac Naify, 2014.