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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO LICENCIATURA PLENA EM MÚSICA DUANA CASTRO SOARES ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOSRIBEIRÃO PRETO 2014

ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DEpergamum.unaerp.br/publicacoes/000004/000004CB. TCC Musica.pdf · que acaba a Segunda Guerra Mundial e depois de algumas tentativas de Jimmy,

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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO

LICENCIATURA PLENA EM MÚSICA

DUANA CASTRO SOARES

ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DE

“FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOS”

RIBEIRÃO PRETO

2014

DUANA CASTRO SOARES

ENSAIO SOBRE METODOLOGIAS DE ANÁLISE DE

“FILMES MUSICAIS PSEUDO-BIOGRÁFICOS”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade de Ribeirão Preto UNAERP, como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Música. Orientador: Prof. Dr. Érico Artioli Firmino

RIBEIRÃO PRETO

2014

Ficha catalográfica preparada pelo Centro de Processamento Técnico da Biblioteca Central da UNAERP

- Universidade de Ribeirão Preto -

Soares, Duana Castro, 1987- S676e Ensaio sobre metodologias de análise de "Filmes Musicais

Pseudo-Biográficos" / Duana Castro Soares. - - Ribeirão Preto,

2014.

22 f.

Orientador: Prof. Dr. Érico Artioli Firmino.

Monografia (graduação) - Universidade de Ribeirão Preto, UNAERP, Licenciatura Plena em Música. Ribeirão Preto, 2014.

1. Filmes musicais. 2. Análise cinematográfica. 3. Trilha sonora.

I. Título.

CDD 780

Ao meu pai e à minha mãe.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Dr. Érico, pelo ensinamento, pela amizade e

pela generosidade com que conduziu esse trabalho.

Aos professores e aos funcionários da instituição pela disponibilidade que

sempre se colocaram.

Aos amigos que fiz no curso e levo pra vida, Guilherme, Gabriel Codo e

Bia, em especial, ao Moisés pelo apoio e pela paciência.

Ao meu irmão Huriel e aos meus pais, João e Célia, responsáveis por

qualquer êxito e vitória da minha vida.

“Cuidado para que suas palavras sejam melhores que o silêncio”.

Provérbio indiano

RESUMO

É frequente no contexto cinematográfico abordarem a temática musical como os

casos dos filmes Os Desafinados, New York, New York e tantos outros. Este ensaio

teve como objetivo levantar e estudar metodologias para análise de filmes que tratem

de artistas ou bandas criadas por uma narrativa cinematográfica, mas com aspectos

históricos. A presente pesquisa propôs uma classificação para esse gênero específico:

“Filmes Musicais Pseudo-Biográficos”. Foram levantados os sistemas conceituais e

as metodologias que aproximam as áreas cinema e história, música e história, e

música e cinema, para enfim, chegar a um protocolo sistemático próprio para análise

de “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos” a partir de quatro eixos: análise do contexto

histórico do filme, no filme, fílmica e da trilha musical.

Palavras-chave: Filmes musicais; Análise cinematográfica; Trilha sonora.

ABSTRACT

It is frequent in the cinematic context one addressing the musical issue, such as the

cases of the films Os Desafinados, New York, New York, and many others. This essay

aimed to rise and study methodologies for analysis of films dealing with artists or bands

created by a cinematic narrative, but with historical aspects. This research proposed a

classification for this particular genre: "Pseudo-Biographic Musical Films." Conceptual

systems and methodologies which draw near the areas Cinema and History, Music

and History, and Music and Cinema were risen in order to finally arrive at a systematic

protocol proper to analysis of such "Pseudo-Biographic Musical Films," from four axes:

analysis of the historical context of and in the film, filmic, and of soundtrack.

Keywords: Musical films; Cinematic analysis; Soundtrack.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10

1. APROXIMAÇÕES ENTRE ÁREAS ............................................... 12

1.1 HISTÓRIA E CINEMA ................................................................................. 13

1.2 MÚSICA E HISTÓRIA .................................................................................. 15

1.3 MÚSICA E CINEMA ..................................................................................... 15

2. PROPOSTA METODOLÓGICA DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS

PSEUDO-BIOGRÁFICOS” .................................................................................. 18

2.1 COLETA E ARQUIVOS .................................................................................. 18

2.2 ABORDAGENS .............................................................................................. 19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 22

INTRODUÇÃO

É frequente no contexto cinematográfico abordarem a temática musical. É

o caso do filme Os Desafinados (Walter Lima Jr., Brasil, 2008)1 que narra a história da

Bossa Nova pela perspectiva dos músicos Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo

Paes Leme), PC (André Moraes) e o cineasta Dico (Selton Mello). Os jovens formam

um grupo musical chamado Os Desafinados e partem para Nova York em busca de

sucesso. Embora os músicos e o grupo não tenham existido, o contexto em que a

narrativa está inserida tem aspecto histórico. Além disso, as músicas compostas

especialmente para o filme por Branca Lima e Jair Oliveira se apropriam de clichês do

estilo da bossa nova dos anos 1950 – 1960. Seguindo a mesma linha, New York, New

York (Martin Scorsese, Estados Unidos, 1977) narra a história das big bands no

período pós-guerra do ponto de vista dos personagens Jimmy Doyle (Robert de Niro),

saxofonista, e da cantora Francine Evans (Liza Minelli). O casal se conhece no dia em

que acaba a Segunda Guerra Mundial e depois de algumas tentativas de Jimmy, os

dois ficam juntos. A partir deste momento, o roteiro desenvolve acompanhando os

altos e baixos da carreira musical e da vida pessoal do casal. A contextualização da

trama representa bem a época em que se passa a narrativa, da ascensão dos

espetáculos musicais e das big bands, período de festas no pós-guerra, até seu

declínio. Dentre outros filmes no mesmo estilo estão Orfeu Negro (Marcel Camus,

Brasil, 1959), Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, Woody Allen, Estados Unidos,

1999), A Might Wind (Christopher Guest, Estados Unidos, 2003), Isto é Spinal Tap

(This is Spinal Tap, Rob Reiner, Estados Unidos, 1984) e Quase Famosos (Almost

Famous, Cameron Crowe, Estados Unidos, 2000). Exemplos de filmes como esses

são conhecidos popularmente como um tipo de filme musical.

Filme Musical é uma classificação abrangente para filmes que tenham a

narrativa conduzida por canções. Segundo Souza et al (2014, site RUA), “filme

musical é um gênero de filme, no qual a narrativa se apoia sobre uma sequência de

músicas coreografadas, utilizando música, canções e coreografia como forma de

narrativa, predominante ou exclusivamente”. A partir de 1927, foi lançada

comercialmente a película cinematográfica com som acoplado e sincronizado. A partir

daí, surgiram as primeiras produções do gênero, adaptadas das peças teatrais da

1 Sobre os títulos de filmes, será sempre apresentado o título da versão brasileira, seguido do título

original, nome do diretor, país de origem e ano de lançamento.

Broadway nos Estados Unidos e do teatro de revista no Brasil. O gênero Filme Musical

não implica, necessariamente, em se ter uma temática musical. No caso de Cantando

na Chuva (Singing in the Rain, Stanley Donen e Gene Kelly, Estados Unidos, 1952),

a história se passa nos bastidores dos estúdios de Hollywood no período de passagem

do cinema mudo para o cinema falado. Moulin Rouge – amor em vermelho (Braz

Luhrmann, Austrália e Estados Unidos, 2001) conta a história da casa de espetáculo

parisiense - título do filme - no início do século XX. Além de tantos outros do gênero

musical, estão Os Miseráveis (Les Miserables, Tom Hooper, Reino Unido, 2013),

Chicago (Rod Marshall, Estados Unidos, 2003), Flashdance (Adrian Lyne, Estados

Unidos, 1981).

Ainda no que diz respeito ao estilo em que os filmes são apresentados,

têm-se também as formas de outros gêneros cinematográficos diferentes do musical,

como comédia, drama, ou documentário, como no caso do filme This is Spinal Tap:

O filme apresenta-se como documentário só para revelar-se uma fabricação ou a simulação de um documentário. Se levarmos a sério essa autodescrição, acreditaremos que Spinal Tap é uma banda de rock de verdade. Como uma banda tinha de ser criada para o filme, exatamente como uma “bruxa de Blair” teve de ser criada para o filme, não estamos errados. O que talvez não percebamos é que nem a banda de rock nem a bruxa existiam antes da produção desses filmes. Tais obras passaram a ser chamadas de mockumentaries (falsos documentários) ou “pseudodocumentários'” (NICHOLS, 2005, p. 50).2

A importância deste tipo de filme está mais no que não é dito, mas está

implícito, e menos no que está representado. “A ironia implica não dizer o que se quer

dizer, ou dizer o oposto do que se quer dizer. Assim como o uso irônico das

convenções jornalísticas da televisão dá uma pista importante de que This is Spinal

Tap é um pseudodocumentário (…)” (NICHOLS, 2005, p. 87). Este tipo de filme se

apropria de diferentes clichês, tanto de aspectos musicais para criar uma banda com

as mesmas características de uma existente, quanto dos próprios clichês

cinematográficos para criar uma obra fílmica próxima ao gênero que se deseja imitar.

É possível também classificar esse tipo de cinema de filmes históricos, já

que retratam uma época determinada com aspecto geral da historiografia. Segundo

Napolitano (2010, p. 246), “trata-se de um outro olhar sobre o cinema, como fonte e

veículo de disseminação de uma cultura histórica, com todas as implicações

2 O termo cunhado por Nichols é anterior a reforma gramatical e, portanto, “pseudodocumentário” se

escrevia junto, hoje seria escrito “pseudo-documentário'.

ideológicas e culturais que isso representa”. Ou podem ser entendidos ainda como

filmes biográficos visto que este tipo de produção se preocupa em tratar da história

particular de um personagem. Estes dois gêneros históricos e biográficos geralmente

se confundem e se misturam.

Todavia, a classificação de gêneros cinematográficos não delimita a

temática do filme. O presente trabalho sugere a classificação de gênero aliado a

temática. Foi estabelecido o recorte de filmes que tratem de temática ligada à história

de períodos musicais, apresentados por artistas ou bandas fictícios. A partir deste

recorte, sugere-se a classificação “Filmes Musicais Pseudo-Biográficos”. Tal

classificação foi estudada ao longo desse trabalho e foi verificada se é aplicável ou

não. Para tanto, este ensaio objetivou levantar e estudar metodologias para análise

de filmes levando-se em consideração sua temática específica, “Filmes Musicais

Pseudo-Biográfico”.

1. APROXIMAÇÕES ENTRE ÁREAS

A presente pesquisa investiga as aproximações entre as áreas: história e

cinema, música e história e música e cinema. Mais especificamente, a partir da

combinação história e cinema, esta pesquisa propõe investigar metodologias de

análise do contexto histórico do filme e metodologias de análise do contexto histórico

no filme. A partir das combinações música e história, bem como música e cinema, esta

pesquisa propõe investigar metodologias de análise fílmica e de análise da trilha

musical.

Não se pretende julgar a qualidade dos filmes ou das músicas usadas no

filme. A questão centra-se na busca de procedimentos de análise do filme e da música

pela perspectiva histórica. Além de entretenimento, os filmes são fontes de pesquisa

e informação. E é nestes últimos aspectos que esta pesquisa enfoca a fim de contribuir

para estudos da história da música popular a partir de um novo objeto, o filme de

ficção, visto que mesmo um filme que trata de personagens fictícios apresenta algum

aspecto histórico.

1.1 HISTÓRIA E CINEMA

O historiador Le Goff (2003) diferencia as abordagens possíveis da

disciplina de História. A este estudo interessa duas delas: as ações realizadas pelos

homens e a narração desses acontecimentos. Tais aspectos aproximam a história do

cinema. O autor desenvolve ainda conceitos de documento e monumento que são

pertinentes para reiterar a posição da mídia e sua importância na constituição de lugar

de memória. O autor afirma que, para conservar traços do passado, criam-se

documentos/monumentos:

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores (2003, p. 525).

O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a

recordação voluntária ou involuntária, já o documento é um produto da sociedade que

o fabricou, segundo as relações de forças que aí detinham o poder. A intervenção do

historiador que escolhe o documento, não é uma posição neutra. Existe aí, um juízo

de valor para atribuir, eleger ou omitir informações, que pode ser feito de forma

consciente ou inconsciente. Pode ser feito um paralelo entre cinema e documento, e

história e narrativa. O cinema é um documento, visto que há uma intencionalidade na

sua construção, mas também pode tornar-se um monumento, já que é um material

onde se perpetua uma recordação. A partir deste conceito, pode-se indagar: qual

história, no caso proposto, dos Filmes Musicais Pseudo-Biográficos e, portanto, qual

conceito de história está sendo selecionado para ser representado pelo cinema.

Marc Ferro é um dos responsáveis por incorporar o cinema ao fazer

histórico. O professor Eduardo Morettin (2003, p. 12) explica que “para Ferro, o cinema

é um testemunho singular de seu tempo, pois está fora do controle de qualquer

instância de produção, principalmente o Estado. Mesmo a censura não consegue

dominá-lo”. De acordo com Marc Ferro (2010), o cinema é agente e fonte da história.

O cinema se baseia nos acontecimentos para criar suas ações, mas ao mesmo tempo

seu conteúdo pode intervir diretamente na sociedade, como no caso de filmes de

propaganda, filmes políticos, etc. Ferro (2010) propõe que a pesquisa deva analisar

os seguintes eixos: o cinema como agente da história; os modos de ação da

linguagem cinematográfica; sociedade que produz sociedade que recebe; e leitura

cinematográfica da história, leitura histórica do cinema. O autor exemplifica com os

estudos de caso do cinema na União Soviética e no anti-nazismo americano.

No Brasil dos anos 1960, por exemplo, a influência dos “The Beatles” e

outras bandas do gênero influenciaram a música feita no país na formação dos

músicos Jovem Guarda. Os discos e aparelhos de áudio eram artigos de custo

elevado na época. E o cinema tinha um apelo mais popular. Portanto, é possível que

as músicas do cinema tenham sido mais influentes do que os próprios discos. A

música popular é feita de influências, referências e hibridações de estilos musicais. A

partir do momento que determinado gênero musical específico é retratado pelo

cinema, este gênero pode repercutir em outros contextos sociais e até geográficos e

pode até, influenciar outros gêneros de outros lugares. É o que Marc Ferro definiu

como “agente e fonte da história””, nesse sentido, cabem outras investigações sobre

a relação entre Filmes Musicais Pseudo-Biográficos e a produção musical na época

em que o filme foi lançado. Qual o impacto que esse tipo de produção causa no meio.

As relações de cinema e história variam em três aspectos distintos: “o

cinema na História; a história no cinema e a História do cinema” (NAPOLITANO, 2010,

p. 240). O primeiro diz respeito a localizar o cinema dentro de uma investigação

historiográfica, a importância de se entender o contexto sócio-histórico em que o filme

está inserido. O segundo aborda o discurso fílmico. E o terceiro aponta para a

linguagem específica do meio cinematográfico.

Apesar de todo o interesse na história, o cinema não está preso aos

acontecimentos como a história, sendo a ele permitido criar, fantasiar.

O filme está fora do controle de historiadores. O filme mostra o que não pertence ao passado. O filme cria um mundo histórico com o qual os livros não podem competir, pelo menos em popularidade. O filme é um símbolo perturbador de um mundo cada vez mais pós-literato (em que as pessoas podem ler, mas não o farão) (Tradução do autor).

Film is out of the control of historians. Film shows we do not own the past. Film Creates a historical world with which books cannot compete, at least for popularity. Film is a disturbing symbol of an increasingly postliterate world (in which people can read but won’t) (ROSENSTONE, 2001, p. 50).

Rosenstone se preocupa em demonstrar como diferentes discursos sobre

o passado criam versões alternativas sobre a história. Para o autor a história é

múltipla, cada discurso sobre o passado contribui com uma versão. O Filme Musical

Pseudo-Biográfico não se preocupa em retratar fielmente a historiografia, mas,

conforme teoria exposta de Rosenstone ele é um discurso diferente sobre a história.

1.2 MÚSICA E HISTÓRIA

Os estudos de música que se relacionam a história podem ser divididos, de

maneira geral “em três grandes áreas: a Musicologia histórica, a Etnomusicologia e

um terceiro campo, ainda confuso, que poderíamos chamar de 'Estudos em música

popular” (NAPOLITANO, 2010, p. 254). As duas primeiras áreas possuem tradição

acadêmica mais consolidada. A musicologia histórica preocupa-se em estudar a vida

e a obra dos compositores e das formas eruditas. A etnomusicologia concentra-se no

estudo de manifestações musicais de grupos e nichos específicos. Embora ambas

tenham caráter histórico, não estão tão diluídas e integradas aos suportes

audiovisuais como a área da música popular.

Os estudos de música popular ainda são recentes quando comparados às

outras áreas. A chamada “música popular” é difundida, em grande parte, pela indústria

fonográfica e audiovisual, diferença fundamental às outras áreas. Os filmes musicais

das décadas de 1940 e 1950, o advento da televisão na década de 1950, o videoclipe

no final da década de 1980 contribuíram para que a música popular não fosse

produzida simplesmente para ser ouvida e dançada, mas principalmente para ser

vista. Neste sentido, o estudo de Filmes Musicais Pseudo-Biográficos oferece também

uma contribuição à área música popular.

1.3 MÚSICA E CINEMA

A música acompanha o cinema desde seu início. As primeiras projeções

dos irmãos Lumiére, no ano de 1895, no Grand Café em Paris, já foram

acompanhadas por músicos. Na realidade, o que se chamava de “cinema mudo” é um

equívoco. O cinema nunca foi completamente mudo visto que a música sempre esteve

presente nas exibições dos filmes, seja por uma orquestra, ou simplesmente um

pianista.

Se por um lado, a produção da música nas salas de exibição era algo que fugia totalmente do controle dos realizadores de cinema, por outro, a variedade de músicos e músicas para cada filme permitiu uma

experimentação vasta e variada das relações entre música e imagem (…). Assim, o filme exibido em duas salas diferentes já não era mais o mesmo (CARRASCO, 2003, p. 76-7)

A música tocada nos cinemas dessa época era usada para manter as

pessoas concentradas nos filmes, ela ajudava a “criar o clima” do filme. “Além do piano

na sala, que serve, sobretudo para acompanhar a canção ilustrada, existe muitas

vezes um segundo piano, automático, que é colocado logo na entrada do cinema para

atrair o público” (ALTMAN, 1995, p. 43). Não existia intenção de se usar a música para

conseguir reações específicas, por isso, a princípio não importava qual a música que

estava sendo tocada, desde que se houvesse música.

Contudo, alguns músicos preocupavam-se em combinar a música com o

que se passava nas telas, e logo passaram a compor músicas para essa finalidade.

Assim, surgiram composições para acompanhar gêneros diferentes, por exemplo,

uma música para acompanhar uma cena de terror. O que deu origem ao que

conhecemos hoje como composição da trilha sonora.

Os problemas de gravação sonora e sincronia foram resolvidos em 1927,

quando conseguiu se produzir um filme com fala sincronizada satisfatoriamente, The

Jazz Singer (O Cantor de Jazz, Alan Crosland, Estados Unidos, 1927). O filme, O

Cantor de Jazz, com o ator e cantor Al Jolson tem poucos diálogos, mas muitas

canções agradaram o público e animou os produtores (CARRASCO, 2003). Toda a

produção do filme, inclusive o próprio roteiro, foi pensada de forma a privilegiar a

novidade: o primeiro filme a sincronizar fala, ruído e música. A sincronia é revelada

aos poucos, aumentando a expectativa do espectador. O sucesso do musical mudou

o cinema do dia para a noite. O filme mudo foi perdendo espaço rapidamente.

Dentro de um filme, a música pode assumir diferentes funções,

dependendo do objetivo desejado. Em geral, muito se fala na música ligada a emoção

do filme, mas ela também pode ter funções bem específicas como transmitir

informações sobre o lugar ou o tempo em que se passa a ação, descrever uma

personagem, um movimento, geralmente este em função cômica, revelar um

sentimento ou ação não presente na cena. Ainda pode se atingir dramaticidade pela

não-utilização de trilha.

Mesmo sendo guiada pelo diretor e pelo contexto fílmico, a música

composta carrega características de seu compositor. Os primeiros compositores da

música de cinema seguiam a tradição do romantismo com forte influência de Wagner,

Brahms, Strauss, Verdi, por isso, alguns escritores se referiram a esta música como

“música wagneriana”.

Os primeiros compositores da música de cinema tinham como referência a

música do período do romantismo. O cinema segue a construção dramática próxima

à construção de óperas e operetas, com personagens e conflitos que se desenrolam

ao longo da trama. Um dos recursos incorporados foi o leitmotiv (leia: “laitmotif”, do

alemão, “motivo condutor”). O leitmotiv é um tema que acompanha toda a obra. Por

exemplo, têm-se as duas notas em intervalo de segunda menor que se repetem –

musicalmente a repetição de um tema chama-se ostinato - do filme Tubarão (Jaws,

Steven Spielberg, Estados Unidos, 1975). Esse é o leitmotiv do filme. O tema está

associado à figura do tubarão. Na primeira parte do filme, a presença do tubarão é

associada ao ostinato. O espectador, inconscientemente, associa a música ao

personagem. Na segunda parte, o compositor brinca com o leitmotiv a fim de conduzir

expectativas e emoções do espectador.

Mas também, a música pode estar ligada a outros elementos do contexto

fílmico como transmitir informações sobre o lugar ou o tempo em que se passa a ação.

É o caso de Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Brasil, 1997) que conta a

história do cinegrafista amador Benjamim Abrahão em busca de imagens do bando

de Lampião. A trama se desenrola no estado de Pernambuco. As músicas de estilo

mangue-beat, compostas pelo grupo musical Nação Zumbi que acompanha a história

ajuda a criar o clima árido pernambucano.

A área de estudos acadêmicos Film Music se preocupa com o uso da

música em produções audiovisuais. Essa área se preocupa com questões de como a

música está inserida na narrativa dramática do filme. Se a música é justificada por

uma fonte sonora, quando o personagem escuta um rádio ou assiste a um show, por

exemplo, é classificada por Michel Chion (2011) como som in ou pela classificação de

Claudia Gorbman (1987) música diegética. Se a música é um recurso que não está

justificado na trama, ela é classificada por Gorbman (1987) como não-diegética. Neste

último caso, Chion (2011) distingue dois aspectos: quando o personagem “ouve” a

música, mas a fonte sonora não é representada, a música é som out ou fora do

quadro. E quando é um recurso da construção da narrativa, mas não envolve a mise-

en-scéne, ela é classificada como som off. Outras questões da área são no sentido

do tipo de música usada em determinado filme, em que contribui o filme, como ela

está inserida, entre outras.

É também uma preocupação deste trabalho investigar sobre a música

usada em Filmes Musicais Pseudo-Bibliográficos. Se a temática do filme está ligada

a música usada na trilha do filme, ela (a música) ganha um tratamento diferenciado

nas demais produções ou não. Qual sua função nesse tipo de filme.

2. PROPOSTA METODOLÓGICA DE ANÁLISE DE “FILMES MUSICAIS PSEUDO-

BIOGRÁFICOS”

2.1 COLETA E ARQUIVOS

No Brasil, as iniciativas para se preservar a documentação audiovisual são

relativamente recentes. E ainda se preocupam mais com a documentação de épocas

históricas mais remotas e esquecem-se da preservação da documentação recente.

Com a facilidade de acessos a dispositivos tecnológicos como câmeras filmadoras,

computador, a produção audiovisual cresceu consideravelmente nos últimos anos. As

produções não-profissionais contribuíram para esse aumento. Porém, essa produção

não se preocupa em ser preservada, muitas vezes é disponibilizada na Internet sem

qualquer outra cópia em material físico e é facilmente retirada de veiculação, o que

resulta na perda total do material.

A Cinemateca Brasileira, nos anos 1940, foi o primeiro passo no sentido de

coletar, catalogar, preservar e disponibilizar para pesquisa material fílmico e de parte

da documentação escrita na área de cinema. Outra instituição com a mesma

finalidade é a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O Museu

Lasar Segall de São Paulo também se preocupa em preservar, sobretudo material

crítico e informativo publicado na imprensa, desde os anos 1970. Em 1965, o MIS-RJ,

Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro, foi criado durante o governo de Carlos

Lacerda em comemoração ao aniversário da cidade. O projeto inspirou outros

governos a copiarem a iniciativa em MIS regionais. Atualmente, existem por volta de

23 museus pelo Brasil. Além de se preocupar com a área audiovisual, os MISs atuam

na área de fotografia, artes gráficas e registros sonoros de depoimentos, entrevistas,

debates e palestras. Além de oferecer uma programação com atividades culturais para

o público.

Com o advento tecnológico, a internet se apresenta como uma ferramenta

de pesquisa, de coleta e de preservação dos acervos audiovisuais. É preciso

discernimento para distinguir as fontes de origem e referência mais confiáveis.

Contudo, a ferramenta é útil no levantamento de fontes e para conferir informações. A

maioria dos artistas conta com seu website onde reúnem material informativo,

canções, vídeos, obras, etc. Alguns filmes também lançam sua página oficial com

informações relevantes sobre a produção. Há ainda sites especializados, revistas

acadêmicas que migram do papel para o computador ou que mantém as duas vias

como possíveis.

2.2 ABORDAGENS

Como ponto de partida, a presente pesquisa propõe uma metodologia de

análise de Filmes Musicais Pseudo-Bibliográficos a partir de quatro eixos (ou

abordagens):

1. análise do contexto histórico do filme;

2. análise do contexto histórico no filme;

3. análise fílmica; e

4. análise da trilha musical.

Através do primeiro eixo, a pesquisa procura entender o contexto em que

o filme foi feito, quais as motivações da realização da obra, por que em determinada

o(s) realizador (es) do filme resolveram retomar determinada época. A partir do

segundo eixo, a pesquisa procura entender o que o filme retrata, quais aspectos

históricos foram abordados, quais foram deixados de lado, qual a importância da

época, e por que ela está sendo remontada. A partir do terceiro eixo, a pesquisa

procura examinar o filme pela construção da obra, isto é, dos aspectos do roteiro, da

direção, da fotografia, das cores, da montagem e de outros aspectos estéticos que

possam revelar ou ampliar o entendimento do conteúdo. E, finalmente, a partir do

quarto eixo, a pesquisa investiga o tratamento musical dado ao filme, se ao tratar de

um filme com temática musical o mesmo tema é construído na sua trilha ou não, quais

clichês são apropriados, aspectos de sonoridade e timbre e outros estruturais-

musicais como harmonia, melodia, instrumentação, modulações, etc., da mesma

forma que os elementos visuais possam revelar ou ampliar o entendimento do

conteúdo do filme.

“O mais importante é entender o porquê das adaptações, omissões,

falsificações que são apresentadas num filme” (NAPOLITANO, 2010, p. 237). É

preciso articular os códigos internos das linguagens específicas do meio, de natureza

técnico-estética do conteúdo narrativo, de natureza representacional. A elaboração da

metodologia específica apresentada abaixo foi baseada no método elaborado por

Napolitano (2010), mesclando conceitos das áreas de música e cinema e criando

outros, para enfim, chegar a um protocolo sistemático próprio de análise de “Filmes

Musicais Pseudo-Biográficos”, a saber:

1. delimitar o corpo documental, localizá-lo e organizar uma ficha técnica

das fontes, identificando: gênero, suporte, origem, data, autoria, conteúdo

referente acervo;

2. assistir sistemática e repetidamente aos filmes escolhidos, buscando

articular análise fragmentada (decupagem dos elementos de linguagem e

momentos musicais) e síntese;

3. buscar os elementos narrativos: “o que um filme diz e como o diz”;

4. analisar letra, estrutura musical, sonoridades vocais e instrumentais,

performances musicais (a música fora do contexto do filme);

5. buscar, em seguida, o sentido da música no contexto fílmico, na

rearticulação desses elementos, junto às cenas e depois ao conjunto do

filme;

6. produzir um “fichamento” sobre o filme com as conexões das imagens,

linguagens, estratégias de abordagem do tema do filme; e

7. articular o filme analisado com outros documentos, discursos históricos

e materiais artísticos de mesmo tema, identificar pontos de convergência,

divergência e possíveis diálogos.

Em suma, este ensaio buscou levantar e estudar sistemas conceituais e

metodologias das áreas de história, cinema e música. A classificação proposta de

Filmes Musicais Pseudo-Biográficos se mostrou pertinente às três áreas citadas e às

suas formas de interações apresentadas. O protocolo sistemático elaborado buscou

integrar as áreas em quatro eixos que foram percebidos como comuns a tais áreas, a

saber: análise do contexto histórico do filme e análise do contexto histórico no filme,

análise fílmica e análise da trilha musical. Por fim, este ensaio recomenda a aplicação

das metodologias apresentadas, e, mais particularmente, dos eixos de abordagens e

do próprio protocolo sistemático a pesquisas posteriores acerca de produções

cinematográficas dentro do gênero classificado por esse trabalho como Filmes

Musicais Pseudo-Biográficos.

REFERÊNCIAS

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