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O limite da representação em A dor, de Marguerite Duras: entre o testemunho e a
ficção
Aline de Almeida MOURA1
Resumo
Conforme aponta o historiador Eric Hobsbawm, o século XX é marcado por eventos
catastróficos que impõem questões sobre a capacidade da linguagem de representá-los.
Partindo da análise de Paul Ricouer, analisaremos a Shoah como um desses momentos
cujas memórias traumáticas traçam certos limites para a representação, embora haja a
necessidade premente de seus testemunhos serem ouvidos. Para tal, o presente artigo
contemplará o esforço operado por Marguerite Duras para transmitir seu testemunho no
texto A dor (1986). Nesse livro, a autora utiliza a ficção para expor a sua vivência na
situação limite que foi a Shoah. Duras não esteve presente fisicamente em nenhum
campo de concentração, mas a narração da espera pelo retorno de seu marido que fora
preso é pungente e comovente, demonstrando o auxílio que as narrativas de ficção
podem dar nessas situações limites.
Palavras-chave: Situação limite. Representação. Marguerite Duras. Crítica.
Abstract
As the historian Eric Hobsbawm points out, the twentieth century was marked by
catastrophic events that impose questions about the ability of language to represent
them. Based on the Paul Ricoeur analysis, we focus on the Shoah as one of those
moments whose traumatic memories trace certain limits for the representation,
although there is a pressing need for their testimony to be heard. To this end, this paper
will cover the operated effort by Marguerite Duras to convey her testimony in the text A
dor (1986). In this book, the author has used fiction to present her experience in
extreme situation that was the Shoah. Duras was not physically present in any
concentration camp, but her narration of waiting for her husband who was arrested is
poignant and moving, showing the aid that fictional narratives can give to these
extreme situations. 1 Doutoranda em Literatura, cultura e contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). CEP: 22451-900. Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected]
Keywords: Extreme situation. Representation. Marguerite Duras. Criticism.
“A dor é a coisa mais importante de minha vida. A palavra
‘escrito’ não seria adequada (...) Encontrei-me diante de uma
fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que não
ousei tocar, e comparada à qual a literatura me envergonha.”
(Marguerite Duras, 1986)
“Ele [o século XX] foi o século mais assassino de que temos
registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o
preencheu (...), como também pelo volume único das catástrofes
humanas que produziu.”
(Eric Hobsbawn, 1995)
Como é perceptível na última epígrafe, o século XX se caracteriza por suas
grandes catástrofes. Eric Hobsbawn, historiador renomado, descreve o que ele chama de
“breve século XX”, período entre 1914 e 1991, como a época do colapso da ascensão
pela qual a civilização passou durante o século XIX. O seu livro A era dos extremos
(1995), em que faz uma espécie de autobiografia através da narração e análise de
diversos fatos importantes ocorridos durante o século XX, tem por objetivo
“compreender e explicar por que as coisas deram no que deram e como elas se
relacionam entre si” (HOBSBAWN, 1995, p. 15). É possível notar o tom de
descontentamento com o rumo que a civilização vem tomando e que ele analisa não só
na perspectiva de teórico, mas de alguém que viveu no período e que observou os fatos
e as suas consequências. De acordo com o historiador, não se trata de uma crise na
forma de organizar a sociedade, mas uma crise geral e sistemática em todos os campos.
Retomando as palavras do poeta T. S. Eliot, “é assim que o mundo acaba – não como
uma explosão, mas como uma lamúria”, Hobsbawn afirma: “O breve século XX se
acabou com os dois” (HOBSBAWN, 1995, p. 21). Foram tantas as mortes, torturas,
crises que o temor crescente foi com a banalização dessas catástrofes. Por exemplo, ao
tratar especificamente da Segunda Guerra Mundial, afirma: “o aspecto não menos
importante dessa catástrofe é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a
matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia a dia que não
mais notamos” (HOBSBAWN, 1995, p. 58). A questão que emerge é como o
pesquisador deve lidar com esses fatos e seus testemunhos. Não se trata mais de que não
haja fontes ou materiais de pesquisa, mas tais materiais se referem a eventos que
demandam um olhar mais cuidadoso para que as diversas nuanças do evento não sejam
perdidas por uma homogeneização do relato. Contudo, são inúmeros os relatos
testemunhais que indicam a dificuldade em tornar perceptíveis as catástrofes
vivenciadas. Tem-se como exemplo Elie Wiesel, um dos sobreviventes da Shoah, que
trata a escrita de sua experiência como um dever moral por ter sobrevivido: “escrever
não é uma profissão, e sim uma atividade de dever” (WIESEL, 1994, p. 23). Legar o
testemunho se torna uma forma de justificar a sobrevivência, mesmo que palavra e
significado não coincidam mais:
Nós todos sabíamos que jamais, jamais poderíamos dizer o que tinha
de ser dito, que jamais poderíamos expressar em uma escala absoluta,
em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência de loucura (...)
Pensei que nunca seria capaz de falar deles. Todas as palavras
pareciam inadequadas, gastas, tolas, sem vida, e eu as queria ardentes
(WIESEL, 1994, p. 24).
Como é perceptível nesse trecho, a necessidade de contar o que aconteceu se mescla
com a inadequação das palavras. O evento foi tão catastrófico que a linguagem
corriqueira não consegue dar conta dos fatos ocorridos, as palavras perdem sentido,
apesar de instrumento necessário para se legar o testemunho. A linguagem se apresenta
como um instrumento ineficaz para transmitir toda a dor e sofrimento passados durante
a situação limite. E nesse sentido, surge a ideia entre alguns teóricos de que há eventos
que impõem limites para a representação histórica2. Como as palavras foram gastas e
perderam seu sentido, a representação do evento através da linguagem fica
comprometida, embora haja essa urgência de testemunhar o evento.
Para o presente trabalho, analisar-se-á o caso da Shoah como um desses eventos
catastróficos ocorridos no século XX. A questão que emerge é como tratar desse tema,
uma vez que a narração da política de extermínio liderada por Hitler, falar da relação da
Alemanha com os outros países, falar das causas, da tentativa de reafirmação alemã
após o fiasco da Primeira Guerra Mundial, todos esses dados não são suficientes para
mostrar o terror que foi o evento. O conhecimento histórico mais tradicional3 não
consegue dar dimensão ao evento catastrófico. A enumeração de dados não consegue
2 Paul Ricoeur apresenta a noção de representação como polissêmica, utilizando-a para tratar da escrita da
história, pois “o discurso do historiador declara a sua ambição, sua reivindicação, sua pretensão, a de
representar em verdade o passado” (RICOEUR, 2007, p. 240). 3 Por tal, entende-se a construção de narrativas lineares, em que os fatos são narrados em busca de relação
causa-consequência. Sabe-se, contudo, que a História passou por questionamentos epistemológicos, mas
que não são foco desse trabalho.
dimensionar o evento. A homogeneização das diversas perspectivas presentes no
evento, através da busca por uma síntese explicativa característica da escrita da História
mais tradicional, surge como um impedimento para a tentativa de se entender o que um
homem foi capaz de fazer a outro.
Muitos relatos testemunhais foram deixados, relatos cuja força e pungência
seriam vitais em uma tentativa de compreender o evento ou de pelo menos conhecer a
parte mais viva e humana, não a somente ligada às questões políticas estéreis. Com o
advento da história oral, os relatos testemunhais passam a ser fonte cabal para tratar de
eventos históricos. Contudo, trata-se de testemunhos de pessoas que, por terem passado
por uma situação tão devastadora e cuja memória do evento é causa de transtorno,
impõem limites que parecem intransponíveis. Ou seja, a memória, matéria complexa em
relação ao seu uso como fonte, dependendo da articulação com dados materiais, após
eventos traumáticos, apresenta-se como fonte ainda mais problemática. O trauma do
evento se torna uma causa patológica para limites da memória enquanto fonte. Nesse
sentido, demonstrar-se-á o esforço operado para se transmitir o testemunho do evento
em A dor, de Marguerite Duras. Nesse texto, a autora utiliza a ficção para expor a sua
vivência na situação limite que foi a Shoah. Duras não esteve presente fisicamente em
nenhum campo de concentração, mas a narração da espera pelo retorno de seu marido
que fora preso é pungente e comovente. E por sua contundência, o texto é considerado
um importante testemunho desse evento catastrófico, numa mistura de diário e
literatura. A escolha pela análise desse material se deu justamente pelo uso da ficção, da
qual a autora se serve para legar o seu testemunho. A crença no limite da representação
em eventos catastróficos exige a utilização de recursos. E Marguerite Duras fez
belíssimo uso do recurso literário.
O título desse trabalho sugere uma relação entre “testemunho e ficção”, em que
o esforço argumentativo segue na tentativa de demonstrar que esses dois elementos não
são contraditórios, mas podem ser complementares. A inserção da ficção pode até
mesmo ser necessária quando se trata de situações traumáticas como a vivenciada por
Duras. Pelo menos foi o recurso utilizado pela autora, em que a escrita consegue fazer
com que aquela situação vivida consiga ser entendida, ou pelo menos conhecida pelas
pessoas. Pode parecer que o uso do recurso literário será fonte de catarse para o
espectador, que irá apenas se purificar com a leitura, sem que esta seja de fato relevante
para a tentativa de se mostrar a experiência limite. De fato, a leitura desse livro é
instigante, mas não se trata de simples leitura fruitiva. Saber que tais fatos ocorreram e
que o uso da ficção faz com que não seja necessário procurar falsificações torna de fato
o relato mais significativo. Através da leitura, não se busca a verdade dos fatos, mas
sentir o quão forte foi a experiência.
A imposição de limites para a representação para se analisar o caso da Shoah
pode ter como chave de análise a perspectiva psicanalítica4. Maria Rita Kehl parte do
princípio de que há um pressuposto segundo o qual algo na catástrofe fica fora da
representação e “aquilo que, de uma catástrofe, permanece fora do alcance da
representação, é justamente o que confere a certos acontecimentos da vida, sobre os
quais não conseguimos pronunciar imediatamente, o caráter catastrófico” (KEHL, 2000,
p. 137). Tais acontecimentos podem ser chamados de “trauma”, na perspectiva
freudiana, ou “real”, na perspectiva lacaniana. Para a autora, o que fica fora da
representação são as dimensões da existência humana que não fazem parte da
experiência, pois são eventos “em que nossa passividade absoluta faz de nós uma coisa
viva, porém inerte, entregue ao poder absoluto do Outro” (KEHL, 2000, p. 138). Ou
seja, não é possível representar eventos em que há a condição de completa passividade
do sujeito. Observa-se que essa ideia de passividade está no cerne do que Freud chama
de trauma, pois as situações que não permitem reação são condições objetivas para que
esse ocorra (LAPLANCHE, 1987, p. 680). Em seu artigo, Kehl considera como as três
dimensões fundamentais da existência em que há a passividade a mãe, o sexo e a morte.
Contudo, é possível tratar dessa passividade no evento da Shoah. Foram inúmeras as
pessoas levadas para campos de concentração, vivendo, ou melhor, sub-existindo em
uma situação-limite inexplicável em que não podiam fazer nada, na mais completa
passividade.
A autora analisa a noção de irrepresentável nas narrativas de catástrofe, tendo
como um dos exemplos os textos de Primo Levi, importante testemunha da Shoah.
Afirma que ele recua num certo ponto em seu relato sobre a catástrofe “não porque seria
indizível, nem mesmo insuportável, e sim porque este autor parece não querer intoxicar,
fascinar ou nausear o leitor com a memória do sofrimento” (KEHL, 2000, p. 148). Kehl
mostra como o relato de Levi não abarca todas as nuanças possíveis por uma escolha do
4 A proposição do uso da psicanálise na análise da memória em sua relação com a História pode parecer
estranha, já que aquela lida com categorias estáveis e não históricas. Porém é a teoria utilizada por Paul
Ricoeur ao abordar o que ele chamou de “memória impedida”, ou seja, nos casos em que a memória é
vista como uma ferida, uma cicatriz causada por um trauma, como é o caso da Shoah (cf.: RICOUER,
2007, p. 83-93).
autor de não querer mostrar o que seria desnecessário para o conhecimento do evento.
Contudo, parte-se do princípio de que a escrita é uma forma de inverter, mesmo que
precariamente, a passividade experimentada diante do evento catastrófico (cf.: KEHL,
2000, p. 139). Seria através da escrita que, ao usar desse artifício para trazer o evento
traumático para a dimensão humana, reduzir-se-ia aquilo que oprime (cf.: KEHL, 2000,
p. 145). Não se trata de reduzir tudo à linguagem. O recuo dado por Primo Levi teria o
sentido de produzir “outra ética também: a que consiste em implicar o leitor na
continuação da escritura e responsabilizá-lo através do pensamento” (KEHL, 2000, p.
145). Ou seja, não se trata de irrepresentabilidade, mas de uma escolha com
consequências éticas. Kehl ressalta:
gostaria de propor que a dimensão traumática da experiência humana,
esta que escapa à representação, não tem suas fronteiras delimitadas de
antemão. Nossa tarefa vital, como seres de linguagem, consiste em
ampliar continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que ele
nunca recobrirá o real todo (KEHL, 2000, p. 138)
Mesmo que algo sempre fique fora da representação, e é isso que garante a existência
objetiva do mundo, deve-se sempre pensar em expandir o simbólico. Deve-se pensar em
novas formas para se lidar com o evento catastrófico em vez de apenas clamar pela sua
irrepresentabilidade.
No campo histórico, a Shoah também é vista como apresentando limites.
Citando o texto de Saul Friedlander, Probing the limits of representation, Ricoeur
aponta dois limites para a representação: um relacionado ao esgotamento das formas de
representação disponíveis em dada cultura; e outro, a uma solicitação de ser dito e
representado, elevando-se do próprio cerne do acontecimento (cf.: RICOEUR, 2007, p.
267). Isto é, tais limites são impostos quando as formas de apresentação de dado evento
não conseguem abarcar a complexidade do que é narrado, tratando-se de um limite
interno; e quando a necessidade de falar se eleva do próprio cerne do acontecimento,
como uma exigência de se narrar, tratando-se de um limite externo. Nesse sentido, a
Shoah proporia ao mesmo tempo a singularidade de um fenômeno, “na fronteira da
experiência e do discurso, e exemplaridade de uma situação em que não seriam
desvendados apenas os limites da representação sob suas formas narrativas e retóricas,
mas todo o empreendimento da escrita da história” (RICOEUR, 2007, p. 267).
Apontando a discussão entre Hayden White e Carlo Ginzburg sobre a
representação histórica, Ricoeur assinala a perspectiva de White, segundo o qual tal
situação limite torna ilusório acreditar “que os enunciados factuais possam satisfazer à
idéia de irrepresentável” (RICOEUR, 2007, p. 270), ou seja, não é através da
apresentação literal dos fatos que a concepção de figuração irá se esvair, demonstrando
o cuidado que o historiador deve ter para não cair no realismo ingênuo. Já Ginzburg
defende a história não no sentido do realismo, mas “da própria realidade histórica do
ponto de vista do testemunho” (RICOEUR, 2007, p. 270). Segundo esse autor, a
situação limite da Shoah faz como que o historiador repense a sua prática, uma vez que
não deve mais “caçar falsificações” nos testemunhos dos envolvidos, mas de explicar
por que a escrita de uma história abrangente poderia anular a diferença existente entre as
variadas perspectivas possíveis. Nesse sentido, há uma necessidade de distinguir esses
testemunhos levando em consideração a sua origem, uma vez que são diferentes os
testemunhos dos sobreviventes, dos executantes, dos espectadores envolvidos5.
Ressalta-se que a Shoah, segundo Ricoeur, torna-se situação limite na medida
em que a fonte do traumatismo inicial “não está na representação, mas na experiência
viva de ‘fazer história’ tal como é diversamente enfrentada pelos protagonistas”
(RICOEUR, 2007, p. 273). Assim, a fonte da demanda pela verdade se dá no local do
traumatismo inicial, na situação em que o acontecimento já se faz dentro de uma
memória coletiva antes mesmo que o historiador tenha acesso aos dados e proponha
uma análise dos fatos. Assim, Ricoeur trata Auschwitz como um acontecimento no
limite, pois está na memória coletiva e individual antes mesmo de ser parte do discurso
do historiador. Historiador que, nesse sentido, exerce uma dupla função, pois além de
cientista profissional, que busca narrar e analisar os dados, é também intelectual crítico,
responsável em relação ao passado de forma cidadã (cf.: RICOEUR, 2007, p. 272).
Ricoeur continua a sua análise tratando sobre a existência ou não de um limite
externo para a autossuficiência das formas de representação, apontando uma reposta
negativa e positiva. Negativa, pois a própria relação entre história e memória é de
retomada crítica, tanto externa quanto internamente (cf.: RICOEUR, 2007, p. 273).
Positiva uma vez que a pretensão de autossuficiência “proclama o fechamento em si das
configurações narrativas e retóricas e declara a exclusão do referente extralingüístico”
(RICOEUR, 2007, p. 273). Assim, para o autor, o limite, entendido como “a impossível
adequação das formas disponíveis de figuração à demanda da verdade que surge do
5 Tal princípio é abordado na análise que Shoshana Felman faz do filme Shoah, de Claude Lanzmann em
seu artigo “Seven. The return of the voice: Claude Lanzmann’s Shoah”. Ela mostra como no filme há três
grupos distintos que apresentam performances diferentes para tratar do evento da Shoah.
coração da história viva” (RICOEUR, 2007, p. 273), não deve impedir de narrar, mas
estimular a exploração de formas de expressão alternativas.
O psicólogo Rollo May aponta uma interessante reflexão sobre os limites
impostos, no seu caso, para a criatividade, mas cuja perspectiva pode ser utilizada para
entender os limites na escrita da História quando se trata de uma situação catastrófica.
Segundo o autor, no artigo “Os limites da criatividade” (2002) os limites são
inevitáveis, e até mesmo necessários para a criação humana, “pois o ato criativo origina-
se na luta do ser humano contra e com aquilo que o limita” (MAY, 2002, p. 115). Ou
seja, são os limites que fazem o ser humano procurar formas alternativas para se
expressar. Dessa forma, esses têm um valor positivo para a criação humana uma vez que
caso eles não houvessem, toda a busca por novas formas desapareceria e haveria apenas
regozijo, sem mais assuntos para debate. O autor aponta diversas formas de limite e
começa citando a morte como limitação física inevitável. Nesse sentido, não é possível
deixar de lembrar o testemunho por delegação operado por Primo Levi. Ele fala pelos
que submergiram ao evento, pelos que não conseguiram sobreviver. A testemunha do
sobrevivente traz uma lacuna, uma falta e é esse seu valor e a necessidade de se
testemunhar: falar pelos que não podem falar (cf.: AGAMBEN, 2008). Outro limite
físico é a doença e no caso da Shoah, pode-se dizer que a situação de trauma pode ser
entendida nesse sentido. O autor ainda elenca o limite metafísico como o mais
importante no seu entender. Segundo o autor, a criatividade resulta da tensão entre a
espontaneidade e as limitações, e a arte surge como resultado da luta bem-sucedida do
artista com as limitações. A forma, podendo ser entendida como algo que limita, na
visão de May ao tratar da poesia, é interpretada como “um instrumento para se
encontrar novos sentidos, um estímulo para condensá-los” (MAY, 2002, p. 120). Mais
uma vez, apresenta-se a ideia de se encontrar novas maneiras de se lidar com o que
limita a representação, que deve ser entendido como um estímulo e não como algo que
paralisa.
No caso da Shoah, os limites são decorrentes da “memória impedida”, como
afirma Paul Ricoeur, partindo da relação entre História e violência; e limites na própria
escrita da História, que deve procurar novas formas de tratar sobre a catástrofe sem
diminuir a sua importância e sem homogeneizar aspectos relevantes como, por exemplo,
as especificidades de cada testemunho. A narrativa A dor, de Marguerite Duras emerge
como forma alternativa de se figurar o acontecimento que não seja pelo testemunho tal
como é encarado grosso modo. O texto se divide em duas partes principais (I e II). A
primeira parte se intitula “A dor” e será objeto de análise mais detida nesse trabalho. A
segunda parte é composta por cinco histórias diferentes – “O sr. X, aqui chamado Pierre
Rabier” (p. 84-128), “Albert do bar Les Capitales” e “Ter, o miliciano” (p. 129-158 e
159-178), “A urtiga partida” (p. 179-192) e “Aurélia Paris” (p. 193-205). Antes de cada
um desses fragmentos, a autora aponta caminhos para leitura, em uma espécie de
prólogo indicado em itálico, em que diz se o texto que se segue é verdadeiro, se é
ficcional, se foram mudados apenas os nomes. A especificidade desse texto é que ele
une a narrativa testemunhal, com a narração de fatos ocorridos na realidade empírica,
com fatos ficcionais. Não é possível distinguir no âmbito formal quais são as partes
fictícias e quais são as verídicas, a não ser nas passagens escritas antes do texto em si,
nas quais fica claro que ela mudou o nome de personagens, etc. Contudo, parte-se do
pressuposto que, mesmo o livro não seguindo os moldes tradicionais do testemunho, é
importante fonte de pesquisa para historiadores, assim como importante leitura para os
que se interessam pelo tema. No caso da Parte I, a autora diz se tratar de trecho de um
diário, mas que não tem “a mínima lembrança de havê-lo escrito” (p. 8). Ela retoma o
texto quando a revista Sorcières, que circulava bimestralmente entre os anos de 1975 e
1982, solicitou a ela alguma produção de juventude.
O testemunho, uma das fontes mais relevantes para a História, constitui-se como
lugar de transição entre a memória e a História, mas também é atormentado pela
questão da fronteira entre ficção e realidade. O testemunho está relacionado com a
confiabilidade necessária para que o relato seja aceito. Como qualquer outra fonte,
requer uma relação veritativa com o passado, sendo posta em cheque a partir da análise
de outros materiais. Nesse sentido, Ricoeur ressalta a disponibilidade de que o relato
testemunhal possa ser redito sempre que necessário: “insere-se então em uma dimensão
suplementar de ordem moral destinada a reforçar e reiterar a credibilidade e a
confiabilidade do testemunho, a saber, a disponibilidade da testemunha de reiterar seu
testemunho” (RICOUER, 2007, p. 174). Mas Duras, mais do que testemunhar, quer
disponibilizar suas palavras e a força perceptível nelas. Ela ainda afirma que A dor “é
uma das coisas mais importantes de minha vida”, diante da qual “a literatura me
envergonha” (p. 8). E por utilizar o recurso ficcional, tanto a autora fica mais livre em
sua escrita, quanto o leitor pode ter uma relação menos desconfiada com o texto.
O testemunho é um evento dialogal, em que é constantemente solicitado que o
Outro lhe dê crédito, confie no que está sendo relatado numa evocação do “eu estava
lá”. É através dele que se outorga a realidade da coisa passada, mas “é diante de alguém
que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter assistido, eventualmente
como ator ou como vítima, mas, no momento do testemunho, na posição de um terceiro
com relação a todos os protagonistas de ação” (RICOEUR, 2007, p. 173). Nesse sentido
é bastante interessante o uso da narrativa ficcional como recurso utilizado por
Marguerite Duras. Primeiramente, não se espera que a literatura conte a realidade,
embora seja isso que Duras faça de certa forma. Mesmo que os fatos tenham sido
romanceados, isso não deixa o texto menos impactante para quem sabe que de fato
Duras viveu tal situação na espera por Robert Antelme. Por outro lado, se o testemunho
necessita desse diálogo com o Outro e é encarado como uma narração em terceira
pessoa, como aponta Ricoeur, o uso da ficção como estratégia é bastante interessante,
pois a literatura pressupõe uma leitura, essa situação dialogal. Usando a proposição de
Seligmann-Silva, em que “uma literatura de testemunho, é uma arte da leitura de
cicatrizes” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 56), pode-se dizer que Duras utiliza a
literatura como forma de cicatrizar as feridas causadas pela Shoah, uma forma de
testemunhar de forma visceral os fatos traumáticos que a atormentaram.
Outro aspecto relevante é que a testemunha depende de uma confiança na
linguagem, no poder narrar os fatos e ser entendido por outrem. Contudo, “é contra esse
fundo de confiança presumida que se destaca de maneira trágica a solidão das
‘testemunhas históricas’ cuja experiência extraordinária mostra as limitações da
capacidade de compreensão mediana, comum” (RICOEUR, 2007, p. 175); ou seja, há
testemunhas que não conseguem encontrar espectador capaz de entendê-las por esse
esmaecimento na linguagem. E a ficção mais uma vez aparece como recurso para que se
consiga testemunhar a alguém, mesmo que de forma turva, a experiência do evento.
Dessa forma, a narrativa de Duras, embora possa ser encarada apenas como produto
estético, também pode ser entendida como estratégia alternativa para se apresentar a
situação limite da Shoah.
Um fato extremamente relevante na situação de Marguerite Duras é que antes de
sua morte ela deixa seus diários para o governo francês, que são publicados em forma
de livro. Esse texto é considerado como documento da Segunda Guerra Mundial, uma
fonte histórica. A primeira parte do livro “A dor” corresponde a trechos desse diário.
Talvez a premência em falar de sua situação limite a tenha encorajado a transformar o
seu diário em ficção. A publicação desse diário somente na iminência de sua morte
corrobora com a hipótese de que, por motivos difíceis, ou mesmo impossíveis de serem
delimitados, não poderia ter sido lançado no momento em que o fora a narrativa A dor.
Saindo das hipóteses e entrando na análise, “A dor” corresponde à primeira e
maior parte do livro. No prólogo inicial, a autora esclarece a procedência do texto.
Como explicitado anteriormente, trata-se de um diário escrito em dois cadernos que
foram encontrados nos armários azuis de Neauphle-le-Château. A narrativa de sua
espera por Robert L., nome pelo qual ela chama seu marido no texto, é tão visceral que
o próprio leitor anseia por saber se ele de fato irá aparecer ou não. É uma espera em
conjunto. Ela não está mais sozinha. E aquela pressuposição de Ricoeur, segundo o qual
a testemunha solicita do Outro que o escute e que o legitime, torna-se contundente a
cada página que se segue.
A dor é personificada, como alguém que não a deixa, que a acompanha e que
acompanha o seu leitor: “A dor é tanta, ela sufoca, está sem ar. A dor precisa de espaço”
(DURAS, 1986, p. 12). A retórica é usada com toda a sua potência e por mais que o
leitor nunca tenha passado por essa mesma situação limite, a testemunha não se
encontra mais sozinha.
Essa primeira parte segue as marcas existentes em um diário, com divisões por
datas. Mas que podem ser mais gerais – “Abril” – ou mais específicas – “20 de abril”,
“Quinta-feira, 26 de abril”. A mesma data pode ter duas entradas – “Sexta-feira, 27 de
abril” e “27 de abril” –, indicando que foram escritas em momentos diferentes do dia. E,
tal qual em um diário, a quantidade de texto varia conforme a necessidade de explicitar
melhor os sentimentos ou descrever algum fato que aconteceu.
Assim começa o texto propriamente dito: “Abril. Na frente da lareira, o telefone,
a meu lado. No fundo do corredor, a porta de entrada. Ele poderia vir direto, tocaria na
porta de entrada” (p. 9). Podemos imaginá-la tensa, olhando tanto a porta quanto o
telefone, enquanto ela descreve cenas de como seria o reencontro, se iria ligar antes de
aparecer ou não. Tenta pensar que sua volta não seria nada de “extraordinário”, mas
algo perfeitamente aceitável. Ao sair de casa, tudo parece normal. Pessoas ligam para
saber dela e dele. Ela não quer explicar, só quer que o telefone seja usado para ouvir a
voz de Robert.
E se ele morrer? Tenta afastar isso e continua a sua espera. Um trecho relevante
é quando afirma: “Ele que está ao mesmo tempo contido nos milhares de outros e
destacado dos milhares de outros apenas para mim, totalmente separado, só. Tudo o que
se pode saber quando nada se sabe, eu sei” (DURAS, 1986, p. 12). Aqui, é possível
identificar que Robert L. está tanto na esfera do individual quanto na do coletivo. Ele
faz parte da catástrofe humana que é a Shoah. A narradora tem consciência disso. Mas
ele também faz parte do universo individual, do homem, do único homem pelo qual ela
espera. Como afirmou Ricoeur, esse evento está tanto no coletivo quanto no individual
no momento de seu acontecimento. Não foi necessário que nenhum historiador o
estudasse para que já fizesse parte do imaginário coletivo. Essa mesma duplicidade do
evento está presente quando ela afirma que “não se trata de notícias. Trata-se de
informações sobre as atrocidades nazistas” (DURAS, 1986, p. 18).
Ao relatar a chegada de comboios com deportados, a autora mostra as diversas
reações que compõem o quadro. A reação histérica de mulheres, que gritam a espera de
respostas dos filhos, maridos, pais. Enquanto algumas pessoas, situadas um pouco
distantes, estão lá apenas como espectadores, para ver a cessar ou continuar do
sofrimento alheio. Duras está lá em busca de notícias também, causando comoção entre
seus familiares e amigos. Chegam a dizer que ela não deveria se anular tanto,
chamando-a de louca, doente. Mas ela afirma não conseguir perceber isso e, entre
colchetes, coloca uma observação: “[Mesmo agora, quando transcrevo esses episódios e
minha juventude, não consigo perceber o sentido dessas frases]” (p. 28). Essa
interferência da autora nos escritos de sua juventude não interrompe o fluir da narrativa.
Ao contrário, faz emergir o caráter testemunhal do texto. Testemunho que ela reitera
mesmo depois do passar dos anos.
A sua espera é angustiante. Então, ela relata o caso de uma senhora que não
espera mais. Recebeu uma carta e sabia que nunca mais reveria seu filho. O relato é
comovente e a autora afirma: “Penso nela porque não espera mais” (p. 37).
Durante o texto, é premente a necessidade de relatar, dando um valor coletivo ao
evento:
Se derem um valor alemão ao horror e não um valor coletivo, o homem
de Belsen será reduzido às dimensões da alçada regional. A única
resposta para esse crime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-
lo. Assim como a ideia de igualdade, de fraternidade, Para suportá-lo,
para tolerar a ideia, partilhar o crime (DURAS, 1986, p. 59-60)
É preciso falar, transmitir o que se passou com os homens e mulheres que foram
vítimas, tanto indo para os campos, quanto os que ficaram esperando. É preciso
partilhar as atrocidades que foram cometidas, que o homem foi capaz de fazer a outro
homem, não se tratando mais de questões nacionalistas, mas humanas.
Em outro trecho, a narradora trata da sua relação com a leitura de forma
emblemática:
Tentamos ler, teríamos tentado qualquer coisa, mas as frases não se
encadeiam, embora suspeitemos que esse encadeamento exista (...) Não
há mais espaços entre mim e a primeira linha dos livros que são
escritos. Todos os livros estão atrasados em relação à Sra. Bordes e a
mim. Estamos na vanguarda de uma luta sem nome, sem armas, sem
sangue derramado, sem glória, na vanguarda da espera. Atrás de nós
estendem-se a civilização em cinzas e o saber acumulado durante
séculos (DURAS, 1986, p. 42-43)
A literatura existente não consegue dar conta da profusão de sentimentos pela qual a
narradora está passando. A literatura está gasta, é preciso que haja uma forma de se
relatar mais pungente, que consiga dimensionar o quão difícil é a espera. Em muitos
eventos históricos são narrados apenas os grandes feitos, sociedades homogeneizadas, o
lado da vítima e do perpetrador. Ela está no lado de quem espera, de quem também
sofre com o evento. Ela também é uma vítima e a História tal como é escrita não
contempla a sua dor. Mas, em vez de apenas se lamentar, mostrar que a literatura
existente não dá conta, a publicação de A dor aparece como uma forma de contornar
essa situação, de mostrar outro lado que é apagado na literatura e na História.
Quando Robert retorna, já não é mais o mesmo. Apenas uma forma, “aquela
forma ainda não estava morta, flutuava entre a vida e a morte, e ele havia sido chamado,
o médico, para tentar revivê-la. O médico entrou e foi até a forma e a forma lhe sorriu”
(p. 65). O mais angustiante é, como a autora aponta, que esta catástrofe não ocorreu
com um, dez, cem. Mas milhões de pessoas foram mortas, exterminadas. “Esta nova
face da morte, organizada, racionalizada, descoberta na Alemanha, desconcerta antes de
indignar” (p. 59). Não há precedentes na História, mas o que ocorreu deve ser
considerada em sua dimensão humana, e não apenas centrada em determinada nação. O
texto de Duras acaba por dar uma dimensão individual a esse evento que afetou a
humanidade. Os historiadores, os sociólogos, teóricos tentam mostrar, a partir de suas
próprias ferramentas, a dimensão coletiva, os dados, o funcionamento. Mas a dor da
espera, o sofrimento de quem lê as informações sobre as atrocidades cometidas, mas
não tem o que fazer, em total passividade nesse evento traumático, essa dor precisa de
outros meios para ser sentida e compartilhada. Ao entrarmos em contato com algo tão
íntimo quanto é um diário, olharmos mais de perto o que acontece com uma pessoa de
carne, osso, sentimentos, assim como nós somos.
A importância do livro de Marguerite Duras é que ela, por ter liberdade de
escrever o que bem entender por ter escolhido o recurso literário, consegue enlaçar seu
leitor na dor de sua espera. O testemunho se torna veemente e contundente porque não
há a necessidade de se expor o livro às questões fundamentais para o testemunho grosso
modo, a saber, a busca pela verdade. O único limite existente é o da ética, o que ela
pode ou não narrar para não intoxicar o leitor. Mas é um limite com o qual ela não se
prende. Ela não deixa de falar das situações mais corriqueiras, mas que são abjetas, que
mostram o inumano no humano. A autora, mesmo sem seguir o testemunho de forma
tradicional, como foi apontada pela análise de Paul Ricoeur, consegue, através da
ficção, falar de sua dor, de sua espera, de forma que seu testemunho não possa ser mais
esquecido por quem leu a narrativa.
A volta de Robert já não é mais parte do diário, mas uma narrativa, que não
sabemos muito bem quando foi escrita. Se foi feito propriamente para o livro, se foi
retirado de anotações da época. Mas, isso pouco importa, uma vez que estamos diante
de um texto ficcional. A narrativa continua com a mesma força. As descrições de como
foi lidar com Robert, de sua situação abjeta, e de como “as forças voltaram”, frase
repetida três vezes, a fim de demonstrar o progresso alcançado pelo tratamento.
Duras ainda afirma: “Eu me apoiava nas venezianas, a rua passava lá embaixo,
e como desconhecessem o que estava acontecendo no quarto, tinha vontade de dizer
que naquele quarto, acima deles, um homem voltara dos campos alemães, vivo” (p. 68).
E ela consegue gritar não apenas pela janela, mas ao mundo todo através da publicação
de seu livro. Quem lê, consegue ter a dimensão da espera, da sensação de ver a pessoa
diante de si, do medo de que o tratamento não funcione. Ela descreve a fragilidade do
corpo, o aspecto das fezes: “dezessete dias sem se parecer com alguma coisa conhecida.
Sentíamos seu cheiro em cada uma das sete vezes por dia em que ele evacuava” (p. 69).
Estamos realmente diante de um ser humano, e não de teorias ou tentativas de
explicação. O relato é libertador para quem sofreu tamanho trauma. Tanto que o próprio
Robert Antelme também publica um livro chamado A espécie humana – traduzido para
o português apenas em 2013 –, em que retrata a rotina de um campo de concentração. E
Duras termina dizendo que por toda a sua vida “em todas as horas, em todos os dias, eu
não parava de pensar: ‘Ele não morreu no campo de concentração’” (p. 79).
Terminando, assim, o seu relato.
Em suma, o presente trabalho analisou a noção de limite da representação nas
narrativas de catástrofe, tal como aponta Paul Ricoeur. Em sua perspectiva, há situações
que exigem que o modo de falar sobre determinados fatos históricos tenham outra
abordagem, que não a usada tradicionalmente. Um dos fatos mais relevante é o papel da
testemunha nesses casos de situação limite. A memória, além dos problemas que já
apresenta em si, como a exigência de comprovação através de outros dados, após evento
traumático, torna-se mais problemática. A pessoa que passou pelo trauma tem
problemas em relatar o fato, embora tal relato seja visto como necessário. Nesse sentido,
apresentou-se a utilização da ficção como recurso para se legar o testemunho na
narrativa A dor, de Marguerite Duras. Se, em um primeiro momento, o uso de tal
recurso pode ser encarado como problemático por não se tratar do uso da verdade, de se
falar com a autoridade dos fatos, torna-se uma experiência pungente para o leitor, que
de fato é tocado pela narrativa. Obviamente, a perspectiva de Ricoeur sobre testemunho
e História apresenta alguns problemas. Por exemplo, Beatriz Sarlo (2007) afirma que o
autor fora seduzido pelos relatos das vítimas da Shoah, pelo discurso da
irrepresentabilidade (cf.: SARLO, 2007, p. 38). Mas o esforço desse trabalho não se
operou na tentativa de apontar o pensamento de Ricoeur como o único possível para se
tratar do testemunho. O esforço foi demonstrar que Duras consegue transpor os tais
limites da representação de uma situação catastrófica como foi o caso da Shoah
utilizando o recurso ficcional, de forma magistral.
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