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organização Giselle Moreira Renata Estrella Ricardo Pinto Tatiane França Não se pode e se escreve ensaios sobre Marguerite Duras

ensaios sobre Marguerite Duraspesquisa sobre autores e críticos comumente estudados e referidos nos estudos literários2. Foi então que, tomadas e tomados pelo "efeito Duras"ao qual

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organizaçãoGiselle Moreira Renata Estrella Ricardo Pinto Tatiane França

Não se pode e se escreveensaios sobre Marguerite Duras

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não se pode e se escreve

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não se pode e se escreveensaios sobre Marguerite Duras

Giselle Moreira, Renata Estrella, Ricardo Pinto,

Tatiane França (orgs)

Sabiá Editorial2020

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2020 copyleft — O conteúdo desta obra pode ser copiado e reproduzido,desde com indicação de autoria e fonte

Publisher | Raimunda Nonata Martins de Oliveira

Capa, projeto gráfico e diagramação | Labedição – Laboratório de edição deCiência da Literatura | https://labedicao.com/

Imagem de capa por Daniel Rueda e Anna Davis Bennet.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO (CIP)

D194n

Não se pode e se escreve: ensaios sobre Marguerite Duras / Giselle Moreira,Renata Estrella, Ricardo Pinto e Tatiane França (orgs). – Rio de Janeiro: SabiáEditorial, 2020.

ISBN: 978-65-88372-07-4

1. Literatura Francesa. 2. Marguerite Duras

CDD 840

Primeira edição em 2020

Sabiá Editorial

https://www.sabiaeditorial.com.br/ | [email protected]

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sumário

Apresentação G Moreira, R Estrella, R Pinto e T França 9

O que dura escrito no corpo A L Lutterbach 18

Escrever e escrever os corpos I B Nuto 28

O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do

trauma? R Estrella 52

À noite, um filete de luz M G Sereno 64

A repetição no arrebatamento D F Eckstein 77

Duras — escrever, uma paixão Marcella Moraes 92

Amor, uma escrita de palavras sozinhas G Moreira 102

A escrita do corpo de Lol. V. Stein B M Guaraná 110

Sobrevidas da cena em Marguerite Duras Flavia Trocoli 122

Emily L.— Marguerite Duras, traduzir o impossível

C I Ferraz 139

Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso B Chnaider-

man e L Paula 151

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Cinema — Marguerite Duras e o espectador emanci-

pado L P Melo 166

Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Margue-

rite Duras T França 177

des(cons)truir, ela diz A Ki�er 186

Sobre as autoras e autores 196

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apresentaçãogisele moreira, renata estrella,tatiane frança e ricardo pinto

Marguerite Duras afirma que as mulheres escrevem dolugar do desejo e, em conversa com Michelle Porte, diz que o fa-

zem munidas de uma linguagem anterior a elas, selvagem. A linguagemda noite, das �orestas. Foi também do lugar do desejo que, ao encon-trarmos uma paixão comum pela obra da escritora, trouxemos à vida oprimeiro evento da Universidade Federal do Rio de Janeiro destinado areunir leitores e pesquisadores da obra literária e cinematográ�ca de Du-ras. Foi unindo nossas linguagens e nossa vontade comum de mergulhoque organizamos a primeira Durassiana em 2019.O embrião do evento surgiu do fortuito encontro entre o que mais tardese tornaria sua Comissão Organizadora1. Em outro encontro anterior,destinado aos estudos entre literatura e psicanálise na UNICAMP, em2018, teve início a partilha de ideias e leituras que culminaria no projetode um evento para discutir Duras, plano abraçado pelo professor de Te-oria Literária e responsável pelo Projeto Fortuna -- também organizadordo evento e da presente edição --, Ricardo Pinto. Tal projeto, mantidopelo do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJé um projeto de extensão que se dedica a criar e manter recursos de1Encontro entre três (apaixonadas) pesquisadoras da obra de Duras: Giselle Moreira,mestre em Estudos Literários pela UFMG; Renata Estrella, doutoranda em Ciênciada Literatura pela UFRJ; Tatiane França, mestranda em Ciência da Literatura naUFRJ.

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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

pesquisa sobre autores e críticos comumente estudados e referidos nosestudos literários2.Foi então que, tomadas e tomados pelo "efeito Duras"ao qual HélèneCixous faz menção em conversa com Michel Foucault, reunimos pes-quisadores de diferentes formações e universidades para os debates quedecorreriam em dois dias de evento. O resultado das produções e apre-sentações foi então compilado nessa edição sob o formato de brevesartigos, a �m de divulgarmos e compartilharmos as ricas discussões queo encontro - entre tantos pontos de vista - sobre a obra durassiana pôdeproporcionar.Nesse sentido, os artigos abrangem amplo leque temático, o que nãoé sem relação com a amplitude da obra de Duras. Alguns autores sededicaram às obras muitas vezes mencionadas como parte de um ’ci-clo autobiográ�co’, a exemplo de O amante e Uma barragem contra oPací�co. Destes artigos, é interessante que se destaque o corpo comoquestão, para além da riqueza literária criada por Duras entre �ccionale autobiográ�co. Como bem resumido pela própria escritora em entre-vista à Bernard Pivot em 1984: "a vida do escritor sempre está em outrolugar".Pega há anos pela escrita de Marguerite Duras, Ana Lucia Lutterbach

trabalha um paralelo entre o tratamento dado ao real em uma análise epela escrita, a partir de quatro obras, Cadernos da Guerra, A barragemcontra o Pací�co, O amante e O amante da China do Norte. A autoranos indica como algo dura escrito no corpo, uma escrita de gozo, conse-quente ao choque da linguagem, e que produz um ciclo de repetiçõesonde o sujeito se vê enredado. Nesse sentido, também em uma análisese parte de uma escrita, de uma leitura, como nos indica Lutterbach:"o próprio relato em uma análise deve ser tomado como algo a ser lidoe não só escutado. A leitura da Letra, do não sentido, ao contrário defazer proliferar, reduz o sintoma à sua fórmula inicial", quer dizer, emque o signi�cante opera separado da signi�cação.

2Para mais detalhes sobre o Projeto Fortuna: https://fortuna.labedicao.com

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Apresentação

Isadora Bon�m, por sua vez, parte da necessidade de escrever, men-cionada em muitos momentos por Marguerite Duras, trabalhando ahipótese de que se trata em O amante menos de uma história de amorou do encontro sexual entre uma menina branca pobre e o amante chi-nês milionário e mais da escrita de corpos. A análise parte do corpo danarradora, passa pelo corpo do amante, da mãe e dos irmãos, identi�-cando "uma rede de entrelaçamentos de corpos"que sustenta o corpoda escrita, dando forma erótica à obra, "um corpo que não se reduz àsnecessidades �siológicas, assim como o texto não se reduz a suas rela-ções gramaticais", como sugere Bon�m a partir de O prazer do texto, deRoland Barthes. Nesse sentido, a autora identi�ca dimensão erótica naobra de Duras, retomando a ideia inicial para concluir: é o fascínio pelaescrita, pelo texto, é a sua inevitabilidade, que confere na obra de Durasdimensão erótica.O texto de Renata Estrella, "O amante, de Marguerite Duras: umaescrita do trauma?", levanta uma hipótese suscitada pela seguinte per-gunta: que formas podem emergir na escrita quando partimos de algoao qual não se pode dar forma? Enlaçando a necessidade de narrar ine-rente ao testemunho com o impasse da narrativa diante daquilo quese denomina "indizível", a autora busca analisar que mecanismos sãodesenvolvidos ao longo da obra autobiográ�ca de Duras para que sejapossível dar forma à memória do que foi inscrito no corpo. Ou ainda,para dizer um pouco mais, Estrella investiga quais imagens e suportessão movimentados no romance para que se estruture em narrativa tam-bém aquilo que não se pode representar.Marina Gorayeb Sereno em seu artigo "À noite, um �lete deluz"propõe um diálogo entre psicanálise e literatura ao investigar o quechama de "operação de escrita"de Marguerite Duras em três livros. Des-dobrando o que denomina de três tempos de escrita, ou três planos, elaelenca a �gura do livro, do �lme e da noite referentes às obras durassi-anas que narram o encontro com o amante chinês, Barragem contra oPací�co, O amante e O amante da China do Norte. Sua argumentaçãovisa encontrar, diante de uma escrita que se faz pela perda, pelo impos-

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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

sível, a possibilidade de criar uma imagem através de uma operação deescrita que acontece destacada de si própria, a escrita durassiana comouma escrita feita para que outra coisa seja lida.Ainda nessa busca por uma entrada na complexidade da obra durassi-ana, alguns autores analisaram o que se repete em uma mesma obra ouelementos que atravessam diferentes obras, identi�cando a suspensãodos sentidos como principal efeito da repetição. A forma como Durasdesarranja as oposições instituídas da linguagem, por exemplo, eviden-cia o trabalho de destruição das signi�cações, o que já �ca aparente emmuitos de seus títulos, Hiroshima mon amour, ao incluir na mesmafrase uma cidade lembrada por uma das maiores catástrofes da humani-dade e o amor, ou Uma barragem contra o Pací�co, que traz um pací�coque precisa ser barrado. Como �ca claro pelos ensaios, para além dossentidos, há sempre algo que pode ser recolhido como efeito das obras: oritmo que se impõe à escrita, o amor, a possibilidade de desdobramentosin�nitos entre destruição e construção / composição.O artigo de Danielle Eckstein "A repetição no arrebata-mento"investiga como as repetições atuam num espaço de duplosigni�cado na obra Le ravissemnt de Lol V. Stein, duplicidade essaque inicia em seu título, já que ravissement pode signi�car tanto algoda ordem do contentamento, do êxtase, como o ato concreto de tiraralgo à força. A repetição é analisada no artigo a nível diegético e a nívelestrutural, levando em conta como esses processos incitam uma leituraque coloca o leitor em confronto com o estranhamento da linguagem edo sentido. Eckstein costura sua análise às características presentes nasnarrativas modernas, problematizando conceitos como transmissão,impossibilidade e narrativa na obra de Duras publicada em 1964.Em seu artigo, Marcella Moraes parte da �gura da ’espera’, contagiadapor algumas palavras que insistem em se repetir na escrita de Durase que evocam uma atmosfera de aparente imobilidade: a lentidão, adoçura, o silêncio, o grito, o sono. Um percurso se faz através de trêsobras durassianas - um �lme e dois livros - primeiro India song �lmadoem 1975, depois, L’amour (1971) e, por �m, O deslumbramento (1964).

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Apresentação

Ao seguir o �o dos textos, Marcela acaba por desestabilizar a oposiçãoentre ação e inação, entre agência e passividade. Para além do binarismo,a espera se confunde com o amor: "o que apresento aqui, portanto, é estaimagem arruinada - percebi, nesse movimento, outro caminho possívelpara me aproximar de Duras. O tema do amor."No artigo Amor, uma escrita de palavras sozinhas, Giselle Moreira tra-balha de forma delicada uma passagem entre duas obras de MargueriteDuras, Le ravissement de Lol V. Stein e L’Amour, evidenciando aspectoimportante da escrita de Duras que, entre cenas e palavras repetidas,parece vir de uma mesma enxurrada. Nesse movimento de rescrever,Moreira identi�ca, no entanto, formas muito diferentes de narrar, si-tuando em L’Amour uma escrita quase grá�ca, em que "o ritmo pre-valece à signi�cação". Nesse sentido, é como se a cada reescrita, Durastornasse as palavras mais opacas e afastadas de uma signi�cação habitual,aproximando-se de uma "escrita da não-narrativa (...), uma escrita depalavras sozinhas", como defendeu na obra Escrever (1994).Em seu artigo A escrita do corpo de Lol. V. Stein, Bruna Guaraná

faz uma leitura cuidadosa de O Arrebatamento de Lol V. Stein, atravésdo escrito que Lacan lhe dedica. Bruna, não domina o objeto, mas odesdobra. Começa por dizer da vacuidade de Lol. S. Stein -- "um ser queparecia não estar no mesmo lugar que seu corpo, alguém em fuga, nuncapresente-- para dar ênfase na construção do corpo dessa personagem.Um corpo que se desenlaça com o que o arrebata, mas que busca sereconstituir através do ato de recompor a cena do arrebatamento: "comessa montagem, se produz a possibilidade de Lol poder existir com umavida que pulsa e com presença, fora do lugar do ’como se’, onde haviaum corpo sem alma".***Outro aspecto bastante presente na crítica sobre a obra durassiana eque aparece também nesta publicação trata do precioso trabalho com alinguagem feito pela escritora e do estatuto do texto escrito em Duras.Para Michele Porte, Duras chega a mencionar que sente como se tudoestivesse escrito, "O mar é completamente escrito para mim"(DURAS,

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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

1977, p.91). Nesse sentido, mesmo com as imagens, por exemplo, noteatro ou em seus �lmes, Duras considera trabalhar com o escrito: "todoo espaço �lmado é escrito"(idem).Em Sobrevidas da cena em Marguerite Duras, Flavia Trocoli nos mos-tra como - em A doença da morte (1982) e Olhos azuis, cabelos pretos(1986) - Duras propõe um teatro lido e não atuado, deixando a ênfasena palavra que ressoa: "o drama do corpo que sofre está inteiramentenas palavras". O amor, ou sua impossibilidade, é indissociável de suaforma e se alinha ao espaço entre o apagamento e a reconstrução, entrea destruição e a sobrevivência da cena. Um problema estético que lançaà questão: "diante da iminência da morte do próprio corpo da obra,diante da doença da morte que é não poder amar e, assim, viver comomorto, o que as palavras ainda podem fazer? ".Em "Emily L.: Marguerite Duras, traduzir o impossível", Claudia Ita-

borahy retoma o romance Emily L. , reconstituindo a relação de Mar-guerite Duras, tradutora, com a poeta americana Emily Dickson e comoesta relação é deslocada e ressigni�cada em Marguerite Duras, roman-cista, em Emily L.. Itaborahy concebe no gesto de Duras uma teoria datradução, em que o ato de passar para outra língua, a tradução, circulapelos termos transposição, recriação, ressigni�cação, apropriação, pos-sessão... O vigor do gesto de transposição -- o termo preferido no artigo-- pode ser reconstituído apenas pelo leitor, o que aponta para a integra-ção de uma poética da leitura -- e de um leitor que reconhece a biogra�ade Duras e Dickson como pontos de in�exão para a criação de sentidoem suas obras -- com uma poética da tradução. Segundo Itaborahy "Paramim, em Emily L., o pensamento em torno das leituras que Duras fazapresenta-se como ponto de investigação sobre o que vem a ser -- e oque poderia ser -- uma poética da tradução, em um movimento de éticae pensamento da poiesis -- o fazer poético e o pensamento poético".Beatriz Chnaiderman e Laerte de Paula partem de Moderato Canta-bile para trabalhar aspecto ainda pouco explorado, o erotismo de formaarticulada à psicanálise. Os autores situam essa obra como fazendo umaruptura em relação aos romances anteriores de Duras, como indicado

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Apresentação

pela própria autora: "há toda uma época em que escrevi livros, até Mode-rato Cantabile, que não reconheço". Assim, para Chnaiderman e Paula,"Moderato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto quea�ora da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento".Nesse sentido, a escrita é uma forma de fazer com o impasse, mesmo queo mantendo sem solução. E é justamente esse aspecto que os autoresidenti�cam como essencial à erótica do texto durassiano: "o erotismoque mobiliza o texto de Duras diz de uma modalidade de resposta auma impossibilidade: seja o impossível de compreender, o impossívelde dizer, o impossível de complementar junto ao outro".Em seu artigo, Larissa Melo costura conceitos de pensadores como Jac-ques Rancière, Hanna Arendt e Jacques Derrida para pensar o cinemade Duras como um movimento pela emancipação do espectador. Ana-lisando aspectos de algumas de suas obras escritas e também o conjuntode obras cinematográ�cas da autora, Melo elenca aspectos importantesdo fazer literário e fílmico durassianos, a �m de entender como tanto apalavra quanto o silêncio atuam nesse processo de emancipação. O ar-tigo localiza ademais a obra de Duras em contraposição ao movimentodo cinema que lhe é contemporâneo, lendo suas produções como um fa-zer crítico que se coloca contra um determinado pensamento do cinemada época.E como não poderia faltar em um volume dedicado à Duras, questõespolíticas atravessam as análises das obras de maneira indireta -- como feza escritora em muitos momentos de sua carreira, a exemplo do conhe-cido relato da exploração colonial francesa em Uma barragem contrao Pací�co -- para serem presenti�cadas de forma direta em dois artigos.Um traz a tona a Shoa, uma das maiores catástrofes da história da hu-manidade, enquanto o outro trata de nossos traumas contemporâneos,não menores, buscando possibilidades de vida a partir da obra durassi-ana. É uma felicidade fechar essa publicação com uma das noções quenos é mais cara, ao nosso Programa de Pós-graduação e à universidadepública, a função social da literatura.

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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

Em "Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras",Tatiane França apresenta o diário/romance A dor, registro semibio-grá�co da captura e expulsão para os campos de Robert Antelme, seumarido à época, a espera de seu retorno e o que é perdido e queimadomesmo após sua volta. França estabelece a dinâmica fantasmal entreespera e desesperança e a complicada relação negativa de dois corpos, ocorpo que escreve, que é também aquele que espera e que não sabe a�nalo que há e portanto não pode dizer, e aquele corpo ausente de Antelme.Há um horror que se dá e que se ausenta, da guerra e dos campos, querouba algo dos dois personagens do livro e que aponta para uma formade vida (e de manutenção da humanidade) sob o totalitarismo. Nas pa-lavras de França "Encaro que esse livro de Duras, em sua narrativa crua edolorosa, ensaia formas de representar a vida sob o domínio da barbárie,para não deixar calar a memória da dor, instaurando com seu relato umtremor para fazer o horror reverberar a cada página virada". O texto éum ensaio sobre a negatividade na obra de Duras, puxando a linha donovelo da sua obra a partir de um texto em certos aspectos excêntricodentro do cânone da escritora e demonstra como os temas constantesdurassainos, como a barbárie, a humanidade dos corpos e dos desejos,as cicatrizes e a luta contra o esquecimento, já estão presentes muitocedo em sua obra e partem da capacidade de dar signi�cado coletivo aotrauma individual.Ana Ki�er começa por dizer sobre a in�uência de Duras em seu pró-prio fazer crítico, textual, de tal forma que os modos de enunciação daescritora - sua intensidade e questões incessantes - se tornaram tambémeixo estruturante de suas pesquisas acerca das relações entre corpo e es-crita: "O fogo que queima nela ainda queima a todas nós". Desse ponto,reconhecida uma intimidade, ou, uma proximidade "perigosa"da obrade Duras, Ana Ki�er desdobra a questão: "o que me separa de Duras ede sua geração depois de termos por tanto tempo vivido juntos? Quegesto crítico poderia criar uma dobra ou uma borda ao lado do gestodesconstrutor e mesmo destruidor (da linguagem e do corpo) que a ge-ração do pós-guerra viveu, pensou e encenou? Qual é hoje a guerra que

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Apresentação

enfrentamos?". Assim, o artigo "des(cons)truir, ela diz"se escreve comDuras para separar-se dela: destruir, ela diz -- construir, eu digo. Emdireção à nuance, o texto de Ana Ki�er propõe uma nova arqueologiapara pensarmos a subjetividade de nossa época: "O gesto que acompa-nha a nuance chama-se criar camadas. Olhar não é su�ciente. Tambémpor isso precisamos tocar nessas camadas que reivindicam uma novaarqueologia do Brasil".

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o que dura escrito nocorpo

ana lucia lutterbach

Há algum tempo me interesso pelas relações entre aotratamento dado ao real na prática da psicanálise e na escrita. So-

bre isso Marguerite Duras é a principal referência para mim. Fui pegapor sua escrita há muitos anos e ela não me larga.Durante muito tempo para os analistas, e contrariando a Freud, a escritaesteve associada ao ideal, em nome de uma ideia de arte que Lacan, comJoyce, vai contestar mostrando "que a arte, tem sua raiz precisamenteno real"3 e não no ideal.Além disso, acreditava-se, e alguns analistas ainda acreditam, numa certafunção terapêutica da escrita, como se a escrita pudesse salvar alguémda loucura, da morte, da vida. A escrita pode ser um tratamento dadoao real, mas a escrita não é prescritível e seus efeitos são imprevisíveis.Não se escolhe ser escritor, não escreve quem quer. Simplesmente, paraalguns, é preciso escrever. Quem escreve não possui uma escrita, comono caso de Duras, mas consente ao que vem de um outro lugar, umaespécie de encarnação do real, pulsão da escrita.A escrita, ao contrário da salvação, pode ser um perigo, como escreveDuras:

3Miller,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de25/05/2011. Inédito.

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O que dura no corpo

A escrita é o desconhecido de si, de sua cabeça, de seu corpo. Nãoé uma re�exão, escrever, é uma espécie de faculdade ao lado de suapessoa, paralelamente a ela mesma, de uma outra pessoa que aparece eque avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que algumasvezes, por isso mesmo, é um perigo, de perder aí sua vida.4

Em certo momento de seu ensino, por volta de 1970, Lacan dá umavirada e essa virada tem consequências sobre o próprio conceito de artepara nós. É a partir daí que gostaria de abordar a escrita de Duras, semintenção, sem representação, sem compromisso nenhum com qualquer�nalidade.Tornar-se um analista, como tornar-se um escritor, se impõe como umaespécie de necessidade e se uma análise tem efeitos terapêuticos, ela nãose restringe a isso e continua mesmo depois.É neste ponto que vejo a aproximação com a escrita, ou seja, ambassão um tratamento dado ao real. A análise tem um �m, mas o trabalhoanalisante não, ele continua mesmo depois de concluir a análise, mesmodepois que a fala dirigida a um analista acaba, o analisante continua.Assim como cada livro tem um �m mas a escrita é sem �m, a análisetermina mas o lugar de analisante é sem �m.Leitura e escrita na análiseO ser, o "eu sou"é sustentado pelas invenções com os signi�cantes queforam roubados do Outro, ou, conforme o caso, impostos pelo Outro.Mas, existe algo que apesar de não estar fora da linguagem, não se sus-tenta nas narrativas que proliferam, mas em letras impressas no corpoapoiadas em um signi�cante primeiro, sem sentido, que conta muito,mas não faz história.O que se escuta em uma análise do "eu sou"são narrativas criadas ao

longo da vida que produzem novas signi�cações, e se os sentidos se mul-tiplicam só alimentam o sintoma.Para se aceder à letra é preciso tomar a linguagem pela escrita, onde osigni�cante se separa da signi�cação. Neste caso, não se trata mais deescuta mas de leitura.4Duras, M. Écrire. Ed. Gallimard. Paris: 1993. p.65. Daqui para a frente [E:65]

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Ana Lucia Lutterbach

Lacan nos diz que não é só o sonho que deve ser tratado como escrita,como indica Freud, mas o próprio relato em análise deve ser tomadocomo algo a ser lido e não só escutado. A leitura da Letra, do não sentido,

ao contrário de fazer proliferar, reduz o sintoma à sua fórmula inicial,ou seja, "reduz o sintoma ao choque da linguagem sobre o corpo"5. NoSeminário 20, Lacan nos diz que trata-se de ler além daquilo que o ana-lista incitou o sujeito a dizer, ali para além do sentido encontra-se oinconsciente.6

Com esta a�rmação, Lacan tenta trazer para a análise o que há de inerte,o que não se pode contar. Ali onde estavam os efeitos de sentido passa a

prevalecer o gozo do corpo, de um corpo que não se define pela imagem ou

pela forma, mas pelo gozo que o atravessa e que se imprime como letra e

faz do corpo um aparelho de gozo. Segundo as precisas palavras de Miller,

"um aparelho de repetição do Um que comemora uma irrupção de um

gozo inesquecível"7*, num ciclo de repetições onde as experiências não

nos ensinam nada. *Um gozo opaco, chamado feminino, mudo que não muda e dura até o�m.Esta irrupção de gozo é o que orienta uma análise para além de todoo romance familiar, o que orienta e ultrapassa toda narrativa, todo ro-mance.A escrita de Duras é sustentada por este real do gozo, "seca e nua", comoela mesma nos diz em Écrire:

Eu creio que a pessoa que escreve não tem ideia do livro, ela tem asmãos vazias, a cabeça vazia, e que ela só conhece dessa aventura dolivro, a escrita seca e nua, sem devir, sem eco, distante....8

Não sou uma especialista em Duras, sou sua leitora há muitos anos efaço em mim anotações esparsas que agora tento recolher para trazer

5idem, p. 20-21.6Lacan, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE, Rio. p.39.7Miller, J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de23/03/2011. Inédito.

8[E:24].

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O que dura no corpo

para vocês. Não há precisão de datas e talvez alguma coisa, aqui e ali,eu tenha inventado, não sei. São fragmentos escolhidos e misturados,segundo a minha leitura e corte, de quatro escritas: Cadernos da guerra

(1943 a 1949)9, Barragem contra o pacífico (1950)10, O Amante (1984)11 eO Amante da China do norte (1990)12.Este último foi escrito como um roteiro para o cinema. Segundo umade suas biógrafas, Letitia Cénac13, Duras vendeu os direitos cinemato-grá�cos de O Amante para um produtor e propôs a ele �lmá-la lendo olivro. O produtor não só aceitou como a convidou para ser coautora doroteiro. A colaboração entre os dois foi por pouco tempo, ela discordouinteiramente da direção só interessada na reconstituição histórica, trans-formando sua escrita num livro de recordações. Nesse momento, Durasé hospitalizada e quando sai da clínica alguns meses depois, percebe queo roteiro já tido sido escrito sem ela e não aprovou absolutamente a ver-são cinematográ�ca. Dois anos antes da estreia do �lme ela publicou O

Amante da China do Norte, de acordo com Cénac, sua maneira de sereapropriar de sua escrita.A cena que se repete nos quatro livros é o encontro de uma jovem de15 anos branca, �lha de professores franceses na Indochina, com umchinês, um herdeiro milionário e já comprometido a se casar com umamulher escolhida por seu pai, segundo a tradição.Trata-se das �cções de Duras em torno de um mesmo ponto �xo degozo em um corpo de menina quando é tocado pela primeira vez porum homem que a quer como mulher, um primeiro encontro com o realdo sexo. É um encontro com um único homem, mas são quatro escritas

9DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade, São Paulo,2009. Daqui em diante [CG].

10DURAS, M. Barragem contra o Pací�co. Ed. ARX, São Paulo, 2003. Daqui emdiante [BP].

11DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984. Daqui em diante [A].12DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991. Daqui em diante

[ACN].13CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions de La Martinière,

2013. p.34-35.

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Ana Lucia Lutterbach

diferentes num intervalo de quase cinquenta anos, em torno do mesmoacontecimento de corpo, o mesmo gozo, mas reescrito a cada vez.1o

Cadernos da Guerra, trata-se de uma longa narrativa sobre sua infân-cia e adolescência na Indochina, esboços do que viria a ser mais tardeBarragem contra o Pacífico. Duras tinha 29 anos.Aqui o homem chama-se Léo: um chinês repugnante.Em uma pensão em Saigon alguém, que ela nem sabia mais quem, lhedeu uma carona num carro onde estava o chinês, "que vestia-se à fran-cesa". Ela ainda não tinha quinze anos quando ele a beijou de surpresa eela se sentiu invadida por uma repulsa indescritível, o empurrou, cuspiu,queria saltar do carro. Ela escreve: "Eu era o próprio nojo: seu rosto be-xiguento, sua grande boca mole, a saliva e a língua desse ser desprezívelhaviam tocado meus lábios. Sentia-me como depois de ser violada."14 Ogozo aí é nojo e violação.2o

Barragem contra o Pacífico, ela tem 36 anos. O homem, o chinês éagora o Sr. Jo, o rico plantador do norte.Eu a cito:

Ele estava sozinho em sua mesa. Era um rapaz que parecia ter 25 anos,vestido com um terno de tussor cru. Sobre a mesa havia um chapéuda mesma seda crua. Quando bebeu um gole de Pernod, viram emseu dedo um magní�co diamante para o qual a mãe �cou olhandoem silêncio, pasma. (...) Ela, com certeza, era uma bela moça, tinha osolhos luminosos, arrogantes, era jovem, estava no auge da adolescên-cia, e não era tímida.15

Sr. Jo é um homem rico e desprezível que paga as despesas da família emnoites de dança, comida e bebida. Não é a menina, é sua mãe que olhapara o anel, olha para o olhar dele que olha sua �lha, e ela vê sua própriapenúria. Quanto vale o anel? Quanto vale a menina para este homem?Essa narrativa diz mais sobre a relação da menina com a mãe do quepropriamente com o homem. A invasão é a do Pací�co, do mer-mère,da mãe. É como objeto desse gozo materno que ela lê este encontro.

14[CG :78].15[CG :41].

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O que dura no corpo

3oO Amante. Duras tinha 70 anos quando escreveu.

O homem, o chinês, é aquele que se apresenta em uma balsa.Ela tem quinze anos e meio e atravessa numa balsa um rio, como ela diz,"na grande planície de lama e arroz do sul da Cochinchina, aquela dosPássaros".É assim que ela conta:

Desde que entrou no carro preto ela sabe que chegou o tempo emque ela não pode mais escapar a certas obrigações, às quais só ela poderesponder, sem a mãe, sem os irmãos. Ela está separada desta família,pela primeira vez e para sempre. Eles não devem mais saber o que serádela: a criança agora terá a ver com este homem ali, o primeiro, aqueleque se apresentou na balsa16.

Ali ela se separa do gozo materno e toma para si essa experiência comaquele homem.Num pequeno estúdio, uma espécie de garçonnière, eles �cam a sós pelaprimeira vez. Ela escreve:

Ela está sem sentimento bem de�nido, sem raiva, sem repugnânciatambém, mas sem dúvida, o desejo já está ali. Ela está ignorante disso.Ela consentiu vir e está ali onde é preciso que ela esteja. Ela experi-menta um leve medo, um medo não apenas do que ela espera doque pode acontecer, mas do que deve acontecer precisamente no casodela17.

Ela consentiu, está onde precisa estar e espera o que deve acontecer, nãoo que sempre acontece, mas o que deve acontecer no caso dela.Ele treme mas não se mexe. Ela não diz nada. Ela lhe suplica que ele façacomo costuma fazer com as mulheres, porque ela não sabe o que fazuma mulher. Ele arranca o vestido e a calcinha de algodão branco e acarrega nua para a cama. Então ele volta-se para o outro lado e chora.Ela de olhos fechados começa a despi-lo.

A pele dele é de uma doçura suntuosa. O corpo é magro, sem força,sem músculos, imberbe, sem nenhuma virilidade além do sexo. Ela

16[A :46].17[A :47].

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toca a doçura do sexo, da pele, ela acaricia a cor dourada, a desconhe-cida novidade. Ele geme, ele chora. E chorando ele o faz. De iníciohá dor. E depois esta dor é por sua vez possuída, transformada, lenta-mente arrancada, abraçada pelo gozo18.

4oO Amante da China do Norte. Ela tem 77 anos.

O chinês é o Chinês do Norte.Para situar o gozo em questão nesta escrita, extraí, copiei e juntei algunsfragmentos de páginas esparsas.

É um livro

É um �lme.

É a noite.

A voz que fala aqui é aquela, escrita, do livro.

Voz cega. Sem rosto.

Muito jovem.

Silenciosa19.

A cena:É o rio.A balsa saindo.Ela olha o rio. Ela olha também o Chinês elegante que está no interiordo grande carro preto, o mesmo que já foi o chinês repugnante, o ricoplantador do norte ou aquele que se apresentou na balsa.Da Limousine preta saiu um outro homem que ela diz ser diferentedaquele que ela tinha do outro livro, O Amante, um outro Chinês doNorte. Ele é um pouco diferente daquele do livro: ele é um pouco maisrobusto que o outro, tem menos medo e mais audácia. Ele tem maisbeleza, mais saúde. E também tem menos timidez que ele diante dacriança.

Ela permaneceu a do livro, pequena, magra, ousada, difícil de enten-der, difícil de dizer o que é, menos bela do que parece. Louca de ler,de ver, insolente, livre.

18[A :49].19[ACN:17].

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O que dura no corpo

Ele é um Chinês. Um Chinês grande. Ele tem a pele branca dos Chi-neses do Norte. Ele é muito elegante.

Ele a olha.

Eles se olham. Sorriem. Ele se aproxima.20

Alguns dias depois, no mesmo pequeno estúdio.Ele diz:

Eu vou te pegar.

Silêncio. O sorriso desaparece do rosto da criança.

Venha.

Ela vai. Ela diz nada, para de olhá-lo.

Ele tira seu vestido, depois tira a calcinha de algodão branco da criança.Ele joga o vestido e a calcinha na poltrona. Ele a olha. Ela não. Ela sedeixa ver. Ele a acaricia.

Com uma espécie de medo, como se ela fosse frágil, e também comuma brutalidade contida, ele a carrega e a coloca sobre a cama. Ele aolha e o medo o toma novamente. Ele fecha os olhos, ele se cala, elenão a quer mais. E é então que ela o faz, ela. Os olhos fechados, ela odespe.21

Ele diz:Eu vou te machucar.Ela diz que ela sabe.Neste livro, ela diz se lembrar do medo.

Como ela se lembrava da pele e de sua doçura. De olhos fechados elatocava esta doçura, ela tocava a cor dourada, a voz, o coração que ti-nha medo, todo o corpo apertado sobre o seu, perto do assassinato daignorância dela em tornar-se a criança dele. A criança dele, do homemda China que se cala e que chora e que o faz num amor assustador.

A dor chega no corpo da criança. Ela primeiro é viva. Depois terrível.Depois contraditória. Como nada mais. Nada: é então quando estador torna-se insuportável que ela começa a se afastar, ela a dor. Queela se transforma, que torna-se uma dor para gemer, gritar, que tomatodo o seu corpo, a cabeça, toda a força do corpo e a do pensamento.

20[ACN:35-36].21[ACN:78].

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O sofrimento deixa o corpo magro, deixa a cabeça. O corpo �ca abertopara fora. Ele foi atravessado, ele sangra, ele não sofre mais. Isso nãose chama mais dor, isso se chama talvez morrer. (...)

Ela escuta ainda o barulho do mar no quarto. Ela se lembra de ter es-crito isso, que o mar estava presente naquele dia no quarto dos aman-tes 22.

Essa é sua memória aos 77 anos quando, talvez, não tivesse mais recor-dações, só essa memória de um corpo que goza.Das quatro escritas está a mesma experiência de gozo que se repete erepete, em diferentes narrativas. Esse gozo que invade a criança e viraletra no corpo, fora do sentido �ca ali até o �m para inúmeras narrativasdiferentes.Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetiçãoin�nita.Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetiçãoin�nita.Agosto/2019Letras UFRJ

22[ACN:80-81].

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O que dura no corpo

referências

CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions deLa Martinière, 2013.DURAS, M. Écrire. Ed. Gallimard. Paris: 1993.DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade,São Paulo, 2009.DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Ed. ARX, São Paulo, 2003.DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984.DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991.LACAN, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE,Rio de Janeiro.MILLER ,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana,2011, lição de 25/05/2011. Inédito.

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escrever e escrever oscorpos — 0 amante , de

durasisadora bonfim nuto

Uma coisa que Duras soube — e isso nos é dito pela vozda narradora de O amante — é que escreveria. Não apenas que

gostaria de escrever, mas que escreveria, isso é fato, que precisava escre-ver. Em O amante, isso aparece explicitamente em alguns momentos:"Quero escrever. Já disse para minha mãe: o que quero é isso, escre-ver"(2012, p. 21), "vou escrever livros. É o que vejo para além do instante,no grande deserto que se a�gura como a extensão de minha vida"(2012,p. 88), "Respondi que o que mais queria, acima de qualquer outra coisa,era escrever, só isso, nada mais"(2012, p. 22) e, em outro momento, aescrita aparece tratada como uma certeza, uma certeza absoluta, e é afamília que está no centro dela, dessa "certeza essencial, do que maistarde vou escrever"(2012, p. 65).O amante seria, segundo a própria Duras, seu livro mais autobiográ-�co23 — ainda que a autobiogra�a permeie, em maior ou menor grau,toda a sua obra. O que se conta nesse livro, escrito quando a autora já

23Cf. PERRONE-MOISÉS, Leyla: "Em entrevistas concedidas na época da publica-ção do romance, Duras a�rmava que este era o mais autobiográ�co de sua obra,assim como o que foi escrito com maior facilidade, ao correr da pena"(p. 105).

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passava dos 70 anos e já havia produzido uma vasta obra, é justamenteesse desejo de escrita e, mais ainda, o que acompanha esse desejo, o queo motiva, o que demanda e exige essa escrita, sendo também sua fonte,seu eterno mote, são os acontecimentos em que se fundam — mesmoque sem o saber na época — a escritora e o plano de fundo de todo ecada um de seus textos. Ao falar da imagem que recorda, a narradoradiz: "vejo que já está tudo ali. Está tudo ali, e nada ainda começou, vejonos olhos, tudo já está nos olhos"(2012, p. 21) e, no livro A vida mate-

rial, Duras o con�rma: "Escrevendo O amante eu tinha a sensação dedescobrir: Já estava ali antes de mim, antes de tudo..."(1989, p. 28).Talvez seja também isso o que se conta: o sonho roubado na infânciapela infelicidade da mãe ("em minha infância, a infelicidade de minhamãe ocupou o lugar do sonho"2012, p. 41); talvez essa tristeza que sem-pre sentiu, em que se reconhece desde menina e a qual poderia nomearcom seu nome ("Sinto uma tristeza que eu já esperava e que vem só demim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotosem que sou menininha. Que hoje, ao reconhecer essa tristeza como aque sempre senti, eu quase poderia lhe dar meu nome, a tal ponto ela separece comigo"[2012, p. 40]); talvez seja essa história "de ruína e morteque era a dessa família"(2012, p. 25), cambaleante entre o amor e o ódio,indecisa entre vivacidade e morte, feita de paradoxos. Até mesmo os mo-mentos de prazer são assim narrados: "éramos crianças risonhas, meuirmão mais moço e eu, ríamos até perder o fôlego, a vida"(2012, p. 54).Mas, sobretudo, o que se conta em O amante, nessas linhas declarada-mente autobiográ�cas e, no entanto, inescapavelmente atreladas a umadimensão �ccional, não é apenas uma história de amor ou o encontrosexual entre uma menina branca pobre de quinze anos e seu amantechinês milionário e muito mais velho, como poderia fazer supor, a prin-cípio, o título. O que há naquelas linhas é, antes, a escrita de um corpo,ou melhor, de corpos. O corpo da autora, da menina, da mulher, pre-sentes desde sempre um no outro, e também o corpo do amante. Mas,além desses, no corpo do texto, escrevem-se também os corpos de outrospersonagens: os dois irmãos, a colega do pensionato, a mãe...

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O livro não se inicia com a �gura do amante, apontada no título, nemmesmo com o espaço temporal em que se dá o encontro com ele. Oque se lê nas primeiras linhas não é a descrição da menina na balsa ou oMorris Léon-Bollée do jovem banqueiro de Saigon; não é a Indochinados anos 30. Todas essas são imagens que aparecerão a seguir, logo noinício, mas que não são a primeira, como se esperaria de uma ordena-ção cronológica. O livro começa, ao contrário, com outra imagem, comum tempo muito posterior ao daquilo que se promete narrar, em umpaís muito distinto, e distante. É o rosto devastado da escritora o queprimeiro aparece; é ele, esse rosto destruído, que introduz a história:

Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público,um homem se aproximou de mim. Apresentou-se e disse: "Eu a co-nheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quandojovem; venho lhe dizer que, por mim, eu a acho agora ainda mais bo-nita do que quando jovem; gostava menos do seu rosto de moça doque do rosto que você tem agora, devastado. (2012, p. 7)

Se essas palavras, ditas por um antigo conhecido, podem soar como umaofensa, elas são, na verdade, recebidas de forma oposta. A narradoraapropria-se delas como a imagem de si mesma, como a real e verdadeiraimagem de si mesma. "Tenho um rosto destruído"(2012, p. 8), diz anarradora, agora em suas próprias palavras, "tenho um rosto laceradopor rugas secas e profundas, a pele sulcada. Ela não decaiu como certosrostos de traços �nos; manteve os mesmos contornos, mas sua matériase destruiu"(2012, p. 8).O primeiro parágrafo do livro, que diz desse homem que a aborda, apre-senta um tempo presente, um rosto e uma imagem contemporâneosao da escrita do romance. O trecho seguinte, porém, já opera de outraforma, já institui a lógica que será a de todo o livro. Aqui, a imagemdesse rosto devastado se sobrepõe a uma outra imagem, uma imagemque ainda não foi narrada, uma imagem apresentada antes de ser mos-trada: "Penso com frequência nessa imagem que sou a única ainda a vere que nunca mencionei a ninguém. Ela continua lá, no mesmo silêncio,fascinante"(2012, p. 7). Trata-se, mas isso o leitor só saberá depois, da

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Escrever e escrever os corpos

imagem da menina na balsa sobre o Mekong. De fato, todo O amante éescrito em torno de uma imagem, uma fotogra�a nunca tirada, mas quenem por isso existe menos. Ao escrever os textos para compor um álbumde fotogra�as de sua vida organizado por seu �lho, Duras decide incluiressa imagem, essa fotogra�a que, na verdade, nunca foi tirada e que era,portanto, conhecida apenas por ela, destinada a morrer apenas com suamorte. O texto dessa "imagem central", que a autora também chama de"imagem absoluta", viria a ser a primeira versão de O amante: "o textode O amante se chamou, primeiramente, A Imagem Absoluta. Ele de-veria percorrer um álbum de fotogra�as de meus �lmes e de mim. Essaimagem, essa fotogra�a absoluta, não fotografada, entrou no livro"24

(DURAS, 1984a). No próprio livro, a importância capital dessa imageme do acontecimento que ela �gura é evocada: "Poderia ter existido, po-deriam ter tirado uma foto, como qualquer outra (...). Mas não tiraram.(...) Ela só poderia ter sido tirada se fosse possível prever a importância

daquele acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio"(2012, p.12, grifo meu).Sobre essa "imagem absoluta", ainda apenas evocada, antes de ser des-crita, a narradora a�rma, ainda no segundo parágrafo do livro: "entretodas as imagens de mim mesma, é a que me agrada, nela me reconheço,com ela me encanto"(2012, p. 7). No entanto, não é apenas isso que édito no texto. A sequência com que o texto é disposto e com que as ima-gens são evocadas — primeiro a do rosto devastado, depois a da balsa,só mais adiante referida — abre uma possibilidade de leitura em que"penso com frequência nessa imagem"(p. 7) pode se referir tanto a umaquanto a outra, superpondo-as e fazendo-as se equivalerem. É, assim,simultaneamente em ambas as imagens, tanto nesse rosto devastadoquanto na imagem dessa jovem de quinze anos sobre a balsa, que essanarradora se reconhece, se encanta.

24"Le texte de L’amant s’est d’abord appelé L’Image absolue. Il devait courir tout aulong d’un album de photographies de mes �lms et de moi. Cette image, cette pho-tographie absolue non photographiée est entrée dans le livre".

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Dessa forma, todo o livro parece ser, sob o mote do encontro com oamante, a escrita não só dessa fotogra�a nunca tirada, mas também aescrita desse rosto, dessa destruição, de cada marca que nele se inscreve,seus traços, as "profundas gretas impressas na testa"(2012, p. 8). E issonão está oculto, não é um mistério, pois é a própria narradora quem o de-clara: "acompanhei a evolução desse envelhecimento do meu rosto como interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura"(2012,p. 7, grifo meu).Com essa frase, Duras parece dar algo como uma, dentre tantas, chavede leitura para seu texto. Um rosto que se excreve (assim diria Nancy[2000], para quem o corpo se ex-creve em toda escrita) em uma escrita euma leitura que se desenrolam acompanhando esse rosto. Não se tratade uma reconstrução — no sentido de uma correção ou mesmo de umasalvação — desse rosto, mas de acompanhar sua escrita, sua excrição

(NANCY, 2000), a escrita dessa ruína, de cada ruga que compõe esserosto precocemente envelhecido, cada sulco desenhado como as curvasde um rio, a escrita desse rosto que, aos quinze anos, no ato do encontrocom o chinês na balsa sobre o rio Mekong, já era premonitório desse fu-turo rosto devastado. Assim diz a narradora: "Desde muito jovem, desdeos dezoito, quinze anos, tive aquele rosto premonitório deste outro quedepois adquiri com o álcool na meia-idade"(2012, p. 11) e acrescenta que,"aos dezoito, já era tarde demais"(2012, p. 7), pois "muito cedo foi tardedemais em minha vida"(Idem).Esse não é, entretanto, o único corpo que se escreve no livro de Duras.A mãe e os irmãos são �guras que comparecem o tempo todo no texto,eles vêm, vão e retornam, reaparecem aqui e ali, inserem-se onde nãosão esperados, atravessam momentos que parecem não lhes dizer res-peito. E isso só pode dizer de uma presença constante dessas pessoasna vida dessa narradora, em seu corpo, em suas memórias, a presençaobstinada dessa família querida e odiada da qual se tenta a todo custose desembraçar sem conseguir, ou conseguindo apenas ilusoriamente.Essa família que foi, em vida, marcada pela distância assinala sempre suapresença na escrita, e é por meio desta que a autora se mantém para sem-

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pre atrelada aos laços familiares: "Ainda estou nessa família, é nela quevivo, à exclusão de qualquer outro lugar. É em sua aridez, sua terrível du-reza, sua maldade"(2012, p. 65). Que sempre escreveu sobre a família, elamesma a�rma: "Escrevi muito sobre essas pessoas da minha família, masenquanto ainda estavam vivas, a mãe e os irmãos, e escrevi sobre eles, so-bre essas coisas sem chegar diretamente até elas"(2012, p. 10). Enquantovivas na realidade, essas pessoas compareciam na literatura de Duras en-cobertas por personagens apenas mais ou menos �ccionais. Parece serapenas em O amante que pôde escrever sobre "essas coisas"chegando�nalmente até elas, tocando-as em corpo, por meio da palavra. Em O

amante da China do Norte, a personagem da menina, identi�cada por"a criança", em um diálogo com a mãe, já aponta a família como o centrode sua escrita: -– Sobre o que escreverá quando começar um livro?/ Acriança grita:/ — Sobre Paulo [o irmão mais novo]. Sobre você. Sobre Pi-erre [o irmão mais velho] também, mas aí será para fazê-lo morrer"(2015,p. 16-17).Se, segundo Nancy (2000), para quem a literatura é composta de cor-pos (memória, fragmentos, autobiogra�a, etc.), o tocar é o que ocorre atodo momento na literatura, Helène Cixous, em conversa com MichelFoucault Sobre Marguerite Duras, aponta essa questão como algo es-sencial à obra durassiana: "na pobreza da língua, eles também se tocam.Quem? Eles? Esses seres humanos, esses errantes que, através de umaterra muito vasta, se tocam. Acariciam-se, roçam-se. É desconcertante.O que aprecio nela é que essa relação de tato existe o tempo todo"(2009,p. 363). O tato parece ocorrer o tempo todo — não apenas nas cenas derelações amorosas —, fazendo com que a escrita de Duras tenha umacerta dimensão erótica ainda quando sua temática não o seja. Sobre isso,também aponta Cixous: "tudo o que Marguerite Duras escreve, e queé o despojamento, levado a tal ponto que certamente é também perda,é ao mesmo tempo fantasticamente erótico, porque Marguerite Durasé alguém que está fascinado"(2009, p. 359). É esse fascínio, então, daescritora pelo texto, pela escrita em geral, que confere dimensão eróticaà obra — "ou a morte, ou o livro"(DURAS, 1994, p. 18) —, e Duras é

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uma escritora que constantemente a�rma sua escrita como uma formade vida: "Nunca �z um livro que não fosse minha razão de ser na horaem que está sendo escrito"(Idem).Com efeito, são frequentes as passagens em que uma importância cen-tral é concedida ao corpo. As descrições do corpo parecem imersas emtal deleite e cuidado que beiram a sensação, e o que parece se ler e es-crever ali não é senão o próprio tocar, a própria sensação do toque. Ascenas em que se acaricia o corpo se repetem ao longo do romance, assimcomo em outras obras da autora, e as menções à pele são essenciais: "apele de chuva", "a cor dourada", as mãos. Em O amante da China do

Norte, espécie de reescrita de O amante para o cinema, em uma con-versa com a colega do pensionato, que lhe pergunta se o homem chinêsé bonito, a menina responde que sim, mas evoca, não a beleza do rosto,mas justamente os detalhes do corpo: "Hélène Lagonelle pergunta seé bonito. A criança hesita. Diz que é. (...) Sim. A suavidade da pele, acor dourada, as mãos, tudo. Diz que é todo bonito"(2015, p. 63). Nomesmo livro, na introdução, Duras fala sobre os títulos que pensou emdar ao novo romance e diz que o escreveu "em meio à louca felicidadede escrever"(2015, p. 7), e que, nesse tempo de escrita, que durou umano, foi como se revivesse aquele ano de amor com o chinês. Mesmosabendo de sua morte anos antes, Duras a menciona como que vistadesde um tempo anterior, em que essa ideia nem mesmo parecia pos-sível, e, aqui, novamente, evoca o corpo: não é a morte do homem queestá em questão, mas a de seu corpo, de cada uma de suas partes, daquelecorpo de prazer: "Eu não imaginara absolutamente que a morte do chi-nês pudesse acontecer, a morte de seu corpo, da sua pele, do seu sexo,das suas mãos"(2015, p. 7).Em O amante, no entanto, em relação a sua nova versão (O amante

da China do Norte), as imagens do corpo parecem ser mais frequen-tes. A narradora descreve a "suavidade suntuosa"da pele, do sexo, da cordourada do amante ou o corpo de Hélène Lagonelle, "o outro amor dacriança, jamais esquecido"(2015, p. 35), que a deixa extenuada de desejo,um corpo sublime, que é "o que há de mais belo entre todas as coisas

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Escrever e escrever os corpos

criadas por Deus"(2012, p 62). "Não existe nada de mais extraordinário",diz ela sobre a colega, "do que esse arredondamento visível dos seios sa-lientes, essa exterioridade ao alcance das mãos"(2012, p. 35). Esse corpoencantador parece contrastar com o corpo do amante, que é "magro,sem força, sem músculos, podia ser de um doente, de um convalescente,ele é imberbe, sem virilidade a não ser a do sexo, é muito frágil"(2012, p.35), mas cujas mãos são "experientes, maravilhosas, perfeitas"(2012, p. 39).No entanto, esse corpo que não parece corresponder a um padrão debeleza, não deixa de provocar desejo. As relações com o amante chinês,embora perpassadas pelo dinheiro, não são uma contrapartida penosa,uma troca apenas monetária, mas, pelo contrário, são repletas de prazer:o gozo é uma constante e �ui vertiginosa e longamente, como um mar"sem forma, simplesmente incomparável"(2012, p. 35), "a imensidão quese recolhe, se afasta, volta"(2012, p. 39). A jovem, assim, usufrui ela tam-bém de seu próprio corpo, e ela mesma pede para ser tomada mais vezes,repetidamente, em um gozo que é, nas suas palavras, "de morrer": "Eutinha lhe pedido que �zesse mais uma vez, e mais outra. Que me �zesseaquilo. Ele tinha feito. Fizera-o na untuosidade do sangue. E tinha sidomesmo de morrer. Foi de morrer"(2012, p. 39).A água também perpassa esses momentos de amor: a água da chuva tor-rencial de moção que cai sobre a garçonnière e que marca a lembrança daIndochina, sempre abordada sob o prisma da chuva, do calor insuportá-vel, da selva, dos animais ("Meu país natal é uma pátria de águas. Águasdos lagos, dos rios que desciam da montanha, dos arrozais, a água terrosados rios da planície dentro dos quais nos abrigávamos durante as tem-pestades. A chuva doía de tão forte"[1989, p. 61]); as águas selvagens doMekong, em que parece haver "uma tempestade que sopra no interiordas águas do rio"(2012, p. 13), correnteza arrasadora, que arrasta tudoconsigo, o rio "carrega tudo o que vem a ele"(2012, p. 22), avassaladorcomo esse amor, mas também surdo, como "o sangue no corpo"(Idem);e então há o oceano onde vão desaguar essas águas selvagens, o maior detodos, o Pací�co, esse imenso intervalo separando o Vietnã da França,que é também a promessa da separação dos amantes. E depois há outras

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águas, há essas águas do corpo, as lágrimas dos amantes que choram e fa-zem amor, que fazem amor chorando, desesperados de desejo, de medo,de dor; e então o gozo, esse mar que se espalha e se retrai. De morrer.O mar e o amor: "o sangue no corpo", "a untuosidade do sangue". Demorrer.É também exatamente após uma cena de amor, a primeira, a da "de-�oração da jovem branca", que a imagem absoluta retorna e aparececomo estando também presente naquele momento, como tendo sem-pre já estado ali; aquela imagem participando de todos os momentospor vir, todos os tempos participando de todos os outros tempos seguin-tes, superpondo-se, coexistindo; aquela "imagem central", total, estandopresente em todas as outras imagens futuras. É isto: a imagem da balsa,sem o prever, já estava presente naquele momento futuro:

E chorando ele faz. Primeiro vem a dor. E então, depois que essa doré acolhida, ela é transformada, lentamente arrancada, arrastada para ogozo, abraçada a esse gozo. O mar, sem forma, simplesmente incom-parável

Já na balsa, de antemão, a imagem teria participado daquele instante.

(2012, p. 35, grifo meu).

Mas, de repente, nessa mesma sequência, esses corpos que se encontram,que se tocam em pele e carne são atravessados por um outro corpo,pelo espectro do corpo da mãe. A mãe, que, diferente da menina, nãoconheceu o gozo:

A imagem da mulher com as meias cerzidas atravessou o quarto. Fi-nalmente aparece como criança. Os �lhos já sabiam. A �lha ainda não.Eles nunca falarão juntos sobre a mãe, sobre esse conhecimento quetêm e que os separa dela, esse conhecimento decisivo, derradeiro, o dainfância da mãe.

A mão não conheceu o gozo (2012, p. 36).

Aqui, uma inversão de papéis: a menina se torna mulher e a mãe é con-vertida em criança. À imagem infantilizada de suas vestimentas, soma-seo desconhecimento não do sexo, mas do prazer. Em diversos momentos,

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a imagem da mãe irrompe de forma inesperada, como se esse corpo tam-bém exigisse ser escrito; esse corpo que não encontrou o gozo no corpoa corpo real sobrevém justamente quando os corpos estão em jogo, exi-gindo um lugar na escrita. O pensamento da mãe se segue (persegue?)aos momentos de amor carnal. É também entre elementos corpóreos,o beijo, o corpo e o choro, que ela é evocada. "Os beijos no corpo fa-zem chorar"(2012, p. 39), diz a narradora, e chora em seguida, chora aopensar que um dia irá se desgarrar da mãe, que um dia não sentirá amornem mesmo por ela. Ela chora lembrando a infância roubada pela mãe,por essa mulher que aparece, ao mesmo tempo odiada e amada: "a por-caria, minha mãe, meu amor (...) Minha mãe meu amor seu incrível arridículo (...) me envergonhava na rua na frente do liceu (...) dá vontadede prender, de bater, de matar"(p. 23).Todo o livro é, também, para escrever essa mãe, a desgraça que foi suavida, e para perdoá-la, essa mãe que havia amado tão mais o primogênitoque aos outros, mas também para lhe fazer uma declaração de amor, parasalvá-la, para redimi-la. Em O amante da China do Norte, conversandocom o amante certa noite, ela lhe conta a história da mãe e diz que nãose importa se ele não estiver escutando o relato, o que importa paraela é contar, contar para não esquecer, contar para poder futuramenteescrevê-la: "Não importa se não escutar. Pode até dormir. Contar essahistória representa para mim escrevê-la mais tarde. Não posso deixar defazê-lo. Uma vez escreverei assim: a vida de minha mãe"(2015, p. 67). Defato, a história da mãe é �gurada em Barragem contra o Pacífico, mas,como dito, até O amante, a autora acredita apenas ter escrito sobre essaspessoas, essas coisas, "sem chegar diretamente até elas".Essa relação simultânea de amor e ódio não lhe parece estranha. ParaDuras (1984b), toda família tem uma dimensão selvagem, ou melhor,é na verdade essa selvageria que dá a dimensão da família: se tudo estámuito tranquilo e educado é porque alguma coisa foi contornada, do-mesticada, alguma coisa da lei natural da espécie. Em O amante essaselvageria essencial da família é �gurada sem pudor, e é também na obraque sua dimensão odiosa, até mesmo a do irmão mais velho, é perdo-

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ada: "Eu inocentei todo mundo. Acredito que seja isto O amante: todomundo é inocentado"(DURAS, 1984b, transcrito). Ainda sobre a mãe,lê-se em O amante: "Eles estão mortos agora, a mãe e os dois irmãos. Étarde demais mesmo para as lembranças (...) É por isso que escrevo sobreela agora de modo tão fácil, tão longo, tão estirado, ela se tornou escritacorrente"(2012, p. 27). Que o livro seja também esse gesto de escritada mãe parece �car claro nessa passagem. A mãe convertida em escrita,seu corpo convertido em corpo textual, escrita corrente, estirada, per-correndo o livro do início ao �m, misturando-se aos outros corpos, àsoutras águas. Também em outro momento de amor na garçonnière doamante chinês, a mãe invade a local: após o gozo de morrer, comparadoao mar, é outra água que inunda a cena, também a água do mar, masagora terrível, destrutiva, e indissociável da história da mãe: a água dasenchentes que inundam os arrozais da primeira casa, que revelam seremaquelas terras, em que a mãe gastara todas as economias, eternamente in-férteis, que completam a desventura de sua vida. Leyla Perrone-Moisés,no posfácio ao livro, comenta a associação, via semelhança grá�ca e equi-valência sonora, entra as palavras "mar"e "mãe"em francês, ambas, inclu-sive, femininas (respectivamente "la mer"e "la mère"), e ressalta a impor-tância da água no conjunto da obra durassiana: "origem da vida, poderde destruição"(2012, p. 113).Mas não é apenas o corpo da mãe que sobrevém nesses momentos, queinvade e atravessa os momentos de amor com o chinês. Também osirmãos se escrevem no texto, inscrevendo-se no meio das relações:

Eu começava a reconhecer a suavidade indizível de sua pele, de seusexo, para além dele. A sombra de outro homem também devia atra-vessar o quarto, a de um jovem assassino, mas eu ainda não sabia, nadadisso ainda aparecia a meus olhos. A de um jovem caçador tambémdevia atravessar o quarto, mas quanto a esta, sim, eu sabia, às vezes ele

estava presente no gozo (2012, p. 85, grifo meu).

Certa dimensão incestuosa parece emergir por meio do texto: o irmãopresente no gozo, no amante, em seu corpo, atravessando esse quarto,que é o lugar do sexo. Celina Moreira faz essa leitura associando o

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amante a um duplo do irmão, relação já presente em outras obras: "Ochinês, pelo seu corpo frágil, belo, elegante, e pelo medo que havia emseus olhos, é um duplo do irmão mais moço de M. Duras, o Joseph deLe barrage contre le Pacifique, aquele que, diz ela, morreu assassinadosimbolicamente pelo irmão mais velho, aquele cuja paixão descobriria,ao escrever Agatha (1981), ode ao amor interdito entre irmão e irmã"(s/d,p. 5). Essa associação não é dissimulada nas obras, ao contrário, em mui-tos momentos o irmão mais novo é diretamente associado ao amante:a suavidade da pele, o carinho, o amor obstinado que a menina sentepor ambos, as conversas.... "Somos três [a menina, o irmãozinho e oamante] com pele de chuva"(2015, p. 100). Em A vida material, quenão é publicado como um livro de �cção, Duras reforça essa identidade:"A pele [do amante]. A pele do irmãozinho. É a mesma coisa. / A mão.Igual"(1989, p. 40). Já em O amante da China do Norte, a criança diz aHélène Lagonelle o temor que lhe inspira a ideia de amar o amante maisdo que ao irmão: -– Você tem medo do chinês? / — Mais ou menos...um pouco... talvez de amá-lo. Tenho medo... Quero amar Paulo até aminha morte"(2015, p. 40). Na mesma obra, chega a ser narrada uma re-lação sexual entre os dois, que não aparece em O amante e que é reveladatambém como um gesto para partilhar o prazer com o irmão adorado,compartilhar com ele esse conhecimento que ela havia descoberto, levá-lo a conhecer essa felicidade, esse gozo "de morrer". É justamente nessemomento que ela se dá conta de que o amor pelo chinês e o amor peloirmão não foram senão um único amor:

Foi aquela a única vez, em toda a vida de ambos, que se entregaramum ao outro.

Fora um prazer que o irmãozinho até então não havia conhecido. Aslágrimas rolaram de seus olhos fechados. E haviam chorado juntos,sem uma palavra, como sempre acontecera.\Naquela tarde então, naquela confusão da felicidade, naquele sorrisomaroto e doce de seu irmão, a criança havia descoberto que vivera um

único amor entre o chinês de Sadec e o pequeno irmão da eternidade

(2015, p. 141, grifo meu).

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O corpo do irmão mais velho também retorna nessa relação proibida:a jovem dança com o irmão mais novo, dança com o amante, mas nãodança nunca com o irmão mais velho, sendo justamente a possibilidadede aproximação desses dois corpos, desses dois corpos interditos, deirmão e irmã, que se coloca como perturbadora e perigosa: "sempreimpedida pela percepção perturbadora de um perigo, o dessa atraçãomalé�ca que ele exerce sobre todos nós, o da aproximação de nossoscorpos"(2012, p. 48). Sobre isso, Duras con�rma em entrevista: "Eu nãoquero dançar com ele, porque não quero aproximar-me de seu corpo. Essaideia me causa horror, porque me perturba. Foi o meu irmão quem mefez crer na maldade nativa do homem25"(DURAS, 1984a, grifo meu).Até mesmo com esse irmão essa relação proibida é entrevista, questio-nada se havia alguma intenção sexual entre eles, ela responde que, de suaparte, ela crera por muito tempo que não, mas que, já que a detectouno irmão, isso signi�ca que devia existir nela também (Duras, 1984a).Essa dimensão incestuosa parece, assim, entrelaçar toda a família. Em-bora a mãe não apareça diretamente como objeto de desejo, é em umarelação de �liação que se transforma o contato entre os amantes, com amenina se tornando, para esse homem, não mais a mulher, não a amanteou a esposa, mas a �lha: "me tornei sua �lha. Ele também tinha se tor-nado outra coisa para mim [...], era com a �lha que ele fazia amor todasas noites"(2012, p. 85).A relação entre os dois amantes é, assim, apenas um termo em umarede de entrelaçamentos de corpos suscitada por eles. O próprio corpode Hélène Lagonelle não está completamente distante dos momentosde prazer do casal, uma vez que, ao admirar seu corpo, é também narelação com o chinês que a narradora pensa. Ela deseja levar Hélènejunto, para ser tomada pelo amante, para fazer com ela o que faz consigo,para, por meio desse terceiro corpo, transversalmente, alcançar um gozode�nitivo: "que ela se dê onde eu me dou. Seria pelo desvio do corpo de

25"Je ne veux pas danser avec lui parce que je ne veux pas me rapprocher de son corps.Ça me fait horreur parce que ça me trouble. C’est mon frère qui m’a fait croire à lamalfaisance native de l’homme"(DURAS, 1984a).

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Hélène Lagonelle, pela transversal de seu corpo, que viria o gozo queele me dá, agora de�nitivo. De morrer"(2012, p. 64).São vários, para além da relação sexual, os signos do corpo ao longo dolivro. É o maxilar cerrado do irmão durante todo o tempo que tem deencontrar o chinês; é o corpo atravessado pela música, que põe o amorem questão, quando, no navio em partida para a França, a jovem ouvetocar uma melodia de Chopin e chora pensando no amante de Cholen,porque de repente, ao sentir a emoção daquela música em seu corpo,"não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não seapercebera"(2012, p. 96) e que agora "reencontrava nesse instante emque a música se lançava ao mar"(2012, p. 96). Sobre isso, Duras relembraem entrevista (1984b, transcrito, grifo meu) que foi justamente da sua"separação do corpo do jovem homem morto"que lhe veio "essa evidên-cia, eu o [o amante] havia, sem dúvidas, amado26"; é o desejo de matarum corpo com "as próprias mãos", que é suscitado pelo lindo corpo dacolega; é o ritual de se lavar antes do amor e de se deixar lavar pelas mãosdo amante toda noite. É também o corpo branco interdito — e o inter-dito, aqui, é mais o corpo branco em relação ao corpo "amarelo", a raçasuperior branca em relação ao chinês27, do que propriamente a relaçãointergeracional do homem com a criança, do que a prostituição ou o in-teresse pelo dinheiro. Trata-se de um interdito diretamente relacionadoà pele, ao corpo, ao toque, ao contato, pois é isto que ocorre: um corpobranco não poderia ser sequer tocado por uma cor inferior. No primeiroencontro com a jovem, ainda na balsa, o chinês treme, está nervoso, eessa ansiedade se dá não pela menina ou pela investida, mas por sua cor,pela necessidade se superar essa distância imensa que os separa, maioraté que a diferença de idade, maior que o abismo social: "Há essa dife-

26"C’est la séparation d’avec le corps du jeunne homme mort qui m’a rendu à cetteevidence-là, je l’ai sans doute aimée"(1984b, transcrito).

27Duras atribui muita importância às palavras em seus textos, e o "branco", assimcomo "amante", "deserto", "China", é uma dessas palavras que escandem todo o li-vro: "As palavras ’branco’, ’branca’ também, o branco das casas de estação nos cam-pos, o branco dos muros na sombra do rio, das casas dos Brancos, e ainda aquele,reluzente, da pele da criança, da jovem menina branca"(DURAS, 1984a).

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rença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme"(2012,p. 30). Essa é também uma das razões por que "algo além"do que vinhasendo feito nos demais livros só pode ocorrer em O amante: a famílianão poderia lê-lo, era preciso esperar que estivessem todos mortos, so-bretudo a mãe, que, durante toda a vida, nunca soube do contato sexualentre os amantes, para quem esse contato foi sempre piamente negado,para quem a menina garantia que não houve contato entres os sexos,pois ela não poderia suportar "essa desonra", que poderia ser pior atémesmo que a ruína das barragens, pois atingiria seu dom mais precioso:

Aqui [em O amante] é diferente. Era preciso mentir. Meu amanteera chinês. Dizer isso, mesmo em um livro, não seria possível en-quanto minha mãe estivesse viva. Um chinês — amante de sua �lha—, mesmo notavelmente rico, era equivalente a uma degradação tal-vez ainda mais grave que aquela da ruína das barragens, pois ela atingiaaquilo que ela tomava por um dom dos céus, sua raça, no caso, branca(Duras, 1984a)28.

É precisamente no contato, ou no toque, que o corpo aparece tambémsintetizado. É também ele o grande interdito. O corpo da menina, assimcomo o da dama de Vinhlong, a quem ela tanto admira, depreciadosjustamente por terem sido tocados, descreditados por se terem dado aocontato, relegados à infâmia: "ambas votadas ao descrédito pela naturezado corpo que têm, acariciado por amantes, beijado por suas bocas, en-tregues à infâmia de um gozo de morrer"(2012, p. 77, grifo meu). Naescola, as mães estão preocupadas em preservar a honra das �lhas, asoutras meninas recebem ordem de não mais falar com a menina: estácondenada ao isolamento pela transgressão do corpo, mas nem por issose importa. Mais do que a desonra ou a infâmia, é a ideia de um corponunca entregue, nunca dado ao contato e ao prazer, de um corpo vo-tado à solidão que causa horror: no texto "A jibóia"(DURAS, 1987),28"Ici, c’est di�érent. Il fallait mentir. Mon amant était chinois. Le dire, même dans

un livre, ce n’était pas possible du vivant de ma mère. Un chinois — amant de sonenfant — même remarquablement riche, c’était l’équivalent d’une déchéance peut-être encore plus grave que celle de la ruine des barrages parce qu’elle atteignait cequ’elle vivait comme étant un don du ciel, as race, ici, blanche".

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a narradora, que também representa Duras, diante do corpo idoso eainda virgem da uma das supervisoras do pensionato, é tomada de ascoao sentir aquele cheiro que emana da mulher e que ela atribui a essacastidade guardada ao longo das décadas, estragando-se. Diante da ideiade não conseguir casar-se e acabar como aquela mulher, a menina temepor seu corpo e a única ideia que lhe dá alívio é esta: resta ainda o bor-del. É preferível prostituir-se a viver condenada a um corpo proibido.De fato, esse contato da relação sexual é, para a autora, não apenas umarelação com o outro, mas também uma relação consigo mesmo, é ummomento de acesso a uma subjetividade completa, muitas vezes desco-nhecida, e a posse se dá tanto entre um e o outro quanto entre um e simesmo: "Possuímos nosso amante como ele nos possui. Possuímo-nos.O local dessa posse é o local da absoluta subjetividade"(DURAS, 1989,p. 38, grifo meu).Assim, é também essa transgressão do corpo e do tocar que se escrevena obra de Duras. E, então, um primado do toque em relação à visãose coloca, uma importância maior dedicada ao corpo do que ao olhar:"ela não o olha no rosto. Não o olha. Ela o toca. (...) Ele geme, chora.Sente um amor abominável"(2012, p. 35). Essa preferência se coloca emvários momentos. Em O amante da China do Norte, o tocar se apresentacomo uma forma de ver: "A criança não olha para o relógio que estáperto da mão. Nem para o anel. Está maravilhada com a mão. Toca-a’para a ver’"(2015, p. 28), "Ele a olha, com os olhos fechados ainda a olha.Respira seu rosto. Respira a criança, com os olhos fechados respira suarespiração, o ar quente que sai dela"(2012, p. 84). Os olhos fechados dãolugar ao toque, capaz de encontrar não apenas uma pele, mas tambémum cheiro, uma cor, um medo, um crime: "olhos fechados, ela tocavaaquela suavidade, tocava a cor dourada, a voz, o coração que tinha medo,todo o corpo mantido sobre o seu, pronto para o crime da ignorânciadela tornada sua criança"(2015, p. 53). Com esse toque, também todas assensações despertam, fechados os olhos, é toda a dimensão tátil do corpoque se aguça: "na escuridão dos olhos fechados ela encontra o odor daseda, da pele, do chá, do ópio"(2015, p. 153). Após a primeira noite juntos,

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na garçonnière, é justamente da sensação, do contato, mais do que dasimagens, que o chinês diz que a jovem se lembrará futuramente e parasempre, é uma memória do corpo, não da mente, que se evoca, umamemória afetiva, tátil, não intelectual. Ele lhe diz que ela irá lembrar "avida toda dessa tarde, mesmo quando tiver esquecido até seu rosto, seunome"(2012, p. 39). E, de fato, se lembra. A própria autora o con�rmaem A vida material: "Lembro-me da presença das mãos sobre o corpo,do frescor da água das jarras. Que faz calor, um calor inimaginável agoracompletamente. Eu sou aquela que se deixa lavar (...)"(1989, p. 39-40).Na entrevista ao programa Apostrophes, a autora diz que se lembra docorpo do amante mais do que de seu próprio corpo, lembra-se do corpodele mais do que de seu rosto e não deixa de ressaltar o caráter corpóreodessa lembrança, algo de "inesgotável"que permanece dessa relação, umaemoção até "mesmo física, sim, mesmo física"(1984b, transcrito).Essa primazia do tocar no conjunto da obra durassiana, Foucault, emconversa com Helène Cixous, a ressalta, a�rmando que "ela conseguiude�nir uma espécie de plano-sequência bastante surpreendente entreo visível e o tátil"(2009, p. 364); para eles, há na obra de Duras essainterrupção do olhar pelo tocar, o que se dá por uma espécie de cegueira,positiva, de Duras, apontada por Cixous, e é devido a essa cegueira queo tocar pode se impor como imprescindível, pois o toque é a visão docego:

Ela está cega, quase no sentido técnico do termo, quer dizer que otocar se inscreve verdadeiramente em uma espécie de visibilidade pos-sível, ou então suas possibilidades de olhar são o tocar. E um cego,não quero dizer que ele substitua o olhar pelo tocar, ele vê com seutoque, e o que ele toca produz o visível. E eu me pergunto se não éessa profunda cegueira que trabalha no que ela faz (2009, p. 364).

Essa transgressão do corpo e do tocar é também a transgressão da escritasobre a página em branco, do texto fragmentado sobre o texto linear.Nas linhas de O amante, dois rostos opostos se escrevem simultanea-mente. Esse rosto jovem, esse rosto do gozo, que já conhecia o gozoantes mesmo de experimentá-lo. Esse rosto também se escreve a cada

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encontro com o amante, a cada memória desse ano e meio de encon-tros proibidos, mas ele é já a preparação para o rosto futuro, ele, umrosto "visionário, extenuado, esses olhos pisados antes do tempo, antesda experiência" (2012, p. 12). E é também nesses encontros que se dá apassagem de um rosto a outro, desse rosto do gozo que, "aos dezoito jáera tarde demais", para esse rosto devastado futuro; é exatamente apósum dos encontros com o amante que a narradora diz ter percebido essamudança: "Envelheci. Percebo de repente"(2012, p. 42). Ela se olha noespelho e percebe uma mudança, uma mudança irreversível, uma marcapara a eternidade; o homem diz que ela está cansada, mas ela diz quenão, que não se trata disso, que envelheceu, "não compreende o queaconteceu. Compreenderá anos mais tarde: tem já o rosto destruído de

toda a sua vida"(2015, p. 58, grifo meu). Já na balsa atravessando o rio, noprimeiro momento em que os dois se viram, teria estado presente esseinstante de envelhecimento após o prazer, um instante completamentemarcado por seu porvir. Naquele mesmo instante, os dois rostos, o pre-sente e o futuro, o do gozo e o devastado, se encontram, se sobrepõem,se misturam.Então, se é esse rosto destruído o que se excreve, também o texto precisaser assim, como esse rosto. Para Roland Barthes, o "texto tem uma formahumana, é uma �gura, um anagrama do corpo"(2015, p. 24). Mas de quecorpo?: de nosso corpo erótico. Segundo o autor, nós temos muitos cor-pos; temos um corpo anatômico ou �siológico, um corpo cultural; mas"nós temos também um corpo de fruição feito unicamente de relaçõeseróticas"(Idem). Esse corpo opera de forma própria, bem diferente, eé precisamente com ele, não com os outros, que o texto se identi�ca,"ele [o texto] não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem"(Idem).Assim, quando Barthes fala em um "prazer do texto", é a esse corpo queele remete, um corpo que não se reduz às necessidades �siológicas, assimcomo o texto não se reduz a suas relações gramaticais. A "signi�cância",como diria Barthes, que não se confunde com uma simples signi�cação,ou seja, envio imediato e inequívoco a um referente, é "o sentido na me-

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dida que é produzido sensualmente"(Idem, p.72, grifo do autor). Assim,esse caráter sensual, ou erótico, é essencial ao texto.Como anagrama do corpo, e notadamente do corpo erótico, é o livrode Duras. Para um rosto em ruínas, um texto fragmentado; para umrosto de vincos inscritos, um texto dobrado sobre si mesmo. Emborade leitura �uida, a obra de Duras não segue a tradição de uma narrativalinear, obedecendo a regras de temporalidade cronológica e foco narra-tivo constante. No texto, além dos corpos, misturam-se os tempos, otempo passado e o tempo presente, o tempo da vivência e o tempo daescrita, alternam-se lugares, episódios, épocas, entrelaçando-se como pe-quenos fragmentos compondo um mosaico, ainda que o �o condutorpareça ser esses encontros vividos durante um ano e meio no Vietnã,para o qual a narrativa sempre retorna. "Se as sucessivas histórias narra-das por ela não têm centro nem linha, possuem, entretanto, uma origemúnica"(PERRONE-MOISÉS, 2012, p. 106). Alternam-se a menina, a jo-vem e a mulher, alternam-se os dois rostos, mudança que vem marcadana narração também pela alternância entre os pronomes, em que a nar-radora ora diz ’eu’, ora diz ’ela’, assim como o discurso direto entremeiaa narração, sem vir separado na forma do diálogo. O livro não se divideem capítulos, mas em pequenos blocos separados uns dos outros porum espaço em branco, uma linha vazia, como que marcando esses sal-tos que se dão na narrativa: a escrita não poderia deixar de acompanharesses saltos, essas ruínas. Leila Perrone-Moisés a descreve como uma "es-crita da alta modernidade poética, experimental, musical, fragmentária,mais alusiva do que representativa"(p. 104). O texto é um organismohumano, fragmentado, como todo corpo.De fato, Duras a�rma ter tido certa "facilidade"para escrever O amante,escrito ao correr da pena, de forma corrente. A autora explica como oescreveu:

Eu o escrevi medida a medida, tempo a tempo, sem nunca tentar en-contrar uma correspondência mais ou menos profunda entre eles, ostempos. Eu deixei essa correspondência operar independente de mim.Eu a deixei se fazer. A provação de escrever é encontrar a cada dia o

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Escrever e escrever os corpos

livro que se está escrevendo e novamente se conciliar com ele, colocar-se à sua disposição. Conciliar-se com ele, o livro29 (DURAS, 1984a).

E em seguida explica o que quer dizer por "escrita corrente", trata-sedessa passagem de um assunto a outro que se dá de forma �uida, au-tomática, sem que nem mesmo se perceba: "A escrita corrente é isso,aquela que não mostra, que corre sobre a crista das palavras, aquela quenão insiste, que mal tem tempo de existir. Que nunca "corta"o leitor,não toma seu lugar. Sem versão proposta. Sem explicação30"(DURAS,1984a). Tudo gira em torno das palavras, são elas que primeiro se ofere-cem, ou melhor, se impõem, é delas que é preciso se ocupar; só depoisdisso vem a frase, que se amarra às palavras, se acomoda como puderentre elas, ao redor delas. A autora chega a dizer que, nessa escrita cor-rente como a do livro, ela não tem nenhuma preocupação com o estilo:"Digo as coisas como elas chegam para mim, como elas me atacam, sepreferir, como elas me cegam"(DURAS, 1984b, transcrito, grifo meu).O que resulta disso é uma espécie de música, uma composição musical,que é o que ocorre em todo livro que vise a tratar também da própriaescrita: "Não há composição senão musical. Em todos os casos, é esseajustamento ao livro que é de ordem musical. Se não se faz isso, pode-se sempre escrever os outros livros, aqueles cujo objeto não é a escrita.Mas são coisas outras que não livros (...). Mas não é a escrita, a liber-dade31"(DURAS, 1984a). Sobre O amante, esse livro que não poderia

29"Je l’ai écrit mesure par mesure, temps par temps, sans jamais essayer de trouver unecorrespondance plus ou moins profonde entre eux, les temps. J’ai laissé opérer cettecorrespondance à mon insu. Je l’ai laissée se faire. L’épreuve d’écrire, c’est de rejoin-dre chaque jour le livre qui est em train de se faire et de s’accorder une nouvelle foisà lui, de se mettre à as disposition. S’accorder à lui, au livre".

30"L’écriture courante, c’est ça, celle qui ne montre pas, qui court sur la crête des mots,celle qui n’insiste pas, qui a à peine le temps d’exister. Qui jamais ne «coupe» lelecteur, ne prend sa place. Pas de version proposée. Pas d’explication".

31"Il n’y a de composition que musicale. Dans tous les cas, c’est ce rajustement au livrequi est d’ordre musical. Si on ne fait pas cela, on peut toujours faire les autres livres,ceux dont le sujet n’est pas l’écriture. Mais c’est des choses autres que des livres (...).Mais ce n’est pas l’écriture, la liberte".

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deixar de ser musical, a autora con�rma, é um livro sobre o ato de escre-ver (DURAS apud LEBELLEY, p. 273).É esse estilo de escrita de Duras, que caracteriza a obra, que justi�caque a autora tenha detestado a adaptação de O amante feita por Jean-Jacques Annaud para o cinema, o que motivou, de sua parte, a escritade O amante da China do Norte, feito com a intenção de ser um ro-teiro para o cinema e a �m de explicitar como deveria ser feita a históriacaso fosse transformada em �lme. A autora achou o �lme de Annaudmuito linear, muito ilustrativo e muito apegado a certas conformidades(por exemplo, os enormes gastos para �lmar no Vietnã e para arranjarum automóvel original igual ao descrito). No que se refere à "imagemabsoluta", essa que dá vazão ao livro, o �lme também parece desagra-dar. Essa fotogra�a nunca tirada e que só se desenha completamenteao longo de todo o livro, aparece completa no �lme logo de início, oque reduz o processo de escrita da imagem ao longo das páginas à ins-tantaneidade da representação. "Como representar materialmente um’absoluto’? "(2012, p. 110), pergunta Leyla Perrone, traduzindo a pro-blemática da questão. Assim, ao �nal de O amante da China do Norte,Duras propõe uma série de imagens que "poderiam servir à pontuaçãode um �lme tirado deste livro"(2015, p. 165) e ressalta justamente queelas não deveriam servir para "ilustrar"a história: "De forma alguma essasimagens — chamadas de planos de corte — deveriam ’relatar’ a narra-tiva ou prolongá-la ou ilustrá-la. Elas seriam distribuídas no �lme deacordo com o diretor e não decidiriam nada na história. As imagenspropostas poderiam ser retomadas a qualquer momento"(2015, p. 165).Essa cronologia incerta não se restringe ao romance, mas se estende àvida enquanto tal. Nas páginas de O amante, Duras escreve: "A históriada minha vida não existe. Ela não existe. Nunca há um centro. Nemcaminho, nem linha"(2012, p. 10), mas é em uma entrevista que ela adi-ciona a essa ideia algo ainda mais interessante: não apenas a história desua vida não existe, mas a de qualquer uma, de quem quer que seja, oque existe, na verdade, é um romance das vidas:

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Acreditamos que a vida se desenrola como uma estrada entre duasbordas, começo e �m. Como um livro que �zéssemos dela. Que avida seja a cronologia. Isso não é verdade. No momento em que vi-vemos um acontecimento, nós o ignoramos. É pela memória, maistarde, que acreditamos saber o que aconteceu. (...) A história de suavida, da minha vida, elas não existem, ou então trata-se de lexicologia.O romance de minha vida, de nossas vidas, sim, mas não a história.(DURAS, 1984a, p. 12).

"Minha história é pulverizada a cada dia, a cada segundo de cada dia,pelo presente da vida, e não tenho a menor possibilidade de perceber cla-ramente o que assim denominamos: nossa vida"(DURAS, 1989, p.78).Como não podemos nunca perceber claramente isso que é "nossa vida",é só o romance que pode dar conta dela; é ele quem a escreve, ele quedita a vida, e não ela que o dita. O romance é, assim, mais a vida do quea própria vida. Essa cronologia confusa da escrita de O amante, essaausência de linearidade e esse embaralhamento temporal que marcamo livro não são senão o próprio modo de funcionamento da vida. Umacontecimento futuro marca desde sempre o acontecimento passado;o presente, sem o saber, carrega já seu futuro. O rosto do gozo carregao rosto devastado, e vice-versa. Essa mesma ideia, que revela tanto umprocedimento de escrita quanto uma re�exão sobre a vida aparece re-tomada em A vida material, onde a autora a�rma que escrever não écontar histórias, "é o oposto de contar histórias. É contar tudo ao mesmotempo. É contar uma história e a ausência dessa história. É contar umahistória que passa por sua ausência"(1989, p. 28). Isso também explicaa indiscernibilidade entre vida e obra em Marguerite Duras, em queos limites entre �cção e autobiogra�a se turvam e cuja vida é tambémcompletamente tomada pela literatura. O amante "é um livro que estáde tal modo imerso na literatura, que parece sem literatura alguma. Nãoa vemos. Como o sangue no corpo"(DURAS apud LEBELLEY, p. 272).Se o texto, em todas as suas lacunas, seus buracos, seu correr selvagem,é dotado de um erotismo, uma erótica própria à escrita e intimamenteligada a essa dimensão musical — poderíamos pensar em uma eróticamusical da escrita —, o escritor, para Duras, não o é menos: "o corpo

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dos escritores participa de seus escritos. Os escritores provocam sexu-alidade a seu respeito"(1989, p. 69), diz Duras em A vida material, e,em Escrever, associa novamente a escrita ao corpo, ao corpo que nelase excreve, ambos um desconhecido: "A escrita é o desconhecido... é odesconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo"(s/d. p. 47- 48).Que escreveria, Duras soube desde a infância, que escreveria seu corpoe todos os corpos que compõem um corpo. E, de fato, o fez, com delica-deza e destreza. Se "não se pode escrever sem a força do corpo. É precisoser mais forte do que a si mesmo para abordar a escrita"(1994, p. 23), éporque ele, o corpo, esteve o tempo todo presente em sua escrita, assimcomo esta habitou sempre seu corpo, inseparáveis, indissociáveis um dooutro:

"Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encan-tou. Eu o �z. A escrita não me abandonou nunca"(1994, p. 15).

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referênciasADLER, Laure. Marguerite Duras. Paris: Gallimard, 1998.BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.CIXOUS, Hélène; FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras".

In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V. III. Estética: Literatura ePintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitéria, 2009.DURAS, Marguerite. L’inconnue de la rue Catinat - Entretien avecMarguerite Duras. Entrevista concedida a Hervé Le Masson. Le Nouvel

Observateur, n. 1038, set.-out. 1984a.DURAS, Marguerite. Entrevista concedida a Bernard Pivot. ProgramaApostrophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:https://vimeo.com/99919603[https://vimeo.com/99919603]{.underline}.\DURAS, Marguerite. A jibóia. In: Dias inteiros nas árvores. Rio deJaneiro: editora Guanabara, 1987.DURAS, Maguerite. A vida material. Rio de Janeiro: Globo, 1989.DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994.DURAS, Marguerite. O amante. São Paulo: Cosac Naify, 2012.DURAS, Marguerite. O amante da China do Norte. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2015.L’AMANT. Direção de Jean-Jacques Annaud. França, 1992, 110 min.LEBELLEY, Frédérique. Marguerite Duras- uma vida por escrito. SãoPaulo: Editora Página Aberta, 1994.MELLO, Celina Moreira de. O texto de Mrguerite Duras. s/d. Disponí-vel em:https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/1863/2777.NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega, 2000.PERRONE-MOISÉS, Leyla. Posfácio: A imagem absoluta. In: DU-RAS, M. O Amante. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 102-114.

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o amante, demarguerite duras: uma

escrita do trauma?renata estrella

La mer est oubliée du ventL’été 80

J’avais dix-huit ans quand je suis partie pour passer ma philo ici, ladeuxième partie, et faire l’université, et je n’ai plus pensé à l’enfance.Ç’avait été trop douloureux. J’ai complètement occulté. Et je me trim-balais dans la vie en disant : Moi, je n’ai pas de pays natal ; je reconnaisrien ici autour de moi, mais le pays où j’ai vécu, c’est l’horreur. C’étaitle colonialisme et tout ça, hein? (DURAS, 1974, p.136).

Neste trecho retirado das entrevistas feitas por XavièreGauthier, Marguerite Duras menciona uma falta importante em

sua vida: o país natal. Essa ausência, nunca referida nas obras literárias,não impediu Duras de trazer a Indochina, parte do Império ColonialFrancês entre os séculos XIX e XX, em inúmeros trabalhos — romance,teatro, roteiro para cinema —, muitas vezes considerados autobiográ�-cos.

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O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

De fato, em Uma barragem contra o Pacífico32 (1950), em Éden Cinema

(1974) e, ainda, em O amante da China do Norte (1994), tudo parecefazer referência a vida da escritora: a composição familiar, algumas ca-racterísticas da mãe e dos irmãos, a vida nas cidades do Vietnam. Poroutro lado, sobre esta hipótese, nas entrevistas realizadas com a escritora,ora ela a�rma ter sido tudo inventado pela escrita, ora ela con�rma ocaráter autobiográ�co das obras.O que também é o caso de O amante (1984a), que porta algo de umareescrita da Barragem, de Éden Cinema e que, posteriormente, pareceter sido reescrito em O amante da China do Norte. Essas variações sobreo mesmo tema, ou as diferentes formas estéticas em que Duras repre-senta quase a mesma história, é algo intimamente ligado à questão queserá trabalhada neste artigo, que aprofundaremos a partir da leitura deO amante: como narrar, como dar forma àquilo que foi vivido de ma-neira traumática? Indico apenas que a cada reescrita, entre uma obra eoutra, a diferença é grande: a cada forma estética, se reposicionam ospersonagens, o narrador, se rede�nem as soluções e os desenlaces. Nessesentido, ainda que se trate da mesma história, as lembranças parecempedir formas estéticas diferentes dependendo do corte feito pelo mo-mento presente. Em 1950 um romance, a Barragem, em 1977 teatro,Éden Cinema, em 1994 romance e roteiro para cinema, O amante da

China do Norte, e O amante, obra de difícil classi�cação.A história da minha vida não existe, deixe-me contar de novoO amante retrata o período �nal da adolescência, entre os doze e quinzeanos, da criança, a protagonista-narradora. Na obra, �guram tambémlembranças da velhice, uma espécie de futuro da história que será nar-rada, mas passado em relação ao momento em que a escrita se faz. Entrepassado, futuro e presente, destaco quatro fragmentos como �os con-dutores na construção da hipótese de trabalho:

32Algumas traducoes optaram por retirar do titulo do romance o artigo inde�nido,Un barrage contre le Pacifique, como e o caso da editora Arx, 2003. Optamos pormanter de acordo com o original. Livro doravante referido Barragem.

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Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim nosaguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: "Eu a conheço hámuito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vimdizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude,que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, de-vastado". Penso frequentemente nessa imagem que só eu ainda vejo esobre a qual jamais falei a alguém (DURAS, 1984a [2003, p.7]).

Essa passagem abre o livro com uma lembrança, um encontro que aprotagonista teve já em idade avançada. A escrita de O amante começa,então, com essa "imagem"(p.7), uma espécie de folha de rosto. Trata-sede um encontro sobre o qual ela fala pela primeira vez, retirando a ima-gem do silêncio. Em seguida, a narradora sentencia: "aos dezoito anosenvelheci"(DURAS, 1984a [2003, p.7]), um envelhecimento violento,

[...] eu o vi apossar-se dos meus traços um a um, alterar a relaçãoque havia entre eles, aumentando o tamanho dos olhos, fazendo maistriste o olhar, mais de�nida a boca, marcando a testa com rugas pro-fundas. Não tive medo e observei o envelhecimento do meu rostocom o interesse que teria dedicado a uma leitura (DURAS, 1984a[2003, pp.7-8]).

Muito cedo, o rosto da protagonista foi marcado por um envelheci-mento brutal lido nesse momento como escrita, processo diferente deum envelhecimento gradativo que ocorre com o passar do tempo. Pa-rece ter havido algo que obrigou a criança a responder com o corpo.Seguindo a narrativa, a obra se apresenta como uma repetição, "deixe-me contar de novo, tenho quinze anos e meio..."(Duras 1984a [2003,p.8]), indicando o caráter de reiteração dessa escrita:

A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem umcentro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria ha-ver alguém, mas não é verdade, não havia ninguém. A história de umapequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, querodizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte,a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido.Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aquifalo dos períodos escondidos dessa mesma juventude, das coisas que

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aterrei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos(DURAS, 1984a [2003, pp.10-11])33.

Nesse sentido, O amante repete a escrita da história da vida, que nãoexiste, e que marcou o corpo de forma brutal, como se ali pudesse ser lida.O texto vai além, compara a memória que se tenta narrar a uma memóriade guerra, o que alude a uma espécie de testemunho do trauma:

Vejo a guerra com as mesmas cores com que vejo minha infância.Confundo o tempo da guerra com o reinado de meu irmão mais ve-lho. Sem dúvida porque foi durante a guerra que meu irmão maisnovo morreu: como já disse, o coração cedeu, desistiu. (...) Vejo aguerra exatamente como ele era, espalhando-se por toda parte, pene-trando em tudo, roubando, aprisionando, estando em tudo, mistu-rada, confundindo-se com tudo, presente no corpo, no pensamento,na vigília, no sono, o tempo todo, às voltas com a paixão embriagantede ocupar o território adorável do corpo da criança, do corpo do maisfraco, dos povos vencidos, isso porque o mal está lá, às portas, contraa pele (DURAS, 1984a [2003, p.53]).

Este fragmento parece estabelecer uma relação entre O amante e A dor

(1985), obra publicada por Duras quase na mesma época a partir de tex-tos escritos (e posteriormente esquecidos) durante a II Guerra Mundial.Neste período, como é sabido, Robert Antelme, então marido de Duras,foi preso pela Gestapo e deportado, momento em que a escritora supos-tamente escreve A dor, texto que seria guardado e publicado apenas em1985.Retornando ao O amante, a relação feita entre esses dois momentosda vida da escritora enlaçaria também re�exão política às lembrançasda infância. No fragmento acima há ainda um destaque aos irmãos daprotagonista, o mais velho como violento e invasor e a lembrança damorte do mais novo na época da II Guerra, como se eles �gurassem nainfância opressor e oprimido.33Optou-se por colocar em notas de rodapé os trechos da obra citados em que se jul-

gou necessária uma adaptação da tradução utilizada: "Ici je parle des périodes ca-chées de cette même jeunesse, de certains enfouissements que j’aurais opérés sur cer-tains faits, sur certains sentiments, sur certains événements"(DURAS, 1984, p.14).

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Partindo dessas indicações, O amante coloca a questão de se é possível ede como dar forma ao que foi vivido de maneira traumática e, portanto,ocultado, esquecido, aterrado, tornando-se de difícil tradução. Ao con-trário, se alguém se propõe a contar a história da vida, em geral se referea uma história contínua, com começo, meio, �m, operada por um euque se entende estável e permanente. E quando se vive algo que, mesmoligado à experiência, não se pode articular em um relato?

Ha dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso re-torno, estavamos todos, eu creio, tomados por um delirio. Nos que-riamos falar, �nalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparen-cia �sica era su�cientemente eloquente por ela mesma. Mas nos jus-tamente voltavamos, traziamos conosco nossa memoria, nossa expe-riencia totalmente viva e sentiamos um desejo frenetico de a contartal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossi-vel preencher a distancia que descobrimos entre a linguagem de quedispunhamos e essa experiencia que, em sua maior parte, nos ocupava-mos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a naotentar explicar como haviamos chegado la? Nos ainda estavamos la.E, no entanto, era impossivel. Mal comecavamos a contar e sufocava-mos. A nos mesmos, aquilo que tinhamos a dizer comecava entao aparecer inimaginavel. Essa desproporcao entre a experiencia que havi-amos vivido e a narracao que era possivel fazer dela nao fez mais que secon�rmar em seguida. Nos nos defrontavamos, portanto, com umadessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imagi-nacao. Ficou claro entao que seria apenas por meio da escolha, ou seja,ainda pela imaginacao, que poderiamos tentar dizer algo delas (AN-TELME, 1957, p.9).

Essa questão nos leva aos estudos sobre as narrativas que testemunhamcatástrofes históricas, a exemplo da Shoah. No trecho acima, o primeiroparágrafo do prefácio de L’Espèce humaine, Robert Antelme apresentaclaramente a di�culdade inerente a essas narrativas — "impossivel pre-encher a distancia que descobrimos entre a linguagem de que dispunha-mos e essa experiencia que, em sua maior parte, nos ocupavamos aindaem perceber nos nossos corpos-–, além de sua inevitabilidade — "nosqueriamos falar, �nalmente ser ouvidos". Antelme foi levado em junhode 1944, tendo sido encontrado em abril de 1945 em péssimas condições

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de saúde, em um campo de concentração construído próximo a cidadeDachau, na Baviera. L’Espèce humaine é publicado em 1947 e reeditadoem 1957, relatando a experiência de Antelme de sua deportação.Em O amante, como vimos pelos fragmentos acima, esses dois aspectos,a necessidade de narrar — "deixe-me contar de novo...-– e a impossibi-lidade da narrativa — "a história da minha vida não existe-– aparecemde forma marcante em diversos momentos da obra, como se tratasse decontar uma memória aterrada — da qual pouco se sabe, além de suamarca. Tais características, sempre citadas nos testemunhos, como vi-mos em L’Espèce humaine (1957), e pelos estudos críticos sobre o gênero,como por exemplo em Seligmann-Silva (2003) ou em Macedo (2014),parecem indicar que o trauma se trata de uma memória registrada, mar-cada, e no entanto, sem narrativa. Ou, uma narrativa sem testemunha, oque justi�ca a necessidade de contar, o esforço de inserir a vivência trau-mática no mundo. Em outro estudo, Seligmann-Silva (2008) lembra,além da di�culdade e da necessidade da composição do testemunho,que o passado e o presente se misturam, sendo a memória do traumacaracterizada por um "passado que não passa"(p.69). Para o autor, otestemunho é uma forma de memória.Assim, parece haver uma inevitabilidade em transmitir as marcas do quese vivenciou em um encontro com o real, mesmo tratando-se de algoindizível. No trauma, trata-se de um encontro com um impossível dese representar. A hipótese deste artigo, portanto, é que O amante nosensina sobre a experiência do trauma e suas possibilidades narrativas,demonstrando como este reverbera silenciosamente no corpo, sendoapenas o evento traumático passível de apagamento. Nesse sentido, cabeperguntar sobre a composição narrativa de O amante que lança mãode imagens como forma de representação do trauma, aproximando-semais de uma espécie de narração de fotogra�as.Na balsa, olhem para mim

Um estilo "físico", se quisermos. O amante nasceu de uma série de fo-togra�as encontradas por acaso e comecei pensando em deixar o textoem reserva para privilegiar a imagem. Mas a escrita assumiu, foi mais

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rápida do que eu e foi apenas quando o li novamente que notei comoera construído por metonímias. Há palavras, como deserto, branco,prazer, que se destacam e conotam toda a história34.

Neste fragmento das entrevistas feitas por Leopoldina Pallotta dellaTorre, Duras faz indicação importante sobre O amante, pensado paraser um texto que privilegiasse a imagem, mas tomado pelas palavrasao longo do processo de escrita. Por outro lado, não se trata de umanarrativa que analisa e descreve em detalhe as ações dos personagens,aproximando-se da rememoração, como se montasse, entre imagens ecortes, um álbum de fotogra�as. Não à toa, o livro é dedicado à BrunoNuytten, diretor de fotogra�a que trabalhou muitos anos com a escri-tora na produção de �lmes, como La femme du Gange, India Song, Le

camion, entre outros. Assim, em O amante, Duras dá grande importân-cia à dimensão visual, tendo pensado como primeiro nome para o livro,A fotogra�a absoluta (DURAS, 1984b)."Uma balsa cruza o Mekong. A imagem permanece durante toda a tra-vessia do rio"(Duras 1984a [2003, p.8]). É a imagem dessa travessia quea narrativa de O amante se esforça em formar. Trata-se de (re)comporuma imagem que não existiu, que não se destacou, uma fotogra�a quenão foi tirada, que foi omitida.

É ao curso dessa viagem que a imagem seria destacada, que ela teriase separado do conjunto. Ela teria podido existir, uma fotogra�a teriapodido ser tirada, como outra, em outro lugar, em outras circunstân-cias. Mas ela não o foi. O objeto era muito �no, insigni�cante, paraprovocá-la. Quem teria podido pensar nisso? Ela não teria podido sertirada, ao menos que pudéssemos prever a importância desse aconte-cimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, no momentoem que isso se operou, ignorávamos ainda até mesmo a sua existên-cia. Só Deus a conhecia. Por isso essa imagem, e nem poderia ser de

34Tradução nossa: Un style « physique », si on y tient. L’Amant est né d’une série dephotographies retrouvées par hasard, et je l’ai commencé en pensant mettre le texteen retrait pour privilégier l’image. Mais l’écriture a pris le dessus, elle allait plus viteque moi, et ce n’est qu’en le relisant que je me suis aperçue de la façon dont il étaitconstruit sur des métonymies. Il y a des mots, comme désert, blanc, jouissance, quise détachent et connotent le récit tout entier (DURAS, 1989 [2013, pp.57-58]).

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outro modo, ela não existe. Ela foi omitida. Ela foi esquecida. Ela nãofoi destacada, separada do conjunto. A essa falta de ter sido feita, eladeve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamenteseu próprio autor (DURAS, 1984a [2003, p.12])35.

Em entrevista a Bernard Pivot (DURAS, 1984b), Duras considera quea fotogra�a absoluta é esse instante da balsa: "eu fui embarcada com elena história de todo mundo"; "ele eclipsou os outros amores da minhavida". Ele, o amante chinês. É nesse instante que a protagonista se vêolhada pela primeira vez por ele. Como a história da vida, a fotogra�aabsoluta também não existe, mas eclipsa, deixa marcas.

Na balsa, olhem para mim, tenho ainda os cabelos compridos. Quinzeanos e meio. Já uso maquilagem. Passo creme Tokalon no rosto, tentoesconder as sardas na parte superior das maçãs do rosto, sob os olhos.Sobre o creme Tokalon passo pó natural, da marca Houbigan. É opó que minha mãe usa quando vai às reuniões da Administração Ge-ral. Naquele dia, também estou de batom, escuro, cor de cereja. Nãosei como o consegui, talvez Hélène Lagonelle o tenha roubado da mãepara mim, não sei. (...) Na balsa, ao lado do ônibus, está uma grande li-musine preta, o motorista de libré de algodão branco. Sim, é o grandecarro fúnebre dos meus livros. É o Morris Léon-Bollée. (...) Na limu-sine está um homem muito elegante que me observa. Não é branco.Usa roupa européia, o terno de tussor claro dos banqueiros de Saigon.Olha para mim. Já estou habituada com isso. Todos olham os brancosdas colônias e também as meninas brancas de doze anos (DURAS,1984a [2003, pp.17-18]).

35"C’est au cours de ce voyage que l’image se serait détachée, qu’elle aurait été enlevéeà la somme. Elle aurait pu exister, une photographie aurait pu être prise, commeune autre, ailleurs, dans d’autres circonstances. Mais elle ne l’a pas été. L’objet étaittrop mince pour la provoquer. Qui aurait pu penser à ça ? Elle n’aurait pu être priseque si on avait pu préjuger de l’importance de cet événement dans ma vie, cettetraversée du �euve. Or, tandis que celle-ci s’opérait, on ignorait encore jusqu’à sonexistence. Dieu seul la connaissait. C’est pourquoi, cette image, et il ne pouvait pasen être autrement, elle n’existe pas. Elle a été omise. Elle a été oubliée. Elle n’a pasété détachée, enlevée à la somme. C’est à ce manque d’avoir été faite qu’elle doit savertu, celle de représenter un absolu, d’en être justement l’auteur"(DURAS, 1984,pp.16-17).

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Renata Estrella

Se olhamos, o que vemos é a montagem do que reveste o corpo da pro-tagonista, o creme, o pó da mãe, o batom roubado pela amiga Hélène.Ela, habituada com os olhares do mundo, se deixa olhar pelo chinês e,sob esse olhar, aparece a composição do corpo da menina, ela se veste.

Estou com um vestido de seda natural, bastante surrado, quase trans-parente. Foi de minha mãe, certo dia ela achou que era claro demaise me deu. É um vestido sem mangas, muito decotado. Tem a cor ar-roxeada da seda natural muito usada. Um vestido do qual me lembro.(...) Naquele dia devia estar com aquele famoso par de saltos altos delamé dourado. Não me lembro de nenhum outro que pudesse estarusando naquele dia, portanto, é com eles que estou calçada. Saldosde liquidação comprados por minha mãe. (...) Não posso conceber-me sem aquele par de sapatos e ainda agora me quero com eles, ossaltos altos, os primeiros da minha vida, são lindos, eclipsaram todosos sapatos que tive antes, sapatos para correr e brincar, baixos, de lonabranca. Não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha, à figura

da menina naquele dia. O que há de inusitado naquele dia é o chapéude homem em sua cabeça, com abas caídas, de feltro cor-de-rosa comuma larga �ta preta. A ambiguidade determinante da imagem está nochapéu. Como chegou às minhas mãos, não me lembro. (...) Eis o quedeve ter acontecido: experimentei o chapéu de feltro, por brincadeiraapenas, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu de homem, amagreza ingrata da forma, aquele defeito da infância, tornou-se ou-tra coisa. Ela deixou de ser um elemento brutal, fatal, da natureza.Ela se transformou, em oposição, uma escolha que contrariava a outra,uma escolha intencional. Subitamente e desejada. Subitamente vejo-me como outra, como outra será vista, lá fora, lançada a disposiçãode todos, lançada a disposição de todos os olhares, lançada na circula-ção das cidades, das estradas, do desejo (DURAS, 1984a [2003, grifosnosso, pp. 13-14])36.

36"Voilà, ce qui a dû arriver, c’est que j’ai essayé ce feutre, pour rire, comme ça, queje me suis regardée dans le miroir du marchand et que j’ai vu : sous le chapeaud’homme, la minceur ingrate de la forme, ce défaut de l’enfance, est devenu autrechose. Elle a cessé d’être une donnée brutale, fatale, de la nature. Elle est devenue,tout à l’opposé, un choix contrariant de celle-ci, un choix de l’esprit. Soudain, voilàqu’on l’a voulue. Soudain je me vois comme une autre, comme une autre serait vue,au-dehors, mise à la disposition de tous, mise à la disposition de tous les regards,mise dans la circulation des villes, des routes, du désir"(DURAS, 1984, pp.19-20).

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Além disso, como explicita a passagem acima, é nesse arranjo que elase vê, "subitamente vejo-me como outra"(Duras, 1984a [2003, p.14), ea forma do corpo deixa de ser ingrata, algo da natureza, e se torna umaescolha que a lança no mundo, no desejo. A narrativa passa, então, a al-ternar a primeira pessoa com momentos em que a protagonista é olhadana cena, "não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha, a figura

da menina naquele dia" (Duras, 1984a [2003, p.13), fazendo uma torçãoque equivale e separa narradora e personagem, objeto da narrativa. O

ela, olhado, é narrado pelo eu, o sujeito da escrita, e se ver, se fazer servista, corpori�ca, dá existência à história e à obra em imagens. É comose, para sustentar a narrativa de um trauma, o narrador precisasse seapresentar despossuído de si, indicando que no encontro com o real, oeu se subtrai.Por outro lado, o ela, olhado e narrado pelo eu como um outro, operaum paradoxo que enfatiza a escrita como ato e a transmissão que esseato engendra, para além da história e das signi�cações. Em O amante, acriança e escritora e a obra e sobre o instante do encontro com o chinês,seu primeiro encontro com o sexual.Retomando a passagem que abre a obra — as marcas feitas no corpoainda jovem da protagonista-narradora, tomadas por ela como uma lei-tura anos depois quando escreve O amante —, é possível ver aí umaoutra forma de escrever o que Jacques Lacan trabalhou, especialmenteapós os anos 1970, entendendo a repetição e o sintoma, ambos do campoda memória, ligados à �xações de gozo no corpo. Nesse sentido, o serse sustenta menos nos significantes que se proliferam em narrativas e

mais no que Lacan (1971) chama de letra, aquilo que resta do choque dalinguagem sobre o corpo e que não deixa de ser traumatizante. Trata-se,então, em O amante, de metamorfosear em obra uma memória de gozoinscrita no corpo, dando lugar ao que é sem sentido dessa operação.Desta forma, O amante coloca em ênfase a escrita do real pouco vestidodo registro simbólico, uma escrita que lida com o traço — as repetiçõesde palavras, os cortes, a oralidade, as mudanças na voz narrativa, os dife-rentes planos temporais —, fazendo um trabalho com o imaginário de

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maneira a torná-lo opaco. É, então, o que interrompe, fragmenta, silen-cia e interpela a história da vida que testemunha mais que uma descriçãodos acontecimentos vividos. Como se Duras sustentasse na narrativa deO amante algo intraduzível. Nesse percurso, são construídas imagens,fotogra�as, suportes topológicos que enlaçam algo extremamente sin-gular, a história da vida, e, ao mesmo tempo, algo radicalmente estranho,que não existe. A história da vida é, assim, a história de como uma ima-gem, uma palavra, uma letra, se torna espaço de escrita para, então, setornar uma obra.

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referênciasANTELME, R. L’espece humaine. Paris: Gallimard, 1957.DURAS, M. L’Amant. Paris: Les éditions de minuit, 1984.___. Les Parleuses. Paris: Les éditions de minuit, 1974.___. La passion suspendue. Entretiens avec Leopoldina Pallotta delaTorre. Paris: Éditions du Seuil, 2013.___. Entrevista concedida a Bernard Pivot. Programa Apos-

trophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:https://vimeo.com/99919603[https://vimeo.com/99919603]{.underline}.___. O Amante. Traducao de Aulyde Soares Rodrigues. Sao Paulo: Fo-lha de Sao Paulo, 2003 [1984a].LACAN, J. Lituraterra. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 2003 [1971].MACEDO, L.F. Primo Levi: a escrita do trauma. Rio de Janeiro: Sub-versos, 2014.SELIGMANN-SILVA (org.). Historia, Memoria, Literatura. O teste-

munho na era das catastrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.___. Narrar o trauma — A questão dos testemunhos de catástrofeshistóricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, Vol.20, n.1, pp.65-82, 2008.

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Talvez o que eu quisesse dizer, é que uma vez, nos con�ns desuas relações, certa noite, o amor se �zera ver como um �letede luz na obscuridade.(Marguerite Duras)De facto, já é noite. Todas as palavras acenderam os seusarchotes.(Maria Gabriela Llansol)Um livroUm �lme.A noite.(Duras, 1991, p. 13)

Assim, sobrepostas, aparecem, do começo de O

amante da China do Norte, essas três dimensões da escritadurassiana. "Um livro aberto é também a noite", a�rma a narradoraem Escrever (1993). Essas dimensões, que parecem sustentar toda aobra, formam uma amarração particular entre si. Proponho pensarsua importância e como se articulam na operação de escrita de Duras— tomando essa expressão, "operação de escrita", como uma posiçãoespecí�ca de leitura para trabalhar entre psicanálise e literatura. Essaposição implica, primeiro, assumir a radical disjunção entre os dois

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campos para, então, mapear sua fronteira. Partimos da hipótese deque é possível falar em uma teoria da escrita e uma teoria da leitura napsicanálise lacaniana37. Falar em teoria implica uma complexidade quetorna essas noções — escrita e leitura — difíceis de serem apreendidas,já que elas atravessam todo o ensino de Lacan e - como é própriodesse ensino - são afetadas por cada conceito, levadas ao seu limite edeslocadas.É comum, dadas as di�culdades, encontrarmos o método de distinguira "escrita literária", a "escrita da clínica", a "escrita da ciência"; um es-forço de localizar o leitor do lado do analista, ou do analisante, e assimdar a situação como resolvida. Apostarei que essas especi�cações nãoresolvem o problema; a direção, aqui, é pensar a escrita e a leitura comooperações — o norte, portanto, dessa pesquisa, é a pergunta: o que épreciso acontecer para que possamos a�rmar que algo se trata de umaoperação de escrita/leitura, nesse campo em que se articulam psicanálisee teoria literária? Qual seria a fórmula dessa operação? Há um pontoem comum, um acordo sobre isso? É possível falar de uma operação emcomum entre campos diferentes?Impotência — impossível — irredutívelNos três livros de Duras que contam o encontro com um amantechinês, vemos um mesmo conteúdo ser narrado de modo que suaforma se refaça: as �guras se deslocam na narrativa, se esvaziam, cor-tando e esvaziando a própria narrativa, transformando-a, por �m, numaforma que se aproximará talvez mais de um roteiro cinematográ�co: "Acena deslocou-se sozinha. Na realidade, cresceu comigo, jamais me dei-xou."(Duras, 1987, p. 26). O efeito de leitura produzido em Duras é omistério: em que ponto está a mentira? Em que ponto está a verdade?

37Acompanho, aqui, a re�exão de Ricardo Goldenberg em Desler Lacan (2019, p.35):"Se existe algo em que o discurso psicanalítico parece ter mudado tudo o que haviaantes dele, é a noção de leitura. (...) A magnitude desta novidade permanece ofus-cada pela concepção da psicanálise como mais uma teoria da narrativa, que apenasteria reformado a disciplina da crítica, existente desde os antigos gregos. Este é preci-samente o tipo de equívoco que impede reconhecer a sua verdadeira inovação, umavez que �ca reduzida a uma hermenêutica."

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A voz narrativa dos romances se confunde com a voz da autora nos diá-rios e textos em que trata de sua prática de escrita, e torna impossívellocalizar qualquer um de seus livros em um gênero de�nitivo.Da mãe de A barragem contra o pacífico (1950), invasora e oceânica, pas-samos pela mãe em O amante (1984), árida, desértica e terrível, parachegar �nalmente à mãe em O amante da China do Norte (1991), "umamãe sem coragem", que não impede mais nada. Se, num primeiro mo-mento, o trabalho é construir uma barragem que contorne a história damãe e, num segundo, dar corpo ao amante -, no terceiro tempo dessaescrita há um trabalho de mapear, fazer uma forma para o amor, para oinstante de sua chegada, sua entrada em cena. "A cena é extremamentelenta"(Duras, 1991, p. 79):

A dor chega ao corpo da criança. Primeiro é viva. Depois terrível. De-pois contraditória. Como mais nada pode ser. Nada: quando aquelador torna-se realmente insustentável, começa a afastar-se. Muda,torna-se boa para gemer, gritar, toma conta de todo o corpo (...) Osofrimento abandona o corpo magro, abandona a cabeça. O corpocontinua aberto para fora. Foi atravessado, está sangrando, já não so-fre mais. Já não se chama mais dor, chama-se talvez morrer. Então osofrimento deixa o corpo, deixa a cabeça, deixa insensivelmente todaa superfície do corpo e perde-se na felicidade ainda desconhecida deamar sem saber. (Duras, 1991, p.74)

Em Duras, além de uma teoria da escrita, poderíamos propor tambémuma teoria em torno do encontro amoroso. Se, como quis Lacan, o es-crito é feito para não ser lido, parece que, com Duras, é possível levar essafórmula às últimas consequências e apostar que um escrito é feito parase ler outra coisa. Diante do ilegível, colocado em cena pela prática deuma escrita que se faz com o impossível, não recuar, mas produzir umaforma: a possibilidade de criar uma imagem. Uma imagem, portanto,que se afasta da função de representar, para se aproximar de um uso deletra, que pode transmitir aquilo que é irrepresentável. Uma prática daletra, feito "rasura de traço algum que seja anterior", opera, produzindouma imagem de furo - falha sísmica que sustenta uma história. Imagemausente que faz aparecer, que convoca o olhar. Uma aposta de que seria

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possível escrever uma fórmula cifrada para o encontro amoroso. Dar aoimpossível uma forma mínima, irredutível.Se antes, o que estava em cena era "um amor abominável"(Duras, 1984,p. 31), agora, a possibilidade de "amar sem saber"permite localizar comprecisão esse momento em que o amor se funda: "Olham-se. E comaquele olhar, com a reciprocidade muda daquele olhar, o amor até en-tão contido chega até o quarto."(Duras, 1991, p. 78). No terceiro tempodessa escrita, pode ressoar a voz, "aquela, escrita, do livro", "voz cega.Sem rosto.38", que dará à história a dimensão invertida da imagem queela já portava em seu começo, mas que ainda não teria sido subtraída aoconjunto39. Essa inversão se dá por alguns pontos de corte na narrativa,que redistribuem as posições dos personagens na história. A menina -Suzanne em Uma barragem... -, que tem seu nome suprimido em O

amante, aqui é nomeada a criança. Essa nomeação reitera a todo mo-mento, ao longo do livro, as posições dos amantes, e produz, no leitor,um estranho jogo entre reconhecimento e repulsa: acomodação a essapalavra que nomeia a personagem, conforme a história se apresenta;incômodo quanto à prematuridade desse corpo que serve ao amor.

Penetra na noite negra do corpo da criança. Fica ali. (...). Ela torna-se objeto dele, apenas dele, secretamente prostituída. Sem ter maisnome. Entregue como coisa, coisa só para ele, roubada. Só por ele to-mada, utilizada, penetrada. Coisa subitamente desconhecida, uma cri-ança sem outra identidade senão a de pertencer a ele, ser o bem apenasdele, sem nome, fundida a ele, diluída numa generalidade da mesmaforma nascente, a que desde o começo dos tempos foi chamada poruma outra palavra, a da indignidade.

38Duras, 1991, p. 12.39"É no curso dessa viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto.

Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outrolugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. (...) Ela só poderia ter sido tiradase fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquelatravessia do rio. É por isso que essa imagem, e não podia ser de outra forma, nãoexiste. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, subtraída ao conjunto. É a essafalta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, deser justamente a sua autora."(Duras, 1984, p. 32).

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São novamente vistos depois, deitados no chão, no mesmo lugar.Transformados nos amantes do livro. (Duras, 1991, p. 92)

Apesar do efeito de incômodo, podemos pensar na hipótese de que ateoria durassiana do encontro amoroso se estrutura, justamente, nessejogo de prostituição entre os corpos, e que só nesse terceiro tempo oencontro pode, a�nal, ter lugar. É essa operação de escrita que apaga,em Duras, a posição de impotência — a escrita acontece num espaçodestacado dela, logo veremos.Temos uma série de indicações da autora ao longo do texto e em notasde rodapé. São notas comparativas em relação aos dois livros anteriorese indicações quanto à proposta de fazer desse livro um �lme — queaparecem, às vezes, na forma "no caso de um �lme...", e outras vezeslocalizando, na imagem cinematográ�ca, um tempo anterior da matériado livro.

A criança sai da imagem. Ela deixa o campo da câmera e o da festa.

A câmera varre lentamente o que acabamos de ver, depois vira e partena direção que a criança tomou.

A rua volta a �car vazia. O Mekong desapareceu. Está mais claro.

Não há mais nada para ver além do desaparecimento do Mekong, e arua reta e escura.

(...) Nós a perdemos de vista.

Ficamos no pátio vazio. (Duras, 1991, p. 16-17)

Numa dobra do tempo, aquela imagem não registrada, que não tinhaforma alguma, por não ter sido destacada da narrativa, agora ganha con-tornos e um olhar; se oferece à vista. A voz narrativa propõe uma foto-gra�a — e essa forma pode ser incluída como uma das três camadas quedão lugar à história. Essa história, que não existe40, porque se escrevepor cima de si mesma, só pode ser escrita na sobreposição dessas trêscamadas: um livro, um �lme, a noite — é nessa medida que torna-sepossível pensar uma escrita do impossível, uma escrita que desconhece

40"A história da minha vida não existe. Ela não existe. Não há um centro. Nem cami-nho, nem linha. (Duras, p. 12, 1984)

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a impotência e produz a verdade de uma história que não existe, quenão pode ser escrita.Ler — escrever — perderNo espaço literário41 proposto por Duras — nos trabalhos em que dátestemunho do que é uma operação de escrita, e dá a ver a direção deum projeto estético — ler, escrever e perder

42 vêm se articular numanova forma que refaz suas relações e modi�ca cada uma dessas posições.Nesse novo espaço, esses três tempos se atravessam.

O escrito já está ali, na noite. Escrever estaria externo a si43, numa con-

fusão dos tempos: entre escrever e ter escrito, entre ter escrito e ter deescrever mais, entre saber e ignorar o que seja, partir do sentido pleno,ser engolfado e chegar ao não-sentido. (Duras, 1987, p. 27)

Se recorrermos ao vocabulário de �loso�a para pensar a de�nição deimpossível, acreditando que ali se encontra uma de�nição mais precisapara o que se procura, a surpresa se coloca na forma da ironia. Paraimpossível encontramos a de�nição: "ver possível". Lacan, no Seminário11, ao tratar da lógica pulsional, faz a seguinte advertência:

Esta função do impossível não deve ser abordada sem prudência,como toda função que se apresenta em forma negativa. Eu quereriasimplesmente sugerir-lhes que a melhor maneira de abordar essas no-ções não é tomá-las pela negação. Este método nos levaria aqui à ques-tão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente o contráriodo possível — ou bem ainda, porque o contrário do possível é segura-mente o real, seremos levados a de�nir o real como o impossível (La-can, 1964, p. 165)

Neste ponto, então, Lacan enfatiza: "O real se distingue por sua sepa-ração do campo do princípio do prazer, (...), pelo fato de que sua eco-nomia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossí-vel"(idem).

41O espaço literário de Blanchot (1955).

42Me re�ro aqui às três formas de mathesis que Lacan (1967-68) distingue no livro 15de seu Seminário.

43O espaço literário de Blanchot (1955).

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"É dito "logicamente"possível aquilo que não implica contradição."44;"Na linguagem rigorosa da matemática, uma coisa é possível ou nãoé"(Lalande, 1960, p. 795). O impossível lógico tem como estrutura pró-pria a contradição; o passo de Lacan coloca em tensão "o campo da for-malização, que poderíamos dizer lógica e simbólica, contra o campo daética, que escapa à lógica e ao simbólico (lugar da causa)"(Torres, 2012),apontando para o real como direção. Essa leitura provoca a abertura deum novo espaço, que já não responde às coordenadas da possibilidadelógica a que estamos familiarizados, mas comporta o impossível como oque "está ali tão presente que ele jamais é reconhecido como tal", a�rmaLacan (1964, p. 165). A aposta lacaniana na topologia para estruturare transmitir seu ensino dá corpo, justamente, a esse tratamento espe-cí�co do impossível — é com o impossível lógico da matemática queele trabalha, o que faz consistir uma teoria especí�ca sobre o saber e averdade.O saber da análise começa com um "eu perco-– é o que propõe Lacane reitera Badiou. Na conferência Por uma estética da cura analítica,Badiou (2002) explicita a operação de torção que faz na teoria lacani-ana, para propor uma nova teoria do sujeito. Essa teoria, que tem comoobjetivo "produzir um conceito contemporâneo da verdade"(Badiou,1994, p. 18), localiza no acaso — ou no evento, como ele nomeia — umafunção fundamental.

Para que comece o processo de uma verdade, é preciso que algumacoisa aconteça. Pois o que há, a situação do saber tal como é, só nosproporciona a repetição. Para que uma verdade a�rme sua novidade,deve haver um suplemento. Esse suplemento é entregue ao acaso. Eleé imprevisível, incalculável. Ele está além daquilo que é. Eu o chamode um evento.

Uma verdade surge, em sua novidade, porque um suplemento advémao evento e interrompe a repetição.

Exemplos: a aparição, com Ésquilo, da tragédia teatral; o surgimento,com Galileu, da física matemática; um encontro amoroso que trans-

44Tradução minha.

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forma toda uma vida; ou a revolução francesa de 1792. (Badiou, 1994,p. 44)

Uma verdade, portanto, é aquilo que pode a�rmar uma novidade, desar-mar e romper com o funcionamento de uma repetição. Partindo disso,a direção da cura em uma análise, para Badiou, também tem a ver comessa verdade que pode se produzir. Ao propor "uma estética da cura ana-lítica", ele extrai da poética de Mallarmé a noção de transposição, paraidenti�cá-la como formalmente semelhante à operação da cura numaanálise: um movimento em direção ao impossível, partindo da impo-tência. Nos interessa, nessa aproximação, pensar a operação estética quese dá no nível da linguagem.

Lacan de�ne a análise de modo muito preciso: (...) a cura analíticaé a passagem de um estado de impotência a uma experiência do reale, portanto, uma experiência do impossível. (...) Eu gostaria de mos-trar que a transposição poética faz a passagem de uma impotência dalíngua a uma experiência do impossível, na língua. Vocês sabem queLacan diz também que a passagem da impotência ao impossível é umaformalização. (...) a transposição poética é também uma formalização.(Badiou, 2002)

Da formalização dessa passagem podemos precisar a diferença que seescreve. A impotência estrutura-se numa lógica relativa ao poder45, emque se está impedido: não posso, não tenho esse poder. Uma experiênciado impossível admite, justamente, algo de novo que, de acordo comBadiou, distancia-se da redenção, pois trata-se de um "desaparecimentoabsoluto", uma radicalização da perda do objeto, de modo que outralógica se torne possível, para além da perda: "uma operação diferente,que construirá uma vitória sobre a perda, mas não o retorno daquiloque está perdido"(idem).46 Essa vitória sobre a perda, portanto, "exigea criação de uma forma"(idem).45Impotência: falta de poder, força ou meios para realizar algo; impossibilidade. (di-

cionário)46Badiou demonstra que não se trata, nessa passagem, de uma dialética simples da

transformação do desaparecimento em a�rmação. Temos, na verdade, "a passa-gem do desaparecimento à a�rmação, por intermédio de um desaparecimento se-

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Duras também toma como ponto de partida um ponto de perda, emEscrever (1993): "A partir do momento em que se está perdido e não setem mais o que escrever, mais o que perder, é aí que se escreve ". (Du-ras, 1993, p. 21). É nessa radicalidade da perda que é possível a�rmar aextravagância da forma durassiana, seu compromisso com o impossível,que prescinde da impotência. A escrita durassiana se insere numa lógicafora do poder. O escrito toma forma no próprio ponto do impossível,na aposta de fazer imagem com o que não pode ser representado. Quedimensão é essa, a noite, esse espaço onde resta o escrito, antes que elese escreva, mas que só se produz depois — e que se equipara ao livro eao �lme, espaços onde, por excelência, se escreve a obra durassiana?Um livro — um �lme — a noite

A rua de Cholen. Os lampiões se acendem com a luz do crepúsculo.O céu já está azul-noite, pode-se olhá-lo sem queimar os olhos.À beira da terra, o sol está à beira da morte.Ele morre.Na garçonnière.A noite chegou. (Duras, 1994, p. 93)

Muitas vezes, em O amante da China do Norte, e em outros trabalhosde Duras, a noite chega - com frequência, o leitor recebe essa notícia. Ao�m do livro encontramos ainda "exemplos de imagens dos planos ditosde corte", que serviriam, segundo a indicação, "à pontuação de um �lmeretirado deste livro"(Duras, 1994, p. 229). De um livro é possível retirarum �lme, a palavra soa como uma operação de extração, é possível, daescrita, retirar a imagem - o tom da voz narrativa �ca ainda mais emquestão. "Um rio vazio na sua imensidão numa noite indecisa, relativa";"Um dia de outro azul que morre"; "O rio escuro, bem próximo. Suasuperfície. Sua pele. Na nudez de uma noite clara (noite relativa)"; "Achuva que cessa e sai do céu. A transparência que a substitui, pura comoum céu nu"(Duras, 1994, p. 229-230).

gundo"na língua, "para conseguir a vitória sobre uma perda inicial", o que ele iden-ti�ca à posição do analista, "que deve desaparecer onde algo desapareceu". "O resul-tado, contudo, é uma criação a�rmativa"(Badiou, 2002).

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Nesse ponto �nal do livro, depois da história, temos essa lista de imagensestranhas, imagens forjadas no impossível, feitas de uma matéria quenão se representa; como lê-las? Seria uma orientação da autora, Margue-rite Duras? Que orientação é essa, que não se pauta pela descrição mas,ao contrário, faz imagens que portam a própria contradição em seu nú-cleo? Se não forem orientações pessoais, então fazem parte da narrativa?Será um desejo do próprio livro? Que dele se extraia essa forma?A noite: este espaço externo a si, avesso à geometria que conhecemos,em que dentro e fora estão bem delimitados. Este lugar de onde se extraio escrito, num tempo fora da cronologia. É num futuro anterior que aescrita acontece. Ela insiste na a�rmação de que, nesse atravessamento,não se trata de tradução, "da passagem de um para outro estado", masde decifração:

O instinto a que me re�ro seria ler desde antes da escrita47 o que aindaé ilegível para os outros. Posso dizer de outra maneira, posso dizer:seria ler nossa própria escrita, esse primeiro estado de nosso escritoainda indecifrável para os outros. Seria regredir, condescender em di-reção à escrita dos outros para que o livro seja legível por eles. (...)Nessa história, deslocada evidentemente, mas que foi vivida, é difí-cil descobrir a mentira, o lugar onde o livro mente, em que plano, emque advérbio. Pode ser que ele só minta em uma única palavra. Nãoacredito que minta sobre o desejo."(Duras, 1987, p.79)

Um passo anterior, portanto, é o que Duras indica como condição paraque a escrita opere. É este o ponto irredutível da forma que a escritadurassiana produz, e mostra que uma forma para o impossível implica aperda em diversas camadas: da verdade, no nível da origem, uma vez quea palavra já não será capaz de apreendê-la - pode apenas contorná-la, dara ela uma forma de �cção. Depois, a perda de uma posição interpreta-tiva, onde supostamente seria possível dominar o sentido e apreendê-lo.E então, uma perda do tempo cronológico, organizado em princípio,meio e �m, para assumirmos uma outra relação com o tempo, em queo texto não está pronto no momento em que se escreve, mas se escreve47Na edição brasileira de A vida material (19, temos a palavra écriture traduzida para

escritura. Aqui, insisto na tradução direta de escrita.

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no momento em que se lê (para então se apagar). No ponto dessa dobratemporal, as próprias posições de escritor e leitor colapsam e se tocamali onde pareceria que um escrito estaria pronto para ser lido. Não pa-rece se tratar, no caso da criação dessa forma, de limitação; mas de forjaralgo inteiramente novo, de inventar o desenho de um contorno para oque não tem forma. A forma em Duras, portanto, não será feita com oque foi perdido (e que não será resgatado de forma alguma), mas coma própria matéria de que é feita a perda - a mesma matéria da noite.

A noite chegou ao navio. Tudo está iluminado, o convés, os salões, oscorredores. Mas não o mar, o mar está mergulhado na noite. O céuestá azul na noite escura, mas o azul do céu não se re�ete no mar pormais calmo que esteja, e tão escuro."(Duras, 1991, p. 219)

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à noite, um filete de luz

referências

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discursos. Revista da Escola Letra Freudiana, n. 34, 2002._________. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.BLANCHOT, M. O espaço literário. São Paulo: Ed. Martins Fontes,(1955) 2011.DURAS, M. Uma barragem contra o Pacífico. São Paulo: ARX, (1950)2003._________. O amante. São Paulo: Cosac Naify, (1984) 2007._________. O amante da China do Norte. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, (1991) 2010._________. Escrever. São Paulo: Rocco, (1993) 1994._________. A vida material. São Paulo: Editora Globo, (1987) 1989.LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. São Paulo: Editora Zahar, (1964) 2008._________. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento deLol V. Stein. In: Outros Escritos. São Paulo: Editora Zahar, (1965) 2001._________. Lituraterra. In: Outros escritos. São Paulo: Editora Zahar,(1971) 2001._________. O seminário, livro XV : O ato psicanalítico. Notas de curso— Biblioteca do Corte Freudiano (1967-68)._________. O seminário, livro 20: mais, ainda. São Paulo: EditoraZahar, (1975) 1985.LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Pres-ses Universitaires de France, 1960.LLANSOL, M. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2011._________. Inquérito às quatro confidências, Diário III. Belo Hori-zonte: Autêntica, 2011.TORRES, R. O que pode ser uma lógica do real?. Stylus (Rio J.)[online]. 2012, n.24 [citado 2019-11-20], pp. 85-92 . Disponível em:

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<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2012000100009&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1676-157X.

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a repetição noarrebatamento

daniele fernanda eckstein

Em 6 de maio de 1964, logo após a publicação da obra queinaugura o ciclo de Lol V. Stein - Le Ravissement de Lol V. Stein

(1964) - Marguerite Duras comenta a escolha do título: "Este livro deve-ria se chamar ’Rapto’. Eu quis, com arrebatamento, conservar o equí-voco.48. Ao preferir ravissement, a enlèvement —, Marguerite Durasopta por deixar o texto implícito e recobrir uma possível evidência nodestino de Lol, colocando o leitor no centro, como peça fundamentalpara elucidar o enigma do texto.A ambiguidade que o título apresenta se veri�ca na etimologia do subs-tantivo ravissement que, segundo o Centro Nacional de Recursos tex-

tuais e lexicais49

, apresenta dois sentidos diferentes, um que carrega ocampo semântico �gurativo do êxtase, do pleno de contentamento, um"estado da alma em êxtase", e outro como sendo o ato concreto de tiraralgo à força, roubar. Ao passo que enlèvement representaria a remoção,o rapto, sem incitar um enigma. Tem-se, assim, já no título, uma aber-tura de interpretação da obra que é provocada por essa divergência desentido que trafega entre o êxtase e o roubo, o excesso e a perda.

48 Ce livre devait s’appeler ’Enlèvement’. J’ai voulu, dans ravissement, conserverl’équivoque."In Lettres françaises, 3 avril - 6 mai 1964, apud Ton-That, Thanh-Vân.Marguerite Duras, 2005, p. 7.

49https://www.cnrtl.fr/[https://www.cnrtl.fr/]{.underline}

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No entanto, essa potencialidade do texto não se veri�ca na traduçãoda obra Ravissement para o português do Brasil, de Ana Maria Falcão,pela editora Nova Fronteira, que tem como título O Deslumbramento

(1986), omitindo por completo o nome da personagem não fosse a men-ção do título original logo abaixo50. O termo deslumbramento evocaa fascinação, e toca no quase impossível do ver, na produção de ver-tigens no ser. Essa escolha de tradução se aproxima da proposta queMarguerite Duras teria excluído para tentar "manter o equívoco"queravissement comporta. O mesmo poderíamos apontar para a traduçãoem português de Portugal que tem o título Ausência de Lol V. Stein,traduzido por José Vieira de Lima, editado pela Difel em 1989.Não se trata aqui de julgar qual seria a palavra mais "justa", mas ape-nas atentar para a pluralidade signi�cante que o texto de Duras produz,e também, indagar sobre o valor de uma retradução que atualizaria acomplexidade semântica do texto durassiano. Ademais, se o valor dotexto estaria na capacidade que este tem de produzir sentido, a ambigui-dade que o termo ravisssement suporta, serve justamente para mantera indecisão, para multiplicar as opções. Teria sido Lol arrebatada oudeslumbrada ou ainda, seria ela arrebatadora ou deslumbradora?É com esta perspectiva, de um texto que não nos deixa possuí-lo nunca,que queremos pensar a repetição, uma vez que esta também atua nesteespaço duplo, de turvação que desassossega por confundir e desordenar.A repetição é um termo que deve ser lido como uma categoria hipero-nímia, uma vez que engloba diversos fenômenos como a reinteracão,a reduplicão, a reformulação, entre outros. Estes fenômenos expoem,cada um, uma faceta da repetição, de modo que a própria de�niçãode repetição resiste a uma sistematização e atua de forma a chacoalhartodo o sistema de representação, movendo-se por condensação e deslo-camento. Assim, no Ravissement podemos identi�car diferentes níveis

50O mesmo poderíamos pensar sobre a tradução do "là"que está associado ao lugarde Lol, para "presente", gerando um certo desequilíbrio no que vai representar esteadvérbio ao longo do texto.

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de atuação da repetição, que, para �ns de análise, dividimos em: uma aser pensada no plano diegético e outra no plano da estrutura narrativa.Somado a estes dois planos do repetir, o texto também é recheado deuma prática de repetição literal que provoca o leitor e o incita a ler otexto de uma outra forma, posto que ao longo da história, o leitor seconfronta com o estranhamento de uma linguagem que é perturbadoraporque, ao retornar e repetir, se contradiz. É neste sentido que o �lósofofrancês Gilles Deleuze escreve em 1968 : "a arte do romance contempo-râneo, [que] gira em torno da diferença e da repetição não só na suamais abstrata re�exão como também nas suas técnicas efetivas"51.Posto isso, é a partir da polissemia presente no título, que a cena dobaile, que é retomada ao logo do texto, se desdobra em dois tempos: odo roubo e o do êxtase. A preparação para a chegada destes dois temposevidencia-se logo no início, na descrição da cena do baile que aconteceno espaço do salão de dança, local que se caracteriza por estar cheio,por vezes, abarrotado de dançarinos, bem como por estar preenchidode música e de alegria. No entanto, o salão se esvazia no momento daentrada de uma mulher e é neste espaço vazio que se dá o início doravissement.Lol e Michael Richardson a veem entrar no salão do baile, uma mulherbela e charmosa de vestido preto, chamada Anne-Marie Stretter:

Il s’était arrêté, il avait regardé les nouvelles venues, puis il avait en-traîné Lol vers le bar et les plantes vertes du fond de la salle. Elles avai-ent traversé la piste et s’étaient dirigées dans cette même direction. Lol,frappée d’immobilité, avait regardé s’avancer, comme lui, cette grâceabandonnée, ployante, d’oiseau mort. (14)52.

O casal parece fascinado pela presença da mulher que se expõe como umquadro pronto para ser olhado. Esta semelhança na reação de fascínio51Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. Traduzido por Luiz Orlandi e Roberto Ma-

chado. Relógio d’água, 2000, p. 36.52"Ele tinha parado, olhado as recém-chegadas, depois conduzido Lol em direção ao

bar e às plantas verdes do fundo do salão. Elas tinham atravessado a pista e cami-nhado nesse mesmo sentido. Lol, momentaneamente imobilizada, tinha visto avan-çar, como ele, aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto."(10)

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de Lol e de Michael Richardson se expressa no texto pela aproximaçãosemântica das palavras "arrêté"/ "parado", direcionada a ele, e "immobi-lité"/ "imobilizada"referente à reação de Lol. Ao que se segue a expressão"comme lui"/ "como ele"que reforça a posição de Michael Richardsonjá descrita, e sublinha, pela conjunção de comparação "como", a posiçãode espelhamento de Lol e Michael Richardson, ela está como ele: osdois paralisados de fascinação.Esta composição cênica de paralisia se ampli�ca através da mudançade posicionamento de Anne-Marie Stretter que se desloca na mesmadireção que Lol e Michael Richardson. Anne-Marie Stretter domina omovimento da cena, enquanto Michael Richardson e Lol estão inertes.No entanto, esta beleza movente, comovente, atinge, na sequência dotexto, a imobilidade que caracterizava a reação do casal, uma vez quea leveza da mulher, que anda quase como se dançasse, se desfaz com aimagem de suspensão presente na metáfora do pássaro morto que nãose move mais.O que vemos aqui é uma cena claramente visual que se constrói pelojogo de oposições e olhares que se cruzam tendo como eixo de rotaçãoa imobilidade, que se centrará na personagem de Lol. A cena provoca,assim, uma mudança súbita e intensa no comportamento dos persona-gens que se revelam em estado de transe. No entanto, apesar da seme-lhança nas posições de Lol e Michael Richardson em relação à presençade Anne-Marie Stretter, o deslocamento de Lol para o canto do salãocria um distanciamento que a separa não só de Michael Richardson,mas do casal, Michael Richardson e Anne-Marie Stretter, que agoradança. Esta distância física marca a posição de exclusão de Lol, e ins-taura a perda como uma signi�cação do baile.No entanto esta exclusão, marcada pela distância física, é sustentadapelo olhar, um campo de ação que produz contato. É verdade que o atode olhar se dá por uma distância que separa o sujeito do objeto olhado.No entanto, esta distância, que elucida o afastamento do outro, se en-curta, posto que aquilo que se dá a ver — o casal dançando, toca aqueleque olha, deslumbra-o, a ponto de não conseguir não olhar, resultando

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num "um contato à distância"53, embora este contato só exista na per-cepção de Lol, inscrito, portanto, como um contato vazio.Diante disto, pode-se dizer que a exclusão de Lol, que instaura uma au-sência, também a leva a uma experiência de êxtase, de deslumbramento,uma vez que apesar de estar excluída do desejo que sustenta o casal, Lolcontinua lá. Ela perdeu o noivo, roubaram-no, mas Lol continua a olharaquilo que não a olha. É neste jogo de ausência e deslumbramento quese estrutura o ravissement. Um sistema que exclui e inclui ao mesmotempo, e é esta estrutura que vai se repetir na narrativa, uma repetiçãoque não será a reinscrição da cena primária, a nível diegético, mas quese inscreve na estrutura textual.Lol Stein se situa justamente neste "entre"que a palavra ravissement

deixa entrever. Ainda no incipit vê-se o espaço aquoso por onde a perso-nagem transita, posto que a história de Lol Valérie Stein é apresentadaa partir da sua juventude, antes do acontecimento do baile. Este "an-tes"ganha destaque ao lermos: "Tatiana Karl, elle, fait remonter plusavant, plus avant même que leur amitié, les origines de cette maladie.Elles étaient là, en Lol V. Stein, couvées [...]"(12)54. Uma reduplicaçãode "plus avant"/ "muito antes"que reforça a intenção de colocar a do-ença de Lol num tempo precedente, tempo que nem será explorado noromance, mas que, no entanto, estará sempre presente.Logo em seguida, lemos a frase: "[...] Elas estavam lá, em Lol V. Stein[...]". A vírgula, separando a origem da doença do nome da personagem,provoca uma pausa importante, cujo efeito não seria o mesmo sem ela,pois enfatiza e coloca em causa o lugar da doença e de Lol. Emboravinculado ao personagem, o advérbio de lugar "lá", que em francês refere-se ao lugar onde estamos, mas também ao lugar onde não estamos, emoposição a "ici"/"aqui", insinua uma falta de precisão, um duplo lugar,53Blanchot, Maurice, 1988, p. 28.54"Segundo Tatiana Karl, as origens dessa doença vêm de longe, de antes mesmo da

amizade das duas. Já existiam em Lol V. Stein, incubadas, mas a grande afeição quesempre a tinha cercado, em sua família e depois no colégio, tinha impedido quea�orassem. No colégio, diz ela, e não era a única a pensar dessa maneira, já faltavaalgo a Lol para estar — ela diz: presente."(8)

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posto que não se pode dizer onde este "lá"se situa no ser de Lol. Umaimprecisão que a história se encarregará de manter.A forma como o advérbio de lugar "lá"retorna ao longo do texto produzuma repetição por deslocamento de sentido, já que o advérbio com-porta, pelo menos, duas signi�cações diferentes: uma associada à do-ença que já se havia manifestado em Lol e outra à expressão de um temaretomado ao longo do enredo, que exprime a impossibilidade de Lolestar "aqui", no presente. O "estar lá"funda uma falha na nomeação dolugar ocupado por Lol.Ao longo do romance a repetição do advérbio "lá"convida o leitor aescutar a história. O "lá"vai designar por vezes o tempo, por vezes o es-paço e por outras o artigo feminino. Sentidos diferentes vão produziro mesmo efeito sonoro: "Je vais donc la chercher, je la prends, là oùje crois devoir le faire"(14); "jusque-là: la ponctualité"(36) ; "cet été-là"

(46); "çà et là, loin, le nom est là: Tatiana Karl"(58)55, tendo como efeitoa autorreferencialidade do texto, ao mesmo tempo em que produz oavanço do texto por via da sonoridade das palavras ao invés do sentidopropriamente dito. Ao longo da história, o leitor parece escutar o baile.Contudo, ao mesmo tempo que esse "lá", musicado no texto, produz umefeito de continuidade narrativa, ele aponta para um buraco no texto ena história de Lol, que não consegue ocupar um lugar enquanto sujeitodo discurso. É neste sentido que o "lá", enquanto palavra-buraco56, vaitentar ser recoberto por via do narrador que tenta reconstruir a memóriade Lol através de fatos/impressões que conhece e outros que desconhece,mas que lhe são revelados por intermédio de Tatiana Karl e de outrospersonagens em torno de Lol V. Stein.Ao se apoiar em Tatiana, o narrador deixa entender que não está segurosobre o que ela conta, evidenciando no texto a di�culdade de aceder àmemória do evento, veri�cada na dupla designação que o narrador lhe

55"Portanto, vou procurá-la, junto-me a ela onde penso dever fazê-lo"(9); "até então:a pontualidade"(26); "a luz das tardes de verão"(33); "aqui e ali, distante, o nome aíestá: Tatiana Karl"(43).

56Pansiot Preud’homme, Philippe, 2017, p. 170.

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impinge: "[...] Tatiana, elle, [...]", este "elle"reenvia a Tatiana, e marcaa posição na qual o narrador a coloca. Ela partilha com ele o ponto devista da história de Lol, mas este por vezes é rejeitado pelo narrador.A reconstrução da história fragmentada, pois que é feita de muitos pe-daços de lembranças provindas de olhares diferentes sobre o baile, é re-presentada pelo narrador através de expressões como: "Cela aussi:"(12);"Ce que je crois :"(45); "Je ne crois plus à rien de ce que dit Tatiana, jene suis convaincu de rien."(14)57. Estes excertos mostram um narrador àprocura de elementos para preencher o buraco que o evento causou navida de Lol. É assim que os questionamentos constantes do narradorproduzem uma repetição literal que aparece na estrutura textual provo-cando rupturas, dando a impressão de que o narrador anda em círculo.Além do mais, as frases recorrentes, curtas, seguidas constantementepelos dois pontos:"je vois ceci:"(53); "je vois ceci:"(55) ; "j’invente:, je vois:"(56) "j’invente:"(56)58, vão acentuar a impossibilidade de contar umahistória sem inventar.Esta repetição literal que o texto faz ressaltar, seja pelo deslocamentodo advérbio "lá", seja associada a questão do saber, por meio das idas evindas do narrador que hesita, está submetida ao plano diegético. Naverdade, este lugar indeterminado, ou ainda, esta agonia provenientedas incertezas repetidas por Jacques Hold não repousa nele, é própriodo enredo (Lacan, 1975) que está focado na impossibilidade de aceder acena do baile, de rememorá-la.Este trabalho de rememoração de uma vivência que não pode ser con-tada é uma característica das narrativas modernas. Quer seja pela trans-missão de uma memória individual ou coletiva, estas narrativas proble-matizam a impossibilidade de narrar, ou ainda, é apesar desta impos-sibilidade que se narra, numa entrega total ao desconhecido, ao que onarrador ignora saber.59

57"E mais isto:"(7); "Por mim, eis o que acredito:"(33); "Não acredito mais em nada doque diz Tatiana, não estou convencido de nada."(9).

58"Vejo o seguinte"(39); "Vejo o seguinte"(40); "Invento, vejo:"(41); "Invento"(41).59Hamel, Jean-François, 2006.

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No caso de Ravissement, esta impossibilidade de inscrever a cena acon-tece porque quem viveu a cena não a pode lembrar, a história do baileescapa à memória de Lol. Se pensarmos com Freud (1914) que o fato derememorar permite desvendar a causa da repetição, a impossibilidadede Lol de rememorar a cena a impede de inscrevê-la, de elaborá-la, sobre-tudo porque há uma impossibilidade de repetir a cena originária. Assim,a repetição no plano diegético só pode existir por meio de uma trans-ferência, ou seja, a memória desta cena primeira só pode se inscreverenquanto uma memória partilhada por Lol e Hold.Desta forma, o Ravissement seria uma narrativa de memória onde o�o condutor do romance é a lembrança da história, que, longe de serconstruída individualmente, é partilhada: Lol precisa de Hold e Holdprecisa de Tatiana, de Lol.60 Neste sentido, a retomada in�nita da cenado baile não é a representação da cena do baile, visto que a cena não pôdeser representada por Lol. Consequentemente, esta cena que poderíamospensar como primeira não o é, porque não foi inscrita para poder serrepetida, elaborada. Assim, este passado será apenas um falso passado,um passado feito de impressões, aberto a possibilidades, uma invençãodo narrador.Poderíamos pensar que o retorno de Lol ao local do baile seria umatentativa de en�m dominar o acontecimento. No entanto, Lacan (1975)adverte que o retorno a estas cenas que o romance apresenta, mais doque repetir o acontecimento, refaz o nó. Ao ir a T. Beach, Lol não re-torna �sicamente, ela �ca "lá"na estação de trem, retida diante do re�exo,posto que é através dele que ela vê a praia: "je ne voyais pas directementla mer. Je la voyais devant moi dans une glace sur un mur [...] Je ne suispas allée sur la plage. L’image dans la glace était la."(152)61

É pela mediação do espelho que Lol consegue estar presente, ainda que�sicamente ausente. O fato de estar "lá"a coloca em posição de estar sem-

60Tomiche, Anne, 2006.61"Eu não via diretamente o mar. Via-o à minha frente em um vidro numa parede [...]

Tenho a certeza, não fui à praia. A imagem do vidro estava lá."(114)

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pre em outro lugar, distante dos outros, mas su�cientemente próximapara ver através de um re�exo, de uma janela.Se o "lá"signi�ca a ausência de Lol, ele se transforma no lugar onde Lolmora "lá"na sua lembrança. Isto se inscreve, na verdade, na �gura doesquecimento de Lol, é assim que a repetição do advérbio é ressigni�-cada na estrutura textual: "En quelque point qu’elle s’y trouve Lol y estcomme une première fois. De la distance invariable du souvenir elle nedispose plus: elle est là."(p. 43)62

Quando Lol chega ao local do baile, ela está com Jacques Hold, ela pre-cisa dele para retornar: "Sans vous j’ai compris que ça n’en vaudraitpas la peine. Je n’aurais rien reconnu. J’ai pris le premier train qui re-venait."(167)63 Na presença de Hold o traço de memória se esvai e areinscrição acontece pela memória partilhada, que no entanto, já é ou-tra: Elle revoit sa mémoire-ci pour la dernière fois de sa vie, elle l’enterre.Dans l’avenir ce sera cette vision aujourd’hui, de cette compagnie-ci àses côtés qu’elle se souviendra."(175)64

Este apagamento da memória questiona o próprio jogo do retorno tex-tual, como se, mesmo reduplicada, a materialidade do texto se esvaísse.A história de Lol escreve, assim, o desaparecimento de uma lembrançaque sempre só existiu aos pedaços, esburacada. Esta memória ida, par-tida, retoma a posição de imobilidade do personagem, como podemosver ainda no fragmento a seguir: Elle ne se plaint plus. Elle ne bougeplus, se souvient sans doute qu’elle est là avec l’amant de Tatiana Karl.(p. 188)65

Esta imobilidade volta por meio da anáfora que insiste em uma não-ação de Lol : "Elle ne"/ "Ela não". Além do mais, a aplicação da mesma

62"Em qualquer ponto em que se encontre, Lol está como se fosse a primeira vez. Dadistância invariável da lembrança não dispõe mais: está presente."(31)

63"Sem você, compreendi que não valeria a pena. Não teria reconhecido nada. Tomeio primeiro trem que voltava. (126)

64"Ela revê sua memória aqui pela última vez de sua vida. Ela a enterra. No futuro,será desta visão de hoje, desta companhia aqui a seu lado que ela se lembrará. (132)

65"Ela não se queixa mais. Não se mexe mais, lembra-se provavelmente de que estácom o amante de Tatiana Karl."(143)

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estrutura de frase nos permite ver o comportamento recorrente do per-sonagem expresso pela palavra "plus"que está dobrado e acentua a ne-gação, reenviando o leitor para o passado da narrativa. O fato de ter doque lamentar a faz mover-se, no entanto, Lol encontra um lugar queé: estar no lugar do outro. Entretanto, o outro também não se move:Tatiana Karl está na sombra. Assim, Lol está lá com o outro: o casal.É nesta con�guração triangular que a repetição se inscreve na estruturanarrativa, na memória textual, através da própria estrutura do ravis-

sement. O triângulo é representado primeiramente por Lol, MichaelRichardson e Anne-Marie Stretter e substituído por Lol, o narradorJacques Hold e Tatiana, amiga e amante de Hold. Esta recon�guraçãotriangular tem como função a reinscrição da cena, já que a posição queos personagens ocupam é a mesma que a anterior. Não há, assim, ne-nhuma mudança na movimentação ou na atuação dos personagens quetrouxesse um outro posicionamento subjetivo e a repetição aconteceporque a estrutura do ravissement, o seu duplo sentido, se mantém.Somos tentados a pensar que esta estrutura triangular revelaria o "desejomimético", postulado por René Girard em Mensonge Romantique et

vérité romantique (1961), onde a estrutura triangular do desejo funcionaatravés de um mediador que se situa entre o sujeito e o objeto. Nestesentido o interesse de Michael Richardson por Anne-Marie Stretterdespertaria o próprio desejo de Lol, a triangulação é mantida pela rivali-dade entre as duas mulheres que ocupam posições diferentes, visto queAnne-Marie Stretter é aquela que rouba Michael Richardson de Lol —que por sua vez inveja a outra mulher. Anne-Marie Stretter seria, assim,a mediadora do desejo de Lol.Para Girard (1961), a �gura do invejoso, que Lol representaria, está mar-cada por uma propensão irresistível de desejar o que os outros desejam,em outras palavras, uma propensão a imitar os outros. Esse mimetismodo desejo do outro se justi�ca ao lermos no texto que Lol imita: "Lolimitait, mais qui ? les autres, tous les autres, le plus grand nombre pos-

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sible d’autres personnes."(34)66 No entanto, como o avanço da leitura,vê-se que essa imitação dos outros, de qualquer outro, se dá pela perdada identidade. Lol está "lá ", substituindo Tatiana Karl. Este "lá "queretorna para falar de/a Lol não é apenas um lugar, ele se torna o tempopresente. Lol sai do passado quando encarna a outra mulher.A metáfora lacaniana do terceiro67 mostra justamente a impossibilidadede Lol de estar na posição de sujeito, posto que Lol não pode formaruma dupla, um casal, porque para isso, seria preciso estar a três. Este apa-gamento do eu também é analisado por Cixous, que descreve a escritadurassiana como um caminho para o vazio. Cixous diz que os textos deDuras escorrem, que há o que ela chama "efeito Duras", que faz comque o leitor não consiga compreender os seus textos. Este efeito queo texto durassiano produz viria do uso de uma linguagem enigmática,lacônica, que confunde mais do que esclarece porque permanece no ter-reno do entredito e arrebata o leitor. Segundo Cixous, em diálogo comFoucault68, Duras inventou a "arte da pobreza", um estilo que se desfazdas coisas, da linguagem, do personagem. Este encurtamento descrito évisível no romance Ravissement quando o personagem de Lol capturaa lembrança, ela se perde novamente:

Elle reconnaissait S. Thala, la reconnaissait sans cesse et pour l’avoirconnue bien avant, et pour l’avoir connue la veille, mais sans preuvesà l’appui renvoyée par S. Thala, chaque fois, balle dont l’impact eûttoujours été le même, elle seule, elle commença à reconnaître moins,puis di�éremment, elle commença à retourner jour après jour, pas àpas vers son ignorance de S. Thala. Cet endroit du monde où on croitqu’elle a vécu sa douleur passée, cette prétendue douleur s’e�ace peuà peu de sa mémoire dans sa matérialité. (42)69

66"Lol imitava, mas quem? Aos outros, todos os outros, o maior número possível deoutras pessoas."(24)

67Jacques Lacan, 2001.68Foucault, Michel, 1975, p. 1931.69"Reconhecia S. Tahla, reconhecia-a ininterruptamente, por tê-la conhecido bem an-

tes e por tê-la conhecido na véspera, mas sem provas de reconhecimento devolvidaspor S. Tahla, cada vez, bola cujo impacto sempre teria sido o mesmo: quanto a ela,sozinha, começou a reconhecer menos, depois de maneira diferente, começou a vol-

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Este apagamento atinge em cheio o ser de Lol, silenciando-o. O que foiroubado propriamente à Lol foram as palavras, ela chora e grita, masnão é ela que conta a sua história, são os outros que a tentam montar.Esta falta, este buraco, é um atributo da vida do personagem que apa-rece espelhado na estrutura formal. É uma história de palavras roubadase é porque as palavras não estão lá que a repetição tem lugar, no jogogramatical. É somente neste assalto, no sobressalto, que Lol pode exis-tir. Pensar em Lol ocupando a posição de sujeito é pensar que a suaessência está na certeza de ser arrebatada: "O ser de Lol seria o de ser lá,perpetuamente oblíquo70."Através destas repetições presentes no texto, poderíamos ainda pensarque Lol também foi submetida a este estranhamento que a linguagemtextual apresenta, fazendo repetir a cena do baile, a partir do incipit queapresenta a cena de uma outra dança: "Elles dansent toutes les deux, lejeudi, dans le préau vide"(11)71. No entanto, não podemos pensar queo tema da dança das duas jovens seja o motor do desencadeamento dacena do baile, e também não podemos dizer que a origem fantasmáticaesteja lá, pois neste momento não há sinal de horror ou de espanto.A cena de dança no tempo da juventude só é repetição originária porqueaparece textualmente como primeira, e será inclusive retomada na his-tória, numa repetição quase idêntica ao texto que aparece na aberturado romance:"Le jeudi, Tatiana raconte, elles deux refusaient de sortir en rangs, avecle collège, elles dansaient dans le préau vide — on danse, Tatiana ? — unpick-up dans un immeuble voisin, toujours le même, jouait des dansesanciennes — une émission-souvenir qu’elles attendaient [...]."(85)72

tar dia após dia, passo a passo, para sua ignorância de S. Tahla. Este lugar do mundoonde se acredita que viveu sua dor passada, aquela pretensa dor, apaga-se pouco apouco de sua memória em sua materialidade."(31)

70Pansiot Preud’homme, Philippe, op. cit., p. 180.71"Às quintas-feiras, as duas dançavam no pátio vazio."(7)72"As quintas-feiras, Tatiana conta, as duas recusavam-se a sair em �la, com o colégio,

dançavam no pátio vazio — vamos dançar, Tatiana?"(63)

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A repetição no arrebatamento

É neste sentido que a cena do baile já é a repetição da história de umadança73 e o estatuto de cena originária se perde por entre as quintas-feiras em que Lol e Tatiana dançavam.O retorno à cena do baile não possibilita a Lol recompor a sua memória,ela encarna, assim, a experiência de uma dor impossível de apreender,con�gurando, desta forma, o sofrimento de um luto incompleto74. Lolé alguém que vive com a presença de uma ausência, é assim que Durasnos apresenta uma escrita da "memória destruída ", segundo Tomiche75,ou da "memória sem lembrança ", para retomar Foucault76.Em contrapartida, o que singulariza estas poéticas modernas impregna-das de repetição, em que o passado vem inundar a narrativa, é a formacomo a narrativa inverte o trágico da experiência de crise: "As poéticasmodernas da repetição efetuam o equivalente a um trabalho de luto,mas sem limite nem �m, pelo qual a patologia de uma memória amné-sica é revertida em uma memória libertadora."77. Ao deixar em abertopossibilidades do porvir, o passado pode sempre voltar para os seus ho-rizontes.Mais do que a busca pela verdade de Lol, esta proposta de leitura pre-tendeu contar a história de Lol abrindo para a multiplicidade que otexto nos faz enxergar. Se um texto tiver valor de eterno pela sua ca-pacidade de produzir sentidos, a história do texto, da Ausência ou doDeslumbramento, pode reverter as suas possibilidades para inscrever o*Arrebatamento de Lol V. Stein. *

73Tomiche, op.cit., p. 10174Kristeva, Julia, 1989, p. 247.75Tomiche, op.cit., p. 107.76Foucault, Michel, op.cit, p. 1975.77"Les poétiques modernes de la répétition e�ectuent l’équivalent d’un travail de

deuil, mais sans seuil ni terme, par lequel la pathologie d’une mémoire amnésiqueest renversée en une remémoration libératrice."Hamel, (2006, p. 101)

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referências

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et mélancolie. Paris: Gallimard, 1989.LACAN, Jacques. Hommage fait à Marguerite Duras du Ravissementde Lol V. Stein (1965). In Autres écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p.191-197.

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A repetição no arrebatamento

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duras — escrever, umapaixão

marcella moraes

De marguerite duras, a lentidão — la lenteur. A do-çura — la douceur. O silêncio — le silence. O grito — le cri. O

sono — le sommeil. Alguns substantivos insistentes, carregados de certaabstração e que, no entanto, são capazes de compor uma imagem. Ouao menos de evocar certa atmosfera que, para mim, fazia eco de um lugarparticularmente feminino — o da lentidão de uma espera. O da posiçãode objeto, de receptáculo do desejo do outro.O que está para acontecer a essas personagens imóveis? O que dizerdesse apaixonamento pela imobilidade? Por que elas não são capazes deromper com essa lentidão absoluta e — �nalmente — agir?Decidi me deter nessa passividade — conviver com ela. Para isso, elegitrês momentos, na esperança de que algo viesse �nalmente a acontecer.Primeiro, em 1975, India song. Depois, em 1971, L’amour. Por �m, em1964, O deslumbramento. Dessa convivência, alguma coisa me foi sub-traída. Minhas suspeitas não conseguiram nada em que se �xar. O queapresento aqui, portanto, é esta imagem arruinada — na minha tenta-tiva de dobrar o texto de Duras às minhas próprias expectativas, o textoacabou por se virar contra mim. Eu me curvei a ele.Percebi, nesse movimento, outro caminho possível para me aproximarde Duras. O tema do amor.

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Duras — escrever, uma paixão

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India song. A câmera, estática, registra o pôr do sol no horizonte. Nãovemos a mendiga, mas escutamos seu canto. Vinda da Birmânia, elanasceu em Savannakhet. Eles se lembram. A respeito de Anne-MarieStretter, não podem nos dizer muito, mas podem nos contar o que sepassou com a mendiga que canta. Faz dez anos que caminha. Foramdoze crianças mortas. Ela as deixou, em direção a Bengala. Ela �cougrávida aos 17 anos. Sua mãe a expulsou de casa. Agora, ela é estéril. Elouca. Ela canta.Adentramos os muros de India song. Sobre a cômoda empoeirada, to-camos as roupas brilhantes de Anne-Marie Stretter, seus acessórios ele-gantes. Não são os mesmos do baile no qual se encontrou com MichaelRichardson. Lá, ela usava preto. E chegou tarde. Depois, Michael a se-guiu até a Índia. É tudo o que sabemos desta mulher cuja voz ainda nãoescutamos.Um hotel abandonado serve de locação para a �lmagem. Uma embai-xada cujas paredes estão todas cobertas por limo, contaminadas por esteodor de limo. É de ruínas que se trata — uma história fora do tempo,envelhecida antes mesmo que se comece a contar isso que ninguém sabebem — o que acontece dentro desses muros.Há um desarranjo evidente entre o que se mostra na tela e o que senarra pela fala. Mas tampouco se trata propriamente de narração —acompanhamos a história por meio de diálogos entreouvidos, sem saberexatamente de quem são as palavras pelas quais nos guiamos. São criadosque espreitam o salão e comentam as vidas de seus patrões?Lembro, a respeito desses diálogos, uma observação de Maurice Blan-chot. Ele diz, sobre Le square, de Marguerite Duras, o seguinte:

Nos romances, a parte que chamamos de dialogada é a expressão dapreguiça e da rotina: as personagens falam para colocar brancos numapágina, e por imitação da vida, na qual não há narrativa mas con-

versas; é preciso pois, de tempo em** **tempo, dar a palavra às pessoas,nos livros; o contato direto é uma economia e um repouso. (BLAN-CHOT, 2005, p. 223. Grifo nosso.)

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E, no entanto, não é isso o que acontece nesse �lme de Duras. Os diá-logos não nos proporcionam um contato direto, mas nos colocam jus-tamente "diante de um acontecimento inabitual", "raro", como dizBlanchot. Tentamos nos situar nessa diferença entre a cena que a câmeranos mostra e as con�dências trocadas entre �guras que não vemos.Quanto às personagens, o que sabemos sobre elas é sempre muito pouco— recebemos fragmentos de suas vidas, seus olhares vagos, as palavrasque trocam entre si em diálogos abruptos, irregulares. Gravitamos emtorno de Anne-Marie Stretter, sem, no entanto, saber o que se passacom ela. Ela parece vítima de um tipo de sofrimento indolor, comentauma criada. Sua voz sem expressão não nos conta nenhuma história.Como se exprimisse um grito. O único remédio é a imobilidade, ela diz.Ficamos em silêncio com esta bela mulher entediada, que "não conse-gue se adaptar", que dá "a quem deseja", "a quem tem fome". Ela sentecalor. Ela dorme. É monótono. E aqui estão todos os seus homens to-mados por essa monotonia, torpes de calor, protegidos por muros queos cercam do canto de loucura que os espreita.Há, contudo, um grito — um grito de amor. Eles precisam saber quese pode gritar de amor, diz o vice-cônsul apaixonado. Ele gritou portoda a noite. Eles não o impediram. Seu grito não foi sufocado. Mastampouco foi ele capaz de quebrar a lentidão do ritmo de baile quenos embala a todos, junto com os personagens. Amanheceu, entremovimentos muito lentos.

2

L’amour. Esta é a cena inicial: um triângulo móvel se desloca so-bre a praia — um personagem em cada ponta. Um homem de pé sobrea calçada de tábuas, olhos abertos. Uma mulher sentada sobre a areia,olhos fechados. Outro homem caminhando de um lado para o outro,sobre a areia, ritmadamente, sem olhar para nada. É a imagem de umesquema emocional? Trata-se de um con�ito amoroso? Nunca �camos

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a par da intriga — ela apenas se mostra como relance, em uma imagemfurtiva, e nunca sob os modos do melodrama.O romance se desloca sob o olhar do espectador. Por meio de proce-dimentos descritivos, a narrativa se afasta da narração e, portanto, dequalquer matéria narrada — o que temos não é um �o narrativo, masum feixe de luz — le réseau de la lenteur (DURAS, 1971, p. 11), uma rededa lentidão.O enredo se esvai. Não há sequência lógica de fatos, não há trama, nadaefetivamente chega a acontecer — estamos aqui sob outra espécie detemporalidade, que se constrói pela recorrência de alguns elementos,que reaparecem, aludindo a ocorrências anteriores, mas sem propria-mente estabelecer um elo claro com elas.Os personagens tampouco existem como tais. Para começar, eles nãotêm nome — são designados apenas por pronomes de tratamento("ele"e "ela"). Não há um conjunto de características que lhes possamser atribuídas — há apenas a recorrência dessa estratégia gramatical e,no melhor dos casos, epítetos que retomam a cena inicial em que elessão apresentados ("o viajante", "o homem que anda", "a mulher"). Oleitor é lançado a um jogo incerto — esta mulher que aparece agora é amesma cuja trajetória acompanhamos desde o início? Não sabemos. Osdiálogos tampouco nos asseguram qualquer coisa — trata-se sempre deuma montagem dispersa, em que nada se ajusta perfeitamente.Somos acometidos por "uma violenta esperança"(ibid., p. 18) de quealguma coisa vá acontecer — "car quand même le temps passe"(ibid., p.45), o tempo passa. "L’histoire. Elle commence" (ibid., p. 14), a históriacomeça; "quand l’histoire a-t-elle commencé?"(ibid., p. 14), quando ahistória começou?Ouve-se um ruído. O que é?, ele pergunta. "Eles comem", ela diz, "oueles entram, ou eles dormem, ou nada"(ibid., p. 27), ela diz. Não fazdiferença. Não se trata de ações. Trata-se de uma certa atmosfera. Otingimento de certa atmosfera. E uma experiência do tempo. De esperaraquilo que, no entanto, não chega a acontecer.

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Em determinado momento, há menção a um crime, que estaria con�-nado aos limites de uma prisão, dentro dos muros. E ela, a prisioneira,do lado de fora, em um "internamento voluntário"(ibid., p. 51). Mas nãose esclarece nada a respeito desse fato — o que se segue é a descrição dafachada de uma casa, das plantas que se movem com o vento. A nar-rativa é deslocada para outros valores, não mais o dos acontecimentos.Mesmo esse recurso que aciona um clichê narrativo caro à narrativa desuspense ou ao romance policial é imediatamente ignorado. Os fatossão apagados. Não se tem acesso a eles. Eles não se tornam visíveis.Quem é esta mulher que chega agora com dois �lhos pelas mãos, aten-tos, ansiosos, vestidos de luto? Não sabemos. Ela pede: eu posso entrarpara conversarmos? Ele diz: eu te escrevi. Mas sabemos que ele nuncaenviou essa carta na qual pedia que ela não viesse, na qual dizia que nãovalia mais a pena. Ela diz: eu não compreendo. Ela pergunta: você dei-xou de....? Ela diz: eu me pergunto mesmo se, mesmo no começo, vocêalguma vez me... Sem dúvida não, ele responde. Ela pergunta: isso duradesde quando? Ele responde: desde sempre. E eu, pobre de mim, quenão duvidava de nada.Esse arremedo de separação é talvez a cena de intensidade romanescamais aguda — e, ainda assim, ela é interrompida a todo momento peladescrição da luz que atravessa o cômodo e se refrata de determinadamaneira, pelos ruídos externos que anunciam novos focos de incêndioe entrecortam o diálogo dos dois. Entre uma série de incêndios de queas sirenes nos fazem saber, restam, espalhadas, as cinzas do que já houve— e que, no entanto, nunca chegamos a conhecer. A cena nos alcançaapenas no �nal do livro, sem nos dizer efetivamente nada sobre o queaconteceu nesta história em que já estão todos mortos.Amor, ela diz. Depois, "os olhos se abrem, eles olham sem ver, semreconhecer nada, depois eles se fecham novamente, eles voltam aopreto"(ibid., p. 115). O amor como essa imagem que falta, um lance noescuro, a aventura do não reconhecimento? É desse apaixonamento quese trata errar por esse romance em que não se pode reconhecer o menor�o que seja?

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Ela parece esperar sempre por ele. Ela parece ter sempre esperado porele, pela viagem que empreenderão juntos, a viagem a S. Thala. Ela oespera na praia, encostada ao muro. Mas eles já estão em S. Thala. Eladorme.

3

O deslumbramento. Este romance nos aparece de maneira maisapreensível. Há um núcleo básico de personagens principais: Lol,Jacques, Tatiana. Há uma cronologia delimitada: desde há dez anos,uma vida que se recompôs, a despeito de um evento traumático. Ummarido. Três �lhos. Uma casa em ordem.Há um narrador, que, inclusive, assume, de maneira clara, seus abusossobre a matéria narrada. Ele inventa. O que ele conta não é a históriade Lol, mas "a sua história de Lol". Não é simplesmente que ele tenhauma visão própria da história que se passa ou que ele não tenha acesso àinterioridade de Lol e de Tatiana, ao que elas verdadeiramente pensame sentem, mas é que ele precisa, para contar a sua própria história, decontar a história de Lol. E, para isso, ele precisa dos relatos de Tatiana.Nesse jogo a três, o amor não se baseia propriamente em uma relaçãoentre o sujeito e seu objeto de desejo — há uma imbricação entre os per-sonagens que opera uma torção no que se possa chamar uma posiçãopassiva de objeto, ainda que se pense que a posição de objeto muitasvezes demanda um esforço bastante ativo. Como propõe Lacan, Lolnão é uma voyeur, ela não está à margem do que se passa, ela não é meraespectadora — ela ativamente participa da cena. "O que acontece a rea-liza"(LACAN, 2003, p. 195).Lembremos ainda o seguinte: Jacques nos conta que é Lol quem o es-

colhe. E ela o escolhe para segui-lo, como antes havia escolhido seguirtambém a Jean. É Lol quem decide: Jacques, você não deve parar de verTatiana. Trata-se, portanto, de decisão — de ação. Trata-se, ao mesmotempo, de apassivamento — de decidir-se por ser guiada pelo outro, porse manter no obsceno do palco — onde a cena é tramada, mas não onde

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ela de fato se passa. É preciso pensar — é o que Duras nos impõe — umacena em muitos tempos, nunca contemporânea a si. O que de fato sepassa não esgota a dimensão do que acontece.Se Lol não dispensa Tatiana da cena, Tatiana tampouco se dispensa deLol. Ela, em determinado momento, a�rma que não conseguiu ter umavida "precisa"como a de Lol, situando-a como uma mulher tradicional,assentada, uma mãe, a�nal. Mas não é assim que Jacques vê. Jacquesa�rma que o único ponto �xo na vida de Tatiana, o lugar onde ela seancora e para o qual sempre volta é justamente o seu marido. O queTatiana empresta de Lol parece ser justamente o que escapa à precisão:uma fantasia de amor. Se Lol se curar completamente, então isso signi-�ca que é possível se curar de um amor? Então é possível se recomporde um golpe do mais completo amor?Leyla Perrone Moisés assinala, no posfácio de O amante, o fato de queos enredos de Duras sejam de uma banalidade quase folhetinesca: "sãointrigas aparentemente banais, histórias de amor quase folhetinescas: anoiva traída que enlouquece, a mulher fatal que provoca a morte dosamantes, os diplomatas fúteis e desesperados"(PERRONE-MOISÉS,2012, p. 104). Assim acontece neste romance de 64 — a situação inicialse apoia basicamente na frustração amorosa de uma jovem de dezenoveanos, abandonada no baile por um homem de 25 que havia prometido secasar com ela. Depois disso, certa promiscuidade reservada, uma relaçãoa três.De certa maneira, Duras insiste no tema do amor como algo de cen-tral (ou, pelo menos, de recorrente) ao longo de sua obra. Poderíamosmesmo dizer que, fazendo assim, ela aciona certo estereótipo da femi-nilidade — aliás, neste ponto não nos referimos apenas ao romanceromântico, como à história do romance como um todo. A esse respeito,cito o antropólogo britânico Jacques Godoy:

A hostilidade para com a �cção da parte das autoridades culturais fa-zia assim com que seu consumo, e em certos limites a sua produção,fossem reservados a elementos ’marginais’ como as mulheres. Na Eu-ropa do século XVIII os leitores de �cção eram em sua maioria mulhe-res; os romances franceses sempre eram escritos por mulheres, e eram

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ainda estas que constituíam o público principal dos romances ingle-ses do século XVIII. Precisamente a predominância do público femi-nino era uma das razões que atraíam críticas ao romance. Sobretudoas mulheres é que eram desencaminhadas e enganadas, em particularpelos longos romances (...). (GODOY, 2009, p. 55)

É a partir desse contexto que, no século XIX, a personagem de EmmaBovary passa a ser tomada como um conceito — o bovarismo é entãoa atitude, considerada tipicamente feminina, de se ausentar do mundoem direção a uma realidade virtual. Considerava-se que as mulheres, emsuas leituras ociosas, passavam a fantasiar com "uma vida de luxo, comuma condição social mais elevada"(ibid., p. 58). A esse respeito, retomoa aposta de Maria Rita Kehl, que destaca o bovarismo como simplesdesdobramento "dos delírios de ascensão social e autonomia que sus-tentam a ordem burguesa"(KEHL, 2016, p. 30), mas que as mulheres,por terem sido con�nadas à vida doméstica, apenas podiam viver pormeio da literatura e da relação amorosa com um homem.Destaco ainda o comentário de Kehl, que indica a maneira como o sur-gimento dessa comunidade de leitoras e autoras acabou por forjar umaespécie de identidade feminina. Cito:

O que aqui chamo de ’identidade feminina’ são os contornos comuns— frequentemente transformados em clichês — que resumem expe-riências subjetivas nas quais a maioria das mulheres se reconhecia. Ossentimentos de isolamento, de frustração das expectativas amorosasdepois do casamento, de di�culdade de expressar emoções e con�itos,a luta por manter alguma autoestima quando os �lhos cresciam (ouquando não se tinha �lhos), a inibição diante dos homens e ao mesmotempo a hostilidade abafada em relação a eles, as fantasias e os anseiospor uma felicidade vaga e sempre fora de alcance são aspectos frequen-tes nos relatos de vidas de mulheres — tanto os confessionais quantoos �ccionais. À medida que algumas mulheres tornaram públicas asexperiências vividas, uma a uma, por tantas outras, produziu-se umcampo de identi�cações em que as mulheres puderam se reconhecer,

assim como reconhecer suas diferenças em relação aos ideais de femini-

lidade produzidos a partir do suposto saber masculino. (KEHL, 2016,p. 81)

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A par desse breve histórico, o que nos importa aqui é observar a maneiracomo Duras é capaz de desdobrar o estereótipo a ponto de que ele �-que absolutamente irreconhecível. O que ela escreve e �lma parte dotema de amor banal e folhetinesco de suas personagens femininas paratransformá-lo em um romance absolutamente lacunar, no qual as açõesnão tomam curso e o con�ito amoroso não ganha contornos de melo-drama. Nesses textos, a oposição entre ação e inação — entre agênciae passividade — é desestabilizada: a escrita não opera nos termos dessebinarismo, nem mesmo enredo ou personagens se dobram a ele.A paixão que sofremos, como leitoras, não é, por �m, a do enleio de umromance arrebatador — mas justamente a submissão a essa linguagemque se nega, até o �m, a nos conceder uma posição passiva.

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Duras — escrever, uma paixão

referências

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vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pp.221-234.DURAS, Marguerite. L’amour. Paris: Éditions Gallimard, 1971._____. O Deslumbramento. Trad. Ana Maria Falcão. Rio de Janeiro:Editora Nova Fronteira, 1986.GODOY, Jack. "Da oralidade à escrita". In: MORETTI, Franco (org.).A cultura do romance. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify,2009. pp. 35-67.KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo,2016.LACAN, Jacques. "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebata-mento de Lol V. Stein". In: _____. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 198-206.PERRONE-MOISÉS, Leyla. "A imagem absoluta". In: DURAS,Marguerite. O amante. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: CosacNaify, 2012. pp. 103-114.

Filmogra�a

India Song. 1975.

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amor ,uma escrita depalavras sozinhas

giselle moreira

— Aqui é S. Talah, até o rio.— Depois do rio é ainda S. Talah.Duras

Sete anos depois da primeira edição, Marguerite Du-ras reescreve O arrebatamento de Lol. V. Stein (1964). Essa reescrita

se chama Amor (L’amour, 1971)78. Entretanto, não há uma continui-dade da narrativa e os livros não fazem série entre si. Nessa passagem doArrebatamento ao Amor, um outro tempo se desenha, fora da ordemcronológica dos acontecimentrfos. Tudo se passa em S. Talah e tudo alié S. Talah, uma cidade sem fronteiras de�nidas e único nome próprio dolivro. O mar é uma paisagem constante e as personagens se encontramnesse espaço impreciso, fora do mundo, apartadas da sociedade. Esseapagamento das Referências espaço temporais converge, ainda, com o78Todas as citações de L’amour são extraídas da tradução de Paulo de Andrade. Amor

foi sua escolha tradutória para o título, dentre outras justi�cativas ele escreve: "noúnico momento em que a palavra amour aparece no livro [...] ela surge assim, soli-tária, como que desgarrada da língua, sem nenhum artigo ou qualquer outro deter-minante"(ANDRADE, 2005, p. 22). Essa tradução foi objeto de sua tese de douto-rado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMG, em maiode 2005.

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Amor, uma escrita de palavras sozinhas

movimento de Duras de extenuar o texto, o que se mostra pela maneiradistinta como esses livros começam:

Lol encontrou Michael Richardson aos dezenove anos, durante as fé-rias escolares, certa manhã no tênis. Ele tinha vinte e cinco anos. Era�lho único de fazendeiros nos arredores de T. Beach. Não fazia nada.Os pais consentiram no casamento. Lol deveria �car noiva em seis me-ses, o casamento seria no outono. Lol tinha acabado de deixar de�ni-tivamente o colégio, estava de férias em T. Beach, quando se realizouo grande baile da estação no Cassino Municipal.79

Um homem.Ele está de pé, ele olha: a praia, o mar. O mar está baixo, calmo, a esta-ção é inde�nida, o tempo, lento.O homem se acha num caminho de tábuas posto sobre a areia.Está vestido com roupas escuras. Seu rosto é distinto.Seus olhos são claros.Ele não se move. Ele olha.O mar, a praia, há poças, superfícies isoladas de água calma.80

1.

Depois de sobrepor os começos, retorno ao Arrebatamento. Nesse livro,

a cena que o romance inteiro rememora — a partir dos elos inventadospelo narrador - é aquela do baile de T. Beach, onde se dá o arrebatamentode Michael Richardson por Anne Marie sob o olhar de Lol. Durantetoda a noite do baile, essa mulher desconhecida dança com o noivo deLol e Lol, sem dizer uma palavra, olha o casal, arrebatada. Este aconte-cimento marca a composição de um primeiro ternário (composto porMichael Richardson — Anne Marie — Lol) e evoca a ambiguidade dapalavra Arrebatamento: pois há o rapto do noivo pela outra mulher e,ao mesmo tempo, o aniquilamento de Lol V. Stein, que desinvestida doamor, perde os sentidos: "o ciúme não foi vivido, a dor não foi vivida.O elo se partiu, o que faz com que, na cadeia, tudo o que vem depoisesteja em outro nível"81.79DURAS, [1964] 1986, p. 7-8.80DURAS, 2005, p. 28.81DURAS, 1974, p. 17.

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Após esse acontecimento, Lol vive uma experiência de vacuidade, "ela setornara um deserto"82. Se casa, tem �lhos e ausente de si mesma desem-penha suas funções de mãe e dona de casa. Somente dez anos depois,um nó se reata quando ela entrevê um casal de amantes: Jacques Holde Tatiana — sua amiga de infância. Ela passa a segui-los e sua aventurarecomeça, o baile ganha vida.No Arrebatamento, o amor se estrutura à três. Lacan, em "Homenagemà Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein", localiza queLol não é voyeur, mas antes ela se realiza nesse novo ternário. Lol se rea-

liza ao ver, pelo enquadramento da janela do Hotel des Bois, a nudez deTatiana ofertada por Jacques Hold, montagem a partir da qual o corponu da outra mulher progressivamente substitui o vazio de seu corpo ea anima — "vi uma alegria bárbara"83, diz o narrador. Sem palavra paradizer o arrebatamento, é através da construção — em ato — da sua fanta-sia que Lol faz consistir seu ser, ou como precisa Lacan, seu "ser-a-três"84.Esse enquadramento permite que seu corpo ganhe forma. Frágil arranjoque a separa do enlouquecimento, pois quando Hold tenta abordá-lasem passar por Tatiana, Lol enlouquece.Leio Amor como uma reescrita do Arrebatamento de Lol V. Stein por-que nesse livro o nó se faz de uma outra forma, trata-se de uma passagempara uma outra escrita. Em Amor, a gramática da fantasia de Lol - quefaz consistir seu ser-a-três - parece não mais se sustentar e a tentativade reconstrução da cena do arrebatamento dá lugar a um enredo dema-siadamente pobre: um homem recém-chegado se junta a outras duas�guras que já ocupavam o litoral de S. Tahla: um louco e uma mulher.Se o arrebatamento evoca as questões "de quem?"e "por quem?", a pala-vra amor aparece solitária, sem signi�cação, desgarrada da língua. Se osternários do arrebatamento se constituem através de nomes próprios,em Amor os pronomes pessoais os substituem, a ponto de não sabermosde que "ele"se trata, ainda que eles sejam três.

82DURAS, 1986, p. 17.83DURAS, 1986, p. 97.84LACAN, 2003, p. 203.

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Amor, uma escrita de palavras sozinhas

Novamente ele a conduz.

Ela vê o mar. Diz:

— Às vezes aqui é calmo.

Ela mostra, o mar, a água da manhã, ela bate, verde, fresca, ela avança,sorri, diz:

— O mar.85

A escrita de Amor é quase grá�ca: as frases são extremamente curtase muitas vezes reduzidas a palavras isoladas, há ainda uma escassez deconectivos e, assim, o ritmo prevalece à signi�cação. Duras se dedicaa extenuar o texto, se aproximando dos votos que ela mesma faz emEscrever: "Haverá uma escrita da não-narrativa. Um dia isto virá. Umaescrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavrassem apoio de uma gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadasde lado".86

Em uma entrevista concedida a Xavière Gauthier, Duras ainda teste-munha como a palavra se tornou mais importante no seu processo deescrita do que a sintaxe, ela localiza como primeiro a palavra se impõe,e só depois o tempo gramatical a acompanha, de longe: "são antes demais nada as palavras, sem artigos, aliás, que vêm e se impõe"87. E, na me-dida em que as palavras se imprimem sozinhas, são elas que produzem eemolduram o espaço branco entre elas, a pausa, o silêncio, a respiraçãorarefeita, o buraco em torno do qual a letra faz borda88.Ao ler Amor, encontro ali, nessas palavras que se impõe e se repetem aolongo do livro, algumas que me parecem extraviadas de outros livros.Palavras antigas que mostram o movimento de escrever sobre o quejá foi escrito, como se evocassem um acontecimento inesquecível. Édessa forma que fragmentos do livro O Arrebatamento de Lol V. Stein

aparecem em Amor, como o grito de Lol ao �m do baile no CassinoMunicipal. Cito essa passagem:

85DURAS, 2005, p. 80.86DURAS, 1994, p. 63.87DURAS, 1974, p. 11.88LACAN, 2003, p. 18.

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Olham-se:— Ainda se lembra um pouco...? o dia do grito... você se lembra?— Pouco. Muito pouco.Ele mostra outra vez ao viajante o encadeamento contínuo:— Ela morou em todos os lugares, aqui ou além. Um hospital, umhotel, campos, jardins, estradas — ele para — um cassino municipal,você sabia? Agora ela está aqui.Aponta a ilha.89

Se no Arrebatamento, o narrador, em sua paixão por Lol V. Stein, tentareconstituir a cena do baile — na medida em que confronta seu pró-prio fracasso em reconstituí-la90—, de outra forma, em Amor, as vozesnarrativas são impessoais e descrevem o que se passa a partir de umdistanciamento, como acontece num roteiro de �lme. Os diálogos sãopermeados por palavras já escritas e que, a cada vez reescritas, se tornammais opacas e mais distantes de sua signi�cação usual. É assim que ogrito que sai da boca de Lol em O Arrebatamento aparece em Amor.Como é também isolado de seu contexto que o cão morto, visto porLol ao revisitar o Cassino Municipal com Jacques Hold, emerge nessareescrita. Mas nesse outro tempo será ela própria o cão morto deitadonas areias de S. Tahla: "Ele não está mais lá. Ela está só, deitada na areiaao sol, apodrecendo, cão morto da ideia, a mão enterrada perto da bolsabranca."91

A aridez da narrativa de Amor é também o deserto/ o des-ser92 desse

corpo largado na areia: "é um resto, é o resto de alguém"93. Ela não seimporta mais com sua imagem corporal, deixa-se cair: as pernas estira-das, os olhos fechados, as mãos en�adas na areia, numa ausência que89DURAS, 2005, p. 74.90Ver TROCOLI, 2016.91DURAS, 2005, p. 146.92Re�ro-me ao neologismo lacaniano désêtre, em que se escuta des-ser e por resso-

nância deserto [désert]: "Nessa reviravolta em que o sujeito vê vacilar a segurançaque extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, oque se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser [désê-

tre]"(LACAN, 2003, p. 259).93DURAS, 1974, P. 51.

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faz ressoar o que sempre diziam dela, que ela nunca estava exatamenteali. Não há mais expressão de dor, nem de cansaço. Com a vacilaçãodo enquadre fantasmático (seu "ser-a-três"), o corpo de Lol V. Stein sedissolve94.Lacan em sua leitura do Arrebatamento localiza a angústia presente norelato de Jacques Hold — que é a dele e ao mesmo tempo a angústia danarrativa95. Não me parece ser esse o afeto presente no ritmo pausadoda escrita de Amor. De outro modo, os caminhantes de S. Tahla vivemum desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já não servemais como proteção96. E, nesse sentido, mesmo a decisão desesperadado viajante - que procurava um lugar para se matar - se desfaz. Nessedesamparo radical, não há mais o que transgredir, nem o que obedecer.Duras, ao falar de Amor, diz: "é preciso escrever muitos livros para che-gar a esse ponto"97. Há, então, que se contar a escrita como um a mais

98,como sugere Érik Porge. Ao desconstruir as identidades dos persona-gens e borrar as Referências˜ espaciais e temporais, a escrita de Amor

refaz o nó, produzindo uma tessitura das palavras que restam, a �m detocar nesse vazio da narrativa. A operação de extenuar a história coin-cide com a de compor um novo texto, sempre ao redor da mesma cena,aquela do baile no Cassino Municipal. Esse movimento incessante daescrita, que atravessa os livros, produz o furo da cena. Pois, ela — a es-crita — não cessa de se deparar com a impossibilidade de apreender oarrebatamento, esse evento que está para além do tempo dos homens.Em Amor, tudo queima, ele ateou fogo em S. Talah, o céu está rubro, ocassino bombardeado, as mãos estão negras. Os vestígios do incêndiorecobrem S. Talah e o que resta do drama de Lol são cinzas, "átomos

94DURAS, 1974, p. 170.95LACAN, 2003, p. 199.96Re�ro-me à passagem do Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1991) na qual

Lacan localiza que "ao término da análise didática o sujeito deve atingir e conhecero campo e o nível do desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já é umaproteção"(p.364).

97DURAS, 1974, p. 12.98PORGE, 2019, p. 30.

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voluptuosos"ou "biografemas"99 — como quer Barthes ao desejar quesua vida fosse reduzida a alguns pormenores que poderiam vir a con-tagiar um corpo futuro. "Queimou. Mas está aqui, espalhado".100 Dabiogra�a ao biografema, a vida se reduz à forma mínima da escrita: gra-

fema. E, como cinzas - esse resto mínimo, impessoal e, no entanto, omais singular -, encontro, em Amor, algumas palavras que restam dis-persas de outros livros. Palavras quase durassianas, que comemoram obaile e a queda de Lol V. Stein: o grito, o cão morto, a aurora, o mar. Ecomo escuto a voz de Duras: l’écrit, le chien mort, l’aurore, la mère.

99BARTHES, 1979, p. 14.100DURAS, 2005, p. 75.

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referências

ANDRADE, Paulo. Nada no dia se vê da noite esta passagem (amor,escrita e tradução em Marguerite Duras). Tese de doutorado, (Letras— Estudos Literários) Faculdade de Letras, da UFMG, Belo Horizonte,2005.BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Lisboa: Edições 70, 1979.DURAS, Marguerite. Boas falas — Conversas sem compromisso. Riode Janeiro: Editora Record, 1974.DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.DURAS, Marguerite. L’amour. Paris: Gallimard, 1998.DURAS, Marguerite. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V.Stein). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.LACAN, Jacques. "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebata-mento de Lol V. Stein". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003,p. 198 - 205.LACAN, Jacques. "Lituraterra". In: Outros escritos. Rio de Janeiro:Zahar, 2003, p. 15 - 25.LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967". In: Outros

escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 243 - 264.LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60).Rio de Janeiro: Zahar, 1991.PORGE, Érik. O Arrebatamento de Lacan — Marguerite Duras ao péda letra. São Paulo: Aller Editora, 2019.TROCOLI, Flávia. Flor de amor que morde o peito: Lol V. Stein e oefeito Duras. In: AIRES, Suely; LEITE, Nina (Org.). Prática da letra,

uso do inconsciente. Campinas: Mercado de Letras, 2016. p. 53-66.

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bruna musacchio guaraná

No colégio, diz ela, e não era a única a pensar dessamaneira, já faltava algo a Lol para estar — ela diz: presente. Dava

a impressão de tolerar num tédio tranquilo uma pessoa com quem elajulgava ter a obrigação de parecer e de quem perdia a lembrança namenor oportunidade.\Lola era engraçada, gozadora inveterada e muito sutil, embora umaparte dela estivesse sempre desligada, longe do interlocutor e domomento. Onde? [...]\Tatiana tenderia a acreditar que na verdade era, talvez o coração deLol. V. Stein que não estava- ela diz: presente- provavelmente eleviria, mas ela não o havia conhecido. Realmente, parecia que essaregião do sentimento que, em Lol, era diferente. (Duras, 1964/1986, p. 8)

Introdução101

Lol Valérie Stein, de quem dirá Duras em Escrever: "Em Lol. V.Stein não penso mais. Ninguém pode conhecê-la L.V.S., nem vocês,101Gostaria de agradecer aqui a discussão que teve lugar no Durassiana 2019- I Encontro

de Pesquisadores em Marguerite Duras organizado pelos alunos da Pós-Graduaçãoem Ciência da Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Riode Janeiro, em 15 e 16 de agosto de 2019.

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nem eu."(Duras, 1914/1994, p.19). Quem pode apreendê-la? O que deLol é passível de apreensão? O conhecido romance O deslumbramento

de Lol. V Stein, a quem Jacques Lacan dedicou um escrito em home-nagem, gira em torno dessa matéria inapreensível do que se compõe ocorpo de Lol, mesma matéria que tem a potência de arrebatar seu leitor,diria Lacan, e que ressoa para todos e cada um (Lacan, 1965, p.198).Inapreensível, inexistente era assim que Lol se apresentava na descriçãode Tatiana, um ser vaporoso. Um ser que parecia não estar ao mesmotempo, no mesmo lugar que o seu corpo, alguém em fuga, nunca pre-sente. Onde estaria? O texto vai nos introduzir desde cedo na presençade suas ausências, ali onde sua alma e seu corpo parecem não coincidir.E o que veremos envolve uma articulação dessas dimensões, e nos inter-roga: como encarnar esse corpo? Torná-lo vivo? Ali, onde vai se fazerimportante, como veremos, o vestido, o olhar, o amor, ou ainda umaoutra mulher.Era diferente, diz Tatiana, albergava em si uma espécie de tédio tran-quilo, uma parte desligada, distante. Embora fosse ao mesmo tempoengraçada e gozadora, algo lhe faltava. Imperava nesse tempo, umaLol que funcionava no registro do "como se", onde se empenhava em"se"parecer com alguma coisa, ou alguma pessoa. Ainda que esse "pa-recer"no fundo se revelasse como uma casca vazia, desvelando aí "umavacuidade"a�rmaria Lacan (Lacan, 1965, p. 201).Uma "vacuidade"que dava a impressão para Tatiana de que o coraçãodela viria em algum momento, ainda não estava lá, talvez fossedesconhecido ou nunca tivesse existido. A sensação é de uma Lol "emsuspense"à espera para fazer consistir num porvir, o que pode advir.Por isso, quando adveio o rumor, segundo Tatiana, do seu noivadocom Michael Richardson, ela se surpreende com a "louca paixão"queLol dedica ao noivo (Duras, 1964/1986, p. 8). Haveria nele algo que lhefazia dedicar-lhe tanta atenção? Como podia ali empenhar uma paixãoque em sua vida antes inexistia?

O baile, desenlace e solução

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Vamos retomar, para seguirmos, o evento do que signi�cou obaile. O narrador, nesse momento é Jacques Hold, e a�rma que inventaa sua versão para o que foi a noite do Cassino Municipal de T. Beach.Jacques Hold é personagem parte da história e virá a ser o amante deTatiana Karl, a amiga de quem Lol permaneceu ao lado no baile, equem vai reencontrar no seu retorno para a cidade S.Thala.Na ocasião do baile, Lol, no auge dos seus 19 anos, vai se apresentar paraa sociedade, e essa será a situação para onde se dirigem todos os olhares.Lol será o centro das atenções. Ali sofrerá o rapto do seu noivo por outramulher, uma outra que bastará aparecer subitamente. Mas, vamos anteslembrar102 o que signi�cava todo aquele acontecimento que envolvia aapresentação de uma debutante para a sociedade.Todos os olhares da sociedade se voltavam para a apresentação das debu-tantes para o mundo e aquele baile era como uma espécie de iniciaçãona vida, uma espécie de rito. Ainda que, o que a história revela é que Lolnão está ali pela importância do baile ou sua convenção social, mas simpela "louca paixão"que empenhava sobre Michael Richardson (Duras,1964/1986, p.8).E então "A orquestra parou de tocar. Terminava uma dança"quandochega a esse baile, uma mulher mais velha: "Era magra. [...] Havia co-berto aquela magreza, lembrava-se claramente Tatiana, com um vestidopreto bastante decotado, com duas sobre-saias de tule igualmente pre-tas."Quem era? Anne-Marie Stretter. "Tinha olhado Michel Richard-son de passagem? Tinha-o varrido com aquele não-olhar que ela passe-ava pelo baile?"(Duras, 1986, p.11)À título de observação, é curioso notar que diante de todos aquelesolhares, do ver e ser visto do baile, o que captura o noivo é um não olhar,um olhar que não olha ninguém, mas que faz dele sua presa. Um não-

102Para uma reconstituição mais completa do clima desse baile, ver: VIEIRA,Marcus. Lições da loucura. Lola Valérie Stein —Transcrição de Seminá-rio ministrado no Hospital Philippe Pinel em 2008. Disponível online em:http://www.litura.com.br/cursorepositorio/4lolapdf1.pdf

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olhar que rouba o noivo de Lol e que a faz �car em suspenso, mas semconseguir parar de olhá-los. Lol os segue com os olhos até o �m e caiquando não pode mais vê-los.Quando perguntada, muito depois o que queria com eles, dirá: "vê-los",para Tatiana Karl (Ibid, p. 77). "o olhar nela [em Anne-Marie Stretter] —de perto compreendia-se que esse defeito provinha de uma descoloraçãoquase dolorosa da pupila—, se alojava em toda a superfície dos olhos,era difícil captá-lo"(ibid, p. 11).Anne-Marie Stretter é a personagem que arrebata Michel Richardson,pois a partir de tê-la avistado, ocorre uma mudança em seu semblante,seus olhos se tornam "iluminados", seu rosto se contrai em uma abruptamaturidade e uma dor antiga de infância. Essa mudança irrevogável,impossível de ter sido evitada, é o início do �m.Lol "em suspense, esperou"e se manteve toda a noite assim, desde queAnne Marie Stretter entrou no salão, no mesmo lugar, atrás das plantasverdes no bar com Tatiana, ao mesmo tempo em que os dois selados umao outro, dançaram como autômatos, toda a noite, até o amanhecer,ainda que os músicos já houvessem se retirado: "Aos primeiros raios deluz da madrugada [...] todos os três, haviam ganhado bastante idade,centenas de anos, dessa idade, nos loucos, adormecida."(ibid, p. 12).E, ainda que naquele momento "essa visão e essa certeza não pareceramacompanhar-se de sofrimento em Lol"(ibid, p. 15), o �m do baile, e a idados dois embora é o que seria insuportável. O que se de�agra, quandosua mãe entra no baile injuriando os dois, os acusando de terem feitomal a sua �lha, os dois injuriados olham ao longe, pensando vislumbrar aquem se dirigiam as injurias, e se retiram. Logo depois sua mãe encontraLol atrás das plantas: "A barreira de sua mãe entre eles e ela era o sinalprenunciador de tudo [...] Lol gritou pela primeira vez."(ibid.).

Lol havia gritado sem descontinuar coisas sensatas: não era tarde, ahora de verão enganava. Tinha suplicado a Michael Richardson queacreditasse nela. Mas, como continuassem a caminhar- tinham ten-tado impedir que o �zesse, mas ela conseguira soltar-se- correra paraa porta se jogara no batente. A porta, com a lingueta do chão fechada,havia resistido. De olhos baixos os dois passaram diante dela [...] Lol

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seguiu-os com os olhos pelos jardins. Quando não mais os viu, caiuno chão, desmaiada (ibid, p.15).

Antes de prosseguir, aqui cabe rápida digressão que nos lembra Bastos(2009) sobre o termo arrebatamento, do francês "le ravissement"e quequer dizer roubo, rapto, mas também, fascinação, encantamento e des-lumbramento. Na trama ambos os sentidos se encontram presentes, edesignam um dos aspectos centrais de toda a narrativa, o rapto ou roubodo noivo de Lol, mas também como fruto da força do que fascina ouencanta.Existe, portanto, diversas dimensões na trama da fascinação/rapto. Háa fascinação pelo "não-olhar"de Anne-Marie Stretter por Michael Ri-chardson, dela por ele, que não o consegue mais largar e o rapto dele,noivo de Lol, por uma outra mulher. Mas, o que aparece como disrup-tivo não é da ordem da perda de lugar dela para uma outra, o que dariamargem a uma rivalidade, mas o fato dela ser impedida de ser aí incluída,quando acaba a noite e não pode mais vê-los. Nesse momento, o raptotoma outra conotação, a perda que está em jogo para Lol ali parece ser ade deixar de ter uma existência fora daquele enquadre. O que lhe acon-tece? Ou melhor, do que sofre?Lol, desencadeia uma crise, permanece por semanas sem sair do seuquarto, para nada, encerrada em uma prostração. Um sofrimento semuma causa aparente e do qual ela não pode dizer, dirá Lacan, do que so-fre (Lacan, 1965, p. 199). Duras: "sua di�culdade diante da busca de umaúnica palavra parecia intransponível", pagava agora a "estranha omis-são de sua dor durante o baile"(Duras, 1985, p. 17). Segue um trecho,onde podemos vislumbrar como se apresenta essa dimensão do indizí-vel. Cito:

Ela repetia sempre as mesmas coisas: que a hora de verão engava, quenão era tarde. Pronunciava seu nome com raiva: Lol V. Stein - era as-sim que se designava. Depois queixou-se [...] de sentir um cansaçoinsuportável de esperar assim. Aborrecia-se a ponto de gritar. E naverdade ela gritava que não tinha nada em que pensar enquanto espe-rava, exigia com a impaciência de uma criança um remédio imediatopara aquela falta. [....]

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O que perdura por bastante tempo:

Depois Lol deixou de queixar-se do que quer que fosse. Aos poucosdeixou até mesmo de falar. Sua raiva envelheceu, desencorajou-se. Fa-lou apenas para dizer que lhe era impossível expressar o quanto eraaborrecido e custoso, custoso ser Lol V. Stein (ibid, p. 16).

Lacan dirá que o nome "Lol V Stein"é uma cifra e que foi determinadopelo contorno de sua escrita: asas de papel, V tesoura, Stein, a pedra, "nojogo do amor tu te perdes", aqui fazendo alusão ao jogo pedra, papel etesoura, onde se enlaçam os dois movimentos: a arrebatada alma parafora de seu corpo, e a arrebatadora �gura de ferida, exilada da coisas, "emquem não se ousa tocar, mas que faz de nós sua presa"(Lacan, 1965, p.198).Seguindo a narrativa, a reação catastró�ca de Lol na cena do baile é a cenaque promove o clímax da trama e da qual o romance inteiro não passa deuma "rememoração"(Ibid, p. 199). Uma "rememoração"porque o que sebusca realizar posteriormente na narrativa é uma espécie de retomada,ou repetição da cena original. Veremos como. Após o desenlace disrup-tivo, Lol vai permanecer um tempo no registro do "como se"inicial queimperava na sua adolescência, e que descrevemos no início do texto, atéo encontro com seu futuro marido.No rapto de seu noivo, poderíamos dizer que o que se perde está ligadotambém a uma perda de investimento na esfera amorosa do olhar deseu amante, que se comparado ao vestido, concede um invólucro ao seuser, mas que quando desinvestido, temos a revelação de como se porbaixo, nada houvesse (Lacan, 1965/2003, p. 200). Para evitar que issotivesse ocorrido, os dois não deveriam ter partido: "as janelas fechadas,lacradas, o baile murado em sua luz noturna os teria contido, todos ostrês, e apenas eles. Lol está certa do seguinte: juntos teriam sido salvosda vinda de um outro dia, de um outro, pelo menos."(Duras, 1986, p.34).E, na falta de uma palavra, "uma palavra-buraco, escavada em seu centropara um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriamsido enterradas", tudo se eclipsa e Lol como efeito do ocorrido é arreba-

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tada, como se a alma lhe fosse arrebatada para fora do corpo (ibid, p. 35).Consequência de outro arrebatamento, o de seu noivo e dos dois aman-tes em sua dança. Lol é o elemento terceiro nessa díade, como escreveLacan:

A cena de que o romance inteiro não passa de uma rememoraçãoé, propriamente, o arrebatamento de dois numa dança que os solda,sob o olhar de Lol, terceira, com todo o baile, sofrendo aí o rapto deseu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente. (Lacan,1965/2003, p. 199)

A cena do baile e a reconstrução do seu corpo, através da composiçãoamorosa triangular muitos anos mais tarde, é o percurso por onde anarrativa do livro se desenrola: "Lol progride todos os dias na reconsti-tuição desse instante [...] O que reconstrói é o �m do mundo"(Duras,1986, p. 34). Com o arrebatamento para fora de si, algo se eclode ali. Oque busca Lol na reconstituição do �m do mundo?Lol logo a primeira vez que sai na rua, depois da sua crise, encontra seufuturo marido. Ele começa a segui-la, até perceber ela não caminhavaem uma direção determinada e, então, decide guiá-la: "Ele parou, pegousua mão. Ela consentiu."(ibid, p.20).

Ele amava aquela mulher, Lola Valerie, aquela calma presença a seulado, aquele jeito como se dormisse em pé, aquele apagamento contí-nuo que lhe fazia ir e vir entre o esquecimento e os reencontros comsua lourice (blondeur), deste corpo de seda que o despertar nunca mu-dava, desta virtualidade constante e silenciosa que ele nomeava suadoçura, a doçura de sua mulher. (ibid, p.24).

Nesse casamento Lol era a esposa "perfeita", suas "opiniões eram raras,suas narrativas inexistentes"(ibid, p. 32) e se ocupava em manter a ordemda casa, ritmo e rigor, na arrumação dos quartos ou da sala, imitava vitri-nes de loja, do jardim, de outros jardins: Mas, "Lol imitava, mas quem?Aos outros, todos os outros, o maior número possível de pessoas."(ibid,p. 24) Aqui parece que estamos novamente no estado de coisas queencontrávamos antes da paixão que investiu em Michael Richardson.Até o momento em que Lol e seu marido, por uma oferta de trabalhode Jean Bedford tem a opção de retornar à sua cidade natal. S. Thala, a

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cidade onde ocorreu o baile, e a cidade onde também Lol vai reencontrarTatiana, sua amiga de infância e seu amante Jacques Hold, ali onde umnó se reata, segundo Lacan, a partir desse reencontro (Lacan, 1965, p.199). Lol passará a segui-los até o local de encontro dos amantes, parase incluir novamente nessa díade, deitada em um campo de centeio.Veremos como isso se dá.Nesse reencontro, não se trata apenas de uma repetição da cena inicial,mas de reatar um nó, que se rompera, onde contavam-se três elementose que se enodam. E o que é atado a esse nó é o que arrebata, incluídonele. Daí virá o famoso "ser a três"de Lacan, que signi�caria justamenteo arranjo entre esses três elementos recriados posteriormente por Lol(Lacan, 1965, p. 203).A trama rearranjada por Lol, a faz estar presente em um peculiar lugarna tríade amorosa, que não se reduz a mera observadora, mas sim auma estranha presença que encarna um puro olhar, e esse lugar quandosentido por primeira vez por Jacques Hold é vivido com angústia:

[...] acreditei ver à meia distância entre o sopé da colina e o hotel umaforma cinzenta, uma mulher, cuja lourice cendrada através das has-tes do centeio não podia enganar-me; experimentei, embora esperassepor tudo, uma emoção bastante violenta cuja verdadeira natureza nãosoube logo [....] Abafei um grito, desejei a ajuda de Deus, sai correndo,re�z o caminho, rodeei o quarto [...] sofrendo, sofrendo de insu�ci-ência deplorável de meu ser em conhecer esse acontecimento. Depoisa emoção aplacou-se um pouco, recolheu-se sobre si mesma, pudecontê-la. Esse momento coincidiu com aquele em que descobri queela também devia ver-me. (ibid, p. 90)

Lá, onde Lol se deita, e se torna uma forma cinzenta e loira em umcampo de centeio, �gurando como uma mancha cinza, que o olha aindaque sem vê-lo, e que encarna por isso a presença do olhar, o objeto quecausa a angustia. A presença do objeto evoca um se sentir olhado es-pecial, próximo ao que seria nos sentirmos olhados pela fresta de umaporta, de uma janela entreaberta ou de um armário, onde �ca-se coma sensação da presença de algo que nos espreita, a partir de um pontoinde�nível, sem que possamos identi�car o que é. Jacques Hold, por

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exemplo, só se tranquiliza quando passa a supor que ela o podia ver,portanto, ao localizar alguém por detrás desse olhar.Aqui Lacan nos advertiria: "Não se enganem, sobretudo, a respeito dolugar do olhar aqui. Não é Lol quem olha, nem que seja pelo fato deque ela não vê nada. Ela não é voyeur. O que acontece a realiza."(Lacan,1965, p. 202). O que vai �car mais evidente, quando Lol evoca o lugar doolhar em estado de objeto puro, ao se referir a nudez de Tatiana: "Nua,nua, sob seus cabelos negros"(Duras, 1986, p. 47).O indizível dessa nudez emoldurado pela cabeleira negra é o que pro-move a passagem da beleza de Tatiana, para a mancha que Lol realizacom sua cabeleira loira no campo de centeio e que, nesse caso, é a cabe-leira negra, que sob a vastidão da nudez de Tatiana delimita, um corpoe uma erótica.Se seguirmos o �o da narrativa, sabemos que Jacques Hold busca seguirpela via da compreensão com Lol, não aceita o papel que lhe é sugeridopor ela, e lhe oferece o lugar de Tatiana, ignorando a função do terceiroelemento. É quem a acompanha até o local do acontecimento em T.Beach quando ela enlouquece. Ser compreendida não convém a Lol, sercompreendida não é o que a salva do arrebatamento, diria Lacan (Lacan,1985, p. 203).Portanto, quando Lol logra realizar essa montagem, entre os três, elatem um corpo, é alguém. O que não signi�ca que essa solução sejade�nitiva, ou que nenhuma outra exista. Haverá inclusive momentosde despersonalização e delírio como esse, quando Jacques Hold,confunde as coisas e a leva sozinha para longe. O importante dessearranjo não é que ele seja de�nitivo, mas sim que dê uma maior margemde manobra ao sujeito, e que poderíamos, por isso, chamar de "solução",o que nesse caso atribuímos à "invenção"de Marguerite Duras, quandodá vida a esse ser �ctício de discurso.

Conclusão

Com essa montagem, se produz a possibilidade da personagem

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poder existir com uma vida que pulsa dentro de si e com presença, forado lugar do "como se", onde havia um corpo sem alma. E, onde está oque concede essa vivacidade ao corpo de Lol? Está na montagem doselementos, "o ser a três"; caso contrário �camos na deriva como Lol, ouna completa angústia.Lol antes vivia os nomes como cascas vazias "de fora", sem que eles apre-endessem nada do real. O gozo, diria Lacan no Seminário 20, não é nembom, nem mau, apenas é em si, demasiadamente presente, mortífero.Ao mesmo tempo Lacan faz dele substância da vida, desde que conden-sado, localizado. Um texto de �cção, assim como uma existência, semgozo, é um texto sem alma.A questão será então, não a de barrar o gozo, pois não se pode barrara vida, mas como lhe dar lugar, delimitado. É o que instaura a possibi-lidade de refazer as "taciturnas núpcias"do corpo, vestido vazio, puraimagem dada pelo Outro, com essa coisa indescritível que costumamoschama de vida (Lacan, 1965, p. 205). E é nesse limite que também tocauma análise, na junção entre gozo e discurso, construídas para cada um,a partir das exigências e ofertas do Outro, acrescidas de altas doses decontingência que se constroem os corpos (ibid.).Sem essa montagem, o corpo é pura estátua construída pelo que o Ou-tro nos foi informando quanto ao que deveríamos ser - como as tantasque habitam as revistas. Por isso, como vimos, para Lol depois do baileseguem-se 10 anos de uma existência meio sem corpo. Um corpo dooutro, mas não dela. Quando só mais tarde, Lol poderá colocar em açãouma montagem que resolve o impasse do deserto do gozo.O que temos notícias através do romance de Duras, que é por meio dearranjos �ccionais com caráter de invenção que se aproxima mais do real,diferente da realidade, porque retira da realidade tudo que é miscelâneade pequenos vividos que poluem momento cruciais com seus excessi-vos matizes acumulativos e lhe confere o aguçado do corte. É como seentende que "em sua matéria o artista sempre precede o analista"(Lacan,1965, p. 200).

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E se a "prática da letra converge com o uso do inconsciente"é porquejustamente, será uma palavra impronunciável, que aqui aparece comonão podendo ser dita, posto não existir, que visa o ponto de conexãoentre saber e gozo (ibid). Será essa palavra impronunciável que conseguedar lugar a este impossível de dizer, nas entrelinhas e entre letras. A dornão pode se dizer, como dirá Jacques Lacan: "ela não pode dizer do queestá sofrendo"(Lacan, 1965, p. 199). Ou, ainda Duras sobre o sofrimentode Lol: "um sofrimento sem sujeito"(Duras, 1986, p. 16).A dor não cabe no universal compartilhável, não se escreve, mas podese inscrever pela escrita. Não há palavras para o que arrebata Lol, algodisso cala em Lol, mas não deixa de por isso de se fazer existir, atravésda "existência de discurso"da personagem, que se escreve pelas mãos deDuras (ibid, p. 203).

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referências

BASTOS, Angélica. (2009) O corpo e o arrebatamento. In: BESSET,Vera Lopes; FIGUEIREDO, Henrique [orgs.] A soberania da clínica

na psicopatologia do cotidiano. Rio de Janeiro: Garamond, pp. 135-165.DURAS, Marguerite. (1986) O deslumbramento. Trad. Ana Maria Fal-cão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.LACAN, J. (1965/2003) "Homenagem a Marguerite Duras pelo arreba-tamento de Lol. V. Stein". Em: Outros escritos, pp. 198-205._________ (1972-73/1985) O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro:Jorge Zahar.MILLER, Jacques-Alain. "Le corps dérobé. À propôs du ravissement".In: Revue de psychanalyse. La Cause du désir, n°103. Novembre 2019.VIEIRA, Marcus. Lições da loucura. Lola ValérieStein — Transcrição de Seminário ministrado no Hos-pital Philippe Pinel em 2008. Disponível online em:http://www.litura.com.br/cursorepositorio/4lolapdf1.pdf

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sobrevidas da cena emmarguerite duras

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a cena do baile é o coração de Lol.Michèle Motrelay

Sinopse

Apartir da leitura de A doença da morte [La maladie

de la mort], 1982, e de Olhos azuis, cabelos pretos [Les yeux bleus

cheveux noirs], 1986, na tradução de Vera Adami, proponho pensaro apelo que essas obras de Marguerite Duras fazem ao teatro, nãoencenado, mas lido, deixando a ênfase cair na palavra que ressoa. Talênfase na sonoridade e na voz não vem desacompanhada do olhar.Voz e olhar talvez sejam os objetos através dos quais miramos emabismo (Hélène Cixous nos diz que, em Duras, é para o abismo quetudo se precipita103). No ponto em abismo, no qual as personagensde Marguerite Duras estão situadas na cena, não há possibilidade de

103Remeto o leitor à conversa entre Cixous e Foucault em torno de Duras, in: FOU-CAULT, Michel. Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização eseleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Bar-bosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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contar uma história, de preenchê-la com detalhes do mobiliário, comas ordenações e ritmos da vida burguesa104, o que insiste, nessa "arteda pobreza"105, é a posição a partir da qual cada um pode oferecer ourecusar sua palavra e seu corpo ao amor, ao gozo, à morte. É justamenteesse oferecimento que faz apelo ao teatro. E, é bom dizer, a um teatrocontra a interpretação e o espetáculo: Marguerite Duras nos propõeum teatro lido e não atuado, leitura que a cada vez faz e desfaz apalavra dita como forma para "a memória infernal do que não chega aacontecer", como está dito em Olhos azuis, cabelo pretos (Duras, [1986],s/d, p.31)

Prólogo: O não-há, a sobrevivência da cena, em Proust e

depois

Começo com indicações de cena, que podemos tomar como umprocedimento estético recorrente em Marguerite Duras, mesmoquando o teatro não é invocado diretamente como em Agatha:

O cenário é um salão em uma casa desabitada. Há um divã. Poltronas.Uma janela deixa entrar a luz do inverno. Ouve-se o ruído do mar. Aluz do inverno é brumosa e sombria. Não há nenhuma outra ilumi-nação além dessa, só essa luz de inverno. No salão há um homem euma mulher. Calados. Pode-se supor que falaram muito antes que osvíssemos. (Duras [1981], s/d, p. 5)

Cito para dizer de uma sobrevivência da cena, mesmo quando a escritaliterária já dera um passo-além da representação realista, da lógica dosigni�cado e da unidade totalizante. Maurice Blanchot já se espantaraao escrever sobre "A experiência de Proust"o seguinte:

104Cf.: MORETTI, Franco. O burguês: entre a literatura e história. Tradução: Ale-xandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

105Remeto mais uma vez o leitor à conversa mencionada acima. FOUCAULT, Michel.Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização e seleção de textos:Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 2006.

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[...] Proust, mesmo a contragosto, permaneceu dócil à verdade de suaexperiência, que não apenas o desliga do tempo comum mas o intro-duz num tempo outro, o tempo "puro"em que a duração nunca podeser linear, nem se reduz aos acontecimentos. É por isso que a narrativaexclui o desenrolar simples de uma história, assim corno ela se conciliamal com as cenas excessivamente delimitadas e �guradas. Proust temum certo gosto pelas cenas clássicas, às quais nem sempre renuncia.Mesmo a grandiosa cena �nal tem um relevo excessivo, que não cor-responde à dissolução do tempo de que ele nos quer persuadir. (Blan-chot, 2005, p.32)

Blanchot refere-se a Jean Santeuil e um dos pontos fundamentais doseu ensaio é distingui-lo do que Proust escreveu depois. No entanto, épreciso lembrar que Em busca do tempo perdido, a obra proustiana emsua realização �nal, se inicia justamente por um entrelaçamento com-plexo de cenas: a do sono, a do "não há resposta"da mãe, a do dramado deitar à espera do beijo, a da presença da mãe no quarto lendo e, �-nalmente, a da madeleine. A Busca não só não renuncia à cena como,sobretudo, complexi�ca in�nitamente a relação entre elas. Tal comple-xidade coloca em jogo: a perda das Referências˜ no sono, a imposiçãode um silêncio sem representação diante do não-há-resposta da mãe, aincompreensão dos soluços no momento em que o pai autoriza a mãea dormir naquela noite com o pequeno e, �nalmente, a memória in-voluntária que irrompe como sensação de felicidade perdida e exigirá"criação". Inscritas no tempo, naquilo que ele aniquila e faz sobreviver,essas cenas se repetirão, serão revividas e reconstruídas em A prisioneira

e em A fugitiva (Albertine Disparue), e também na cena da morte daavó, na cena na biblioteca de Guermantes. Repetição, apagamento ereconstrução da cena também estão por toda a obra de Marguerite Du-ras: na cena a cada vez reescrita do encontro com o amante chinês, nacena do baile e na cena do campo de trigo que arrebatam Lol V. Stein.Impossível não lembrar Freud e a Outra cena como metáfora para o in-consciente. Não mais a cena realista, construída através da onisciênciade uma voz que vê, ordena e rege de fora e à distância, a cena modernaseria aquela que foi invadida pela voz narrativa e ela, a voz, não sabe mais

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do que as personagens106. A voz enunciativa também está sob os efeitosde uma palavra que lhe permanece estranha, da erosão do tempo, damorte.É porque algo se faz entre tempos, entre cenas, que é indispensável lan-çarmos mão da noção de rasura para apontar para aquilo que se �guracomo apagamento e reescrita, destruição e sobrevivência, repetição eacontecimento, possibilidade e impossibilidade. É possível dizer queDuras, como também o fez Proust, alinha o trauma, como impossível, auma relação entre, no mínimo, duas cenas107. O que está em jogo nessascenas literária é algo bem próximo daquilo que, em seu percurso, Lacanpensa como troumatisme, em outras palavras, o trauma poderia ser pen-sado como buraco, um fosso, recolocado em sua relação incontornávelcom a representação e a linguagem. Em outro momento, trabalhei maisdetidamente as consequências do jogo do fort-da para a análise literá-ria. Considerei que À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, eCirconfession, de Jacques Derrida, são livros assombrados pela sua pró-pria ausência, assombrados por dois livros ainda não escritos: o livropor vir de Marcel e o livro das circuncisões de Jacques Derrida. O quesão esses livros senão aquele carretel que o neto de Freud lançava sobreas cortinas de seu berço? E lá, não era somente a mãe que desapare-cia e retornava, eram duas letras, duas vogais: o-o-o-o e a-a-a-a, nelas ovovô escutou Fort/Da. Com isso, a criança, pequeno ator entre corti-nas, jogava/encenava, não somente o desaparecimento de sua mãe, mastambém o seu próprio desaparecimento ou de uma parte destacada deseu corpo108.

106Cf. AUERBACH, Erich. "A meia marrom". In: Mimesis: a representação da rea-

lidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009.107O que já vimos no traçado de Freud, na relação entre o sonho com os lobos e a

cena primária em "História de uma neurose infantil". In: Uma neurose infantil eoutros trabalhos. (1917-1918) Volume XVII da Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

108Cf.: TROCOLI, Flavia. "Assombros do Autobiográ�co". In: EYBEN, P. (org.)Poética, política: assombros da desconstrução. Vinhedo: Editora Horizonte, 2019.

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Neste momento, tentarei mostrar como em dois livros de MargueriteDuras o encontro amoroso é primeiro apresentado como impossível edepois como surgido de uma falha súbita na lógica do Universo. Talencontro amoroso impossível ou nascido da falha se relaciona comas formas e com as transformações na cena, na voz, no olhar, estásubmetido às variações dos pronomes você, nós, ele, ela.

Parte 1: Essa forma que decreta A doença da morte109

Há um homem e há uma mulher, entre eles uma voz que dizassim:

Você deveria não conhecê-la, você deveria tê-la encontrado por todaparte ao mesmo tempo, num hotel numa rua, num trem, num bar,num livro, num �lme, em você mesmo, em você, em ti, ao léu do teusexo ereto na noite clamando por um lugar onde se meter, onde sedesvencilhar do choro que o enche. (Duras [1982], 2007, p. 43)

Neste que é o primeiro parágrafo de A doença da morte, não se sabequem fala, sem monólogo, sem eu, há um imperativo e uma negação: odever é o de não conhecer e se desloca para um encontro que teria acon-tecido em toda parte: em um livro, em um �lme e em um sexo ereto. Essavoz que diz "deveria"e não "deve"dirige o clamor para o sexo do homemda cena. A voz e o olhar vêm de fora, há sentenças ditadas, que criam acena através de um endereçamento direto ao homem, e há enunciadosdubitativos, ao modo de um narrador que pouco sabe ou nada sabe amais que as personagens: "Talvez você consiga dela um prazer até então

109Na sua apresentação à montagem de La maladie de la mort, pela Comédie Fran-çaise, Muriel Mayette-Holtz divide o texto de Marguerite Duas em três níveis deleitura: 1) ao fundo da cena, o �lme projetado; 2) em segundo plano: uma mulhernum quarto; 3) no primeiro plano, um ator que nos conta de um homem que re-lata sua di�culdade de amar. E a diretora oferece ainda outra indicação de cena: otexto não é propriamente um texto para o teatro, segundo ela, é um longo poemaem prosa que Marguerite Duras, em 1982, ditou frase a frase, muitas vezes em umsemicoma devido a uma cirrose hepática, a seu companheiro Yann Andréa. Con-sultado em:

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desconhecido para você, não sei [...]."(Idem, p.56) Por vezes, essa vozque declara passa a palavra ao homem e à mulher, cito um trecho dessamudança de registro discursivo: "Ela diz: Eu estou aqui, pode olhar, euestou diante de você. Você diz: Eu não vejo nada."(Ibidem)Há aqui, no mínimo, quatro movimentos: 1) ampliação — por todaparte e em todos os tempos; 2) redução — dos lugares se passa ao sexoque procuraria por um lugar; 3) preenchimento — pela penetração e4) esvaziamento — pelo choro. Sempre me perguntei a razão pela qualos amantes de Duras choram tanto, ao ler mais uma vez esse parágrafo,me ocorre que chorar não vai sem ligação com jacular que, por sua vez,é arremessar e dirigir-se a alguém. Na "comum solidão"nomeada porBlanchot, há gozo, excesso, solidão, mas também endereçamento, hárestos de endereçamento e de ações que se repetem: acordar, dormir,olhar, cegar, penetrar, gozar, chorar:

Noite após noite você se introduz na obscuridade do sexo dela, vocêenvereda quase sem saber por essa estrada cega. Às vezes, você �ca ali,você dorme ali, dentro dela durante a noite inteira, para estar prontose por acaso, graças a um movimento involuntário da parte dela ou datua, lhe viesse o desejo de tê-la de novo, de fartá-la mais uma vez e degozar apenas o gozo como sempre cego de lágrimas. (Idem, p.53)

A leitura da pequena obra intitulada A doença da morte não vai sema companhia da crítica de Maurice Blanchot intitulada "Comunidadedos amantes". Na sua leitura, Maurice Blanchot alinha negatividadesimprescindíveis: sem relação, sem relato, renúncia à obra, e, ao mesmotempo, indica que Marguerite Duras se impôs um roteiro e que ela co-loca em cena um homem e uma mulher que, mais do que se encontram,se perdem. A�rma ainda que é um texto declarativo que determina oacontecimento para aquele que "caiu nas malhas de uma sina inexorá-vel"(Blanchot, 2013, p. 50) Minha hipótese é a de que se levarmos emconta essas indicações e acrescentarmos o posfácio que Duras escreveupara A doença da morte, poderíamos propor uma leitura com algumasnuances diferentes daquela de Blanchot, que, claro, não a invalida, maspropõe um entrelaçamento possível entre aquilo que ele indica como

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questão ética e aquilo que aqui gostaria de indicar como problema esté-tico.Problema estético que retornará três anos mais tarde com a publica-ção de Olhos azuis, cabelos negros uma espécie de retomada estendidada cena erótica, mas com uma forma inteiramente diferente de A do-

ença da morte, em que as didascálias agora compõem o corpo da obra e,principalmente, a voz não é anônima, mas identi�cada como sendo deum ator e a mulher não somente fala, mas se tem acesso ao seu ponto-de-vista, ao seu olhar. Lê-se: "Se falasse, diz o ator, ela diria: Se nossahistória se passasse no teatro, um ator iria até a borda do palco, a ribalta,bem perto de você e de mim. [...] Ele se apresentaria como o homem dahistória, o homem dir-se-ia, em sua ausência central, em sua irreversívelexterioridade. (Duras [1986], s/d, p.75)O que gostaria de sublinhar é que, se a ação, antes de Beckett110, eraum elemento fundamental do teatro, em A doença da morte, a açãoestaria reduzida ao próprio dizer, à enunciação que estabelece e corróios enunciados, em Olhos azuis, cabelos pretos, estaria reduzida à própriaescrita e leitura da didascália. De um livro ao outro, as vozes narrativas,cada vez menos ocupam uma posição de exterioridade e de autoridadepara ocuparem o palco junto de seus personagens, diz a voz de A doença

da morte:

Talvez você consiga dela um prazer até então desconhecido para você,não sei*.*

Tampouco sei se você percebe o rosnado surdo e distante do seu gozoatravés de sua respiração dulcíssimo que vai e vem da boca ao ar defora.

Não creio. (Duras [1982], 2007, p.51. Grifo meu)

Neste ponto, já se pode nuançar um pouco a seguinte formulação deBlanchot:

110Cf.: ANDRADE, Fabio de Souza. Prefácio à tradução brasileira de Esperando Go-dot. In: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio de Fabio deSouza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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[...] é um texto declarativo, e não um relato, mesmo que tenha a apa-rência de um. Tudo é decidido por um "Vous"inicial, que é mais doque autoritário, que interpela e determina aquilo que acontecerá oupoderia acontecer para aquele que caiu nas malhas de uma sina inexo-rável. (Blanchot, 2013, p.50)

Sim, a voz declara movimentos a serem feitos pela personagem-homem,mas não me parece inteiramente fora da própria lei que instaurou no pri-meiro parágrafo: "Você deveria não conhecê-la". Como se também a vozestivesse sob o efeito do não conhecer, prestes a desaparecer na noite ouna brancura do mar, destituída de uma autoridade total. Mais adiante,essa destituição poderá ser lida no posfácio através do deslocamento daatuação para a leitura.Já tinha se aprendido com Marcel Proust e Virginia Woolf que, à me-nor pressão, o conjunto, sempre frágil e transitório, pode se decom-por e se dispersar. Essa intrusão da voz e da palavra, a passividade dequem a recebe, de quem é dirigido ou lido por ela não afeta somente opersonagem-homem, mas a própria voz não parece encaixar-se integral-mente na interpretação religiosa de Blanchot, para ele esse "Vous"precisaser entendido como o "Diretor Supremo: o Vós bíblico que vem do altoe �xa profeticamente os grandes traços da intriga na qual avançamosna ignorância daquilo que nos é prescrito"(Idem, p.50). Talvez maisinteressante do que o Vous autoritário, seja pensar na palavra ditada ena opacidade de seus efeitos, nos buracos que ela não preenche. Con-siderando esse vous/você um pouco menos onipotente, proponho ummovimento de descida, a�nal é a própria Marguerite Duras que nosdirá que "o palco deve ser baixo, quase no nível do chão"(Duras [1982],2007, p.92). Do alto ao baixo, do diretor supremo ao corpo vulnerávelda mulher:

O corpo [dela] não tem defesa nenhuma, é liso do rosto aos pés. Con-vida ao estrangulamento, ao estupro, aos maus-tratos, aos insultos,aos gritos de ódio, ao desencadeamento de paixões totais, mortais.(Duras [1982], 2007, p. 55)

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Blanchot diz que a voz é sem poder sobre a personagem-mulher. Entre-tanto, o que se lê ainda aqui é uma exposição imensa ao outro, ao olhare, talvez, a uma fantasia de morte. Marguerite Duras encenou o estar"sem recurso"111 do amor no corpo de uma mulher, alinhou um corpode mulher a uma fantasia de morte não sem a sombra de um amor emperda ou "à última vista"como diria Benjamin da passante de Baudelaire.O corpo é indefeso e exposto ao outro que pode invadi-lo, destruí-lo,matá-lo, mas que ganha forma através da voz, do livro, de seu posfácioque indica a possibilidade de leitura teatral, através da qual, a palavraganha outra vida.Penso em sobrevida, e não posso não lembrar que Jacques Derrida, jus-tamente ao analisar o demorar da morte em um texto literário, colocoudo lado da literatura tal exposição absoluta ao Outro112. No caso de A

doença da morte, trata-se da exposição da mulher às fantasias de morteditadas pela voz enunciativa e da literatura exposta aos próprios procedi-mentos do teatro. Sem essência, sem determinação absoluta, a literaturaestaria sem defesas quanto ao fora (no caso de Derrida o testemunhoe a autobiogra�a) — mas, talvez, não sem recursos, é isso que o leitorJacques Derrida encena ao ler O instante de minha morte, de Blanchot,linha a linha, situando-o não somente em uma cena testemunhal, mastambém numa cena literária composta por Dostoievski, Kafka e PaulCelan.Na edição brasileira, O homem sentado no corredor precede A doença da

morte, lá se diz com todas as letras de uma interdição que vacilará aindamais no texto seguinte: "A doçura daquilo é tal que lhe vêm lágrimasaos olhos. Vejo que nada iguala em potência a essa doçura, salvo ainterdição formal de atentar contra ela. Interdita."(Duras [1982], 2007,p.29). Qualquer interdito à morte só pode advir da palavra, do dizer denovo, da forma que barra a absolutização da doença da morte, isto é,

111Re�ro-me à bela epígrafe de Nancy que Blanchot escolhe para o seu ensaio: "A únicalei do abandono, assim como a do amor, é de ser sem retorno e sem recurso".

112Cf.: DERRIDA, Jacques. Demorar: Maurice Blanchot. Tradução: Flavia Trocoli eCarla Rodrigues. Florianópolis: EDUSC, 2015.

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da impossibilidade de amar. Ao �nal de "A comunidade dos amantes",Blanchot retoma Wittgenstein para se perguntar se, já que é precisofalar, com que espécie de palavras? Retomemos a pergunta ligeiramentemodi�cada: diante da iminência da morte de uma mulher, diante daiminência da morte do próprio corpo da obra, diante da doença damorte que é não poder amar e, assim, viver como morto, o que as pala-vras ainda podem fazer? Vejamos o que elas, as palavras, fazem em umaobra posterior a A doença da morte. A interdição da impossibilidade deamar, em Olhos azuis, cabelos pretos, não se desliga da queda da voz quedecreta, que dirige, mesmo na opacidade, o que sobrara de ação parao homem. O amor, ou sua impossibilidade, é indissociável de sua forma.

Parte 2: Olhos azuis, cabelos pretos, ele, o equívoco, como

barreira à sina inexorável

Aqui se sabe quem fala, é o ator quem nos diz que "uma noitede verão seria o centro da história", aqui se sabe onde as coisas começama se passar, no vestíbulo do Hotel das Rochas. "Gritam um nome desonoridade insólita", e "pouco depois do grito, pela porta que a mulherestá olhando, a das escadas do hotel, um jovem estrangeiro entra novestíbulo. Um jovem estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos."Maistarde escutamos que esses também são os traços dela que diz: "Cabelospretos tornam os olhos azul-anil, meio trágicos também"(Duras [1986],s/d, p. 13). Trágico que só pode ser cogitado pela metade, já que osolhos azuis são também equívocos, isso não é um detalhe, mas simum procedimento da obra: o imutável do trágico é barrado pelo quepode ser lido como equívoco. Equívoco que, no entanto, não permitea instauração de nenhuma lógica conciliatória.Na primeira didascália ou na primeira leitura do ator, no começo dapeça, há indicações sobre o cenário, um lugar abandonado, momenta-neamente fúnebre, aquilo que passou não é propriamente narrado, nematuado, é lido nas metamorfoses do odor - primeiro odor de incenso e

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rosa, em seguida inodoro de pó de areia, por �m se torna odor sexual.Lê-se:

A descrição da decoração, do odor sexual, dos móveis, do acaju es-curo, deveria ser lida pelos atores no mesmo tom do relato da história.Mesmo se, de acordo com os diferentes teatros onde a peça seria re-presentada, os elementos da decoração não coincidissem com o aquienunciado, este permaneceria intacto. Nesse caso, caberia aos atoresfazer com que o odor, os �gurinos, as cores se adequassem ao texto,ao valor das palavras, à sua forma. (Duras [1986], p. 16)

O livro Olhos azuis, cabelos pretos é composto de dois planos: 1) o planoda cena narrada, em que há um ele e um ela que, por vezes, falam atravésdo discurso direto; 2) o plano que estou chamando de didascália nãoé constituído propriamente pela voz do autor dramático, mas do ator,daquele que quebra qualquer possibilidade de naturalização da repre-sentação, que diz não somente que é um livro que está sendo lido, masque também dirige interrompendo a própria cena narrada. Essas partessão desarmônicas em muitos pontos, não somente pela mudança dasvozes, no plano da enunciação, ele, ela, o narrador, o ator-leitor-diretor,mas também pelas metamorfoses que se dão nos enunciados: se é ditoque a mulher está coberta por uma seda negra, o ator em certo momentolê que esta ideia será abandonada, se numa frase ela é uma atriz, em outraela é uma escritora que escreverá sobre um quarto113, equivocadamente,inabitável, um infernal palco fechado onde se procuraria o início doamor.No livro intitulado La Vie materiélle, mais precisamente no fragmentointitulado "Le théâtre", a Marguerite ensaísta nos diz:

113Cf: CIXOUS, Hélène. Em Ayaï: le cri de La littérature, a autora, passando porProust, Dostoievski e Freud, retomará o quarto como lugar da cena primordial, lu-gar do crime e do castigo, em que a crueldade passa a ter lugar. Para Cixous, a litera-tura hospeda a morte e outras negatividades, ao mesmo tempo em que diz não aomassacre e pode refazer a vida com as cinzas. Quanto às obras de Duras que leio aqui,impossível não pensar que, de certa maneira, o corpo da mulher adormecida, queliberta o homem, não deixa de ser uma memória do narrador da Recherche diantede Albertine.

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Neste inverno, vou fazer teatro e espero sair do meu lugar e fazer teatrolido, não atuado. Um ator que lê um livro em voz alta como em Olhos

azuis, cabelos negros, nada a fazer senão isso, nada a não ser assegurara imobilidade, nada a não ser sustentar o texto fora do livro só pelavoz, sem gesticulação, para fazer crer que o drama do corpo que sofreestá inteiramente nas palavras e que o corpo não vacila. (Duras, 1987,p.17.Tradução minha)

É notável como tanto na obra, como no ensaio breve, Marguerite Durasdesloca toda a ênfase da atuação para a leitura, desloca para uma formaem que o valor das palavras coincide com o drama do corpo. Comodrama no corpo, as palavras não contam nenhuma história, não expli-cam nada. A cena e as imagens são feitas e desfeitas: uma nudez cada vezmais nua e cada vez mais privada de sentido. A palavra é a forma para avacuidade e a obscuridade e aí residiria seu valor? "Permanece a memóriainfernal do que não chega a acontecer"(Duras [1986], p.31). A forma daobra portaria uma ausência de toda memória, um infernal apagamentoe recomeço. Aqui, como em Proust, o esquecimento é constitutivo dotecido narrativo e não apenas tema.Pode-se dizer que a primeira metade de Olhos azuis, cabelos pretos, re-toma o tema da doença da morte: uma mulher que, apesar de não seruma prostituta, é paga por um homem que não pode amar para passarcom ele as noites de um verão diante do mar. No entanto, há a presençado ator, há as didascálias, há longas descrições da paisagem, há conver-sas sobre óperas e sobre o que faz de fato a mulher, há também cenasque se passam fora do quarto. Nessa primeira metade, vigora um certoequilíbrio entre a narrativa dos momentos em que o homem e a mulherse encontram e as didascálias lidas pelo ator. No meio do livro, lê-se:

Lembra-se de que esta noite ela chegou um pouco atrasada em rela-ção ao seu horário habitual, ele não fez comentários. Fica preocupado,não por ter esquecido de fazê-los, antes para que o atraso não assumauma importância que eventualmente poderia vir a possuir, mais tarde,nos dias que virão, quando ele chegar a acreditar que começou a amá-la. (Duras [1986], p.47)

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O interessante é que essa linha divisória, entre não poder amar e acre-ditar que começou a amar, seja introduzida pelo "lembrar-se"seguidodaquilo que poderia ser um temor de que o amor pudesse começar acriar os seus enredos e a dar importância e comentário a um atraso. Émais interessante ainda que esse começo do amar seja sucedido de umaespécie de redução das didascálias. E é decisivo que a mulher indiqueum fora que talvez soubessem se as pessoas do quarto haviam se amado.Um fora que não há, que �cou em A doença da morte. Em Olhos azuis,

cabelos pretos, uma mulher diz não à doença do homem que não podeamar, mas assim: "Eu não conheço você. Ninguém pode conhecê-lo,pôr-se em seu lugar, você não tem lugar, não sabe onde encontrar umlugar. E é por isso que eu o amo e que você está perdido."(Duras [1986],p.53)Eles estão juntos no livro e ao �m deste livro serão devolvidos à diluiçãoda cidade, como a passante de Baudelaire. E ela diz ainda que este lugarjá estava criado: o do falso amante, aquele que não ama, como umpapel no teatro. Na verdade, esse lugar em um ternário — uma mulher,um homem, um jovem estrangeiro de olhos azuis, cabelos pretos —é o próprio lugar da vacuidade e do amor em Marguerite Duras, é aforma vazia na qual as personagens tomam posição para amar. Ou,mais precisamente, em Olhos azuis, cabelos negros, para beijar. O beijoé o que interrompe os movimentos repetitivos dos corpos de acordar,dormir, penetrar, gozar e chorar. É, ele, o beijo, o novo amor. O únicobeijo trocado. E "Do beijo, não falarão."(Duras [1986], p.87) Mas,estranhamente, por uma única vez, o gozo se dissocia das lágrimase ganha outra forma: "Paramos de falar. O gozo veio do céu, nóso recolhemos, ele nos suprimiu, arrastou-nos para sempre e depoisdesapareceu"(Idem, p.91). Sim, o leitor de Duras já terá estranhadoa súbita aparição desse nós. Nem você, nem ele, nem ela. Nós. "... edepois as mãos se encontraram no naufrágio"(Idem, p.91). Uma úl-tima frase, diz o ator, poderia ter sido dita antes do silêncio (Idem, p.96).

Epílogo

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Em A doença da morte, lê-se:

O choro a acorda. Ela te olha. Olha o quarto. E de novo ela te olha.Acaricia a tua mão. Ela pergunta: Você chora por que? Você diz quecabe a ela dizer por que você chora, que ela é que deveria saber. Ela res-ponde baixinho, com doçura: Porque você não ama. Você respondeque é isso. Ela diz: O desejo de estar prestes a matar um amante, deguardá-lo para si, só para si, de arrebatá-lo, de roubá-lo a contrapelode todas as leis, de todos os impérios da moral, você não sabe o queé isso, você nunca soube? Você diz: Nunca. Ela te olha, ela repete: Écurioso um morto. (Duras [1982], 2007, p.75)

Marie-Hélène Brousse nos diz que "As lágrimas são a manifestação maisforte de existir, quando se enfrenta o ’Seria melhor não existir’."Seria aquestão da própria literatura de Marguerite Duras mostrar a obra comoforte manifestação do existir diante da ameaça de sua própria destrui-ção? Se, em determinado ponto, o paralelo que proponho aqui se dáentre a vulnerabilidade do corpo da mulher e da literatura, é preciso des-tacar que, no fragmento citado, é a mulher que nomeia, ainda, a doençada morte, é ela quem indica a ausência do amor — motor do choro, dogozo, do endereçamento imensamente assimétrico e disjuntivo a queA doença da morte dá forma. Escutemos a voz: "Você olha essa forma,você descobre nela ao mesmo tempo a potência infernal, a abominávelfragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual."(Duras[1982], 2007, p.64) Poderíamos rasurar a partir do paralelismo entre ocorpo da mulher e a literatura e dizer assim: Você olha essa forma, essamulher, essa literatura, você descobre nela ao mesmo tempo a potên-cia infernal, a abominável fragilidade, a fraqueza, a força invencível dafraqueza sem igual. No posfácio, Marguerite Duras escreve:

Só a mulher diria seu papel de cor. O homem, nunca. O homem leriao texto [...] Aquele de quem trata a história nunca seria representado.Mesmo quando se dirigisse à jovem, seria pela mediação do homemque lê a sua história. A atuação aqui seria substituída pela leitura. Sem-pre acho que nada substitui a leitura de um texto, que nada substitui afalta de memória do texto, nada, nenhuma atuação. [...] (Idem, pp.91-93)

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Em Olhos azuis, cabelos pretos, a voz que cria e decreta não existe mais.A voz que lê é de um ator. Em um único beijo se inscreve um amor,subitamente aparece um nós gozamos, depois é naufrágio e silêncio. E aliteratura ou, mais precisamente, o ato de ler vem recolher os seus pró-prios despojos através de uma cena, fazendo barreira contra o Pací�co,contra o nada que poderia devorar sua própria forma. Uma literaturaque segue outras direções — apela ao teatro, ao �lme e volta à leitura.Como forma de mediação, ler seria poder ainda ligar o papel que se dizde cor, o texto que se dita, o homem nunca representado, um corpo nude mulher que não se vê todo, uma literatura que não se diz toda. Sehá ainda a mediação pela leitura talvez seja porque ainda reste algumamor na literatura, mesmo que seja aquele a título de indicação geral:"no amor é quando eu tenho o céu e nele não há nada". E eles, o céu eo amor, não estão lá, no alto, estão aqui neste palco baixo, ao nível dochão.

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Flavia Trocoli

FREUD, Sigmund. (1917-1918) História de uma neurose infantil. In:Uma neurose infantil e outros trabalhos Volume XVII da Edição Stan-dard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Ja-neiro: Imago, 1996.MONTRELAY, Michèle. L’ombre et le nom: sur la feminité. Paris: LesÉditions de Minuit, 1977.MORETTI, Franco. O burguês: entre a literatura e história. Tradução:Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Sous la direction deJean-Yves Tadié. Paris: Gallimard, 1999.TROCOLI, Flavia. "Assombros do Autobiográ�co". In: EYBEN, P.(org.) Poética, política: assombros da desconstrução. Vinhedo: EditoraHorizonte, 2019.

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emily l. — margueriteduras, traduzir o

impossívelclaudia itaborahy ferraz

Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas quevou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo,saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada,que ela está precisamente aí onde você não está — é o começoda escritura.Roland Barthes

Cena I — a mulher, no quarto, escreve

— O que pode a noite, se não abrir a escuridão e transformar mulhe-res em bichos que farejam e voam ainda que tenham quatro patas? Doalto do arranha-céu, da altura do corpo próprio, a lente dispara contraa monotonia para ver movimentos íntimos, repetindo uma mesma ci-dade.— O que pode a noite, se não abrir a escuridão e alterar a paisagem?Inventar mapas astrais, imaginar constelações, sentir cheiro do mar.Abrir os olhos, deixando que permaneçam fechados, em estado dequase sonho, de quase delírio, para ver aquilo que já não há.— O que pode a noite, se não abrir a escuridão?

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Claudia Itaborahy Ferraz

No deserto de um quarto, a mulher — no meio do sono — escreve.

E, como um bicho — cansado — dorme.

Uma mulher, de branco, no meio do quarto, escreve. Bilhetinhoscom poemas, cartas para ninguém. Emily Dickinson deixou umagaveta com papéis em desordem, contendo dezenas de caderninhos114

costurados artesanalmente e folhas soltas com grande número depoemas. Em Amherst, pequena cidade perto de Boston, Emily nasceu,viveu e morreu, aos 56 anos. Seus últimos 25 anos foram vividos emcompleta reclusão: o contato feito com o mundo externo dava-sepor meio das cartas que ela trocava com alguns amigos e familiares,acompanhadas, algumas vezes, por um poema escrito por ela. Comaproximadamente 29 anos, começa a vestir apenas roupas brancas.No ano anterior, começou a correr sempre que a campainha tocavaem casa. Quando aceitava visita de algum amigo conhecido, ela e ovisitante conversavam através apenas da porta entreaberta — the door

ajar. Foi a irmã de Emily — Lavinia — quem encontrou seus escritosnas gavetas da cômoda do quarto, lugar onde escrevia trancada, comum mundo restrito de poucos amigos, seletas leituras e raras expe-riências. E, ainda assim, o quarto de Emily parecia ser o mundo, imenso.

Cena II — a semelhança entre mulheres que não se pare-

cem

Marguerite Duras traduziu Emily Dickinson. No livro Emily L., de Marguerite Duras, publicado em 1987, onde Emily L. é escrita,por Duras, na sobreimpressão com Emily Dickinson, Emily torna-setambém letra de Dickinson: Emily L. Aqui, não se trata de umatradução interlingual, pois Duras não traduz exatamente o texto de

114Poemas de Dickinson, cuidadosamente copiados em folhas de papel dobradas, e,por ela mesma, costuradas, como livros, que foram, depois, conhecidos como seus"fascículos".

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Dickinson, mas do que poderíamos chamar, de transposição115. Ondeo sentido se constrói "só depois"(nachtraglich), uma vez que algo serevela sobre a poética de Dickinson, no contexto do romance de Duras.E isso só vai se revelar a partir do leitor, com sua experiência tanto daleitura da obra de Duras quanto da obra de Dickinson, para que atransposição possa, de fato, produzir efeitos de leitura.Nesse romance, em que Emily L. é a protagonista, a ponto de dar nomeao título, o centro, de fato, não parece estar na personagem, mas no queesta revela sobre a escrita e sobre o amor. Um casal francês é capturadovisualmente por um casal de ingleses, e, a partir de então, a mulher fran-cesa, que antes insistia em querer escrever a sua história amorosa, passaa contar sobre a mulher inglesa e o "seu"capitão. É verão, eles estão emuma cidade do litoral francês, Quillebeuf. O texto é tecido a partir dodes(encontro) amoroso do casal francês, onde a mulher, uma escritora,diz da escrita e de quando para de escrever, por causa do amor. No cor-rer do livro, a mulher inglesa torna-se o grande interesse do casal francês,principalmente da mulher, que não para de querer saber e interpretar ashistórias, a vida, daquela inglesa. Nesse movimento de olhares, o casalfrancês retoma a sua própria história, na tentativa de poder saber sobreo próprio deles.

No livro, Emily L. perde um poema, dos aproximadamente dezenoveque havia escrito, sobre as tardes de inverno e a luz do sol penetrandoas frestas. Esse poema foi queimado por seu parceiro. É nessa perda dopoema que Emily L. para de escrever. Para além da história de amordesses dois casais, o livro traz a história secreta de Emily L. com umfuncionário da casa do pai, leitor de seus poemas, para quem Emilyescreve uma carta, que �ca anos en sou�rance. Este homem, inclusive,é quem nomeia a inglesa como Emily L. — L. que convoca a pensar:L. o que?

115O termo "transposição"é introduzido por Mallarmé e trabalhado, numa precisa ar-ticulação com a psicanálise, por Alain Badiou, em Por uma estética da cura analítica.No livro Cor’p’oema Llansol, de Janaína de Paula, esse conceito funciona como umoperador para se pensar, especialmente, a articulação entre o corpo e o poema natextualidade llansoliana.

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O livro Emily L. apresenta fragmentos de texto na língua inglesa, emtodo o seu percurso — o que pode chamar o leitor a um ponto de tra-dução para além, tal como escreve Heidegger,

[...] se re�etirmos sobre o que seja "traduzir". Inicialmente apreende-mos este processo como algo externo, técnico-�lológico. Dizemos, en-tão, ser o traduzir a transposição de uma língua para outra, da línguaestrangeira para a língua materna ou também o contrário. Entretantotemos di�culdade de entender que, constantemente, já estamos tradu-zindo nossa própria língua, a língua materna, para sua palavra própria,genuína. Falar e dizer é, em si, um traduzir, cuja essência não pode deforma alguma consistir em duas situações, onde as palavras que trans-põem e as palavras transpostas pertençam a linguagens diversas. Emcada diálogo e em cada solilóquio vige um traduzir originário. Nessecaso, não pensamos apenas no processo, no qual substituímos umamaneira de falar por uma outra da mesma linguagem, e nos servimosda "paráfrase". A mudança na escolha de palavras já é a consequên-cia de uma transposição, para nós, numa outra verdade e clareza, outambém numa interrogação (Fragwürdigkeit). Este transpor pode serealizar sem que a expressão linguística se altere. A poesia de um po-eta e o tratado de um pensador estão em sua palavra própria, singu-lar, única. Eles nos obrigam a perceber essa palavra, sempre de novo,como se a ouvíssemos pela primeira vez. As assim chamadas traduçãoe paráfrase são subsequentes e seguem tão-somente a transposição detodo o nosso ser para dentro do âmbito de uma verdade transformada.Somente se já nos deixamos apropriar por esta transposição, nos en-contramos no cuidado pela palavra. Só com base na atenção, assimmais fácil e limitada, de traduzir a palavra estrangeira para nossa pró-pria linguagem116.

Ao pensar esse romance a partir de uma poética da tradução, pensoquando Marguerite Duras se refere ao poema perdido de Emily L.como o poema absoluto, que poderia ser escrito em diferentes partesdo mundo sob diferentes formas:

Ela achava que quando os poemas eram escritos em um determinadopaís, eles rapidamente se propagavam por outros lugares, impulsiona-dos por sua própria evidência, por sua própria existência, para além

116HEIDEGGER, Martin. Parmênides, p.28.

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Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

das distâncias, dos céus, dos mares, dos continentes, dos regimes polí-ticos, das proibições. Era uma pessoa inclinada a pensar que em todaa parte se escrevia o mesmo poema sob diferentes formas. Que haviaapenas um único poema a alcançar através de todas as línguas, de to-das as civilizações117.

O romance Emily L. parece trazer pontos biografemáticos de EmilyDickinson — as cartas, o poema, a língua inglesa, o cão perdido, as rou-pas brancas, os cabelos negros... e conta história de amor e a história demulheres que escrevem (ou escreviam). "É incrível a semelhança entremulheres que não se parecem-– diz a narradora ao seu marido. O livrotraz fragmentos de frases em inglês ao longo do seu percurso. EmilyL. toma a cena, contando sobre um poema perdido, jamais encontrado.Em inglês, Marguerite Duras, traz, sem traduzir, uma frase de Emily Dic-kinson para o seu romance. E, em companhia do fragmento mantidoem inglês, Duras traduz e transforma (em romance?) outros fragmentosdo mesmo poema — poema sobre as tardes de inverno.

Theres a certain Slant of light,Winter Afternoons—That oppresses, like the HeftOf Cathedral Tunes—Heavenly Hurt, it gives us—We can �nd no scar,But internal di�erence,Where the Meanings, are—None may teach it—Any—’Tis the Seal Despair—An imperial a�ictionSent us of the Air—When it comes, the Landscape listens—Shadows—hold their breath—When it goes ’tis like the DistanceOn the look of Death— 118

117DURAS, Marguerite. Emily L., p. 56.118Poema 258 de Emily Dickinson.

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Emily L. e Emily D. tornam-se muito semelhantes, mas quem escreve,importa lembrar, é Marguerite Duras, que se faz "compreendida comose fosse um texto original- já que somente um leitor, também leitor deEmily Dickinson, poderia saber que aquele texto é uma tradução queDuras faz do poema de Dickinson. E o que Duras faz é escrever, fazerliteratura, mesmo ao traduzir.

Ela re�ete. Hesita. E depois pergunta:

— Há um sobre as tardes de inverno?

O caseiro procura.

— Não. Acho que não... É o título?

— Sim. Teria sido isso, este título. Sim, com certeza...

[...]

Ele diz:

— Você acha que o escreveu?

— Segundo você, eu o teria apenas imaginado?

— Não sei. Você se lembra do que queria falar?

— Desses raios de sol, no inverno, eles entram por onde conseguempassar, pelas menores frestas das arcadas, pelas pequenas aberturas dasnaves que as pessoas faziam expressamente para a luz, para que pene-trasse na catedral até a noite negra dos solos. No inverno o sol é de umamarelo iodado, sanguinolento... Eu dizia que esses raios de sol feriamcomo espadas celestes, que trespassavam o coração... isso, sem deixarcicatrizes, nada, nenhum vestígio...

[...]

— "exceto o de uma diferença interna no âmago das signi�cações".

[...]

Ele repete a frase inglesa:

— But internal di�erence, where the meanings are.

[...]

Ele pergunta: – As tardes de inverno, teria sido este o título do poema?

— Sim. Winter afternoons.

Teria sido também o título da brochura.119

119DURAS, Marguerite. Emily L., p.78-80.

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Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

Para mim, em Emily L., o pensamento em torno das leituras que Durasfaz apresenta-se como ponto de investigação sobre o que vem a ser — eo que poderia ser — uma poética da tradução, em um movimento deética e pensamento da poiesis — o fazer poético e o pensamento poético.

Cena III — o texto dela, ou,

Fazer amor com o texto

Escrever, mesmo quando não se pode escrever. A partir do desencontro,de uma falta de resposta, de uma falta de outro, de mundo. A partirdaí, Emily, então, escreve. E acumula suas cartas na gaveta, cuida e se-greda a maioria quase absoluta dos seus escritos dentro do quarto, nacômoda. Deixa-os costurados, amorosamente, para o futuro. São cartasguardadas e jogadas no tempo — cartas para ninguém. De branco, umafolha, um envelope — selada no quarto —, signi�cante e objeto, vejouma mulher que escreve e é escrita.Uma escrita que vai além da representação, que convida a literatura aaceitar outro tipo de texto, em que o impossível tem lugar. A perguntalançada a mim, por Duras, a partir daí, então, é: "quem escreve quandojá não se pode escrever?"NINGUÉM. "Ninguém"escreve. Porém, dizer"ninguém"não signi�ca a�rmar que não exista quem escreva, mesmoquando esta tarefa é impossível. Há, aí, um ninguém que escreve.

Escrever não posso.

Ninguém pode.

É preciso dizer:

Não se pode.

E, se escreve.120

Esse parece ser o ponto mais radical121 para se pensar a "pulsão da es-crita"122, expressão introduzida por Maria Gabriela Llansol como uma

120DURAS, Marguerite. Escrever, p. 47.121BRANCO, Lucia Castello. Os ínvios caminhos — escrever, ler,psicanalisar. 2020.122LLANSOL, Maria Gabriela. Na Casa de Julho e Agosto.

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espécie de �gura, em seu texto. Essa expressão, assim cunhada, traz comomarca um deslocamento da pulsão do escritor, da pulsão de escrever,para a pulsão da própria escrita. A�rma-se, assim, a escrita fora da re-presentação, como um movimento pulsional que atravessa o corpo. Apulsão da escrita pode, ainda, ser articulada ao conceito freudiano depulsão, e à releitura que Lacan fez deste, através de seus trabalhos sobresublimação, letra e gozo feminino 123.Para Llansol, a escrita não se faz por metáforas, mas por um "pensamentoda luz", sendo a singularização efeito dessa pulsão da escrita, "luz prefe-rida". Trata-se, para ela, da "cloro�la, a primeira matéria do poema"124.Com uma matéria exterior, o poema, no movimento da "pulsão da es-crita", desaloja o sujeito, colocando-o ao seu lado e fazendo de si umtipo de "poema sem eu"125. É a literatura em seu estado de voz, em movi-mento de "pulsão da escrita", em estado de cloro�la, de luz preferida, oude cor’p’oema126 - puro corpo de letras, um ninguém que, no entanto,escreve. Blanchot denomina esse ninguém que escreve de "neutro". Porforça do neutro, escrever residiria na "passagem do Eu ao Ele, de modoque o que me acontece, acontece a ninguém, é anônimo pelo fato deque isso me diz respeito, repete-se numa disseminação in�nita"127. E,assim, a escrita é "a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não hámais ninguém, quando ainda não há ninguém"128.

Acontece que essa abertura opaca e vazia, essa mesma abertura que dápassagem do Eu ao Ele, é também "passagem de vida", "que atravessao vivível e o vivido". Há um ninguém que escreve a vida, deixandopassar a vida — o atravessamento do vivível e do vivido — por aquiloque se escreve.

[...]

123ANDRADE, Vania Maria Baeta. Luz Preferia — a Pulsão da Escrita em Maria

Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux.

124LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 12.125LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 13.126P AULA, Janaina de. Cor’p’oema Llansol, p. 27*. *127BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.128BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.

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Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

Assim como o corpo opera por suas secreções, a escrita, ela própria,secreta. Há algo que se produz aí, por si só, sem nenhuma "consciênciaêuica". Mas não sem corpo. Porque, se ler é "emprestar sua ferida parareceber a ferida do outro", a escrita é, antes, da ordem da cicatriz. [...]E um corpo abandonado à sua própria sorte jamais será tão só, se tiver,a seu lado, esta outra forma de secretar: a escrita.129

A escrita de Duras, em Emily L., poderia acionar essa passagem do"eu"ao "ele sem rosto", pelo próprio gesto e mecanismo de "desapro-priação (desocupação) do autor"efetuado pela tradução? A tradução,vejo, é uma forma singular de leitura, em trânsito, a caminho, feito umacarta que está sempre chegando a seu destino, que não para de chegar- um texto em constante tradução, sempre se abrindo a novas formassingulares de leitura. Duras leu. Eu li. Ela escreveu.

"A tradução é uma forma singular de leitura"130

e "cada leitura é uma tradução"131.

Para Maurice Blanchot "a leitura do poema é o próprio poema, que sea�rma obra na leitura, que, no espaço mantido aberto pelo leitor, dánascimento à leitura que o acolhe"132. Ler poema, traduzir poema. Durastraduziu poemas de Dickinson, anunciando a possibilidade desse tipode tradução, que muitos a�rmam não ser possível, pela particularidadedo que seria, para eles, o poema. Mas é outra coisa o que a escrita delarevela. Para Octavio Paz, a poesia não é intraduzível, pois há nela umauniversalidade capaz de ir além da linguagem: "a poesia, sem deixar deser linguagem, é algo mais que linguagem"133.O tradutor, diferente do poeta, sabe onde aquele texto vai chegar e, jun-tando as palavras, os signos, pode compor um novo poema. Benjaminpropõe a tradução como uma dilatação da própria língua, para alcançara língua estrangeira, a língua do outro, alargando as fronteiras, cami-

129BRANCO, Lucia Castello. Os ínvios caminhos — escrever,ler,psicanalisar, 2019130VIDAL, Eduardo. Letra.

131PAZ, Octavio. Tradução: literatura e literalidade, p.25132BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p.215.133PAZ, Octávio. Tradução: literatura e literalidade, p. 25.

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nho "em direção ao in�nito (...) de acordo com a lei da �delidade naliberdade do movimento da língua"para traçar o seu próprio destino.Marguerite Duras quando escreve Emily L. traduz Emily Dickinson,na liberdade de tomar para si o texto do outro, fazendo com ele umadança particular de leitura e escrita, transcrição, tradução, transposição,transcriação. Duras, destinatária de uma mulher que fazia amor com otexto, escreve.

The Way I read a Letter’s — this —

’Tis �rst — I lock the Door —

And push it with my �ngers — next —

For transport it be sure —

And then I go the furthest o�

To counteract a knock —

Then draw my little Letter forth

And slowly pick the lock — 134

134Dickinson, Emily. fragmento do Poema 636

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Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

referências

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moderato cantabile eo erotismo do fracassobeatriz chnaiderman & laerte de paula

Introdução

Moderato Cantabile foi escrito por Marguerite Duras em 1958.Algumas décadas depois, em uma entrevista concedida em 1987, a au-tora situa acontecimentos ocorridos à época que teriam transformadosua relação com a escrita: "Era como descobrir os vazios, os furos queeu tinha em mim, e de encontrar a coragem de dizê-los. A mulherde Moderato Cantabile e aquela de Hiroshima mon amour era eu:extenuada por esta paixão que, não podendo me �ar pela palavra135,decidi escrever"(DELLA TORRE, 2013, p. 53, tradução nossa).Se colocamos Moderato Cantabile em relação com alguns de seus pri-meiros romances, como La vie tranquile (1944), Le Barrage contre le

Pacifique (1950), Le marin de Gibraltar (1952) e Les petits chevaux de

Tarquinia (1953), observamos uma mudança importante no modo deescrita de Duras. Embora, sob certo ângulo, todos esses romances sejamtentativas de escrever o encontro amoroso, Moderato Cantabile, comoDuras relatou na entrevista citada acima, toma como ponto de partidaum fracasso, uma exaustão e, por isso mesmo, optamos por destacar seu

135O termo que Duras utiliza em francês é parole, que pode ser traduzido como falaou como palavra.

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gesto atravessado por esse impasse: alguma coisa não passava para a pa-lavra/fala, mas sua aposta seria de que poderia passar pela escrita ou atémesmo pelo ato de escrever.Propomos neste artigo que Duras escreve uma erótica nova em Mode-

rato Cantabile, distinta daquela que era convocada até então em seuslivros. Essa obra pode ser tomada como um possível ponto de viradaentre a escrita de prazer e a escrita de gozo em seu percurso, para utili-zarmos os termos de Barthes:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele quevem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confor-tável da leitura. Texto de gozo: aquele que põe em estado de perda,aquele que desconforta [...] faz entrar em crise sua relação com a lin-guagem (BARTHES, 1973/1996, p. 21-22)

Essa virada em sua obra é apontada pela própria Duras em uma sé-rie de entrevistas concedidas a Xavière Gauthier, em 1974: "Buracos.Eu disse, acho, em certo momento, ’os buracos’... Mas sabe, foi pre-ciso escrever muitos livros para chegar a esse ponto. Há toda umaépoca em que escrevi livros, até Moderato Cantabile, que não reco-nheço"(GAUTHIER, 1974, p.12). Interessa-nos enlaçar esses buracos

com a ideia de fracasso que vamos gradualmente articular neste traba-lho. Duras destaca que tal efeito não estava lá desde o início: foi precisoescrever muito para chegar a tratar os buracos de alguma outra forma.Diz ainda: "Eu escrevia como quem vai ao escritório, todos os dias, tran-quilamente. Levava alguns meses para fazer um livro e então, de repente,veio a virada. Com Moderato Cantabile foi menos tranquilo"(p.13). Umlivro que a retira de um ritmo e de uma previsibilidade de produção.Algo começa a falhar no arranjo antigo. Duras marca aí o começo deum medo da escrita e de seus buracos, distinto da escrita que ela mesmaconsiderou alienada, burocrática, harmoniosa.A erótica dos excessos, do colorido imaginário, dos dilemas, é a marcade seus primeiros livros, que trazem muitas personagens e relações cru-zadas, pensamentos secretos, ciúmes, paisagens monumentais. Mode-

rato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que a�ora

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da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento. O re-duzido número de personagens e de espaços resulta em uma constanterepetição de palavras ao longo do texto, convocando a monotonia e, aomesmo tempo, produzindo a expectativa e seu decorrente fracasso.

De Eros, de Thanatos, uma introdução via psicanálise

Propomos a seguir uma incursão à ideia de erotismo tal como abor-dado pela psicanálise. Seguindo a trilha das vicissitudes da sexualidadehumana e levando em conta a ausência, no humano, de um objeto pré-determinado e �xo que atenda sua busca por satisfação, Freud cunhouo termo pulsão para tentar abarcar a pluralidade das moções psíquicas.Não pretendemos esgotar a complexidade desse conceito e propomosir direto ao ponto em que este se articula com a obra de Duras.Em As pulsões

136e suas vicissitudes, de 1915, Freud escreve: "O melhor

termo para caracterizar um estímulo pulsional seria ’necessidade’. Oque elimina a necessidade é a ’satisfação’"(FREUD, 1915/2006, p.124).Nesse texto, apresenta algumas modalidades do que ele denomina comodefesa contra as pulsões, dentre elas a sublimação e a repressão. Em ou-tras palavras, sublimação e repressão seriam modos de tentar dar contada necessidade imposta pela premência pulsional. O sujeito precisariase defender das pulsões que não podem ser eliminadas pelo aparelhomotor, ou seja, precisaria dar algum destino para este excesso que nãoencontra estabilização natural. É necessário, portanto, uma operaçãosuplementar.As pulsões são caóticas, con�itantes e, nesse ponto do desenvolvimentoda obra de Freud, são governadas pelas marcas de satisfação (pulsõessexuais, dirigidas a objetos) e pelo eu (pulsões de autoconservação, diri-gidas ao eu), ou seja, trata-se de uma montagem que não cessa de não

136Na tradução que utilizamos, o termo Trieb é traduzido por instinto. Optamospor modi�cá-lo por pulsão, justamente porque não existe aí a montagem pré-determinada que se associa ao conceito de instinto.

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dar conta da satisfação, malgrado o tom de necessidade que as pulsõesimpõem. A necessidade de satisfação pela via da descarga (da inerva-ção pulsional), é a marca característica do princípio de prazer, um doselementos fundamentais na teoria freudiana a comandar o aparelhopsíquico.No texto Além do princípio de prazer, de 1920, Freud passa a reconhecerque haveria uma tendência tão ou mais fundamental a fazer obstáculoao princípio do prazer. Este já não dá conta de justi�car sozinho certosmecanismos da vida psíquica: "subsiste um resíduo su�ciente para jus-ti�car a hipótese da compulsão à repetição que nos aparece como maisoriginária, mais elementar, mais pulsional que o princípio de prazer queela descarta"(FREUD, 1920/1981, p.70, tradução nossa).Desse modo, Freud forja uma oposição entre duas tendências: Eros, as-sociada à coesão, criação e à conservação da vida e dos laços, e Thanatos,desligamento, retorno à condição de não excitação, estado inanimado.Eros é a força que busca a ligação com algo maior que o eu, enquantoThanatos lhe faz obstáculo. Freud dirá: "é assim que a libido de nos-sas pulsões sexuais coincide com o Eros dos poetas e dos �lósofos, quemantêm a coesão de tudo o que vive"(p.109, tradução nossa). Essa frasechama a atenção, especialmente porque também buscamos uma articu-lação entre as montagens de Eros e a escrita. Duras fala da escrita comouma necessidade diante da destruição. Com Freud, podemos supor aíum esforço de coesão -- ainda que sempre parcialmente fracassado --diante dessas duas tendências impossíveis de conciliar137.Para Lacan, a pulsão é sempre e tão somente a pulsão de morte: "a pulsãocomo tal, enquanto pulsão de destruição -- isso deve ser algo que estámais além dessa tendência do retorno ao inanimado -- não é essa vontadede destruição direta?"(LACAN, 1959-1960, p. 168, tradução nossa). Amoção pulsional se a�gura assim como estruturalmente destruidora,

137"O princípio de prazer parece, na verdade, estar a serviço das pulsões demorte"(FREUD, 1920/1981, p.127, tradução nossa). Vemos nesse trecho como a sa-tisfação diz respeito às pulsões de morte. Ou seja, resistir a elas pode constituir umatarefa árdua tal qual construir as barragens para deter o Pací�co.

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disruptiva, o que é diferente de pensá-la como tendência ao inanimado,que seria a cessação de todo movimento. A pulsão não cessa, ela insiste,desarranja, perturba, demanda.Seguimos com Lacan: "que ela seja articulada como pulsão de destrui-ção, já que coloca em causa tudo o que existe enquanto tal, o que elaé, em suma, é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontadede recomeço"(p.168, tradução nossa). A criação não pode advir sem quealgo seja destruído, rearranjado. A pulsão se evidencia nesse movimentode destruição e criação, no uso da linguagem para dar conta daquilo queaponta para um mais-além da linguagem: "há em algum lugar -- mas cer-tamente fora do mundo da natureza -- algo que nós devemos, que nóssó podemos considerar como mais além dessa cadeia signi�cante, o ex

nihilo sobre o qual ela [pulsão] se coloca, ela se funda, ela se articulacomo tal"(p.169, tradução nossa). A pulsão, portanto, é da ordem doReal, da insistência daquilo que é impensável, daquilo que não cessa denão se articular na linguagem:

A pulsão de morte é o Real, enquanto ele só pode ser pensado comoimpossível, o que quer dizer que cada vez que ele mostra a ponta deseu nariz, ele é impensável. Abordar esse impossível não pode cons-tituir uma esperança. Porque esse impensável é a morte, da qual é ofundamento do Real que ela não possa ser pensada (LACAN, 1975-1976, p. 77)

Deste modo, as pulsões, enquanto montagens entre Eros e Thanatos,

determinam algumas premissas que desejamos reter para introduzir anoção de erotismo: o con�ito estrutural entre moções pulsionais caóti-cas e incessantes e a falta de um objeto natural e de�nitivo para aplacarsua premência. Logo, a princípio, qualquer objeto -- desde que inves-tido e signi�cado simbolicamente -- pode adquirir os contornos neces-sários para receber parte deste investimento pulsional, fonte de tensãopsíquica. Pensamos a escrita de Duras como uma tentativa singularde se sustentar diante deste impasse e como matéria que mantém vivaeste con�ito estrutural sem escamoteá-lo com uma suposta "solução".

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É como se pudéssemos ler as marcas desse con�ito e as tentativas de darconta dele em seus livros.Ademais, convém destacar que essa necessidade de criação, que pode serlida ao mesmo tempo como tendência ao nada e defesa contra o nada, éa marca de muitos trabalhos de arte. A sublimação é uma saída para essaquestão, pois designa certo modo de satisfação pulsional que explicita ovazio, ao invés de escondê-lo. Na maioria das vezes em que Lacan faloude sublimação, ele se referiu a trabalhos de pintura e instalações. Porisso, optamos por percorrer autores que se dedicaram a pensar o ero-tismo linguageiro, escrito, lido. Observaremos que, embora nem todosse proponham a falar em nome da psicanálise, o erotismo circunscreveum campo que guarda fortes relações com o exposto acima a respeitodo conceito de pulsão.

Da experiência erótica

Defender que o arranjo que Duras sustenta em sua escrita é erótico, emum tratamento particular e so�sticado, merece que mobilizemos maisreferências que se entrelacem diretamente com seu texto. Para facilitaresse diálogo, apresentaremos alguns fragmentos a priori para, a partirdaí, circular pelo texto de Duras.Não foram poucos os autores que se dedicaram a pensar o fenômenoerótico e, na literatura do século XX, é possível encontrar uma fartaatividade de investigação sobre os domínios de Eros. A poeta e ensaístacanadense Anne Carson, por exemplo, destaca três elementos que re-cortamos para nosso diálogo, extraídos de sua obra Eros, o Doce-amargo,publicado pela primeira vez em 1986. Em primeiro, a dimensão da trian-gulação, imprescindível para que �oresça o erotismo e se acenda o fogodo desejo. A ativação da dimensão erótica requer estes componentesestruturais: amante, objeto amado e isso que se interpõe entre ambos,precisamente a diferença entre eles. Eros faz obstáculo à colagem sujeito-objeto, evidenciando algum traço de diferença. Em segundo, Carson

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grifa a ideia de violência, extravio e despojamento do amante capturado:"Eros é expropriação"(CARSON, 1986/2013, p.54, tradução nossa). Naexperiência erótica, o amante "sai de si, transcende seus próprios limites,para buscar aquilo que lhe falta, mas que não sabe exatamente o queé. Neste momento, atinge um ponto cego"(p.9). Desta forma, "Eros éuma experiência que ataca o amante desde fora e toma controle de seucorpo"(p.204). Por último, destaca a dimensão de aspiração ao desco-nhecido que Eros promove: "Chegamos a suspeitar que o que o leitordeseja da leitura e o que o amante deseja do amor são experiências de de-senho muito semelhante (...), necessariamente triangular, que encarnauma aspiração ao desconhecido"(p.152). Quer se trate do objeto amadofora de alcance por um triz, do signi�cado que não se apreende por in-teiro, do detalhe que faz obstáculo à consumação plena dos amantes, atarefa de Eros é fazer com que o desconhecido siga sendo desconhecido.Sobre essa aspiração ao desconhecido, há mais a dizer. Serge Andre, psi-canalista francês que também realizou incursão pela experiência literá-ria, em um texto chamado A escrita começa onde a psicanálise termina

(2000), propôs falar dessa relação de desconhecimento que liga o artistaao saber. Se quer fazer obra, segundo o autor, será melhor que o artistanão queira saber demasiado, "pois o saber constitui, de algum modo, umobstáculo à criação"(ANDRE, 2000, p.169, tradução nossa). Um parên-tese: sabemos o quanto Duras exalava justamente este consentimentoem sua escrita. Dirá em Écrire (1993), no �m de sua vida: "A escrita é odesconhecido, antes de escrever não se sabe o que será escrito"(DURAS,1993, p.52), para complementar em seguida: "Se soubéssemos algo doque se vai escrever, antes de fazê-lo, não escreveríamos nunca"(p. 53).Ou seja, o escritor -- este tipo particular que desejamos sublinhar nestetrabalho -- não produz sua obra a partir nem por meio de seu saber."O artista antes cria a partir do que não sabe, do que não pode saber; averdadeira criação encontra sua fonte em um vazio do saber"(ANDRE,2000, p.171, tradução nossa). É que, "chegado o momento da criação, énecessário que o escritor se dirija ao mais além do saber, àquilo que, poressência, escapa ao saber"(p.171, tradução nossa). Trata-se de realizar que

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há um impossível de saber e de, ao mesmo tempo, autorizar-se a dizê-lo,saborear esse direito de nomear o impossível. É praticamente o mesmoque diz Duras em entrevista já citada: "é somente através da ausência,dos furos que se escavam em um encadeamento de signi�cações, que al-guma coisa pode nascer"(DELLA TORRE, 2013, p. 70, tradução nossa).Veremos como em Moderato Cantabile ela adota esta prática de formafecunda.Contudo, não percamos algo de vista: aspirar a este desconhecido nãoimplica que esse desejo só se legitime pela garantia da conclusão destabusca. Sustentamos antes o contrário: um texto será erótico quantomais ele puder manter esta busca aberta, sustentando o desconheci-mento que nos abre à potência do dizer. Ainda que por vias distintas,encontraremos respaldo a estas teses tanto em Barthes como em Bataille.O primeiro, em O prazer do texto (1973/1996), defende com exuberânciaque os "livros ditos eróticos representam menos a cena erótica do quesua expectativa, sua preparação, sua escalada; é justamente nisso que sãoexcitantes"(BARTHES, 1973/1996, p.75). Para Barthes, o fenômeno eró-tico não está em nenhum lugar especí�co, mas na fricção entre lugares,que o escritor procura convocar: "Nem a cultura nem a sua destruiçãosão eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O prazer dotexto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramenteromanesco que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ou-sada"(p.12). Com isso, Barthes aponta que, embora possamos forjar umaseparação entre os efeitos proporcionados por um texto, entre euforia,estabilidade de sentidos e promessa de harmonia, e seus respectivos fra-cassos e vacilações, é na fricção entre essas duas instâncias que se produza experiência erótica na leitura.Já para Bataille, o domínio do erotismo é essencialmente domínio daviolência, experiência de despojamento e de vertiginoso acesso à pró-pria descontinuidade, ao próprio inacabamento. Experiência da qualpodemos padecer com diferentes modos de resposta. Em sua célebreobra O Erotismo, Bataille sustenta que aquilo "que está em jogo no ero-tismo é sempre uma dissolução das formas constituídas"(BATAILLE,

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1965/2013, p.42). No erotismo trata-se sempre de um consentimento aoextravio. Ademais, o próprio Bataille aproxima a experiência erótica deuma certa experiência com a linguagem quando propõe que "a poesiaconduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção,à confusão dos objetos distintos"(p.48). Há uma dimensão de perda�agrante -- Bataille dirá: voluntária -- quando habitamos a esfera dofenômeno erótico: "no erotismo, eu me perco"(p.55).O que queremos propor, à medida que buscamos dar sustentação a estatese, é que o erotismo que mobiliza o texto de Duras diz de uma mo-dalidade de resposta a uma impossibilidade: seja o impossível de com-preender, o impossível de dizer, o impossível de complementar juntoao outro. Na erótica durassiana, em meio a uma sucessão de cenas mo-nótonas e de aparente normalidade, um evento irromperá para revelar,em um crescendo, as ausências que capturam os personagens.Assumir este tratamento, dar dignidade a este desejo de dizer, requeruma ética que dê conta de acolher e de não recuar diante daquilo que,na palavra, falha em dar conta do real. Dar nome a este impossível,que aqui chamamos de fracasso, a�gura-se como um esforço deresposta que possa perfazer o atravessamento em torno do objetoausente, objeto que mobiliza o desejo mesmo em sua evanescência,para aí insu�ar uma paixão pelo nome faltante. Alain Didier-Weill,psicanalista francês falecido em 2018, dizia que este tempo, umavez alcançado, seria aquele da assunção de um novo lugar, lugar de"comemoração do ser inconsciente como tal, isto é, da partilha dasfaltas mais radicais"(DIDIER-WEILL, 2014, p.68). Nesse últimotempo, nos diz, "o Real como impossível é posto em brasa, é levado àincandescência"(p.68).

Da obra

Uma criança que ainda não sabe, que um dia certamente haverá de saber,que não é educada o su�ciente, que não se esforça o su�ciente, �lho

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constantemente solicitado a retornar à sua posição de objeto, ora damãe, ora da professora de piano. A alternância do vagar com que essacidade previsível se orienta, o sol que desponta, o crepúsculo que seanuncia, o escurecer que retorna, um lugar rodeado da mais absolutaprevisibilidade é assaltado por um ruído que rompe com a monotoniade destinos áridos e teimosos, com seu espesso envoltório soporífero:um grito eclode no recinto.Uma mulher é morta por seu companheiro. Anne Desbaredes repenti-namente se torna cativa de uma curiosidade pela cena sucedida. Há umrecorte emblemático que prenuncia sua mudança de estado. É quandoAnne se dirige ao local do crime e encontra, nos fundos do café, o corpoinerte de uma mulher ao lado do qual jaz um homem, seu companheiro,agarrado ao corpo e que a chama: "Mon amour, mon amour", a bocadele beijando a dela, ambos ensanguentados.A partir daí, testemunhamos um desejo que se apodera de Anne, "arra-sada, indelével, ausente do mundo"(DURAS, 1958/1985, p.23). Ela agoraretornará ao local no dia seguinte, e no outro, e no outro. Dirige-se aobalcão e pede um copo de vinho, depois mais um, e depois outro, man-chando a boca deste líquido vermelho. Conhece Chauvin, homem como qual produzirá este tecido erótico em torno de um evento que exercemais fascínio quanto menos se sabe sobre suas motivações.Doses alcóolicas degustadas com urgência, mãos trêmulas e corpos ator-mentados por uma "outra fome que nada mais pode apaziguar, apenaso vinho"(p.147). Estabelece-se um diálogo que, desde cedo, comparti-lha o lugar de onde provém: Anne em busca de um entendimento, deuma palavra, de um nome que a oriente diante do desvio trazido poreste acontecimento. Não é gratuito assinalar que Chauvin inicia suasconjecturas sempre com a mesma frase: "Gostaria de poder lhe contar,mas não sei nada ao certo"(p.35). Há um desconhecimento central queDuras não abre mão de manter vivo.Anne apenas circunda um desejo que não compreende. Sua abordagemé oblíqua, está siderada por algo que escapa tanto a ela quanto ao leitor.Já não é a mesma mãe alheia e envergonhada que se justi�cava à Sra. Gi-

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raud no dia anterior. Aliás, Anne não tem nenhuma explicação para seusgestos: não sabe porque mente, porque bebe tanto, porque está dessejeito, não sabe qual desejo habitou aquela parceria amorosa e culminounaquele crime. Apenas obedece a uma desconhecida injunção: "Nãopoderia deixar de vir aqui hoje, entende?"(p.41), "teria sido impossívelnão voltar"(p.47). A cada vez acompanhada da bebida que lubri�ca essecircuito que vaga em torno de uma cena inacabada: "o vinho escorreem sua boca plena de um nome que ela não pronuncia"(p.149).Pouco a pouco uma dinâmica se consolida entre ambos: é preciso queo parceiro fale, que sustente uma fala sobre o evento ocorrido, que pro-longue esse estado de desconhecimento e de procura desnorteada. Acuriosidade é cada vez mais siderante: "Como soube a esse ponto o quedesejava dele?"(p.59). A cada vez, Anne se relança em uma nova busca,um novo rodeio, mais longo, com mais espera, com maior suspensão.Quer saber melhor sobre as origens: "Eu gostaria que você me contasse,do início, como eles começaram a se falar"(p.61). "Não sei nada que vocênão saiba"(p.65), sustenta Chauvin, antes de produzir suas fabulações.Os homens entram e saem do café, o sol se aproxima e se afasta, as noitescaem a cada vez, o �lho brinca ao redor do local, a dona do estabeleci-mento ora circula por entre as mesas, ora se ocupa de seu tricô comlã vermelha, enquanto Anne e Chauvin permanecem nesse lugar, umfora-do-tempo que sabe de sua brevidade, siderados por alguma coisaque não se deixa elucidar, sustentados pelo vinho, pela espera, por essaoutra fome.Entre os seios nus de Anne, sob o vestido, há uma �or de magnólia. Noentanto, trata-se de uma �or grande demais, costurada alto demais, pre-gada com descuido, com pétalas ainda rígidas. O erótico escorre nessaausência, nesse aparente descuido que incrementa as páginas da história.O rodeio precisa se repetir: "Eu agora queria que você me contasse comofoi que eles chegaram a nem mesmo se falar"(p.77), e Chauvin, mais umavez responde: "Eu não sei nada"(p. 77), talvez tenha sido assim... tecendoa delicada mortalha que vela a cena faltante. Os personagens sabem queaquele encontro logo acabará.

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O tempo está se esvaindo, os personagens acusam algo que se escorre, seesvai, cientes de um movimento que não serão capazes de deter. "Temosmuito pouco tempo à nossa frente, continue"(p.121), tempo esse quenão chegará ao seu termo, que não poderá suturar a ausência que os en-gaja. Os personagens trocam palavras das quais o leitor está excluído, épreciso consentir nessa condução durassiana. A ambiguidade não se ex-tingue: é preciso continuar... não é possível continuar, fale mais... eu seimuito pouca coisa, não temos tempo... você está cada dia mais atrasada.O �m da história se aproxima, a rotina da cidade se restabelece rapida-mente, as fundições seguirão zunindo, a areia e o carvão continuarãoa ser descarregados no porto, como de costume: "Eu não poderia acre-ditar que isso acontecesse tão depressa"(p.157). Até o último capítulo,Anne se pergunta pelo desejo e a entrega dos amantes envolvidos nacena inicial. À frase "eu gostaria de entender por que"(p.163), Chauvinconclui zelando pela erótica durassiana: "Não vale a pena tentar enten-der. Não se pode entender a esse ponto. (...) Existem coisas, como esta,que é melhor deixar de lado"(p.163).Do fracasso, das considerações �naisA assunção do fracasso, que marca a escrita desse livro, é também aapropriação de um estilo, esse direito de dizer singular, conforme eladisse em 1993:

E mesmo isso que Lacan disse, eu nunca entendi direito. Eu estava es-tupefata com Lacan. E essa frase dele: "Ela não deve saber que escreveisso que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a catástrofe", setornou para mim, essa frase, um tipo de identidade e princípio de um"direito de dizer"totalmente ignorado das mulheres. (DURAS, 1993,p.20)

Em Moderato Cantabile, Anne Desbaresdes se depara com o impossí-vel do amor em um encontro desencontrado. Se nos livros de Duras,até então, tínhamos frases a�adas, diálogos intermináveis, para dizer oimpossível do amor, dessa vez nem o diálogo é possível. É mesmo im-possível saber do amor do homem que matou a mulher no bar. É um

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acontecimento que contamina de desejo a vida maternalmente enclau-surada da protagonista.O ambiente em que se passa o encontro dela com o homem no bar éhostil e indiferenciado: na hora exata todos os funcionários da usinaentram e saem aos montes, como uma onda barulhenta, há o som dosguindastes, as sirenes, a praia toda por atravessar, o excesso de vinho, avelocidade com que se bebe, essa sede, esse calor. Nada disso é apetitoso.A montagem do desejo é cercada de resíduos que fazem brilhar a damada magnólia, a mulher elegante do dono da usina, cuja posição inacessí-vel cai e revela o inacessível do encontro amoroso, do sentido mesmo davida e da morte, o fracasso que captura, o impossível de caber na língua,mas que insiste copo após copo a tapar o impossível, livro após livro.Retomemos as considerações de Barthes (1973/1996) sobre o texto degozo: aquele que atormenta, esburaca o sentido habitual das palavras,das coisas, da vida. Mas a destruição não é sem certa montagem: há oencanto, o prazer, a expectativa pelo dizer que uni�ca e paci�ca. Durasé hábil em oferecer algumas imagens convidativas para daí entremeá-lasaos pontos de silêncio e enigma.Moderato Cantabile: por mais evidente que seja, na primeira cena dolivro, o �lho é incapaz de dizer o que isso signi�ca. O riso da mãe, quesabe desse desencontro entre as palavras e o que elas signi�cam. Mode-rado e cantado é o ritmo desse livro. Logo depois, o encontro capturaAnne Desbaresdes em um enigma que funde o amor e a morte e elapassa a buscar o que isso poderia signi�car, afastando-se da posição dequem ri do desencontro.Querer saber do impossível, esse direito de dizer, essa força da literatura:fazer o real caber na língua. Moderato Cantabile é repleto de elementosque apontam para um mais-além das cenas propostas, ao mesmo tempoem que elas são permeadas por um "ainda não". Essa é a montagem eró-tica que se inaugura nesse momento da obra de Duras: uma insistênciacriadora na linguagem indissociável do reconhecimento da destruiçãode onde ela provém.

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Uma erótica familiar e árida, barulhenta e elegante. A mulher capturadana imagem da mãe e o fracasso lamacento dessa imagem: adúltera, aindaassim seria um charme, nem isso. Nada. Todos os olhos se abrem parao desejo da mulher ébria. O álcool. Talvez com o vinho, o real possaassentar-se no exagero dos gestos e do rubor, mas ainda assim, é semprea longa praia na volta, a criança que a chama, a noite. A miséria tingidade encanto, de riqueza, beleza, uma valsinha ao piano, um gordo salmão,a prataria. Já não é a miséria da Indochina, apresentada em Le Barrage

contre le Pacifique (1950), nem a miséria do casamento e do adultério deLes petits chevaux de Tarquinia (1953), mas é, ainda assim, miserável acondição de Anne Desbaresdes, a condição mesma da escrita.

Referências

(Optamos por incluir a data da publicação da obra original antece-dendo a data da publicação da edição consultada para este trabalho.)

ANDRE, Serge. Flac (novela): Seguida de La escritura comienza donde

el psicoanálisis termina. Ciudad de Mexico: Siglo XXI Editores, 2000.BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,1973/2006.BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica,1957/2013.CARSON, Anne. Eros: el dulce-amargo. Buenos Aires: Fiordo Edito-rial, 1986/2013.DELLA TORRE, Leopoldina. La passion suspendue. Paris: Éditionsdu Seuil, 2013.DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Ja-neiro: Contracapa, 2014.DURAS, Marguerite. Moderato Cantabile. Rio de Janeiro: José Olym-pio, 1958/1985.

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DURAS, Marguerite. Écrire. Paris: Gallimard, 1993.FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. Rio de Janeiro:Imago, 1915/2004.FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plaisir. Paris: Petit Bibliotè-que Payot, 1920/1981.GAUTHIER, Xavière. Boas falas. Rio de Janeiro: Record, 1974.LACAN, Jacques. Seminaire 7: L’éthique. Staferla, 1959-1960.LACAN, Jacques. Séminaire 23: Le Sinthome. Staferla, 1975-1976.

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cinema — margueriteduras e o espectador

emancipadolarissa pinto de melo

Há algo sobre a escritora, cineasta e dramaturga fran-cesa Marguerite Duras; que é um dos fatores cruciais para co-

meçarmos aqui a investigação da sua obra cinematográ�ca, bem comopara entender a potência política que habita seu cinema: ela nasceu nacidade de Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh, no Vietnã. Em umacolônia francesa, foi criada como tal, apesar de sua família ter sofridopreconceitos severos dos demais franceses, por sua condição �nanceirafrágil e também por serem vistos junto aos nativos, em especial Duras,que na adolescência envolveu-se com um jovem anamita, o qual no livro"Cadernos da Guerra e outros textos"138 ela chama pelo nome de "Léo",um nativo que gozava de uma situação econômica privilegiada, vestia-secomo cidadão europeu e frequentemente visitava Paris. No livro é in-teressante como Duras narra não só sua relação de alteridade com Léo,como também como seus olhos captam o tratamento que os nativossofriam na colônia francesa onde vivia:

138Livro composto de quatro cadernos escritos por Duras, sendo o primeiro o "Ca-derno rosa marmorizado", onde os relatos da adolescência vivida na Indochina se-riam a inspiração para o então livro famoso da escritora: "O Amante"(1984).

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Só eram admitidos no colégio de Saigon os anamitas �lhos de cida-dãos franceses. Por outro lado, o porte de trajes europeus era de rigorabsoluto. Em 1931, quando deixei de�nitivamente a Indochina, algu-mas moças anamitas frequentavam o liceu. Eram obrigadas a se disfar-çar de europeias e, em geral, isso lhes caía muito mal e fazia-as sofrer.

[...] Por que essas medidas cuja imbecilidade é imperdoável? Pensoque medidas semelhantes, que podem parecer insigni�cantes à pri-meira vista, não estão longe de serem criminosas. (DURAS, 2009. p-72)

Sua infância e adolescência precárias, constantemente assistindo suamãe viúva em uma batalha diária para manter seus três �lhos, bem comoa eterna tentativa desta mesma mãe de manter uma "imagem"diante doscolonos franceses, certamente contribuíram para uma futura compre-ensão madura de Duras no que se refere às questões da alteridade eexploração no campo político. Parte desta trajetória que envolve essafase de sua vida e principalmente mais tarde as vivências da guerra - aartista fez parte inclusive da Resistência Francesa na 2ºGuerra Mundial-nos apontam diretamente para os temas mais fortes de seu trabalho, sejaescrito ou cinematográ�co: a perda, a dor e, principalmente, a destrui-ção.

Quando a cineasta comentava sobre seu cinema, ela pontuava estarem uma relação constante de "morte"com este cinema, justamentepor ter estado durante muito tempo insatisfeita com o cinema queera feito naquela época e certamente com o predomínio de uma únicalinguagem, uma única forma de se "fazer cinema". A ideia de destrui-ção em sua obra, evidente em alguns de seus �lmes como "Destruirela disse"de 1969, envolve-se muito com a atmosfera que alastrou-sedurante a guerra e no pós-guerra, no trabalho também de outros ar-tistas. Essa necessidade depois do "�m do mundo"de destruição, paraque o novo pudesse, en�m, surgir.

No entanto, a ideia de "destruição"talvez possa ser melhor interpretadapor outro ponto de vista �losó�co, o conceito trabalhado pelo �lósofofranco-magrebino Jacques Derrida, que ele chamou "Desconstrução".Tal conceito culmina na tentativa de uma revisão de pensamentos se-dimentados historicamente, seguindo uma ideia de fragmentação das

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partes, até uma reconstrução desses mesmos fragmentos, cujo fator dedestaque é na verdade, a imprevisibilidade. Em sua tentativa de "assas-sinar as imagens", Duras inaugura uma possibilidade interessante deum anti cinema, onde ela, com seu apreço �el à escrita, faz nascer ummovimento dentro de seu cinema, que aqui podemos chamar a "prima-zia da palavra"diante da imagem. O ponto que conecta os dois repousajustamente em uma ideia de Desconstrução, que não necessariamentetrabalhe a partir de ruínas e da destruição plena, e sim de uma "remon-tagem"no caso de Derrida de conceitos históricos, e no caso de Duras,das imagens e de seus signi�cados reconduzidos através da palavra.Em contos como "O Homem Atlântico"é possível perceber o jogo daescritora em relação a estas palavras "que �lmam", estas palavras que sãotambém imagem:

Você não olhará para a câmera, salvo quando lhe for exigido.

Você esquecerá.

Você esquecerá.

Que é você, você esquecerá.

[...]

Você esquecerá também que é a câmera.

[...]

Você me pergunta: Olhar o quê?

Digo, bem, digo o mar, sim, essa palavra, diante de você,essas paredes

diante do mar,esses desaparecimentos sucessivos, esse cão, esse litoral,

esse pássaro no vento atlântico. (DURAS,1980. p-35-36)

Ao nos debruçarmos na �lmogra�a de Duras, nos deparamos com exem-plos como o curta-metragem "Les mains négatives"(As mãos negativas)de 1979, onde pode-se ouvir a voz de uma mulher que conta uma his-tória sobre impressões das mãos de um homem nas paredes de uma ca-verna, um homem aparentemente solitário. Contudo, as imagens quenos aparecem são, na verdade, �lmagens das ruas de Paris, em algo que seassemelha com um alvorecer em uma cidade vazia, com quase nenhuma�gura humana nas ruas. Existe uma expectativa que é quebrada, uma

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semiótica da imagem que é completamente interrompida. O que é dito,não se vê na tela, o que se vê, não é dito139. Essa desconexão entre imageme palavra nos cria uma terceira dimensão, algo que podemos chamar de"Terceiro Sentido"140, termo cunhado por Roland Barthes, �lósofo fran-cês, para denominar o sentido obtuso da imagem. Um conteúdo quenão pode ser explicado ou demonstrado verbalmente e que, no entanto,sobrepõe-se com tamanha força que ultrapassa os primeiros sentidosinformativos do �lme.Ainda que sua defesa pela palavra dentro do cinema seja incondicional,a cineasta também teve experiências com �lmes quase desprovidos defala, sendo estes "Nathalie Granger"de 1972 e "A Mulher do Ganges"de1973. A letargia presente nos corpos de seus personagens, e também emseus modos únicos de narrar, nos con�rmam o manifesto de Duras pelodireito de desconstruir o que é o movimento, assim como a rapidez quetanto engolia �lmes contemporâneos a ela, os quais assistimos tambémnos dias de hoje. Segundo ela mesma menciona "eu quero retomar o ci-nema a partir do zero, numa gramática muito primitiva...Muito simples,quase primária: não se mover, começar de novo"(Duras 1977a: 94). Re-tomamos aqui mais uma vez o princípio de destruição, ou desconstrução,

que nos interessa politicamente pela possibilidade de ser analisado porexemplo ao lado do conceito de "novo início"da �lósofa política alemãHannah Arendt, que também pôde viver e re�etir sobre a 2º GuerraMundial. Após a queda dos governos totalitários e diante da aura niilistaque acompanhava o mundo inteiro no pós-guerra, para onde iremos?Talvez o mais importante seja: como chegaremos lá?

139Acerca ainda da desconexão entre imagem e som em seus �lmes, deve-se acrescentarque sua linha experimental era intensa ao passo que Duras algumas vezes reutilizou�lmagens de alguns de seus �lmes, para criar novos �lmes, com roteiros novos eportanto também incluindo novas gravações de voz.

140O "terceiro sentido"assemelha-se conceitualmente com o termo punctum traba-lhado na sua obra "A Câmara Clara"(1980), que ele descreve como aquilo queao acaso, nos punge, que seria como uma �echa ou picada intensa, inescapável, écompletamente subjetivo, sendo diferente de pessoa para pessoa, o punctum é jus-tamente o motivo pelo qual uma imagem nos "fere".

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A inércia e até mesmo um certo "cansaço"do corpo e da voz, que encon-tramos na �lmogra�a de Duras, na verdade não está a nos passar umamensagem de passividade, mas parece estar mais intimamente ligadacom a emancipação deste espectador. Ao se deparar com o fenômenodo estranhamento deste �lme que apresenta-se como algo incômodo,se sentirá expulso da sua condição de espectador passivo, trazendo as-sim alguma possibilidade diante da sua di�culdade de leitura daquelahistória que ali se mostra, para que �nalmente se torne ativo.Marguerite Duras certamente teve fortes in�uências do movimentoNouvelle Vague141 dentro do Cinema, que se alastrou como uma ondatambém por outros países, direcionado a uma crítica dura aos �lmeshollywoodianos que mantinham uma linguagem de roteiro voltadapara a "Jornada do Herói"clássica. Estes �lmes mantinham-se em umconstante exercício de manutenção de certos valores e costumes do en-tão considerado "cidadão americano", ainda que também houvesse al-gumas representações de personagens "rebeldes". Em suma, os roteiroseram imersos em uma espécie de "rebeldia sem causa"que raramenteapontava para uma verdadeira crítica ao pensamento condensado vi-gente na época.A cineasta ia contra a maré do espectador que encontra-se desapossadode si, e contra essa ideia construída e mantida ao longo da história, deque ser espectador é esperar, estar em pleno conforto. Em "Les mainsnégatives"(As mãos negativas) a voz ao fundo do �lme conversa com oespectador em um momento, ou quase isso: "Você que tem um nome,uma identidade, eu te amo."A revolução imagética que parte de umalentidão poética em Duras nos diz claramente, "Olhar não é ver.", como

141A Nouvelle Vague foi um movimento cinematográ�co francês criado em suma porcríticos de cinema da revista "Cahiers du Cinema", inspirado também em correntes�losó�cas de sua época, como o existencialismo por exemplo. A Nouvelle Vaguenão apenas voltava-se para uma ruptura com o roteiro tradicional da época, comotambém inovou tecnicamente, utilizando-se técnicas como o "Jump Cut"e câmerana mão. A descontinuidade do tempo e personagens "anti-heróicos"eram destaqueno movimento. Seus principais nomes foram Agnès Varda, Alain Resnais, Godarde Tru�aut.

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também encontramos no livro "O Espectador Emancipado"de JacquesRancière:

Primeiramente, olhar é o contrário de conhecer. O espectadormantém-se diante de uma aparência ignorando o processo de produ-ção dessa aparência ou a realidade por ela encoberta. Em segundo lu-gar, é o contrário de agir. O espectador �ca imóvel em seu lugar pas-sivo. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidadede conhecer e do poder de agir. (RANCIÈRE, 2017. p-08)

O mundo ao redor é construído, condensado, catalogado por imagens,e quem somos nós diante delas? Pouco compreendemos sobre seu cará-ter operativo e sistêmico e portanto somos levados diariamente a umaconservação de sensação de impotência sobre elas. Ao passo que, contra-ditoriamente, em tempos atuais, esteja tão fácil e até mesmo compulsó-ria a possibilidade de tomada de posição e também de produção destasimagens desenfreadamente. Esta facilidade está, através dos celulares,literalmente em nossas mãos.Quando Hannah Arendt se debruça acerca do político, também fala deuma problemática que se insere justamente na "inércia"da massa, ondea população de determinado país parece não se comprometer com odestino político pois acreditam não participarem dele. O que �ca invisí-vel é precisamente outro fato que podemos também retirar inspiraçãona obra do �lósofo holandês Baruch Spinoza: aqueles que não fazemparte das causas diretas das coisas, consequentemente são causa parcialdestas mesmas mudanças. Não há "fora", uma vez que todos obrigatoria-mente vivemos de acordo com a teia política que envolve uma sociedade.Ainda que, fora de equilíbrio, o predomínio do poder seja excludenteda maioria. Nos parece que, assim como Hannah Arendt, o cinema deDuras nos imprime a necessidade da Ação, o que conceitualmente não étão fácil de ser apreendido, uma vez que primeiramente o espaço para talnão é público como realmente deveria, muito menos assume a respon-sabilidade para com o plural. E segue-se uma pergunta que levantamosneste texto: como exatamente criamos este caminho até este espaço?

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Primeiro, é preciso surgir o que vamos chamar compreensão, termo tra-balhado por Arendt, que vai além da mera ordem de signi�cado do"compreender". Trata-se de uma segunda e portanto mais profunda ma-neira de acessar os eventos contemporâneos que nos atravessam, pois, deimediato, nossa primeira reação ao fenômeno está voltada, segundo ela,a uma primeira compreensão, o que fatalmente nos leva a gerar uma re-�exão baseada nas mesmas ferramentas que temos usado até então. Aca-bamos utilizando, assim, mais uma vez os mesmos nomes para explicaros fenômenos que consideramos "parecidos"com outros que podemosvivenciar ao longo da história. Depois de uma verdadeira compreensão,

que vai além das primeiras camadas de respostas, podemos então chegarao segundo passo, que é certamente encontrar nossas próprias ferramen-tas para ajustar este nosso caminho do "compreender". O importanteaqui é voltar-se para as minúcias, estas minúcias que fazem parte dahistória de um país em particular, bem como da história das imagensdeste mesmo país, de seu povo, deste cinema. O agir que tanto HannahArendt aponta, como Duras de certa forma também, é este elementoque inicia algo novo, com seus próprios recursos. Por isso também ve-mos toda a poética de Duras como algo extremamente pessoal, comparcelas grandes de sua vida e história, a dor vista nos escritos e tambémna tela, que é ao mesmo tempo íntima e faz com que nos identi�que-mos, Duras torna essa dor que parece privada, solitária, em uma dorque pode ser compartilhada, e portanto também pública, parte de umespaço democrático que faz parte da arte e também do cinema.O cinema hollywoodiano que causou certo desgosto em Duras, nos ci-neastas da Nouvelle Vague, bem como nos cineastas do Cinema Novo142

142O Cinema Novo foi um movimento cinematográ�co, intelectual e poético, que ti-nha como escopo o "fazer cinema"genuinamente brasileiro, voltar-se também a cul-turas que eram engolidas e negligenciadas, como a cultura nordestina, mostrandoassim também a realidade intensa de desigualdade no país. Ganhando dimensãointernacional, os �lmes do Cinema Novo foram exibidos em vários festivais pelomundo. Concomitante ao movimento Nouvelle Vague, o Cinema Novo na ver-dade trazia o diferencial de ser mais ativamente político do que o movimento fran-cês.

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aqui no Brasil, despertou uma revolta contra a perpetuação do espec-tador que sofre da impossibilidade de uma consciência decisória, esteespectador passivo.O que torna este texto não apenas uma conversa sobre a obra cinemato-grá�ca da cineasta, mas também faz um convite para o �losofar, quandoa pauta torna-se: se você, espectador/espectadora ou cidadão/cidadã nãoconsegue cultivar decisões, se não sabe, ou não foi estimulado a decidir,quem você se torna?A automatização que Hannah Arendt traz em sua crítica ao totalita-rismo, ao comportamento do indivíduo pavloviano 143 pode e deve serpensada também no campo das imagens. Estamos em um contínuoconsumo destas mesmas imagens, que repetem-se, da linguagem "crista-lizada"de um mesmo cinema, que nos ensinam uma única maneira denos relacionarmos com a vida, com o amor, com a memória, e tambémcom a dor. Torna-se também mais real a possibilidade de cultivarmossem nem perceber, um olhar cansado diante desta automatização dasimagens, e fatalmente um olhar também cansado diante da vida.Por isso, retomando os apontamentos relativos ao espectador quedepara-se com um �lme de Duras ou qualquer outro que lhe pareçaestranho, di�cultoso de manter ali o olhar, o interesse, questionamos:talvez não esteja esse espectador, perdendo aos poucos,sem saber, o inte-resse e a insistência diante de sua própria vida? Hannah Arendt nos trazcom a Filoso�a Antiga um conceito que pode nos servir nesta provoca-ção, a ideia de "Espanto"que os antigos dizem ser condição necessáriado �losofar e de seu nascimento. Tratando-se do Cinema e da escrita deDuras, que trazem consigo tanto a palavra, como um silêncio oportuno,este "Espanto"da Filoso�a também estimula um silêncio, pois o ato de�losofar exige algo como uma suspensão da linguagem.No trabalho de Marguerite Duras, também é possível fazer uma investi-gação no que refere-se ao ato de sofrer e principalmente à importância

143Ivan Petrovich Pavlov foi um �siologista responsável pela pesquisa acerca do con-dicionamento clássico. Sua pesquisa foi inspiração essencial no campo de estudosdo behaviorismo.

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da memória deste sofrimento. Podemos traçar uma comparação muitooportuna e fenomenológica144 a partir desta perspectiva: se na �loso-�a de Arendt; os sofrimentos devem ser visualizados de forma "mun-dana"e estão diretamente ligados à maneira pela qual compreendemoso mundo, estes mesmos sofrimentos são nossos, mas não "nascem"denós, eles são dados na verdade, pelo mundo, através da historicidade

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dele. Do ponto de vista da própria Duras, ela fala sobre uma escritaque vem da exterioridade, deste "fora"e não de dentro, e complementamencionando que é preciso deixar esta mesma escrita em um estado de"aparição". Isso muito tem a ver com sua provável inspiração no movi-mento da Filoso�a fenomenológica francesa da sua época, que consistiajustamente na defesa de uma investigação intelectual voltada para a exte-rioridade deste mundo, com cuidado imenso acerca das interpretaçõesextremamente subjetivistas - ainda que Duras, nos pareça sempre tãoíntima dentro de sua poética - pois as mesmas podem desenhar ummundo completamente irreal e também excludente. Arendt defende aolongo de sua obra essa responsabilidade com os fenômenos "nus", coma vida assim também nua, sem as maquiagens criadas por suposiçõesque podem não estar exatamente de acordo com a realidade material.Essa escrita, essa inspiração que, para Duras, vem de fora, age em defesade abrirmos nossos olhos não apenas �loso�camente, mas também po-eticamente para as belezas presentes nas coisas terrenas. Traz mais umavez essa abordagem ativa e necessariamente criativa diante da vida, parainspirar o espectador seja ele artista ou não.Outra análise interessante repousa na atmosfera de "ausência"do tempoem seus �lmes. Se continuássemos nossa análise pelo ponto de vista fe-nomenológico, poderíamos ser contraditórios, pois essa corrente pauta-

144A fenomenologia é uma corrente �losó�ca voltada para a análise e compreensãodos fenômenos pelas "coisas mesmas"e foi defendida por �lósofos como EdmundHusserl, Edith Stein e Heidegger. Também inspirou �lósofos e �lósofas francesescomo Jean- Paul Sartre e Simone Beauvoir.

145O termo "historicidade"neste caso serve como apropriação do mesmo conceito de-senvolvido por Heidegger no livro "Ser e Tempo"de 1927, que pode ser entendidocomo uma elaboração mais material da temporalidade.

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Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

se principalmente no princípio da temporalidade humana, que envolve-nos a ponto de não podermos "escapar"dela facilmente. O escopo queseguimos aqui , não poderia de forma alguma tentar catalogar de�niti-vamente a obra da cineasta, ademais por ser uma impossibilidade, comoacontece não só em relação a sua obra, mas também com outros artis-tas que são estimulados pelo �o etéreo do "desvio", por uma espécie decurva, ou até mesmo, em apropriação declarada a Jacques Derrida, peladefesa de um quase-conceito , que imageticamente podemos visualizarcomo um círculo aberto, que não se fecha.Os aspectos fenomenológicos que nos fazem prestar atenção à impor-tância imponderável do tempo dentro da forma como construímosnosso mundo, comportamento e até mesmo pensamento, deixa claroque na verdade faz todo o sentido que o espectador ou espectadora quese depare com um �lme de Duras sinta-se, de início, inquieto ou inqui-eta, perguntando-se onde se encontra o tempo que tanto nos é caroe elementar. A confusão gerada é íntima da essência de tudo aquiloque envolve o poético: a sensação de pés fora do chão, cabeça fora deordem e corpo sem lugar. A potência política de seu cinema encontra-se justamente na oportunidade da transformação: apaixonar-se, �carintensamente triste, espantar-se, ou até mesmo ter a sensação de desa-grado, de impaciência. O que de fato é difícil é não sentir absolutamentenada diante do cinema durassiano: o espectador será de alguma maneiraatingido.

Referências

ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2018.AYER, Maurício. Marguerite Duras: O Cinema como ato político. In:AYER, Maurício e KUNTZ Cristina Vianna. Olhares sobre Marguerite

Duras. São Paulo, 2014. p- 07 - 08.

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Larissa Pinto de Melo

ACIOLI, Roberto. O Silêncio de Marguerite Duras. Site"Cinema Europeu". 18 de Outubro de 2015. Disponível em:https://cinemaeuropeu.blogspot.com/2015/10/o-silencio-de-marguerite-duras.html[https://cinemaeuropeu.blogspot.com/2015/10/o-silencio-de-marguerite-duras.html]{.underline} Acesso em: Agosto de2019.RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo. EditoraWMF, Martins Fontes, 2017.DURAS, Marguerite. Cadernos da Guerra e outros textos. São Paulo.Estação Liberdade, 2009.DURAS, Marguerite. O Homem Sentado no Corredor/ O Homem

Atlântico. Rio de Janeiro, Petrópolis. 1980.DURAS, Marguerite. Les Lieux de Marguerite Duras. Paris, Les Éditi-ons de Minuit, 1977.

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na letra, a âncora: umaleitura de a dor demarguerite duras

tatiane frança

É impossível falar de Hiroshima. Tudo o que podemos fazeré falar da impossibilidade de falar de Hiroshima.Marguerite Duras

Ruínas agora são os nossos jardins.Anna Tsing

"Como pude escrever isto, que ainda não sei nomear eque me assombra quando releio?"(DURAS, 1986:8). Essa frase

está presente na página que prefacia o primeiro dos cinco cadernosde Duras publicados em 85. O conjunto desses textos se chamaria"A guerra", mas Duras modi�cou e deu a ele o mesmo título do pri-meiro dos cadernos, o qual lerei aqui: "A Dor". O título condensa esse"isto"não nomeável, assombroso, cujo horror será testemunhado poruma letra, "extraordinariamente regular e calma", que abarca em seucaráter aparentemente metódico uma "desordem fenomenal do pensa-mento e do sentimento."(DURAS, 1986:8).

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A guerra atravessa a vida e a obra de Marguerite Duras com grande in-tensidade e é para a autora de O amante "antes o nome de um estadoque de uma época, mais uma experiência de vida do que um conjuntode eventos históricos", como elabora Sophie Bogaert.146

A dor é umadessas experiências, centrada numa espera agonizante e em uma sus-pensão insuportável. Sem saber se seu marido, Robert Antelme, preso edeportado pelos alemães no �m da Segunda Guerra, está vivo ou morto,Marguerite escreve um diário onde testemunha a solidão, o medo e abarbárie trazidas pela guerra, concebendo uma obra que costura o relatosubjetivo e individual na defesa da memória e da resistência coletivas.A dor é escrito em um movimento duplo entre o individual e o coletivo,entre quem testemunha e quem escreve, entre a vontade de vida e a som-bra de morte. Duras cria o encontro entre esses pontos e funda com suaescrita uma possibilidade de fazer face ao impensável, ao indizível, e ofaz justamente pensando e dizendo nas letras, ensaiando um sobreviveratravessado pela escrita, dependente dela. É assim que projeta um gritosurdo, que rasga a aparente calmaria da letra, e faz da página sua barra-gem contra o avanço da barbárie, deixando ecoar pelos anos a vir esserugido contra o esquecimento e pela memória daqueles que sofreram.O presente texto será desenvolvido em duas breves re�exões, que se en-trelaçam: em um primeiro momento, o foco será a relação entre os cor-pos de Marguerite e Robert L. -- nome que ela dá a seu marido noscadernos. Ou será ainda, mais precisamente, sobre a impossibilidade docorpo de quem escreve se sustentar sozinho, amalgamando-se assim àimagem projetada do corpo possivelmente morto de Robert Antelme,junto a milhares de outros, no fundo das valas da guerra.Seguindo por esse caminho, procuro pensar em um segundo momentocomo esse drama da espera por Robert L., e o horror doloroso que vemcom ela, costuram-se a um tecido maior: ao tecido das histórias de ou-tros e outras que também dolorosamente esperaram, que sobreviveram,

146Em Cahiers de la guerre, 2006: "plutôt le nom d’un état que d’une époque, d’uneexpérience de vie que d’un ensemble d’événements historiques"

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e ainda àqueles e àquelas cujas histórias não puderam alcançar a luz dodia, cujas palavras não puderam ser ouvidas.Na vala escura

"A pulsação nas têmporas persiste. Esse latejar nas têmporas tem queparar. Sua morte está em mim."147

Não se escreve sem a força do corpo, disse Marguerite em seu Écrire. Naescrita de A dor, lemos um corpo que ensaia sua força enquanto lateja,em suspensão de sua forma, sem conseguir achar seus contornos ou seapoiar nas próprias bases. Esse corpo está colado a um outro, distanteem matéria mas presenti�cado pela memória e pela imaginação. Estáincorporado como que em simbiose ao de Robert Antelme, beirandoo que Kristeva chamou de "os limites perigosos em que desmorona aidentidade do sentido, da pessoa e da Vida."(KRISTEVA, 1987:206).Na espera interminável, Marguerite habita um ponto sem luz vertigi-noso, encerrado em si mesmo, presa em um ciclo que vai da certezada morte do marido à esperança de seu retorno. Em sua escrita, Ro-sana Kohl-Bines aponta que a forma da narrativa é "minada uma e ou-tra vez para abrir zonas de comunicação com o marido que imaginamorto."(KOHL BINES, 2015). Seu corpo responde a essas zonas de co-municação de formas distintas, como nas passagens a seguir:

Não saio do lugar. É preciso não fazer muitos movimentos, não des-perdiçar energia, guardar todas as forças para o suplício. (DURAS,1986:10)

Morreu há três semanas. Foi isso, foi isso que aconteceu. Tenho essacerteza. Ando mais depressa. (DURAS, 1986:12)

Com a primeira passagem, percebe-se que há uma necessidade de va-zio. De anular o movimento, de interromper o curso do corpo, da vida.Uma necessidade de suspensão dentro daquilo que já está em suspenso:a espera, a ausência -- de corpo, de calor, de resposta. É preciso abrirespaço para a dor, avassaladora, mas é imperativo se manter imóvel para

147La Douleur, 1985.

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retê-la ali, para capturá-la. Assim, na tentativa de suspender o tempo,se constrói um efêmero paradoxo: a dor, em seu momentâneo in�nito,toma o vazio e impede que ele seja ocupado pela morte. No instanteimóvel, o suplício da espera surrupia o lugar da morte.A segunda passagem mostra como costuma vir de um só golpe essa cer-teza: Robert está morto. A pergunta que sustenta a espera é respondida,e essa resposta afoga o possível, impede a respiração. O corpo imóvel setorna agitado, descontrolado, quase com ânsia de sair de si. Se Margue-rite espelha o corpo de Robert ao longo de suas anotações, imaginandosua morte na vala escura ao seu lado, nos momentos em que adquirea certeza de que está morto, seu corpo perde sua referência. Não temmais o que espelhar, encontrando-se perante um novo tipo de vazio.Não o do suplício, o do espaço da dor, mas um vazio onde nada cabe enada se vê. Por isso ela anda mais depressa, corre pelas ruas da cidade etoma caminhos inesperados. Porque o corpo perde sua imagem, e tenta,com seus movimentos desenfreados, exilar-se de si e busca, em espas-mos e chacoalhadas, reencontrá-la, efetuando, como disse Bines, "umdespovoamento em direção ao fora de si". (KOHL BINES, 2015)As imagens desenfreadas de Robert morto possuem alguns desdobra-mentos. Leio agora outra citação: "Ao longo de todas as estradas daAlemanha outros corpos estão estendidos em posição igual à dele. [...]Ele que está ao mesmo tempo contido nos milhares de outros e des-tacado dos milhares de outros apenas para mim, totalmente separado,só."(DURAS,1986:13). Robert é aquele cujo corpo é o mesmo de Mar-guerite, cuja vida se respira na dela e cuja existência ela mantém na pá-gina, em um alternante jogo de vida e morte, de presença e ausência.Porém, e mais ainda, Robert é aquele que encarna o crime contra a hu-manidade, estando no eixo representativo do entrelace da tragédia indi-vidual com a tragédia coletiva. Ele é um corpo entre milhares e tambémo corpo entre milhares.Outra citação: "Ele morreu há quinze dias. Há quinze noites, quinzedias, desprotegido numa vala. A sola dos pés ao ar livre. Sobre seucorpo, o sol, a poeira dos exércitos vitoriosos."(DURAS, 1986:15). Ro-

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bert, morto, sob a poeira dos vencedores. Nessa citação, a tradutoraincluiu o adjetivo "livre", que não está no original, o que faz a leiturada passagem em português se tornar ainda mais sufocante, no contrasteque se cria entre o sintagma "ao ar livre"e os cadáveres empoeirados navala. A vitória marcha sobre aqueles que perdemos, sobre as esperasintermináveis, sobre liberdades subtraídas, sobre Robert.A morte do marido, representada muitas vezes no caderno enquantoMarguerite esperava notícias, eterniza no texto um apelo a seu retorno,mas também �rma um compromisso com a memória: ainda que Robertregresse, milhares de outros corpos permanecerão nas valas, sob a poeirados vencedores. Não há como verdadeiramente vencer essa guerra, pode-se apenas estancá-la.Hélène Cixous diz à Foucault em suas conversas que Duras escreve umaliteratura da perda. Em A dor, Robert Antelme retorna, um sobrevi-vente do horror, e conta seu testemunho dos campos. Todavia, algonão de todo apreensível foi perdido. Termina-se a espera, mas algo nãoretorna, continua em suspensão, encapsulado na experiência interminá-vel da guerra. Robert será sempre aquele que morreu na vala mil e umavezes na imaginação de Duras. Sua presença será marcada por Duraspor uma negativa e a totalidade da presença de Robert Antelme jamaisserá recuperada. Como diz Duras ao �nal de seu livro, ele sempre seráaquele que não foi morto no campo de concentração.Partilhar o crime: um compromisso com a memóriaParto, mais uma vez, de uma citação de *A dor: *

"Pertencemos a essa parte do mundo onde os cadáveres são amonto-ados em um emaranhado de valas comuns. Isso está acontecendo naEuropa. Os judeus são queimados aqui, aos milhares. É aqui que cho-ram por eles."(DURAS,1986:55).

Marguerite é parte integrante desse aqui onde se queimam judeus. Parteda terra europeia, em que os antes conhecidos limites da barbárie hu-mana foram pulverizados. Em seu artigo Escrever entre ruínas: Margue-

rite Duras e a dor da memória, Ana Paula Coutinho fala sobre "a im-possibilidade de escrever literatura [...] como se não tivesse existido esse

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plano monstruoso de destruição maciça, obrigando a repensar, a par-tir daí, todas as formas de representação do humano."(COUTINHO,2015:124). Encaro que esse livro de Duras, em sua narrativa crua e do-lorosa, ensaia formas de representar a vida sob o domínio da barbárie,para não deixar calar a memória da dor, instaurando com seu relato umtremor para fazer o horror reverberar a cada página virada.148

Em seu prefácio, Marguerite diz que não imagina poder ter escrito ocaderno esperando Robert. Essa aparente impossibilidade de escreverenquanto espera faz pensar no que diz Seligmann-Silva sobre a necessi-dade de um outro para narrar o testemunho, que tome a palavra quandoaquele que viveu não é capaz de contar. Isso demonstra também queMarguerite teve na escrita um apoio, a emergência de uma sobrevidaque se desenvolveu para segurar o craquelamento psíquico daquele queestá prestes a sucumbir.O testemunho dado por Duras nessas páginas se integra àquilo des-crito por Agamben em O que resta de Auschwitz, sendo "uma potên-cia que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e umaimpossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidadede falar"(AGAMBEN, 2008:147). Dessa forma, em um duplo movi-mento, escrever é a âncora que permite manter-se vivo e também o barcoque permite transpor a morte, e atravessá-la sem perder-se dentro dela.Como bem o diz Rosana Kohl-Bines, "ao �m e ao cabo, escrever é umato que anima e restabelece aquele que escreve."(KOHL BINES, 2015).Duras complementa, ainda em seu prefácio, que sente vergonha da li-teratura ao reler esse texto. A palavra "vergonha"destaca esse livro doconjunto da sua obra, marcando uma distância entre as possíveis for-mas de escrita do fazer literário. Kohl-Bines lê de forma interessante ouso dessa palavra:

O que se antecipa no prefácio é antes uma constatação da necessidadeurgente de se recon�gurar o espaço literário num mundo esfacelado,

148"Os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras o horror extremo con-tinua a tremer"(ADORNO; HORKHEIMER, 1963, P. 68 Apud. SELIGMANN-SILVA, 2016).

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que não comporta mais o encadeamento plácido das palavras. Umaliteratura que siga incólume à destruição não merece ser praticada oulida, é o que parece dizer o sintagma. (KOHL BINES, 2015)

A literatura não pode seguir incólume à destruição. Isso se justi�caquando lemos a seguinte proposta de Duras: "A única resposta para essecrime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-lo. Assim como aideia de igualdade, de fraternidade. Para suportá-lo, para tolerar a ideia,partilhar o crime."(DURAS,1986:58). É necessário à literatura tomar aparte que lhe cabe desse crime contra a humanidade, dessa aniquilaçãobarbárica. O compromisso dessa partilha é um compromisso com a me-mória, contra o apagamento. Tomar a responsabilidade do crime parajamais eximirmos a culpa que ele traz consigo, para que em cada umde nós essa culpa resida, pungente, intranquila, fazendo-se incômoda enão esquecível.Em seu livro Essayer Voir, Didi-Huberman a�rma que a arte e a poe-sia se fazem necessárias para que se rasgue a bolha da barbárie, e mais,cito suas palavras, "para nos lembrar que os lugares totalitários, tão e�-cazes que sejam, jamais farão desaparecer completamente essa ’parcelada humanidade’."(DIDI-HUBERMAN, 2014:10). Esse trabalho de dordos cadernos de Duras são a�ados, perfurantes da bolha, mas sobretudoresistentes. Resistem aos ataques da guerra carregando um relato quepertence a todos, partilhando também o sofrimento e fazendo com queecoe, para que não se perca a memória da dor, daquilo que é essencial-mente humano.Em Paris já liberta, uma Duras que olha pela janela diz: "A cidadeiluminada perdeu todo o signi�cado que não seja este: é signo demorte, signo de amanhã sem eles."Diz ainda: "A paz já se faz notar.Como se fosse uma noite profunda. É também o início do esqueci-mento."(DURAS,1986:57). Essas duas passagens contrastam a presençada luz e da noite numa combinação inusual: a luz da cidade é signode morte, de um amanhã que não nascerá, de um dia eterno que nãopoderá ser superado ou vencido; a paz, por sua vez, é a noite, signo doesquecimento, representante de uma escura neblina capaz de obstruir

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a claridade cegante emitida pelo massacre. A claridade da morte, crua eimpiedosa.Duras, perante a dolorosa experiência da espera, do horror e da morte,escreve. E é pela escrita que pode durar, permanecer agarrada a algo paranão submergir. Cito Didi-Huberman, quando diz que "é pela luta de to-dos os instantes, um ensaio sempre a recomeçar, que nos debatemos comesse inominável de nossas experiências, de nossa falha constitutiva di-ante da opacidade do mundo e de suas imagens."(DIDI-HUBERMAN,2014:71). A dor é esse ensaio de Marguerite em dizer, essa tentativa de ela-borar a partir daquilo que manca na linguagem, valendo-se dessa mesmalinguagem falha para compor com a letra um caminho esburacado, masque, apesar de tudo, se funda.No caderno, ela diz estar "[s]empre voltando para o âmago dolorosodo pensamento."(DURAS, 1986:38). Em francês, "toujours en allée aucoeur de l’absolue douleur de la pensée."Estamos diante de um eternoretorno ao âmago da dor absoluta, que permanece em ferida e não co-agula nem com o retorno de Robert dos campos de concentração. Orasgo causado pela barbárie é, em suas páginas, mantido aberto, exalandomorte e caos, fazendo ecoar na história um apelo à memória ao mesmotempo que um lembrete da capacidade humana em aniquilar-se, comoum aviso para que tal crime não se repita. Do nó de sua dor absoluta einsuperável, ela escreve, junto a e para aqueles e aquelas que esperam,que sofrem, que nunca voltaram.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Tradução de SelvinoJ. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.BINES, Rosana Kohl. "Longe dele, longe dela". In: RED --Revista de Ensaios Digitais, Rio de Janeiro, Número 1, 2015.Disponível em: http://revistared.com.br/artigo/66/longe-dele-

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Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras

longe-dela[http://revistared.com.br/artigo/66/longe-dele-longe-dela]{.underline}.COUTINHO, Ana Paula. "Escrever entre ruínas: Marguerite Duras ea dor da memória". In. Libretos, n. 4, p. 121-136, abril 2015.DIDI-HUBERMAN, Georges. Essayer Voir. Paris : Éditions de Minuit,2014.DURAS, Marguerite. A dor. Tradução de Vera Adami. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986._________________. Cahiers de la guerre et autres textes. Édition éta-blie par Sophie Bogaert et Olivier Corpet. Paris : P.O.L., 2006._________________. Escrever. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994.FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras. (Entrevista com H.Cixous)"In. Cahiers Renaud-Barrault, n. 89, outubro 1975, p. 8-22.SELIGMANN-SILVA, Márcio. "Literatura e trauma". In. Pro-Posições, 13(3), p. 135-153, 2016. Disponível em:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643943

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des(cons )truir, ela dizana kiffer

Je suis née nulle partM. Duras

1. delinear:

Marguerite Duras (1914-1996) é uma daquelas autoras que nu-triu ao longo de minha vida, de modo profundo e incluso inconsciente,um certo funcionamento crítico e uma máquina escriturária queainda hoje me acompanha. Por isso mesmo escolhi por muito temponão falar sobre a sua obra. Carreguei comigo muitas das pergun-tas que ela indicava — a solidão e a escrita, o corpo como marcada letra e vice-versa, o horror da vida (da morte e da guerra) e a(im)possibilidade de narrar, o silêncio como máquina da narrativa,entre outros. Perguntas que, de uma certa maneira, foram construindoum horizonte de questionamento. Um modo crítico de pensamento.Não necessariamente pelas respostas que engendrariam, são poucasas respostas ofertadas no universo durassiano, mas pelo modo comoperguntamos incessantemente.Também esse incessante, que poderíamos chamar de intensidade, deenergia ou força intensiva que percorre os modos de enunciação deDuras, ao longo de toda a sua obra, vem sendo o eixo estruturante deminhas pesquisas acerca das relações entre corpo e escrita desde que in-

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des(cons)truir, ela diz

gressei no mestrado em 1994. Quer dizer — como pensar não o corponarrado ou representado, mas os modos de irrupção desse compostoque chamamos corpo no seio da escrita. Decerto voz e ritmo, presen-ças ausentes no texto, mas ali marcadas, indicadas podem delinear aquestão. Presenças incluso reivindicadas nessas peças-textos que aguar-dam a voz do leitor, ator, performer. Mas ainda as interrupções, essessilêncios falantes, essas suspensões narrativas que funcionam como es-cansões poéticas no seio da prosa �ccional de Duras ajudam a delinearessa �gura presente-ausente de um corpo intensivo na escrita.Corpos intensivos que atravessam toda a sua escrita, que a nutrem numaespécie de estrutura desestruturante, entre sopro e as�xia — diferençae repetição.Esses corpos intensivos que venho pensando sobre as �guras do traçoininterrupto quando a escrita deambula entre letra e desenho (Artaud,Bourgeois); essa força compulsiva e compulsória que nos obriga a es-crever em constrangimento — uma coação escrituraria (Duras, Beckett,Lispector); esse risco entre constituir-se através da escrita ao mesmotempo em que escrevendo nos destituímos149 de um eu idêntico a simesmo ou coincidente com o que nos cremos ser. Logo, uma fenda en-tre o processo de constituição identitária, de subjetivação, e o processode abertura ao que não se é – abertura ao comum do mundo, esse lodomaterial e não só fantasmático do todo-mundo (Glissant, 1990).Esse é o crivo que me aproxima perigosamente da obra de Duras. Digoperigosamente dado que toda compulsão aproxima e repele, indica anecessidade de cautela e limite, buscando interpor dobras, entranhas,bordas para que ela viva e nós sobrevivamos — e vice-versa.Foi assim que este texto buscou se tecer — entre a interrogação�utuante e a reverberação fulgurante dos corpos intensivos de Duras.Entre deixar que sua voz habite o ritmo do que aqui escrevo, soprandoem meu ouvido, e a tentativa de limitar o mimetismo cacofônico.Algo disso tudo inevitavelmente o habitará. A pergunta que percorre

149Tema que desenvolvo do livro Do Desejo e Devir — o escrever e as mulheres, SP,Lumme Editora, 2019.

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Ana Ki�er

este texto foi uma só todo o tempo: o que me separa de Duras ede sua geração depois de termos por tanto tempo vivido juntos?O que hoje me parece fundamental como gesto crítico que possacriar uma dobra ou uma borda ao lado do gesto desconstrutor emesmo destruidor (da linguagem e do corpo) que a geração do pós-guerra viveu, pensou e encenou? Qual é hoje a guerra que enfrentamos?

2. quase-dizer escrever

Hoje amanheceu chovendo, está úmido, tenho frieira e calafrio.Penso na casa que vivi. Na que foi derrubada. Na última casa, transitó-ria. Penso na volta à casa, e aí já não penso. Ou quase. Há um quase nãopensar quando penso nesta casa. Nesta língua que me habita. E quasepenso como pude ser habitada tantos anos por essa língua outra queela fala. Ela fala tão fundo no que quase penso. No que quase sou. Noque não penso. Que nunca pude de fato pensá-la. Acabei guardando-ano armário velho daquela casa. A dela. Ela tão impensável quanto ele.Ali separado do mundo.Aqui acordo com o canto dos pássaros. Lá, só no verão uma gaivotaperdida. Desgarrada. Regurgitando as sirenes das ruas e das grandes ave-nidas. Mas um silêncio permaneceu em todas as casas por onde passei.Ela disse que o tipo de silêncio que se seguia à partida deles ela o guarda

em sua memória. Que entrar nesse silêncio era como entrar no mar. Que

era ao mesmo tempo uma felicidade e um estado muito preciso de aban-

dono a um pensamento em devir, que era um modo de pensar ou de não

pensar talvez — que um não é longe do outro, ela disse — e que já era

então escrever. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.54).Hoje penso, quase penso, como poderei aqui, com vocês, quase pensá-la.Penso se quase-pensar seria como um modo de pensar tocando. Por issotalvez quase pensar é ouvir os ruídos do silêncio. Essa espécie de aban-dono. Que em silêncio habita tudo o que ela diz. Então vejam que eu

escrevo para nada. Escrevo como é preciso escrever, me parece. Escrevo para

nada. Sequer escrevo para as mulheres. Escrevo sobre as mulheres para es-

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des(cons)truir, ela diz

crever sobre mim mesma, sobre eu mesma sozinha através dos séculos. Eladisse. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.59).Quase penso nessa solidão através dos séculos. Numa irmandade ima-nente. Num bloco cimentado, simultaneamente ruidoso e silenciosoque atravessa os tempos e as casas. As mulheres. Penso que ela mesmasozinha através dos séculos somos todas nós. E ainda. Quase penso,penso muito insistentemente neste ainda. Como vive hoje, entre nós,este ainda? Penso ainda que essa casa -cimento e ruína- que atravessatodas as casas, foi plantada na �oresta e depois guardada no armário. Eque escrever para nada, esse quase penso, é in�ltrar nos muros da casao musgo que irá derrubar a própria casa. Ficará talvez apenas o armário.Na língua estranha que ela deixou. Que quase tocamos. Sem pensar, ejá escrevemos.Ela disse que existem mulheres que jogam fora. Eu jogo fora muitas coisas.

Durante 15 anos jogava fora os meus manuscritos tão logo saía o livro. Se

busco o porquê penso que era para apagar o crime, desvalorizá-lo aos meus

próprios olhos, para que eu ficasse mais adequada ao meu meio, para ate-

nuar a indecência de escrever quando se é uma mulher, isso faz apenas 40

anos. Eu guardava os restos dos tecidos da costura, os restos dos alimentos,

mas isso não. Durante dez anos queimei meus manuscritos. Até que um

dia alguém me disse: “guarde-os para o teu filho, nunca se sabe”. (Duras,1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70). De fato, nunca se sabe.O fogo que queima nela ainda queima a todas nós. Ainda queimam ospapéis nos armários. Como restos de tecido ou de comida. A comidaque falta à mesa, mesmo quando posta. A desordem ordenada da preca-riedade de nossas casas. Corpos, quase corpos. Mulheres. Faz apenas 32anos que ela pôde dizer isso. Disso. Como podemos dizer hoje? Disso.Que não podemos. Quase dizer. Ainda. De novo. Qual o “quase-dizer”que hoje nos habita? Quais poderes nos impedem poder-dizer, hoje?Penso que gostaria de dedicar todo o tempo que tenho tentando res-ponder apenas a isso. Faria listas. Desenhos. Diagramas. Me enrolariaem linhas tentando dizer dos poderes que nos impedem ainda poder-dizer. Um por um. Um cêntimo de cada um deles. Cada centímetro

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deles. Um quase-nada. Um sem valor. Uma desvalia. Na base desse nãopoder-dizer. O lodo mais antigo. O bloco cimentado. Quais as pás quehoje o edi�cam? Quais as mãos que o limam? Como poder-dizer se nãovale nada dizer? Dizer como cagar. Dia sim, dia não. Uma intermitência,uma disfunção entre a boca e o ânus. Estão dizendo como cagam. Ocu passando pela laringe. Os dentes mastigando a merda. Já não bastasó queimar. Estão atingindo o coração selvagem da �oresta, dentro danossa casa. Revalorar o poder-dizer. Arrancá-lo de onde o meteram. Nocu do mundo. Onde judas perdeu as botas. Um buraco vazio, dizemum país. Um cu. Uma casa. Um clarão na �oresta.Escrever para nada não é igual a nada vale escrever. Ainda estamos aí:Perdoe-nos falar disso repetidas vezes. Nós estamos aí. Aí onde se faz nossa

história. Alhures. Não temos desejos humanos. Não conhecemos senão que

o rosto das bestas, a forma e a beleza das florestas. Temos medo de nós

mesmas. Temos frio no nosso corpo. Somos feitas do frio, do medo, do de-

sejo. Nos queimavam. Ainda nos matam no Kuwait ou no interior da

Arábia”. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.74). Ela diz.Estou de volta à casa. Faz frio. Tenho frieira e calafrio. Estou no interiorde um país que desconhece o seu interior. Estou num país exterior queé o meu. O nosso. Estou falando na minha língua, onde ela diz. Nou-tra língua. Estou alhures. Estamos. Em casa, alhures. Essa sempre foi anossa casa, sem casa. Ignoramos por muito tempo a quantidade de pes-soas que vivem sem casas. As quase-casas. A quase mesa mesmo quandoposta. Sem comida. Ignoramos por muito tempo o desconforto das ca-sas destruídas. Quase pensamos nisso tudo. E hoje um clarão habita omeio dessa �oresta. Anteontem mataram aqui mesmo, quase aqui, aolado desta casa, em somente 80 horas, cinco jovens foram assassinadosaqui, ao lado desta casa, pelo Estado que nos governa.Hoje chove. Tenho frieira e calafrio. Pensei que deveríamos todas juntaschorar. Fazer um muro de corpos onde possamos somente chorar. Umasobre as costas da outra. Outra sobre o ombro esquerdo da outra. Outrasobre a mão direita da outra, estendida sobre olho esquerdo da outraque chora sobre todas nós.

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Quase penso que o Estado de guerra que vivemos alhures, em casa, nosfaz somente guerrear. Quase penso que pre�ro o poder-dizer ao em-poderar. Quase penso que não quero como eles o mesmo poder deguerrear. Quase penso que a paz não responde mais à guerra. E que asoposições que nos criaram são insu�cientes.Quero poder diferente, deles. Quero poder-dizer como uma só palavra.Uma máquina. Uma costura. Um cozimento. Uma ferida. Um modode tocar. Um muro de musgo. Uma casa sem muro. Um país. Ela disse:Soube eu então tão cedo em minha vida que era uma escritora? Sem dú-

vida. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70).Mas quando estaremos nós extenuadas dessa nossa floresta de desespe-

rança? (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.74). Ela disse.Digo eu.

3. construir, eu digo:

Até aqui disse com ela. Ela disse. Destruir, diz ela. Dela. Disso. Quasesobre ela, eu mesma através dos séculos. Digo: deixemos o de porum momento: destruir, desrazão, descoser, desconstruir, devir, desviar.Separemo-nos por um momento dessa camada do tempo onde um va-lor positivo, transgressivo, liberador e intensivo foi ofertado aos corposmortos, arruinados, apagados pela guerra. Onde escrever sobre o nada,para nada, não era ainda escrever não vale nada: “Eu não vejo o quevocês poderiam contar sobre ela (...) é verdade que hoje em dia não seconta mais nada nos romances...Por isso leio tão pouco (...) que (...)”.(DURAS, Détruire-dit-elle, 1969/2007, p.119).Deixo-a um pouco. Para que pensemos juntos. Quase pensar sobrecomo escrever não vale nada. Pensar diferente o poder. Imaginar o po-der. Poder imaginar o poder-dizer, diferente. Dela. Que ela agora sónos acompanhe, no que gostaria eu de deixar com vocês, que já não sóela, mas as camadas dos tempos, onde ela, e tantos outros corpos delasubjazem.

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Quase-penso que hoje, além de deixar por um momento o da potênciapositivada de todo o aniquilamento da história vivido por aquela gente,depois da Segunda Grande Guerra, gente que aqui também vive, é im-portante para nós. A insu�ciência hoje de um valor positivo da desrazãonão signi�ca um apelo ou um retorno à razão uni�cada e uni�cadora.Mas talvez, quiçá, uma atenção aos movimentos imperceptíveis da ir-racionalidade que habita a razão. Que a conduz em nós mesmas. Emtodos nós. Um passo ao lado entre razão e desrazão chama-se buscara lucidez. Infelizmente na lucidez vive o clarão. No meio da �oresta.Onde estamos hoje.Quase penso que um passo ao lado da lucidez não vai nem em dire-ção à loucura nem à consciência. Mas em direção à nuance. Ninguémsuportará o clarão sem um esforço para criarmos nuances de luz e deopacidade. Precisamos hoje de uma arqueologia diferente. Não ape-nas desenterrar os nossos cadáveres, necessário, luminoso e tenebroso.Mas de uma arqueologia de camadas. O gesto que acompanha a nuancechama-se criar camadas. Olhar não é su�ciente. Também por isso pre-cisamos tocar nessas camadas que reivindicam uma nova arqueologiado Brasil. Do que é, de como é, de como pode ser, em camadas, ser bra-sileiro. Ser vários é também o que as camadas e as nuances ofertam aoser.Introduzi como um musgo na parede da palavra Destruir, que ela disse,um parêntesis — um con, desejo de construir sobre os escombros dadesconstrução de ontem e da destruição de hoje. Mas também desejode com, logo de Relação150 (Glissant, 1990).Às nuances e às camadas dessa nova arqueologia advém um quase-pensopoder-dizer que precisamos repensar e reviver os cortes e os enlaces daRelação entre todos nós. Sobre os escombros da guerra insurgiu umageração que pôde revalorizar positivamente a destruição e dela fazer re-luzir um nada que habitou o homem sem qualidades através dos séculos.

150No livro Odios Politicos, Politicas do Odio escrito com Gabriel Giorgi, Bazaer doTempo, 2019, desenvolvo de forma mais substancial a noçao de Relaçao em E. Glis-sant e como vejo sua importancia operativa no contexto politico-subjetivo atual.

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Com isso esquecemos de pensar o homem comum. Essa geração, quenos formou, rejeitou o senso comum. Como se pensar fosse abando-nar a doxa. O senso comum hoje impera. O homem comum torna-seimperador em terras abolidas. Não abolicionistas. Precisamos pensarcom o senso comum. Talvez um outro modo de quase-pensar precisaser revalorizado por nós.Sobre os escombros da guerra insurgiu uma geração que pôde revalori-zar positivamente a destruição e a partir dela liberou uma nova potenciado amor. Liberou de fato mil formas de amar. Liberou incluso que todoamor vale a pena. Hoje já não poderíamos dizer que existe apenas umaforma de amor. Mesmo que uma força queira diminuí-lo. Tranca�ando-o num só armário. Hoje já não acreditamos que haja apenas uma formade amor. Mesmo que tenhamos retraído poder-dizer que toda forma deamor vale a pena. Isso tudo é hoje o senso comum. Amamos �lhos, pais,mães, ancestrais, amigos, netos, ex-companheiros, homens, mulheres,animais e plantas. Mas curiosamente quando quase-penso que expandi-mos a noção de amor. Que nuançamos e nela criamos muitas camadas,quase-penso que o ódio �cou sendo um só. Bloco de cimento e ruínaimpensável. Afecção inevitável, continua ele ali existindo, aqui, monoli-ticamente.Hoje é ele a pedra no meio do nosso caminho. No meio da nossa geração.No coração da �oresta, esse clarão. Do nosso tempo, através dos séculos.Infelizmente para nós coube isso: nuançar, limar, escavar, criar camadas,aqui e ali uma ruína, um monumento esquecido, diferir aguda e coti-dianamente os nossos ódios. Não para multiplicá-los, mesmo que. Elesjá correm livremente, e escorrem entre os nossos dedos. Para quiçá nu-ançando, diferindo-o, acolhendo-o, dele cuidando, quiçá, quase-pensoque assim, mesmo que não cheguemos a recriar a geração paz e amor,decerto livraremos uma geração por vir dessa parte impossível de viver -desse ódio. Um só e onipresente ódio que hoje quer religar, religar, digoreligar, desse modo, nessa máquina, um jeito só de ser ou de estar emcasa.

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Dedicarei todo o meu tempo a diferir, a nuançar e a religar diferente esse,desse e nesse ódio. Diferentes modos de odiar. Um ódio diverso, inse-rido na diversidade deste mundo talvez, quiçá, nos ajude a recolocar e areivindicar um outro modo de vivermos todos juntos. Sem esquecer deninguém, do mais pequeno e por menor ou pior que seja. Que sejamos.Que possamos ser, saindo do um só, em Relação, como diria EdouardGlissant, indo até o outro mudar algo em nós, ser algo diferente do quejá somos, sem se perder ou se desnaturar. Uma dobra apenas na curvalancinante que Duras deixou para nós, a�nal, como escrever hoje queeu nasci em parte alguma?

Referências

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yanomami. SP, cia das letras, 2015.Lestel, D. L’animal est l’avenir de l’homme. Paris, fayard, 2010.Hilst, H. Da poesia. S.P., Cia das Letras, 2017.Horer, S. Socquet, J. La création étou�ée — femmes en mouvement. Pa-ris, Editions Pierre Horey, 1973.Ki�er, A. Antonin Artaud. Rj, Eduerj, 2016.Lapoujade, D. Les existences moindres. Paris, Minuit, 2018.Malufe, Annita Costa. Como se caísse devagar. SP, ed. 34, 2008.Mondzain, M. J. Confiscation — des mots, des images et du temps. Paris,Les liens qui libèrent, 2017.Szymborska, W. [Um amor feliz]. SP., Cia das Letras, 2016.Rancière, J. En quel temps vivons-nous? Conversation avec Eric Hazan.

Paris, La Fabrique, 2017.Revista DR http://www.revistadr.com.br/http://www.revistadr.com.brRevista Pessoa https://www.revistapessoa.com/autor/287/ana-ki�erhttps://www.revistapessoa.com/autor/287/ana-ki�er

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sobre as autoras eautores

Ana Ki�er

Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio deJaneiro, doutora em Letras pela Universidade do Estado do Rio deJaneiro e doutorado Bolsa Sandwich Capes - Université de Paris VII -Denis Diderot.

Ana Lucia Lutterbach

Psicanalista, membro da AMP/EBP. Autora do livro Patu, uma mulherabismada. Subversos, RJ, 2008.

Beatriz Chnaiderman

Bacharel em psicologia pela Universidade de São Paulo. Psicanalistamembro do Fórum do Campo Lacaniano.

Bruna Guaraná

Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Doutorandado Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Asso-ciada do ICP-RJ (Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro)e participante do Núcleo de Pesquisa do ICP-RJ “Práticas da Letra”coordenado por Ana Lúcia Holck.Claudia Itaborahy

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É psicanalista, coordenadora do Ateliê de psicanálise e outras ar-tes de Ouro Preto e escreve. Aluna do Programa de pós-graduaçãoem Estudos Literários, da Faculdade de Letras | UFMG, na área deconcentração Poéticas da Tradução e linha de pesquisa Literaturae Psicanálise. Sua orientadora é a professora Lucia Castello Branco.Claudia é mestre em educação|UFOP e tem especialização em ciênciada religião|UFJF.

Daniele Fernanda Eckstein

Doutoranda pela Sorbonne Université e professora no ColégioUniversitário Sciences Po-Poitiers. O tema de pesquisa, sob a direção deMichel Riaudel, se centra na análise de diversas formas de repetição naescrita de Clarice Lispector (A paixão segundo G.H.) e de MargueriteDuras (Le ravissement de Lol V. Stein), ambos publicados em 1964.

Flavia Trocoli

Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,membro-fundador e vice-coordenadora do Centro de PesquisasOutrarte – psicanálise entre ciência e arte, do IEL/ UNICAMP, autorado livro A inútil paixão do ser.

Giselle Moreira

Psicanalista. Graduada em psicologia e mestre em Letras: EstudosLiterários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Isadora Bon�m Nuto

Bacharel e licenciada em Letras- Português e Literatura pela Uni-versidade de Brasília (UnB) e mestranda em teoria literária pelaUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Laerte de Paula

Psicanalista, Acompanhante Terapêutico, mestre em Psicologia Clínicapelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.

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Larissa Melo

É formada em Realização e Produção Audiovisual na Escola de CinemaDarcy Ribeiro; Integrante em Elviras – Coletivo de Mulheres Críticasde Cinema. Graduanda de Bacharelado e Licenciatura em Filoso�aUERJ – Pesquisadora em Cinema e Feminismos – Cinema Queer.Foi professora de Cinema no Ateliê Oriente e Curadora do CineOriente. Diretora do curta-metragem "The Ephemeral"exibido naMostra Internacional "Wicklow Screendance Laboratory"(Irlanda).Foi professora de Fotogra�a Criativa em Loretto School para jovens daFrança, Áustria, Espanha e Hungria em Bray, Irlanda.

Marcella Moraes

Doutoranda em Ciência da literatura pela Universidade Federal doRio de Janeiro (UFRJ), desenvolve, com o apoio do CNPq, o trabalho“Dizer a imagem: uma leitura de Nuno Ramos” e aproveita estaoportunidade para agenciar uma resposta ao legado que passivamenteherdou.

Marina Gorayeb Sereno

Psicóloga e mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal doRio de Janeiro, atualmente doutoranda no Programa de Pós-graduaçãoem Ciência da Literatura, na mesma instituição.

Renata Estrella

Psicanalista, doutoranda em Ciência da Literatura / UFRJ, mestre emPesquisa e Clínica em psicanálise.

Ricardo Pinto

Professor de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro,coordenador do Projeto Fortuna e do Laboratório de Edição, autor deA presença da forma trágica.

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Tatiane França

Professora de língua francesa e literaturas, mestranda em Ciência daLiteratura pela UFRJ.

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