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Revista História Hoje Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira ANPUH - Brasil

Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira · Circe Maria Fernandes Bittencourt – USP Dilton Cândido Santos Maynard – UFSE Eduardo França Paiva – UFMG Flávia

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Revista História Hoje

Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira

ANPUH - Brasil

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Diretoria NacioNal • aNPUH - Brasil • GestÃo 2011-2013

Presidente: Benito Bisso Schmidt – UFRGSVice-Presidente: Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRNsecretário Geral: Angelo Aparecido Priori – UEM1o Secretário: Antonio Celso Ferreira – UNESP2o Secretário: Carlos Augusto Lima Ferreira – UEFS1o Tesoureiro: Francisco Carlos Palomanes Martinho – USP2o Tesoureiro: Eudes Fernando Leite – UFGDeditoria da revista Brasileira de História: Marieta Moraes Ferreira – UFRJ/FGVeditoria da revista História Hoje: Patrícia Melo Sampaio – UFAM

coNselHo coNsUltivo • aNPUH - BrasilAlmir Félix Batista de Oliveira – ANPUH-RNAltemar da Costa Muniz – ANPUH-CEÁurea da Paz Pinheiro – ANPUH-PIBraz Batista Vas – ANPUH-TOCélia Costa Cardoso – ANPUH-SECélia Tavares – ANPUH-RJÉlio Chaves Flores – ANPUH-PBEurelino Coelho – ANPUH-BAHélio Sochodolak – ANPUH-PRHideraldo Lima da Costa – ANPUH-AMJaime de Almeida – ANPUH-DFJoão Batista Bitencourt – ANPUH-MAJulio Bentivoglio – ANPUH-ESLuís Augusto Ebling Farinatti – ANPUH-RSLuzia Margareth Rago – ANPUH-SPMarcília Gama – ANPUH-PEMaria da Conceição Silva – ANPUH-GOMaria de Nazaré dos Santos Sarges – ANPUH-PAMaria Teresa Santos Cunha – ANPUH-SCNeimar Machado de Sousa – ANPUH-MSRonaldo Pereira de Jesus – ANPUH-MGSérgio Onofre Seixas de Araújo – ANPUH-ALThereza Martha Borge Presotti Guimarães – ANPUH-MT

RePReSenTanTe da anPUH/BRaSil no ConSelHo naCional de aRqUiVoS (ConaRq)

Ismênia de Lima Martins - UFF (Titular)Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira - UERJ (Suplente)

Revisão: Armando OlivettiDiagramação: Flavio Peralta (Estúdio O.L.M.)

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Revista História Hoje

Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira

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Revista História Hoje nº 1 • Biênio: Agosto de 2011 a Julho de 2013

Editora ResponsávelPatrícia Melo Sampaio – UFAM

Conselho editorial da RHHJAndréa Ferreira Delgado – UFSCÂngela Maria de Castro Gomes – UFFCirce Maria Fernandes Bittencourt – USPDilton Cândido Santos Maynard – UFSEEduardo França Paiva – UFMGFlávia Eloisa Caimi – UFPFJosé Miguel Arias Neto – UELJosenildo de Jesus Pereira – UFMAKeila Grinberg – UNIRIOLuiz Carlos Villalta – UFMGMarcelo de Souza Magalhães – UNIRIOMauro Cézar Coelho – UFPAMônica Lima e Souza – UFRJNilton Mullet Pereira – UFRGSSusane Rodrigues de Oliveira – UnB

Conselho consultivo da RHHJAna Livia Bomfim Vieira – ANPUH-MAAntonio Jacó Brand – ANPUH-MS Carla Mary da Silva Oliveira – ANPUH-PBChrislene Carvalho dos Santos – ANPUH-CE Claudira do Socorro Cirino Cardoso – ANPUH-RS Cristiano Pereira Alencar Arrais – ANPUH-GO Franciane Gama Lacerda – ANPUH-PA James Roberto Silva – ANPUH-AM Janete Ruiz de Macedo – ANPUH-BAJosé Antonio Vasconcelos – ANPUH-SPLaurindo Mékie Pereira – ANPUH-MG Marcelo Balaban – ANPUH-DF Marcos Silva – ANPUH-SE Osvaldo Batista Acioly Maciel – ANPUH-AL Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes – ANPUH-SC Yonissa Marmitt Wadi – ANPUH-PR

Secretária da RHHJPaula Dantas – UFAM

Endereço na Web: http://rhhj.anpuh.org/ojs/index.php/RHHJ/index Email: [email protected] e [email protected]

A Revista História Hoje publica artigos relacionados à temática de História e Ensino com a finalidade de promover a divulgação de reflexões, projetos e experiências nesta área e também criar um espaço institucional de debate relativo aos campos de trabalho dos profissionais de História.

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SUMÁRIO

Apresentação 7

Dossiê: Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira

Apresentação • Dossiê 13

Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África 17Marina de Mello e Souza

Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de História da África nas escolas brasileiras 29Anderson Ribeiro Oliva

Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil 45Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais 61Verena Alberti

O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história 89Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

“Por uma autêntica democracia racial!”: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história 111Amilcar Araujo Pereira

Entrevista Mônica Lima e Souza 131Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

Artigos

Reflexões sobre o ensino colonial em África: trajetórias da instituição escolar no antigo Sudão (1889-1952) 139Patricia Teixeira Santos

As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES) 157Michel Dal Col Costa

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Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo para a construção da educação das relações étnico-raciais 179Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

Diásporas e comunidades quilombolas: perspectivas metodológicas para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira 193Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz

Para construir outro olhar: notas sobre o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras 217Hilton Costa

Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira 239Luciano Everton Costa Teles

Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica 253Marcos Silva

Falando de História Hoje Currículos de História e expectativas de aprendizagem para os anos finais do ensino fundamental no Brasil (2007-2012) 269Margarida Oliveira e Itamar Freitas

E-storiaE-storia 307Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

História Hoje na sala de aulaDetetives do passado no mundo do futuro: divulgação científica, ensino de História e internet 315Keila Grinberg e Anita Almeida

ResenhasHistoriografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades, da gênese da historiografia ao lugar da História Ensinada nos dias de hoje 329Mauro Cezar Coelho

Oficina da história no ciberespaço 335Anita Lucchesi

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ApresentAção

A revista História Hoje inicia uma nova fase com a publicação do núme-ro 1 desta série. Em julho de 2011, retomando discussões e anseios que mar-caram sua criação em 2003, o Conselho Editorial assumiu a tarefa de revitali-zar o periódico, adotando a temática “História e Ensino” como estrutura de sua linha editorial. Para isso, investiu na publicação de Dossiês Temáticos, reviu a periodicidade da revista, agora semestral, e criou novas seções para a RHHJ – “História Hoje na Sala de Aula”, “E-Storia” e “Falando de História Hoje”, com a finalidade de manter canais de diálogo permanentes com pro-fessores e pesquisadores, discutindo e compartilhando experiências. Por fim, a migração para a base OJS/SEER, ao garantir acesso amplo e maior qualidade editorial, completa este momento significativo na institucionalização da RHHJ na Anpuh/Brasil, no momento em que completamos 50 anos.

Neste número, abrimos com o Dossiê “ensino da História da África e da cultura afro-brasileira”, organizado por Martha Campos Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho. Ele reúne autores com experiências ricas e subs-tantivas para refletir sobre as conquistas e desafios decorrentes da implantação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O resultado, como se verá, é extraordiná-rio! Participam dele Marina de Mello e Souza (“Algumas impressões e suges-tões sobre o ensino de história da África”), Anderson Ribeiro Oliva (“Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de História da África nas escolas brasileiras”), Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho (“Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil”), Vere-na Alberti (“Proposta de material didático para a história das relações étnico--raciais”), Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza (“O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história”) e Amilcar Araujo Pereira (“‘Por uma autêntica democracia racial!’: os movimentos negros nas escolas e

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Apresentação

nos currículos de história”). Lidos em conjunto, os artigos apresentam um retrato vívido da diversidade do campo, de seu notável vigor e dos inúmeros enfrentamentos que ainda se colocam diante de nós, profissionais de História. Todas essas dimensões ganham perspectiva renovada na emocionante entre-vista de Mônica Lima e Souza, também conduzida pelos organizadores do Dossiê.

Entre os artigos, o de Patricia Teixeira Santos nos permite acompanhar as experiências do cotidiano escolar no Sudão contemporâneo, enquanto o de Michel Dal Col Costa ilumina a sonoridade e o colorido das vivências das crianças capixabas envolvidas nas bandas de congo mirins. A preocupação com a articulação entre produção historiográfica, construção curricular, cultura histórica e saberes escolares dão o tom dos textos de Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza, de Maria Walburga dos Santos e Ana Cristina Juvenal da Cruz, de Hilton Costa e de Luciano Everton Costa Teles. As reflexões produzidas nos convidam ao debate e também à análise das diferentes possibilidades que as experiências de ensino e de pesquisa têm re-velado. Por fim, Marcos Silva nos coloca diante de questões contemporâneas quando se debruça sobre o impacto e as possibilidades de uso da cibercultura nas práticas pedagógicas.

Falando de História Hoje é um espaço dedicado a reflexões e debates de temas do nosso tempo. O artigo de Margarida Oliveira e Itamar Freitas traz uma leitura de peso para um problema candente: a questão dos currículos de História. Os autores apresentam os resultados de uma pesquisa que examinou currículos de História em 18 estados brasileiros entre 2007 e 2012 com a fina-lidade de conhecer o que se tem pretendido ensinar, como podemos intervir e o que ainda não sabemos sobre essa questão.

e-storia é uma seção que nasceu com espírito inovador. Dilton Cândido Santos Maynard e Marcos Silva, seus organizadores, partiram da imensa gama de possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação para oferecer aos leitores da RHHJ, a cada edição, em lugar de uma listagem de endereços eletrônicos, a indicação de novos ambientes no mundo virtual que sirvam de inspiração e de estímulo. Na mesma direção, Keila Grinberg e Anita Almeida inauguram a seção História Hoje na sala de aula com os “Detetives do Pas-sado”, uma estimulante iniciativa, detalhada no texto que reuniu temas como

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Apresentação

divulgação científica, ensino de História e o impacto da internet no nosso trabalho.

Na seção resenhas, Mauro Cezar Coelho faz uma incursão instigante na obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães, Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857), enquanto Anita Lucchesi analisa o livro Escritos sobre história e internet, de Dilton C. S. Maynard.

Deixo registrado o entusiasmo, o comprometimento e o espírito de tra-balho coletivo dos membros do Conselho Editorial para que pudéssemos che-gar até aqui. Todo nosso empenho é fazer que a revista História Hoje se trans-forme em uma referência nas discussões da área, abrangendo dimensões do Ensino da História nos níveis Fundamental, Médio e Superior e consolidando--se como espaço efetivo de circulação e compartilhamento de ideias e expe-riências acerca de um dos nossos mais importantes compromissos: a formação de gerações empenhadas em um ideal de cidadania, pautadas pelo respeito à diferença, pela valorização da diversidade e por uma compreensão crítica sobre o tempo que passa.

A revista História Hoje convoca os historiadores a interagirem com a sociedade em que vivem, a atuarem positivamente sobre o presente, a eviden-ciarem a relevância da reflexão sobre o passado em um dos mais nobres cam-pos de atuação, a Educação e seus desdobramentos. Pois, ao fim e ao cabo, ela é a nossa mais importante trincheira.

Patrícia Melo Sampaio Editora (2011/2013)

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ApresentAção

Com enorme orgulho, apresentamos ao público o dossiê “Ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira”, elaborado por especialistas, professores e pesquisadores da área. Nosso objetivo foi reunir trabalhos que discutissem as conquistas resultantes da implantação da obrigatoriedade le-gal do estudo da História da África e do Negro no Brasil, assim como os li-mites, problemas e desafios com que se defrontam os profissionais de edu-cação que assumem tão importante tarefa. Mas, em meio a muitas dificuldades enfrentadas pelos professores – dentre elas a insuficiência de formação teórica e prática, a oposição de familiares e setores sociais, a carên-cia de recursos pedagógicos para aprofundamento da temática –, é evidente que a Lei 10.639/2003, modificada pela Lei 11.645/2008, vem sendo implan-tada e, hoje, podemos acompanhar diversas experiências positivas em várias unidades escolares espalhadas pelo Brasil. Sem dúvida, os visíveis esforços nesse sentido contribuem significativamente para a construção de uma so-ciedade brasileira mais justa e mais livre dos preconceitos e discriminações que sempre acompanharam as visões sobre o africano e seus descendentes na Diáspora. Nosso dossiê visa também oferecer aos leitores, especialmente aos educadores e aos interessados em geral, caminhos de trabalhos pedagó-gicos e reflexões teóricas no que diz respeito ao “Ensino da História da Áfri-ca e da Cultura Afro-brasileira”.

Marina de Mello e Souza escreve “Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África” com base em sua experiência na formação de professores e como autora de livro de referência sobre o assunto. Oferece um balanço sobre as possibilidades de acesso a conhecimentos a respeito da Áfri-ca, inclusive no que se refere às fontes orais, e, ao mesmo tempo, discute as inúmeras dificuldades e os preconceitos enfrentados pelos docentes que se

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Apresentação • Dossiê

envolvem com o ensino de temas afro-brasileiros. A autora, fundamentalmen-te, procura compreender as razões históricas e ideológicas desses empecilhos, base fundamental para sua superação.

Discutir a importância de se refletir sobre a identidade brasileira para se assegurar um currículo que contemple a História da África no Brasil consti-tui um questionamento central no artigo de Anderson Ribeiro Oliva, “Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de História da África nas escolas brasileiras”. O autor, a partir das contribuições trazidas pelas reflexões sobre multiculturalismo, culturas híbridas, identidades plurais e parciais, afirma a necessidade de se reconhecer, no ambiente escolar e em seus currículos, as múltiplas identidades obscurecidas por uma nacional, pre-tensamente homogênea e exclusiva. Em sua opinião, nossas escolas ainda desconhecem os traços culturais específicos de determinadas comunidades de alunos, impondo-se um discurso oficial da Identidade Nacional. Não ha-verá, para Oliva, um espaço criativo e transformador para uma História da África nos currículos se não tivermos, como suporte, uma prática de respei-to e valorização da diversidade identitária dos nossos discentes, componente curricular importante não só para os afrodescendentes, como para aqueles que não o são, pois a maneira como se enfrenta a alteridade também trans-forma os sujeitos.

Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho oferecem um sincero e ins-tigante retrospecto de suas motivações e opções ao escreverem Uma História do Negro no Brasil. Ao ler o artigo, refletimos sobre as conquistas e desafios colocados aos profissionais de História com as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais da Lei 10.639/2003. Dentre os caminhos oferecidos pelos autores, destaca-se a valorização do protagonismo dos africa-nos e seus descendentes no contexto cultural, para além do mundo do trabalho e da escravidão. Essa perspectiva torna-se uma importante estratégia para o combate ao racismo e para a superação de antigas representações sobre a pre-sença negra na sociedade brasileira.

Brindando-nos com diretrizes e sugestões para a elaboração de materiais didáticos sobre a história das relações raciais no Brasil, Verena Alberti em “Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais” considera especialmente sua disponibilização na rede virtual. Sua prioridade

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Apresentação • Dossiê

é apontar caminhos para que o aluno possa refletir historicamente, ou, em sua própria expressão, para que aprenda a conhecer o passado como forma de se ‘alfabetizar’ na ‘leitura do mundo’. Entre as questões tratadas, destacam--se a implantação do trabalho escravo indígena e africano, a generalização dos termos ‘índio’ e ‘negro’, o uso das biografias de africanos e seus descen-dentes, as lutas pelo fim da escravidão, a importância das noções de ‘raça social’ e etnia ou da dimensão ‘cor’ no Brasil e a atuação dos movimentos negros e indígenas.

Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza, com o artigo “O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história”, apresentam o impac-to da Lei 10.639/2003 no sistema de ensino brasileiro. Principalmente a partir das possibilidades de trabalho em sala de aula com as manifestações culturais de congadas e reisados, procuram oferecer subsídios para as discussões sobre a cultura afro-brasileira e identidades no ensino de História. Uma ótima su-gestão dos autores é o uso de práticas iniciais de história oral, propondo rodas de conversa e entrevistas com diferentes sujeitos envolvidos em práticas e ma-nifestações culturais afro-brasileiras.

Completando o conjunto, o texto “‘Por uma autêntica democracia racial!’: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história”, de Amilcar Araujo Pereira, oferece subsídios para que se possam compreender historica-mente os movimentos negros no Brasil e os motivos para que essa problemá-tica não tenha sido ainda contada nos bancos escolares. Tema fundamental para ser tratado no ensino de História, permite que o professor se afaste de imagens preconceituosas, amplamente difundidas nos livros didáticos, sobre escravos passivos e vitimizados. Dentre as principais e mais antigas reivindi-cações dos movimentos negros, destaca-se exatamente a luta pela reavaliação do papel do afrodescendente na história do Brasil.

Acreditamos que o presente dossiê será de grande valia para dar continui-dade à efetiva implantação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, pois sabemos que uma legislação educacional é vivida no cotidiano escolar de formas dife-renciadas, de acordo com os docentes que a aplicam, mas que destes se exige reflexão para que tenham condições objetivas e subjetivas de praticá-la. Acom-panhando este Dossiê, a seção Entrevista da Revista História Hoje traz neste número um empolgante depoimento da historiadora Mônica Lima, reconhe-cida referência na área de pesquisa e ensino de História da África.

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Enfim, não podemos deixar de louvar a preocupação da revista História Hoje em nos oferecer a oportunidade de organizar este dossiê, permitindo aos pesquisadores a divulgação de suas reflexões críticas e, a seus leitores e ao público em geral, possibilidades de transformação de nossa identidade brasi-leira. Nossos agradecimentos.

E, agora, mãos à obra!

Martha Campos Abreu Silvio de Almeida Carvalho Filho

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Apresentação • Dossiê

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

Some impressions and suggestions on teaching African history

Marina de Mello e Souza*

ResumoCom base na experiência como professo-ra de história da África e no contato com professores de níveis diversos, indico al-guns problemas referentes ao ensino de história da África e, secundariamente, cultura afro-brasileira, e proponho for-mas de o professor abordar o tema e aprimorar seu domínio sobre a área.Palavras-chave: ensino de história da África; pesquisa de história da África; vencendo preconceitos.

AbstractFrom my experience as a teacher of Af-rican history and the contact with teachers working in different levels, I point out some problems concerning teaching African history and, second-arily, afro-Brazilian culture, and I sug-gest ways that can help teachers to ap-proach the subject and to enhance their knowledge about this area.Keywords: teaching of African history; researching African history; struggling against prejudices.

Quase dez anos após a promulgação da Lei 10.639, que regulamentou a obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileira nas escolas de nível fundamental e médio, o tema ainda é polêmico e a lei não é plenamente aplicada. Como o assunto é dos mais delicados, envolvendo ques-tões centrais na construção da nacionalidade e identidade brasileiras no que diz respeito às formas como as heranças africanas e escravistas deixaram suas marcas, essas dificuldades são compreensíveis. Inserirmos as formas de abor-dar as contribuições africanas nos processos históricos e nos contextos que as conformaram da maneira como se apresentam hoje é condição para que en-tendamos melhor como lidamos com elas. E é assim que têm agido os interes-sados no assunto que o abordam com mais seriedade, considerando as noções

* Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 338. 05508-000 – São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

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evolucionistas e da ideologia do branqueamento em vigor no final do século XIX e início do XX, os conflitos e contradições presentes na consolidação de uma jovem nação que buscava se integrar no mundo ocidental de acordo com os valores dele emanados, as soluções encontradas por intelectuais e políticos para afirmar uma identidade própria, mestiça, agregadora e inimiga de confli-tos abertos, e as várias maneiras, em diferentes momentos, pelas quais mili-tantes negros propuseram que a segregação racial fosse tratada, em termos não só teóricos mas também práticos.

O meu ingresso no terreno do ensino de história da África e cultura afro--brasileira deu-se a partir do momento em que me tornei professora de histó-ria da África, em 2001, e principalmente depois de ter escrito um livro paradi-dático, África e Brasil africano, cuja primeira edição é de 2006, portanto derivado da minha prática e não de um projeto prévio. Desde então criamos um novo curso no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), voltado para ajudar futuros professores a cumprirem as demandas da Lei 10.639, e passei a dar palestras e visitar escolas em vários lugares do Brasil para apresentar o livro e conversar com professores sobre o ensino dos temas ali contidos. Essas experiências, ligadas à academia e ao ensino fundamental e médio, permitiram-me conhecer ações e situações diversas.

É nítido que nos últimos anos, a despeito das dificuldades e, em muitos casos, da falta de empenho daqueles que deveriam estar à frente dos processos de implantação da lei, os temas ligados à cultura afro-brasileira e à África ga-nharam espaço nas reflexões e ações dos educadores. Isso pode ser constatado pela proliferação dos cursos de formação de professores voltados para o assun-to, por meio da produção de material didático, elaboração de sites e publicação de literatura infanto-juvenil e adulta. O que não quer dizer que estejamos em céu de brigadeiro, pois parte do material didático apresenta problemas signi-ficativos quanto à forma como os temas são apresentados, muitas vezes refor-çando estereótipos e frequentemente demonstrando um conhecimento muito precário no que diz respeito à história da África. Com relação aos cursos de formação tenho menos conhecimento. Esse quadro é resultado de anos de desatenção aliada à súbita valorização do assunto e às demandas não só edu-cacionais como também de mercado, mas pode ser alterado de forma positiva com o tempo e atitudes adequadas.

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

Olhando para minha própria experiência, entendo que o mais importan-te para avançarmos de forma adequada no sentido de produzir e transmitir um conhecimento de qualidade é trazermos para primeiro plano a necessida-de de estudo e pesquisa. Sem eles, não há como alcançar e transmitir conheci-mentos de qualidade. Se esses requisitos são mais fáceis de alcançar quando estamos inseridos no meio universitário (e mesmo nele, nem sempre), eles devem ser estendidos para todos os níveis da educação, pois sem formação adequada e tempo para estudo permanente fica difícil ser um professor dinâ-mico, atualizado, com capacidade não só de transmitir informações corretas como de captar a atenção dos alunos, num mundo cada vez mais cheio de estímulos interessantes e absorventes. E se já é difícil manter-se atualizado com relação a temas há muito explorados, a dificuldade aumenta quanto tratamos de assuntos estigmatizados, permeados de preconceitos e, por isso mesmo, postos à margem.

No que diz respeito ao ensino de história, as universidades são a principal instância formadora de professores e há nelas um aumento da atenção dada à África que pode ser medido pelo número de concursos que são abertos nessa área. Entretanto, mesmo nesse âmbito, que podemos considerar pioneiro, per-cebemos a dificuldade no estabelecimento de estudos africanos, seja por esta-rem frequentemente diluídos nos estudos sobre tráfico e escravidão, seja pela dificuldade em preencher os postos abertos, na medida em que muitos con-cursos não aprovam nenhum candidato. Passando para o ensino fundamental e médio, ao lado das exceções representadas por experiências bem-sucedidas, multiplicam-se os depoimentos de professores que, para atender à lei ou por interesse particular, propõem medidas às coordenações das escolas nas quais dão aulas, sem serem ouvidos. As ações tomadas nesse sentido ficam, então, geralmente restritas às iniciativas pontuais e individuais, que além de não te-rem apoio institucional muitas vezes são mal vistas pelos colegas e superiores. Em tese defendida no Departamento de Antropologia da USP, Raquel Bakke chamou de “pedagogia do evento” uma situação também recorrente, na qual são desenvolvidas atividades relacionadas a datas específicas como o Dia da Consciência Negra ou celebrações em torno do dia 13 de maio, sem nenhum desdobramento posterior.1

Há ainda a situação na qual são tomadas iniciativas no sentido de promo-ver estudos sobre a África e a cultura afro-brasileira, mas o despreparo ou os

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interesses políticos dos agentes levam a que o enfoque adotado e os conteúdos transmitidos careçam de consistência ou mesmo veiculem informações erra-das. Nesse sentido, não é raro encontrarmos material didático, tanto para su-porte de cursos de formação quanto para ser usado em aula, cheio de erros grosseiros, principalmente quanto se trata de história da África, ou de parti-darismos ideológicos resultantes de uma dada militância, principalmente quando aborda temas relativos à cultura afro-brasileira. A despeito desses pro-blemas, característicos de uma área em processo de constituição e permeada de questões ideológicas, não se pode jogar a criança fora com a água do banho. O importante é que os problemas sejam detectados com acuidade cada vez maior e os desvios sejam corrigidos: e pelo que percebo isso vem sendo feito com o aprimoramento e a disseminação do conhecimento sobre assuntos afri-canos e o desnudamento dos preconceitos que envolvem o tratamento de te-mas afro-brasileiros.

O aprimoramento do conhecimento acerca da história da África pode ser medido pelo aumento de traduções para o português de textos importantes para a área e da publicação de trabalhos produzidos por estudiosos brasileiros, na maior parte das vezes vinculados a programas de pós-graduação.2 A disse-minação desse conhecimento produzido na esfera acadêmica deve ser alcan-çada com a sua articulação com outros níveis de ensino, revistas de divulgação, programas ligados a mídias audiovisuais, cursos de curta duração e outras formas de levar para fora dos limites da universidade o conhecimento ali pro-duzido. Na medida em que essa articulação ganhe força, será possível garantir um ensino de qualidade com menos margem de erro, tanto no que diz respei-to à produção de material didático quanto no que se refere às aulas nos diver-sos níveis e cursos de formação de professores. E pelo que vemos, esse proces-so está em curso, mesmo que com menor velocidade e abrangência do que seria ideal.

Quando nos voltamos para os segmentos menos favorecidos, que frequen-tam as escolas públicas, nas quais as condições de trabalho são na maior parte das vezes bastante precárias, há uma variável importante que, conforme vários relatos, tem prejudicado a implantação do estudo de temas africanos e afro--brasileiros. Ela diz respeito à resistência, e mesmo oposição aberta, dos adep-tos de religiões evangélicas quanto ao ensino de cultura afro-brasileira. São vários os depoimentos relativos à dificuldade de abordar assuntos relativos à

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

religiosidade africana ou afro-brasileira na presença desses grupos, os quais se recusam a tratar do assunto, quando não partem para a ofensiva diante do que entendem serem seitas diabólicas.

Esse tema foi abordado com vagar na já mencionada tese de Raquel Bakke. Por meio de uma pesquisa de campo a autora constatou que a esfera religiosa é a preferencialmente eleita pelos professores e programas de cursos para abor-dar a cultura afro-brasileira. De acordo com sua análise há um processo de transformação da religião em cultura, com aquela assumindo a totalidade da expressão desta. Isso estaria ligado à elevação do candomblé como símbolo máximo da identidade afro-brasileira e à sua associação com a ideia de resis-tência negra na construção de identidades. Como o ensino de temas afro--brasileiros estaria intimamente vinculado a uma posição política, a religião, como espaço maior de resistência, seria privilegiada como tema. Dessa forma, aumentaria a dificuldade da implantação real da Lei 10.639, pois são justamen-te os temas ligados às religiosidades afro-brasileiras os que encontram maior resistência junto a professores e alunos, principalmente se a presença de evan-gélicos for significativa. Esse mecanismo recorrente seria, no seu entender, um fator, entre outros, da dificuldade de execução das recomendações da lei. Dian-te do quadro descrito pela autora, me parece que um caminho para contornar essa dificuldade seria mudar o foco de interesse principal para outra esfera, que não a religiosa, e dessa forma introduzir conhecimentos que permitissem a construção de uma relação respeitosa com a alteridade representada pela cultura afro-brasileira.

Vale notar que a pesquisadora estava preocupada com o ensino de cultu-ra afro-brasileira e não de história da África, sugerindo ser exagerada a preo-cupação com o esta última ao dizer que,

Se é possível fazer a crítica ao conteúdo de história, que insiste em dar mais ênfa-se à história da África, e continua não abrindo muito espaço para se analisar o papel do negro como sujeito político após a abolição da escravidão, as demais disciplinas, como geografia, sociologia e filosofia, possibilitam essa abordagem.3

É fato que ao fazer essa observação a autora está apontando para a defi-ciência no tratamento do negro como agente histórico, mas atribui isso à aten-ção excessiva dada à história da África. No meu entender, o que acontece é justamente o contrário. Uma vez que os professores pouco sabem acerca das

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sociedades africanas, seus sistemas de pensamento e os processos históricos por elas vividos, têm dificuldade em abordar temas carregados de preconceitos de forma a derrubá-los, ao tratar os fenômenos das culturas afro-brasileiras com base nas lógicas de suas matrizes africanas e dos processos que lhes deram origem. Minha posição é de que somente conhecendo bem as sociedades afri-canas, suas histórias e os processos que nos ligam a elas, assim como desven-dando as noções por trás da construção histórica e ideológica dos preconceitos contra o africano e o negro, teremos condições de analisar com consistência as manifestações afro-brasileiras e o lugar que os africanos e seus descendentes ocuparam no passado e ocupam no presente, no contexto da sociedade brasi-leira como um todo.

Dessa forma, minha perspectiva também é bastante diferente da que me parece ser a do movimento negro em geral, que vê a lei como possibilidade de afirmação política e inclusão social de um segmento marginalizado da popu-lação. Não que eu discorde disso, mas penso que não são as razões políticas que devem indicar o caminho, sendo o alcance de suas bandeiras o ponto de chegada, e não o de partida. As boas intenções daqueles que se guiam princi-palmente pelas razões políticas acabam sendo fragilizadas pelo descaso quan-to à necessidade de abordar os temas de forma consistente, resultante de estu-do e conhecimento aprofundado acerca deles. Informações equivocadas, e mesmo perniciosas, podem acabar por comprometer as boas intenções, dando munição aos que não concordam com a existência da lei e argumentam que ela reflete uma postura autoritária ou mesmo que acirra antagonismos funda-dos em distinções de base racial. Postura com a qual não concordo de forma alguma e que desconsidera a longa luta encabeçada pelo movimento social genericamente chamado de movimento negro, que conquistou, vencendo re-sistências profundamente arraigadas na sociedade brasileira, um importante espaço no caminho da construção de uma sociedade mais igualitária, na qual as diferenças de aparência e ancestralidade não possam ser acionadas como instrumentos para inferiorizar e marginalizar alguns segmentos sociais.

Como Raquel constatou em sua pesquisa, os temas ligados às culturas afro-brasileiras são assuntos que incomodam, o que resulta na dificuldade em colocar em prática a lei. Para que os temas deixem de incomodar é necessário, no meu entender, explicitar os processos históricos e ideológicos presentes nas bases das percepções contemporâneas acerca da África e da cultura afro-bra-

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

sileira, como aliás, conforme dito no início deste texto, é indicado por várias pessoas que se detiveram sobre o assunto. Dessa perspectiva, é fundamental o ensino de temas africanos, considerados não apenas pelos seus aspectos nega-tivos, largamente divulgados pela imprensa e pelas mídias oficiais, mas sim pelo que podemos chamar de aspectos positivos, ou seja, as características culturais e formas de organização social e política próprias, os processos his-tóricos tanto internos quanto pertinentes à sua relação com outros continentes, seja com as sociedades ocidentais, seja com as orientais.

No meu entender, ao tratarmos de assuntos africanos em geral e história da África em particular, devemos partir do princípio de que temos pouca, ou mesmo nenhuma familiaridade com os temas relativos ao continente africano. Dessa forma, como já dito, o estudo e a pesquisa são requisitos fundamentais para adquirirmos essa familiaridade e aprofundar o conhecimento sobre a África. Se olharmos para a trajetória da construção desse conhecimento no âmbito do chamado mundo ocidental, do qual fazemos parte, veremos que os europeus só passaram a conhecer melhor o continente africano na segunda metade do século XIX, quando se multiplicaram as expedições de exploração. Naquele momento, além de o combate às doenças ali existentes ter se tornado mais eficiente, permitindo a maior sobrevivência dos estrangeiros, as técnicas de medição e de transporte estavam aprimoradas, o que contribuiu para a elaboração de um conhecimento mais preciso sobre o interior da África. Nes-se processo são importantes as sociedades de geografia e as companhias de comércio interessadas em atuar nos espaços africanos, principalmente com-prando matérias-primas e explorando suas riquezas naturais.

Outro princípio fundamental do qual devemos partir diz respeito aos pre-conceitos associados aos povos africanos e suas sociedades. Quando o conhe-cimento sobre o continente começou a se aprofundar, predominavam as ideias de hierarquia entre as raças, baseada em diferenças biológicas, e de hierarquia entre as sociedades, fundada em níveis de evolução. Nesse contexto a África era vista como um continente atrasado, primitivo, habitado por populações em estágios inferiores da evolução humana. Havia variações nessa classificação, e no Brasil, no final do século XIX e ao longo do XX, os iorubás eram vistos como superiores aos bantos, percebidos como detentores de culturas menos complexas, portanto mais primitivas. Essa postura deve ser entendida como resultado de uma maneira de pensar historicamente constituída, ligada a de-

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terminadas teorias que se tornaram ultrapassadas por maneiras de pensar que vieram depois e negaram a ideia de hierarquia entre as raças e mesmo entre as culturas, noção que substituiu a de raças. Hoje pensamos em termos de dife-renças culturais, de sistemas simbólicos, sem inserir as diferenças em uma escala evolutiva, associada às ciências biológicas. Na era da valorização do multiculturalismo e das diferenças os preconceitos podem ser superados ao mostrarmos as bases sobre as quais eles foram construídos, e que não se sus-tentam mais.

No caso específico da história, outro ponto de partida para abordar o continente africano é descartar a ideia de que documentos escritos são impres-cindíveis para o conhecimento histórico. Essa também é uma visão ultrapas-sada na medida em que a história contemporânea incluiu em sua esfera de interesse as camadas populares e mesmo iletradas, sendo suas preocupações antes centradas nos feitos dos dirigentes e dos heróis. Paralelamente a isso, a história passou a utilizar instrumentos de outras disciplinas como a antropo-logia, a análise literária, a geografia, a arqueologia e a linguística, assim como passou a considerar a oralidade uma fonte produtora de informações impor-tantes para a reconstrução dos acontecimentos e processos históricos. Essa postura permite que seja aceita a possibilidade de fazer a história de populações que não deixaram registros escritos e cuja importância não é medida pelo impacto de suas ações na história da humanidade como um todo.

Considero central no ensino de história da África a identificação destes três pontos de ordem mais geral: o desconhecimento sobre o continente afri-cano, a desconstrução dos preconceitos a ele relacionados e a multiplicidade de possibilidades metodológicas na construção do conhecimento histórico. Quanto a o que ensinar, à guisa de auxiliar o professor nesse campo ainda pouco percorrido, proponho alguns conjuntos de fontes para buscar informa-ções sobre a África, considerando a divisão cronológica tradicional no campo da história, assim como o recurso aos documentos escritos, sem me deter nas diferentes escolas de interpretação, pois há uma variedade delas a orientar as análises dos processos ali ocorridos nos diversos tempos.4

Com relação ao período chamado de Antiguidade pela historiografia, as regiões com maior quantidade de informações são as próximas ao rio Nilo, ao mar Vermelho e ao Mediterrâneo, que estavam inseridas nos circuitos comer-ciais e políticos em curso naquela região, considerada em sua totalidade. Fon-

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

tes gregas, romanas e árabes trazem indícios sobre acontecimentos e processos ocorridos no Egito, na Núbia, na Etiópia, nos portos do mar Vermelho e do Mediterrâneo.

Com relação ao período chamado de Idade Média pela historiografia, além de relatos sobre as regiões acima mencionadas existem ainda fontes sobre as sociedades existentes às bordas leste e sul do deserto do Saara, como Gana, Mali e Songai, principalmente de comerciantes e viajantes árabes. Para o final desse período e já entrando na Idade Moderna, existem relatos feitos por afri-canos islamizados, que incorporaram a escrita a partir do contato com os ára-bes na região do Sael, sendo os exemplos mais conhecidos as crônicas escritas no século XVII: Ta’rikh al-Sudan e Ta’rikh el-Fattash, traduzidas para o fran-cês no início do século XX.

Com relação ao período chamado de Idade Moderna pela historiografia, além da existência de documentos sobre todas as regiões já mencionadas, a presença de europeus nas costas atlântica e índica do continente produziu um aumento considerável de relatos escritos por estrangeiros, como comerciantes, administradores, missionários católicos e viajantes. O contato com os europeus em alguns lugares também levou à incorporação da escrita, havendo documen-tos escritos produzidos por africanos principalmente em regiões da África centro-ocidental.5

Com relação ao período chamado de Contemporâneo, os documentos escritos são ainda mais abundantes, acompanhando os processos de incorpo-ração dos padrões ocidentais por parte das sociedades africanas, intensificados a partir do final do século XIX e da ocupação colonial por grande parte do continente, e mais ainda a partir das independências nacionais. Além dos tex-tos produzidos pelas viagens de exploração e pelas relações comerciais e diplo-máticas, foram escritos muitos trabalhos sobre as sociedades africanas, abor-dadas principalmente a partir de suas organizações políticas e sociais, mas também de seus processos históricos, mesmo que em menor quantidade. Se num primeiro momento predominaram os trabalhos feitos pelos agentes co-loniais e as perspectivas próprias dos lugares que eles ocupavam, a partir dos anos 1960, das independências nacionais e da consolidação de centros de es-tudo e pesquisa acadêmica, africanos passaram a escrever sua história combi-nando perspectivas ocidentais com as tradicionais, ganhando destaque o re-curso à história oral.

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Quanto às fontes não escritas, além da oralidade, considerada como forma de acesso ao passado desde os gregos, disciplinas como a arqueologia, a lin-guística, a geografia, a antropologia e a análise literária contribuem para um maior conhecimento acerca do continente africano e de sua história. Aqui vale chamar a atenção para a especificidade do que estamos chamando de história, ou seja, uma disciplina formada no âmbito das formas de conheci-mento ocidentais, que lida com a ação dos homens ao longo do tempo. Esta é uma maneira específica de apreensão do passado, que segue procedimentos e regras próprias, existindo outras possibilidades de lidar com o passado das sociedades, como as eminentemente africanas. Nestas a transmissão oral das informações, que podem ser de diferentes naturezas (genealogias, lendas, mi-tos, história das migrações, saberes técnicos), caracteriza maneiras específicas de lidar com o conhecimento sobre o passado e a sua transmissão.6

Para fazer história da África hoje no Brasil, não dispomos de muitos ma-teriais, mas, com a proliferação de textos digitalizados e a publicação de fontes, é possível fazer alguma coisa. O aprofundamento do conhecimento exige o domínio de pelo menos uma língua estrangeira (inglês ou francês), na medida em que ainda há muito poucas traduções de trabalhos de história, publicados na forma de livros ou de artigos em revistas especializadas. A ampliação do número de títulos disponíveis em bibliotecas, as assinaturas de revistas e o enriquecimento de acervos, de obras escritas ou da chamada cultura material, são tarefas que devem ser priorizadas pelas instituições de ensino e pesquisa para que os estudos africanistas se consolidem entre nós. E isso vem aconte-cendo não apenas no âmbito do ensino superior, em várias universidades do país, como também em museus e instituições de pesquisa que, como dito, devem estreitar cada vez mais seus laços com o ensino básico e fundamental, de forma a consolidar o ensino e a pesquisa sobre assuntos africanos em terras brasileiras.7

Como tudo que diz respeito ao conhecimento e ao ensino, o estudo é fator indispensável para o professor atingir plenamente seus propósitos de educa-dor, e, além da motivação individual, é preciso haver apoio institucional para isso, tanto na forma de tempo disponível como na de remuneração adequada que considere o trabalho feito fora da sala de aula. Sendo a interferência nestes últimos fatores tarefa de segmentos organizados em termos políticos e traba-

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Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África

lhistas, fica aqui a minha modesta contribuição no que diz respeito às possibi-lidades de aprimoramento individual.

NOTAS

1 BAKKE, Raquel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasi-leiras na aplicação da Lei 10.639. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, FFLCH, USP. São Paulo, 2011. p.88.2 Dentre as traduções mais recentes destaco os oito volumes da História Geral da África disponíveis em www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/gene-ral_history_of_africa_collection_in_portuguese-1/; M’BOKOLO, Elikia. África negra. His-tória e civilizações. Trad. Alfredo Margarido. Salvador: Ed. UFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2009; THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2004; LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Trad. Regina A. R. F. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Dentre os autores nacionais, destaca-se SILVA, Alberto da Costa e, autor de, entre outros, A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992; A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Biblioteca Nacional, 2002; Um rio chamado atlântico: a África no Bra-sil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ed. UFRJ, 2003; Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ed. Uerj, 2004. Quanto a trabalhos produzidos no âmbito dos programas de pós-graduação, foram publicados al-guns produzidos no Departamento de História da USP, como: GEBARA, Alexsander. A África de Richard Francis Burton: antropologia, política e livre-comércio, 1861, 1865. São Paulo: Alameda, 2010; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: o desafio portu-guês na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda, 2010; SILVA, Juliana Ribeiro da. Homens de ferro: os ferreiros da África central no século XIX. São Pau-lo: Alameda, 2011.3 BAKKE, Raquel Ruas Batista, op. cit., p.74-75.4 Para referências de narrativas de diversos momentos e procedências, ver FAGE, J. D. A evolução da historiografia da África. História Geral da África I, p.1-22. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf.5 SANTOS, Catarina Madeira; TAVARES, Ana Paula. Africae Monumenta, v.I. Arquivo Caculo Cacahenda. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga/ Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002, apresenta um conjunto de textos que exemplifi-cam a apropriação da escrita por sociedades centro-africanas antes do século XIX.6 Um texto clássico sobre a questão da oralidade e da memória nas sociedades africanas é HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.) História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Unesco, 1980. Também

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disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190249por.pdf. Quanto a uma perspectiva acadêmica o livro que primeiro se debruçou sobre o tema é VANSINA, Jan. Oral tradition as History. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985.7 Em São Paulo vale destacar a atuação educativa do Museu Afro-Brasil, que recebe grande quantidade de escolas, tem uma bem treinada equipe de educadores e uma importante bi-blioteca.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino de

História da África nas escolas brasileiras1

Among masks and mirrors: reflections about Identity and the teaching of African history in Brazilian schools

Anderson Ribeiro Oliva*

ResumoO presente artigo tem como objetivo analisar os reflexos, na construção das identidades individuais e coletivas de es-tudantes, das abordagens de conteúdos sobre a história africana no ensino brasi-leiro. Partindo dos referenciais teóricos ligados aos Estudos Culturais, o trabalho analisa a forma como o tratamento con-cedido ao assunto pode fomentar, inter-ditar e justificar a existência de reflexos identitários plurais – com a presença das ‘máscaras’ africanas de reconhecimento do outro e de autorreconhecimento – em nossos espaços escolares. Ao mesmo tempo o texto se propõe a discutir o sen-tido da identidade nacional em uma so-ciedade composta por conjuntos popula-cionais híbridos, complexos e marcados pelas relações interculturais e multicultu-rais geradas ao longo de sua composição histórica mais recente.Palavras-chave: identidades; ensino de história africana; Estudos Culturais.

AbstractThis article aims at analyze the reflexes, in the construction of individual and collective identities of students, of the approaches of contents about African history in Brazilian education. Based on the theoretical references connected to Cultural Studies, the study analyzes how the treatment accorded to the subject can foster, interdict and justify the exis-tence of plural reflections of identity – with the presence of the African ‘masks’ of recognition of others and of self-rec-ognition – in our school spaces. The text also proposes to discuss the meaning of national identity in a society composed by hybrid sets of population, complex and marked by intercultural and multi-cultural relations formulated along its recent historical composition.Keywords: identities; teaching of Afri-can history; Cultural Studies.

*Departamento de História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília (UnB). Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Ala Norte, 1º andar, s645/62 Asa Norte. 70190-900 Brasília – DF – Brasil. [email protected]

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Anderson Ribeiro Oliva

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No Brasil, um dos debates mais frutíferos sobre a questão da Identidade Nacional foi vivenciado nos últimos dez anos. Motivado, entre outros ingre-dientes, pela implementação das cotas raciais em algumas universidades pú-blicas brasileiras, é certo afirmar que um dos seus efeitos positivos foi forçar uma parte significativa da sociedade brasileira, até então desinteressada em relação ao tema, a se posicionar ou a refletir sobre os mitos fundadores da identidade nacional, sobre as nossas múltiplas identidades e as distorções ex-perimentadas nas relações interidentitárias.

Observamos, na realidade, o continuar das experiências de fabricação da Identidade Nacional, talvez tão impactantes quanto aquelas iniciadas na se-gunda metade do século XIX (caracterizadas pela negação da pluralidade ét-nica, pela valorização de nossa suposta eurodescendência e pelos referenciais teóricos do Determinismo Racial) e na década de 1930 (com a defesa de uma suposta cultura nacional homogeneizadora e embebida na ideia da miscigena-ção e da ‘democracia racial’).

O atual momento, iniciado há pelo menos quarenta anos, refunda algu-mas de nossas velhas crenças redefinindo a Identidade Nacional a partir da combinação ou coexistência de outras identidades. Esse ‘novo’ diálogo, envol-vendo máscaras e reflexos identitários, que é muito mais revelador para os teóricos/educadores, e muito mais significativo para aqueles que se veem for-çados a assumir ou a negar o pertencimento a alguma dessas ‘outras identida-des’, parece ser mais funcional e crível do que o suposto manto de uma iden-tidade comum que recobriria a todos.

A cultura e a identidade nacionais (ditas no singular) foram substituídas, neste caso, por um conjunto multifacetado e plural de práticas, ideias, padrões de comportamento, características psicológicas, estéticas, definições sobre identidade e alteridade que criam um mosaico de percepções de pertencimen-to e de estranhamento que abalaram fundações que pareciam indestrutíveis. Não somos apenas ‘brasileiros’. Somos afro-brasileiros, nipo-brasileiros, luso--brasileiros, teuto-brasileiros, ítalo-brasileiros. Mais do que isso, somos tam-bém homens e mulheres; nordestinos ou nortistas; brancos e negros; morado-res de bairros diferentes; exercemos profissões distintas (inclusive no status); somos portadores de crenças e estilos distintos. É claro que essas múltiplas identidades sempre nos pertenceram, mas elas ficavam esquecidas quando as

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Entre máscaras e espelhos

relações interidentitárias nos forçavam a uma definição homogênea ou exclu-siva: ser brasileiro.

Não me parece absurdo lembrar que o debate acerca das identidades mul-ticulturais e das relações interculturais não é uma exclusividade do cenário brasileiro. Outros espaços globais têm sido tocados cotidianamente pela ques-tão. Nas Américas, na África e na Europa (para limitarmos nossos olhares aos efeitos das diásporas africanas mais recentes), a situação dos imigrantes afri-canos e das crescentes parcelas das populações de alguns países formadas por seus descendentes intensifica o debate sobre as identidades a cada caso de ra-cismo, xenofobia, ou de explosões sociais vindas das periferias. Motivados por esses contextos complexos, há alguns anos, vários teóricos têm se dedicado ao estudo dessas realidades. Dentre esses, um grupo tem chamado a atenção pelo seu formato híbrido: são teóricos/cientistas, mas são também integrantes de experiências diaspóricas ou pós-coloniais, que procuram explicar, entender e vivenciar. Acredito que nenhum outro conjunto de especialistas avançou tan-to sobre esse debate como aqueles vinculados aos “Estudos Culturais” (Cultu-ral Studies) ou aos Estudos Pós-Coloniais.2

Entre os debates intentados por esses teóricos, a fundação e o emprego de algumas categorias/conceitos, como multiculturalismo, culturas híbridas e iden-tidades plurais, resultaram como potenciais ferramentas de análise e compreen-são de várias experiências histórico-culturais ocorridas em sociedades cunhadas pelas diásporas e pelas migrações, recentes ou não. Neste caso, me parece certo que, para refletirmos com nossos estudantes sobre a relevância de conteúdos vinculados à história africana em seus cotidianos escolares existe um obrigatório eixo ou elemento de articulação: o debate reflexivo sobre as identidades.

Fundamentalmente, é sobre isso que estamos a falar. Como nos identifica-mos? Como identificamos aos Outros? Sejam eles, ou sejamos nós, o que formos, falamos sobre os critérios de descrição, atribuição, reconhecimento ou negação de uma ou várias identidades. As relações identitárias, o multiculturalismo e os mecanismos relacionais devem tencionar a Escola a assumir uma nova postura perante a pluralidade cultural e as identidades plurais brasileiras.

Partindo do cenário descrito, o presente artigo tem como objetivo maior refletir acerca dos possíveis reflexos, na construção das identidades individuais e coletivas de estudantes, das abordagens de conteúdos da história africana no ensino brasileiro. A intenção principal do trabalho é analisar a forma como o

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Anderson Ribeiro Oliva

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tratamento concedido ao assunto pode fomentar, interditar e justificar a exis-tência de reflexos identitários multiculturais – com a presença das ‘máscaras’ africanas de reconhecimento do outro e de autorreconhecimento – em nossos espaços escolares. Ao mesmo tempo o texto se propõe a discutir o sentido da identidade nacional em uma sociedade composta por conjuntos populacionais híbridos e complexos em meio às relações interculturais e multiculturais ge-radas ao longo de sua composição histórica mais recente.

Entre máscaras identitárias e espelhos. O debate sobre as identidades e o ensino de história africana

Um dos objetivos principais da Educação Básica brasileira sinaliza para a necessidade de que estudantes e professores devam reconhecer e valorizar a “pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro”, e, ao mesmo tempo, co-nhecer também os “aspectos socioculturais de outros povos ... posicionando-se contra qualquer discriminação”.3 Neste caso, a própria Lei de Diretrizes e Ba-ses da Educação Nacional (9.394/1996), já determinava, em 1996, que a abor-dagem da história do Brasil nas escolas deveria “levar em conta as contribui-ções das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”, entendidas nos termos empregados pela lei como as “matrizes indígena, afri-cana e europeia”.4 Esses elementos foram sintetizados em um dos pressupostos centrais para o ensino brasileiro pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), com base em um de seus temas transversais: a Pluralidade Cultural.

Dessa forma os textos dos PCNs já incorporavam, no final da década de 1990, as mudanças teóricas de definição das identidades que circulavam nos meios acadêmicos e movimentos sociais há algumas décadas, criticando aber-tamente a percepção de que a Identidade Nacional seria entendida com base na adesão a um conjunto comum de valores culturais por um grupo homogê-neo de pessoas. Pluralidade cultural, diversidade étnica, identidades plurais e trajetórias históricas distintas passaram a ser tratadas como formadores da-quilo que se entendia por ‘povo brasileiro’. Ou seja, dissolvia-se a ideia de que existia ‘um povo brasileiro’, revelando-se que uma única Identidade Nacional só existia quando construíamos e compartilhávamos uma falsa imagem. No lugar dessa imagem deveria entrar outra: a do mosaico identitário, ou melhor, das Identidades Plurais e das Identidades Parciais.

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Entre máscaras e espelhos

Nenhuma sociedade pode se pensar como homogênea ou como possui-dora de uma única inscrição cultural/identitária. As diferenças das mais diver-sas ordens – de origem, social, gênero, profissão, cor, idioma, idade, região, escolaridade, território, religião – criam sulcos de formatos distintos dentro das sociedades e entre diferentes sociedades. Nossa ‘brasilidade’ apenas reflete--se no jogo de espelhos identitários quando provocada; quando, em determi-nadas épocas ou situações, somos forçados a revelar algumas de nossas más-caras de reconhecimento, defender ou negar o pertencimento a essa ou aquela inscrição. De outra forma, poderíamos voltar a perguntar o que forma ou o que define o pertencimento a esta identidade. O que é ser brasileiro?

Para alguns, tal resposta seria dada com base na descrição/inscrição de um elemento essencial ou na combinação de certos ingredientes: ‘nasceu no Brasil’ (território); ‘fala português’ (língua); ‘é filho de brasileiros’ (descendên-cia sanguínea); ‘é filho de pai ou mãe brasileiros’ (descendência sanguínea parcial); ‘sabe sambar, jogar futebol e gosta de carnaval’ (ingredientes cultu-rais); ‘é cordial, simpático e tem o jeitinho brasileiro’ (valores comportamen-tais). Se, em algumas situações, parece claro que somos ‘brasileiros’, em outras, parece ser fruto de um grande improviso nos classificarmos como iguais.

Estar diante do outro – estrangeiro (espanhol, estadunidense, japonês, mexicano, nigeriano) –, ser identificado pelo outro – quando na condição de imigrante ou em viagem ao exterior –, participar de certos momentos ‘comuns’ – eleições, competições esportivas –, talvez sinalizem para um pertencimento identitário também comum, mas obviamente pouco operacional e funcional apenas em poucas situações. Cotidianamente nos observamos e nos identifi-camos com base em outras inscrições, mais usuais e proximais do que a ‘bra-silidade’. Ou seja, nossa ‘brasilidade’ está carregada de sentidos, reflexos e máscaras distintas a partir do lugar identitário do qual falamos.

Não estamos afirmando com isso que não temos ‘uma identidade nacio-nal’. ‘Ela’ ou ‘elas’ existem. Inscrevemo-nos na ‘brasilidade’ ou a refletimos em algumas situações, como já afirmamos. Porém, mesmo nesses momentos, ‘ela’ ou ‘elas’ não nos igualam. Enfim, somos brasileiros (para aqueles que se consi-deram ou se inscrevem nesta identidade), mas possuímos outras inscrições identitárias, mais reveladoras, marcantes e coparticipantes em relação à primei-ra quando operamos as categorias de definição e identificação. Perceba-se, por-tanto, que não defendemos um revirar de faces ou identidades, apenas reforça-

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mos o argumento de que a definição ‘brasileiro(a)’ só pode ser entendida quando vista como um mosaico, composto por outras múltiplas faces, por di-versas culturas, com a presença de maiorias e minorias. Identidades Plurais que se articulam, se atraem ou se rejeitam sob um ‘guarda-chuva’ identitário maior, a Identidade Nacional. Cada vez mais, para mais pessoas, faz mais sentido se pensar como nipo-brasileiro ou afro-brasileiro, do que como apenas ‘brasileiro’.

Para descrever sociedades como a nossa, teóricos da cultura têm formu-lado definições ou categorias que procuram revelar e explicar os resultados dos encontros e desencontros de agentes, culturas e identidades plurais: culturas híbridas; sociedades Pluriculturais; sociedades Multiculturais e sociedades In-terculturais, entre outras. No caso brasileiro, uma das definições mais frequen-tadas tem sido a do Multiculturalismo.

Neusa Maria Mendes de Gusmão esclarece que esse conceito pode ser entendido com base em duas componentes. A primeira refere-se a um ‘fenô-meno’ vivenciado em muitas sociedades nas quais o pluralismo cultural se manifestou pelo encontro de vários agentes formadores, oriundos de espaços distintos e que se deslocaram em correntes migratórias pelos mais diversos motivos e tempos. A segunda confunde-se com uma série de políticas públicas contemporâneas – como na educação ou na formação profissional – com o objetivo de atender demandas de sociedades plurais.5 Seja como for, o empre-go do termo é/foi marcado por algumas polêmicas e limitações. No entanto, entre outras ‘equações teóricas’ possíveis, ele representa uma forma de inter-pretar e, ao mesmo tempo, solucionar questões inerentes às sociedades mar-cadas profundamente pela diversidade de seus entes componentes.

O termo ‘multiculturalismo’ ganhou, no entanto, muitos críticos, entre outras razões, porque se limitaria “a constatar o estado das entidades sociais onde coa-bitam os grupos ou os indivíduos de culturas diferentes”. Na mesma direção al-guns autores afirmam que “multicultural é entendido como uma constatação da presença de diferentes culturas num determinado meio e da procura de com-preensão das suas especificidades”. O multiculturalismo coloca, sem sombra de dúvida, a heterogeneidade de formação de diferentes sociedades e torna evidente a questão das diferenças. As críticas decorrem do fato de que, na prática, todas as sociedades são multiculturais. (adaptado de Gusmão, 2004, p.61)

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Mesmo com suas limitações, ao ser manipulado por diversos sujeitos, o ‘multiculturalismo’ apresentou-se nas últimas décadas como uma forma de invenção social e de inscrição identitária. Ao mesmo tempo, revelou-se tam-bém como instrumento de intervenção pública, no esforço de certos agentes em (re)significar e modificar práticas que levaram/levam à construção de so-ciedades marcadas por profundas desigualdades e práticas discriminatórias.

Gusmão, ao analisar a situação vivenciada por jovens estudantes africanos ou luso-africanos (descendentes de imigrantes africanos) em escolas portugue-sas nas décadas de 1980 e 1990, nos informa uma importante maneira de pen-sar as relações societárias, raciais e culturais em uma sociedade que se julgava monocultural, mas que na prática não o era.

A escola marcada pela multiplicidade étnico-cultural faz da educação um desafio como prática e como teoria, posto que envolve diferentes sujeitos, agentes, agên-cias e instituições ... A chamada educação multicultural passa então a ser conce-bida na Europa e também em Portugal como condição de dar nota de uma reali-dade social formada por imigrantes e seus descendentes e, junto dela e em seu nome, reorientar as reivindicações que tais grupos elaboram perante os desman-dos de uma ordem social injusta e excludente, perante os processos xenofóbicos e racistas do mundo europeu. O objetivo central é o de buscar uma sociedade baseada na igualdade e na tolerância. (Gusmão, 2004, p.63)

Portanto, ao partirmos do princípio de que somos membros de uma socie-dade multicultural avançamos no esforço de identificar nossas várias ancestra-lidades e agentes formadores. Implodimos com mitos de origem que insistiam a nos tratar como membros de uma única cultura – primeiro a europeia e depois a nacional (única e fruto da miscigenação). De forma parecida, assumimos a necessária urgência de elaborarmos políticas e estratégias que combatam as de-sigualdades geradas por essências discriminatórias e que permitam aos diversos grupos ou componentes desse mosaico que é a Identidade Nacional (plural e diversa) se autoafirmarem, sendo valorizados e reconhecidos por todos.

Dessa forma, mesmo assumindo as limitações do uso dessa categoria, de-fendemos seu emprego em nossas análises e nos estudos escolares. Isso se deve ao fato de que ela permite não só refundar percepções identitárias, mas, prin-cipalmente, revelar que qualquer diálogo sobre o que devemos ensinar nas es-colas deva passar pelas trajetórias históricas plurais e pelas diversas contribui-

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ções ao patrimônio cultural ‘brasileiro’ oriundas das mais diferentes sociedades, populações e agentes que participaram (ou participam) de sua formação.

Os ‘entre-lugares’ da Identidade e da Educação

Ao analisar parte da obra6 do afro-martinicano Frantz Fanon, o teórico indo-britânico Homi Bhabha elaborou uma das mais reveladoras tentativas de explicar, interpretar e vivenciar o fenômeno da construção das identidades formadas pelas diásporas. As trajetórias desses dois indivíduos, forjadas elas mesmas pelas diásporas e pelos espaços criados em meio às relações coloniais e pós-coloniais, permitem que em suas expressões e apreensões de mundo encontremos claras aproximações com as realidades vividas por milhares de homens e mulheres que compartilharam histórias de vida correlatas. A sensa-ção de pertencimento e estranhamento nas relações de identificação; a fabri-cação de culturas híbridas e as novas formas de inscrição cultural resultam do esforço de imaginar como tão complexas e diversas situações de contatos in-terculturais/multiculturais criaram o que Bhabha chamou de ‘entre-lugares’, ou seja, os processos de elaboração das novas identidades culturais.

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças cultu-rais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos de identidade...7

Homens ‘hifenados’ (afro-americano e indo-britânico), ambos os teóricos citados interpretam ou representam situações que podem espelhar os encon-tros e desencontros que acontecem nos espaços escolares dentro de sociedades multiculturais. Não podemos negligenciar o fato de que a Escola é um espaço marcado por discursos e práticas, tensões e debates. Os movimentos formati-vos e discursivos, a disciplinarização em conflito com a contestação e a educa-ção formal esbarrando nas práticas pessoais são dinâmicas comuns nessas instituições. Representantes de uma percepção de mundo, de interesses dos agentes que operam o sistema educacional e de seus integrantes (docentes, estudantes, técnicos, família e sociedade), as Escolas devem ser pensadas como

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fronteiras, entendidas como Bhabha nos lembra: “lugar onde algo começa a se fazer presente” (2003, p.26-27).

Ou seja, apesar de apresentar conteúdos formais e preestabelecidos aos estudantes – prescritos por leis, normas e currículos –, a apropriação das ‘li-ções’, a construção de novas leituras de mundo e de entendimentos sobre as realidades coletivas e individuais apresentam-se justamente como parte de um movimento de elaboração de novas identidades. Identidades que não são aque-las apresentadas pelas abordagens do conteúdo preestabelecido ou as informa-das pelos estudantes. Formas distintas de inscrição cultural se articulam nessa fronteira, tornando a Escola um espaço de grande relevância na formação de algumas de nossas múltiplas identidades.

O mais interessante é que na Escola ensina-se um tipo específico de me-mória, de História e de pertencimento. As experiências relativas à trajetória de vida pessoal de cada um de seus integrantes são inicialmente ignoradas. Seus sujeitos são vistos como subalternos a uma cultura e valores a serem apreen-didos. Como em uma microesfera das experiências coloniais, a sala de aula torna-se um lugar de dominação cultural, de colonização imaginária. Nela uma suposta identidade comum ou pré-concebida (brasileiro, homem, mulher, ne-gro, branco) desloca-se e conflita com uma alteridade complexa.

A imagem esperada do que definiria uma determinada entidade (‘brasi-leiro’) fragmenta-se e se torna insólita diante de tantos outros. Se, durante grande parte dos séculos XIX e XX, a escola reproduziu uma imagem homo-gênea de brasilidade – de franca ascendência europeia, branca, cristã, ociden-tal, masculina e elitista –, ao confrontar-se com outras expressões e inscrições culturais e identitárias – como a africanidade, a latinidade, as leituras feminis-tas, as múltiplas filiações religiosas e não-elitistas – criou-se um espaço de conflito e recriação do que somos e de como nos percebemos e aceitamos.

Gusmão lembra que “a escola não consegue captar as expressões culturais presentes na modernidade e nas relações de identidade” servindo a determi-nados objetivos nas sociedades modernas: formar o cidadão e o profissional. Neste caso os debates sobre a memória cultural ou as diferentes formas de reconhecimento cultural estariam fora de suas intenções ou ações prioritárias, marcadas por claras distorções de origem. A única memória que deveria ser apreendida nas salas de aulas deveria ter base científica e se confundir com as ideias de nação e memória nacional, produzidas ou aceitas pelos agentes que

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defendem os discursos oficiais e homogeneizadores da Identidade Nacional (Gusmão, 2004, p.51-52).

Neste espaço, os saberes individuais, locais e das minorias seriam con-frontados com o ‘saber do professor’ entendido como uma prática ‘pedagógi-ca que universaliza’, como representante de um ‘modelo único e uniforme de sociedade’ que deveria ser ensinado e aprendido. Dessa forma a Escola se trans-forma em um espaço de rupturas com a realidade e com as experiências ante-riores, no qual o diferente/heterogêneo deve ser igualado/homogeneizado. As múltiplas experiências pregressas acabam ignoradas e o entendimento de que a identidade só pode ser construída em um fluxo constante na relação com a alteridade parece não ser reconhecido (Gusmão, 2004, p.51-54).

Um dos caminhos teóricos possíveis para o entendimento e para a resolu-ção dos problemas gerados por essa percepção de identidade pela Escola pode-ria ser exemplificado pelas novas realidades geracionais e perfis identitários de alguns países europeus no período pós-colonial. Tocados por um processo intenso de imigração originária dos países africanos e asiáticos (percebidos como ex-colônias), as sociedades europeias – como em Portugal, Inglaterra e França – se viram forçadas a redefinir suas fronteiras identitárias, já que o Ou-tro, agora, não se encontrava mais no espaço do ‘além-mar’. O Outro, agora, ocupava espaços próximos demais, como as ruas, os centros comerciais, as escolas, as áreas de lazer e os locais de trabalho das próprias cidades europeias. Mais do que isso, esse Outro – ‘africano’, ‘negro’, ‘muçulmano’, ‘colonizado’ – se identificava como igual, pelo menos na atribuição de uma Identidade Nacional em comum, ou na reivindicação de igualdades jurídica, econômica e social, quando se tratava das gerações descendentes dos primeiros imigrantes, que chegaram em larga escala à Europa nas décadas de 1950, 1960 e 1970.

Guardadas as devidas proporções e reconhecidas as diferenças entre os contextos, o quadro vivenciado em alguns desses países no período colonial e pós-colonial nos incentiva a construir referências sobre como empregar o con-ceito de ‘identidade’. No caso daqueles países pelo encontro desconcertante do Eu (europeu, branco, ex-colonizador) e do Outro (africano, negro, ex-coloni-zado) no tempo presente. Identidade e Alteridade se apresentam em pleno potencial de conflitos e tensões. No caso brasileiro, a situação ganha um novo fator: a ‘aliedade’, que alguns teóricos definem como a alteridade experimen-tada no tempo, o encontro do Eu (no presente) com o Outro (deslocado no

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tempo, para o passado), que ocorre em uma combinação imaginária (Gusmão, 2004, p.55-57).

Em uma das faces de nosso mosaico identitário, as relações ocorrem entre o ‘brasileiro’ de hoje e o ‘africano’ de ontem, que se encontram no presente. É certo que, de alguma forma, essa relação diacrônica dialoga com outras faces de nossas identidades, como aquelas estabelecidas pelas dinâmicas relacionais que se encontram submersas no passado e deitam raízes no presente, quando o antigo Eu (branco, senhor) se relaciona com o antigo Outro (negro, escravo). Obviamente, por fim, não podemos esquecer as relações que ocorrem no hoje, entre brancos (eurodescendentes) e negros (afrodescendentes), ‘brasileiros’ que compartilham um processo de identificação complexo. Portanto, essas relações aparecem tingidas pelas questões raciais do hoje e do ontem.

Para entendermos melhor como empregar as referências teóricas sobre a Identidade em nosso cotidiano escolar sintetizei a seguir as reflexões de Bhabha e Fanon acerca do tema, dividindo-as em três modelos. Eles serviriam para que professores e estudantes compreendessem de forma mais panorâmica a im-portância dos debates acerca das relações étnico-raciais em nossas salas de aulas e no estudo da História da África.

No modelo 1, que denominamos de ‘binário’, há uma relação marcada pelo franco antagonismo. É na verdade uma relação de absoluta negação e de não reconhecimento. Como forças da ‘física’ que se repelem, que não se co-municam, o Eu e o Outro são definidos de forma essencialista, autônoma. Como se, em uma inexplicável inversão, a identidade e a alteridade se rejeitas-sem plenamente para existir. Esse modelo, mais matemático do que antropo-lógico, cria um obstáculo e não uma ponte entre essas duas entidades. Um tipo de vidro que permite que ambos se vejam, mas não se aproximem, que se es-tranhem, mas não se misturem, como em um falso jogo de espelhos.

No modelo 2, que denominamos de ‘as identidades colonizadas’, existiriam algumas condições subjacentes para a compreensão do ‘processo de identifica-ção’. Lembramos que esse processo seria vivido nas relações estabelecidas entre os indivíduos que se encontravam na condição de ‘colonizado’ e de ‘coloniza-dor’, de ‘africano’ e de ‘europeu’, de ‘negro’ e de ‘branco’. Segundo Fanon, tal situação relacional, marcada por um fluxo invertido de ‘demandas’ e ‘desejos’, estaria condicionada ou seria cunhada em uma moeda única de dupla face, com duas imagens que projetariam duas identidades antagônicas, mas dependentes.

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O Eu (branco, europeu, colonizador) desejando preservar sua condição de do-minador, cuja demanda só existia pela presença e pela situação do Outro (negro, africano, colonizado). E o Outro desejando ocupar o lugar do Eu, condição demandada pela sua situação de subjugado. Fanon afirmava que tal condi-ção poderia ser sintetizada da seguinte forma: “O preto escravizado por sua inferioridade, o branco escravizado por sua superioridade, ambos de acordo com uma orientação neurótica ... o que é frequentemente chamado de alma negra é um artefato do homem branco” (Fanon, apud Bhabha, 2003, p.74-75).

Por fim, há o esquema que acreditamos ser o mais explicativo para o nosso caso. No modelo 3, que chamaremos de ‘identidades híbridas’, nos apoiamos nas interpretações de Homi Bhabha sobre as relações de identidade. Nesta operação “o lugar do outro não deve ser representado ... como um ponto fenomenológico fixo oposto ao eu”. Sua definição seria mais complexa e norteadora da realidade de uma sociedade multicultural, já que o “outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial – cultural ou psíquica” –, como é, por exemplo, a falsa ideia de UMA identidade nacional, definida por UMA cultura nacional, ou por UMA única ideia de pertencimento. Dessa forma o Outro “in-troduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística, simbólica, histórica”. Mais do que isso, “como princípio de identificação, o outro outorga uma medida de objetividade, mas sua repre-sentação é sempre ambivalente”, ou seja, ele é composto por princípios confli-tantes, retirados das substâncias formativas do Eu e do Outro. “A identificação é sempre uma questão de interpretação, pois ela é um encontro furtivo entre mim e um si-próprio, a elisão da pessoa e do lugar” (Bhabha, 2003, p.86-87).

O que parece ser diferenciado nesse modelo é que ele introduz uma nova dimensão de representação na relação entre o Eu e o Outro. Se antes a obser-vação fixava-se nas imagens que refletiam nos espelhos vítreos que serviam como fronteira nessa relação, agora, seria preciso acrescentar uma perspectiva de profundidade e substituir o espelho ou janela por uma fronteira articular, que funde, ao invés de separar. Essa representação permite construir um es-quema no qual uma forma híbrida, em movimento, substitui a forma binária (da soma ou da subtração) no esforço de decifrar as dinâmicas da construção da identidade e da alteridade. Sendo assim, as inscrições de pertencimento dos indivíduos são forjadas não mais no duelo de imagens, da rejeição ou na ade-são a certas características. Tanto o eu como o outro não passam de projeções

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que se articulam no fenômeno da identificação quando suas sombras se en-contram no espaço relacional, ou no intervalo (o entre-lugar) criado pelas fronteiras, ou seja, no espaço onde se fabrica uma identidade da alteridade ou uma alteridade da identidade.

À medida que uma série de grupos cultural e racialmente marginalizados assume prontamente a máscara do negro, ou a posição da minoria, não para negar sua diversidade, mas para, com audácia, anunciar o importante artifício da identida-de cultural e de sua diferença, a obra de Fanon torna-se imprescindível. À medi-da que grupos políticos de origens diversas se recusam a homogeneizar sua opressão, mas fazem dela causa comum, uma imagem pública da identidade da alteridade, a obra de Fanon torna-se imprescindível – imprescindível para nos lembrar daquele embate crucial entre máscara e identidade, imagem e identifica-ção, do qual vem a tensão duradoura de nossa liberdade e a impressão duradoura de nós mesmos como outros. (Bhabha, 2003, p.102)

Para além da conhecida tese das zonas ou áreas de contato interétnico e intercultural – espaços nos quais semelhanças e diferenças são postas à prova –, a perspectiva de se pensar as fronteiras identitárias e culturais como os ‘entre--lugares’ que informam os “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” torna o modelo 3 mais adequado ao nosso debate. De forma clara ele revela que não existem identidades essenciais, puras ou absolutas. As identidades não passam de representações ou projeções do que acreditamos ser, do que acreditamos ser o Outro, e do que esse Outro acredita que sejamos. Nesse jogo de projeções, o processo de identificação só pode ocor-rer justamente na fronteira (entendida como espaço relacional ou como o ‘lugar onde algo começa a se fazer presente’) entre essas projeções. Imagens, represen-tações e projeções de identidades se encontram nesse espaço relacional, e é nele que as identidades serão construídas.

No caso brasileiro torna-se evidente que a elipse poderia ser pensada co-mo a representação dos ‘processos de identificação’ que envolvem obviamen-te a própria Identidade Nacional. No entanto, isoladamente, ela – a Identida-de Nacional – não representa nada, não se sustenta. São seus componentes, os Mesmos e os Outros, que em seus movimentos projetam suas sombras identi-tárias para o centro da fronteira relacional, permitindo tanto o reconhecimen-to dessas múltiplas identidades, a revelação das pluralidades culturais como

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também um entendimento mais adequado do significado da Identidade Na-cional. Portanto, essas múltiplas identidades não são excludentes e não estão isoladas. Elas são relacionais e, na relação com o todo, complementares.

Neste caso devemos frisar que não existe, ou não deveria existir uma hie-rarquia entre essas identidades. Afro-brasileiros, luso-brasileiros, ítalo-brasi-leiros, nipo-brasileiros, teuto-brasileiros, sociedades indígenas e aqueles que não se identificam pelas representações ‘hifenadas’, portanto, apenas ‘brasilei-ros’, além de todos os seus descendentes, compõem o mosaico identitário que poderíamos chamar de Identidade Nacional. Complexa, diversa, heterogênea, plural. Justamente quando uma condição de desigualdade é criada entre esses grupos ou categorias de identificação – e este parece ser o caso de várias socie-dades contemporâneas –, torna-se necessária a intervenção da sociedade civil, das instituições, dos movimentos sociais e do Estado para equacionar as ten-sões e distorções criadas.

Como articular ou aproximar essa discussão toda de nossas experiências ou cotidianos nas salas de aula? Essa é uma das demandas da Educação das Relações Étnico-raciais. Ao partirmos da constatação de que as escolas, no sistema educacional contemporâneo, desempenham papel relevante na cons-trução de percepções de mundo e na divulgação de informações e conteúdos, que deveriam compor aquilo que chamamos de ‘memórias compartilhadas’, parece inquestionável a necessidade de ampliarmos nossos recortes temáticos, conteúdos programáticos e abordagens reflexivas nas salas de aulas.

Herdeiros de uma escola que privilegiou, em grande parte de sua trajetó-ria, conteúdos eurocêntricos, vivemos hoje a urgência de rever conteúdos e temas formativos em nossos bancos escolares. Se adotarmos o paradigma iden-titário anteriormente apresentado – o das Identidades e Culturas Plurais que compõem a Identidade Nacional –, torna-se óbvio o fato de que no trabalho com História, Geografia, Artes, Literatura, Filosofia e Música não podemos valorizar, ensinar e aprender padrões de conhecimento relativos a apenas uma matriz formativa, no caso a europeia. Precisamos conhecer, reconhecer, valo-rizar e respeitar as outras matrizes que participaram dessa formação – por exemplo, as africanas, as asiáticas e as indígenas.

A questão é, de fato, relacional. É preciso estarmos convencidos da relevân-cia de debater a questão das identidades nas escolas para que possamos conven-cer nossos alunos sobre seu papel formativo e funcional em nosso cotidiano. Mais

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do que isso, ao redefinirmos nossos princípios de identidade, torna-se insusten-tável a manutenção da matriz curricular que grande parte das escolas reproduzia até o início deste século. É certo que importantes mudanças começaram a ocor-rer no campo legal ou prescritivo vinculados à educação a partir da última déca-da do século XX, resultados de demandas de movimentos sociais e do convenci-mento por parte dos intelectuais e políticos de que o debate sobre as nossas múltiplas identidades e a Identidade Nacional deveria ser reinaugurado.

Naqueles anos, tornou-se consensual que não mais poderíamos pensar a sociedade brasileira como portadora de um único signo identitário, como por-tadora de um único padrão cultural. O multiculturalismo entrava em cena oficialmente na LDB de 1996, nos PCNs, produzidos nos anos seguintes, e na promulgação das Leis federais 10.639/03 e 11.645/08, além das Diretrizes Cur-riculares Nacionais relacionadas ao ensino de História da África e à Educação Étnico-Racial. Desde então, para além das matrizes europeias, as outras ma-trizes de formação de nossa sociedade – entre elas as africanas – deveriam obrigatoriamente aparecer nos currículos, livros didáticos, cursos de formação de professores e, por fim, nas salas de aula.

Reflexões finais

Chegamos ao ponto. Ensinar, aprender, refletir e debater sobre as ‘iden-tidades’ é um exercício fundamental para o combate à intolerância, à discri-minação, à xenofobia, ao racismo e ao sexismo. É uma ferramenta obrigatória no esforço de construir uma sociedade mais justa e, efetivamente, plural. O respeito ao Outro, seja ele quem for, tornar-se-ia ato rotineiro. Essa é uma das obrigatórias articulações que devemos fazer.

Em complemento a esse primeiro ponto, outro se torna correlato. Prin-cípios como do autorreconhecimento, da alta autoestima identitária, do reco-nhecimento pelo Outro, do respeito e da valorização das diferentes sociedades e culturas só se tornam possíveis com os aprendizados/conhecimentos que temos sobre essas sociedades e culturas. Competindo com a comunicação so-cial, a televisão, a internet e o cinema, a Escola transforma-se em um espaço também de fabricação de imaginários e de conhecimentos sobre o Eu e os Outros. Portanto, o estudo da história e das culturas africanas não é importan-te apenas para aqueles que se identificam como membros dessa identidade,

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mas para TODOS. Valorizar e respeitar são importantes práticas que devemos trabalhar em nossas salas de aulas. Conhecer as contribuições para a constru-ção do patrimônio histórico-cultural da humanidade e do Brasil dessas socie-dades permite que tenhamos uma visão mais panorâmica da nossa condição humana, de nossas múltiplas identidades e de nossa pluralidade cultural.

NOTAS

1 Uma versão anterior e modificada deste texto foi apresentada como parte introdutória de material instrucional a ser utilizado no curso de Aperfeiçoamento de Docentes promovido pelo Centro Integrado de Aprendizagem em Rede (Ciar), da Faculdade de História da Uni-versidade Federal de Goiás.2 Entre algumas das principais referências podemos citar os seguintes trabalhos: APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Trad. Vera Ribeiro. 1.ed. Rio de Janeiro: Contra-ponto, 1997; APPIAH, Kwane Anthony. La ética de la identidad. Trad. Lilia Mosconi. 1.ed. Buenos Aires: Katz, 2007; BHABHA, Homi. Race time and the revision of modernity. In: BACK, Les; SOLOMOS, John (Org.) Theories of race and racism. London: Routledge, 2000. p.354-368; GILROY, Paul. Entre campos: nações, culturas e o Fascínio da Raça. São Paulo: Annablume, 2007; GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ucam; Ed. 34, 2001; HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009; HALL, Stuart. Old and new identities, old and new ethnicities. In: BACK; SOLOMOS (Org.), 2000, p.144-153;

MBEMBE, Achille. As formas africanas de autoinscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n.1, p.171-209, 2001.3 Ver BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos pa-râmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998 (a), p.55.4 Como é de conhecimento geral, a LDB, no que diz respeito ao ensino de história africana, foi alterada pelas Leis nº 10.639, de 9 jan. 2003, e 11.645, de 10 mar. 2008. O trecho citado encontra-se no 4º parágrafo do artigo 25.5 GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Os filhos da África em Portugal: antropologia, mul-ticulturalidade e educação. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. p.61.6 Principalmente as seguintes referências: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983; FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Ci-vilização Brasileira, 1979.7 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.20.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil1

The dilemmas facing the two authors of Uma história do negro no Brasil

Wlamyra Albuquerque* Walter Fraga Filho**

ResumoO objetivo deste ensaio é compartilhar com profissionais da área de história as reflexões e dilemas que a nós se apre-sentaram no processo de elaboração de Uma história do negro no Brasil, livro publicado em parceria pela Fundação Palmares/MinC e pelo Centro de Estu-dos Afro-Orientais (Ceao)/ UFBA, em 2006. Consideramos que questões como a relação entre historiografia e deman-das do movimento negro contempo-râneo, assim como os desdobramentos das pesquisas sobre a história da África, da diáspora africana e das trajetórias das populações afro-brasileiras para a edu-cação básica persistem como relevantes no debate sobre a efetivação das Diretri-zes Curriculares Nacionais para a Edu-cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro--brasileira e Africana.Palavras-chave: história; cultura; histó-ria do negro; Lei 10.639/2003.

AbstractThe objective of this essay is to share with historians reflections and dilem-mas concerning the elaboration of Uma história do negro no Brasil, a book pub-lished by the Fundação Palmares/MinC and the Centro de Estudos Afro-Orien-tais (Ceao)/UFBA in 2006. We consider that issues such as the relationship be-tween historiography and the demands of the contemporary black movement, as well as the offshoots of research con-cerning the history of Africa, the Afri-can diaspora and the trajectories of Af-ro-Brazilian populations in terms of basic education persist in the debate around the National Directives for Edu-cation on Ethnic-Racial Relationship and for the teaching of African and Af-ro-Brazilian Culture and History.Keywords: history; culture; history of the blacks; Law 10.639/2003.

*Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Estrada de São Lázaro, 197, Federação. 40210-730 Salvador – BA – Brasil. [email protected]** Centro de Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Praça Ariston Mascarenhas, s/n. 44300-000 Cachoeira – BA – Brasil. [email protected]

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Há situações que a um só tempo se apresentam como imprevistas, desa-fiadoras e inescapáveis. Foi o que sentimos quando, em 2005, correu a notícia do edital da Fundação Cultural Palmares, instituição vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), convocando projetos para a produção de material paradi-dático que subsidiasse o ensino da história e da cultura afro-brasileira e afri-cana, em decorrência da sua obrigatoriedade nas redes de ensino fundamental e médio de todo o país. Tratava-se, portanto, de uma ação inscrita no âmbito da Lei 10.639/2003. Imprevisto e desafio são palavras bem adequadas para definir aquela tarefa.

O imprevisto estava em nos lançarmos na difícil empreitada de produzir material paradidático, algo que até então não fazia parte dos nossos planos. Pouco antes havíamos concluído nossos doutorados e, como costuma aconte-cer com doutores recentes, o que vislumbrávamos era cada qual retomar sua pesquisa, revisar a tese ou efetuar qualquer leitura despretensiosa, sem se im-portar com prazos e relatórios substantivos.2 Estava fora de cogitação a pro-dução de textos subordinados a calendário rígido e ao olhar implacável de uma banca de especialistas.

Porém, fazemos parte de uma geração que desde os primeiros momentos da graduação, como espécie de marca de pertencimento ao ambiente acadê-mico, aprendeu a desconfiar de livros didáticos e afins. Já nos primeiros se-mestres do curso, cultivávamos um olhar de suspeição para aqueles textos que nos pareciam, além de defasados frente às incessantes novidades universitárias, altamente comprometidos com o que chamávamos de ‘história oficial’. Havia, no final da década de 1980 e nos anos 1990, vasto campo de debates sobre manipulações e distorções que a história, como disciplina escolar, sofreu sob a égide da censura do regime militar.

Como tão bem definiu Kazumi Munakata, no rastro do fim da ditadura ganharam ampla divulgação no Brasil pesquisas que denunciavam as ‘belas mentiras’ patrocinadas pelo Estado autoritário, impressas nos livros didáticos e paradidáticos utilizados nas escolas. Nesse sentido, constitui-se toda uma historiografia que se “nutriu de uma conjuntura política em que, para muitos setores da sociedade brasileira, era fundamental a crítica ao regime militar e a seus entulhos autoritários”.3

A constatação indignada de que a produção literária da área de história voltada a crianças e adolescentes estava subordinada ao controle do Estado

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funcionava como espécie de ‘choque de realidade’ a projetar o graduando pa-ra o campo de preocupações com o que passava a lhe parecer seriamente te-mível: a vida extramuros da universidade, o ensino na educação básica. Não fugíamos à regra.

Estamos falando de um tempo em que ainda fazia sentido repetir o chavão de que não interessava aos governos oferecer educação de qualidade, pois isso despertaria espíritos críticos, sujeitos questionadores da ordem estabelecida. Daí concluía-se que os saberes escolares eram reféns de conhecimento histó-rico comprometido com o status quo. Enquanto isso, nas pós-graduações em história as críticas às versões do passado veiculadas no espaço escolar eram encobertas pela obstinação da pesquisa empírica, à primeira vista – e só à primeira vista – caminho oposto ao repensar sobre a produção didática e pa-radidática na nossa área.

Felizmente, o amadurecimento do debate e o fortalecimento dos progra-mas de pós-graduação em história e em educação provocaram reflexões mais consequentes acerca da literatura em circulação na Educação Básica.4 No co-meço da década de 1990, o mercado editorial passou a encher as estantes com didáticos e paradidáticos produzidos por pesquisadores engajados em desen-tulhar a história dos ‘ranços do autoritarismo’, só para lembrar a linguagem da época.5 Como bem analisaram outros autores, essa renovação editorial foi impulsionada por reformulações curriculares, alimentada pelo engajamento acadêmico e por demandas dos movimentos sociais.

Ernesta Zamboni, em “O conservadorismo e os paradidáticos de história”, artigo publicado em 1993, avaliava que nos títulos então publicados “nota-se uma acentuada ênfase sobre a questão do poder”, assim como o empenho em construir heróis que pudessem encarnar a imagem da nação livre.6 Trazer à luz os artifícios do poder e destacar a luta heroica em prol da liberdade nacional eram dois vetores a guiar os autores que reescreviam a história a ser divulgada no ambiente escolar. Para Zamboni essa tendência revelava conservadorismo herdado da memória oficial.7

Bem, não nos interessam aqui as heranças do período da ditadura e sim o debate, já instaurado na década de 1990, sobre a relação entre historiografia, memória nacional e literatura escolar.8 Várias inquietações daí decorrentes nos acompanham desde que publicamos, em 2006, Uma história do negro no Bra-sil, livro que venceu o edital da Fundação Palmares/MinC em parceria com o

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Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA. Nosso propósito neste ensaio é o de compartilhar algumas das nossas inquietações e mesmo impasses ante o desa-fio de escrever um livro que desse conta das múltiplas experiências do povo negro no Brasil.

Logo de início, surgiu a aflição quando nos percebemos como autores de um livro que passaria a constar, ao lado de tantos outros, do rol da historio-grafia oficial. Mas bastou refletir um pouco para percebermos a esterilidade da designação ‘história oficial’. Esse termo, com forte tom depreciativo, ainda é utilizado para indicar uma historiografia útil a propósitos específicos do Esta-do e/ou de grupos políticos no poder. Grosso modo, convencionou-se chamar de ‘oficial’ a uma narrativa histórica à mercê, subordinada, disposta a legitimar posições de poder, condições de classe e hierarquias sociais. A produção didá-tica e paradidática seria o seu principal ninho. Mas a esterilidade do termo se revela ao considerarmos as imbricações entre a historiografia e narrativas his-tóricas às quais diferentes grupos sociais e o Estado lançam mão em contextos políticos específicos.

Como vários pesquisadores já nos informaram, ainda no século XIX o Estado brasileiro, ao institucionalizar currículos e programas de História, ex-plicitou perspectivas e autores sintonizados com propósitos políticos exclu-dentes e mesmo moralizantes.9 Inscrita na perspectiva de afirmação do Estado Nacional, a história do Brasil que então se elaborava e se divulgava nas escolas visava legitimar a nação e reiterar os nossos vínculos com a civilização euro-peia. Mas foi só na década de 1950, segundo Kazumi Munakata, que se conso-lidou no país uma “política de produção, por instâncias governamentais, de livros didáticos”, assim como as “discussões didático-pedagógicas que a acom-panharam”. A atenção da autora a esse período é justificada, dentre outras razões, pela ação do educador Anísio Teixeira (1900-1971), conhecido pela idealização da chamada Escola Nova. Munakata nos lembra que Teixeira, ain-da em 1952, ao assumir a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-cos (Inep), enfatizou a urgência de o governo produzir “guias e manuais de ensino para os professores e diretores de escolas” e também “livro didático, compreendendo o livro de texto e o livro de fontes”.10 Já a política de aquisição e distribuição do livro didático regulamentada em 1985 concebeu o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), cujo principal objetivo foi o de disponi-

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bilizar para alunos das redes públicas os títulos selecionados pelos professores e gestores.11

Assim sendo, quando se tornou público o interesse do Ministério da Cul-tura, por meio da Fundação Palmares, de viabilizar a publicação de um con-junto de livros e vídeos voltados à temática étnico-racial, já havia acúmulo de debate entre os historiadores acerca dessa literatura e uma antiga preocupação do Estado com a literatura acessada por professores e alunos. A grande novi-dade foi o papel decisivo dos movimentos sociais no repensar sobre a memó-ria nacional.

Demandas sociais, dispositivos legais e a historiografia engajada

Na década de 1980, os debates que antecederam a Constituinte desagua-ram na Constituição de 1988 e puseram na pauta do Congresso Nacional im-portantes e antigas demandas da sociedade civil. A grande pressão dos movi-mentos sociais para que o Estado brasileiro assumisse políticas que assegurassem direitos – como mecanismos de proteção às mulheres contra a violência doméstica, a delimitação das terras indígenas e ações que promoves-sem a cidadania plena à população afro-brasileira – movimentaram a agenda política nacional.

A articulação e a organização do movimento negro fizeram com que suas bandeiras de lutas repercutissem no parlamento brasileiro. Em Histórias do movimento negro no Brasil, Verena Alberti e Amílcar Pereira trazem depoi-mentos que rememoram a efervescência da militância do movimento negro na década de 1980. Neles pode-se dimensionar o peso dos eventos pré-Cons-tituinte promovidos em Brasília, e não só lá, pelo Movimento Negro Unifica-do, dentre outras entidades representativas.12 Algumas vitórias foram então contabilizadas. A Constituição de 1988 transformou o racismo em crime ina-fiançável e imprescritível; tornou passíveis de reconhecimento jurídico as co-munidades remanescentes de quilombos e legitimou ações reparatórias aos afro-brasileiros. Tinha-se, assim, o reconhecimento pelo Estado da necessida-de de políticas públicas destinadas ao combate ao racismo e à superação das desigualdades raciais no Brasil.

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Em consonância com essa articulação política, associações de classe do âmbito acadêmico como a Anpuh e grupos de intelectuais engajados em di-versas universidades do país argumentavam sobre a importância da História, como disciplina escolar, na constituição das identidades sociorraciais e no reconhecimento e garantia da cidadania da população negra. Somou-se a isso o consenso entre os pesquisadores da área quanto à importância da divulgação, para o grande público e no ambiente escolar, de estudos dedicados à África, não só pela sua relevância na História do Brasil, mas também para o conheci-mento das trajetórias dos povos envolvidos na diáspora africana. Afinal, a despeito das necessárias disposições legais, a invisibilidade dos africanos e dos seus descendentes na produção didática já incomodava gerações de professo-res e pesquisadores.

Tal preocupação, nutrida pela pressão do movimento negro, reverberou em 1996 na Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Esta atribuiu à União o papel de nortear a educação básica, em conjunto com os estados e os municípios. Ao flexibilizar os currículos escolares e objetivar a valorização da diversidade no ambiente escolar, a lei colocou em questão o discurso da harmonia racial bra-sileira, espelhada na miscigenação que predomina entre nós.

Segundo Marcelo Magalhães, o texto da LDB de 1996 ousou ao traduzir em dispositivos legais certos pressupostos do Estado a serem impressos na disciplina História. Para ele, “em forma de lei, o documento oficial expressa o que da cultura e da História o Estado brasileiro considerava necessário trans-mitir aos alunos por meio da disciplina obrigatória História”. O autor ressalta especificamente o que está dito no Parágrafo 4º do Artigo 26, que estabelece o estudo da História do Brasil, considerando “as matrizes indígena, africana e europeia na formação do povo brasileiro”.13 Dentre as várias deliberações pre-vistas na LDB, cabe destacar a que reiterou a institucionalização, estabelecida desde 1994, da avaliação periódica dos livros didáticos utilizados nos quatro anos iniciais do ensino fundamental. Essa determinação indicava que o Estado continuava disposto, embora com propósitos diversos daqueles do período da ditadura, a manter sob suas vistas a literatura a ser consumida pelas crianças nas escolas.

Nos últimos anos, a alteração mais significativa na LDB foi a que lhe acrescentou dois artigos referentes às Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais da Lei 10.639/2003.14 São eles:

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Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e par-ticulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

Parágrafo 1º – O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.

Parágrafo 2º – Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Na-cional da Consciência Negra”.

Vale aqui sublinhar que o artigo 26-A não só estabelece o que, a História e Cultura da África e Afro-Brasileira, mas qual perspectiva adotar no ensino: lutas políticas e o protagonismo negro na sociedade brasileira. Ficou eviden-ciado, assim, que a finalidade não era a mera inclusão de conteúdos, mas a eleição das áreas de história, literatura e educação artística como campos para redefinição no discurso oficial, a ser acionado no espaço escolar, do lugar dos africanos e dos afro-brasileiros na cena nacional.15

Por sua vez, a compreensão de que História e Cultura veiculadas nos currículos oficiais exercem peso importante na contínua (re)construção da memória nacional, faz que as Diretrizes sejam, a um só tempo, conquista po-lítica e desafio profissional. Inscritas nas ações afirmativas, elas trouxeram para o discurso do Estado o reconhecimento de que predomina no país “um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as raízes europeias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática” (ibidem, p.13).

Antes disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio, coerentes com a LDB, já enfatizavam a centralidade nos programas de história de conteúdos relativos à história da África e dos afro-brasileiros.16 Na análise de Hebe Mattos, “os PCNs, aprovados pelo MEC em 1996, sem dúvida, precederam e prepararam as Diretrizes Curriculares para a Educação das Re-lações Étnico-Raciais (2004). As conexões entre os dois textos, produzidos por governos de orientações políticas distintas, revelam como esse tipo de inter-

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venção resultou principalmente do crescimento da força política dos movi-mentos negros na sociedade brasileira” (ibidem, p.6).

Nesse sentido, os PCNs, ao privilegiarem certos princípios como a plura-lidade cultural, expuseram à crítica, já fortalecida entre os historiadores e cons-truída pelo movimento negro, a neutralização das diferenças em nome da chamada cultura nacional, singular, mestiça, embora inscrita num passado europeu. Afinal, como já foi dito por Mattos, estamos nos referindo ao con-texto “pós-redemocratização, e da formação de um novo consenso no campo pedagógico em relação ao chamado ‘mito da democracia racial’ no Brasil” (ibidem, p.7).

A Lei 10.639/2003 e as Diretrizes a efetivá-la se inscreveram num intenso, e por vezes raivoso, debate acerca da pertinência e das formas de efetivação das políticas de ação afirmativa no Brasil. É verdade que o estabelecimento de cotas para afrodescendentes nas universidades públicas foi o ponto de maior atrito e controvérsia, mas não se podem perder de vista os impactos do ineditismo do reconhecimento por parte do Estado brasileiro da urgência de se reconfigurar a memória nacional, interferindo tão diretivamente nos programas curriculares. O debate se fez oportuno, por ter sido um dos raros momentos em que a ques-tão dos privilégios seculares fundados em distinções raciais que ainda vigoram na sociedade brasileira escapou da zona de silêncio e aquiescência que lhe era assegurada na memória nacional. Nesse sentido, é preciso frisar que para além de sustentar a interpretação do Brasil como detentor de cultura singular e ori-ginal, colorida por ‘influências’ africanas e indígenas, mas gestada no ventre do passado europeu, o mito da democracia racial resguardou a ordem social do confronto aberto entre os discursos racistas mais extremados e a militância engajada. Uma vez superado, porque esgotado, o debate em torno da harmonia racial da democracia brasileira, veio à tona a discussão acerca das formas de superação das desigualdades raciais.17 Daí o nascedouro das políticas de ação afirmativa. O debate prossegue, contudo, em outros termos.

Assim sendo, a oportunidade de colaborar numa coleção com livros e vídeos que atendessem às demandas de projetos educacionais específicos, co-mo os cursos pré-vestibulares voltados a alunos pobres, e a professores da rede pública de ensino encarregada de fazer valer a Lei 10.639/03, foi irrecu-sável e repleta e aprendizados. Assim, propósitos profissionais e de militância revestiam a elaboração do que viria a ser Uma história do negro no Brasil.

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O repertório da história social da escravidão e Uma história do negro no Brasil

Em meio ao contexto até aqui traçado, tornou-se imperativo o repensar de alguns dos nossos pressupostos para a elaboração de texto voltado para a educação das relações étnico-raciais. O primeiro desafio foi o de traduzir nos-sas leituras historiográficas numa linguagem apropriada ao público, já que as Diretrizes estabeleceram como um dos seus principais objetivos

A divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos do seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáti-cos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.18

Assim, cabia-nos refletir sobre uma abordagem que pudesse afirmar o protagonismo dos afrodescendentes no curso da História do Brasil. A saída mais plausível e segura foi a de conceber um roteiro que, mesclando cronolo-gia e temas, alguns já consagrados e outros ainda recentes na historiografia brasileira, permitisse dar conta da trajetória dos africanos e afro-brasileiros. Assim, concebemos os seguintes capítulos: “História da África e escravidão africana”; “África e africanos no tráfico Atlântico”; “Escravos e escravidão no Brasil”; “Família, terreiros e irmandades”; “Fugas, quilombos e revoltas escra-vas”; “Negros escravos, libertos e livres”; “O fim da escravidão e o pós-aboli-ção”; “Lutas sociais nas primeiras décadas do século XX”; “Cultura negra, cul-tura nacional: samba, carnaval, capoeira e candomblé”; “Desigualdades raciais e luta antirracista”; “O movimento negro no Brasil contemporâneo”.

Esta sequência de temas, postos numa ordem cronológica, se apresentou segura, mas também nos levou a considerar determinadas questões que envol-vem a construção de narrativas históricas a serem divulgadas no ambiente escolar.

Uma delas é a posição central reservada ao trabalho escravo no largo campo de experiências dos africanos e seus descendentes no Brasil. É sabido que uma das faces mais perversas do racismo construído no país é a da negação da descendência africana porque escrava. Para gerações de crianças e jovens negros, negar o pertencimento ao passado escravo foi estratégia de fuga das

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marcas da subalternidade. Isso porque a equação que equiparava sem discussão africano = escravo = negro foi vigorosa no Brasil e terminou repercutindo negativamente na produção didática distanciando os afrodescendentes da identificação com uma abordagem que se centrava na sujeição e submissão do chamado ‘elemento africano’. Foi o que Hebe Mattos denominou de ‘o lugar encapsulado’ de mera mão de obra, ao só lhe atribuir visibilidade como força de trabalho, seja fazendo funcionar a economia ou desregrando a ordem social pela rebeldia supostamente cega, sem projeto político.19

Mesmo as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais pare-cem se amparar nessa lógica ao atar num nexo explicativo o passado escravo à desigualdade racial no Brasil contemporâneo ao dizer que

A demanda por reparação visa que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manuten-ção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. (ibidem, p.11)

Portanto, se é na exploração da mão de obra escrava e nas políticas de branqueamento que residem as raízes da marginalidade dos negros na socie-dade brasileira, qual a abordagem possível desta história que permita (como rezam as Diretrizes) valorizar o pertencimento étnico-racial dos descendentes dos escravizados?

A história social da escravidão no Brasil, desde a década de 1980, vem respondendo a esta questão, à medida que esquadrinha ações, estratégias po-líticas, econômicas e culturais dos africanos e afro-brasileiros em meio aos embates gerados durante e após a abolição da escravidão. Assim, a história dos africanos e de seus descendentes não pode permanecer presa à imagem de ‘peças produtivas’ que o imaginário do escravismo projetou sobre o ‘lugar’ do negro na História do Brasil. Para superar essas projeções do preconceito no livro didático sobre o negro foi preciso dar ênfase à ideia de que práticas e tradições culturais expressam conflitos, geram interpretações sobre si mesmos e sobre os outros, criam alianças e laços de solidariedade no interior das co-munidades, redefinem noções de pertencimento e diferenças e põem desigual-dades à prova. Ainda assim o desafio continua posto, na medida em que foi

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preciso traduzir essas concepções numa narrativa acessível ao público escolar, sem divagações teóricas.

O desafio era o de expor com clareza especificidades que, para serem compreendidas, exigem o entendimento da dinâmica histórica da cultura. Tal perspectiva só pôde ser almejada, ainda que nem sempre alcançada ao longo do livro, porque buscamos nos alicerçar na solidez da história social largamen-te difundida em várias universidades brasileiras.20 Tateávamos a escrita de uma história, acessível ao público escolar, recheada por conflitos, tensões e, princi-palmente, conquistas daqueles que eram os principais personagens do texto: homens, mulheres e crianças negros.

Tentando resolver essa equação, pretendeu-se nos dois primeiros capítu-los tratar, ainda que de modo breve, da história da África, centrando-se nas circunstâncias e modalidades da escravidão africana e da historicidade do trá-fico atlântico. Mais que fornecer informações sobre as grandes áreas envolvidas na empresa atlântica, a ideia foi, por um lado, oferecer um panorama da Áfri-ca pré-colonial, e por outro, enfrentar uma questão ainda espinhosa na época: a escravidão entre os povos africanos. Assim sendo, subdividimos o texto em escravidão doméstica, escravidão islâmica e escravidão cristã, apesar do risco de o leitor confundir essa sequência com uma linha evolutiva.

A nossa preocupação era a de evitar tanto o olhar romantizado que invi-sibiliza a escravidão e até mesmo qualquer tipo de exploração entre os povos africanos, quanto a leitura da escravidão entre os africanos como uma excen-tricidade cultural, rudimentar, que foi se ‘sofisticando’ até alcançar a sua feição capitalista. Os propósitos e o público do livro nos exigiram o esforço de deixar explícito o nosso compromisso de não reforçar a ideia da África mítica como o paraíso negro violado pela tirania europeia, tampouco o de embarcar na história da inescapável força do capital a consumir braços escravos, por não poder prescindir da mão de obra africana para mover a economia. Ainda as-sim, foi preciso retomar a dramaticidade que envolveu as populações africanas vitimadas pelo tráfico por mais de três séculos.

Àquela altura, afastar-se do discurso da África mítica era uma maneira de dizer que os africanos e seus descendentes haviam sido muito mais que ‘os pés e as mãos’ dos seus senhores, visto que reinventaram, com base em um rico repertório cultural, na experiência da diáspora, a si mesmos e às populações com as quais se relacionaram. Nesse sentido, tentamos também imprimir ao

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texto a ideia de que o mundo do trabalho também se constitui como lugar de cultura, na medida em que pressupõe o manejo de saberes, formas de com-preender o trabalho coletivo, de estabelecer vínculos e solidariedades e de de-senvolver tecnologias. O objetivo foi convencer os leitores de que estudando o trabalho escravo é possível notar o quanto os africanos também colonizaram o Brasil, como defendia o pesquisador Manoel Querino, desde o início do sé-culo XX.21

Mas protagonismo não pode ser confundido com exclusivismo. É esprei-tando as relações conflituosas, interações e transformações que a história social se faz. Assim, tem pouca serventia ‘uma história do negro’ que, seguindo o script dos textos didáticos que tanto criticávamos, subestime ou negue o papel dos outros sujeitos no processo histórico. Por isso, estava fora de cogitação retratar um monólogo no qual a presença de africanos e afro-brasileiros fizes-se desaparecer navegadores europeus, populações brancas e indígenas e, ao mesmo tempo, passasse ao largo das zonas de negociação e interação que per-mitiram trocas e invenções culturais.

É preciso confessar o aparecimento de alguma inquietação quando per-cebemos que o texto ainda deveria dar conta, obviamente admitindo lacunas, de um quadro nacional. Fomos levados então a uma revisão bibliográfica que, à medida que avançava, deixava evidente o que já suspeitávamos: o grande desequilíbrio quantitativo, na época, entre a oferta de títulos a respeito das populações negras no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Salvador, e a exigui-dade de estudos publicados sobre essas mesmas populações em outros cantos do país. Felizmente, esse quadro em muito se alterou nos últimos anos. Basta consultar a programação da última reunião da Anpuh, para verificar que tal desproporção tem diminuído significativamente.

Mas em 2005 a constatação desse desequilíbrio não nos fez ter dúvidas sobre a viabilidade de uma abordagem da história do negro que pudesse abar-car as experiências negras nas diversas regiões do Brasil. Explicando melhor: é óbvio que a concentração da investigação histórica sobre experiências negras diz respeito a políticas acadêmicas, aos interesses de pesquisadores e de pro-gramas de pós-graduação pela temática. Entretanto, não é só isso que explica tal descompasso. O exercício político e cultural que se fez no Brasil de circuns-crever a presença negra a ‘pequenas áfricas’ diz algo sobre a abundância de estudos centrados nas antigas regiões açucareiras e cafeeiras e em algumas

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cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, que concentram numerosa população negra. Nós, baianos, por exemplo, desde a mais tenra idade apren-demos que Salvador é ‘a cidade mais negra do Brasil’. E tal assertiva, indepen-dentemente de espelhar dados demográficos (não são os dados do Censo que nos interessam aqui!), qualifica a atenção que existe no ambiente acadêmico pela questão negra no estado da Bahia. A situação evidentemente é bastante diversa em outros cenários fora do mapa das ‘pequenas áfricas’, mas onde, a despeito dos números do Censo, as experiências negras também moldaram a história.

Esta reflexão nos exigiu autovigilância para que não uniformizássemos, a partir das ‘áfricas’ já reconhecidas cultural e historiograficamente, uma histó-ria do negro no Brasil. Mas descobrimos, no percurso, que o exercício decor-rente dessa reflexão sempre se faria imperfeito. O exemplo a seguir é ilustrati-vo desse dilema. O capítulo “Fugas, quilombos e revoltas escravas” era, por razões óbvias, indispensável. A rebeldia escrava é tema clássico e estratégico politicamente, pois exalta a condição de sujeito, de autores, de aspirações e atitudes em nome da liberdade. Daí a Lei 10.639 ter reconhecido o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, no calendário escolar. Pois bem. Depois de garimpar na bibliografia disponível as formas de subversão da or-dem protagonizadas por escravos e libertos em diversos contextos, nos demos conta de que, mesmo quando não estávamos falando de Pernambuco, do Rio de Janeiro ou da Bahia, predominava uma narrativa histórica que homogenei-zava as formas de enfrentamento ao escravismo no Brasil.22

Mesmo que os cenários e agentes políticos, culturais e econômicos não fossem os mesmos, as histórias de rebeldia apresentavam uma incômoda re-gularidade; como se tivesse havido um modus operandi rebelde, replicado mui-tas vezes em diferentes lugares e circunstâncias. É preciso dizer que não esta-mos negando que houve, em toda diáspora africana, dada a própria lógica escravista, modos recorrentes de contestação como a sabotagem da produção, as insurreições e as fugas. Mas será que todas as maneiras de rebeldia no mun-do escravista cabem na sentença ‘fugas, quilombos e revoltas’? É evidente que a resposta é não. Esperando escapar aos perigos dessa uniformidade, reserva-mos um número considerável de páginas para tratar de outros campos de luta também constituídos pela insubordinação negra, a exemplo da arena jurídica, da imprensa, dos espaços religiosos e do mundo das artes.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 158

Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

Os diálogos e tensões numa sociedade plural nos levam a uma última ques-tão neste breve ensaio: é a que se refere ao capítulo intitulado “Cultura negra, cultura nacional: samba, carnaval, capoeira e candomblé”. A decisão de dedicar um capítulo às práticas culturais fez parte do nosso esforço de atender ao pro-pósito de colaborar para a valorização do pertencimento racial na contempora-neidade. Daí candomblé, samba e capoeira serem apresentados mais do que como provas da força de culturas de origem africana no novo continente, e sim como estratégias políticas e simbólicas de construção de identidades e, portanto, de enfrentamento ao racismo. Centrar-se nesse repertório cultural foi também uma oportunidade para abordar o modo como em determinado contexto as invenções negras foram subsumidas, diluídas e por vezes silenciadas no caldo de uma cultura nacional autêntica e harmoniosa. Se o discurso da democracia racial está superado entre nós, era e continua ser fundamental analisar como são cons-truídas e representadas as marcas da presença negra na sociedade brasileira. Pôr em evidência, deixar à mostra o protagonismo dos africanos e afro-brasileiros no contexto cultural do país, foi o principal propósito do livro.

Diante de tantos riscos e colecionando aprendizados que nem sempre se materializaram no texto, tivemos a expectativa de colaborar com a reescrita de uma história engajada em enfrentar e pôr fim às desigualdades raciais. Mas não temos dúvidas de que Uma história do negro no Brasil é apenas um ponto de partida. Como está inscrito no seu título, outras histórias dos negros podem e devem ser concebidas, pondo em diálogo pesquisa acadêmica e demandas sociais. Nós mesmos nos animamos com essa tarefa, por isso voltamos a en-frentar essas e outras questões ao publicarmos, em 2009, outro paradidático: Uma história da cultura afro-brasileira.23 Ainda assim estamos convencidos de que esta história precisa ser recontada por profissionais em sintonia com as demandas de uma sociedade que busca redesenhar a memória nacional, na expectativa de valorizar as trajetórias africanas e afro-brasileiras.

NOTAS

1 ALBUQUERQUE, Wlamyra; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.2 As teses foram publicadas com os seguintes títulos: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Le-

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Os dilemas de dois autores frente a Uma história do negro no Brasil

tras, 2009; e FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2006.3 MUNAKATA, Kazumi. História que os livros didáticos contam depois que acabou a di-tadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cesar (Org.) Historiografia brasileira em perspecti-va. São Paulo: Contexto, 1998. p.271-296. p.272.4 Para um balanço da história como disciplina escolar da década de 1980 ver: NUNES, Sil-ma do Carmo. Concepções de mundo no ensino de história. Campinas (SP): Papirus, 1996.5 Para uma análise a esse respeito ver: FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas (SP): Papirus, 1993; e CAIMI, Flávia Eloisa; MACHADO, Ironita A. P.; DIEHL, Astor Antônio (Org.) O livro didático e o currículo de história em transição. Passo Fundo (RS): Ediupf, 1999; FREITAG, Barbara et al. O livro didático em questão. São Paulo: Cortez, 1989; e CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p.549-566, set.-dez. 2004; ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.) Cultura política e leituras do passado: historio-grafia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.215-227.6 ZAMBONI, Ernesta. O conservadorismo e os paradidáticos de história. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh; Marco Zero, v.13, n.25-26, p.175-192, set. 1992-ago. 1993. A autora analisou as coleções “O cotidiano da história” (São Paulo: Ática) e “História em documentos” (São Paulo: Atual) e a obra SCHWARCZ, Lilia; PAIVA, Miguel. Da colônia ao império. São Paulo: Brasiliense, 1987.7 Para uma contribuição recente ao debate sobre heróis no ensino de história ver: MATTOS, Hebe. O herói negro no ensino de história do Brasil – representações e usos das figuras de Zumbi e Henrique Dias nos compêndios didáticos de história. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.) Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino e história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.213-227.8 Dois importantes textos neste debate, dentre outros, são: FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino em história. Campinas (SP): Papirus, 2003; e CABRINI, Con-ceição et al. Ensino de história: revisão urgente. São Paulo: Educ, 2000.9 Há vários títulos importantes que abordam essa temática; ver, por exemplo: BITTENCOURT, Circe. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v.13, n.25/26.10 MUNAKATA, Kazumi. Dois manuais de história para professores: histórias de sua pro-dução. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p.513-529, dez. 2004. Disponível em: www.scielo.br/; Acesso em: 7 jan. 2012.11 Ver o capítulo 4 de FONSECA, 2003.12 ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar (Org.) Histórias do movimento negro no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007. p.243-270.13 MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Apontamentos para pensar o ensino de História hoje:

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Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor. Revista Tempo, Revista do Departamento de História da UFF, Niterói (RJ), v.11, p.59-74, 2006.14 BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC/Secad, 2004.15 Em 10 de março de 2008 a Lei Federal 11.645 estabeleceu as diretrizes e bases da educa-ção nacional, para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da te-mática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL. Brasília: MEC/Secad, 2006.16 PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curri-culares Nacionais: ciências humanas e suas tecnologias, Brasília, MEC/Semtec, 2002. Os PCNs propunham reorganizar o Ensino Médio em três áreas: “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, “Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias” e “Ciências Humanas e suas tecnologias”. Para uma análise das propostas dos PCNs e o ensino de história ver: ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, v.21, n.41, p.5-20, jan.-jun. 2008.17 Ver, por exemplo: GUIMARÃES, Antonio Sergio. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000.18 BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais..., 2004, p.10.19 MATTOS, Hebe. O ensino de história e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.) Ensino de história: conceitos, temáticas e meto-dologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p.134.20 A elaboração do livro foi coordenada pelo professor João José Reis, um dos maiores es-pecialistas em história social da escravidão. Reis é professor do Departamento de História na Universidade Federal da Bahia (UFBA).21 QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. Salvador: Livraria Progresso, s.d.22 Aproveitamos a oportunidade para nos desculparmos pela ausência das referências bi-bliográficas no livro. Uma série de contratempos, próprios ao ineditismo da tarefa, impos-sibilitou a inclusão das referências na publicação.23 FRAGA, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Uma história da cultura afro-brasi-leira. São Paulo: Moderna, 2009. O livro recebeu o prêmio Jabuti em 2010, na categoria “Didático e Paradidático”.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais1

Proposal for the compiling of teaching material on the history of race relations in Brazil

Verena Alberti*

ResumoO artigo discute diretrizes e sugestões para a elaboração de materiais didáticos sobre a história das relações raciais no Brasil, con-siderando especialmente sua disponibili-zação na internet. A proposta parte de pressupostos que concernem, de um lado, ao ensino de história e, de outro, ao uso de tecnologias de informação e comunicação na elaboração de conteúdo pedagógico. São apresentados nove conjuntos de ques-tões, com sugestões de fontes e tarefas a serem executadas pelos alunos, abarcando desde a opção pelo trabalho escravo na América Portuguesa até a polarização que se verifica atualmente entre os que defen-dem políticas de promoção da igualdade racial e os que são contrários a elas.Palavras-chave: ensino de história; uso de tecnologias da informação e comuni-cação no ensino de história; ensino de história e cultura afro-brasileira.

AbstractThe paper discusses guidelines and sug-gestions for the compiling of teaching material on the history of race relations in Brazil, considering its placement on the internet. The proposal is based on some assumptions from the field of his-tory education and of the uses of ICT in pedagogical material. It presents nine sets of enquiry questions, each of them related to a range of historical sources to be worked out by pupils through spe-cific tasks. It embraces topics from slave labour, in the 16th century, to the polar-ization observed nowadays between those who defend affirmative actions and those opposing them.Keywords: history education; ICT and history teaching; teaching of African-Brazilian culture and history.

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 61-88 - 2012

*Coordenadora de Documentação – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) – Fundação Getulio Vargas – Praia de Botafogo, 190, 14º andar. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

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Verena Alberti

Revista História Hoje, vol. 1, nº 162

A Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história da África e de história e cultura afro-brasileira, posteriormente modificada pela Lei 11.645/2008, que acrescentou à obrigatoriedade o ensino da história e cultura indígenas, trouxe desafios interessantes para historiadores e professores de história, militantes de movimentos negros e indígenas, pesquisadores e edu-cadores de modo geral. Um dos desafios, sentido especialmente nos primeiros anos após a promulgação da lei e que vai sendo vencido pouco a pouco, é a escassez de material didático sobre as relações étnico-raciais. Este texto pre-tende discutir diretrizes e sugestões para a elaboração de materiais sobre o assunto, considerando especialmente sua disponibilização em formato eletrô-nico, preferencialmente na internet.

A proposta parte de alguns pressupostos que concernem, de um lado, ao ensino de história e, de outro, ao uso de tecnologias de informação e comuni-cação (TIC) na elaboração de conteúdo pedagógico. Em seguida, apresenta algumas possibilidades de aplicação, com fontes e tarefas a serem executadas pelos alunos.

Princípios norteadores I: sobre ensino de história

No que diz respeito ao campo do ensino de história, um princípio funda-mental a ser observado no dossiê aqui proposto é o comprometimento com o rigor histórico. Isso pode parecer óbvio, e devia sê-lo, mas nem sempre é ob-servado por professores e produtores de material didático em história. Seguir esse princípio significa não estar de acordo com a ideia de que qualquer afir-mação possa ser feita a respeito do passado. Acuidade e clareza de reflexão são, pois, cruciais aqui.

A proposta também considera importante compreender as pessoas no pas-sado. Como já tive oportunidade de desenvolver alhures, a ideia central, nesse caso, é ensinar aos alunos que as formas como as pessoas agiam e pensavam no passado faziam sentido de acordo com suas ideias sobre o mundo, as quais nem sempre (ou quase nunca) são as mesmas de hoje.2 Isso é fundamental porque nos ajuda a perceber similaridades e diferenças em relação ao presente e a ve-rificar, no caso deste dossiê, que as relações raciais em diferentes momentos do passado não foram sempre iguais, nem são iguais às que se verificam hoje em dia – o que implica dizer que a situação atual também pode mudar.

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

Para que a compreensão sobre as pessoas no passado ocorra, é indispen-sável ter acesso a fontes, isto é, restos do passado que permitem que façamos inferências sobre ele. Fontes precisam ser corretamente analisadas, o que sig-nifica dizer que precisamos conhecer o contexto de sua produção, bem como quem as produziu, por que, quando e para quem. Elas podem documentar coisas que não tencionavam documentar originalmente e permitem que faça-mos afirmativas sobre o passado que as pessoas que então viviam não teriam feito.3 Um tratamento correto das fontes embasa o rigor histórico que busca-mos nessa proposta.

Mas documentos precisam ser interrogados para se tornarem evidência de algo – é nesse esforço, justamente, que se realiza a atividade intelectual do historiador, levando à descoberta e ao conhecimento. O dossiê aqui proposto está estruturado em questões de pesquisa que possam fascinar, intrigar e pro-vocar os alunos. Como também já tive oportunidade de escrever,

orientar o estudo por questões de pesquisa é fundamental na prática do ensino de história e deriva da convicção de que o aprendizado efetivo só ocorre se os alunos tiverem diante de si uma questão que precisam resolver, em vez de o pro-fessor lhes ‘ensinar’ a ‘receita do bolo’ fornecendo junto todos os ingredientes. (2010, p.94)

Trabalhar com problemas leva os alunos a selecionar, organizar e estru-turar seu conhecimento a respeito do passado, como faz o historiador.

A questão de pesquisa vem acompanhada de outro processo chave que torna possível o aprendizado em história: a produção de resultados a partir do que foi investigado. Esses resultados derivam de tarefas propostas aos alunos. Por exemplo: a) julgar em que medida um conjunto de fontes responde ou não à pergunta de pesquisa (digamos, dar notas de 1 a 5), escolher as que mais se aproximam da resposta e escrever uma conclusão; b) preparar argumentos de ataque e de defesa sobre determinado assunto (por exemplo: “a política x foi bem-sucedida / foi malograda porque...”); c) identificar fontes que expressam diferentes pontos de vista sobre determinado assunto, explicar como e por que diferem. Ou seja, a pergunta problema deve levar a possíveis respostas, e é dessa forma, aprendendo a sistematizar seu conhecimento e a comunicar sobre o passado, que o aluno aprende a pensar historicamente.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 164

A questão de pesquisa, o uso de fontes (ou evidências) e a produção de resultados que permitam comunicar sobre o passado são três processos chave pelos quais podemos dizer que se dá o aprendizado em história. Esses requisi-tos são defendidos por um extenso grupo de pesquisadores da Inglaterra e dos Estados Unidos, com ramificações em outros países da Europa e também do Brasil, que, desde o final dos anos 1960, vem se perguntando sobre como en-sinar a pensar historicamente.4 Ao lado dos três processos, destacam-se, de acordo com esses pesquisadores, seis conceitos chave, que não estão ligados a nenhum conteúdo histórico específico, mas são identificados como o cerne da disciplina: cronologia; diversidade; mudança e continuidade; causa e conse-quência; relevância; interpretação. A proposta deste dossiê também está assen-tada sobre as reflexões em torno desses conceitos, que serão enfatizados nas diferentes questões de pesquisa.

Princípios norteadores II: sobre o uso de TICs

Passemos agora aos pressupostos relativos ao uso de tecnologias de infor-mação e comunicação (TICs) no ensino de história, para, em seguida, tratar-mos do dossiê propriamente dito. Sabemos todos que, apesar de a aplicação dessas tecnologias no ensino trazer vantagens inquestionáveis, elas não garan-tem, por si sós, um melhor aprendizado. Em coletânea publicada em 2003 e intitulada História, TIC e aprendizado, o coordenador do curso de formação de professores de história da Universidade de East Anglia Terry Haydn afirma que alguns formuladores de políticas públicas consideram que a simples ins-talação de computadores nas escolas fará a educação melhorar. Essa ilusão decorre principalmente da formidável capacidade de transmissão pela internet de um volume enorme de informações. A metáfora que mais se ajusta a essa ideia, segundo Haydn, é a de delivery, como se houvesse uma bomba enviando coisas para dentro das escolas e dos alunos. Mas, diz o autor, transmissão de informação não é, evidentemente, o mesmo que aprendizado. E disso os bons professores estão conscientes. Uma pesquisa realizada em 1999, por exemplo, mostrou que a decisão de usar novas tecnologias depende não só da facilidade de uso dos equipamentos e de acesso a eles, mas também de os professores acharem que elas podem efetivamente ajudar a ensinar sua matéria de manei-ra mais eficaz.5

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

Convém explorar o potencial positivo das novas tecnologias, aproximan-do-nos daquilo que os professores holandeses Siep Stuurman e Maria Grever, num livro sobre as possibilidades de uma história ‘pós-canônica’, chamaram de ‘arquivo digital’, isto é, um conjunto de fontes primárias e secundárias a respeito de determinado assunto histórico, com seleção da literatura secundá-ria que discuta as narrativas concorrentes e permita a interpretação das fontes primárias. Segundo os autores, esses ‘arquivos digitais’ constituem uma opor-tunidade ímpar de ir ‘além do cânone’, num momento em que o antigo livro didático, com sua apresentação monológica, não nos ajuda muito. Eles possi-bilitam que estudantes desenvolvam suas habilidades em situar acontecimen-tos em contextos mais amplos e testem interpretações, no contato direto com as fontes. Além disso, como a existência de perspectivas históricas divergentes está se tornando muito mais uma regra do que exceção (não há uma história única verdadeira sobre o passado, mas uma multiplicidade de histórias com-plementares ou concorrentes), o ensino de história deve se voltar para esse desafio; caso contrário, corre o risco de se tornar irrelevante.6

Esse potencial do trabalho direto com documentos tem sido enfatizado por muitos autores, em contraste com o conteúdo muitas vezes ‘pronto e aca-bado’ e ‘homogeneizador’ do livro didático.7 O historiador Paulo Knauss tam-bém sublinha a importância do trabalho com documentos, que pode até dis-pensar, segundo ele, a utilização do livro didático. Para ele,

O trabalho com os documentos históricos desde cedo pode ser justamente uma fórmula para não adiarmos as tarefas que o mundo contemporâneo exige da es-cola – que o aluno compreenda a lógica dos meios de comunicação, especialmen-te os de massa, para não ser agente passivo da manobra de informações, reconhe-cendo outras visões de mundo, desabsolutizando-as e demarcando a sua identidade de sujeito da própria existência.8

Ou seja, o que se defende aqui é que não se utilize uma página da internet como se fosse um livro didático tradicional, com textos prontos, no estilo de apostilas, e alguns documentos servindo de ilustração. A ideia é aproveitar o potencial e o alcance das TICs para fomentar o exercício da pesquisa e o tra-balho com as fontes. Nesse sentido, os pressupostos de que trata esse item coincidem com os pressupostos do próprio ensino de história, como já discu-tido no item anterior. O trabalho com documentos permite que os alunos não

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apenas ampliem seu conhecimento e estabeleçam sínteses e hierarquias, mas que reflitam sobre o próprio processo de conhecimento em história, que vem das perguntas que fazemos às fontes. Para que isso se viabilize, é fundamental fornecer informações que contextualizem os documentos: “O que é a fonte e onde se encontra?”, “Como chegou até nós?”, “Em que contexto foi produzi-da?”, “Que outras fontes nos ajudam a entendê-la?”. Os alunos também podem participar dessa contextualização, ao refletirem sobre o que elas documentam e sobre as intenções de sua produção e de sua preservação. Muitas vezes as fontes documentam aquilo que, em princípio, não tencionavam documentar – como os filmes de propaganda oficiais, por exemplo –, o que, longe de inva-lidar seu uso, pode trazer reflexões bem interessantes.

A vantagem das TICs está, justamente, no fato de tornarem possível dis-ponibilizar um grande volume de documentos, em diferentes formatos, como textos, filmes, arquivos de áudio e imagens – possibilidade que um livro im-presso não comporta. Mas precisamos tomar cuidado para não nos deixarmos ofuscar por essa profusão e acabar funcionando como um delivery nos termos sugeridos por Terry Haydn. Não há dúvida de que a oferta na rede é enorme hoje em dia, e só tende a aumentar. Para garantir que determinada página na internet seja usada, é aconselhável que o material oferecido seja efetivamente necessário para professores e alunos. A ideia não é disponibilizar mais uma página que o professor provavelmente salvará entre seus ‘Favoritos’ sem retor-nar a ela depois. Por isso, é preciso que o conteúdo e as atividades oferecidas sejam relevantes do ponto de vista do currículo escolar e ofereçam oportuni-dades de aplicação em sala e de trabalho de casa, entre outras. É importante também que professores e alunos possam imprimir os documentos ou, se qui-serem, levá-los para outros aplicativos, a fim de inseri-los num exercício ou numa apresentação, por exemplo.

O aluno também deve se sentir engajado e atraído pela página. Convém selecionar documentos que surpreendam, que sejam eficazes como fontes de pesquisa e que deem um sentido de autenticidade ao que está sendo investiga-do. Além disso, é aconselhável facilitar a interação com o material. Por exem-plo, ao lado de um documento em fac-símile, apresentação que torna concreta e palpável a relação com a fonte, pode ser indicado fornecer sua transcrição completa, para facilitar a leitura, uma transcrição simplificada, ou ainda uma

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

versão em áudio do mesmo documento, lida por um locutor enquanto o texto aparece na tela.9

Finalmente, é muito importante dar autonomia aos alunos para que de-cidam que fontes vão usar e que caminhos vão seguir para dar conta da ques-tão de pesquisa e produzir os resultados sugeridos.10 Eles não precisam nem mesmo utilizar todas as fontes disponibilizadas para dar conta de uma questão. Trata-se, pois, de fortalecê-los (ou, como tem sido comum dizer, ‘empoderá--los’), oferecendo-lhes possibilidades de escolhas – de pontos de vista e de atividades – e estimular que dominem autonomamente os assuntos. Com isso, estaremos mais próximos de um efetivo aprendizado.

O dossiê

O dossiê aqui proposto teria como alvo alunos do segundo ciclo do ensi-no fundamental e do ensino médio, mas poderia ser útil a outros públicos também. Além de orientações para professores e de um tutorial sobre o traba-lho com fontes, seu conteúdo viria dividido em unidades, que poderiam ser trabalhadas independentemente e sem necessidade de seguir a ordem de apre-sentação.

• Unidade I – Por que se instituiu o trabalho escravo na América Por-tuguesa?

Conceito chave: causalidade

Já tive oportunidade de observar que precisamos ter cuidado ao abordar o assunto ‘escravidão e tráfico transatlântico’ no ensino da história das relações raciais, um tema sem dúvida indispensável, mas que, isolado, pode reforçar preconceitos e não suscitar reflexão.11 Como afirma Robert Phillips, professor da Universidade de Wales Swansea, no Reino Unido:

A história da escravidão coloca inúmeros desafios para o professor de história. De um lado, a escravidão deve ser estudada para que se perceba seu papel vital na criação do racismo, mas, de outro lado, imagens constantes da subjugação dos escravos têm um potencial de simplesmente reforçar o estereótipo superior/infe-rior mencionado acima [entre brancos e negros].12

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Por essa razão, convém introduzir esta unidade com atividades que per-mitam colocar em xeque algumas pré-noções, como, por exemplo, a ideia de que todo negro era escravo e vice-versa e a de que, entre os séculos XVI e XIX, a alternativa à escravidão era o trabalho livre assalariado.

Algumas tarefas podem ser cogitadas aqui. Por exemplo, apresentar aos alunos imagens (pinturas, tapeçarias, esculturas etc.) de escravos negros e não negros de diferentes regiões (incluindo a Europa Ocidental e o Oriente) ao longo da história e pedir que descrevam o que veem e se perguntem o que haveria de comum nos documentos. Em seguida, seriam apresentadas as refe-rências completas das fontes para que os alunos as ordenassem cronologica-mente e refletissem sobre similaridades e diferenças entre elas. Além das ima-gens propriamente ditas, o material pode ser complementado com outras fontes primárias e secundárias que deem conta de diferentes exemplos e con-cepções de escravidão através da história. Dependendo das possibilidades ofe-recidas pelo material e das circunstâncias de sua aplicação, pode-se também perguntar aos alunos por que acham que lhes foi solicitado ordenar as fontes cronologicamente. Isso permite que controlem o processo de aprendizagem e reflitam, no caso específico, sobre possíveis mudanças e continuidades. Por fim, pode-se pedir que os alunos elaborem uma definição geral da escravidão e, numa etapa posterior, reflitam sobre quais perguntas ainda precisariam ser feitas para dar conta do tráfico transatlântico e da escravidão africana nas Américas – isto é, que também decidam que passos precisam ser dados para ampliarem seu conhecimento.13

Outra tarefa que pode ser útil nessa introdução gira em torno de fontes primárias e secundárias que mostrem condições de trabalho em diferentes partes do mundo entre os séculos XVI e XIX, para que os alunos possam iden-tificar outras formas de trabalho compulsório ou em condições degradantes (por exemplo, a servidão por contrato na América inglesa, ou o trabalho in-fantil nas minas de carvão da Inglaterra oitocentista). Muitas vezes tendemos a transferir para o passado conhecimentos que adquirimos de nossas experiên-cias atuais, e pode acontecer de os alunos reduzirem as relações de trabalho de outrora a apenas duas opções: a escravidão, de um lado, e o trabalho livre as-salariado, de outro. Conhecer outras relações de trabalho do passado é impor-tante para colocar em xeque a noção bastante comum de que o escravo negro é a vítima por excelência, e seu corpo, o lugar exclusivo de sofrimento e pro-

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priedade alheia. A tarefa a ser executada poderia consistir em ordenar as dife-rentes formas de trabalho trazidas pelas fontes num gráfico com duas coorde-nadas – uma que vai do trabalho ‘mais livre’ para o ‘menos livre’, e outra que vai das condições ‘mais degradantes’ para as ‘menos degradantes’. Evidente-mente, não há uma resposta inequívoca para a localização de cada um dos tipos de trabalho no gráfico, mas a atividade é interessante como exercício de com-paração. Ainda que o trabalho escravo possa ser situado como o ‘menos livre’ e o ‘mais degradante’, sua situação em relação ao trabalho servil, na Rússia czarista, ou em relação àquele de serviçais de uma residência inglesa do século XIX, por exemplo, pode diminuir o risco da simplificação mencionada.

Uma vez introduzido o tema da escravidão nas Américas, cabe fornecer ao aluno possibilidades de trabalhar a questão de pesquisa proposta nesta uni-dade: por que se instituiu o trabalho escravo nas Américas? O importante é ter em mente que se trata da escravidão indígena e africana. Mais uma vez, a ideia é disponibilizar uma série de fontes primárias e secundárias com base nas quais se poderia começar a trabalhar. Como tarefa, pode-se sugerir aos alunos que: 1) ordenem as fontes numa espécie de gradação – fonte boa para responder à pergunta problema, fonte não tão boa para responder à pergunta; 2) escrevam, ao lado das fontes consideradas ‘boas’, por que elas explicam a opção pela es-cravidão; 3) montar um diagrama, no formato de uma pirâmide ou de um diamante, que permita ordenar as causas (as fontes, ou enunciados elaborados a partir das fontes) das menos decisivas para as mais decisivas.

Como já observado no item 2, a ideia é fornecer aos alunos uma série de opções e dar-lhes autonomia para que decidam que fontes melhor se adequam ao que foi perguntado. Se a atividade for desenvolvida com uma classe, é pos-sível que os alunos comparem suas respostas e verifiquem se os colegas encon-traram outras causas mais decisivas do que as que eles próprios puderam iden-tificar. Não se pretende sugerir, com esse tipo de atividade, que apenas uma resposta é possível. O importante é fazer os alunos refletirem a respeito dos diferentes fatores que levaram à opção pela escravidão (africana e indígena), ao mesmo tempo em que refletem sobre a própria causalidade em história. Como sabemos, identificar causas ou fatores que levaram a certos resultados está longe de ser uma atividade simples. Muitas vezes considera-se equivoca-damente que ‘causas’ são como peças de um dominó, que se alinham num

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único e necessário movimento para produzir determinado resultado. O exer-cício aqui proposto tem a intenção de despertar para outras possibilidades.

Entre as fontes primárias e secundárias a serem disponibilizadas nesta unidade estariam:

• Diferentes documentos mostrando que africanos eram valorizados co-mo trabalhadores especializados na manufatura do açúcar, na pecuária extensiva, na mineração etc.

• Documentos que versam sobre as relações entre europeus e indígenas, nas Américas, incluindo escravidão indígena, missões jesuítas, escambo, defesa do território da colônia, determinações legais, extermínio.

• Fontes primárias e secundárias em torno dos lucros auferidos com o tráfico transatlântico e com atividades a ele vinculadas, como constru-ção naval, produção de bens como tabaco, cachaça e tecidos; impostos sobre exportação e importação de escravos africanos; comparação com outras atividades lucrativas.

• Trechos extraídos de documentos de época que reproduzam diferentes concepções sobre a escravidão e o tráfico transatlântico, entre os sécu-los XVI e XIX, de autoria de filósofos, políticos, religiosos e comercian-tes, entre outros.

Esta unidade poderia ainda incluir uma seção reunindo trechos de livros didáticos antigos e contemporâneos com diferentes explicações para a opção pela escravidão africana (por exemplo, a ideia de que o indígena não era ‘adap-tado’ ao trabalho escravo, tão comum em livros didáticos do passado). Essa seria uma boa oportunidade para os alunos refletirem sobre a história do en-sino de história e entrarem em contato, por exemplo, com um material didá-tico que poderia ter sido usado por seus pais ou avós. O ideal seria reproduzir as páginas com as explicações e ilustrações em fac-símile e solicitar, então, aos alunos que rebatam as explicações com base nas fontes disponibilizadas no dossiê. O recurso às TICs permitiria que, ao lado de cada explicação do livro, se abrisse um campo para onde fosse possível arrastar uma citação ou fonte escolhida pelo aluno, ou ainda escrever comentários. O fato de os próprios alunos trabalharem esse material e selecionarem os argumentos contrários às explicações dos livros didáticos talvez possa instrumentalizá-los para, em ou-tras ocasiões – em conversas com familiares ou conhecidos – rebaterem alguns

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dos preconceitos que ainda persistem em relação a esse assunto (como o do índio indolente, por exemplo).

• Unidade II – Por que não faz sentido falar de ‘o índio’ ou ‘o negro’?Conceito chave: diversidade

O principal objetivo aqui é fazer frente à homogeneização simplificadora que geralmente está por trás de preconceitos e estereótipos. Bem sabemos que falar do ‘índio’ e do ‘negro’, ou do ‘africano”, é redutor e muitas vezes impede o reconhecimento de indígenas, negros e africanos como sujeitos e agentes da história. Processo semelhante ocorre com a ideia do ‘judeu como vítima’, re-produzida indiscriminadamente em livros didáticos e outros recursos, quando o assunto é o holocausto. Uma das estratégias adotadas por professores e ins-tituições voltados para o ensino do holocausto, para fazer frente a essa gene-ralização muito próxima do estereótipo, é viabilizar o acesso à diversidade de experiências do ser judeu anterior à Segunda Guerra Mundial.14

O material nesta unidade poderia ser apresentado em dois mapas intera-tivos – um da África e outro da América do Sul – em que estariam represen-tados reinos, nações, grupos linguísticos etc., do século XIV ao XIX, aproxi-madamente. Clicando sobre um desses reinos ou grupos, o aluno teria acesso a fontes diversas, incluindo registros de tradição oral, se possível, a respeito das práticas comerciais e religiosas, da organização social e política, das formas de trabalho, da língua etc.15 A tarefa do aluno seria reunir informações de cinco grupos de cada um dos mapas e inserir as fontes a respeito em duas ta-belas – uma para a África e outra para a América do Sul –, obedecendo ao cabeçalho sugerido a seguir.

Identificação do reino/grupo: nome, localização geográfica e temporal (onde e quando existiu)

Fontes sobre organização social e política – identificar as fontes e sintetizar o que elas dizem

Fontes sobre língua – identificar as fontes e sintetizar o que elas dizem

Fontes sobre relações com outros grupos (comércio, guerra etc.) – identificar as fontes e sintetizar o que elas dizem

O que mais eu sei sobre o reino/grupo – identificar outras fontes e sintetizar o que dizem

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Dependendo dos recursos de TIC, poder-se-ia pensar em arrastar os links das fontes para as células correspondentes desse quadro.

Note-se que esta unidade teria como objetivo ampliar o conhecimento dos alunos a respeito da diversidade de experiências e de organizações encon-tradas no continente africano e na América do Sul entre os séculos XIV e XIX. Nesse sentido, a ênfase deve recair sobre fontes que efetivamente ampliem esse conhecimento e menos sobre documentos que reforcem preconceitos e estereótipos. O que fazer, por exemplo, com o livro de Francis de Castelnau publicado em meados do século XIX relatando a existência de uma nação de homens com cauda na África central?16 Pode ser que se julgue interessante acrescentar documentos desse gênero. De todo modo, cabe ao professor cer-tificar-se de que os alunos incorporaram bem os ensinamentos do tutorial sobre o trabalho com fontes, aprendendo a discernir o que exatamente um relato desse tipo documenta. Além disso, é bom lembrar que a fonte deve vir sempre acompanhada de informações sobre o contexto de sua produção.

• Unidade III – Quão diferente era a vida no ‘Brasil’ de 1500 a 1888?Conceitos chave: diversidade; cronologia

Esta unidade tem como objeto a economia e a sociedade na América Por-tuguesa e no Brasil Imperial. Pode ser iniciada com um mapa animado da ocupação do território, incluindo grupos indígenas, pau-brasil, açúcar, qui-lombos, pecuária, drogas do sertão, tabaco, mineração, algodão, missões na Amazônia e no Prata, bandeirantes, vilas e cidades, rotas comerciais (incluin-do monções e tropeiros), café e estradas de ferro.17 Observe-se que os quilom-bos são vistos aqui como formas de organização social e política, de ocupação do território e de desenvolvimento de atividade econômica equivalentes ao engenho de açúcar ou à sociedade das minas. Além de estudarmos os quilom-bos como exemplos de resistência à escravidão, convém percebê-los como uma entre as muitas modalidades de colonização do ‘Brasil’ – colonização no sen-tido de ocupação do território e implementação de determinadas práticas po-líticas, sociais, econômicas e culturais.

Como na unidade anterior, seriam disponibilizadas, no mapa, fontes pri-márias e secundárias a respeito de diferentes situações e práticas, abarcando relações de trabalho, comércio, atividades produtivas, organizações religiosas,

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formas de comunicação, revoltas e assim por diante. O aluno pode clicar sobre uma região, atividade, organização política etc., e obter um conjunto de fontes a seu respeito.

Uma das vantagens do uso de TICs em material didático, especialmente no caso de conteúdo disponibilizado na internet, é o fato de, uma vez estabe-lecido um padrão ou molde, sempre ser possível acrescentar novos itens àque-le recurso. Assim, é evidente que um mapa que pretenda representar a diver-sidade de práticas sociais, políticas, econômicas e culturais de 1500 a 1888 no território que hoje é o Brasil jamais esgotará todas as possibilidades. O dossiê pode, inicialmente, apresentar algumas dessas práticas, para, conforme forem sendo encontradas e selecionadas mais informações e fontes, estas sejam acres-centadas ao mapa.

A atividade sugerida para esta unidade é uma espécie de jogo da genera-lização, no qual alunos formulam afirmativas convincentes, mas incorretas, sobre assuntos abarcados no mapa (por exemplo: “Todos os quilombos fica-vam distantes das vilas”) e desafiam os colegas a descobrirem onde está a ge-neralização, com base nas fontes disponibilizadas no mapa. O colega que des-cobrir, pode denunciar: “Não é tão simples!”, e apontar onde está a generalização. Em seguida, os alunos podem refletir sobre uma redação mais apropriada (por exemplo: “Nem todos os quilombos ficavam distantes das vilas, como mostra o exemplo x, que...”).18

• Unidade IV – O que as biografias de africanos escravizados e seus descendentes podem dizer sobre seus personagens e o mundo em que viveram?Conceitos chave: cronologia; relevância; diversidade

O uso de biografias no estudo da história permite tornar concretas expe-riências vividas no passado, bem como colocar em xeque visões generalizadas a respeito de trajetórias e modos de vida que desconhecemos.19 Aqui podem ser usadas as biografias de Rosa Egipcíaca (1719-1778), Olaudah Equiano (c.1745-1797), Ottobah Cugoano (c.1757-após 1791), Maria Jesuína de Zoma-donu (antes de 1797-após 1840), Mahommah Baquaqua (c.1824-após 1854), Luiz Gama (1830-1882) e outros. Como um dos conceitos chave sugeridos para esta unidade é ‘relevância’, cabe introduzir também a discussão de por que determinados personagens históricos são lembrados, e outros não, ou se-

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ja, o que, em história, é considerado ‘relevante’ (o que implica perguntar: “Re-levante para quem e por quê?”).

Mais uma vez, trata-se de fornecer aos alunos um conjunto de fontes com base nas quais deverão executar as tarefas propostas. Nesta unidade, as fontes se referem a cada um dos personagens estudados – seleção de textos escritos sobre e pelos personagens, entre os quais biografias e autobiografias, descrições de locais por onde passaram, imagens de época, retratos etc.

Os alunos serão convidados a realizar três tarefas. A primeira, uma linha do tempo desenhada num mapa-múndi, acompanhando a trajetória de vida e os deslocamentos de cada personagem. Caberá aos alunos traçar a trajetória no mapa e, sempre que necessário, abrir um registro para inserir um dado ou acontecimento novo. Cada registro deve compreender uma explicação e um link para a fonte da informação. Por exemplo, um registro aberto pelo aluno na altura de Salvador informaria: “Nascimento de Luiz Gama em 21 de junho de 1830, em Salvador”.

Reconstituídas as trajetórias de vida, a tarefa seguinte consiste em avaliar o alcance e os limites das principais fontes utilizadas na elaboração da linha do tempo, perseguindo a resposta da questão de pesquisa inicial. Solicita-se que os alunos preencham este quadro:

O que sei sobre a fonte: o que é, quem é o autor, quando produziu a fonte e, se for possível, por quê (suas intenções)

O que a fonte me diz sobre o personagem da biografia

O que a fonte permite inferir sobre o mundo à época em que o personagem viveu

O que mais a fonte me diz

O que a fonte não me diz e como posso saber mais sobre isso

A última tarefa seria uma composição das duas primeiras: escrever uma apresentação do personagem, discutindo sua relevância para o estudo da his-tória e comentando aquilo que sua biografia permite e aquilo que não permi-te afirmar. Com esse exercício ficaria bastante claro para os alunos que os conhecimentos que temos do passado são condicionados pelas fontes de que dispomos e dependem das perguntas que a elas fazemos. É importante notar – e desejável que os alunos também percebam isso – que esse constrangimen-to não significa necessariamente uma limitação do nosso conhecimento, mas

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constitui um elemento fundamental para avaliar o que passamos a conhecer (e que não conheceríamos sem as fontes).

• Unidade V – Por que é tão difícil afirmar quando acabou a escravidão indígena no Brasil?Conceitos chave: mudança e continuidade; interpretação

A escravidão indígena é um assunto pouco tratado e bastante nebuloso, no ensino da história do Brasil. Durante muito tempo, como observa o histo-riador e indigenista André Raimundo Ferreira Ramos, costumava-se dizer que o indígena não foi escravizado, ou, se muito, que a escravidão indígena ocor-rera apenas no início da colonização. Era comum os livros didáticos pularem do escambo diretamente para as missões jesuíticas, como se o trabalho escravo indígena tivesse sido totalmente substituído pelo africano, esquecendo-se as-sim que diferentes modalidades regionais de escravidão indígena perduraram, seguramente, até o final do século XIX.20 O conceito chave ‘mudança e conti-nuidade’ aplica-se bem à pergunta desta unidade, pois nela está embutida a questão dos limites da mudança: o ‘fim’ da escravidão indígena significou um ‘fim’ para quem, exatamente? Até que ponto a regra da ‘guerra justa’ ou a le-gislação pombalina de meados do século XVIII, para citar apenas duas deter-minações portuguesas, constituíram rupturas efetivas?

As fontes no caso desta unidade incluem diferentes atos da legislação indíge-na desde o início da colonização, determinações administrativas, relatos de viajan-tes e relatórios, que deem conta de relações de trabalho praticadas pelo menos até finais do século XIX.21 Para que os alunos possam visualizar as mudanças e conti-nuidades, e refletir sobre elas, poderiam começar ordenando as fontes cronologi-camente e resumindo seu conteúdo, como proposto neste quadro:

Especificar a fonte: o que é, quando, por quem e por que foi escrita O que diz a fonte

Em seguida, os alunos poderiam fazer um exercício de redação, compa-rando os resultados de sua pesquisa com trechos de livros didáticos antigos e atuais. Para tanto, poderia ser disponibilizada uma espécie de molde para a redação de um ensaio, com espaços que seriam completados pelo aluno com

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base em suas pesquisas, semelhante ao que pode ser encontrado na página do Arquivo Nacional Britânico.22 O molde começaria com uma introdução gené-rica, a ser completada pelo aluno e, na sequência, apresentaria espaços para incluir trechos encontrados em livros didáticos e objeções a eles, baseadas nas fontes estudadas. Cada trecho e fonte citados no ensaio do aluno já viriam acompanhados de sua respectiva referência bibliográfica, na forma de notas de pé de página. A estrutura acompanharia este roteiro:

1. Introdução genérica: Há muita incorreção em manuais escolares e em outras publicações, e até nas noções do senso comum, sobre a escravidão indígena no Brasil. [deixar espaço para o aluno continuar o parágrafo introdutório]

2. O [trecho de manual escolar] de [data], por exemplo, afirma que...

3. Mostrar o que pode estar correto, nessa afirmação

4. Mostrar o que não está correto, nessa afirmação, e basear a argumentação em fontes examinadas na tarefa anterior

5. Mostrar o que está faltando na afirmação e basear a argumentação em fontes examinadas na tarefa anterior

6. Acrescentar outro trecho de manual escolar e proceder da mesma forma

7. No final, redigir parágrafo conclusivo

Esta seria uma ótima oportunidade para os alunos comunicarem sobre o passado utilizando uma ferramenta que permite contrapor afirmativas talvez pouco criteriosas a informações extraídas de fontes de pesquisa. O principal conceito chave em jogo na execução dessa tarefa é o de ‘interpretação’; os alunos teriam oportunidade de avaliar um conjunto de interpretações sobre o passado para verificar sua validade.

• Unidade VI – O Brasil foi o último país das Américas a abolir a es-cravidão. Por que levou tanto tempo?

Conceitos chave: cronologia; mudança e continuidade

Há diferentes possibilidades de abordar a questão de pesquisa desta uni-dade. O conceito chave parece ser, mais uma vez, o de mudança e continuida-de, chamando talvez mais atenção para as permanências do que para as rup-

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turas. Para que o aluno domine o assunto, podemos começar com um exercício de fixação das diferentes medidas administrativas e legais tomadas desde 1807, quando o tráfico transatlântico foi extinto na Inglaterra, até 1888 – ou então desde 1791, quando se iniciou o processo de independência do Haiti, passando pela abolição da escravidão nas colônias da França revolucio-nária, em 1794. Além de abarcar os documentos legais geralmente evocados – como a Lei de 1831, a Lei Euzébio de Queiroz, a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários –, essa seção poderia conter informações sobre medidas legais de países da América Latina, ou de outras regiões julgadas relevantes.

Um exercício de fixação possível seria o de apresentar aos alunos três conjuntos de dados: 1) informações completas sobre as resoluções administra-tivas e legais relativas à extinção do tráfico transatlântico e à abolição da escra-vidão em diferentes regiões do mundo e do Brasil, acompanhadas da reprodu-ção na íntegra dos documentos; 2) um resumo das resoluções sem data; 3) apenas as datas das resoluções. A tarefa seria combinar os resumos e as datas e alinhá-los numa linha do tempo. Para executá-la, seria necessário ler os do-cumentos na íntegra, ou as informações completas. Fornecer informações re-lativas ao Brasil ao lado das que dizem respeito a outras regiões do mundo permite que o aluno compreenda a articulação entre ambas, o que é especial-mente importante em relação ao assunto desta unidade.

Costumamos conceber a abolição do tráfico transatlântico e da escrava-tura como um processo que culmina com o fim da escravidão – tanto que muitas vezes chamamos esse ‘processo’ de ‘transição do trabalho escravo para o trabalho livre’. Podemos nos perguntar se, pensando dessa forma, não esta-mos transportando para o passado valores e práticas do presente, quase como se fosse óbvio que a escravidão acabaria. Para dar conta justamente das difi-culdades desse ‘processo’, é importante sublinhar as resistências ao fim da escravidão e as opiniões favoráveis à sua continuidade, vindas de fazendeiros, comerciantes e homens públicos, por exemplo. Assim, seria interessante via-bilizar a elaboração de uma segunda linha do tempo, que revelasse não a mu-dança, mas a continuidade de atitudes em relação à escravidão no século XIX – extratos de cartas, panfletos, debates parlamentares etc., a serem inseridos na ordem cronológica, mantendo-se como contraponto as informações já compiladas para a primeira linha do tempo desta unidade.

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Outra possibilidade é debruçar-se sobre a pergunta “Quem era a favor da Abolição e quem era contra, e por quê?”. As fontes aqui seriam reportagens de jornal, textos e propagandas a favor e contra, debates parlamentares, biografias de personagens que se destacaram nas campanhas etc. Como resultado, poder--se-ia propor aos alunos que preparassem uma apresentação de PowerPoint, seguindo ou não um modelo previamente elaborado.23 Os slides do PowerPoint podem ser montados a partir de perguntas como estas: “Quais eram os prin-cipais argumentos a favor da abolição?”, “Quem eram os abolicionistas e como agiam?”, “Quem era contra a abolição e por quê?”.

Uma questão recorrente nesse debate é a que envolve a pressão da Ingla-terra para que o Brasil abolisse o tráfico transatlântico. A pergunta pode ser explorada numa seção especial da unidade, fornecendo-se, para isso, fontes primárias (correspondência oficial, legislação, tratados, documentos de fazen-deiros de colônias inglesas no Caribe) e secundárias que revelem diferentes momentos e formas de atuação do governo britânico em relação a esse ponto. Ainda hoje é comum ouvirmos dizer que o interesse inglês estaria na formação de um mercado consumidor, mas isso não explica por que a pressão do gover-no britânico teve como foco principalmente o fim do tráfico transatlântico, e menos da escravidão em si. A tarefa aqui poderia ser, mais uma vez, comparar as informações trazidas pelas fontes com afirmações encontradas em livros didáticos. O resultado pode ser o preenchimento de um quadro como este:

Trecho do livro didático sobre o assunto

O que pode estar correto

O que está incorreto

O que está faltando

Outro elemento importante para dar conta desta unidade é o fato de ape-nas 5% da população brasileira ser escrava em 1888, o que mostra, de forma bastante incisiva, que havia muito mais negros livres e libertos do que escravos, antes do 13 de Maio. As fontes aqui podem apresentar estimativas da popula-ção escrava no século XIX, as abolições em províncias como Amazonas, Ceará e Rio Grande do Sul (uma pergunta de pesquisa bem interessante pode ser por que a abolição ocorreu nesses estados quatro anos antes de no restante do país), processos de libertação como os que eram defendidos por Luiz Gama, diferen-tes modalidades de alforria, inclusive as obtidas por pecúlio dos próprios es-

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cravos, exemplos de famílias negras com recursos, como as dos irmãos Rebou-ças e outras fotografadas pelo fotógrafo Militão, cotidiano e subsistência em comunidades negras rurais etc. A ideia é apresentar africanos e seus descen-dentes como senhores de seu destino muito antes de 1888.

Pode-se acrescentar a esse conjunto de fontes documentos que indiquem que, mesmo livre ou liberto, o negro estava sujeito a restrições importantes e não raro corria o risco de ser escravizado. O Código Criminal de 1831 e o exemplo de Luiz Gama podem ser fontes eloquentes, entre outras.

A atividade a ser desenvolvida em relação a esta seção da unidade poderia ser, mais uma vez, uma redação seguindo um molde pré-elaborado, como já sugerido para a Unidade V. O molde começaria novamente com uma intro-dução genérica, a ser completada pelo aluno, e teria espaço para a inserção de exemplos aprendidos com o material oferecido.

1. Introdução genérica: Ao contrário do que muitos pensam, a abolição da escravidão em 1888 não foi o momento em que a maioria dos africanos escravizados e seus descendentes se tornou livre no Brasil. Antes de 1888, grande parte dos que haviam vindo como escravos ou nascido como escravos era livre. As formas de conquistar a liberdade até 1888 variaram bastante [deixar espaço para o aluno continuar o parágrafo introdutório]

2. O documento ... mostra que era possível tornar-se livre... [descrever o caso]

3. Outra forma de alcançar a liberdade era..., como mostra o documento..., que se refere ao caso de ... [descrever o caso]

4. Os negros livres e libertos exerciam diferentes atividades, na sociedade imperial. [identificar uma pessoa ou um grupo], por exemplo, que vivia[m] em [identificar o lugar] durante [informar quando], [descrever o que fazia(m)]

5. Outro exemplo interessante é o de [descrever o exemplo]

6. Apesar desses exemplos, a pessoa negra ou mulata que tinha nascido livre ou tinha alcançado a liberdade corria o risco de ser considerada escrava, como mostra o documento... [descrever o caso] Esse risco deixou de existir em 1888, quando a escravidão foi abolida por lei.

7. No final, parágrafo conclusivo.

A tarefa conclusiva desta unidade poderia ser a elaboração de um texto para responder à questão de pesquisa lançada no início, sobre por que demo-

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rou tanto tempo para a escravidão ser abolida no Brasil. Uma forma de ajudar os alunos a esquematizar seu texto seria fornecer cartões com dados e/ou afir-mativas extraídos das fontes utilizadas na unidade, e sugerir que, discutindo com alguns colegas, arranjem os cartões na forma de um mapa mental. Seria interessante fornecer também alguns cartões em branco, para que os próprios alunos os completem com dados e afirmativas que considerem igualmente relevantes. Uma vez selecionados os cartões que integrarão o mapa mental e definido o arranjo – isto é, a natureza das relações entre as informações con-sideradas relevantes –, os alunos podem se voltar para a redação do ensaio sobre a questão proposta.

• Unidade VII – A raça ou cor teve/tem importância no Brasil?

Conceitos chave: interpretação, mudança e continuidade

De uns anos para cá estabeleceu-se, no meio intelectual brasileiro, uma espécie de polarização no que diz respeito à reflexão sobre a questão racial. Antropólogos, historiadores e cientistas sociais, entre outros, têm defendido seja a implementação de ações afirmativas e mecanismos de correção das de-sigualdades raciais, seja a completa impropriedade dessas iniciativas, que tra-riam consigo o risco de divisão racial da sociedade. Esta unidade objetiva qua-lificar os alunos a participarem dessa discussão, familiarizando-os com os argumentos e trazendo algumas informações sobre a história do conceito de raça no Brasil e no mundo, inclusive sua invenção e posterior ‘desinvenção’ pela biologia.

O material seria composto por uma seleção de textos de diferentes auto-res, desde Nina Rodrigues, passando por defensores do ‘branqueamento’, por Manuel Bonfim, Lima Barreto, Gilberto Freyre, Oracy Nogueira, Florestan Fernandes e outros, editoriais da imprensa negra e documentos de organiza-ções do movimento negro, letras de música e pinturas relativas ao tema, ma-nifestos contra e a favor das ações afirmativas e do Estatuto da Igualdade Racial publicados desde 2006, entre outros.

Numa primeira etapa, pode-se solicitar aos alunos que completem ‘eti-quetas’ dos documentos, conforme os fossem consultando. As etiquetas esta-riam ligadas às fontes e teriam um campo já preenchido (o título do documen-to) e espaço para o preenchimento de quatro outros campos.

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Título do documento [essa seria a única informação que já viria na ‘etiqueta’].

Informação sobre o tipo de documento: do que se trata (artigo de jornal, letra de música, trecho de livro, entrevista etc.)

Data Autor e local de publicação

Resumo de três linhas, aproxima-damente, infor-mando o que diz o documento

Num segundo momento, as etiquetas e seus documentos poderiam ser arrastados para uma linha do tempo, com o objetivo de suscitar reflexões sobre possíveis mudanças nas concepções em torno da questão racial no Brasil. De-pendendo do material reunido, pode ser possível acompanhar diferentes opi-niões sobre raça e cor no Brasil, desde a ênfase na degenerescência da popula-ção brasileira em razão da presença maciça dos negros, passando pelo ideal do branqueamento e, em seguida, da mestiçagem, até a denúncia do racismo e das desigualdades raciais e a polarização em torno das medidas a serem adotadas.

Outra possibilidade seria acrescentar uma coordenada vertical à linha do tempo (que permaneceria na horizontal), que indicasse ‘mais’ ou ‘menos’ pre-conceito. Os documentos e suas etiquetas seriam então dispostos nesse gráfico, conforme se pudesse inferir que defendem ou pressupõem uma hierarquia (superior-inferior) entre brancos e não brancos, ficando claro que nem todos os documentos poderiam ser classificados dessa forma.

Em seguida, pode-se solicitar que os alunos separem do material forneci-do os documentos que tratam especificamente da discussão sobre ações afir-mativas e os dividam entre os que são a favor e os que são contra. O passo seguinte seria examinar os argumentos, seus pontos fracos e fortes, e propor um debate entre os alunos, virtual ou presencialmente. Alguns autores apon-tam, aliás, que debates virtuais muitas vezes rendem mais do que os que são conduzidos em sala de aula, quando os alunos às vezes não expressam suas opiniões com liberdade, seja porque receiam não terem um bom desempenho, seja porque não querem ferir os colegas.24

• Unidade VIII – Movimentos negros e indígenas são ‘separatistas’?Conceito chave: interpretação

Esta unidade é complementar à anterior. A ideia é apresentar, num mapa interativo do Brasil, diferentes organizações negras e indígenas existentes des-

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de o final do século XIX. Quando o aluno clica sobre uma organização, tem acesso a uma breve informação sobre ela e a diferentes fontes – artigos, mani-festos, pôsteres, fotografias, filmes, gravações sonoras, entrevistas etc. A tarefa consiste em escolher alguns desses movimentos para preencher este quadro:

Movimento/organização: título, data, local, participantes

Estratégias de ação que podem ser inferidas das fontes

O que os participantes pensavam (reproduzir o que está nas fontes, se possível arrastando e colando trechos escolhidos)

‘Índice de separatismo’ (de 0 a 10), com base nos documentos escolhidos

O preenchimento da última coluna pode ser aprimorado com um debate em sala. O professor distribui cartões com os nomes dos movimentos ou or-ganizações, nos quais cada aluno escreve seu ‘índice de separatismo’, o qual discutirá em três etapas com seus colegas: com alguém que escolheu um ‘índi-ce’ parecido, com alguém que tem um índice pouco diferente e, finalmente, com alguém que escolheu um índice bem diferente. Após cada discussão, o aluno reflete se desejaria mudar seu índice e, no final, uma discussão do ple-nário tenta fixar os pontos principais.

Essa atividade e a questão de pesquisa que lhe serve de pano de fundo objetivam lidar com a polarização decorrente da atuação dos movimentos so-ciais e da reação a eles. Muitos professores já devem ter ouvido críticas em formas de perguntas, como “Por que não existe um Dia da Consciência Bran-ca?”, ou “Por que é obrigatório estudar África, mas não é obrigatório estudar o Japão, por exemplo?”. Trata-se de questões delicadas, mas isso não deve ser razão para que não sejam tratadas nas aulas de história. Aliás, como já disse-mos, é preciso justamente enfrentar essas e outras questões sensíveis e contro-versas nas nossas aulas, pois do contrário nossa disciplina corre o risco de se tornar irrelevante.25

• Unidade IX – A raça ou cor teve/tem importância fora do domínio europeu?Conceitos chave: diversidade, cronologia

Esta unidade tem o objetivo de chamar a atenção para o olhar não euro-peu sobre outros povos. Interessa aqui pesquisar se e como pessoas de diferen-

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

tes lugares do mundo explicaram e explicam diferenças que, no mundo oci-dental, foram chamadas de ‘raciais’, e se essas explicações implicaram julgamentos do tipo superior/inferior. Como os habitantes do continente in-diano viam os chineses, ou os africanos da costa oriental? Como os portugue-ses eram representados em placas que decoravam os pilares do palácio do reino de Benin, no século XVI?26 O interessante seria reunir um conjunto de documentos de diferentes regiões e épocas que possam dar conta desses en-contros ou desencontros entre povos. É claro que o material terá de ser muito bem contextualizado, pois muitas vezes só temos acesso à visão do não europeu desde o relato de um europeu, e esse viés da informação precisa estar bem esmiuçado. As fontes podem estar dispostas num mapa-múndi e, como nos exemplos anteriores, ser acessadas por um clique.

Como atividade, poderíamos propor duas tarefas. Uma primeira decor-reria da análise das fontes selecionadas pelo aluno, e seguiria, por exemplo, esta orientação:

Sobre a fonte: título (o aluno pode atribuir um título), local, data, por quem e por que foi produzida?

Que cuidados preciso tomar para interpretar essa fonte? (Por exemplo, que cuidados precisamos tomar com a reprodução do diálogo com um tupinambá por Jean de Léry, na década de 1550?)

O que a fonte me diz?

A segunda tarefa seria a preparação de um PowerPoint, com a apresenta-ção de alguns achados por parte do aluno, seguindo talvez um molde previa-mente preparado. Os alunos podem apresentar os PowerPoints em sala, para socializar suas descobertas. Para isso, talvez fosse interessante dividir a turma em grupos e estabelecer uma região do mapa para cada grupo. Assim, as apre-sentações trariam novidades para a turma.

• Jogo – Brasileiros notáveis

O dossiê poderia conter atividades lúdicas. Uma possibilidade seria uma espécie de jogo da memória em que se apresentassem imagens, dados biográ-ficos e algumas obras (quadros, músicas, trechos de filmes, de livros etc.) de cientistas, músicos, engenheiros, políticos, médicos, artistas plásticos e escri-tores, entre outros, mulheres e homens de diversas origens e aparências, com

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o intuito de acostumar os alunos à existência, entre os notáveis, de negros e indígenas. O objetivo do jogo seria juntar corretamente os três elementos re-ferentes a uma pessoa (sua imagem, seus dados biográficos e suas obras), e quem conseguisse acumular o maior número de associações corretas seria o vencedor. Uma ideia interessante é fornecer ferramentas para que o aluno acrescente mais ‘notáveis’ ao jogo, inclusive ele mesmo, amigos e parentes, com as respectivas imagens, os dados biográficos e as obras.

Observações finais

A maioria das sugestões descritas nesta proposta não precisa, evidente-mente, de TICs para ser colocada em prática. Um barbante com pregadores pode servir de linha do tempo, e cartolinas podem dar origem a tabelas nas quais se colam imagens ou trechos de documentos. Talvez o maior trabalho, para o professor, seja a pesquisa e a seleção de fontes adequadas, que sirvam ao seu propósito de forma honesta em relação ao passado, isto é, como subli-nhei no início, priorizando o rigor histórico. Não há dúvida de que a atividade docente é uma atividade de pesquisa por excelência, pois necessita de objetivos a serem definidos (“O que exatamente eu gostaria que meus alunos aprendes-sem?”), etapas e métodos a serem trilhados (“Como fazer com que eles apren-dam?”) e resultados a serem alcançados (“Como saberei que eles sabem?”).

Todo professor saberá escolher, das ideias aqui apresentadas, aquelas que mais se adaptam a sua sala de aula e a sua instituição de ensino. Dependendo da disponibilidade de tempo, poderá encontrar fontes interessantes nos arqui-vos de sua cidade ou em repositórios de documentos na internet. O importan-te é refletirmos bem sobre o que exatamente pretendemos com a aplicação das Leis 10.639 e 11.645, e como alcançar nossos objetivos. As possibilidades são infinitas, o que é ótimo, mas precisamos também de muita cautela para não desperdiçar oportunidades. O trabalho é difícil, lento, e a toda hora somos lembrados de sua premência.

Como outro dia, em que vivi uma situação simples que, com certeza, poderia ter ocorrido em qualquer sala de aula do país. Era minha primeira aula numa turma do 2º ano do Ensino Médio e, como costumo fazer, tentei transmitir aos alunos minha convicção de que precisamos conhecer o passado como forma de nos ‘alfabetizar’ na ‘leitura do mundo’. Um exemplo que gos-to de dar, tomando cuidado para não generalizar, pois o assunto é muito sério,

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

é dos judeus que perceberam que precisavam sair da Alemanha antes do ho-locausto – digo aos alunos que é importante estar ‘alfabetizado no mundo’ para talvez compreender alguns sinais e tomar decisões. É um exemplo radical, mas eu me permito ser um pouco radical quando se trata de defender a impor-tância da matéria! Uma aluna então perguntou se havia sido a primeira gran-de perseguição aos judeus no mundo, e acabamos caindo no assunto dos cristãos-novos, que, para não serem perseguidos pelos impérios português e espanhol, mudaram de religião e de nome – ‘Oliveira’, ‘Pereira’ etc. Esse é um exemplo clássico, que os alunos em geral já conhecem. Outra aluna sugeriu que o sobrenome ‘Costa’ também deveria ser de cristão-novo. Expliquei que já ouvira falar que ‘Costa’ era um sobrenome comum a descendentes de escra-vos africanos, os negros ‘da Costa’, e até desenhei no quadro a costa ocidental da África para ajudar a visualizar a informação. Nesse ínterim, um celular tocou (todos também já experimentamos essa situação), e os alunos começa-ram a rir. Perguntei: “Por que estão rindo? Por causa do celular?”. “Não”, foi a resposta, “é porque ele” – apontaram um colega – “é Costa”. E eu disse: “Interessante, vocês estão rindo porque ele é ‘Costa’? E se ele fosse ‘Oliveira’, ou ‘Pereira’? Também ririam? E ‘Smith’?”.

Como disse, foi um episódio simples, que poderia ter acontecido em qual-quer sala de aula do país, independentemente da cor dos alunos. Não era uma aula sobre África ou sobre história e cultura afro-brasileira. Era uma aula sobre história, simplesmente. E me forneceu material para refletir – a ponto de eu ter decidido relatá-lo aqui. Ele mostra como é fundamental tratarmos das ideias sobre raça e cor no Brasil e da história das relações étnico-raciais. Sem-pre respeitando os alunos e seus preconceitos – quase podemos dizer que eles não têm culpa do que sentem e pensam. Cabe a nós, professores, tentar mudá--los a esse respeito. Uma das formas de fazê-lo é a que defendo neste texto: disponibilizar cada vez mais material útil e de qualidade, que talvez possa, com repetições, insistência e vontade, derrubar preconceitos, a ponto de se tornar quase impossível rir de um colega com sobrenome ‘Costa’.

NOTAS

1 Este texto é parte dos resultados de minha pesquisa de pós-doutorado na área de ensino de história, realizada na Inglaterra, na University of East Anglia e no Institute of Education da University of London, durante o ano de 2009. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoa-

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mento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) a concessão de uma bolsa de pós-doutora-mento, bem como ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, a licença concedida.2 Ver, a respeito, ALBERTI, Verena. O ensino de história na Inglaterra: conceitos e práti-cas. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.) Memória e identidade nacional. Rio de Ja-neiro: Ed. FGV, 2010. p.81-100.3 Ver também ALBERTI, cit.4 Os três processos e os seis conceitos fazem parte, por exemplo, do currículo oficial de história no Reino Unido. Disponível em: www.education.gov.uk/schools/teachingandlear-ning/curriculum/secondary/b00199545/history/programme; Acesso em: 30 jan. 2012. Para esse debate, ver meu texto já citado na nota 2 e as referências nele contidas. No Brasil, participam do debate, entre outros, Maria Auxiliadora Schmidt, da Universidade Federal do Paraná, e Margarida Maria Dias de Oliveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.5 HAYDN, Terry. Computers and History: rhetoric, reality and the lessons of the past. In: HAYDN, T.; COUNSELL, C. (Ed.) History, ICT and Learning in the Secondary School. London: Routledge Falmer, 2003. p.13-16.6 STUURMAN, S.; GREVER, M. Introduction: Old canons and new histories. In: Beyond the Canon: history for the 21st century. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p.1-16. Ver também: LEE, Peter. Understanding history. In: Canadian Historical Consciousness in an International Context: theoretical frameworks. Vancouver: Centre for the Study of Histo-rical Consciousness, University of British Columbia, Aug. 2001. Disponível em: dc122.4shared.com/doc/v1wIo1io/preview.html; Acesso em: 6 mar. 2012.7 Críticas ao caráter homogeneizador do livro didático podem ser encontradas em BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, C. (Org.) O saber histórico na sala de aula. 11.ed. São Paulo: Contexto, [1997] 2006. p.69-90; MUNAKATA, Kazumi. O livro didático e o professor: entre a ortodoxia e a apropriação. In: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Org.) Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2007. p.137-147; e ABUD, Katia Maria. A história nossa de cada dia: saber escolar e saber acadêmico na sala de aula. In: MONTEIRO; GASPARELLO & MAGALHÃES (Org.), 2007, p.107-117.8 KNAUSS, P. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sonia Maria Leite (Org.) Repensando o ensino de história. 6.ed. São Paulo: Cortez, [1996] 2007. p.29-50. (Coleção Questões da nossa época, 52). p.48.9 Exemplos interessantes podem ser encontrados em www.nationalarchives.gov.uk/educa-tion/focuson/domesday/default.htm; www.nationalarchives.gov.uk/education/lessons/2358-popup.htm; www.nationalarchives.gov.uk/education/worldwar2/theatres--of-war/western-europe/investigation/resistance/sources/docs/4c/ (ver “listen to this do-cument”, na parte inferior do documento); Acessos em 31 jan. 2012.

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Proposta de material didático para a história das relações étnico-raciais

10 Ver a caixa de fontes (“source box”) deste exemplo: www.nationalarchives.gov.uk/edu-cation/worldwar2/theatres-of-war/western-europe/investigation/d-day/sources/; Acesso em: 31 jan. 2012.11 ALBERTI, Verena. “Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasilei-ra”. Artigo no prelo, a ser publicado no livro Ensino de história e diversidade, organizado por Amilcar Araujo Pereira e Ana Maria Monteiro, como parte das atividades do Labora-tório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (Lepeh/UFRJ).12 PHILLIPS, Robert. Historical significance – the forgotten ‘Key Element’. Teaching His-tory 106: Citizens & Communities. Historical Association, Mar. 2002, p.14-19, p.18. Dis-ponível para membros da Historical Association em www.history.org.uk/resources/secon-dary_resource_869_12.html; Acesso em: 3 jul. 2011. (Tradução nossa).13 Essa proposta de introdução ao tema foi sugerida por um grupo de três alunos do curso de formação de professores de história do Institute of Education (IoE) da University of London de que tive oportunidade de participar durante meu estágio de pós-doutorado. A sugestão foi apresentada na aula de 26/10/2009, que tinha como foco a avaliação do pro-cesso de aprendizagem pelos próprios alunos.14 Já tive oportunidade de explorar essa questão em: 1) ALBERTI, Verena. “História e me-mória na sala de aula e o ensino de temas controversos”, artigo no prelo a ser publicado na trilogia História, memória e o ensino das ditaduras do século XX, coletânea organizada por Samantha Viz Quadrat, Denise Rollemberg e Alessandra Carvalho, da Universidade Fede-ral Fluminense; 2) ALBERTI, Verena. “Algumas estratégias para o ensino de história e cultura afro-brasileira”, artigo no prelo a ser publicado no livro Ensino de História e Diver-sidade, cit.; e 3) ALBERTI, Verena. Oral history interviews as historical sources in the clas-sroom. Words & Silences. The Journal of the International Oral History Association. The Workings of Oral History, v.6, n.1, p.29-36, Dec. 2011. ISSN 1405-6410 Online ISSN 2222-4181. Disponível em: wordsandsilences.org/index.php/ws/issue/view/4/showToc.15 Fontes interessantes podem ser encontradas em www.wdl.org/pt/; Acesso em: 31 jan. 2012.16 Publicado no Brasil como CASTELNAU, Francis de. Entrevistas com escravos africanos na Bahia oitocentista. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed., 2006.17 Um bom exemplo de mapa animado encontra-se em www.nationalarchives.gov.uk/edu-cation/worldwar2/theatres-of-war/western-europe/1939/index.htm; Acesso em: 31 jan. 2012.18 O jogo da generalização, também chamado “Too simple game”, foi proposto por Chris-tine Counsell, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge (UK), e sua explicação está disponível para associados da Historical Association em www.history.org.uk/resources/secondary_resource_2444.html; Acesso em: 31 jan. 2012.19 Sobre o uso de biografias no ensino de história, ver também: ALBERTI, Verena. Biogra-fias dos avós: uma experiência de pesquisa no ensino médio. Trabalho apresentado no Simpósio “Ensino de história: saberes e práticas curriculares”, coordenado por Ana Maria

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Monteiro (UFRJ), Arlette Gasparello (UFF) e Carmen Gabriel (UFRJ), no XII Encontro Regional de História “Usos do passado”, organizado pela Associação Nacional de História (Anpuh) – Rio de Janeiro. Niterói, UFF, 14-18 ago. 2006. Disponível em: cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1564.pdf. 20 Ver, entre outros: RAMOS, André Raimundo Ferreira. Escravidão indígena: entre o mi-to e novas perspectivas de debates. Revista de Estudos e Pesquisas, Brasília: Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio, Coordenação Geral de Estudos e Pesquisas, v.I, n.1, 2004. Disponível em: www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/REP1-1/8-A%20escravid%E3o%20do%20ind%EDgena%20-%20entre%20o%20mito%20e%20novas%20perspectivas%20de%20debate%20-%20Andr%E9%20Ramos.pdf; Acesso em: 2 jul. 2011.21 Na seleção do material desta unidade, será de grande valia, ao lado de outros estudos, a compilação de CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.22 Ferramenta semelhante pode ser encontrada em: www.nationalarchives.gov.uk/cabine-tpapers/alevelstudies/what-is-writing-frame.htm; Acesso em: 31 jan. 2012.23 Ver exemplo interessante para o caso da campanha pelo voto feminino na Inglaterra em: www.nationalarchives.gov.uk/education/britain1906to1918/g3/gallery3.htm; Acesso em: 31 jan. 2012.24 A esse respeito, ver MARTIN, Dave. What do you think? Using online forums to impro-ve students’ historical knowledge and understanding. Simulating History, Historical Asso-ciation, Dec. 2008, p.31-38; e SNAPE, Dominic; ALLEN, Katy. Challenging not balancing: developing Year 7’s grasp of historical argument through online discussion and a virtual book. Teaching History, v.133, cit., p.45-51. Disponível para membros da Historical Asso-ciation em: www.history.org.uk/resources/secondary_resource_1976_12.html; Acesso em: 31 jan. 2012.25 Discuto questões sensíveis e controversas também nos textos citados na nota 14.26 Ver, a respeito: www.asia.si.edu/EncompassingtheGlobe/Africa.htm; Acesso em 31 jan. 2012.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

The teaching of history between the duty of memory and the right to the history

Júnia Sales Pereira* Luciano Magela Roza**

ResumoAnálise das possibilidades do estudo de manifestações culturais afro-brasileiras no ensino de história. Problematização dos dilemas enfrentados na efetivação da Lei 11.645/2008 com foco nas poten-cialidades reflexivas disponíveis aos do-centes nesse contexto de positivação de memórias e de tensões em torno da his-tória.Palavras-chave: ensino de história; his-tória e cultura afro-brasileiras; Folias de Reis e Congados em aulas de história.

AbstractAnalysis of the possibilities of studying African-Brazilian cultural events in the teaching of history. Reflections on the dilemmas faced in the realization of the Law 11.645/2008 with a focus on reflec-tive capabilities available to the teach-ers in this context of positive memories and tensions around the history.Keywords: teaching history; history and African-Brazilian culture; Folias de Reis and Congados in history classes.

Transformações educacionais em contexto de positivação

É antigo o debate a respeito do tom eurocêntrico conferido pela educação escolar brasileira para abordagem dos mais variados temas, problemas e ques-tões presentes na prática educativa. Podemos dizer que a instauração da Re-pública, no Brasil, e, por conseguinte, de uma escola orientada também por pressupostos republicanos, não foi acompanhada de necessária e ampla expan-são de concepções de cidadania e inclusão, lutas com as quais, ainda no sécu-lo XXI, os educadores brasileiros se envolvem, não sem conflitos e tensões.

* Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil. [email protected] ** Doutorando em Educação, professor bolsista REUNI. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 89-110 - 2012

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 190

Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

Em nossas escolas, na Educação Básica, é ainda incipiente a abordagem marcada pela alteridade cultural nos currículos escolares, sobretudo, neste mo-mento, para compreensão e reflexão dos processos que no passado e ainda no presente realizam as histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas marcadas por singularidades não explicáveis ou redutíveis aos modelos explicativos e aos processos vivenciados pela Europa.

Da mesma maneira, a chamada Educação das relações étnico-raciais na escola se realiza em grande medida por força de docentes que atuam isolada-mente. Podemos dizer que essas abordagens estiveram ausentes dos processos formativos ao longo do século XX, sobretudo nas licenciaturas (campo forma-tivo em que fariam toda diferença, com repercussões sensíveis na Educação Básica) e caminham também a passos lentos no Ensino Superior.

Esse cenário começa a sofrer alterações no Brasil, sobretudo a partir da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras e uma educação das relações étnico-raciais na es-cola, modificada pela Lei 11.645/2008 (que incluiu a obrigatoriedade do ensi-no de história indígena). Em 2004, as Diretrizes curriculares corretadas à Lei 10.639/2003 orientaram a prática docente, sinalizando, também, para a neces-sidade de revisão dos currículos de formação docente. Como se pode ver, esse é um desafio não exclusivo de determinadas áreas do conhecimento, embora sinalizado com maior evidência no Ensino de História, na Literatura e nas Artes, embora dele também participem outras áreas do conhecimento (como, por exemplo, a Geografia e a Educação Física, dentre outras).

Entendemos que essa nova legislação institui uma obrigatoriedade que, embora com temática antiga, apresenta novidades aos currículos escolares.1 Formados durante décadas sob concepções eurocêntricas, professores em atua-ção na Educação Básica retornam às Universidades em diferentes situações formativas, movidos pela necessidade de aprendizagem e debate de temas que não orientaram sua formação inicial e também não estiveram presentes em sua atuação profissional nos últimos anos.

O ensino de história experimenta o impacto dessa nova orientação curri-cular que, embora não esteja situada exclusivamente nesse campo formativo amplo (o do ensino de história e das humanidades), sobre ela recai forçosa-mente um imperativo formativo que não é nem momentâneo nem tampouco desprezível. Esse impacto se faz sentir das mais variadas maneiras, forçando o

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O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história

Junho de 2012 91

ensino, a pesquisa e a extensão a tornar evidentes projetos formativos e inves-tigativos vinculados a essa agenda.

Podemos, além disso, sinalizar que como uma das centralidades dessa nova legislação recai sobre o ensino de história (tanto na Universidade como na Educação Básica), os docentes vêm desdobrando-se para criação de fóruns e momentos de formação que ofereçam elementos reflexivos para práticas edu-cacionais renovadas.

Sinalizamos, contudo, que o atendimento a toda essa legislação exige ne-cessária reconfiguração de pressupostos, princípios e procedimentos que en-volvem a docência. Destacamos o ensino de história por seu protagonismo no processo de formação de professores, em especial porque não se orienta a uma revisão de concepções, para superação do racismo à brasileira, sem a necessá-ria visita crítica do passado histórico que o gerou e que o faz, em grande me-dida, perpetuar-se nas práticas do tempo presente nas salas de aula.

Essa reconfiguração exige, por um lado, mudança conceitual. Fruto não somente dessas transformações geradas pela nova legislação, em especial de deslocamentos teórico-práticos vividos em ampla escala, a alteração das noções de cultura afeta significativamente as seleções curriculares, as maneiras de abordagem dos conteúdos e a relação com o conhecimento e os saberes social-mente produzidos. De uma noção de cultura estática e tributária da homoge-neização de matrizes culturais brasileiras passa-se a noções dinâmicas, híbridas e processuais de cultura. De concepções de cultura orientadas pelo eurocen-trismo passa-se à expansão conceitual, abrindo-se às margens. A ampliação da noção de patrimônio2 é fruto de longo debate histórico e foi efetivada a partir de 2000 com o Decreto 3.551/2000, que instituiu o Registro de Bens culturais de natureza imaterial que compõem o patrimônio brasileiro, um dos sinais evidentes desse processo mais amplo de compreensão das dinâmicas culturais e da incorporação de dimensões intangíveis na vivência e apropriação da cul-tura, com repercussões no campo educativo.

Essas transformações exigem, por outro lado, alterações das práticas pe-dagógicas. A incorporação das dinâmicas culturais do tempo presente ao uni-verso escolar, em especial aquelas marcadas pela pauta da diversidade e da inclusão cultural – também uma agenda política – vem causando fortes im-pactos nas realidades escolares. Há repercussões sensíveis advindas dessa in-corporação, como a criação de cenários inclusivos de pertencimento, com

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 192

Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza

positivações do passado e do real-histórico, que possibilitam tornar evidente o direito à história (negado a populações afro-descendentes em narrativas his-tóricas canônicas) mediado pela capacidade de lembrança (nesse contexto em que há legítimo e complexo uso político e pedagógico da memória).

Há reações diversas no contexto escolar contemporâneo a essa introdução nos currículos das dimensões da história e da cultura afro-brasileiras (na rela-ção com a memória), também com evidenciação de conflitos históricos que, sabemos, estão na agenda. Uma das mais fortes tensões deste período pode ser visualizada por meio da negativa de comunidades de pais e responsáveis, que se posicionam contrárias à introdução de conteúdos da história e da cultura africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares. Motivadas por pressupos-tos morais e religiosos, essas comunidades expressam receio de que crianças e jovens estejam expostos a proselitismo religioso ao estudarem ou entrarem em contato com manifestações tradicionais africanas e afro-brasileiras. Haveria, junto a essa postura, resquícios de uma noção de história como narrativa pre-sa aos cânones?

Outra dimensão diz respeito ao fato de que a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras é resultante de lutas sociais históricas que culminaram, no presente, na legítima agenda afirmativa.3 Há reconfigurações no ensino de história resultantes dessa agenda que, certamen-te, vêm positivar a silenciada e/ou sub-representada história africana e afro--brasileira. Pressões postas no tempo presente, sobretudo aquelas advindas do combate ao racismo, forçam a uma reconfiguração das narrativas históricas com repercussões nas formas de abordagem da história do Brasil. Estamos diante, certamente, de uma reescrita da história e dos usos e leituras do passa-do possibilitadas pela produção dessa área, em especial por meio do ensino de história, forçada pela agenda antirracismo.

Há contraface dessa dimensão: os temores e medos resultantes de um processo que envolve dores, ressentimentos e movimentos de positivação da memória e da história africanas e afro-brasileiras, com sensível secundarização de aspectos históricos que envolveram essas histórias.4

Apresentamos proposta de abordagem de aspectos e dinâmicas da histó-ria afro-brasileira que podem ser de interesse para o ensino de história. Para isso, consideramos aqueles que podem ser abordados significativamente para desenvolvimento de visões positivadas e críticas da história afro-brasileira,

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avaliando aspectos significativos e elementos de tensão presentes na seleção e abordagem dos temas dessa história.

Transformação das práticas docentes: movimentos, tensões e perspectivas

A reconfiguração curricular, por meio da flexibilização, favorece a intro-dução de práticas culturais afro-brasileiras como componentes curriculares, o que vem ocorrendo, com maior evidência, com a introdução da capoeira como componente formativo nas escolas. Reconhecida como patrimônio imaterial do Brasil, a capoeira tem sido o elemento cultural presente em muitos projetos que incluem a abordagem da Lei 10.639/2003.

Uma das tendências deste período tem sido a visibilização. Invisibilizadas por longos anos, as práticas culturais afro-brasileiras estão cada dia mais fre-quentes nas escolas. Em Minas Gerais,5 especialmente os Congados e as Folias de Reis6 são convidados à realização de apresentações culturais e à exposição de sua história nas salas de aula e em eventos (sobretudo aqueles realizados por ocasião do 20 de Novembro). A visibilização é uma das maneiras de evi-denciar uma ruptura com o silenciamento social e com a marginalização cul-tural por meio do currículo escolar. Esse comparecimento tem se realizado, muitas vezes, em associação com a atuação dos centros culturais e grupos culturais locais e por meio da ação e do protagonismo de professores (muitas vezes, vozes isoladas).

Vale notar que as manifestações afro-brasileiras como Congados, Reisa-dos e outras como Candomblé e Umbanda estão também entre aquelas que vêm provocando rejeições em setores das comunidades escolares que expres-sam o pressuposto do caráter laico da educação e a rejeição a todo e qualquer indício de manifestação de cunho religioso nas escolas. Um dos dilemas en-frentados por professores, nesse contexto, vem sendo, neste caso, o de abor-dagem dessas manifestações – e a enunciação de seu direito à história e à me-mória como expressões legítimas das culturas africanas e afro-brasileiras – sem ferir o direito à liberdade religiosa e à proteção contra o proselitismo.

Como pronunciar as faces culturais do Congado, enunciando-o como manifestação afro-brasileira significativa para compreensão da história e da memória afro-brasileiras e, portanto, do Brasil, garantindo-se às crianças e aos

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jovens a liberdade religiosa? Como, ao mesmo tempo, educar famílias e socie-dade para essa renovada abordagem da história, por meio da educação pauta-da pelo pluralismo cultural e pelo direito à memória? Como abordar práticas culturais afro-brasileiras sem considerar seus aspectos históricos, sua consti-tuição como prática social e cultural resistente às dominações e exclusões, e considerando as afirmações culturais feitas no processo da história? Como pautar propositivamente a agenda antirracista na abordagem da Lei 10.639/2003 de forma a educar para as relações étnico-raciais na escola, sem incorrer no risco da imposição identitária?

Outro dilema acerca das estratégias de visibilização das manifestações culturais de grupos historicamente silenciados, negados e/ou sub-representa-dos no currículo escolar relaciona-se aos riscos da seleção de abordagens de tais práticas sociais. Conforme alerta Sacristan (1995)7 ao analisar as vozes ausentes na seleção da cultura escolar na Espanha, há um relativo risco da seleção de perspectivas limitadoras ao tentar-se incorporar referenciais cultu-rais a priori excluídos do contexto escolar. Tais riscos explicitam-se em pers-pectivas focalizadas na folclorização, superficialidade, banalidade, exotismo, alegorização e estereotipagem, tornando-se assim problemática a visibilização, assim como seu oposto. A essa opção Sacristan denomina de “currículo turís-tico”, para dizer da manutenção de abordagens convencionais no currículo oficial seguidas da introdução folclorizada, secundarizada e banalizada de “as-pectos, itens, elementos isolados ou pinceladas” de conteúdos culturais silen-ciados, movimento não seguido por uma revisão ampla e sistêmica de concep-ções que, a nosso ver, perpetuam o colonialismo e o eurocentrismo, estigmatizando grupos, práticas culturais e histórias antes silenciadas, agora evidenciadas por meio da estereotipia.

Pretendemos apresentar, aqui, discussão situada no contexto de emersão da Lei 10.639/20038 e de sua prática nas escolas, propondo análise de aspectos que envolvem, sobretudo, a abordagem de manifestações culturais como o Congado e a Folia de Reis, considerando perspectivas de abordagem, cuidados observados por docentes e alternativas significativas para uma história e uma cultura afro-brasileiras na escola.

A seguir, apresentamos estratégias e movimentos necessários à aborda-gem das práticas culturais afro-brasileiras nas realidades educacionais, mais especificamente através do ensino de história e dos diálogos interdisciplinares.

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Consideramos apenas inicial esta análise que pretende problematizar os mecanismos pelos quais se realizam a abordagem e a experiência da história e da cultura afro-brasileiras e também favorecê-las propositivamente. Estamos em diálogo com a legislação proponente da introdução e obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras (e também indígena, embora esta última não tenha sido eminentemente privilegiada nas análises aqui realizadas). Estamos em diálogo, sobretudo, com as práticas docentes, evidenciando em que horizontes de perspectiva se realizam essas práticas, com positividades e problemáticas enfrentadas no cotidiano por professores.

Rodas de Conversa, atuações, experiências sociais e dos estudantes e abordagem de objetos culturais

A conversa está na centralidade do estudo e da experiência da história e da cultura afro-brasileiras. A palavra dos mestres vem chegando às escolas. Porta-vozes de uma tradição viva, os mestres de Congado, de Folias e outras manifestações vêm a cada dia oferecendo sua palavra à curiosidade de crianças e jovens que, desde a escola, entram em contato com as práticas culturais afro--brasileiras. As rodas de conversas que reúnem mestres de Congado e Reisado e estudantes favorecem a troca intergeracional, o uso da palavra como elemen-to mediador e a manutenção de uma tradição pelo som, graças à força e à ca-pacidade de fala. O ato de fala põe em movimento, nessas rodas, as biografias dos envolvidos, as curiosidades e disposições para a escuta, a capacidade de enunciar as histórias silenciadas e a capacidade de lembrança. Há envolvimen-tos, trocas, dúvidas. A roda é um desenho ritual que possibilita que, em posição de escuta e de fala, diferentes sujeitos possam pensar, sentir e se emocionar com as práticas culturais afro-brasileiras, e com as lutas e afirmações que elas convocam.

O estudo das biografias de sujeitos envolvidos em práticas e manifestações culturais afro-brasileiras – mestres de Congado, por exemplo, estudantes e professores – pode ser um recurso valioso para abordagem de aspectos cultu-rais, subjetivos e sociais. A criação de lugares de fala, e de vozerio, para além de focar em sujeitos anteriormente ‘à margem da história’ na tentativa de cria-ção de um contradiscurso, coloca-se como um recurso substantivo para o con-fronto entre discursos acerca do que vem sendo produzido sobre estes, que

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circula no contexto escolar e fora dele, e seus próprios discursos, problemati-zando as representações sobre suas práticas geralmente silenciadas e obscure-cidas pelo desconhecimento e pelo preconceito construído historicamente.

Nas rodas de conversa podem ser discutidos aspectos que envolvem a oralidade e a gestualidade, em sua dupla dimensão, como prática social cons-titutiva da própria atuação através da movimentação corpórea (dança e gestos) e da execução de sons (cantos, sonoridades e músicas tocadas). A gestualidade e a oralidade são meios de transmissão dos saberes aos iniciados presentes nesses referenciais culturais afro-brasileiros, ponto especial para aprendizagem da cultura pelos alunos. Há, nesse cenário, a palavra dos mais velhos junto à palavra dos mais novos. Há movimentos de escuta e de palavra que convocam as ancestralidades e as razões do tempo presente.

O convite a dois mestres de Congado para uma conversa na escola pode ser um dos recursos mais valiosos para essa experiência envolvendo palavra e memória, já que os relatos entre contemporâneos e pares podem ser mais potentes do que entre gerações diferenciadas.

As rodas de conversa podem valorizar a consciência grupal por meio da enunciação de vestígios das memórias dos foliões e dos congadeiros. Esse exer-cício é possível pela valorização dos discursos dos mestres, em que indícios mostram como memórias, artes de fazer e tocar instrumentos, construir os artefatos acionados nas atuações, os valores introduzidos pelos antepassados, bem como toda a ritualística em torno da atuação, são passados oralmente entre o grupo, como troca intergeracional. Folias e Congados recortam cidades e lugarejos, colorindo paisagens e criando novas paisagens sonoras. As con-versas podem tornar-se momentos de relato dos lugares de caminhada, can-toria, reverência, silêncio, coroação etc. Os alunos podem criar mapas de ci-dade com os trajetos de um Congado, identificando toda sonoridade e gestualidade nele presentes. Não faltará então um inventário dos instrumentos de percussão e melodia, bem como das letras de música e da musicalidade, seu ritmo e harmonia, postos em movimento nos momentos de festejo e rito. No diálogo com os mestres, esses componentes de história, rito e beleza poderão ser conhecidos e apreciados.

As conversas podem possibilitar que os alunos conheçam o figurino e paramentos dos Congados e Reisados e todos os cuidados envolvidos na con-fecção de estandartes, coroas, chapéus, adornos, apliques, e toda sorte de rigor

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performático que marca as guardas de Congo e as Folias de Reis. No caso das Folias, é muito interessante descobrir e estudar vinculações que triangulam África, Brasil e Portugal, com influências em que estão componentes afro--brasileiros e indígenas. Para os alunos congadeiros pode ser ótima experiên-cia de apresentação de suas percepções, aprendizagens e registros.

As conversas podem – e devem – valorizar sujeitos e sua sabedoria, sua consciência de estar no mundo e sua importância para um grupo, uma comu-nidade, a importância do festejar e das louvações para quem deles participa e com eles colabora. O recurso à palavra falada põe em cena o agente histórico, todo ele considerado sujeito de ação e de capacidade de fala e de elaboração de narrativas. Esta questão traz à baila o tema da agência histórica, muito rele-vante quando o assunto diz respeito a sujeitos e grupos sociais silenciados, invisibilizados ou estereotipados historicamente. Esta é uma oportunidade muito valiosa para fortalecimento da empatia entre estudantes e mestres, com repercussões muito significativas para compreensão das expansões necessárias à noção de ‘sujeito da história’ e à compreensão de suas práticas culturais.

Ao fazer recair a centralidade do ato educativo sobre a palavra falada e ouvida, os professores também afirmam alterações na compreensão do que são as culturas afro-brasileiras. Abordadas por sua permanência no presente, como tradições vivas, e disponíveis nos arcabouços culturais vigentes, sujeitos às interpretações, aos pontos de vista e ao crivo das biografias. Há uma dimensão experiencial nas circunstâncias de fala e escuta, sendo ambos os movimentos educativos para todos os envolvidos numa roda.

A troca de experiências entre estudantes e mestres pode proporcionar o exercício do deslocamento, movimento que exige ir de um ponto a outro, al-terando concepções anteriores e possibilitando que todos os envolvidos com-preendam essas práticas culturais sob outras óticas.

O estudo das práticas culturais exige, do docente, uma compreensão dos rituais de encenação, performance, as atuações públicas, as intervenções e os ritos em processo de que se constitui a cultura – no plural. “As práticas cultu-rais são, mais que ações, atuações” (Canclini, 2011, p.283). Representam, si-mulam as ações sociais, mas só às vezes operam como uma ação – nunca iso-lada. Isso acontece não apenas nas atividades culturais expressamente organizadas e reconhecidas como tais; também os comportamentos ordinários,

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agrupados ou não em instituições, empregam a ação simulada, integrada, e a atuação simbólica.

O estudo das similaridades rituais entre Congados no Brasil (inclusive suas variantes regionais e locais) e outros ritos africanos e portugueses pode ser bastante significativo. O estudo das peculiaridades de Congados e Folias nas localidades também pode trazer elementos significativos para apreciação do quanto há de modificação e protagonismo na criação cultural vinculada ao local.

Esse estudo pode ser compreendido pelo docente como uma possibilida-de significativa de discussão a respeito de como esses grupos apropriam-se da memória e criam leituras do passado da existência de uma suposta ancestrali-dade. Como ressignificam a África ancestral e de que maneira colocam-na, no presente, em atuação? O rito público é, desta perspectiva, forma de encenação, no presente, de dilemas, problemas e verdades que, no tempo, um grupo pre-tende perpetuar de forma performática. O rito público é, então, recortado por interesses e intencionalidades do presente e leva em consideração os elementos históricos constitutivos de sua memória e identidade, fazendo-os operar no presente como atuação simbólica.

Neste caso, o estudo das performances emancipatórias, das positivações e das atuações pode ser elucidativo de agendas postas no presente (em diálogo com o passado histórico), como ocorre com a associação, na atuação de grupos congadeiros, da luta antirracismo, e, nos grupos de Folias de Reis, de laços identitários e sociais comunitários.

Ao priorizar as atuações o docente poderá compreender o Congado e a Folia como ritos complexos que envolvem ações, doações e convocações e se configuram por meio de atuações públicas em que há coesão social, afirmação cultural e elementos históricos – do presente e do passado – em movimento. Há marcas de ancestralidade e há, sempre, recriações permanentes no presente, há respostas a pulsações da vida em curso. Assim, as atuações são ritos dinâmicos, mutáveis e que incorporam, não sem tensões, os registros do cotidiano.

Esse tipo de abordagem supera orientações comumente vistas em abor-dagens escolares nas quais o Congado e o Reisado surgem como manifestações culturais presas ao passado escravista, ou festas religiosas congeladas no tem-po, registros de uma ancestralidade mítica ou atemporal desvinculada do real--presente. Diferentemente, o que prevemos é uma abordagem marcada pela

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compreensão dos diálogos temporais e pela circularidade cultural, em que os ritos e celebrações, como os Congados e as Folias de Reis, não podem ser es-tudados como bens estáveis ou mantidos na história por uma relação linear com a África. Orientamo-nos pelo pressuposto de que não se trata de “uma cultura negra fundadora ou originária que aqui tenha se instalado”.9 De acor-do com Sodré (2005, p.99), a ordem original (africana) foi reposta, sofrendo alterações em função das relações entre negros e brancos, entre mito e religião, mas também entre negros e mulatos, e entre negros de etnias distintas.

Comparando-se às produções musicais direcionadas para contextos di-versos, a música voltada à experiência de ritos sagrados, como a música con-gadeira, mostra-se mais estável em relação às transformações.10 Há estabilida-des, evidentemente. Apesar das estabilidades, a mutabilidade e a processualidade são a marca significativa das atuações culturais, sobretudo quando não há rigidez nos processos de transmissão intergeracional.

O estudo dos artefatos culturais do Congado, como tambores, cetros, coroas, vestimentas e instrumentos melódicos, pode ser muito significativo em aulas de história, conquanto estejam também inseridos numa abordagem que prevê a inventividade musical desses grupos, a incorporação de novas sonori-dades a cada experiência vivida e a gestualidade sempre criativa que envolve o Congado. Há diálogo entre tradições e inventividade no Congado, e esta pode ser uma das maneiras de abordar os mestres do Congado em Rodas de Con-versa com os alunos. O que se altera no tempo? O que permanece? O que se repete? Como se transmite?

O estudo dos objetos de Congados e Folias suscita, portanto, rica aborda-gem da dinâmica cultural envolvida nas práticas – práticas que envolvem usos culturais, gestualidade, ritos de memória, ritos de louvação, encenações que remontam a tradições africanas, musicalidades recortadas por hibridismos, falares, fazeres e, também, uma culinária que está presente nos eventos e pe-regrinações. No caso das Folias, a peregrinação seguida da oferenda de alimen-to é também uma constante, o que envolve entender as generosidades e os anúncios dos festejos.

No caso dos Congados, vale o estudo das transformações pelas quais pas-sou o ritual de coroação dos Reis como prática que liga o Brasil afro-brasileiro tanto às tradições portuguesas quanto às africanas, aliás, com diferentes abor-dagens. No caso das Folias, é significativo o estudo das tradições de desafio de

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palhaços, com variações regionais e também no tempo, com variantes latino--americanas muito interessantes envolvendo fulgurações de palhaços brincan-tes e também daqueles marcados pelo horror, pela astúcia e pelo deboche.

É, portanto, muito significativo estudar as transformações pelas quais passaram os Congados e as Folias de Reis no tempo e nas mais diferentes rea-lidades. O que muda com a chegada de novas gerações? O que dizem os mais novos? O que dizem os mais velhos? Quais registros foram extintos? E há di-ferenças de gênero na participação nos Congados e Folias? Há diferenças etá-rias? E há encenações sociais diferenciadas? E o que permanece, repete? Inte-ressa, no caso do Ensino de História, estudar sobretudo essas movimentações no tempo/espaço pelas quais passam as práticas culturais, entendendo-as em sua dinâmica e mutabilidade, e também em suas permanências.

Os objetos, dessa forma, não são elementos isolados. Eles são vistos não como sinais ou vestígios fragmentados ou soltos, mas articulados a práticas culturais arraigadas (ou novas), sempre relacionadas. Os objetos ocupam, nas encenações e festejos, lugares relacionais – eles estão postos em relação e na dinâmica do festejar e/ou do louvar.

Conhecemos boas experiências nas quais o estudo das manifestações afro--brasileiras, de sua história e permanência no presente, ocorre de maneira integrada a outras abordagens no currículo e não em eventos à parte (como frequentemente ocorre com o isolamento da temática no 20 de Novembro). Mesmo que significativa, a abordagem, se restrita a esse dia, pode sugerir uma nova forma de estigmatização de conteúdos afro-brasileiros, abordados por força de lei, mas não incluídos no estudo do processo histórico que constituiu e constitui o Brasil.

O pluralismo na abordagem da história e o seu estudo por meio das con-trovérsias presentes às temáticas em análise parece ser o melhor caminho para, por um lado, romper com invisibilizações e, por outro, sugerir concepções de cultura marcadas pelo respeito à diversidade.

A reserva do tema a datas comemorativas ou a eventos concretiza um currículo orientado pela estereotipia, em que os temas clássicos, universais e canônicos se realizam no cotidiano, e os temas exóticos, reservados às minorias ou aos diferentes, são cumpridos por meio de eventos que, muitas vezes, não têm relação com a experiência educativa corrente.

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Evidentemente, a abordagem em eventos pode ser uma das boas estraté-gias por meio das quais se vence o silenciamento, e pode também gerar ressig-nificações valiosas a respeito da trajetória, história e cultura afro-brasileiras.

Mas o que se supõe, em última análise, é uma alteração e revisão das ten-dências colonialistas que marcam os contextos educacionais e os currículos escolares. Trata-se de algo mais subterrâneo, que tem relação com a superação do eurocentrismo e dos fundamentos da hierarquização que durante séculos informou os currículos. Essa superação é um dos emblemas mais caros às lutas pela renovação necessária ao Ensino de História há décadas.

Experiências pedagógicas nas quais a centralidade recaia sobre a vivência dos alunos em práticas culturais apresentam-se como um procedimento sig-nificativo para a compreensão de aspectos da cultura afro-brasileira, pelo fato de que as possibilidades de percepção de uma cultura podem, também, se dar pela fruição estética, pela experiência corporal, pelo desenvolvimento de ha-bilidades musicais, pela experiência da conversa e pela vivência das manifes-tações culturais.

O usufruto das sonoridades, da gestualidade e dos ritmos, bem como o direito à memória dos sons e às visões dos coloridos culturais, entre outros aspectos, podem ser explorados como indícios para aprendizagem de saberes sociais que circulam nas atuações culturais, e ainda podem ser mote para in-trodução de diálogos que ampliem a reflexão entre estética e política. Consi-deramos relevantes as experiências de aprendizagem da cultura como no caso das oficinas e aulas de capoeira (por exemplo) em que há exploração dessa dimensão corporal da aprendizagem e dos significados históricos e políticos de tais gestos, ritos e trocas.

Exatamente porque a configuração de atuações culturais afro-brasileiras requer o mecanismo da participação, da convivência e da ritualização, os pro-fessores não podem ignorar que os alunos sintam-se convocados à experiência e que, com as negociações possíveis, venham a usufruir dessas atuações como sujeitos copartícipes.

O estudo das potencialidades educativas do Congado e do Reisado pode ser fecundo para a problematização das noções de identidade e cultura afro--brasileiras na medida em que a abordagem dispensada tente considerar os aspectos de similaridades e diferenças entre elas. Tal movimento pode ser in-teressante ao apresentar as diferentes formas de sentir-se e identificar-se como

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negro participante de um grupo de manifestação popular e negra no Brasil do século XXI. Essa dimensão identitária possibilita discussão sobre a noção de identidade, que é relacional, instável, social e historicamente construída, su-gerindo a oposição com noções estáticas e essencializadas de identidade e cul-tura.11

No âmbito da cultura, essa perspectiva também pode ser significativa ao focar as manifestações culturais consideradas afro-brasileiras, seja por supos-ta raiz identitária africana transposta para os territórios da diáspora, seja pelo poder criativo dos africanos e seus descendentes, em diálogo com culturas indígenas, em retrabalhar e criar marcos identitários em tais territórios.

O relato de crianças congadeiras na escola sobre sua experiência cultural é extremamente valioso e positivador, e pode auxiliar a romper preconceitos para com essa prática cultural. Pesquisas apontam que crianças e jovens con-gadeiros têm receio de compartilhar sua experiência na escola,12 em função do preconceito para com essas manifestações, o que revela que a escola é um dos ambientes de manutenção de estereotipias e preconceitos culturais no que toca à história e à cultura afro-brasileiras. É digno de nota que as mesmas crianças que manifestam esse receio têm orgulho em compartilhar socialmen-te suas experiências envolvendo o Congado (Oliveira, 2011).

Outras manifestações da produção cultural negra no Brasil e os seus trân-sitos e diálogos com outros territórios podem contribuir para a compreensão das múltiplas formas de uso, apropriação e criação das culturas afro-brasileiras e as possibilidades de configuração e reconfigurações identitárias a partir daí. Assim, a identidade negra poderia ser compreendida no plural com base na multiplicidade de aspectos trazidos pelos africanos de diversas partes da Áfri-ca e nos múltiplos encontros desses com outros africanos, europeus, indígenas etc. em diversos locais no Brasil. Dessa forma, parte da relevância da identida-de afro-brasileira se encontraria nas recriações e recomposições das africani-dades na diáspora.

Essa perspectiva proporcionaria o deslocamento do foco das noções de cultura e identidade de origem, indiferentes à mudança, e recairia sobre o poder criativo dos africanos e descendentes em suas experiências diaspóricas, dando relevo à fluidez e heterogeneidade das identidades negras e afro-brasi-leiras,13 reagindo ao caráter homogeneizador muitas vezes atribuído à identi-dade afro-brasileira e colocando os afro-brasileiros, merecidamente, na con-

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dição de criativos inventores, apesar do contexto de pressão, privação e constrangimento cultural sofridos, e não como meros reprodutores de uma cultura ancestral supostamente ‘pura’ e ‘autêntica’.

Porém, há que se compreender que a afirmação de uma identidade negra, como entidade que congrega todas as diferenças identitárias e culturais de que se compõe a identidade negra, é também recurso político e pedagógico utili-zado na luta afirmativa contemporânea. Mesmo afirmando-se uma identidade negra, não se supõe serem os mecanismos identitários tão rígidos, unívocos ou pouco afeitos à transformação. Mas supõe-se uma base comum a partir da qual memórias e histórias são convocadas e entram em jogo nos processos políticos e pedagógicos. Supõe-se uma identidade negra não exatamente afi-nada a uma identidade africana original, mas a uma identidade negra com as tradições vivas que no Brasil contemporâneo se realizam e se deslocam. Na prática pedagógica o risco apontado pela unificação identitária é o de essen-cialização da cultura. Mas a potencialidade disso é que se apresenta a identi-dade negra num cenário relacional, possibilitando investigar o Brasil e sua história com base no compromisso com a superação do racismo ainda vigen-te. Esta agenda, que envolve uma razão histórica, uma dinâmica socialmente viva e um compromisso com as gerações de crianças e jovens em formação, enuncia a face axiomática do Ensino de História, com todos os seus emblemas.

O estudo de manifestações culturais afro-brasileiras convoca razões de memória e de história

Todos sabemos que boa parte das manifestações culturais afro-brasileiras são constituídas sob a égide do catolicismo popular e/ou de forma híbrida. Vigiadas pela Igreja e pelo Estado, desautorizadas e desqualificadas por parte da sociedade, tuteladas e, muitas vezes, reconfiguradas, essas manifestações são, contemporaneamente, resultantes de processos de negociação cultural e religiosa.14

O estudo dessas imbricações, e das negociações feitas, na história, pode ser um primeiro passo para que estudantes e professores venham a compreen-der a trajetória histórica das práticas culturais, suplantando preconceitos co-mumente manifestos em relação a elas.

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Não é fácil suplantar esses preconceitos e também os receios, manifestos muitas vezes por pais e responsáveis, de que esteja ocorrendo proselitismo religioso e cultural na abordagem da história e da cultura africanas e afro--brasileiras em práticas educativas.

Compreendemos que a relação escola-família pode ser orientada pelo pressuposto do diálogo em via de mão dupla. Ela pode esclarecer aspectos da experiência escolar e ainda ser uma forma através da qual a família passa a se compreender como educadora. O pressuposto do respeito à diferença e à alte-ridade é reafirmado, fazendo-se da escola ambiente plural, livre de estereotipia e de exclusividades, também de negociações com visões que a elas trazem as famílias. Mas é também importante apresentar às famílias a necessária aber-tura à pluralidade de histórias e memórias de que se faz o Brasil.

Compreende-se que há proselitismo religioso e cultural quando, no estu-do de uma manifestação, temática ou assunto, o professor supõe estarem os alunos postos diante de um modo de vida, de uma verdade ou de um conjun-to de crenças a serem assimilados como normativos ou mais recomendáveis. Ao invés de uma postura investigativa, o que essa abordagem favorece – e, em alguma medida exige – é uma adesão. Comumente associa-se ao proselitismo o solipsismo, que é uma postura que supõe ser a verdade de uma pessoa ou grupo, ou de um professor, a única verdade passível de aceitação e confirmação – a verdade de uma pessoa é compreendida como a única forma de verdade vigente, e somente são consideradas as experiências orientadas por essa ver-dade.

Uma das maneiras, assim nos parece, de suplantar preconceitos em rela-ção à abordagem da história e da cultura afro-brasileiras consiste em orientá--la pelo pressuposto pluralista, e fazê-la com finalidades educacionais, reali-zando-as no universo de abordagem da história em que estão contrastadas, confrontadas e em diálogo outras formas de abordagem da história e da cul-tura, sem marcas doutrinatórias, sem proselitismo ou imposições identitárias, morais ou políticas.

O estudo da cultura e da história afro-brasileiras está orientado pelo in-teresse e por sua relevância histórica, pela investigação da cultura, valorização e positivação cultural, pelo direito à história e pelo dever de memória, como ocorre com outros conteúdos no currículo. Mas não é possível ignorar que o estudo da cultura e da história afro-brasileiras mobiliza o real-presente, con-

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vocando reflexões que vão da história à memória em regime de tensão e inte-resse postos no presente. Dentre as mobilizações na perspectiva do real-pre-sente, destaca-se a presença das leituras e usos do passado e da construção de memórias acerca das lutas históricas expressas nas manifestações contempo-râneas.

Como já dissemos, as lutas históricas, como o racismo, estão traduzidas nas atuações contemporâneas afro-brasileiras. Compreendemos que essas lu-tas se realizam no bojo de uma “redefinição e alargamento dos princípios da cidadania e do republicanismo” em processo na contemporaneidade. A agen-da afirmativa provoca e pressiona a reconfiguração do direito à memória como um dos pressupostos republicanos, ao pressupor e exigir uma compreensão pluralista de República não relacionada às memórias canonizadas, mas àquelas comprometidas com a ampliação da participação política nos mecanismos de exercício da cidadania e com a diversidade radical com que se realiza a expe-riência brasileira contemporânea.

Consideramos que está em curso uma reconsideração da história do Bra-sil, por meio do Ensino de História, com pêndulo em duas direções. Por um lado, em direção à positivação, operação necessária, o que vem forçando à superação de abordagens da história e da cultura afro-brasileiras, na escola, especialmente aquelas marcadas por tons vitimizantes ou pautadas pela vio-lência e sub-representação. A positivação envolve, nesse contexto, tanto a afir-mação do dever de memória convocado por populações e culturas sub-repre-sentadas ou silenciadas, quanto o direito à história por meio de um ensino de história renovado. Trata-se de uma reconfiguração do passado histórico for-çada pela agenda contemporânea, com efeitos de memória e de história no tempo presente. Esse movimento de positivação pode gerar, na ação pedagó-gica, efeitos significativos para elevação da autoestima de estudantes negros, como evidenciam pesquisas recentes. Esse movimento de positivação, por outro lado, também pode resultar em abordagens idealizadas e mitificadas da história afro-brasileira e africana. A reconfiguração do passado por uma agen-da do tempo presente resulta até mesmo em silenciamentos, como no caso da face dolorosa que envolve a história da escravidão, algumas vezes não aborda-da em aulas de história em função de um compromisso com a formação da autoestima de jovens e crianças negras que, no tempo presente, aprendem, sentem e pensam a história a partir também de sua inserção social contempo-

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rânea. Sendo assim, o dever de memória revela a dubiedade do ensino de his-tória para a abordagem das culturas afro-brasileiras e africanas: a positivação (e seus efeitos de sentido) e a idealização (também ressonante nas experiências de estudantes e professores). De que memórias tratamos? E que histórias con-vocamos quando o direito ao passado é reclamado? De que maneira se resol-verá, no Ensino de História, a tensão desse pêndulo entre o passado e o pre-sente, entre lembrar e esquecer, entre a existência e a história? Não sabemos.

O que consideramos é que certamente a agenda afirmativa está forçando a uma reconfiguração das memórias e histórias afro-brasileiras, com repercus-sões na ação de professores de história. Há revisões em curso. Positivações e visibilizações, como já abordamos. E silenciamentos. Há receio manifesto, por parte de alguns professores, da repetição de abordagem da história brasileira em seus aspectos violentos e cruéis, como foi o processo escravista. Mas, ao recear a violência histórica constitutiva do Brasil, suprime-se o estudo da his-tória da escravidão no Ensino de História. Pratica-se o falseamento histórico?

Não sabemos ao certo qual será o ponto de equilíbrio que os professores, necessariamente, terão de alcançar. O dever de memória não poderá impedir o direito à história. O direito à história, com todas as faces dessa história que envolveu lutas, resistências, submissões e violências. Algumas lutas que ainda vigem, sob novas roupagens.

Como bem alertaram Kênia Rios e Francisco Ramos,

os particularismos das lutas de reivindicação da memória impedem visões com-parativas e avaliações mais amplas e profundas no tempo e no espaço – recurso básico em qualquer procedimento investigativo da escrita de história.15

Considerações finais

Há ainda muito a discutir, planejar e propor com relação à formação docente para abordagem de aspectos históricos e contemporâneos das atuações afro-brasileiras em aulas de história.

Destacamos a relevância das ações voltadas à positivação de memórias e histórias, compreendendo o valor assumido pelos mestres, sua sabedoria e generosidade, sua voz e o vozerio que eles podem produzir em aulas de histó-ria. Essa é uma tarefa fundamental, a de convocar sujeitos e narrativas nunca

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antes registrados ou valorizados em agendas educativas que são mais que uma exigência normativa, são atos que correlacionam o direito à palavra à capaci-dade de lembrar por meio da troca intergeracional.

Além disso, o fato de existirem crianças ou jovens congadeiros, ou inte-grantes de guardas e folias na escola pode ser um dos recursos mais fortes para processamento de positivações e visibilizações, pois a escola pode orga-nizar apresentações e entrevistas com seus grupos, incluindo-os como copar-tícipes da cultura. Essa é uma das mais poderosas formas através das quais a escola poderá alterar posturas em face das práticas culturais.

Destacamos o desafio de equilíbrio entre a visibilização de histórias e a sua necessária abordagem investigativa e problemática, sem subterfúgios ou silenciamentos. E com o direito ao encantamento, à expressão de memórias e às inquietações e curiosidades que novas gerações trazem.

À abordagem da história estão presentes os emblemas de sua confecção, narrativas arbitradas pela pesquisa, ancoradas em investigação documental e arbítrios. O ensino de história não pode prescindir de uma análise da invenção histórica, do processo de escrita da história com suas eleições. Em função dis-so, não é possível admitir o impedimento de estudo da história nem tampou-co a sua mitificação. Mas é necessário convocar a palavra dita, ressonante, a palavra dos mestres, e a sua gestualidade e também os movimentos narrativos dos rituais celebrativos, que passam a compor o universo de fontes de estudo da história. Há, certamente, alargamento das margens que delimitavam o con-ceito de fontes para o estudo da história nessa nova dinâmica educativa.

Há correlação entre paisagens sonoras e fulgurações gestuais, encenações e performances que reúnem história, agenda política contemporânea e expres-sividades que atravessam tempos e se alteram dinamicamente nas atuações públicas de Congados e Reisados. O ensino de história pode se realizar reunin-do essas dimensões estéticas, sensíveis, culturais e políticas, fazendo dos diá-logos temporais e espaciais os motes para reflexão marcada pela compreensão da mutabilidade da cultura e pela seleção histórica. Um jogo de temporalidades que se expressa na dinâmica de experiência da cultura da qual os alunos tam-bém participam. Trata-se de uma dinâmica em que gesto, palavra, ritualidade, ancestralidade, sonoridades e silêncio são profundamente educativos.

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O que apresentamos, portanto, são potencialidades e reflexões para o es-tudo e experiência de um Brasil afro-brasileiro no qual memória e história atuam nem sempre em consonância.

Estamos diante de desafios da formação e atuação docente num cenário que supõe alargamento do que se considera fonte para o estudo da história, convocando dimensões experienciais do processo educativo e que é problemá-tico e instigante, sem receitas prévias num horizonte amplo de possibilidades (per)formativas.

NOTAS

1 ABREU, Martha. Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a pesquisa e o ensino de história. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda B.; GOUVÊA, Maria de Fátima S. (Org.) Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005; MATTOS, Hebe, O ensino de história e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.) Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003; MATTOS, Hebe; ABREU, Martha. Em torno das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas”: uma conversa com historiado-res. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Ed. FGV, n.41, p.5-20, 2008.2 Há reconfigurações no campo do patrimônio, sobretudo com o advento da noção de pa-trimônio imaterial. Está colocado um novo desafio, não exatamente relacionado à tarefa de salvaguarda de bens (os artefatos, objetos, edificações), mas de afirmação de um compro-misso social para que os sistemas e práticas que sustentam os patrimônios imateriais per-maneçam vivos. Sendo assim, as medidas de salvaguarda e proteção voltam-se à valoriza-ção dos saberes e do papel social dos detentores e dos transmissores, enfim, dos mestres de tradições culturais, acompanhada do debate a respeito dos problemas gerados pela musei-ficação e pela espetacularização do patrimônio, com repercussões nos processos educati-vos. CHOAY, Françoise. As questões do patrimônio: antologia para um combate. Lisboa: Ed. 70, 2011. GONÇALVES, J. R. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; ORIÁ, Riçado; PEREIRA, Júnia Sales. Desafios teórico-meto-dológicos da relação educação e patrimônio. Anais eletrônicos do VII Seminário Nacional Memória, cidades e educação das sensibilidades. Centro de Memória da Unicamp, Campi-nas (SP), 2012.3 SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei 10.639/2003 como fruto da luta antirracista do Movi-mento Negro. In: BRASIL. MEC. SECAD. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília: Secad, 2005. p.21-37.

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4 PEREIRA, Júnia Sales. Reconhecendo ou construindo uma polaridade étnico-identitária? Desafios do ensino de história no imediato contexto pós-lei 10.639. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Ed. FGV, n.41, p.21-43, 2008.5 O Congado e a Folia de Reis, apesar da relativa duração temporal dessas práticas cultu-rais, são manifestações presentes na contemporaneidade em alguns estados brasileiros, sobretudo em algumas regiões no interior dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Ver: RIOS, Sebastião. Os cantos da Festa do Reinado de Nossa Senhora do Ro-sário e da Folia de Reis. Sociedade e Cultura, v.9, n.1, p.65-76, 2006.6 O Congado e a Folia de Reis são manifestações da cultura popular caracterizadas pelo hibridismo entre tradições de práticas religiosas e profanas ibéricas, africanas e indígenas. Em síntese, a Folia de Reis é compreendida no bojo do catolicismo popular como marcada por danças, procissões e cortejos que representam a viagem dos três Reis Magos em busca do Menino Jesus. No Brasil foi utilizada pelos jesuítas na catequese, e os rituais usados fo-ram posteriormente apropriados também pelos negros escravizados e libertos e mestiços em festas de devoção católica. A Folia de Reis no Brasil assumiu conotações regionais, ex-pressas por meio da presença de elementos comuns e por aqueles diferentes em cada re-gião (como palhaços desviantes, brincantes, instrumentos variados). Atualmente, são estu-dadas como manifestações culturais nas quais se manifestam elementos de culturas negras e como formas de manifestação de uma memória negra (SOUZA, 2010). O Congado é entendido como uma manifestação do catolicismo negro desenvolvida a partir do período colonial, a qual remete suas origens ao cristianismo africano que se segue à conversão do Reino do Congo. Durante a América Colonial Portuguesa, nas irmandades negras, os afri-canos e descendentes reconstruíam e criavam novos laços de solidariedade e de identidade fraturados pela experiência do tráfico e da escravidão. Nesse contexto, os negros no culto aos santos católicos estabeleciam diálogos e trocas culturais entre elementos e padrões eu-ropeus de devoção e os de suas próprias concepções religiosas, fazendo que práticas cultu-rais africanas fossem ressignificadas, mantendo-se vivas e concomitantemente sendo alte-radas pelo fato de representarem uma manifestação de devoção católica. Ver: AGUIAR, Marcos M. de. Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (Org.) Festa: cultura e sociabilidade na Amé-rica portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp; Hucitec; Fapesp, 2001, v.1, p.361-393; SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002; SOUZA, Luiz Gustavo Mendel. No cami-nho dos mestres: um estudo de Folias de Reis. Anais eletrônicos da Anpuh-PI, 2010. Dis-ponível em: www.anpuhpi.org.br/congresso/anais2010/arquivos/s1_Luiz%20Gustavo%20Mendel%20Souza.pdf; Acesso em: 1 dez. 2011.7 SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, To-maz Tadeu da (Org.) Alienígenas na sala de aula. 6.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995. p.159-177.8 Mesmo considerando que a Lei 10.639/2003 foi modificada pela Lei 11.645/2008, estamos

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mantendo a primeira, dada a centralidade que ocupa na discussão proposta, e também por referência às Diretrizes correlatas à lei que orientam as análises.9 SODRÉ, Moniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.10 LUCAS, Glaura. Diferentes perspectivas sobre o contexto e o significado do congado mineiro. In: TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de (Org.) Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p.75-82.11 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da moderni-dade. São Paulo: Edusp, 2000; GILROY, Paul. O Atlântico negro. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001; HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.12 OLIVEIRA, Claudia Marques. Cultura afro-brasileira e educação: significados de ser criança negra e congadeira em Pedro Leopoldo, Minas Gerais. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, UFMG, 2011. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br/ds-pace/handle/1843/FAEC-8NPLAL; Acesso em: 10 fev. 2012.13 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra no Brasil. Salvador: Ed. UFBA; Pallas, 2003.14 LUCAS, Glaura. Os sons do rosário: o congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Belo Hori-zonte: Ed. UFMG, 2002; FRANÇA, Cecília Cavalieri. Festa mestiça: o congado na sala de aula. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011; TINHORÃO, José R. Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos, origens. São Paulo: Art Ed., 1988; TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de (Org.) Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Ho-rizonte: Ed. UFMG, 2006.15 RIOS, Kênia Souza; RAMOS, Francisco Régis Lopes. O cultivo da lembrança no multi-culturalismo: além da memória, mas aquém da história. In: FUNES, Eurípedes; RAMOS, Francisco Regis Lopes; RIBARD, Franck; RIOS, Kênia Souza (Org.) África, Brasil, Portu-gal: história e ensino de história. Fortaleza: Ed. UFC, 2010. p.216-228.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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“Por uma autêntica democracia racial!”: os movimentos negros nas escolas

e nos currículos de história“For an authentic racial democracy!”: the black movements in schools and in History curricula

Amilcar Araujo Pereira*

ResumoO objetivo deste artigo é apresentar al-guns aspectos das histórias dos movi-mentos negros no Brasil, assim como levar o leitor a refletir sobre a importân-cia de se estabelecer uma prática de en-sino de história que contemple as dife-rentes matrizes formadoras de nossa sociedade.Palavras-chave: Brasil; movimento ne-gro; ensino de história.

AbstractThe aim of this paper is to present some aspects of the black movement’s histo-ries in Brazil, as well as lead the reader to reflect on the importance of estab-lishing a history teaching practice that addresses the different matrices forming Brazilian society.Keywords: Brazil; black movement; his-tory teaching.

A frase que dá título a este artigo, “por uma autêntica democracia racial!”, encerra o documento intitulado “Carta Aberta à População”,1 divulgado pelo então recém-criado Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) durante ato público realizado no dia 7 de julho de 1978 nas esca-darias do Teatro Municipal de São Paulo, em protesto contra a morte de um operário negro em uma delegacia de São Paulo e contra a expulsão de quatro atletas negros de um clube paulista. Esse ato público, que contou com a parti-cipação de lideranças negras de outros estados brasileiros, além de ser um ato de protesto, tinha o objetivo de criar as bases para a construção de uma orga-nização que unificasse toda a luta contra o racismo no Brasil. Essa luta vinha sendo levada a cabo até então por diversas organizações negras espalhadas por diferentes estados e criadas principalmente a partir de 1974, em meio ao pro-

* Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Pasteur, 250, sala 233, Campus Praia Vermelha. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected].

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cesso de abertura política do regime militar, que havia sido instaurado no Brasil em 1964.

Ainda em julho de 1978, o Movimento teve a palavra ‘negro’ introduzida, transformando-se no Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). Em 1979, essa organização, que não alcançou seu objetivo de unificar a luta contra o racismo, passou a ser denominada somente como Movimento Negro Unificado (MNU), e existe até hoje, com representações em vários estados do país. Sua formação parece ter sido responsável pela difusão da noção de ‘movimento negro’ como designação genérica para diversas orga-nizações e ações construídas a partir daquele momento.2 As organizações negras criadas a partir da década de 1970 em todo o país, e que formaram o chamado ‘movimento negro contemporâneo’, não foram as primeiras organizações des-se tipo, como se verá a seguir. Mas é importante ressaltar que elas contribuíram para a luta por democracia no Brasil, contra a ditadura então vigente, e repre-sentaram uma mudança significativa na luta específica contra o racismo e por melhores condições de vida para a população negra em nosso país.

Com pequenas variações, a frase citada está presente em muitos docu-mentos elaborados por diversas organizações do movimento negro contem-porâneo. A denúncia do ‘mito da democracia racial’, como um importante elemento na luta contra o racismo, é uma das características marcantes pre-sentes nas organizações do movimento negro criadas a partir da década de 1970. Mesmo com a publicação de vários trabalhos de pesquisa demonstrando a existência de racismo e de grandes desigualdades raciais no Brasil, principal-mente a partir da década de 1950 com os resultados do Projeto Unesco,3 com Florestan Fernandes à frente,4 e na década de 1970 com os novos estudos sobre as desigualdades raciais, ainda hoje a ideia de democracia racial, baseada na dupla mestiçagem, biológica e cultural, entre as três raças originárias, dificul-ta a percepção das desigualdades raciais existentes na sociedade, em função das próprias ideias que ostenta de ‘democracia’ e ‘igualdade’.

A democracia racial, muito associada ao clássico livro de Gilberto Freyre publicado em 1933, Casa-grande & senzala, tornou-se o centro de construção da própria identidade nacional na primeira metade do século XX. Durante o regime militar, quando se constituíram as primeiras organizações do movi-mento negro contemporâneo, por exemplo, o quesito ‘cor/raça’ foi retirado do Censo demográfico do IBGE, e o Brasil se apresentava em todos os fóruns

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internacionais como uma verdadeira ‘democracia racial’. Vale ressaltar ainda que eram proibidos quaisquer eventos ou publicações relacionados à questão racial – que poderiam ser vistos pelo regime como algo que pudesse “incitar ao ódio ou à discriminação racial” e, segundo o Decreto-Lei 510, de 20 de março de 1969 em seu artigo 33º, poderia levar à pena de detenção de 1 a 3 anos –, e havia também o acompanhamento de perto, realizado pelos órgãos de informação do regime militar, das ações do movimento negro que se cons-tituía em meio a esse contexto político e social.5

A “Carta de Princípios” do MNU, também redigida em 1978, além de trazer escrita a mesma frase que dá título a este artigo, apresentava outra im-portante reivindicação que também se tornou característica desse movimento social na contemporaneidade: a luta “pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil”. Um importante exemplo dessa luta específica foi a cons-trução, realizada a partir de 1971, em torno do 20 de novembro (data da mor-te de Zumbi, principal liderança do quilombo dos Palmares, em 1695) como data a ser comemorada pela população negra no Brasil, em substituição ao 13 de maio (data da abolição da escravatura, em 1888).6 Essa mudança engloba uma ampla discussão sobre a valorização da cultura, política e identidade ne-gras, e pode provocar objetivamente uma reavaliação sobre o papel das popu-lações negras na formação da sociedade brasileira, na medida em que propõe deslocar propositalmente o protagonismo em relação ao processo da abolição para a esfera dos negros (tendo Zumbi como referência), recusando a tradi-cional imagem da princesa branca benevolente que teria redimido os escravos. De fato, como afirma Carlos Hasenbalg, no momento da abolição a grande maioria da população negra já era livre ou liberta, uma vez que “em 1872, data do primeiro censo demográfico nacional, 74% da população de cor era livre; esta proporção eleva-se aproximadamente a 90% em 1887”.7 Desde a década de 1970, o 13 de maio passou então a ser considerado pelo movimento negro como um dia nacional de denúncia da existência de racismo e discrimi-nação em nossa sociedade.

A relação com a questão da educação e, mais especificamente, com a his-tória ensinada nas escolas como parte da luta do movimento negro “pela rea-valiação do papel do negro na história do Brasil” é evidente em muitos momen-tos e em diferentes lugares. E a luta nas escolas, como estratégia privilegiada para atingir esse objetivo, foi frequente em grande parte do território nacional,

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principalmente a partir da década de 1980. Bem antes, a Frente Negra Brasilei-ra (FNB), criada em São Paulo em 1931, e o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado na mesma cidade em 1944, duas das mais importantes organi-zações do movimento negro na primeira metade do século XX, já contavam com escolas em suas dependências para alfabetizar e instruir pessoas negras. Entre as estratégias bem-sucedidas na luta pela tão necessária “reavaliação do papel do negro na História do Brasil”, podemos observar a adotada desde o início da década de 1980 por Maria Raimunda (Mundinha) Araújo, então pre-sidenta do Centro de Cultura Negra (CCN) do Maranhão,8 ao atuar diretamen-te nas escolas, não somente dando palestras e informando professores e alunos sobre as histórias dos negros no Brasil, mas também produzindo material di-dático para esse fim. Mundinha Araújo e outros militantes produziram cartilhas no Maranhão, as quais foram publicadas, por exemplo, no início da década de 1980 em Belo Horizonte, Minas Gerais. Sobre a atuação direta do movimento negro nas escolas, Mundinha Araújo afirmou em entrevista:

Nós achávamos que a luta era dentro das escolas, era fazendo parcerias. Em 1982 nós fizemos um convênio com a Secretaria de Educação porque nós queríamos a participação dos professores. Eles colocaram os professores à disposição para participarem da Semana do Negro. A gente fazia assim: “Vamos para o bairro do João Paulo”. Todos os professores das escolas que ficavam no bairro do João Pau-lo e adjacências iam para o mesmo local. E nós distribuíamos o material que a Secretaria de Educação também ajudou a rodar, deu o papel e tudo. E os de nós que seguravam mais eram os professores ... Foi algo que depois nós fizemos um documento e apresentamos lá no encontro da Candido Mendes, no Rio de Janei-ro, em 1982. Me convidaram para participar de uma mesa redonda chamada “Movimento negro nos anos 1980” ... Quando fiz o relato, depois eles disseram: “Incrível, você esteve em 1979 conversando conosco [no IPCN, Instituto de Pes-quisa das Culturas Negras, fundado em 1975 no Rio de Janeiro] e nós lhe demos orientação. Hoje você chega aqui e mostra um movimento que ninguém está fa-zendo. E lá no Maranhão!”. Todo mundo ficou encantado que a gente estivesse principalmente trabalhando o aspecto da educação, que a gente considerava prioridade.9

Essa intervenção nas escolas se ampliou muito nas últimas décadas, não só através da entrada de militantes negros nas escolas, seja por meio de parce-rias ou da criação e distribuição de materiais didáticos, como faziam Mundinha

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Araújo e o pessoal do CCN no Maranhão. Com o crescimento do movimento durante o processo de redemocratização na década de 1980 – principalmente a partir de 1988, ano do centenário da abolição da escravidão, quando centenas de manifestações foram realizadas por organizações do movimento negro em todo o país –, muitas lideranças foram formadas, e as mobilizações e articula-ções políticas construídas pelo movimento negro em diferentes âmbitos (com sindicatos, partidos políticos, instituições públicas e organismos do Estado nos níveis municipal, estadual e até federal, com representantes no Poder Legisla-tivo etc.) tornaram possível a conquista de um novo ‘lugar político e social’ para o movimento negro, especialmente no campo educacional, como dizem Martha Abreu e Hebe Mattos:

Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, as-sim como de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presen-tes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exer-cício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história. Isso não aconteceu por acaso. É na verdade um dos sinais mais significativos de um novo lugar político e social conquistado pelos chamados movimentos negros e antirra-cistas no processo político brasileiro, e no campo educacional em especial.10

O próprio texto da chamada “Constituição cidadã” de 1988 já refletia al-gumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram contemplados na construção dos currículos escolares de história, como se po-de observar no parágrafo 1º do Art. 242 da Constituição, o qual já determina-va que “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”. Para muitas lideranças do movimento social negro, a luta pela “reavaliação do papel do negro na História do Brasil” passava naquele momento diretamente pela in-tervenção no processo de construção das políticas curriculares, especialmente na construção dos currículos de história. Afinal, como dizem Antônio Flávio Moreira e Tomaz Tadeu da Silva:

O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o cur-rículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento

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transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação.11

Sendo assim, a construção de um currículo que apresente as histórias e culturas de todas as matrizes formadoras de nossa sociedade, considerando-as todas importantes e complementares, sem o ‘tradicional’ viés eurocêntrico historicamente adotado, é algo fundamental para a formação de cidadãos com ‘identidades individuais e sociais’ diversas e que aprendam a respeitar as dife-renças e possam lidar de maneira positiva com a pluralidade cultural, para que seja possível a construção de uma ‘autêntica democracia racial’. Esse novo ‘lugar político e social’, conquistado pelo movimento, tornou possível até mes-mo a participação direta de intelectuais e ativistas negros no processo de cons-trução de novas políticas curriculares no Brasil do final do século XX. Encon-tramos, por exemplo, lideranças negras atuando como consultores na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de História, que foram divulgados pelo Ministério da Educação em 1998.

Em seu belo artigo, intitulado “O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil”, quando analisa as possibilidades trazidas pelos PCNs, especialmente pelo tema transversal “Pluralidade Cultural”, Hebe Mat-tos propõe a separação, do ponto de vista teórico, entre as noções de ‘cultura’ e ‘identidade’. Segundo a autora, as identidades individuais e coletivas devem ser vistas como construções culturais, por isso históricas e relacionais, e que “dependem, em cada caso, das formas históricas em que as fronteiras entre nós e os outros se constroem, se reproduzem ou se modificam”.12 Nesse sentido, devemos pensar a cultura como processo, no qual tradições e práticas culturais circulam, transformam-se e modificam-se. O tema “Pluralidade Cultural” foi definido pelos autores dos PCNs como um dos seis temas transversais (Ética; Pluralidade Cultural; Saúde; Orientação Sexual; Meio Ambiente; Trabalho e Consumo). Segundo os próprios autores, no texto de apresentação dos PCNs, os temas transversais “correspondem a questões importantes, urgentes e pre-sentes sob várias formas na vida cotidiana”.13

O tema da pluralidade cultural é de fato urgente e importante. E concor-do com Hebe Mattos, quando ela afirma que “a história se apresenta como disciplina-chave” para se desenvolver um trabalho em que, ao invés de “refor-çar culturas e identidades de origem, resistentes à mudança, mais ou menos

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‘puras’ ou ‘autênticas’”, se busque “educar para a compreensão e o respeito à dinâmica histórica das identidades socioculturais efetivamente constituídas” (Mattos, 2003, p.129). E, para que isso seja possível, é preciso que as histórias da África e dos africanos e as histórias da população negra no Brasil, em toda a sua complexidade, sejam pesquisadas e trabalhadas nas salas de aula de his-tória. Foi nesse sentido, e em função da mobilização e das articulações políticas estabelecidas pelo movimento social negro, que em 9 de janeiro de 2003 foi sancionada a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras em todas as escolas do país.14

Movimentos negros na formação do Brasil

Mas por que estudar as histórias dos movimentos negros no Brasil? Talvez a melhor pergunta aqui seja esta: por que não estudamos as histórias dos mo-vimentos negros no Brasil durante a nossa formação escolar?

Em cada período da história do Brasil houve movimentos negros com características distintas, que ainda precisam ser bastante pesquisadas e mais bem conhecidas. Tenho adotado o termo ‘movimento negro contemporâneo’ para designar, como já afirmei, as organizações e indivíduos que atuaram a partir da década de 1970 em torno da questão racial, lutando contra o racismo e por melhores condições de vida para a população negra, seja através de prá-ticas culturais, de estratégias políticas, de iniciativas educacionais etc. – o que faz da diversidade e da pluralidade características desse movimento social. Ao longo de minhas pesquisas pude perceber nesse conjunto, complexo e diverso, características específicas que diferem das apresentadas por movimentos ne-gros em períodos anteriores. A própria atuação em torno da questão racial, por exemplo, é algo que só se tornou possível a partir da consolidação da ideia de raça, em meados do século XIX.15 O que não significa que não tenha exis-tido a luta dos negros no Brasil em períodos anteriores.

Joel Rufino dos Santos, partindo da afirmação de que “movimento negro é, antes de tudo, aquilo que seus protagonistas dizem que é movimento negro”,

verificava nos discursos das lideranças do movimento, na década de 1980, duas definições existentes para o termo ‘movimento negro’. A primeira, que ele chama de movimento negro ‘no sentido estrito’ e diz ser ‘excludente’, consi-derava “movimento negro exclusivamente o conjunto de entidades e ações dos

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últimos cinquenta anos, consagrados explicitamente à luta contra o racismo”. A segunda definição, a de movimento negro no ‘sentido amplo’, que ele afirma ser “a melhor definição de movimento negro”, é esta:

Todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visam à autodefesa física e cultural do ne-gro), fundadas e promovidas por pretos e negros. (Utilizo preto, neste contexto, como aquele que é percebido pelo outro; e negro como aquele que se percebe a si.) Entidades religiosas, assistenciais, recreativas, artísticas, culturais e políticas; e ações de mobilização política, de protesto antidiscriminatório, de aquilomba-mento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda esta complexa dinâmica, ostensiva ou invisível, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro.16

Seguindo essa perspectiva, podemos afirmar que existiu ‘movimento ne-gro’ no Brasil desde que os primeiros seres humanos escravizados na África chegaram à costa brasileira, como diz Abdias do Nascimento:

Não existe o Brasil sem o africano, nem existe o africano no Brasil sem o seu pro-tagonismo de luta antiescravista e antirracista. Fundada por um lado na tradição de luta quilombola que atravessa todo o período colonial e do Império e sacode até fazer ruir as estruturas da economia escravocrata e, por outro, na militância abolicionista protagonizada por figuras como Luiz Gama e outros, a atividade afro-brasileira se exprimia nas primeiras décadas deste século sobretudo na forma de organização de clubes, irmandades religiosas e associações recreativas.17

Os movimentos negros na luta contra a escravidão, por exemplo, precisam ser estudados nas aulas de história. É importante levarmos para a escola bási-ca as contribuições mais recentes da rica historiografia sobre a história da es-cravidão no Brasil, como afirma Hebe Mattos, “considerando o tema e suas implicações não apenas em seus aspectos econômicos, mas também em suas dimensões políticas e culturais”, pois para a autora “é impossível falar de qual-quer aspecto da história do Brasil colonial ou oitocentista sem levar em conta o fato escravista e seu papel estruturante do ponto de vista econômico, políti-co, social e cultural” (Mattos, 2003, p.135). Nesse sentido, concordando com a autora, creio que tão importante quanto levar para a escola básica a história da escravidão seja, nesse processo, inserir e enfatizar nas aulas as histórias das

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lutas contra a escravidão em nosso país, as histórias das lutas dos movimentos negros e suas diferentes implicações para a formação de nossa sociedade.

Assim como o sistema escravista abrangeu todo o território nacional, as lutas contra a escravidão também se espalharam por todo o país, na medida em que, como dizem João José Reis e Flávio Gomes, “onde houve escravidão hou-ve resistência. E de vários tipos”.18 Se o sistema escravista teve alguma impor-tância para a estruturação do que conhecemos como o Brasil no século XIX, e se onde houve escravidão também houve a luta contra a escravidão, então a luta contra a escravidão também foi um elemento estruturante, que contribuiu, portanto, para a formação de nossa sociedade. Essa resistência, de que falam João Reis e Flávio Gomes, as lutas travadas de diferentes formas, desde as re-voltas e a criação dos quilombos, tão bem estudados por esses e outros autores, até formas menos estudadas como as ações na Justiça para libertar pessoas es-cravizadas através do uso das leis, levadas a cabo pelo rábula negro Luiz Gama19 e por outros atores sociais, ou a ação no campo da educação, como a criação de escolas ainda no século XIX, como fez a escritora e professora negra Maria Firmina dos Reis no Maranhão em 1880,20 todas essas formas de resistência e luta foram importantes para a formação de nossa sociedade.

As lutas da população negra no Brasil ganharam nova dimensão no pe-ríodo pós-abolição. Importantes organizações surgiram e se espalharam pelo país. Homens e mulheres negros, intelectuais, políticos, artistas, trabalhadores etc., se organizaram para lutar de diferentes formas contra a discriminação racial e por melhores condições de vida para a população negra. A publicação dos jornais da chamada ‘imprensa negra’ foi uma estratégia importante, desde o final do século XIX, para expressar os anseios e reivindicações desses setores da população negra que se organizavam nas grandes cidades, especialmente em São Paulo. Entre os jornais criados por negros no início do século XX, um dos mais conhecidos e estudados é O Clarim d’Alvorada, criado em 1924 na cidade de São Paulo por José Correia Leite e Jayme de Aguiar. Principalmente a partir de 1928, O Clarim d’Alvorada passou a se destacar como representan-te da luta contra a discriminação racial no Brasil, publicando diversas matérias fazendo críticas e denúncias de situações de discriminação.

A Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em São Paulo em 1931 e com ramificações em vários estados brasileiros (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Es-pírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia), foi a maior organização

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do movimento negro na primeira metade do século XX no Brasil, e chegou a servir de referência para a luta contra o racismo e por melhores condições de vida para os negros em outros países, com se verá adiante. Em 1933 a FNB criou seu próprio jornal, A voz da raça, e em 1936 tornou-se um partido polí-tico, que acabou fechado com todos os outros partidos durante o golpe do Estado Novo, em 1937. Com evidente caráter nacionalista, a FNB tinha como principal objetivo integrar a população negra ao conjunto da sociedade brasi-leira no que diz respeito aos direitos civis e sociais, como podemos observar no Artigo 1º de seu Estatuto, registrado em cartório no dia 4 de novembro de 1931:

Art. 1o – Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Bra-sil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políti-cos, atuais, na Comunhão Brasileira.21

Em muitos casos, os jornais da ‘imprensa negra’ eram veículos de infor-mação constituídos por organizações como os grêmios, clubes ou associações, que surgiram em algumas partes do país desde o final do século XIX, tendo objetivos semelhantes aos da FNB. Petrônio Domingues listou algumas dessas organizações:

Em São Paulo, apareceram o Club 13 de Maio dos Homens Pretos (1902), o Cen-tro Literário dos Homens de Cor (1903), a Sociedade Propugnadora 13 de Maio (1906), o Centro Cultural Henrique Dias (1908), a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor (1915), a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos (1917); no Rio de Janeiro, o Centro da Federação dos Homens de Cor; em Pelotas/RS, a Sociedade Progresso da Raça Africana (1891); em Lages/SC, o Centro Cívico Cruz e Souza (1918). Em São Paulo, a agremiação negra mais antiga desse pe-ríodo foi o Clube 28 de Setembro, constituído em 1897. As maiores delas foram o Grupo Dramático e Recreativo Kosmos e o Centro Cívico Palmares, fundados em 1908 e 1926, respectivamente.22

Entre essas organizações, o Centro Cívico Palmares, criado em 1926, me-rece destaque, pois, segundo George Andrews, essa organização teria sido um marco importante para a mobilização política dos negros em São Paulo, jus-

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tamente durante o período que antecede a Revolução de 1930. Nesse sentido, o Centro Cívico Palmares viria a contribuir significativamente para a criação mais tarde da FNB, também em São Paulo. Havia muitos participantes em comum nas duas organizações, até mesmo em sua liderança, já que Arlindo Veiga dos Santos havia sido presidente do Centro Cívico Palmares e fora tam-bém o primeiro presidente da FNB, e alguns de seus militantes propunham uma ligação direta entre a criação de ambas as organizações, como neste tre-cho, publicado na primeira página do jornal A Voz da Raça de 3 de fevereiro de 1937: “A F.N.B. surgiu no Estado de São Paulo, graças à perspicácia da alma Paulista, que, desde 1926, já havia fundado o CENTRO CÍVICO PALMARES, com o mesmo objetivo da aludida organização” (grifos do autor). George An-drews diz o seguinte sobre as origens do Centro Cívico Palmares:

Em 1925, O Clarim d’Alvorada clamava pela criação do Congresso da Mocidade dos Homens de Cor, “um grande partido político composto exclusivamente de homens de cor”. Esses apelos não produziram resultados imediatos, mas sem dú-vida foram parte do impulso subjacente à fundação, em 1926, do Centro Cívico Palmares. Assim chamado em homenagem ao quilombo de Palmares do século XVII, o centro originalmente destinava-se a proporcionar uma biblioteca coope-rativa para a comunidade negra. A organização logo progrediu e passou a patro-cinar encontros e conferências sobre questões de interesse público, e em 1928 lançou uma campanha para derrubar um decreto que proibia aos negros ingres-sar na milícia do Estado, a Guarda Civil. O centro foi bem sucedido ao requerer do governador Júlio Prestes que suspendesse o decreto, e depois o convenceu a derrubar uma proibição similar que impedia as crianças negras de participar de uma competição patrocinada pelo Serviço Sanitário de São Paulo para encontrar o bebê mais ‘robusto’ e eugenicamente desejável do Estado.23

Embora os militantes do Centro Cívico Palmares tenham conseguido em 1928 a suspensão do decreto que proibia negros de entrarem na Guarda Civil do estado de São Paulo, somente em 1932 os militantes da FNB conseguiram, após reunião com o próprio presidente Getúlio Vargas no Distrito Federal, que duzentos negros paulistas fossem contratados para a Guarda Civil. Esse episó-dio demonstra a capacidade de negociação e o poder político alcançado na-quele momento pela FNB. Vale ressaltar que a FNB apoiava o presidente Ge-

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túlio Vargas durante o governo provisório e o chamava, nas páginas do A voz da raça, de “esperança fagueira do nosso Brasil”.

Graças à constante circulação de ideias e referenciais por toda a diáspora negra, na década de 1930 a Frente Negra Brasileira chegou a ser vista por ne-gros norte-americanos e porto-riquenhos como um verdadeiro exemplo de luta por direitos civis e sociais. A imprensa negra, em diferentes países, con-tribuiu muito para essa circulação de ideias e referenciais sobre a luta dos negros em geral. Ainda no início do século XX é possível encontrar um inte-ressante exemplo de intercâmbio entre dois jornais criados por negros, no Brasil e nos Estados Unidos: foi o estabelecido entre os jornais O Clarim d’Alvorada e Chicago Defender, este um dos mais importantes jornais da im-prensa negra norte-americana, fundado na cidade de Chicago em 1905. Alguns anos depois de uma viagem de três meses realizada em 1923 por Robert Abbot, fundador e editor do Chicago Defender, pela América do Sul e especialmente pelo Brasil, Abbot passou a receber O Clarim d’Alvorada e a enviar o Chicago Defender para José Correia Leite, fundador e editor d’O Clarim.24

Como demonstrei no capítulo intitulado “Circulação de referenciais: Bra-sil, Estados Unidos e África” de minha tese de doutorado (Pereira, 2010), ao realizar pesquisas no arquivo do jornal Chicago Defender, encontrei muitas reportagens falando sobre a questão racial no Brasil em meados das décadas de 1930 e 1940, justamente durante o período que vários historiadores consi-deram ser o ápice de importância da imprensa negra nos Estados Unidos. Encontrei reportagens como a publicada em 26 de outubro de 1935, sobre uma manifestação realizada pela Frente Negra Brasileira (FNB) no Rio de Janeiro e que, segundo o jornal, teria mobilizado 10 mil pessoas:

Esta organização, composta exclusivamente por brasileiros negros, tem direcio-nado suas energias contra a invasão dos direitos civis e constitucionais. Batendo na tecla da solidariedade nacional, ela tem conseguido eminentemente derrotar as forças do preconceito que, por pouco, ameaçaram minar o tradicional espírito de jogo limpo e igualdade pelo qual o Brasil foi conhecido antes do advento da insidiosa propaganda norte-americana.25

É interessante perceber a referência à luta por ‘direitos civis’ (civil rights) levada a cabo pela FNB no Brasil. Segundo o jornal, a luta era pela manutenção de direitos civis e constitucionais, enquanto nos Estados Unidos esses direitos

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ainda eram negados à população negra. O texto da reportagem seguia apre-sentando a FNB para o leitor norte-americano desta forma: “A Frente Negra é hoje a organização mais poderosa em todo o Brasil, exercendo uma influên-cia política que mantém afastados todos aqueles que poderiam negar as garan-tias específicas da Constituição nacional”. Somente entre os anos de 1935 e 1937 a Frente Negra Brasileira esteve presente em nada menos do que vinte reportagens do Chicago Defender, em matérias como, por exemplo, “Brazilian politics seeking support of the Black Front” (20 mar. 1937), que, ao referir-se às eleições que se aproximavam, afirmava que “os associados à Frente Negra, de acordo com fontes autênticas, vão muito além dos 40 mil, com novos mem-bros se associando diariamente”, e que “com sua solidez, essa organização representa hoje uma das forças mais poderosas a serem consideradas no Bra-sil”. Essa e outras reportagens foram publicadas sempre em sua edição semanal com circulação nacional.

Embora a FNB não tenha sido de fato a ‘organização mais poderosa em todo o Brasil’ da década de 1930, sua participação política em São Paulo e em outros estados era evidente. O seu número de associados e sua atuação políti-ca e social chamavam a atenção de brasileiros e de estrangeiros, como os edi-tores do Chicago Defender, os quais olhavam para o Brasil naquele momento e viam muitos exemplos a serem seguidos, além de também demonstrarem abertamente, nas páginas do Chicago Defender, a sua admiração pela Frente Negra Brasileira. Um bom exemplo, nesse sentido, é a edição do dia 11 de ja-neiro de 1936, que trazia no topo da primeira página, em letras garrafais, esta manchete: “American Race Group takes cue from Brazil; Maps drive to shake off shackles in 1936”,26 que apresentava para seus leitores os planos da “North American Fronte Negra” para o ano de 1936! Ainda na mesma edição, na página 24, havia outra matéria interessante: “Puerto Ricans organize Black Militant Front”, na qual o jornal afirmava que a criação da nova organização em Porto Rico também “foi inspirada no sucesso alcançado pela Frente Negra no Brasil”.

As histórias da FNB e de muitas outras organizações e indivíduos negros, pelo Brasil afora e em diferentes momentos ao longo do processo de formação de nossa sociedade, são ainda pouquíssimo estudadas nas aulas de história nas escolas de nosso país, embora seja evidente o fato de que essas histórias são partes importantes da história do Brasil. Conhecer essas histórias e levá-las

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para as escolas, com embasamento teórico e seriedade no trato com os conteú-dos, só pode beneficiar a formação de todos os alunos, sejam eles pretos, bran-cos, pardos, indígenas ou amarelos.

À guisa de conclusão...

Infelizmente, ainda podemos encontrar em livros didáticos de história, e até mesmo no ‘senso comum’, visões estereotipadas sobre a população negra. População esta que, até poucos anos atrás, quando foi apresentada nos livros utilizados em nossas escolas, o foi de maneira discriminatória: como escravos passivos, seres inferiorizados, vítimas sofredoras ou pessoas estigmatizadas em funções subalternas, por exemplo. Podemos encontrar muitos trabalhos de pesquisa, principalmente na área da educação, produzidos desde a década de 1980, que já analisaram a discriminação dos negros nos livros didáticos.27 A população negra, em geral, não foi historicamente apresentada nas escolas como sujeito de sua história, como homens e mulheres ativos nas lutas por liberdade ou por melhores condições de vida para si e para seus familiares.

Embora tenha havido mudanças recentemente nesse sentido, principal-mente após a criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 1985 e com a publicação dos PCNs em 1998, ainda percebemos que há muito por fazer para conseguirmos mudar a forma como a população negra e suas histórias e culturas são apresentadas nas salas de aula. Atualmente podemos encontrar muitos avanços na historiografia brasileira em relação ao conheci-mento sobre as diferentes formas de participação da população negra na for-mação da nossa sociedade. Avanços que têm contribuído significativamente para a tão reivindicada ‘reavaliação do papel do negro na História do Brasil’. Hoje podemos contar até mesmo com uma legislação, em âmbito nacional, nos convocando à realização de um trabalho com o ensino de história que seja democrático e que contemple as histórias das diferentes matrizes forma-doras de nossa sociedade, inclusive as histórias das “lutas dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resga-tando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, como determina o texto da Lei 10.639/2003, que alterou a LDB em seu § 1º do Artigo 26-A.

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Homens e mulheres negros e brancos, diferentes atores sociais, participa-ram das histórias de lutas por liberdade e por direitos civis e sociais, antes e depois da assinatura da Lei Áurea, que aboliu legalmente a escravidão no Bra-sil em 1888. A memória dessas lutas precisa estar nas escolas, e não somente a memória da escravidão. Aliás, a memória da escravidão atlântica, como se fosse a única forma de escravidão já existente no mundo, e a associação direta entre negritude e escravidão, inferiorizando africanos e seus descendentes, é algo absolutamente presente nas escolas brasileiras ainda hoje. E, além de ser um erro ‘histórico’, isso é algo danoso para as construções identitárias de jo-vens estudantes negros e brancos.

Como afirma Jacques Le Goff: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.28 O protagonismo negro na luta contra a escravidão e na luta por melhores condições de vida no período pós-abolição deve ser pesquisado, conhecido e trabalhado nas escolas de nosso país. Protagonismo que vai de Zumbi dos Palmares, passando pelas instituições como as irmandades negras no século XIX, por personagens já citados aqui como Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama, entre muitos outros, e chegando aos movimentos negros orga-nizados na história da República brasileira. Essas histórias são partes da histó-ria do Brasil! E essas memórias precisam estar disponíveis para a população brasileira como um todo. Um país culturalmente diverso que se quer demo-crático, talvez deva lutar arduamente ‘por uma autêntica democracia racial’ nas escolas e nos currículos.

NOTAS

1 Disponível em GONZALEZ, Lélia. O Movimento Negro na última década. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. p.48-50.2 Sobre a história do movimento negro contemporâneo, ver: PEREIRA, Amilcar A. “O Mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói (RJ), 2010.3 A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) patroci-nou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil entre os anos de 1951 e 1952, pesquisas essas que, em seu conjunto, ficaram conhecidas como “Projeto Unesco”. As pes-quisas, desenvolvidas no Nordeste e no Sudeste do Brasil, tinham o objetivo de apresentar

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ao mundo a experiência brasileira no campo das relações raciais, julgada, na época, como bem-sucedida e ‘harmoniosa’. Entretanto, como afirmou Oracy Nogueira, um dos respon-sáveis pelo projeto Unesco no interior do estado de São Paulo, “a principal tendência que chama a atenção, nos estudos patrocinados pela Unesco, é a de reconhecerem seus autores a existência de preconceito racial no Brasil. Assim, pela primeira vez, o depoimento de cientistas sociais vem, francamente, de encontro [sic, o correto seria “ao encontro de”] e em reforço ao que, com base em sua própria experiência, já proclamavam, de um modo geral, os brasileiros de cor”. NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985. p.77.4 Florestan Fernandes foi, com Roger Bastide, responsável pelas pesquisas do Projeto Unesco na cidade de São Paulo, e se tornou pioneiro entre os intelectuais brasileiros que primeiro denunciaram a existência de racismo e o chamado ‘mito da democracia racial’ no Brasil. Ver, entre outros: FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo: Ed. Nacional, 1965; e FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2.ed. rev. São Paulo: Global, 2007.5 Ver, por exemplo: ALBERTO, Paulina Laura. Black Activism and the cultural conditions for citizenship in a multi-racial Brazil, 1920-1982. Tese (Doutorado em História) – Univer-sity of Pennsylvania. Philadelphia, 2005; e KÖSSLING, Karin Sant’Anna. As lutas anti-ra-cistas de afrodescendentes sob vigilância do Deops/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.6 A construção do 20 de Novembro como data a ser celebrada pela população negra foi a própria razão do surgimento de uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo brasileiro, o Grupo Palmares. Esse Grupo foi fundado por Oliveira Silvei-ra, com outros militantes, em 1971, em Porto Alegre (RS). O Grupo Palmares elegeu o Quilombo dos Palmares como passagem mais importante da história do negro no Brasil e realizou, ainda em 1971, o primeiro ato evocativo de celebração do 20 de Novembro. Se-guindo a proposição do Grupo Palmares, durante a segunda Assembleia Nacional do MNU, realizada no dia 4 de novembro de 1978, em Salvador (BA), foi estabelecido o 20 de Novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” – que hoje é feriado em mais de 400 municípios brasileiros e também faz parte do calendário escolar, por determinação do Artigo 79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) alterada pela Lei 10.639/2003.7 HASENBALG, Carlos. Desigualdades raciais no Brasil. In: HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson V. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice, 1988. p.121-122.8 Maria Raimunda Araújo nasceu em São Luís em 8 de janeiro de 1943. Formada em co-municação social pela Federação das Escolas Superiores do Maranhão em 1975, Mundinha Araújo, como é conhecida, foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), em 1979, primeira vice-presidente da entidade, de 1980 a 1982, e ocupou a presi-dência no mandato seguinte, de 1982 a 1984. Foi diretora do Arquivo Público do Estado do Maranhão entre 1991 e 2003. A entrevista citada foi gravada em 10 set. 2004, em São Luís do Maranhão, durante a realização da pesquisa “História do movimento negro no Brasil:

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“Por uma autêntica democracia racial!”

constituição de acervo de entrevistas de história oral”, implementada por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporâ-nea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) entre 2003 e 2007.9 ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar A. (Org.) Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC/FGV, 2007. p.209.10 ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasilei-ra e Africana: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.21, n.41, jan.-jun. 2008. p.6.11 MOREIRA, Antônio Flávio B.; SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Currículo, cultura e so-ciedade. São Paulo: Cortez, 2002. p.8.12 MATTOS, Hebe. O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU, Martha; SOIHET, Raquel (Org.) Ensino de História: conceitos, temáticas e meto-dologias. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p.128.13 BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília, 1998. p.17.14 Vale lembrar que, em função da mobilização dos movimentos indígenas, a Lei 11.645, de 10 mar. 2008, tornou ainda mais complexa a discussão sobre os currículos de História no Brasil ao alterar a Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), de 20 dez. 1996, já modificada pela Lei 10.639, de 9 jan. 2003, para incluir no currí-culo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Bra-sileira e Indígena”.15 Sobre a construção da ideia de raça, ver o primeiro capítulo de minha tese de doutorado: PEREIRA, 2010.16 SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Adminis-tração, v.2, p.287-303, jul.-set. 1985.17 NASCIMENTO, Abdias do; NASCIMENTO, Elisa Larkin. Reflexões sobre o movimento negro no Brasil, 1938-1997. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio A.; HUNTLEY, Lynn. Ti-rando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p.204.18 REIS, João J.; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.9.19 Luiz Gama (1830-1882) nasceu em Salvador, Bahia, e é considerado por muitos historia-dores como um dos maiores abolicionistas brasileiros. Embora tenha nascido livre, por ser filho de uma escrava forra, foi vendido como escravo pelo pai aos 10 anos de idade. Na juventude aprendeu a ler e tomou ciência de sua condição de homem livre. Autodidata, tornou-se rábula, um advogado sem formação universitária, e atuou nos tribunais em São Paulo, onde conseguiu libertar mais de 500 pessoas escravizadas. Foi também jornalista e fundador do Partido Republicano Paulista. Ver: SANTOS, Luiz Carlos. Luiz Gama. São Paulo: Selo Negro, 2010.

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Amilcar Araujo Pereira

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20 Maria Firmina dos Reis (1825-1917) nasceu em São Luís do Maranhão. Autodidata, foi professora, musicista, compôs o Hino à libertação dos escravos, colaborou em vários jor-nais com poesias e em 1859 publicou o livro Úrsula, que pode ser considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro e um dos primeiros de autoria feminina no Brasil. Em 1880 fundou a primeira escola mista do Maranhão. Ver: MENDES, Algemira Macedo. Amélia Beviláqua e Maria Firmina dos Reis na história da literatura: representação, ima-gens e memórias nos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em Letras) – PUC/RS. Porto Alegre, 2006.21 Apud LEITE, José Correia; CUTI (Luiz Silva). ...E disse o velho militante José Correia Leite: depoimentos e artigos. Org. e textos: CUTI (Luiz Silva). São Paulo: Secretaria Muni-cipal de Cultura, 1992. p.95.22 DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo (UFF), Niterói (RJ), v.23, 2007. p.103.23 ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo. Bauru: Edusc, 1998. p.227.24 José Correia Leite (1900-1989) foi também um dos fundadores da FNB, em 1931. Contu-do, desligou-se da Frente ainda no momento da aprovação do estatuto da entidade, por divergir de sua inclinação ideológica, e fundou então o Clube Negro de Cultura Social, em 1932. Participou da Associação do Negro Brasileiro, fundada em 1945. Em 1954 fundou em São Paulo, com outros militantes, a Associação Cultural do Negro (ACN), e em 1960 participou da fundação da revista Niger.25 As traduções dos trechos das reportagens foram feitas pelo autor deste artigo. A versão em inglês pode ser encontrada no terceiro capítulo de PEREIRA (2010).26 “Grupo Racial Americano segue exemplo do Brasil; Mapeia campanha para livrar-se dos grilhões em 1936”. Até meados do século XX ainda era comum na imprensa negra norte--americana a utilização dos termos race people ou colored people para se referir à população negra. Somente a partir de meados dos anos 1960 o termo black passou a ser o mais usado para falar da população negra nos Estados Unidos.27 Ver, entre outros: ROSENBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Glo-bal, 1985; e SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: Ceao/UFBA, 1995.28 LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi, v.I. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p.46.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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Entrevista – Mônica LimaMartha Abreu*

Silvio de Almeida Carvalho Filho**

Mônica Lima possui uma longa experiência de ensino em História da África nos níveis fundamental, médio e universitário. Entre 1984 e 2010, atuou na rede pública estadual do Rio de Janeiro e no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde também se dedicou à formação de professores de História. Atualmente é professora do Instituto de História da UFRJ e coordenadora do LEÁFRICA (Laboratório de Estudos Africanos). Além de atuar na formação de professores de História, Mônica Lima é referência na área de pesquisa e ensino de História da África, ministrando cursos e consultorias sobre a temática.

Como e quando você começou a se interessar pelo estudo de história da África? Foi antes ou depois da Lei 10.639/2003?

Meu interesse por História da África começou na faculdade, ainda que eu não tivesse na época a menor ideia dos conteúdos e discussões relativos ao assunto. Cursei História na UFRJ e, quando fiz a graduação, entre 1980 e 1983, não havia nenhuma disciplina sobre África, tampouco se falava sobre o tema em disciplinas cujos conteúdos necessariamente teriam que inserir a história do continente. Mas essa realidade não era exclusiva da UFRJ, era geral nos cursos de História em todo o Brasil. Se havia exceções, eram muito pontuais.

Ainda na graduação, como estagiária, fiz parte de um grupo de pesquisa que foi participar da identificação e organização da documentação cartorial do século XIX no município de Vassouras (RJ). Nesse trabalho eu lidava o tempo todo com processos envolvendo africanos, em sua maior parte cativos, mas alguns libertos. A leitura dos documentos me aproximou desse mundo, da

* Universidade Federal Fluminense (UFF). Campus do Gragoatá, bloco “O”, sala 421, São Domingos. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. [email protected]** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Largo de São Francisco de Paula, n.1, sala 201, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

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Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

presença africana na história do Brasil. Como disse antes, ainda não enxerga-va a África, apenas entrevia. E foi a partir dessa experiência, sobre a qual eu contava nas aulas em que participava como monitora em História do Brasil, que a professora da disciplina (Maria Conceição Pinto de Góes, hoje aposen-tada pela UFRJ) percebeu meu interesse sobre aspectos da vida dos africanos escravizados, principalmente as ações rebeldes – perceptíveis na documentação do Judiciário, com a qual eu trabalhava. Assim, quando ela soube do processo seletivo para um mestrado em Estudos de África no Colegio de México, me avisou e se dispôs a escrever uma carta de recomendação. Nesse momento eu já terminara minha graduação.

Para mim, México e África pareciam quase que igualmente distantes, em termos de conhecimento. Mas igualmente fascinantes. Parti para o processo seletivo, animada com a possibilidade de ser paga para estudar (raríssimo nes-sa época), e ainda mais aprender sobre um assunto desconhecido, e num lugar tão diferente. Fiz a entrevista, enviei cartas e um trabalho para avaliarem. Tu-do por correio, não havia internet. Era o ano de 1985, primeiro semestre. E veio o resultado, a aprovação, a bolsa, a viagem, os medos e as descobertas. Conheci o Colegio de México, com seu excelente curso, e sua biblioteca exta-siante (era mesmo), seu ambiente de estudo, professores com 100% de dedi-cação a um pequeno grupo de estudantes (éramos 14) também com dedicação integral aos “estudos de África”. E foi no México que meu interesse – e mais do que isso, minha paixão por História da África – se consolidou. Durante o mestrado dei as minhas primeiras palestras sobre História da África a estudan-tes de História em universidades mexicanas.

Trabalhar com ensino de História da África na formação de futuros pro-fessores e pesquisadores no Brasil foi algo que comecei mesmo em 1992, já de volta, depois do mestrado. Foi na UFMA, em São Luís, onde criei a ementa e ministrei pela primeira vez essa disciplina – e aonde voltei, em 1994, também para o mesmo fim. Como fui parar lá? Por indicação de José Maria Nunes Pereira, do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, um dos pioneiros nos estudos de África no Brasil, e que deu a aula inaugural o primeiro curso, em 1992. E depois vieram outras experiências semelhantes, em outras universidades. Sim, tudo isso foi bem antes da Lei 10.639/2003...

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Entrevista – Mônica Lima

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Como você avalia a implementação da Lei e das Diretrizes? Quais os im-pactos na situação atual do ensino de História no Brasil?

Podem dizer o que quiserem, que sou otimista demais, ou esperançosa demais, mas a Lei 10.639/2003, na minha avaliação, é uma lei que pegou. Falta fazer muita coisa, é certo, temos um país enorme, e o orçamento para a Educação deveria ser maior para que algumas iniciativas encontrassem um campo consistente de trabalho. Falta muita coisa, sim: professores sendo mais bem pagos, estimulados a estudar sempre e mais, escolas equipadas, com boas bibliotecas, acesso à internet... Mas, ainda assim, com toda a precariedade, com todas as ausências, percebo que há mudanças acontecendo em várias partes do Brasil, muitas por iniciativa dos próprios professores que criam projetos para suas salas de aulas e escolas, outras por ações das secretarias municipais e estaduais, além de organizações não-governamentais que atuam no campo da Educação. Em nível nacional temos o exemplo do que foi feito pelo projeto A Cor da Cultura, financiado pela Petrobras e implementado pela Fundação Roberto Marinho. O que muita gente não sabe é que esse projeto nasceu de uma organização ligada ao movimento negro, o Cidan (Centro de Informação e Documentação do Artista Negro). Antonio Pom-peu, Luis Antonio Pilar e Wania Santana estiveram lá no início dessa história. E o A Cor da Cultura chegou a muitas escolas públicas brasileiras, foram dois mil professores na primeira fase (2006), e, na segunda fase (2011), mais do que o dobro disso. Foram produzidos materiais pedagógicos de boa qualida-de, e está tudo disponível na rede. Por iniciativa oficial também está na rede a coleção da Unesco, a fundamental História Geral da África, com seus oito volumes. Tudo isso veio da Lei 10.639/2003. No Rio de Janeiro temos o Ceap (Centro de Articulação das Populações Marginalizadas), que anualmente dá um prêmio às redações feitas por estudantes de escolas públicas com temas referidos na Lei 10.639/2003. Isso sem falar de atividades promovidas por escolas e professores por seu próprio interesse e iniciativa, utilizando a lei como suporte para afirmar a importância de seus trabalhos. Eu mesma, nes-tes últimos 9 anos, já compareci a dezenas de eventos dessa natureza e tive notícia de outros tantos. E felizmente, não é só a escola básica que se mobi-liza. Em setembro de 2010 participei de uma mesa na reunião da Anpuh regional de Santa Catarina, em Chapecó, sobre o tema. A Universidade Fe-

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deral de Alfenas, em Minas Gerais, que já tem uma professora concursada de História da África, promoveu um encontro sobre o tema em 2011. Isso para citar duas iniciativas fora dos chamados ‘grandes centros’, e houve muitas outras. No Rio de Janeiro, universidades públicas e privadas promoveram seminários específicos sobre ensino de História da África. Não tenho dúvida que a Lei 10.639/2003, ampliada pela Lei 11.645/2008, que trouxe junto a história indígena, tem a ver com esses eventos acadêmicos. E as diretrizes, com todas as críticas que se possa fazer a determinadas abordagens sugeridas, têm toda uma importância ao reforçar o papel das universidades, em seus diferentes cursos, em assumirem sua responsabilidade na preparação dos profissionais promovendo os estudos nesse campo. Até vir o parecer do Con-selho Nacional de Educação em julho de 2004, muita gente pensava que a obrigação era só dos professores de História da Educação Básica. As diretri-zes vieram problematizar isso. Com direta relação com essas mudanças no ensino, as pesquisas no campo se ampliam, o CNPq tem a linha PróAfrica, que já vem sendo utilizada para projetos conjuntos com instituições africa-nas, inclusive o Arquivo Nacional de Angola. O estímulo à pesquisa alimen-ta as salas de aula. Nos últimos anos, diversos concursos para professores de História da África têm sido feitos nas universidades brasileiras. É um campo em construção, e a legislação contribuiu muito para que se abrisse. E nós, professores de História da África, estamos também contribuindo para uma melhor formação de professores e pesquisadores de História. Afinal, estudar a humanidade sem conhecer as sociedades africanas era uma lacuna enorme nos cursos de História, fruto do viés eurocêntrico a partir do qual foram pensados. E evidentemente todos concordam que estudar a história da Áfri-ca é essencial para compreender o Brasil. E ainda há outros ganhos. Citando Alberto da Costa e Silva, historiador de oficio e grande africanista, no prefá-cio ao seu livro A enxada e a lança, “Conhecer a história da África nos faz melhores. Enriquece a consciência do nosso passado. Soma-se aos enredos europeus, que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas, e aos ame-ríndios, que neles deveriam estar, e abre nossa alma a outras memórias. Se aprendemos na escola com pormenores o que se passou em Atenas ou Roma antigas, por que descurarmos de Axum, de Songai e de Ifé?”.

Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

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Entrevista – Mônica Lima

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O que você recomendaria aos professores de história que começam a tentar implementar a Lei e as diretrizes?

Recomendo aos professores, meus colegas, que sempre procurem ver a história da África além da escravidão atlântica e das relações com o Brasil es-cravista. E estimular que seus alunos passem a fazer o mesmo. Sabemos que é um campo muito marcado por essa herança. Isso não é necessariamente ruim, claro que não. Mas, é importante ampliar o olhar, no tempo e nos espaços. A história da África do Sul deve integrar nosso campo de estudo e nossas aulas, assim como a África do Norte, e o Sudão, a Etiópia... Tudo ao seu tempo e em seu lugar, dentro dos temas escolhidos para o trabalho pedagógico com histó-ria. Mas mostrar a riqueza e a diversidade da África e dos africanos é essencial. Como disse Joseph Ki-Zerbo, no primeiro volume da História Geral da África, listando os grandes princípios da obra: “essa história é a história dos povos africanos em seu conjunto”.

Recomendo também que utilizem as referências às heranças africanas no Brasil nos estudos de história do Brasil e, sempre que estiverem presentes, nos estudos de história da África. Sim, essa ponte sobre “o rio chamado Atlântico” (novamente cito Alberto da Costa e Silva) deve ser construída, e reconstruída. Aliás, isso tornará os estudos de história da África mais próximos aos estudan-tes. E a cultura e a história dos descendentes de africanos no Brasil ficarão mais fáceis para se compreender. E por consequência, a história do Brasil será mais completa, mais inteira, mais autêntica.

Recomendo todos os cuidados com os grandes perigos: a idealização, a simplificação, a excessiva generalização. A história da África é uma história de sociedades humanas, que desenvolveram organizações políticas e econômicas nem sempre pautadas na igualdade e na fraternidade. Não existe um africano essencializado, nem na África, aquele imenso continente, nem no Brasil, com toda a diversidade de origens e povos entre os que foram para aqui trazidos. Portanto, sempre no plural. Parece óbvio, mas é uma questão fundamental, e ainda a ser trabalhada melhor. Há aspectos em comum, entretanto, que podem e devem ser ressaltados na compreensão das africanidades – e para tanto, leiam, entre outros, a Kabengele Munanga, que, no Brasil, trouxe importante contribuição do campo da Antropologia. E, para saborear a rica e encantado-ra diversidade das muitas áfricas, leiam, além dos historiadores, obras de au-

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1136

Martha Abreu e Silvio de Almeida Carvalho Filho

tores africanos nas suas diversas expressões no campo da Literatura. Leiam e levem para seus estudantes lerem: poesia, contos, romances. Tudo isso ilumi-nará suas aulas de História da África.

Para mais e melhor ainda: levem músicas, e sempre que possível, imagens em movimento (filmes, documentários) às suas salas de aula. Ver as muitas caras da África, suas questões, suas paisagens. Nada tão produtivo como assis-tir, comentar e trabalhar sobre esse tipo de material. Para se aproximar e en-tender as muitas heranças vivas da África no Brasil, igualmente: nada como ver e (re)conhecê-las em documentários produzidos para esse fim, com todas suas cores e sonoridades. Há muitos recentemente produzidos, alguns deles na internet – é só baixar! A África e as heranças africanas – a presença africa-na – no Brasil devem ser apresentadas em toda sua riqueza e beleza, para en-cantar, e fazer com que seja motivo de orgulho, para fomentar atitude positiva.

Ensinar história da África e história dos africanos e negros no Brasil é, sim, um instrumento na luta contra o racismo. E isso não faz as nossas aulas, as nossas pesquisas, os nossos trabalhos, algo menos acadêmico. Ao contrário. Nosso campo de estudo tem a profundidade e a consistência do trabalho de profissionais de História, junto ao compromisso na formação de pessoas e na construção de um conhecimento que contribua para a afirmação de valores mais humanos e mais solidários.

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Reflexões sobre o ensino colonial em África: trajetórias da instituição

escolar no antigo Sudão (1889-1952)1

Reflections on the colonial education in Africa: trajectories of the school in the old Sudan (1889-1952)

Patricia Teixeira Santos*

ResumoO artigo consiste no estudo da trajetória da constituição das escolas coloniais no território que corresponde, atualmente, aos países do Sudão e Sudão do Sul (de-cretado autônomo no ano de 2011). O ensino colonial desenvolvido pelas mis-sões católicas foi fundamental para hie-rarquização de populações e para a con-sagração da divisão política e territorial dos povos sudaneses. O processo escolar também desenvolveu a formação de quadros da elite e produziu conteúdos históricos escolares que circularam para além das fronteiras coloniais, e que fo-ram ensinados também para a infância e a juventude na Europa. Assim, jovens africanos e europeus aprenderam os mesmos conteúdos sobre a África, po-rém os vivenciaram de forma hierarqui-camente diferenciada.Palavras-chave: ensino colonial; hie-rarquia de populações; saber histórico--escolar.

AbstractThe paper focuses on the trajectory of the constitution of colonial schools, in the territory which currently corre-sponds to the countries of Sudan and Southern Sudan (enacted autonomous in 2011). The colonial education devel-oped by the catholic missions was es-sential for the hierarchization of popu-lations and for the consecration of political and territorial division of the Sudanese people. The school process has also developed the formation of pic-tures of the elite and produced histori-cal school content that circulated be-yond the colonial borders, and which was also taught to children and youth in Europe. Thus, young Africans and Eu-ropeans have both learned the same content about Africa, but they have ex-perienced them in a hierarchically dif-ferentiated way.Keywords: colonial education; hierarchy of populations; historical-school knowledge.

Instituição fundamental para o enquadramento das populações africanas na hierarquia das relações coloniais, a escola em África e sua história têm

*Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312 Guarulhos – SP – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 139-155 - 2012

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Patricia Teixeira Santos

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suscitado relevantes reflexões que permitem perceber o enquadramento dos corpos da criança e da juventude ao corpo e ao papel social que se esperava dos educandos, como súditos dos impérios e áreas de influência coloniais.

Em conjunto com as escolas coloniais, surgiam também as primeiras ins-tituições escolares públicas na Europa Ocidental e na América Latina. O ensi-no se colocava como meio de conduzir povos e espaços periféricos do mundo para o rumo da civilização.

A proposta deste artigo é convidar para reflexão sobre a instituição esco-lar, levando em consideração no seu processo o desenvolvimento das primei-ras escolas de artes e ofícios, de alfabetização, dos liceus de ensino médio em África, pontuando que através dessa ampliação de horizontes pode-se perceber a circulação transnacional de princípios de subalternização de populações e estruturação de hierarquias sociais, através da constatação de conteúdos co-muns que estavam presentes nas duas grandes experiências de educação que são contemporâneas e que, em alguns espaços, envolvem os mesmos agentes educadores e autores dos livros ‘para o ensino’.

Um conteúdo fundamental desse cruzamento do surgimento das escolas públicas e das escolas coloniais será o da educação para o trabalho, de modo especial, do que se denominava ‘educação artesanal’.

Para o exercício dessa análise que, em muitos momentos, para nós, po-derá parecer o de olhar-se no espelho, foi escolhida a análise da trajetória da estruturação da instituição escolar no antigo Sudão, que no ano de 2010 foi dividido e tornou-se dois países: o Sudão do Norte e o Sudão do Sul.

Também nessa história do Sudão o ensino teve papel fundamental para legitimar as reivindicações de especificidades de povos e espaços no sul do país, que embasaram as reivindicações de separação e foram consideradas legítimas por parte da ONU e da opinião pública internacional.

Por esse motivo, o objetivo deste artigo é analisar, no caso sudanês, a estreita relação entre educação, hierarquia de populações e designação de es-paços geográficos, religiosos e sociais. Para tanto, ele será dividido em duas partes, as quais tratarão, respectivamente, da educação artesanal e do ordena-mento do mundo colonial, e da criação do Comboni College e da administra-ção colonial no fim do colonialismo.

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Reflexões sobre o ensino colonial em África

Educação artesanal e ordenamento do mundo colonial

No antigo Sudão, a educação escolar ocidental foi introduzida pelos pa-dres e pelas religiosas do antigo Instituto das Missões pela Nigrizia (atuais Missionários e Missionárias Combonianos do Coração de Jesus). Quando os primeiros missionários chegaram com aquele que veio a ser Vigário apostóli-co da África central, d. Daniel Comboni, o espaço que compreendia o antigo Sudão era marcado pela presença das zaiwas, os locais onde ficavam as con-frarias sufis, rotas de peregrinação islâmicas, de deslocamento de populações por conta de escravos para as áreas otomanas e de oásis e pequenas mesquitas, onde as crianças eram alfabetizadas em árabe.

Nesse local de intensa circulação de pessoas, ideias, práticas e também de escravos, o aprendizado ocorria no desenvolvimento das relações comerciais, e as crianças, de modo particular, viviam situações de ensino na rotina do trabalho familiar, do aprendizado da leitura e da escrita nas mesquitas ou por preceptores (no caso das que eram muçulmanas). Além disso, a tradição oral ensinava as hierarquias sociais, de trabalho e da cosmogonia das diferentes sociedades, islamizadas ou não, que estavam nesse grande espaço territorial, cultural e político que foi o Sudão anglo-egípcio até o ano de 1954, quando ocorreu a independência e o fim do mandato britânico.

Os missionários católicos eram vistos como mais uns atores internacio-nais presentes naquele espaço, desconhecidos por conta da origem e da língua que falavam, mas que eram submetidos às formas locais de acordo, interação e negociação para a manutenção de sua presença no Sudão.

Essa fragilidade da presença da Igreja afligia os padres que tinham a preo-cupação de construir sinais concretos da ação missionária, como o aldeamen-to missionário, a Igreja, a escola e as unidades agrícolas. Para o missionarismo católico, a forma de o cristianismo estar presente significava o que Riolando Azzi definiu como cristandade,2 ou seja, que o estabelecimento do cristianismo deveria significar a alteração das condições da civilização material, tornando--se concretamente presente e alterando os rumos das relações da sociedade, convertendo-a para Cristo e tornando-a o sinal terrestre da Igreja celeste.

No entanto, esses missionários não alcançaram êxito, e o ambiente local, antes visto como sedutor e motivador da ação, passou a ser negado e hostili-zado, sendo necessário então construir-se uma alternativa às demais socieda-

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des existentes, construindo uma própria, que se fortaleceria por ser a negação das demais e por superá-las pelo contraste da sua eficiência catequética, esco-lar e econômica.

No ano de 1876 d. Comboni comprou terras e criou a colônia antiescra-vista de Malbes. Essa seria uma alternativa para a insegurança do próprio tra-balho missionário, na medida em que as aldeias missionárias eram, por vezes, atacadas por mercadores de escravos, e era também um espaço que deveria claramente se contrapor às zawyas e às sociedades tradicionais que impunham, a cada instante, limites e negociações para a manutenção da presença missio-nária.3

Contudo, o fato de estarem tão interdependentes dessas estruturas locais colocou esses missionários num papel privilegiado de mediação entre as so-ciedades islâmicas e tradicionais e as autoridades egípcias e otomanas que controlavam o Sudão e, posteriormente, as autoridades inglesas.

Em 1885, Comboni já havia morrido e suas missões foram convulsiona-das pela revolta islâmica, liderada por Muhammad Ahmad Ibn Allah, consi-derado Mahdi (O bem guiado), que construiu uma série de políticas de alian-ças com os povos do Sul e do norte do Sudão e que impôs pesados limites às presenças otomana, egípcia e inglesa. Um grupo de missionários e seus cate-cúmenos foram feitos prisioneiros, e os missionários que escaparam com seus bens, com as populações dos aldeamentos e os catequistas, se transferiram do centro do Sudão para o sul do Egito, para as cidades de Wadi Halfa e depois Gezira.

O custo financeiro e moral dessa transferência foi altíssimo para os mis-sionários, mas justificado para as autoridades eclesiásticas sob o princípio de que era necessário salvar o trabalho missionário católico e isso significava, concretamente, o deslocamento material, financeiro, de infraestrutura e po-pulacional para uma região ‘menos ameaçadora’ e já sob influência colonial britânica.4

Nesse processo de deslocamento percebeu-se que o trabalho missionário não tinha a oportunidade de crescer pela via do proselitismo. O fundamental era conservar a cristandade já conquistada, e, para isso, a construção de uma escola de artes e ofícios se fazia de fundamental importância.

Na ausência da possibilidade de proselitismo e batismo, criavam-se esco-las, construía-se um prédio-fortaleza, abrigo do mundo externo, e controla-

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vam-se os corpos dos jovens refugiados e das crianças com o ensino do traba-lho manual, ‘adequado para os indígenas’, na medida em que direcionava a energia dos ‘instintos’ para a construção da civilização.

A escola de Gezira funcionou de 1889 a 1905 e foi dirigida nos seus pri-mórdios pelo padre Casemiro Giacomelli. Apostando na educação dos sentidos e da sensibilidade, a escola, sob a orientação de Giacomelli, enfatizava o traba-lho manual, a educação musical e o teatro para a elevação e o desenvolvimen-to de instintos superiores nos catecúmenos.5

A escola recebia crianças da sociedade circundante, que tinha, em muitos casos, laços de parentesco e religiosos muito próximos com os moradores da escola de Gezira. Os padres, já sob legislação britânica, recebiam em suas es-colas crianças não católicas, as quais aprendiam nos ofícios o seu papel dentro da hierarquia de populações do Império.

Os materiais escolares e o mobiliário eram construídos, segundo os mis-sionários, de acordo com as especificidades de tamanho e idade dos seus alu-nos. Essa preocupação também podia ser percebida nas missões dos Padres de Nossa Senhora da África (conhecidos como Padres Brancos) que construíram escolas na Argélia para crianças muçulmanas.

Nas escolas dos Padres Brancos ensinava-se a geografia colonial, alfabe-tizava-se no francês e se ensinava, investindo-se para isso modernos recursos educativos, a biologia do corpo humano.6 Para estas aulas, em particular, as crianças tinham acesso a encartes do corpo humano, aprendendo, de forma lúdica, a fisiologia e a anatomia.

Nas escolas francesas do início do século, bem como nas italianas, as fotos e os relatos dos missionários eram muitas vezes censurados. A revista missio-nária dos Padres Combonianos, Nigrizia, chegou a ser censurada em algumas dioceses porque colocavam na sua capa homens e mulheres nus, que, mais do que ilustrar, demonstravam outra forma social de lidar com o corpo. Além disso, em muitas escolas religiosas e públicas do ensino elementar os encartes para estudo do corpo humano, semelhantes aos que eram usados nas escolas argelinas pelos missionários de Nossa Senhora da África, não eram permitidos. Assim como na censura das revistas, mostrar o corpo numa dimensão tão profunda e detalhada poderia despertar uma percepção de corpo que talvez extrapolasse as possibilidades do seu controle social e o impediria de ser ‘cor-retamente educado’ e ‘controlado’.

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No entanto, nas escolas africanas sob responsabilidade dos padres bran-cos ocorria a forma inversa de ensinar. Trabalhando com a documentação produzida por esses missionários, como acontece com a dos padres da Nigrizia, percebe-se em muitos casos, especialmente nos que se dedicaram ao ensino, a percepção do que poderia ser chamado de um ‘darwinismo às avessas’. Ou seja, como as crianças não brancas tinham, do ponto de vista do olhar racia-lista da ciência e do entendimento católico sobre o mundo não europeu, maior propensão para o desenvolvimento corpóreo e sensual, ele poderia ser ampla-mente usado na educação, apelando-se para uma aprendizagem emotiva, sen-sorial, que estimularia o uso do corpo para o trabalho e as expressões artísticas.7

Assim, a educação para o trabalho deveria utilizar também as expressões musicais, a dança, a pintura e a escultura, de modo que os ateliês missionários tornaram-se instituições importantes que incorporaram as concepções artís-ticas e estéticas locais para os seus ideais de educação, hierarquização de po-pulações e construção das condições materiais do estabelecimento do em-preendimento evangelizador católico.

Na escola de Gezira, a rotina era marcada pelo controle do relógio e pela administração do tempo que poderia ser considerado ‘ocioso’. Com base tam-bém na experiência jesuíta do controle do trabalho e da produção, a educação artesanal oferecida em Gezira destinava-se ao abastecimento das necessidades da escola e também à formação de súditos ordeiros e colaboradores da empre-sa civilizatória do trabalho, empreendida pelos ingleses.

Com base na experiência da escola de Gezira, que durou até 1905, foram estruturadas diversas escolas artesanais, as quais funcionavam muito interli-gadas às necessidades de autossustento e manutenção de infraestrutura do trabalho missionário.

Em 1910, os Missionários Combonianos, na época conhecidos como “Ve-rona Fathers”, criaram no sul do Sudão a escola de artes e ofícios de Wau, que se destacaria pelo uso de moderna tecnologia e iria expandir a dimensão da formação técnica qualificada, dentro do processo de hierarquização de popu-lações do sul, em referência a Khartum, onde se situava a administração do condomínio anglo-egípcio e o inglês era a língua da gestão, e o árabe, de co-municação.

Em torno da escola artesanal de Wau consolidou-se o ensino ‘para os povos do sul’, das línguas locais e da clara negação da expansão do ensino do

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árabe, uma vez que esta poderia trazer, no seu bojo, a ameaça do proselitismo islâmico.

Tal visão, corroborada pelos ingleses, alimentava mutuamente a divisão política e missionária do Sudão, onde as fronteiras estabelecidas por ambos se reforçavam e consolidavam o princípio de que o sul deveria ter uma adminis-tração distinta e subalterna ao norte. Para os missionários, tal divisão era in-teressante, porque de fato poderia permitir o desenvolvimento de um estabe-lecimento das bases materiais da cristandade e do êxito da presença católica nessa região de África.

Assim, consolidou-se primeiro na discursividade colonial e missionária o princípio da distinção do sul em relação ao norte, separação que deveria ser consolidada por um sistema de ensino que garantisse a subalternidade do sul, para não se chocar com os interesses ingleses, mas que ao mesmo tempo con-ferisse à Igreja missionária na região uma série de proteções e direitos de tute-la, o que conferiria a possibilidade de êxito à ação missionária católica.

As escolas artesanais e os ateliês missionários traziam para o seu interior os artistas tradicionais dos diferentes povos do sul do antigo Sudão e conferiam a esses e aos catequistas locais o importante papel de construção da infraestru-tura material e eclesial para a consolidação da tutela católica sobre ‘os povos indígenas’.

A educação passa a ser vista como meio para fazer esses povos retornarem à sua ‘essência primeira’, porém conduzida de forma moderna para o serviço ao trabalho e para a consolidação da ordem colonial/civilizacional.

As expressões afetivas das crianças e dos jovens, como o sorriso e a ter-nura dos gestos, são sinais publicados nas capas da revista Nigrizia, que refor-çava no campo da narrativa o princípio de que a educação dos nativos deveria basear-se no aprimoramento dos “instintos primevos” e buscaria elevá-los, através de uma educação afetiva e coercitiva do corpo, para o “grau da civili-zação”, já “intrínseco, porém ainda não revelado”.

As escolas artesanais eram hierarquizadas por idade e destinavam-se so-mente aos meninos. As mulheres e meninas eram alvo da catequese nos aldea-mentos missionários e dos trabalhos domésticos dentro deles. O mobiliário era adequado à faixa etária dos alunos, e a sofisticação e modernidade dos instrumentos do trabalho e da técnica eram exaltados como forma de inserção da África no cenário internacional da produção feita com fins civilizatórios, e

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com trabalhadores “fiéis, dedicados e dóceis”, segundo os princípios do que a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1891), esperava da relação entre patrões e empregados.

O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com pa-ciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro la-do, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; por-que a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principal-mente, a diferença das suas respectivas condições.

Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação...8

O trabalho e a consideração hierárquica das obrigações dos superiores para com os subalternos deveriam suscitar em todo o mundo moderno o sen-timento de obrigação recíproca. De acordo com a Rerum Novarum, tal obri-gação recíproca deveria ser assentada nos valores cristãos do respeito à pro-priedade e à hierarquia social. No caso das colônias, no fomento à educação ao trabalho como forma de “castigo benemérito” para o “selvagem corpo” do homem africano.

O que uniria os trabalhadores da Europa e da África nos laços hierárqui-cos da subalternidade da relação com os detentores dos meios produtivos seria o princípio da caridade, apresentado no contexto do século XIX como o ver-dadeiro sentimento e elo de ligação que tornaria o trabalho o caminho divino para a ordenação do mundo e a hierarquização de populações.

Essa caridade deveria ser embasada em saberes produzidos sobre as so-ciedades não europeias, os quais deveriam circular e ser conhecidos nas esco-las. Essas informações deveriam apontar que o reverso do desperdício e da

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revolta social era a perdição do mundo colonial, no caos e nas trevas, de uma existência sem a intervenção europeia.

Nesse contexto, saberes, imagens e experiências de África dos missioná-rios começaram a ser ensinados em livros religiosos, textos de história e nos primeiros quadrinhos infantis católicos, os quais celebravam personagens em-blemáticos que representavam o ‘mundo selvagem’. O interlocutor e narrador dessas histórias era, em grande parte, o padre missionário branco.

As crianças que dependiam da educação católica artesanal na Europa, filhas de operários em difíceis condições de vida e crianças africanas nas esco-las de artes e ofícios, aprendiam com o trabalho manual a forma de inserção hierárquica e subalterna, em que as crianças não brancas eram ainda mais subalternas, porque hierarquicamente consideradas mais ‘necessitadas’ que as crianças pobres das periferias do mundo industrial italiano, francês e alemão.

Além disso, a preocupação didática com a infância nas escolas públicas e nas escolas coloniais começou na década de 1930 a ganhar um importante destaque. Autores e autoridades civis e religiosas ligadas ao processo de educa-ção das massas circularam no universo didático das escolas coloniais e da edu-cação dos filhos de operários, e, assim, crianças europeias e africanas aprende-ram os mesmos conteúdos sobre quem eram os seus ancestrais. É celebre o relato de Leopold Sedar Senghor, que veio a ser o primeiro presidente do Sene-gal: ele dizia ter aprendido na escola que “seus antepassados eram os gauleses”.

No universo das colônias britânicas em África havia preocupação com a forte evasão escolar. Uma das razões apontadas era que elas não conseguiam se ver retratadas nos livros de história, que contavam o passado da nação co-lonizadora. A solução adotada foi a de acrescentar, ao final de cada capítulo, uma parte de mitos e fábulas africanos, onde as crianças aprenderiam sobre o seu passado.9 Acreditava-se que com o advento da escola e da administração colonial o ‘genuíno passado africano’ havia sido destruído, e que caberia à escola criar um novo passado para poder envolver e criar condições de con-trole sobre os insubordinados alunos das escolas artesanais e de educação ele-mentar.

Se no sul do Sudão as escolas de artes e ofícios tiveram um papel impor-tante de ordenamento e hierarquização de populações para o êxito do projeto colonial e do trabalho missionário, em Khartum foi criado em 1929 o Combo-ni College, fundamental para formação de quadros administrativos de alto

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nível e da elite local, que teve postos chaves na administração do Sudão no pós-independência, em 1954. No próximo item será analisado o papel dessa escola, bem como suas relações com a criação de quadros políticos que, já no outono do colonialismo na região, foram fundamentais para o processo de transição da independência e para a relação neocolonial com a Inglaterra em meados da década de 1950.

O Comboni College e a administração colonial no fim do colonialismo

Em 1898, o coronel Kitchner derrotou na batalha de Karari as últimas forças do Estado islâmico mahdista no Sudão, que durante 17 anos impusera fortes limites à expansão inglesa no coração da África centro-oriental, além de reveses militares e financeiros.

Coube aos missionários o legado da experiência mahdista de ordenamen-to e hierarquização das populações. Sobre essa herança os ingleses construíram a legislação colonial, e os missionários católicos e suas escolas e missões tive-ram um papel importante na consagração e no aprofundamento de hierarquias de subalternização de populações dentro da administração anglo-egípcia.

Os missionários de d. Comboni herdaram esse legado, sobretudo porque alguns deles e algumas religiosas foram prisioneiros do Estado mahdista e, durante o tempo em que estiveram com o Mahdi, desempenharam o impor-tante papel de mediadores com os demais prisioneiros. Além disso, na intera-ção com o líder Muhammad Ahmad construiriam narrativa e experiências sobre a diversidade das populações que apoiaram o Estado mahdista. Essa participação foi valiosa para a construção das políticas territoriais e de contro-le de população do Sudão, no alvorecer do século XX.

O Comboni College foi criado como uma forma de consagrar a presença missionária, a despeito da não possibilidade expressa de proselitismo. A alter-nativa de abertura de escolas se colocava quando havia impedimento para o desenvolvimento da ação missionária proselitista. No entanto, a presença ca-tólica se adensou e se aprofundou com a escola no meio das elites sudanesas do norte do antigo Sudão.

Esse fato é tão eloquente que coube aos missionários professores do Com-boni College a tutela dos filhos de Muhammad Ahmad até a fase adulta. Além

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disso, os principais quadros da administração colonial e pós-colonial foram formados na escola.

Sobre a experiência de ser aluno de uma importante escola colonial que tinha esse papel de formadora de quadros administrativos e sobre o ensino recebido, gostaria de destacar aqui o belo relato do escritor Chinua Achebe, da Nigéria, que é bem ilustrativo:

Talvez seja mera coincidência, mas os ex-alunos do Government College de Umuahia tiveram um papel destacado no desenvolvimento da moderna literatu-ra africana. O fato de que tantos colegas meus – Christopher Okigbo, Gabriel Okara, Elechi Amadi, Chukwuwmeka Ike, I. N. C. Aniebo, Ken Saro-Wiwa e outros – frequentaram a mesma escola deve chamar a atenção de qualquer um que tenha familiaridade com essa literatura. O que líamos na biblioteca da escola de Umuahia eram os mesmos livros que os garotos ingleses liam na Inglaterra – A Ilha do Tesouro, Os anos de escola de Tom Brown, O Prisioneiro de Zenda, David Copperfield. Eles não falavam sobre nós ou sobre pessoas como nós, mas eram histórias emocionantes. Mesmo histórias como as de John Buchan, em que os homens brancos lutavam heroicamente e derrotavam os repulsivos habitantes nativos, não nos perturbavam no início. Mas tudo isso acabava sendo uma exce-lente preparação para o dia em que teríamos idade para ler nas entrelinhas e fa-zer indagações...10

Os jovens cristãos, que eram poucos, conviviam com jovens muçulmanos do norte e coptas, o que configurava à instituição um ambiente de grande di-versidade étnica e religiosa. O papel dos padres educadores era o de colaborar e formar uma juventude capaz de administrar as condições de coexistência da Igreja com a administração colonial britânica.

O Comboni College tornou-se modelo de ensino e formação de quadros administrativos e da convivência hierarquizante dos diferentes súditos colo-niais. Acreditava-se que a força do exemplo e do convívio de alunos cristãos e não cristãos levaria estes últimos a serem progressivamente “trazidos para o seio da fé correta”, uma vez que esta, além de garantir a salvação da alma, dominava os códigos intelectuais e morais necessários para a inserção na or-dem civilizatória do Império Britânico.

Sobre o papel da escola e a tutela missionária sobre ela, destaca-se o se-guinte depoimento de um antigo professor da Escola, padre Francesco Cazza-

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niga, à Revista Missionária Além-Mar, no ano de 1957, já no contexto da in-dependência do Sudão:

Há quem atribua a salvação das missões no sul do Sudão, durante esse período crítico que estão a atravessar, ao nosso Colégio. O povo e o governo estimam-nos e conhecem-nos só por meio desta obra.

Atualmente estudam na nossa Escola dois filhos do Mahdi; os filhos do ministro das Finanças, do ministro da Saúde, do ministro do Local Government; muitos filhos de deputados, dos chefes da política etc. Muitos dirigentes do país saíram do nosso Colégio. Consequências: benefícios, facilidades, auxílio aos missionários, apreciados e até amados.

Há trinta anos, o povo insultava o missionário, agora já não. Apesar do regula-mento rígido, o povo prefere enviar os filhos ao Comboni College, devido à serie-dade da formação cultural e humana que recebeu nele. Basta ver o horário escolar, para termos uma ideia disso: aulas das 7:10 horas até às 1:30, e das 16:10 h até às 18:30, estudo. Praticamente os rapazes passam o dia inteiro com os missionários.11

No entanto, no alvorecer da década de 1950, marcado por grandes pro-testos e lutas nacionalistas que apoiavam os ideais nasseranistas de fim da presença colonial no Sudão e de união política com o Egito para o fortaleci-mento do pan-arabismo e da luta de independência da Argélia, muitos inte-lectuais muçulmanos oriundos do Comboni College, bem como os que estu-daram na Inglaterra e em outros países do mundo árabe, defenderam a nacionalização de todas as escolas.

A divisão do país, consagrada pela divisão do caráter do ensino – escolas artesanais no sul e o Comboni College no norte –, era identificada como pro-dutora da grande desigualdade e fonte de sustento das ações coloniais. Tal constatação levou os primeiros governantes do Sudão a nacionalizarem as es-colas católicas no país, ação que já vinha ocorrendo em outros países africanos, atingindo também outras congregações missionárias. Diante disso, os Padres Combonianos publicaram no editorial da revista portuguesa Além-Mar, tam-bém de propriedade deles, o editorial intitulado “A Escola na África”, no qual expressaram os seus anseios e preocupações:

Através dos missionários, a Igreja foi a primeira em África a ocupar-se da educa-ção da juventude. A fundação de uma escola era sempre (e ainda é hoje) um meio para introduzir o Evangelho entre as massas pagãs e primitivas. “As escolas ofere-

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Reflexões sobre o ensino colonial em África

cem aos missionários a grande vantagem de estabelecer contatos com o mundo pagão e sobretudo de levar mais facilmente a juventude, maleável como a cera, a compreender, estimar e abraçar a doutrina católica. Estes jovens, assim educados, serão os futuros dirigentes da sociedade, e a massa do povo seguirá as suas orien-tações... E mesmo que desta forma as conversões não sejam frequentes, todavia muitos poderão receber um benéfico impulso considerando a celestial beleza des-ta religião e a caridade dos seus adeptos” (Pio XII – Evangelii Praecones).

Muitas vezes, a Igreja arcou sozinha com todo peso da escola. Encontrando-se com uma vasta rede escolar, “teve um monopólio no campo do ensino, mas não considera como um direito este monopólio que, aliás, nunca pediu (Memorandum dos bispos congoleses para a educação nacional, 1961). Foram as circunstâncias históricas que determinaram esse monopólio.

Hoje a escola católica em África é objeto de crítica por parte dos governos e vê muitas vezes postos em discussão os seus direitos. Em certos casos (Sudão e Congo Brazzaville) viu-se violentamente nacionalizada e os seus edifícios confis-cados sem alguma indenização.12

No entanto, a solução tomada pelo general Nimeri, que governou o Sudão logo após a independência, em 1954, foi a de nacionalizar as escolas, mas de manter a separação educacional no país, através da imposição da arabização da língua e dos costumes, como a única via de participação política, de direito de ingresso nos serviços públicos e de participação nos pleitos políticos.

Diante disso, as escolas católicas existentes no sul do Sudão tiveram o papel de continuar formando a mão de obra braçal que se dedicou ao processo de modernização do país, de construção de estradas e do oleoduto para a exploração do petróleo. Além disso, muitas populações dessa região migraram para os ar-redores de Khartum, em busca de melhores condições de vida e de trabalho, e permaneceram em situação de desabrigo e miséria, por conta da fortíssima con-centração de renda em torno das cidades mais importantes do norte.

Tal forma desigual de construção da nação fomentou os movimentos de separação, o mais conhecido dos quais foi o SPLM, comandado por John Ga-rang. Os Missionários Combonianos tiveram aí grande importância, em razão do apoio e, em diversas situações, do engajamento mais político e mais efetivo no encorajamento a esse movimento, por conta da política de arabização do norte, que resultou também em diversos conflitos com os missionários, expul-sões temporárias e confisco de bens.

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A educação constituída nos moldes coloniais do desenvolvimento sepa-rado foi ressignificada como base para a sustentação da diversidade étnica do sul, que era vista como ameaçada pelo norte.

No processo contemporâneo, cujo ápice foi a separação formal do país em 2010, as missões combonianas no sul e suas escolas foram chaves para a organização, reivindicação política e apoio de infraestrutura para o movimen-to de separação do sul.

As escolas, já na década de 1960, ampliaram-se para o ensino médio, e nos anos 1980 foi criada a Universidade de Juba, com forte apoio dos missio-nários católicos.

O modelo da Igreja foi importante para o desenvolvimento do ensino secundário no sul do Sudão a partir da década de 1960, uma vez que era ne-cessário formar quadros administrativos em níveis mais elevados para susten-tar a presença da Igreja local, do ponto de vista político, e liderar os movimen-tos de contestação da arabização da cultura e da administração geral do país, empreendida pelo governo Nimeri.

Considerações finais

O percurso das escolas artesanais e dos liceus no Sudão foi profundamen-te marcado pelos projetos missionários e coloniais para os diferentes povos desse importante espaço no coração da África centro-oriental.

O ensino das línguas locais e as visões sobre a infância africana eram condicionados ao papel que esperavam para a África dentro da ordem política internacional da primeira metade do século XX. A formação dos artesãos foi bastante enfatizada como forma de se criar uma sociedade alternativa às exis-tentes no local. Contudo, no pós-independência essa orientação é ressignifi-cada, tornando-a um elemento de singularidade de uma “autêntica cultura tradicional não islâmica do sul”.

A produção didática e os prédios das escolas eram a possibilidade de materialização de um projeto de cristandade que não se efetivou pelo contro-le efetivo das sociedades ‘nativas’, mas pelo papel de mediação que os religio-sos estabeleceram com as diferentes populações do Sudão e a ordem colonial britânica, que no Sudão funcionava em regime de condominium com o Egito.

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Como o sentido cristão do trabalho foi o principal conteúdo que marcou as escolas artesanais que surgiram no contexto de estabelecimento de educação para as massas, envolvendo, em muitos casos, os mesmos educadores e autores didáti-cos, constituiu-se ao mesmo tempo, para crianças europeias e africanas, a hierar-quia de trabalhadores brancos e não brancos, e o binômio raça-trabalho tornou-se a chave para a maior ou menor aproximação entre esses dois universos.

A criança proletária e a não branca são aproximadas pela escola e pela educação para o trabalho, na leitura pela qual elas estariam nas periferias das sociedades modernas, no caso das primeiras, e da civilização, no caso de todas as crianças não brancas. Se o trabalho era a ideologia para o combate à “vadia-gem e delinquência” na Europa, no mundo colonial, em especial na África, era a forma de controlar “os instintos e a barbárie”, etapas anteriores à visão capi-talista e racialista de progresso do alvorecer do século XX.

Figura 1 – Prédio da escola de Gezira com o corpo docente, alunos e habilitações re-presentadas – carpintaria, alfaiataria e sapataria. Gezira, 1896. Archivio Fotografico Comboniano – Roma

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Figura 2 – Aula de carpintaria na escola artesanal Saint Joseph. Wau, 1910. Archivio Fotografico Comboniano – Roma

Figura 3 – Sala de aula da escola elementar – Missionários Combonianos, sul do Sudão, 1987. Fundo Nigrizia, localidades Nyala-Kalma-Bielil.

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Reflexões sobre o ensino colonial em África

NOTAS

1 Este artigo resulta de pesquisa sobre o ensino técnico em África, intitulada “Combonia-nos em Carapira: ensino e missão, Moçambique, 1964-1997”, desenvolvida com o apoio da FCT, através do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.2 AZZI, Riolando. Cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987. p.28-33.3 Sobre a história de Malbes, ver: SANTOS, Patricia Teixeira. Regenerar a África com a África: o projeto de evangelização da África central de D. Daniele Comboni, vigário apos-tólico (1864-1881). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000. p.149-160.4 Ver: SCHERMANN, Patricia Santos. Fé, guerra e escravidão: cristãos e muçulmanos face à Mahdiyya no Sudão. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. p.340-381.5 Ver documento do Archivio Comboniano – Roma – ACR A/145/8 – GIORNALE PADRE CASEMIRO GIACOMELLI. (1882-1902). 6 LEBLOND, Marius-Ary. Lavigerie et les Pères Blancs. Tours: Maison Mame, 1938. p.47-50.7 Ver documento do Archivio Comboniano – Roma – ACR A/24/2 – DIARIO COLONIA ANTI SCHIAVISTA – GEZIRA (1894-1905).8 RERUM NOVARUM. Carta encíclica de sua Santidade o Papa Leão XIII sobre as condi-ções dos operários. Trad. Manuel Alves da Silva, SJ. São Paulo: Paulinas, 2002. p.20-21.9 SCHERMANN, Patricia Santos. Educação dos súditos versus a formação do cidadão: em-bates sobre a educação no Sudão. Cadernos Penesb, Niterói, n.8, p.13-35, 2008.10 ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado britânico: ensaios. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.29-30.11 Comboni College. Revista Além-Mar, n.12, p.17-19, jun. 1957.

12 A Voz da Igreja – a escola católica em África. Revista Além-Mar, n.6, p.5, jun. 1966.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 26 de março de 2012.

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As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

The Congo children groups: popular education and experience of Afro-Brazilian culture in Serra (ES)

Michel Dal Col Costa*

ResumoO artigo busca apresentar um pouco da tradição das bandas de congo da cidade da Serra, na Região Metropolitana de Vitória (ES), focalizando especialmente a história da participação das crianças nessas manifestações culturais. Com ba-se em um retrato dessa participação ao longo dos tempos, constituído por ob-servação etnográfica, entrevistas e ou-tras fontes, pretende-se entender me-lhor o trabalho estruturado feito com as crianças nas chamadas “bandas de con-go mirins” da região. Apontam-se al-guns elementos do processo de trans-missão cultural de conhecimentos referentes a essa cultura e mostra-se co-mo tais elementos ainda se valem de formas antigas e tradicionais de ensino da cultura presentes nessas comunida-des. Com isso, apresenta-se a face popu-lar de um ensino não escolar e a vivên-cia da cultura afro-brasileira em um município brasileiro.Palavras-chave: transmissão cultural; banda de congo; crianças.

AbstractThe article seeks to present a little of the tradition of Serra Congo groups, in the Metropolitan Region of Vitória (ES), fo-cusing mainly on the history of the par-ticipation of children in these cultural events. The intention is, from a portrait of this participation over the course of time, made up from the ethnographic observation, interviews and other sour-ces, understand better the work structu-red done with children in the so-called “children Congo groups” of the region. I will point out some elements of the process of cultural transmission of kno-wledge related to this culture, and show how they are still worth of old forms and traditional teaching of culture in these communities. With this, I seek to present a popular face of an education non-school and experience of the Afro--Brazilian culture in a Brazilian city.Keywords: cultural transmission; Con-go groups; children.

* Mestrando em História Social das Relações Políticas. Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Programa de Pós-Graduação em História. Av. Fernando Ferrari, 514 – Campus de Goiabeiras. 29075-910 Vitória – ES – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 157-178 - 2012

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Nos últimos anos, na cidade da Serra, no estado do Espírito Santo, tem ocorrido uma experiência bem-sucedida de ensino de elementos culturais afro--capixabas-brasileiros. Não se trata de uma atuação de técnicos educacionais ou professores formados nas universidades, mas de uma ação realizada, em geral, por indivíduos de outra formação: os chamados ‘mestres do folclore’. Trata-se dos líderes das bandas de congo locais que, depois de um período de atuação autônoma, recebem apoio da administração municipal para desenvol-ver o projeto das bandas de congo mirins, as quais envolvem as crianças de várias comunidades nessa que é uma das mais importantes manifestações do universo da identidade cultural capixaba.

É um projeto que se aproxima das diretrizes indicadas na Carta do Fol-clore Brasileiro, aprovada em 1951, no I Congresso Brasileiro de Folclore, que preconizava a utilização de elementos do folclore na educação, não apenas como conteúdos, mas como elementos para serem vivenciados.1 Um recurso que tem sido utilizado por muitos professores que buscam realizar aulas sig-nificativas do ponto de vista da dinâmica do aprendizado e também por grupos chamados parafolclóricos, que buscam reproduzir as culturas tradicionais.

Este artigo, portanto, tratará de um processo de transmissão cultural em execução nas comunidades congueiras do Espírito Santo, tendo como foco a cidade da Serra, que é um dos municípios da Região Metropolitana de Vitória. Os processos de transmissão cultural estão imbricados na essência do concei-to de cultura como será utilizado aqui, segundo a definição de Darcy Ribeiro em seus Estudos de Antropologia da Civilização:

Cultura é a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo coparticipado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimen-to de subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação ... é uma ordem particular de fenômenos que tem de característico sua natureza de réplica conceitual da realidade, transmissível simbolicamente de geração a geração, na for-ma de uma tradição que provê modos de existência, formas de organização e meios de expressão a uma comunidade humana.2

O conceito de transmissão cultural, implicitamente mencionado por Darcy Ribeiro nessa passagem, tem sido utilizado por João Francisco Souza.

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As bandas de congo mirins: ensino popular e vivência de cultura afro-brasileira na Serra (ES)

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Em artigo publicado na internet intitulado “A Transmissão Cultural”, esse autor o definiu como “processos socioculturais no interior de processos edu-cativos não escolares ou de uma escola pública”.3 Para João F. Souza, tendo como base Otávio Ianni, esses processos teriam dimensões que o configuram como socialização ou como espaços educativos, geradores de uma identidade cultural, pessoal e comunitária, para além da identidade nacional. Seria um movimento educativo que trabalha com a tradição humana ou, com base em Henri Giroux, uma política cultural (Souza, 2009).

Inés Dussel, também trabalhando com a realidade das transmissões cul-turais, apontou que vivemos na atualidade uma crise da transmissão cultural na sociedade. A autora afirma que essa crise se manifesta nas escolas, lócus clássico da transmissão cultural, e pode ser expressa a partir da noção de ‘li-quidez’ de Zygmunt Bauman. Nessa perspectiva, as formas duradouras e está-veis perderam prestígio em um mundo pautado pelo individualismo capitalis-ta. A liquidez cultural existente traz dificuldades para “estabelecer laços coletivos, formas de autoridade tradicionais e pautas de transmissão cultural mais estáveis e duradouras”.4

Fundamentada em Laura Malosetti Costa, Inés Dussel frisa que, para a vivência de uma transmissão cultural efetiva com base em uma cultura comum e que dê sustentação para sair do individualismo e liquidez atual, é importan-te se ter uma relação mais livre com uma tradição. Nessa liberdade, por exem-plo, deve haver um lugar para que a tradição possa ser reescrita. Isto é, a trans-missão cultural, ou ‘reprodução cultural’ (como denominou Pierre Bourdieu), deve ser algo que se aproximaria da definição dada por Peter Burke, “um pro-cesso de criação contínua”.5

Penso que a problemática da transmissão cultural da herança material e imaterial das sociedades na atualidade serve como referencial teórico oportu-no para pensarmos a experiência da formação das bandas de congo mirins do Espírito Santo, uma prática educacional popular não escolar. Neste texto será apresentada uma experiência de transmissão cultural que é um esforço afir-mativo de preservação e reprodução de elementos culturais tradicionais no contexto atual. Em um primeiro momento, resumiremos aspectos fundamen-tais da cultura das bandas de congo capixabas e seus universos de vida. Depois, acompanharemos a evolução da participação e aprendizado das crianças nes-sas comunidades tradicionais. E por fim, serão apresentados elementos do

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processo de transmissão cultural presentes na experiência das bandas de con-go mirins. O foco espacial principal será sempre a cidade da Serra, contudo, serão feitas algumas poucas referências a outras cidades do Espírito Santo, uma vez que a cultura do congo pertence a vários municípios do Estado.

Mas, para visualizarmos melhor essa história, imagino que será de grande valia conhecer um pouco sobre as bandas de congo capixabas e seus universos de vida e também acompanharmos a evolução da participação e do aprendi-zado das crianças nessas comunidades tradicionais.

As bandas de congo e seu ciclo folclórico e religioso

As bandas de congo são grupos musicais de percussão, coro de vozes e dança. Elas existem na Região Metropolitana de Vitória (ES), chegando até seu interior, nas cidades de Anchieta, Ibiraçu e Colatina, dentre outras.6 Podemos dizer que há uma ‘área cultural’ 7 das bandas de congo no Espírito Santo. A sua origem remete aos africanos e indígenas e à influência dos colonizadores por-tugueses, mas a origem temporal é difícil de determinar com exatidão.8

A parte da percussão é muito rica e variada. Os grupos são formados por vários homens tocando tambores com as mãos, sendo utilizadas baquetas so-mente pelos tocadores de bumbo e de caixa. Esses tambores são diversificados, pois existem os de marcação ou de base e os de repique. Há ainda um instru-mento denominado ‘cuíca’, que, ao que parece, é uma forma rústica e primi-tiva das modernas cuícas utilizadas no samba. O chocalho e o triângulo tam-bém são usados. No conjunto, todos esses instrumentos geram um efeito muito interessante.

Um instrumento que merece destaque especial é a chamada ‘casaca’ ou ‘reco-reco’,9 sua denominação mais usual em todo o mundo. Toca-se a casaca raspando os seus dentes feitos de bambu com uma varinha. A casaca possui uma cabeça humana esculpida na extremidade superior. São vários os tocado-res de casaca, que, com os outros instrumentos, produzem uma sonoridade muito interessante e rica.10

As canções trazem expressões de inúmeros temas referentes à realidade e à natureza locais: canções de amor à mulher e sobre a vida cotidiana da comu-nidade e da família; assuntos referentes às próprias bandas de congo e sua função; temas do passado das comunidades onde estão os grupos; e, acima de

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tudo, temas de louvor, agradecimento e honra aos santos da Igreja aos quais rendem homenagens. A homenagem aparece também nos estandartes de cada grupo, podendo haver estandartes de dois santos, ou mais, na mesma banda.11

Na cidade da Serra essa cultura é muito forte, e é essa a área cultural que possui o maior número de grupos em todo o Espírito Santo. Em sua grande maioria, esses grupos são organizados e administrados pelas suas comunidades e pela Associação das Bandas de Congo da Serra (ABC-Serra). Fundada em 1986, é uma entidade criada para organizar, proteger e fortalecer os grupos e lutar por seus direitos dentro da municipalidade, junto à sociedade e ao Poder Público.12

Citemos algumas das inúmeras denominações de bandas de congo do município da Serra: Banda de Congo de Nossa Senhora da Conceição, de Ja-caraípe; Banda de Congo de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, do bairro Pitanga; Banda de Congo de São Sebastião e São Benedito, de Nova Almeida; Banda de Congo de São Benedito, de Santiago; Banda de Congo Folclórico de São Benedito, do Bairro São Domingos, na região da Serra Sede; Banda de Congo de Santo Expedito, também do Bairro São Domingos; Banda de Congo Konshaça, de Serra Sede; e Banda de Congo São Benedito, do bairro Campinho da Serra.

Uma das festas da Serra Sede, a de São Benedito, é tida como a mais im-portante, e ocorre no mínimo desde meados do século XVIII,13 sendo consi-derada uma das maiores festas dedicadas a São Benedito no Espírito Santo. Em seu ritual há, em resumo, um cortejo festivo que percorre as ruas do Centro da Serra, nas proximidades da Igreja Matriz, com a finalidade de celebrar São Benedito, culminando com a fincada de um mastro com a bandeira do santo em frente ao templo.

Ocorre um ritual em torno desse mastro. No início da preparação dos festejos, o mastro é cortado pelo povo, capitaneado por Mestre Expedito,14 da Banda de Congo de Santo Expedito, de São Domingos. Depois, essa madeira, ainda verde,15 é puxada simbolicamente por uma junta de bois, que são enfei-tados e acompanhados por um cortejo do povo e de cavaleiros.16 Trata-se de um cortejo preparatório para o que ocorre nos dias 25 e 26 de dezembro, quando o mastro, já preparado, é posto dentro de um navio com rodas e pu-xado pelas ruas da cidade, até ser fincado no dia dedicado a São Benedito, 26 de dezembro. Esse ciclo anual do ritual, portanto, se inicia com o corte da

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madeira na mata e é fechado com a Celebração da Retirada do Mastro, meses depois de ter ficado exposto em frente à Igreja Matriz, no domingo da Páscoa.

Este pequeno resumo da Festa de São Benedito da Serra Sede mostra um pouco do principal palco no qual se apresentam as bandas de congo. O povo realiza esse ritual há mais de um século, como devoção e cumprimento de promessas pessoais a São Benedito e em agradecimento por um milagre que o santo negro teria operado no litoral de Nova Almeida, ao salvar um grupo de escravos de um naufrágio, como conta a explicação tradicional e popular da origem dessa festa folclórica.17

Há festas semelhantes em inúmeras outras localidades do município da Serra em que as bandas de congo são presença marcante, como Santiago, Pi-tanga, Manguinhos, Jacaraípe e Nova Almeida, e também em outras cidades da Grande Vitória e do interior. Todas são dedicadas aos santos da Igreja Católica, como Nossa Senhora do Rosário, que em Pitanga é celebrada em outubro, junto a São Benedito; São Pedro, em Jacaraípe, e Santana e São Se-bastião, em Manguinhos. São Sebastião também é celebrado em Nova Almei-da e Santiago, junto a São Benedito (Costa, 2008-2011).

Todo esse conjunto de festas parte de um mesmo conceito ritualístico, compondo o “Ciclo Folclórico e Religioso da Serra”, como se costuma deno-minar o complexo dos rituais das bandas de congo do município (Costa, 2010).

Basicamente, esse relato é a herança cultural vivida no processo sociocul-tural de transmissão cultural operado na formação das bandas de congo mirins do município da Serra e também em outros espaços educacionais. Mas esse processo de ensino não escolar de uma cultura afro-capixaba-brasileira que tem sido estruturado no projeto das bandas mirins na atualidade já existia anteriormente, mediante formas tradicionais de transmissão de conhecimen-to e de participação das crianças nessas práticas. Assuntos de que trataremos nas seções seguintes.

Processo histórico de participação das crianças nas bandas de congo da Serra

É antigo o caminho de trabalho ou de envolvimento das crianças cantan-do, dançando e tendo contato com os instrumentos nos grupos de congo no município da Serra. E isso certamente remonta aos primórdios desses grupos,

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na época colonial. A forma cultural das bandas de congo, no caso, é mais an-tiga que os rituais da fincada do mastro, descrito resumidamente linhas atrás, que surgiu já no século XIX, depois da independência do Brasil. Podemos periodizar a participação das crianças em várias fases da trajetória histórica desses grupos na cidade.

A primeira fase da história desses grupos pode ser chamada de ‘espontâ-nea’. Acredito ser talvez a mais longa de todas as etapas, já que algumas de suas características perduram até a realidade atual, quando vivemos outro momento histórico. Recebe a denominação de ‘tempo de participação espontânea’ por-que remonta a um momento em que ainda não havia estruturas organizadas de ensino, entendidas como papéis específicos dentro das comunidades para esse trabalho. Hoje, o trabalho com as crianças nas bandas de congo está es-truturado com base na Associação de Bandas de Congo (ABC-Serra), graças a uma lei municipal que a regulamenta, e envolve os coordenadores dos grupos, instrumentos e indumentárias próprias para as crianças, grupos mirins oficiais etc. Enfim, há toda uma estrutura de aprendizado e de vida direcionada para as crianças, que não existia no período histórico que se denomina primeira fase, ‘espontânea’.

Podemos dizer que, na fase espontânea, aos pais, mães, parentes e mem-bros sábios da comunidade cabiam as relações de ensino com as crianças, e isso certamente acontecia muito mais por meio do processo de imitação e participação livre nos momentos em que os adultos estavam vivenciando a prática cultural.18

O trabalho com as crianças nessa fase primeira estaria relacionado com ligações familiares e apegos a determinado aspecto cultural. Para entender o processo de relação das crianças com a cultura da música das bandas de congo é preciso ter como pano de fundo as formas antigas de transmissão cultural adotadas pelas tribos indígenas e pelas próprias tribos africanas, que foram as construtoras dessa arte. Esta é uma hipótese inferida da história desses grupos. Na atualidade, as coisas andam de forma diferente, mas evidentemente com permanências dessa primeira fase.

Temos notícias, graças à história oral, de que na década de 1940 ocorreu na Serra um momento histórico importante: a experiência da Banda de Congo de Antônio Rosa, formada por garotos e amigos, o chamado “Conguinho”. Desse grupo participou Mestre Victor Sacramento, muito antes de se tornar

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mestre e entrar na Banda de Congo Folclórico São Benedito, importante gru-po da Serra.19 Podemos denominá-la de fase ‘espontânea organizada’, pois, segundo consta, foi uma iniciativa dos próprios jovens, e de uma forma mini-mamente organizada, como ficou na memória dos entrevistados.

Nessa época, as crianças participaram como agentes específicos, mas de forma localizada, sem um projeto mais amplo como temos na atualidade. Ho-je, há um projeto integrado entre a Associação das Bandas de Congo da Serra, a Prefeitura Municipal e as comunidades das bandas de congo, envolvendo toda a cidade. O período histórico que unia a espontaneidade da primeira fase e princípios iniciais de organização marcou um novo momento histórico, quando o grupo de meninos do pequeno meio urbano da Serra se reuniu e formou uma banda de congo para sair tocando pelo povoado, como um tipo de imitação das bandas adultas.

Eles só podiam fazê-lo porque foram capazes de organizar o conhecimen-to proveniente de suas percepções e experiências dentro dessa cultura da Ser-ra e o aplicaram. Arrumaram meios de construir os instrumentos e fizeram esses grupos, ao que parece, sem acompanhamento adulto. Uma informante disse que esse grupo foi formado pelo antigo festeiro da cidade, o senhor João Rosa Machado, pai de Antônio Rosa, na época um dos jovens congueiros, mas isso não foi mencionado pelos demais entrevistados.

A terceira fase histórica da participação das crianças na cultura das bandas de congo pode ser denominada de fase ‘organizada de projetos-piloto’. Nela, ocorrem iniciativas que buscaram viver o ensino da cultura das bandas de congo de modo fragmentado, ao sabor das vontades e iniciativas culturais de alguns mestres de congo locais, preocupados com o futuro dessas manifesta-ções folclóricas. Dentre esses professores de congo, podemos citar o Mestre Vacinto Rosário Bento, o Zé Bento de Nova Almeida, e o professor José Carlos de Miranda Filho, o Zé Carlos da Banda Konshaça, de Serra Sede. Este último foi o que podemos chamar de precursor, com a banda que formou para parti-cipar da parada militar anual na Serra, no início da década de 1980. Segundo Zé Carlos, essa banda foi formada por um conjunto de instrumentos que ele construiu para o evento, que emocionou a todos com a encenação da Festa de São Benedito da Serra em plena “Parada das Escolas”. Zé Carlos ainda chegou a montar, na década de 1980, a banda mirim do Bairro Santo Antônio, que não foi adiante, mas recentemente foi reativada.20

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O trabalho do professor Zé Carlos continua na atualidade. Ele está coor-denando o Projeto Congo na Escola, com grupos formados na Escola Serrana e na Escola Municipal de Educação Infantil “Mônica”, ambas na Serra Sede (Figura 1). Os grupos se apresentam nas escolas, possuem indumentária espe-cial e instrumentos próprios.

Figura 1 – Projeto Congo na Escola. No alto, à esquerda, o professor Zé Carlos. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

Já o Mestre Zé Bento montou um projeto inovador por volta de 1984, que até hoje dá seus frutos. Ele o executou com o aval de Mestre Antônio Rosa,21 que, na época, o havia sondado para a formação de mais uma banda em Nova Almeida. Zé Bento prontamente aceitou, mas com a condição de que realizaria um trabalho com as crianças da comunidade. Disse que seria interessante rea-lizar tal trabalho, pois estariam pensando no futuro da tradição, formando congueiros para conduzir a cultura no futuro. Mestre Antônio Rosa entendeu que seria interessante e bom. Com isso, Zé Bento formou a “Banda de Congo União Jovens dos Reis Magos”. Esse projeto está operante até hoje e já formou vários congueiros adultos e grupos juvenis.

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Zé Bento ainda trabalhou nessa área com crianças no Projeto Gaivotas de Nova Almeida –Serra (Figura 2) e com crianças carentes no Bairro São Pedro, em Vitória.22

Figura 2 – Projeto Gaivota. Ao fundo, Mestre Zé Bento. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

A partir do final da década de 1990 surgiu uma nova fase histórica, que chamarei aqui de ‘estruturada’. Foram constituídos papéis estruturais especí-ficos, como por exemplo a figura dos coordenadores das bandas mirins, que deram impulso aos novos trabalhos dos mestres das bandas de congo adultas. Constituíram, assim, relações novas no interior das comunidades, inserindo-as em situações e possibilidades nos campos da tradição, da arte de seus ancestrais e em sua história. Podemos dizer que a reprodução da cultura das bandas de congo, através da passagem do conhecimento entre as gerações, ganhou um impulso fenomenal.

A grande responsável pela realização do projeto das bandas mirins da atualidade junto às crianças da Serra é a Associação das Bandas de Congo (ABC-Serra). A entidade firmou parceria histórica com a Prefeitura Municipal no alvorecer do novo milênio, quando se estabeleceu que as bandas de congo

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da Serra receberiam um benefício financeiro, com a contrapartida de realiza-rem um trabalho estruturado junto às crianças da comunidade e formarem grupos de crianças aprendizes como parte de suas bandas. Outra contraparti-da seria o fato de os meninos e as meninas serem devidamente matriculados no ensino regular.23

Temos, portanto, segundo nosso modo de interpretar, quatro fases da história das crianças nas bandas de congo da Serra: fase espontânea (dos pri-mórdios no período colonial até a década de 1940); fase espontânea organiza-da (década de 1940 até o início da década de 1980); fase dos projetos estrutu-rados pilotos (décadas de 1980 e 1990), e a fase estruturada (final da década de 1990 até a atualidade). Todas as fases são importantes e foram se organizando ao longo da história até chegar à atual, mantendo muitos elementos das fases antigas.

O ensino que se observa na fase estruturada da atualidade vale-se, na prática, das experiências acumuladas ao longo dos anos, da força dos ambien-tes familiares dos congueiros, das relações de amizade e das comunitárias pró-ximas, entre outros fatores. E quem em geral organiza, ensina e realiza o projeto das bandas mirins são os mestres das diversas bandas de congo. E esses mestres, na sua história de vida, participaram de formas de ensino antigas e tradicionais de suas comunidades. Com isso, eles utilizam na sua atuação, práticas de ensino que foram importantes em suas próprias trajetórias.

É interessante mencionar que a cidade da Serra, bem como a Região Me-tropolitana da Grande Vitória como um todo, a partir da década de 1970 pas-sou por transformações tremendas em sua realidade. O município que até essa década tinha menos de 20 mil habitantes passou rapidamente ao montan-te de mais de 400 mil, como se contabilizou no censo de 2010 do IBGE. Isso se deve ao processo de industrialização iniciado na década de 1970, que mudou a realidade de uma cidade basicamente ligada às atividades rurais, tornando-a um dos maiores centros migratórios do Espírito Santo. Vieram famílias de Minas Gerais, da Bahia e de outras regiões do Brasil, ou seja, pessoas que não tinha ligações com a cultura tradicional da cidade. Foi nesse contexto que, na década de 1980, quando começaram muitos loteamentos regulares e irregula-res e apareceu o fenômeno da favelização, os problemas sociais se tornaram marcantes e surgiram as primeiras iniciativas de trabalho com as crianças no sentido de preservação da cultura tradicional das bandas de congo. Essas ini-

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ciativas piloto foram sendo aperfeiçoadas até chegarem à fase estruturada que está sendo vivenciada efetivamente desde o ano 2000.

Bandas mirins

As crianças são inscritas nos projetos das diversas bandas de congo tradi-cionais adultas da cidade da Serra. Geralmente são coordenadas pelos mestres dos grupos adultos, com a coparticipação de coordenadores específicos esco-lhidos nas comunidades para cuidar do aprendizado, dos encontros de ensaio e das apresentações.

Nos encontros previamente marcados se ensinam elementos básicos das bandas de congo, de acordo com os costumes de cada comunidade. As crian-ças aprendem as letras das canções tradicionais e as melodias, apesar de, pela própria experiência, poderem já ter tido algum contato com as toadas tocadas pelos grupos adultos. Aprendem a história do congo e suas tradições e adqui-rem conhecimentos sobre o instrumental.

Cada congueirinho, com idade entre 3 e 14 anos, passa por uma avaliação, para saber qual instrumento vai tocar. Os mais desenvoltos, que aprendem a tocar vários instrumentos, aprendem também a função de mestre ou capitão do grupo e ficam incumbidos de governar o conjunto, organizando os instru-mentistas para que todos toquem dentro do ritmo, cadência e entonação cor-reta. Em geral, esses pequenos mestres utilizam um apito (como os grupos adultos) para auxiliar na organização da orquestra de percussão e das vozes em coro, que são a marca da música das bandas de congo.

Passam o ano se encontrando para conversar, aprender e ensaiar, prepa-rando as diversas apresentações que fazem em eventos e escolas, apresentações estas para as quais são encaminhados pelos seus coordenadores e pela própria ABC-Serra. Os pontos altos de suas apresentações são os Encontros de Bandas de Congo Mirins da Serra e o de Nova Almeida, bairro da cidade. O primeiro ocorre todo dezembro nas ruas da Serra Sede; o segundo é realizado em janei-ro, nas imediações da Igreja Jesuítica dos Reis Magos.24 Esses encontros não possuem data fixa e já se deram em vários dias desses meses. O importante é que ocorram em dezembro e janeiro, como uma das partes dos festejos de São Benedito da Serra Sede (dezembro) e de São Sebastião e São Benedito de Nova

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Almeida (janeiro). O Encontro de Bandas Mirins da Serra Sede, o mais antigo, em 2012, vai para a sua 12ª edição, e o de Nova Almeida é mais novo.

Nesses encontros tudo começa por volta das 18 horas, com a chegada dos grupos em ônibus particulares. Com suas indumentárias, as crianças chegam de diversas partes da Serra e de outros municípios. Vêm de São Domingos, de Campinho da Serra, de Pitanga, de Santiago, de Manguinhos, de Jacaraípe, de Nova Almeida, de Bicanga e, em geral, do município de Fundão, que prestigia o encontro serrano com a Banda de Congo Mirim do Distrito de Timbuí e com outros grupos.

Em geral, na Serra Sede a concentração da criançada ocorre na Escola Estadual de Educação Fundamental e Média Professor João Loyola, onde sa-las de aula são separada para os grupos. Os momentos iniciais desse evento são muito interessantes, pois enquanto esperam o início das atividades, os membros dos grupos de congo mirim ficam se divertindo com os instrumen-tos no pátio da escola. É uma ‘festa’ em todos os corredores, nas salas e na quadra de esportes do colégio, que serve de local para brincadeiras, correrias e convivência da criançada. Todos chegam muito alegres, com batuques e cantigas, e essa alegria permanece nos momentos que antecedem as atividades do evento (ver Figura 3).

Dentre os grupos mirins da Serra, os que mais têm participado dos en-contros são: Banda de Congo Mirim União Jovens dos Reis Magos, de Nova Almeida; Banda de Congo Mirim de Sant’Ana, de Manguinhos; Banda de Con-go Mirim São Pedro, de Jacaraípe; Banda de Congo Mirim Santo Antônio de Pádua, de Bicanga; Banda de Congo Mirim Nossa Senhora do Rosário, de Pitanga; Banda de Congo Mirim de São Benedito e Nossa Senhora da Concei-ção, de Campinho da Serra II; Banda de Congo Mirim São Benedito e Santo Antônio de Pádua, do Bairro São Domingos (Figura 3); Banda de Congo Konshacinha de Santo Antônio; e Banda de Congo Mirim São Benedito, de Santiago – Serra.25 Esses grupos (como as bandas adultas mencionadas no início do artigo) e seus respectivos povoados expressam a mancha demográfi-ca da Serra antiga, aquela que tinha menos de 20 mil habitantes até a década de 1970. Em torno dessas comunidades foram surgindo novos bairros e lotea-mentos, fazendo a mancha demográfica do município crescer enormemente. Os projetos das bandas mirins têm, contudo, envolvido de diversas formas

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pessoas ligadas ao processo migratório, e não só as pessoas vinculadas aos po-voados antigos do município.

É muito interessante ver o amor, o carinho e o cuidado com que os mes-tres como o sr. Antônio Freitas e coordenadores como Valdirene, ambos do Bairro Santiago (Figura 4), tratam o grupo de meninos e meninas e os rituais e costumes da cultura que representam. E a criançada, até mesmo durante o lanche, fica o tempo todo tocando os instrumentos, formando pequenos gru-pos, com a alegria de estar realizando um trabalho coletivo, musical, orquestral, enfim, cultural.

Figura 3 – A Igreja-Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Serra, em frente da qual ocorre a Fincada do Mastro com a Bandeira de São Benedito todo dia 26 de dezembro, ao som da música das ban-das de congo e da Banda Estrela dos Artistas. Em primeiro plano, como dançarina, a sra. Lolinha, viúva do festeiro Mestre Antônio Rosa, grande liderança do folclore no Espírito Santo. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

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Figura 4 – Região Rural de Santiago, no limite da Serra com Fun-dão. À direita, ao fundo, a coordenadora e rainha da Banda de Congo São Benedito de Santiago. Atualmente ela é a presidente da ABC-Serra. Fonte: CD das Bandas de Congo da Serra: “Congo. O Canto da Alma. Volume 2”. Foto: Edson Reis.

Na Serra, as apresentações dos grupos começam em um momento que precede o desfile pelas ruas principais do povoado que vai até a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. No VIII Encontro de Bandas Mirins de 2008, todas as crianças tocaram no centro da quadra de esportes do colégio, enquan-to foram apresentadas por Ramiro Pelissari, locutor do evento (coordenador da Banda Mirim São Benedito e Santo Antônio de Pádua e seu mestre do tempo da fundação). Depois disso, saem pelas ruas em fila, como no cortejo da Festa de São Benedito, porém de forma diferenciada do ritual tradicional.

Em termos indiretos, há muita ligação das bandas de congo da Serra com a vida do ritual sagrado, pois esses meninos e meninas certamente poderão, com o tempo, ser os futuros músicos das bandas de congo. É interessante mencionar que, em termos de repertório, as canções das bandas mirins, em geral, também são tocadas pelos grupos oficiais na Festa de São Benedito da Serra e nas outras festas. O que observamos é o embrião de um repertório

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próprio da festa nas bandas mirins, que aprendem nos ensaios e encontros, diferente do repertório da festa tradicional.

O repertório das cantigas é um elemento estrutural para as bandas adultas e também para o método de ensino dos mirins. Ao ensinar o ritmo e o reper-tório tradicional, os coordenadores e mestres dos mirins passam um conceito do que é a banda de congo e, com isso, inserem os pequenos na própria tradi-ção das comunidades.

Uma experiência de transmissão cultural

No desfile das bandas mirins, as crianças são, de certa forma, iniciadas em um tipo de experiência de apresentação que se faz geralmente pelos adultos: o cortejo andando e tocando pelas ruas da cidade. Certamente muitos dos me-ninos já haviam passado pelo contato com essa atividade ao observarem as bandas adultas.

A experiência dos desfiles é interessante para os participantes em termos de aprendizado geral da cultura das bandas de congo, pois é um momento no qual os pequenos vivenciam a cultura, pois tocam com pessoas observando a apresentação, dançando e cantando enquanto acompanham o cortejo. E isso dá aos meninos e meninas um pouco da essência do espírito de uma apresen-tação pública como em geral é realizada tradicional e costumeiramente pelas bandas de congo adultas. Uma experiência como essa é primordial para dar o entendimento para os pequenos sobre a prática dessa cultura e sobre suas formas de apresentação.

Daí surge esta questão: o que é preciso para a formação de um músico de banda de congo ou de um participante geral dessa prática? Uma resposta a comunidade certamente já tem: é viver desde a infância junto aos familiares e membros da comunidade dessa cultura, treinar, aprender as músicas, viver a religiosidade, conhecê-la e se apresentar em encontros como esses, onde se reproduz o ritual dos adultos. É interessante também frisar que essa prática já revelou bons frutos em várias comunidades, pois vários mirins já foram com-por as apresentações com os adultos, e muitos jovens já estão se apresentando com reconhecida competência. É o caso do próprio neto de Antônio Rosa, Ramiro, coordenador da sua antiga banda mirim e membro da Banda de Con-go Folclórico São Benedito, ou dos muitos componentes da Banda Jovens em

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Prol da Cultura, que foram músicos na União Jovens dos Reis Magos de Nova Almeida. É, também, o caso da Banda Jovens de Manguinhos e da Cultura Congo de Bicanga, composta em parte por jovens músicos que cresceram acompanhando os projetos das bandas de congo mirins do Convênio ABC/PMS, instituído em 1999.26

Um dos aspectos que pude observar nos cortejos e apresentações é que as bandas de crianças ainda não possuem a potência completa verificada na adul-ta ou mesmo nas de jovens, sem deixarem, no entanto, de ser animadas e alegres. Em especial no cortejo da Banda de Congo Mirim São Benedito de Santiago, algumas das crianças foram acompanhadas de perto pelos pais, por coordenadores, ou mesmo por alguns músicos mais velhos, para ajudar no acompanhamento dos instrumentos e no cantar. E esses adultos iam dando aos pequenos um apoio, pois estes se tornavam o centro das atenções. A ideia era fazê-los alcançar, naquela situação nova, da caminhada cantando, um bom nível de musicalidade. Mestre Antônio Freitas ordenava, com sua casaca, dan-do ritmo e firmeza aos mirins. Os mais velhos animavam os pequenos nesse sentido, com evidente respeito aos tamanhos, idades e experiências.

Houve um momento em que Valdirene, pacientemente, parou de cantar em sequência, como vinha ocorrendo, e fez os tocadores de casaca ficarem só marcando suavemente o ritmo, numa espécie de exercício de aprendizado que eles devem sempre fazer. E os tocadores dos outros instrumentos também fi-caram levemente acompanhando, sem cantar nenhuma canção. E andaram assim, como se estivessem fazendo uma espécie de aquecimento e de trabalho de harmonia, para que houvesse a evolução que eles queriam desde o início.

No grupo de crianças, observa-se um núcleo mais desenvolvido em torno do mestre mirim do apito. Em torno desse grupo há outro mais jovem, que está ainda se inteirando da musicalidade do congo. Isso é dito sem o intuito de minorar o resultado coletivo da banda mirim, uma vez que o seu conjunto, sem exceção, é importante para o todo das canções em execução. Mas, ao que parece, o tocador de bumbo (que é um instrumento importantíssimo para a banda de congo, pois dá a sustentação e a base para o todo do conjunto, como vários congueiros reconhecem) tem peso preponderante no núcleo forte do grupo, para a música ecoar de forma mais solta. O tocador de bumbo, ao que parece, é fundamental no trabalho de montagem de uma banda mirim, e mes-mo de uma banda adulta ou de qualquer idade. Por isso, ele deve ser escolhido

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de forma diferenciada entre os garotos. Ele é um elemento central da banda, uma espécie de animador forte do grupo.

Considerações finais

A experiência da parceria entre a Associação de Bandas de Congo (ABC--Serra) e o Poder Público, especialmente a Prefeitura Municipal da Serra, tem sido considerada pelos analistas como um exemplo a ser seguido pelos diversos municípios onde os mestres populares e outros agentes culturais têm buscado o mesmo sucesso. Dentre os inúmeros resultados positivos verificados ultima-mente na Serra, como a aquisição dos recursos para fazer manutenção nos vestuários e nos instrumentos, ou mesmo a construção da Sede da ABC-Serra, que está sendo finalizada, é no trabalho com as crianças que está o maior or-gulho da cidade.27 Nesse trabalho revela-se um esforço por manter a tradição viva entre as gerações em uma época na qual as mudanças sociais e econômi-cas decorrentes dos processos de globalização e metropolização têm trazido desafios para essas comunidades tradicionais.

Em geral, as autoridades estabeleceram no convênio que, ao receber os recursos financeiros, a ABC-Serra daria como contrapartida um trabalho jun-to às crianças no sentido de formarem bandas de congo de crianças e jovens em suas comunidades tradicionais. O resultado entre esses jovens, muitas ve-zes ligados a uma cultura urbana, é de fazer frente ao enfraquecimento das tradições culturais, promovendo a proteção e a difusão do patrimônio material e imaterial das bandas de congo e de suas festas, no interior das comunidades tradicionais e da cidade em geral.

Os líderes do folclore se valeram de uma cultura já existente no local e de garotos que tinham alguma inserção espontânea na cultura das bandas de con-go. Recorreram, ainda, a um cabedal de organização também já existente em algumas iniciativas que deram sentido à formação desse processo estruturado de transmissão cultural dos conhecimentos necessários para introduzir os jo-vens nessa cultura afro-capixaba-brasileira.

Há alguns avanços nessa estruturação, tais como: a fabricação de instru-mentos de proporções menores, próprios para as crianças, que, com a fundação da Oficina de Instrumentos da ABC-Serra, foi dinamizada e facilitada; a estru-tura organizativa dos coordenadores, que sempre fazem reuniões avaliativas;

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a organização dos encontros; a providência sobre transporte e alimentação, e ainda os belos vestuários dos meninos e meninas que tocam os instrumentos e das dançarinas, que utilizam vestidos longos para rodopiarem enquanto dan-çam carregando seus estandartes.

No entanto, pelo que temos observado até o momento, não foi regula-mentado coletivamente um conjunto de estratégias e técnicas específicas para o desenvolvimento do projeto. A formação das bandas de congo mirins ficou sob a responsabilidade e sabedoria dos mestres e das comunidades. Cada uma criou estratégias próprias, o que fez gerar uma diversidade de resultados entre as comunidades.

Na parte técnica do aprendizado, há grande autonomia para os diversos coordenadores no sentido de trabalharem da forma que acharem melhor. Es-se ponto final pode ser considerado positivo, mas certamente a troca de expe-riência entre os diversos coordenadores também pode trazer bons frutos.

NOTAS

1 CARTA do Folclore Brasileiro. Folclore. Órgão Informativo da Comissão Espírito-Santen-se de Folclore, jul.-dez. 1951, p.25. Para uma discussão sobre os congressos e estratégias do movimento folclórico brasileiro ver VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movi-mento folclórico brasileiro, 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte; Fundação Getúlio Vargas, 1997, especialmente cap. 4.2 RIBEIRO, Darcy. Estudos de Antropologia da Civilização. Teoria do Brasil. Livro I. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p.139, grifos meus.3 SOUZA, João Francisco. A transmissão cultural. Sociopoética, ISSN 1980 7856, v.1, n.3, jan.-jul. 2009. Disponível em: eduep.uepb.edu.br/sociopoetica/publicacoes/v1n3pdf/02_joaofrancisco.pdf; Acesso em: 21 dez. 2011.4 DUSSEL, Inés. A transmissão cultural assediada: metamorfoses da cultura comum na escola. Trad. Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.137, p.351-365, maio--ago. 2009. p.358. Disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v39n137/v39n137a02.pdf; Acesso em: 21 dez. 2011.5 BURKE, Peter. O que é história cultural? Trad. Sergio Goes de Paula. 2.ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p.130. Peter Burke cita ainda que seria um processo de reconstrução, aquilo que Lévi-Strauss chamou de bricolage, e de Certeau, de reutilização.6 BANDA DE CONGO Amores da Lua. 50 anos. CD de áudio. Vitória (ES), 1999; NASCIMENTO, Adriano Roberto Afonso; MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Canto de tambor e sereia: identidade e participação nas Bandas de Congo da Barra do Jucu. Vitória

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(ES): Edufes, 2002; BARROS, Paula Guedes. Banda de Congo da Barra do Jucu/ Estado do Espírito Santo. Folheto 4. Sub-Reitoria Comunitária/ Coordenação de Folclore. Vitória, 1983; MAZOCO, Eliomar Carlos. O congo de máscaras. Vitória: Edufes, 1990.7 A noção de ‘área cultural’ vem de Franz Boas, que a utiliza em seu método comparativo em Antropologia Cultural. Ela se refere a um território geográfico onde se manifestam traços culturais de uma determinada forma cultural específica. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Org., Apresentação e Trad. Celso Castro. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.8 Alguns estudos se debruçaram sobre a história das bandas de congo. Sobre isso ver NEVES, Guilherme Santos. Bandas de Congos. Cadernos de Folclore. Rio de Janeiro: MEC/Secretaria de Assuntos Culturais/Funarte, 1980, n.30; e COSTA, Michel Dal Col. As Ban-das de Congo da Serra e seu ciclo folclórico e religioso: princípios de sua etnografia e histó-ria. Relatório de Pesquisa em poder do autor. Associação de Bandas de Congo da Serra (ABC-Serra), 2010.9 Há alguns anos, a Serra recebeu a visita de pesquisa de Carlos Stasi, estudioso na área musical, especialista em instrumentos de raspar, os chamados reco-recos, do Centro de Raspadores, sediado em Campinas (SP). Ele atestou em suas pesquisas pelo mundo a espe-cificidade dos reco-recos capixabas, considerando-os únicos em sua forma. O folclorista capixaba Guilherme Santos Neves defendia a tese de esse instrumento ser uma contribui-ção indígena, e sobre isso ver NEVES, Guilherme Santos. Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba. 1944-1982. 2v. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo, 2008, especialmente v.2, p.219-228.10 Para uma descrição detalhada dos instrumentos das bandas de congo do Espírito Santo, ver especialmente a Segunda Parte de LINS, Jaceguay. O Congo do Espírito Santo: uma panorâmica musicológica das bandas de congo. Vitória: s.n., 2009.11 Para se ter um contato direto com as toadas das bandas de congo ver os CDs das bandas de congo da Serra: BANDAS de Congo da Serra. O Canto da Alma – v.1 e 2. CD de áudio. Associação das Bandas de Congo da Serra – ABC-Serra. Serra, s.d.; BANDAS de Congo da Serra. O Canto da Alma – Homenagem ao Mestre Antônio Rosa. CD de áudio. Associação das Bandas de Congo da Serra – ABC-Serra. Serra, s.d. Para adquirir esses CDs e instru-mentos próprios das bandas de congo entrar em contato com a ABC-Serra pelo telefone (27) 9961-5246. Ver ainda NEVES, 1980, e LINS, 2009, especialmente a terceira parte, on-de o autor trata da melodia das músicas desses grupos.12 Recentemente, a ABC-Serra recebeu, das mãos do então presidente Luis Inácio Lula da Silva e do ministro da Cultura Gilberto Gil, a Comenda do Mérito Cultural, por grandes serviços prestados à cultura brasileira.13 Época em que foi fundada a Matriz e Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Serra, no Centro da Sede, onde até hoje se celebram missas e ocorre toda a vida da comunidade católica da região. É em frente a essa igreja que o Mastro de São Benedito é fincado todo ano.14 ANDRADE, Expedito. Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa no Jardim Guana-bara, Serra (ES), 2003.

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15 Geralmente, em matas próximas à comunidade é colhida uma árvore chamada na região de ‘guanandi’, que é previamente trabalhada pelos festeiros até o ponto em que, como mastro simbólico, vai ser puxada em cortejo pelo itinerário tradicional do festejo. COSTA, Michel Dal Col. Cadernos de registro de observação de campo. Serra (ES), 2008-2011. (Mi-meogr.).16 Tradição similar aos cavaleiros da Festa de São Benedito da Serra ocorre na cidade de Aparecida (São Paulo), em sua Festa de São Benedito. Lá eles também fincam um mastro em frente à Igreja de São Benedito, e o cortejo é acompanhado pelos ‘Cavaleiros de São Benedito’. Na Serra, existe uma explicação para esse elemento: os cavaleiros representam os capatazes e senhores de escravos, que, no início, acompanhavam a festa dos escravos, para não terem surpresas. SILVA, Cristina Schmidt. Viva São Benedito! Festa popular e turismo religioso em tempo de globalização. Aparecida (SP): Ed. Santuário, 2000. Ver tam-bém COSTA, 2008-2011.17 HISTÓRICO da criação dos festejos de São Benedito da Serra e o primeiro congo criado pelos escravos. Documento da Associação das Bandas de Congo da Serra, atribuído a An-tônio de Pádua Machado (Mestre Antônio Rosa). Arquivo da ABC-Serra. Serra, s.d. Ver ainda COSTA, Michel Dal Col. A explicação tradicional da Festa de São Benedito da Serra--ES e a proteção divina nos dramas no mar ao longo da história. Trabalho apresentado no XV Congresso Brasileiro de Folclore. São José dos Campos (SP), 2011.18 RODRIGUES, José (Mestre Chuchu) e BRANDES, Vladenira Corrêa de (Dona Neri-nha). Entrevista. Entrevistador: Michel Dal Col Costa. Realizada na casa dos entrevistados, em Campinho da Serra, em 31 maio 2003.19 SACRAMENTO, Victor. Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa, em 2 abr. 2008, na casa do entrevistado, na Serra Sede. O sr. Victor, nascido em 1932, faleceu há algum tempo, e de suas palavras é possível inferir que a sua participação na banda de congo infan-to-juvenil precursora ocorreu quando ele tinha entre 11 e 26 anos, aproximadamente. Ou-tro participante desse grupo foi o sr. Alberico Pereira da Penha, o Seu “Liliu”. Esse antigo mestre me concedeu também uma entrevista e disse que participou desse grupo quando tinha 13 ou 14 anos. Nessa época, seu Victor, mais jovem, ainda não participava. PENHA, Alberico Pereira da (Liliu). Entrevista realizada em 23 abr. 2008 por Michel Dal Col Costa na casa do entrevistado, em Barcelona – Serra (ES).20 COSTA (2008-2011); e MIRANDA, José Carlos. Entrevista concedida ao autor, Serra (ES), 2011.21 Mestre Antônio Rosa, como é conhecido o falecido Antônio de Pádua Machado, foi um dos grandes líderes das bandas de congo e dos festejos folclóricos e religiosos da Serra e do Espírito Santo. Hoje recebe muitas homenagens, e uma delas está no museu e espaço de exposições Casa do Congo de Serra Sede, que recebeu seu nome. Para conhecer um pouco da história do Mestre Antônio Rosa, ver COSTA, Michel Dal Col. Mestre Antônio Rosa. Festeiro Serrano de Autoridade. Série Protagonistas da Serra. Jornal Tempo Novo, Serra (ES), 23-30 dez. 2011, ano 27, p.8.

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22 CARVALHO, Fábio; DIAS, Alcione (Coord.) O congo na escola: elemento ressignifica-dor de conhecimentos. Texto do projeto “Congo na Escola”. Vitória (ES), depois de 1999 (ano de início do projeto). Arquivo pessoal; e BENTO, Vacinto do Rosário (Mestre Zé Bento). Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa, realizada na casa do entrevistado, em Nova Almeida, em 27 jul. 2002.23 LEI nº 2.288 da Prefeitura Municipal da Serra, Estado do Espírito Santo. Secretaria de Administração e Recursos Humanos. Publicada no Diário Oficial em 16 maio 2000. Vitó-ria (ES); PIMENTEL, Teresinha Ozória Machado. Entrevista concedida a Michel Dal Col Costa, realizada na Sede da Associação das Bandas de Congo da Serra. Serra, 2000; “VERBA dá novo ânimo às Bandas de Congo da Serra”. Jornal Tempo Novo, 13 maio 2003, p.4; CONVÊNIO nº 014/2003-Setur; Processo nº 087.1058/2002. Prefeitura Municipal da Serra, Estado do Espírito Santo. Publicado no Diário Oficial em 25 fev. 2003. Vitória, 2003.24 BANDA MIRIM de congo desfila neste domingo. Jornal Tempo Novo, 21 dez. 2001, Ge-ral, p.27.25 VALDIRENE. (Rainha da Banda de Congo de Santiago). Banda de congo mirim de São Benedito de Santiago. Documento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa. Serra, s.d.; HISTÓRICO da Banda de Congo Mirim União Jovens dos Reis Magos. Docu-mento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa. Documento avulso, s.n., s.d.; CONGO MIRIM Sant’Anna estreia hoje em Manguinhos. Jornal Tempo Novo, Serra (ES), 30 jun. 2001; BANDA DE CONGO Mirim São Benedito e Santo Antônio de Pádua. Docu-mento produzido na Casa do Congo Mestre Antônio Rosa. Texto avulso, s.n., s.d.26 A HORA e a vez das crianças do congo. A Gazeta, Vitória, 17 maio 2002. Em Foco, p.4; TOCAR e cantar é mais que uma brincadeira. Notícia Agora, 26 ago. 2001, Cidade, p.7.27 É um cumprimento de uma das metas da ABC-Serra, como mostra o PROJETO SOCIAL Cultural de Revitalização das Bandas de Congo do Município da Serra (ES). Acervo ABC--Serra. Serra, s.d.

Artigo recebido em 8 de janeiro de 2012. Aprovado em 27 de março de 2012.

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Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo para a construção

da educação das relações étnico-raciaisContributions of the ‘Black Movement’ and

critical theories about curricula for the construction of education for the ethno-racial relationship

Richard Christian Pinto dos Santos* Grace Kelly Silva Sobral Souza**

ResumoO artigo busca relacionar as trajetórias da mobilização política das organiza-ções sociais do Movimento Negro na luta contra o racismo, sobretudo no que concerne à educação escolar, com as da produção científica publicada pelos se-guidores da corrente teórica das teorias críticas do currículo. A proposta é traçar um paralelo entre conceitos das corren-tes políticas e científicas de modo a re-forçar o arcabouço teórico das práticas pedagógicas que visem à implementa-ção da educação das relações étnico-ra-ciais no Brasil como proposto pela Lei 10.639/2003.Palavras-chave: teorias críticas do currí-culo; Movimento Negro; Lei 10.639/2003.

AbstractThe article seeks to relate the trajecto-ries of political mobilization of social organizations in the Black Movement in the fight against racism, especially in re-gard to school education, with the sci-entific production published by the fol-lowers of the current theory of critical theories of the Curriculum. The pro-posal is to draw a parallel between cur-rent policies and concepts of science to enhance the theoretical framework of teaching practices aimed at the imple-mentation of the Education of Racial Relations in Brazil as proposed by Law 10.639/2003.Keywords: critical theories of curricu-lum; Black Movement; Law 10.639/2003.

No dia 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a Lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional instituindo a obrigatoriedade do

* Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Av. dos Portugueses, s/n. 65085-550 São Luís – MA – Brasil. [email protected]** Graduanda em Pedagogia, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Cidade Universitária Paulo VI. 65058-250 São Luís – MA – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 179-192 - 2012

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ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira em estabelecimentos oficiais de Educação Básica. Não deixa de chamar atenção o fato de ser neces-sária uma lei para que sejam incluídos conteúdos específicos no currículo es-colar, sobretudo quando se trata de mencionar um grupo extremamente re-presentativo na formação étnico-cultural da sociedade brasileira.

Uma reflexão embasada nos estudos sobre currículo pode contribuir pa-ra a compreensão desse fato largamente denunciado inicialmente pelo Movi-mento Negro e posteriormente pelos intelectuais voltados ao estudo das desi-gualdades raciais na sociedade em geral e na escola em particular. Em várias ocasiões já se apontou que o currículo (assim como a própria escola) é um espaço de conflito e representa os interesses políticos de determinados grupos. Desta forma, para compreender como implementar a educação das relações étnico-raciais faz-se necessário conhecer as teorias curriculares e suas rela-ções com a política, a cultura e a identidade dos atores sociais envolvidos no processo educativo.

Currículo, poder e identidade

A produção científica que tem como objeto as relações raciais aponta o relevante papel exercido pela ideologia em meio aos conflitos entre grupos de origens étnicas distintas que por variados motivos convivam de maneira não totalmente intencional no interior de uma mesma sociedade. Carlos Moore em seu trabalho intitulado O racismo através da História 1 traça um panorama da evolução dos mecanismos de discriminação baseados nesse tipo de critério, analisando o refinamento das estruturas de poder voltadas para estabelecer a dominação de um povo sobre outro. Seu texto mostra como nos mais diversos períodos eram (e permanecem sendo) estabelecidos pressupostos religiosos, filosóficos e científicos tencionando defender a superioridade dos grupos ét-nicos detentores (ou pretensamente detentores) da supremacia política sobre os demais grupos étnicos nas relações sociais e produtivas. Segundo ele,

para efeito da dominação do grupo-alvo subalternizado, surgem as políticas e mecanismos de contenção (segregação racial), de dissuasão (atomização racial) e de repressão. Estes geralmente se alicerçam em um ‘mito-ideologia’ destinado a manter a unidade monolítica do grupo vencedor, tido como superior ao tempo

Richard Christian Pinto dos Santos e Grace Kelly Silva Sobral Souza

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em que atomiza e pulveriza a coerência grupal do grupo-alvo vencido, tido como inferior. (Moore, 2007, p.191)

Ao longo da história diferentes instituições de caráter religioso, político ou cultural detiveram o poder de transmitir os saberes socialmente legitima-dos, e atualmente cabe à escola tal função. Nas últimas décadas do século pas-sado desenvolveu-se uma gama de pesquisas educacionais que contribuíram para a observação das disputas que os atores sociais travam no momento de compor o currículo escolar. As teorias críticas do currículo criticavam as rela-ções tradicionais entre o conhecimento e as formas de transmiti-lo, bem como seu papel na manutenção das tradicionais estruturas políticas existentes. O ponto chave é a denúncia dos mecanismos que transformam um espaço for-mativo num espaço de reprodução de estruturas de dominação e controle so-ciais.

Esse novo paradigma teórico-metodológico dará início a uma dicotomia que ampliará o debate acadêmico, tendo repercussões visíveis até os dias de hoje. Em oposição às já estabelecidas teorias tradicionais sobre o currículo, voltadas à prescrição de fórmulas e modelos para a criação de grades discipli-nares e à catalogação de procedimentos que garantissem a eficácia na sua apli-cação, surgem estudos preocupados com a contestação do status quo e com sua responsabilização pela persistência das iniquidades sociais apesar (ou em virtude) de todo o desenvolvimento científico e material alcançado pela hu-manidade.2

Althusser3 explicita de forma brilhante a maneira através da qual a classe dominante exerce sua hegemonia utilizando-se de uma diversidade de insti-tuições públicas e privadas para transmitir às variadas camadas sociais justa-mente os valores que legitimam sua posição de poder. As Igrejas, as redes es-colares, a família, o sistema jurídico, as organizações e partidos políticos, os sindicatos, a mídia, a indústria cultural e todas as instituições possíveis tornam--se Aparelhos Ideológicos do Estado que assegurem as relações de poder esta-belecidas (Althusser, 1970, p.41-52). É uma visão que, apesar de não discutir especificamente as relações raciais em educação, apoia os teóricos que se atêm de maneira mais aprofundada nesse objeto de estudo, pois reforça a ideia de que a escola não é um espaço neutro como se supunha (ou se é levado a supor), mas representa os interesses políticos de determinados grupos.

Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

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Os indivíduos que passam por um processo formativo que justifica sua opressão acabam eles mesmos se tornando cúmplices e reprodutores dessa opressão, pois introjetam os valores discriminatórios que permeiam a cultura legitimada da região que habitam. A naturalização da opressão pelo próprio oprimido e a aceitação do direito do opressor em exercê-la é condição sine qua non dos regimes políticos que se amparam nas desigualdades sociais, sejam elas de caráter étnico, racial, de gênero, de origem regional ou nacional, reli-gioso, etário ou ideológico, por exemplo. Se o poder estabelecido consegue prescrever satisfatoriamente sua ideologia de maneira que os grupos margina-lizados reconheçam seus algozes como o ideal a ser seguido, conseguirá mais facilmente preservar sua posição, pois as tensões, se não podem ser completa-mente erradicadas, são mitigadas a ocorrências esparsas ou pouco representa-tivas. É daí que surge a relevância de paradigmas curriculares emancipatórios que balizem práticas pedagógicas que primem pela reflexão e pela luta que conduza rumo à equidade, à liberdade e à justiça social. Que em vez de desu-manizar levem à transformação social apesar das resistências e tentativas de desmoralização dessas iniciativas por aqueles que historicamente obtêm pri-vilégios oriundos das relações de violência física e simbólica. Esses grupos necessitam atingir a compreensão de que não serão as camadas hegemônicas que irão promover a mudança, pois as elites dirigentes não têm esse interesse:

A pedagogia do oprimido, que no fundo, é a pedagogia dos homens empenhan-do-se na luta por sua libertação ... tem que ter, nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos ... No primeiro momento, por meio da mudança da percepção do mundo opressor por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desen-volvidos na estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da transformação revolucionária.4

Fundamentos para a educação das relações étnico-raciais

Lançar um olhar sobre parte da extensa produção intelectual que vem sendo relacionada ao longo do tempo por estudiosos e profissionais para fun-damentar a educação é de vital importância caso se queira realizar uma práti-ca pedagógica transformadora, sobretudo quando estamos visando o fim das

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profundas desigualdades sociais e raciais na sociedade brasileira. Apenas um sólido arcabouço ideológico e um fazer reflexivo poderão servir como contra-ponto aos argumentos falaciosos embasados pelas ideias preconceituosas do senso comum, que ainda hoje encontram amplo espaço de reprodução em determinados meios por parte de educadores, gestores e/ou redes. Essa des-vinculação entre teoria e prática já foi apontada por Giroux como um dos principais entraves para a inserção das culturas das classes populares e subor-dinadas no currículo escolar.5

A própria Constituição Federal pode ser apontada como justificativa pa-ra dinamizar verdadeiramente a implementação de uma educação que instru-mentalize para o pleno exercício da cidadania, requisito principal para uma real democracia. Além do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê a igual-dade de direitos perante a lei, podemos destacar alguns outros. Isso mostra um reflexo das tentativas de penetração das demandas populares no aparato legal e as contradições que o Estado assume, pois ignora suas próprias convenções quando não for conveniente aos grupos dirigentes, mesmo nos regimes supos-tamente democráticos, teoricamente baseados em instituições sólidas voltadas para buscar o bem comum. Se no jargão popular brasileiro diz-se que existem ‘leis que pegam’ e ‘leis que não pegam’, é interessante refletir a respeito do que leva artigos de tão grande relevância a permanecerem como ‘letra morta’:

Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Bra-sil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; ... III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

...Art. 170 – A ordem econômica ... tem por fim assegurar a todos existência

digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ... VII – redução das desigualdades regionais e sociais ...6

Partindo dessa exigência constitucional é preciso levantar esta questão: o acesso e a permanência ao ambiente escolar conservam-se imunes às especifi-cidades dos diversos grupos sociais? Ou seja, é possível dizer que as desigual-dades sociais (inclusive raciais) não interferem na formação dos indivíduos? Se os estudos críticos em geral já apontaram para uma reposta negativa, as

Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

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pesquisas específicas sobre as relações étnico-raciais na educação reforçam essa direção. O Brasil conta com uma extensa bibliografia, na qual se destacam os trabalhos acadêmicos como os de Cavalleiro7 e Paixão,8 demonstrando que as desigualdades raciais, sobretudo no que concerne à discriminação no am-biente escolar e no mercado de trabalho, têm severo impacto negativo para a população negra. Se já se percebe essa transposição da exclusão social do gru-po étnico afro-brasileiro da sociedade em geral para a escola em particular, faz-se necessário buscar mecanismos ideológicos e pragmáticos que insiram esse debate na sala de aula. É sobre essa ocorrência que este artigo tenciona dar uma parcela de contribuição ao longo de suas páginas.

A Lei 10.639/2003 torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro--Brasileira na educação básica e foi regulamentada por meio da Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico--Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.9

No mesmo período de transição entre as décadas de 1980 e 1990 em que a Constituição Brasileira é formulada, a comunidade acadêmica nacional vai intensificar suas leituras e produções em torno das correntes críticas de análi-se do currículo. O enfoque sociológico ganha espaço, democratizando a noção de que o currículo compõe um campo intelectual em que diversos atores so-ciais utilizam-se de seus capitais social e cultural para legitimar os pontos de vista dos grupos a que pertencem. O objetivo primordial nesses casos é alcan-çar a posição necessária para influenciar as propostas curriculares de âmbito oficial, vencendo as lutas concorrenciais entre os discursos que contextualizam as práticas pedagógicas no ambiente escolar.10

O Movimento Negro e a luta pelo antirracismo na educação

O processo histórico de invisibilização da cultura de matriz africana pro-vocou como reação uma intensa luta travada pelas organizações do Movimen-to Negro, sobretudo a partir dos últimos anos do século XX, quando o contex-to de reabertura política permitiu a rearticulação dos movimentos sociais. Essas mobilizações teriam como resultado anos mais tarde a promulgação da Lei 10.639/2003, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional (Lei 9.394/1996), instituindo o ensino de História e Cultura Afro-Bra-

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sileira e Africana no currículo da Educação Básica em todo o território nacio-nal e a implementação dos programas de Ações Afirmativas para acesso e permanência da população negra no Ensino Superior. Tais conquistas só foram possíveis em razão de uma intensa atuação política travada por diversas orga-nizações em diferentes espaços de militância.

Longe de permanecer apenas no campo ideológico, o racismo atua efeti-vamente na vida cotidiana das populações dos diferentes grupos étnicos bra-sileiros. As práticas discriminatórias sofridas pela população negra exercem papel determinante como obstáculos à plena vivência de sua cidadania, sobre-tudo no que concerne ao acesso aos bens sociais como educação e saúde, bem como à sua integração no processo produtivo na busca por postos de trabalho. Dessa forma, o racismo tende a buscar sua autofundamentação, pois usa o insucesso dos povos socialmente minoritários, causado por suas próprias prá-ticas excludentes, como comprovação da inferioridade desses povos.

De fato, o racismo opera mecanismos de desqualificação dos não-brancos na competição pelas posições mais almejadas. Ao mesmo tempo, os processos de recrutamento para posições mais valorizadas no mercado de trabalho e nos espa-ços sociais operam com características dos candidatos que reforçam e legitimam a divisão hierárquica do trabalho, a imagem da empresa e do próprio posto de trabalho.11

Como uma das formas de lutar contra esse processo de discriminação, o Movimento Negro, fundamentado “na compreensão de que a educação é a base sobre a qual estrutura-se a forma de pensar e agir de um povo”,12 nunca deixou de ter no seu corpo de reivindicações a plena inserção da população afro-brasileira no ambiente escolar. Entretanto, é importante ressaltar que, mesmo com a quase universalização da oferta de vagas às crianças e aos jovens atingida nos últimos anos, permanecem as lutas nesse sentido, pois simbolica-mente a escola perpetua a discriminação verificada no resto da sociedade. Ain-da é de vital importância

Discutir o processo de colonização intelectual a que estudantes negros estavam submetidos, as consequências danosas dos conteúdos racistas dos currículos es-colares, livros didáticos, bem como as discriminações raciais sofridas pelos alu-nos negros no ambiente escolar, entre outras manifestações.13

Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

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A forma escolhida para reivindicar os direitos foi a organização de fóruns e seminários, como o III Encontro de Negros das Regiões Sul e Sudeste, em Vitória (ES) no ano de 1990, o III Encontro de Negros da Região Centro--Oeste, em Cuiabá (MT) no ano de 1991, e o Seminário Nacional “O Papel da CUT (Central Única dos Trabalhadores) no combate ao Racismo” (cf. Santos, 2007, p.165), eventos em que a militância e a intelectualidade negras formula-ram suas demandas e articularam-se junto a outros setores dos Movimentos Sociais para encampar a pressão ao Estado brasileiro por políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação racial no interior de nossa sociedade.

Apesar da importância desses e de outros eventos, é inegável que o mo-mento mais significativo da década de 1990 foi a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada no dia 20 de novembro de 1995 em Brasília. Realizada na data do assassinato do líder quilombola Zumbi dos Palmares, a marcha foi um movimento de amplitude nacional que contou com a presença de mais de 30 mil pessoas unidas para combater os efeitos nefastos da discriminação racial e reivindicar políticas emergenciais para atender a população negra.14

Das discussões encaminhadas formularam-se as grandes bandeiras de luta do Movimento Negro dali em diante, levando às duas reivindicações prin-cipais já citadas. A repercussão do evento tomou tal dimensão que chamou a atenção do então presidente da República. Esse encontro foi de vital impor-tância para a sociedade afro-brasileira, pois teve um caráter efetivamente pro-positivo. Mais que a revolta por conta de uma realidade de desigualdades, a Marcha foi um momento de deliberações no sentido de viabilizar a transfor-mação dessa realidade.

Mais uma vez as lideranças dos Movimentos Sociais Negros denunciaram ao go-verno brasileiro a discriminação racial, bem como condenaram o racismo contra os negros no Brasil. Mais do que isto, as lideranças negras dos Movimentos So-ciais Negros não ficaram só nas e com as denúncias, elas entregaram ao chefe de Estado brasileiro o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Ra-cial... (Santos, 2007, p.166)

Esse documento se articula com políticas nos eixos de Democratização da Informação, Mercado de Trabalho, Educação, Cultura e Comunicação, Saúde, Violência, Religião e Terra (cf. ENMZ, 1996). A luta pela inclusão da popula-

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ção negra na rede de educação formal corresponde, sem sombra de dúvida, à principal bandeira a partir desta década, seja no campo da melhoria da quali-dade da educação como um todo, seja na inclusão da temática racial e da cultura negra nos currículos escolares ou nas ações afirmativas para a popula-ção negra nas universidades. O contexto que se seguiu terminou por servir como preparação do Brasil para participar da Conferência de Durban contra o Racismo, a Xenofobia e Discriminações Correlatas, realizada no ano de 2001 na África do Sul, em que o Estado brasileiro reconheceu a persistência do ra-cismo no país e se comprometeu a tomar medidas no sentido de erradicá-lo.

A Lei 10.639/2003: o combate ao racismo como política de Estado

Após um período tão longo de difusão de um ideário racista por parte do grupo étnico socialmente hegemônico, a suposta inferioridade da população negra passou a figurar como conceito universalizado e fortemente impregna-do na cultura brasileira, sendo até mesmo reproduzida por essa população. Conceitos criados para estabelecer uma sociedade racialmente hierarquizada permanecem no imaginário nacional, sendo naturalizadas as práticas discri-minatórias aos indivíduos afrodescendentes. Dessa forma, não chega a sur-preender que o racismo esteja presente também no ambiente escolar.

As informações disponíveis sobre a implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais revelam que ... restringem--se à ação isolada de profissionais comprometidos(as) com os princípios da igualdade racial que desenvolvem a experiência a despeito da falta de apoio dos sistemas educacionais ... projetos descontínuos com pouca articulação com as políticas curriculares de formação de professores e de produção de materiais e livros didáticos sofrendo da falta de condições institucionais e de financiamento. (MEC/MJ/Seppir, 2008, p.13)

Sucessivos governos mantiveram-se omissos frente ao processo de exclusão da população negra, apesar da constante mobilização de inúmeros grupos orga-nizados do Movimento Negro. Além das mobilizações das décadas de 1980 e 1990 citadas anteriormente, a participação brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de

Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

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Intolerância em Durban, na África do Sul, realizada em 2001, fez que se alteras-se o panorama da luta antirracista no Brasil. A conferência teve como conse-quência uma série de mudanças na postura do Governo Federal, com importan-tes conquistas no princípio do século XXI. O tema da discriminação racial, sobretudo no ambiente escolar, foi incluído na agenda nacional, com o próprio presidente da República assumindo a necessidade de implementar políticas pú-blicas para a erradicação das desigualdades raciais na sociedade brasileira.15

Uma abordagem no sentido de inserir no currículo escolar temas referen-tes às bandeiras históricas da população negra busca romper com a “invisibi-lidade e o recalque dos valores históricos e culturais de um povo”.16 As análises acerca da prática da educação das relações étnico-raciais por parte de diversos autores têm comprovado que os materiais didáticos apresentam referências negativas, que reproduzem os estereótipos pejorativos costumeiramente atri-buídos à população negra. Verifica-se que um grande número de livros didá-ticos reproduz como verdades científicas estereótipos preconceituosos, crista-lizando a autorrejeição e a baixa autoestima na subjetividade do grupo estigmatizado. O resultado é a aceitação de sua subalternização e o desinteres-se por organizar-se politicamente contra as injustiças sociais sofridas, legiti-mando as estruturas políticas vigentes.

Finalmente, no dia 9 de janeiro de 2003, após mais de um século de rei-vindicações da população negra organizada politicamente, a qual exigia polí-ticas públicas de caráter compensatório do legado da escravidão superada e da discriminação persistente, promulgou-se a Lei nº 10.639, “que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasi-leira”.17 Ainda que essa diretriz não possa ser considerada plenamente cum-prida, apenas o fato de sua existência já oportuniza uma grande perspectiva de mudança, pois implica o estabelecimento de um canal de diálogo afrocentrado em um ambiente historicamente eurocêntrico. Apenas recentemente tornou--se consenso na Academia a relevância do caráter social do processo ensino--aprendizagem, mas o Movimento Negro já há séculos anseia para seu povo o direito a uma escolarização ampla e de qualidade, por entender que

A educação, mesmo que não seja a única via de mitigar tais desigualdades, de-monstra relevante papel na busca de uma verdadeira democracia onde todos os

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grupos étnicos, religiosos, de gênero, ou de quaisquer outras naturezas possam ter seus direitos reconhecidos e respeitados.18

Gatti Júnior19 chama a atenção para o fato de que, por conta de uma série de fatores que implicam uma formação insuficiente de grande parte dos do-centes da Educação Básica no Brasil, o paradigma educacional tradicional ain-da é, se não majoritário, pelo menos significativo, apesar dos diversos estudos críticos amplamente divulgados na comunidade científica. Somente uma mu-dança de postura da prática pedagógica pode transformar esse panorama em que o senso comum (como já reiteramos, muitas vezes lotado de preconceitos) concorre com a fundamentação teórica na formação epistemológica dos pro-jetos e práticas educativos. A literatura disponível para instrumentalizar os professores como intelectuais reflexivos externa conceitos que contribuem para um entendimento de que

O conhecimento é como uma teia de ideias interconectadas que atravessa vários domínios, ao passo que a escola tradicional mantém sua visão paroquial, locali-zada ... Essa multiplicidade de pontos de vista, essa riqueza de leituras, precisa ser digerida e incorporada pela escola se ela tiver a pretensão de sobreviver como instituição geradora, mantenedora e delegadora do saber humano.20

Dessa forma, a educação das relações étnico-raciais não se tornou um problema resolvido simplesmente pela assinatura de uma lei, mas permanece em constante processo de debate e observação dos atores envolvidos (o poder público nas três esferas de poder, redes privadas de ensino, universidades, pesquisadores, autores e produtores de materiais didáticos, professores, ges-tores, organizações do Movimento Negro, pais, alunos e sociedade), levando à produção de novas práticas e bens culturais que vislumbrem essas ‘novas’ exigências e atendam a essas ‘novas’ demandas, que apesar de terem início nos primeiros anos da história do Brasil, apenas recentemente vêm conseguindo alcançar visibilidade, mesmo que aquém das expectativas de determinados grupos, mesmo enfrentando grandes resistências de outros.

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Considerações finais

A população negra ainda não conseguiu libertar-se totalmente de deter-minadas estruturas de poder e dominação construídas durante o período es-cravista. Conquistas importantes para aquisição da cidadania não podem ocul-tar o fato de que muitas barreiras ainda se mantêm na sociedade com o propósito de interferir nas trajetórias dos indivíduos, positiva ou negativamen-te, de acordo com seu pertencimento étnico. Considerando que essas barreiras são fundamentadas em critérios arbitrários ideologicamente postos, verifica-se que esforços políticos e acadêmicos devem ser feitos para fortalecer a luta por equidade, ou seja, pela igualdade de direitos e de condições entre os membros de uma mesma sociedade.

Tanto as organizações do Movimento Social Negro quanto os estudiosos das teorias críticas sobre o currículo partilham da ideia de que a educação es-colar apresenta papel importante na transmissão e no fortalecimento dos ar-cabouços ideológicos, sejam eles progressistas ou conservadores. Sendo assim, o currículo pode transmitir tanto estereótipos preconceituosos quanto valores de tolerância para sua clientela. É daí que surgem as disputas entre os grupos que se beneficiam com a manutenção e aqueles que exigem a transformação do sistema político vigente. Não há cidadania sem direitos, e não há direitos onde há diferenciações, logo a luta pela erradicação de ideologias e práticas discriminatórias é a luta por justiça e liberdade. A Lei 10.639/2003 se coloca como uma possibilidade de rompimento desse ciclo de exclusão.

NOTAS

1 MOORE, Carlos. O racismo através da História: da Antiguidade à Modernidade. 2007. Disponível em: scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&q=O+RACISMO+ATRAV%C3%89S+DA+HIST%C3%93RIA%3A+++DA+ANTIGUIDADE+%C3%80+MODERNIDADE&btnG=Pesquisar&lr=; Acesso em: 13 set. 20092 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 156p.3 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad. Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Ed. Presença, 1970. 123p.4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 107p. p.22-23.

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5 GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: Artmed, 1997. 270p.6 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm; Acesso em: 18 ago. 2011.7 CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e dis-criminação na educação infantil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2003.8 PAIXÃO, Marcelo. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2007-2008. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. 213p.9 MEC/MJ/SEPPIR. Contribuições para a implantação da Lei 10.639/2003. Proposta de Pla-no Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da educação das re-lações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei 10.639/2003. Brasília, 2008. p.6.10 LOPES, Alice Casemiro; MACEDO, Elizabeth (Org.) Currículo: debates contemporâ-neos. São Paulo: Cortez, 2002. 240p. p.13-18.11 IPEA. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a Abolição. Bra-sília: Diretoria de Estudos Sociais (Disoc), 2008. p.6.12 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO/PE. O Negro e a Educação – VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, 1988. p.5.13 SANTOS, Sales Augusto dos. Movimentos negros, educação e ações afirmativas. Disserta-ção (Mestrado) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília. Brasília, 2007. p.163.14 Cf. SANTOS, Jocélio Teles dos; QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Vestibular com cotas: análise em uma instituição pública federal. Revista da USP, São Paulo, n.68, dez. 2005/jan.--fev. 2006; EXECUTIVA NACIONAL DA MARCHA ZUMBI (ENMZ). Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial: marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e vida. Brasília: Cultura Gráf. Ed., 1996.15 MUNANGA, Kabengele (Org.) Superando o racismo na escola. 2.ed. revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 204 p. p.9-10.16 SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA, 2005. p.21-39. p.22.17 BRASIL. Lei 10.639, de 9 jan. 2003. Altera a Lei 9.394, de 20 dez. 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providên-cias. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 9 jan. 2003. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.html; Acesso em: 20 out. 2010. p.1.18 PINTO DOS SANTOS, R. Letras negras: as contribuições da literatura para a aplicação da Lei 10.639/2003 no Ensino Médio. Revista da ABPN, América do Norte, v.2, out. 2011.

Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo

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Disponível em: www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/view/196/132; Acesso em: 22 jan. 2012. p.165.19 GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990). Bauru (SP): Edusc; Uberlândia: Edufu, 2004. 252p.20 PASSARELI, Brasilina. Hipermídia na aprendizagem: construção de um protótipo inte-rativo: a escravidão no Brasil. 1993. Disponível em: revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/download/1127/776; Acesso em: 7 set. 2009. p.1.

Artigo recebido em 15 de fevereiro de 2012. Aprovado em 11 de abril de 2012.

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Diásporas e comunidades quilombolas: perspectivas metodológicas para o ensino de

história da África e da cultura afro-brasileiraDiaspora and maroon communities: methodological perspectives

for the teaching of African history and African-Brazilian culture

Maria Walburga dos Santos* Ana Cristina Juvenal da Cruz**

ResumoA institucionalização do ensino de histó-ria da África e de cultura afro-brasileira nas escolas abriu caminho para o debate acerca da inserção desses conteúdos nos currículos de história. O precedente levou os historiadores a se perguntarem sobre o conteúdo e o ensino dessa história e da cultura produzida pelos povos africanos e por seus descendentes. Este texto é estru-turado com base em duas possibilidades metodológicas para esse ensino: a diáspo-ra e as comunidades quilombolas. Apre-sentamos elementos para uma metodolo-gia e uma didática do ensino de história que considerem as experiências diaspóri-cas das populações negras e o espaço do quilombo como local de recriação cultural de elementos africanos. Analisamos o per-curso histórico que culminou na institu-cionalização desse ensino e alguns ele-mentos relacionados a esses conteúdos.Palavras-chave: ensino de história da Áfri-ca; diáspora; comunidades quilombolas.

AbstractThe institutionalization of the teaching of African history and African-Brazilian culture in the schools gave way to the de-bate about the inclusion of such content in the curriculums of history. This prece-dent has led historians to wonder about the content and teaching of that history and of the culture produced by African peoples and their descendants. This text is structured upon two methodological possibilities for the teaching of those the-mes: the Diaspora and maroon commu-nities. We present some elements for a methodology and a didactic of teaching history that consider the experiences of black diasporic space and maroon com-munities as a place of recreation of cultu-ral elements of Africa. We analyze the historical background that led to the ins-titutionalization of the teaching of Afri-can history and African-Brazilian culture and show some aspects of these subjects.Keywords: teaching of African history; diaspora; maroon communities.

* Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas, Universidade Federal de São Carlos (DTPP/UFSCar). Via Washington Luís, km 235, Caixa Postal 676. 13545-905 São Carlos – SP – Brasil. [email protected]** Doutoranda em Educação, Bolsista Capes. Universidade Federal de São Carlos. Via Washington Luis, km 235. 13545-905 São Carlos – SP – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 193-215 - 2012

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Uma das problemáticas mais acentuadas acerca do ensino de história se deve à construção metodológica desse ensino e do conteúdo a ser ofertado. Esse debate há muito tempo é objeto de estudos no campo do currículo e da didática, e sofreu uma inflexão com a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas afro-brasileira e africana nas instituições de ensino bra-sileiras por meio da Lei 10.639/2003 e do Parecer CNE/CP 003/2004, referen-te às Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico--raciais e para o Ensino de História Afro-Brasileira e Africana.

As questões acerca dos elementos constitutivos de como e o que ensinar emergiram das políticas curriculares voltadas para a inserção desses conteúdos. As pesquisas sobre ensino e ‘prática escolar’ 1 impulsionadas pela ascensão da pós-graduação brasileira nos anos 1970 redimensionaram os debates sobre o ensino de conteúdos específicos. A incorporação de outras metodologias, como a etnografia, também possibilitou novas leituras do espaço escolar. No que diz respeito ao ensino de história, a questão central se refere à utilização das fontes no ensino.

Esses desafios têm questionado a maneira pela qual o campo historiográ-fico descreveu as experiências dos povos africanos e de seus descendentes. As pesquisas acerca da institucionalização do ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira têm apontado que as maiores dificuldades se referem ao uso de materiais didáticos e à formação de historiadores para seu ensino. Muitos cursos têm sido oferecidos para as diversas modalidades de ensino, e, embora os resultados tenham sido satisfatórios, os dados mostram que essas dificuldades impedem a construção de metodologias que atendam as necessidades curriculares da história africana e afro-brasileira. Tais medidas somente alcançarão os objetivos propostos se houver a incorporação de um novo paradigma de educação das relações étnico-raciais brasileiras. Isso abre a necessidade de debates sobre questões epistemológicas e métodos de ensino.

Muitas atribuições já foram relacionadas à finalidade do estudo e do en-sino de história: ‘fortalecer a nação’, ‘fortalecer uma identidade nacional’, ‘construir uma comunidade’ mesmo que ‘imaginada’.2 Hoje, a compreensão do caráter imaginado das nações é algo menos conflituoso, atrelado a termos como nacionalidade, pertencimento e identidade, entre outros, e à maneira como esse caráter imaginário é um ‘produto cultural’ (Anderson, 2008, p.30). Uma das questões a serem resolvidas se refere às fontes utilizadas na produção

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da história e, consequentemente, à análise feita sobre elas. ‘Povos sem história’, ‘sem escrita’ e ‘sem cultura’, entre outras representações, foram expressões atribuídas aos povos que se encontravam fora do círculo restrito da história.3 Isso tem sido reavaliado de forma crítica em relação ao modo pelo qual se construiu a história que valeria a pena ser contada, no qual a produção euro-peia – e mais recentemente a dos Estados Unidos – se localiza em um centro difusor e orientador dos saberes.

Esse conjunto de representações e de estereótipos sobre tais grupos orien-tou a produção historiográfica e um modo de olhar e de construir de forma binária um ‘nós’ e um ‘eles’, ou seja, um discurso sobre um ‘Outro’. Os estudos pós-coloniais que ascenderam ao discurso teórico a partir dos anos 1980 se configuraram como um espaço de crítica das maneiras pelas quais os conhe-cimentos são construídos. Como escapar a esse conjunto de discursos presen-tes na construção historiográfica sobre os africanos e seus descendentes?

Um desdobramento está diretamente ligado à linguagem. Fanon4 aponta a maneira pela qual a construção da linguagem sobre a colonização e o lugar dos negros nesse processo se constituíram historicamente. Essa linguagem é marcada pelas dimensões de gênero e de experiência e por uma esfera racial, o que permitiu a construção de um conjunto de discursos construídos racial-mente sobre aqueles que foram colocados no lugar do ‘Outro’. Esse ‘Outro’ é localizado em um território, passa a ter determinadas características físicas que o definem moral e psicologicamente.

Ao constituírem determinada linguagem, essas representações apropriam--se de nossos cotidianos, informando-nos e oferecendo um determinado con-junto de saberes sobre esses ‘Outros’. Práticas e representações em torno do que se refere à África ou aos descendentes de africanos podem ser compreen-didas pela noção de racialização à qual esses povos foram relegados. A raciali-zação é relacionada a um processo de categorização pelo qual um grupo (seja étnico, racial ou de gênero) é identificado como pertencente a um dos agrupa-mentos que são definidos por critérios arbitrários como o fenótipo, uma tra-dição cultural ou ainda religiosa.5

Isso significa afirmar que a linguagem é racialmente determinada e o su-jeito, ao entrar na linguagem, está inserido em um universo racializado. O termo ‘Continente negro’ em referência ao Continente africano é um exemplo dessa natureza racial na qual a linguagem está inserida, visto que outros con-

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tinentes não têm um epíteto racial como esse. ‘Negro’ tornou-se sinônimo de uma essência racializante na qual toda uma linguagem adjetivada de inferio-ridade fixava os africanos e seus descendentes em tais estereótipos.6

Essa narrativa em torno do vocábulo negro é, no entanto, ressignificada. Hall7 argumenta como esse termo tem articulado a noção de negritude,8 como um movimento identitário. Munanga aponta duas dimensões para que se com-preenda a ressignificação do termo ‘negro’ e da negritude: o sentido e a expe-riência.9 Essas duas dimensões operam de forma simultânea, o sentido se re-fere ao contexto no qual ‘ser Negro’ pode ser experienciado, a linguagem, portanto é construída em um campo histórico e dinâmico, produzindo senti-dos e subjetividades.

Durante muito tempo os povos e as nações africanos entraram na história provindo de uma demarcação no interior da linguagem racializada. O lugar conferido à história de mulheres e homens africanos e seus descendentes es-teve relegado à semântica da escravidão e, posteriormente, do colonialismo. Alguns historiadores inspirados por uma determinada lógica desconsideraram as resistências e as maneiras pelas quais esses povos ressignificaram suas exis-tências sob a experiência violenta da escravidão, do colonialismo e de suas consequências. Tais noções combinadas estabeleceram as hierarquizações de inferioridade e superioridade entre os grupos étnicos, as quais, sob os auspícios da ciência da época, justificaram a escravização dos povos africanos e de seus descendentes e a ‘missão civilizatória’ que marcou a modernidade. No Brasil, o que tem sido denominado de ‘nova historiografia da escravidão’ ou ‘história social da escravidão’ passou a atribuir um caráter protagonista aos negros e à sua experiência e ação em relação ao escravismo.

A possibilidade aberta pela legislação para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira colocou na pauta do debate historiográfico as dis-ponibilidades e os usos das fontes para a pesquisa. As fontes orais se colocam como um dado apropriado na pesquisa histórica, sem se opor às fontes docu-mentais que secularizaram exclusivamente a forma escrita como válida, mas como uma fonte equivalente de saber histórico. No mesmo patamar estão outras tipologias de fontes, como os registros imagéticos, por exemplo. Esse universo deve ser debatido com novas atribuições no que toca aos estudos históricos. O que ainda tem sido feito de forma tímida no campo é a análise de

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como essas noções racializadas informam as concepções históricas sobre o Continente africano.

Propomos aqui uma discussão sobre métodos de ensino da história da África e de seus descendentes de modo a considerar as representações cons-truídas sobre esse espaço e sobre as pessoas vindas desse lugar. É importante destacar que não se trata de afirmar as problemáticas apontadas como uma repetição daquilo que já se sabe em relação a tais questões, mas de identificar que tais noções ainda permeiam o campo do ensino quando nos referimos à história dos povos africanos e de seus descendentes. Desse modo, este texto está localizado no debate do ensino de história desses conteúdos, em duas vias: a do ensino e a da história. A questão central é: quais possibilidades metodo-lógicas nós temos e quais podem ser construídas para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira e africana?

A instituição do ensino da história africana e afro-brasileira faz repensar duas dimensões articuladoras essenciais à teoria da história: o tempo e a nar-rativa histórica.

Wedderburn10 aponta para a necessidade de se utilizar um tempo de lon-ga duração e uma abordagem diacrônica no que se refere ao ensino de história da África. O autor indica que o ensino deve ser estruturado pelas relações no interior do Continente (diacronicidade intracontinental) e nas suas relações exteriores (diacronicidade extracontinental).

Ki-Zerbo e Anta Diop atuaram para legitimar uma história africana es-crita e falada pelos africanos e oferecer outra leitura da história da África, uma “descolonização da história”.11 Algumas leituras atribuíram a isso um caráter afrocêntrico,12 ao inferir um etnocentrismo histórico.

Gilroy sugere como perspectiva metodológica a etno-história, tendo como princípio uma relação entre as produções estéticas e culturais dos negros no espaço que ele denomina ‘Atlântico Negro’, resumida como uma “estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional” (2001, p.38). A etno-história pode ser compreendida como uma alternativa teórico-meto-dológica para estudar histórias de um grupo, averiguar as maneiras pelas quais surgem e emergem os discursos sobre esse grupo e suas fundamentações esté-ticas e filosóficas. Especificamente no que se refere à história dos africanos e de seus descendentes, sua proposta nos auxilia a compreender as maneiras pelas quais alguns grupos foram lidos e teorizados.

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Com o termo ‘Atlântico Negro’ Gilroy se aproxima de uma noção de di-áspora cuja ação inscreve outras possibilidades sobre as quais a história pode ser concebida ou ‘imaginada’ e, assim, ensinada. O autor define ‘Atlântico Negro’ como uma “formação política e cultural moderna” (Gilroy, 2001, p.65) e se insere na perspectiva dos estudos culturais e pós-coloniais para os quais colonialismo, racismo e modernidade são produtos de uma lógica comum de sustentação e criação conjunta. O Atlântico como metáfora de uma localização específica da produção do movimento desenvolvido de forma diaspórica.13 Nessa proposta, as roupagens culturais e políticas nas quais se constituíram a escravização e a colonização podem ser analisadas em profundidade.

Ndiaye14 analisa a construção de uma condição negra na França e se vol-ta para a ‘invisibilidade’ dos negros acordada no discurso político da Repúbli-ca francesa, mas encontra as maneiras pelas quais sua ‘visível’ presença ascen-de historicamente na linguagem social francesa marcada pelos estereótipos em relação aos negros como grupo. O autor centraliza as contranarrativas dos negros na França como formas de uma construção identitária que permita que suas problemáticas sejam consideradas em suas especificidades, propondo uma história dos negros na França no modo como essa população é intrinsecamen-te forjada no interior da sociedade francesa.

Como desdobramento sobre a utilização de outras fontes para ensino de história da África e da cultura afro-brasileira e africana, há que se considerar, por exemplo, a noção de ressignificação que os descendentes de africanos cria-ram. Essa ressignificação somente foi reconhecida nas lutas contemporâneas dos africanos e seus descendentes por direitos civis equânimes e por justiça social. Nesse contexto é que a institucionalização da Lei 10.639/2003 deve ser compreendida como uma medida para uma educação das relações étnico-ra-ciais. Tal noção pode ser articulada às noções sincréticas de crioulização e de mestiçagem nas quais se reproduz uma cultura estética diferenciada, como a música e o cinema, elementos cada vez mais focalizados nos campos dos estu-dos culturais que podem ser fontes interessantes para o ensino da história (Gilroy, 2001).

Para responder à questão aqui formulada acerca de uma metodologia para o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira e africana, par-timos de duas possibilidades: a categoria diáspora e a experiência dos quilom-bos. Em linhas gerais, este texto se preocupa com os aspectos conceituais na

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construção de uma metodologia que considere as experiências dos fenômenos que marcam as populações africanas e afrodescendentes. Busca articular essas experiências a partir da diáspora como uma categoria analítica, e dos espaços quilombolas como possibilidade de construção para o ensino desses conteúdos.

Além das questões de método indicadas até aqui, o texto está estruturado em partes interdependentes: inicialmente traça, de forma breve, a maneira pela qual os movimentos sociais negros brasileiros se apropriaram da educa-ção, propondo mudanças na educação das relações raciais brasileiras em um processo que culminou na Lei 10.639/2003. Em seguida, desenvolve a noção de diáspora como recurso metodológico no ensino de história africana e da cultura afro-brasileira e africana. Por fim, pretende observar, recorrendo ao exemplo das comunidades quilombolas, que a educação em história e sua me-todologia passam invariavelmente pelas afirmações da diversidade, pelo olhar de contextos específicos e pela clareza com que os conteúdos são inscritos e se inscrevem no cotidiano em diálogo com o passado, perpassando pelas vozes e ações de vários sujeitos.

O ensino de história africana e afro-brasileira na educação das relações étnico-raciais

O campo da educação, e em especial da história da educação, deixou ao largo as medidas normativas15 que hoje, retomadas nos estudos das relações étnico-raciais com a educação, são analisadas na pesquisa acadêmica. As ações dos movimentos sociais negros se voltaram para o incentivo à educação formal, entretanto muitos perceberam a reprodução do racismo no ensino e no seu caráter etnocêntrico, ou seja, a concepção de uma superioridade de uma cul-tura em relação a outras. Munidos dessa compreensão, os movimentos sociais negros passam a reivindicar junto ao Estado brasileiro o estudo da história e da cultura da África e dos afrodescendentes.

Educação e raça no Brasil foram estabelecidas em conjunto. As primeiras medidas que constituíram o sistema educacional brasileiro tinham como prin-cipal preocupação a organização da nação brasileira, e, das inúmeras medidas tomadas com esse intuito, centralizaram-se entre as décadas de 1930 e 196016 as práticas na produção de um povo brasileiro que fosse destituído de seus caracteres étnicos, africanos e indígenas.17 As primeiras iniciativas para inser-

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ção nos currículos escolares oficiais se voltaram para o ensino da história afri-cana e afro-brasileira, cujas ações datam das décadas de 1970 e 1980 nos de-nominados ‘estudos africanos’.18

A Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, de 1986, recomendou à Assembleia Constituinte de 1987: “o processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a inclusão nos currículos esco-lares de I, II, e III graus do ensino da história da África e da história do Negro no Brasil”.19 As legislações em nível local mostraram um processo gradativo de incorporação do ensino da temática étnico-racial como proposta de uma educação voltada para novas relações raciais.

A partir da década de 1990, as ações focaram denúncias de estereotipia em livros didáticos e de práticas preconceituosas nas escolas. Alguns municí-pios passaram a atender parcialmente às reivindicações legais20 dos movimen-tos sociais negros, os quais se organizaram e exigiram do Estado brasileiro que as ações de combate ao racismo se tornassem política de Estado. Ainda na década de 1990 a influência de organismos multilaterais e de uma concepção de educação focada na produtividade e no investimento promoveu as medidas para universalização da educação. Paulatinamente, as ações políticas dos mo-vimentos sociais negros se reverteram em políticas educacionais para o com-bate ao racismo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) corroboram a ideia de existir um currículo mínimo para o ensino básico e médio, o eixo ‘Pluralidade Cultural’, no qual se encaixam as questões étnico-raciais, e refle-tem um reconhecimento pelo Estado brasileiro da característica multicultural e racial da sociedade brasileira. No que se refere ao ensino de história, o lugar da escravização ainda era predominante nessa época, com a forte influência das leituras marxistas sobre a escravidão, por meio das quais as populações africanas e negras entraram na história a ser ensinada.

No âmbito estatal, a criação do Grupo de Trabalho Interministerial Po-pulação Negra (1998), resultante da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida (1995), se insere nas medidas de incorporação dos conteúdos relativos à história africana e afro-brasileira e nas Políticas de Ação Afirmativa. A promulgação da Lei 10.639/2003 se consolida como o re-sultado de uma luta histórica dos movimentos sociais negros por uma educa-ção que contemple a diversidade e a diferença.

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O Parecer CNE/CP 003/2004 sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cul-tura Afro-Brasileira e Africana, aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2004, permitiu nortear a formulação de novas metodologias para o ensino de história, como a indicação da memória diaspórica e o estudo da história dos quilombos. A promulgação da Lei e a aprovação das Diretrizes mostram que tais medidas se voltam para a realização de uma (re)educação das relações étnico-raciais brasileiras, visto que elas operam historicamente marcadas por relações desiguais e discriminatórias.

A educação das relações étnico-raciais é uma relação de ensino e apren-dizagem que perpassa as relações entre brancos e negros, sendo, por isso, plu-ral ao considerar outras etnias e grupos de pertencimento. Destaca-se a dimen-são da multiplicidade das relações étnico-raciais, a importância de posturas e identidades positivas, um pertencimento racial ressignificado. Essa concepção de educar para as relações étnico-raciais traz questionamentos e propostas de reformulação no interior das escolas e dos currículos e nas práticas de educa-dores.

A diáspora como recurso metodológico

Embora surjam algumas diferenças conceituais conforme a referência teó-rica utilizada, a noção de diáspora acorda alguns elementos, como a noção de saída ou dispersão de um grupo para outro território.21 Uma das questões que modificam a utilização do termo é o papel da experiência da saída desses povos e a produção que constituem no lugar de chegada ou durante o trajeto de dis-persão. Aqui a referência de desterritorialização, inspirada na filosofia da dife-rença, cunhada por Gilles Deleuze e Félix Guattari,22 articula-se de forma seme-lhante, já que esse sentido de movimento e mudança é central na perspectiva desses autores. Com a mesma finalidade, a noção de espaço e de suas múltiplas ocupações é fundamental. A noção de diáspora fratura o tempo e o espaço, co-loca como problemática metodológica a centralidade da experiência dos povos em seus diferentes contextos, ou seja, diferentes processos diaspóricos.

As diferentes noções que a diáspora nos oferece permitem olhar de forma plural a história dos negros dispersos, reapropriada mediante inúmeros mo-vimentos. Os movimentos pan-africanista e rastafári, por exemplo, congrega-

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ram um projeto de união identitária e de uma experiência comum das relações entre tradição e memória e uma reconstrução histórica, podendo ser articula-dos a outros movimentos identitários e imprimindo uma estética ao positivar os dreadlocks (cf. Cashmore, 2000).

A diáspora permite uma relação mais criativa com o tempo histórico. Já é consenso que uma historicidade baseada em trajetória linear fornece poucas possibilidades metodológicas para o ensino de história africana e de cultura afro-brasileira e africana. Quando nos voltamos para a pluralidade do univer-so cultural africano e de suas reminiscências na cultura brasileira, essas dimen-sões exigem sua revisão. Isso significa questionar a periodização do tempo na formação dos historiadores. As temporalidades da pré-história, história antiga, moderna e contemporânea partem de um tempo e um espaço a partir dos quais se define o que é antigo, moderno ou contemporâneo. Essa medição temporal é informada por uma espécie de norma e prática epistemológica que tem como centralidade o espaço e o tempo ocidentais, mais especificamente europeus.

Ainda como recurso temporal, a diáspora distorce as temáticas de origem e volta, relacionando-as a uma concepção de espaço como dispersão e perten-cimento a uma comunidade configurada fora das noções arraigadas de um Estado-nação, forjando termos como ‘africanos da diáspora’. O pensamento judaico no qual a ideia de diáspora se desenvolveu articulou essas noções de pertencimento, permitindo uma identificação judaica dispersa, unida por pres-supostos religiosos e culturais.

A diáspora permite um conjunto ampliado de sentidos cujo alargamento pode ser visualizado no modo como a história desses povos tem sido conside-rada de forma interna aos seus processos de dispersão. Isso pode ser visto nas maneiras pelas quais as experiências de colonização têm articulado colonizados e colonizadores de forma diferenciada e interna à estrutura colonial e pós--colonial (Hall, 2009).

Ao colocarmos analiticamente a diáspora na construção metodológica inventamos uma cisão na relação espaço/tempo. Diante de tais caminhos a diáspora se constitui como uma alternativa com a qual é possível ensinar a história dos africanos e de seus descendentes. Na história da África, o Conti-nente não aparece como um lugar predefinido, mas como um constructo plu-ral, e, para que seu ensino compreenda essa pluralidade dinâmica, requer-se o uso de alternativas e ferramentas metodológicas.

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Para responder a essa outra relação com o tempo e o espaço é necessário construir outra metodologia histórica, e a diáspora nos possibilita essa nova construção, na medida em que ela rompe com um tempo histórico teleológico, linear, e nos permite analisar fenômenos como a colonização pela resistência dos povos colonizados e pela relação estabelecida entre eles nos espaços colo-nizados. Como afirma Gilroy (2001), a diáspora ativa noções de temporalida-de e memória desde a perspectiva dos subordinados. É possível articular a la-dainha dos escravizados durante o trabalho, as músicas de resistência das descolonizações africanas cantadas por Bob Marley e as letras de rap contem-porâneas para compreender como os africanos e seus descendentes têm utili-zado culturalmente a música como produção e resistência às suas condições. É possível construir aulas que utilizem as poesias da négritude produzidas na França, os movimentos de libertação colonial dos países africanos e as produ-ções cinematográficas sobre as lutas pós-coloniais.

A história africana pode ser ensinada desde a noção de oralidade dos Griôs até a produção literária africana contemporânea, das lutas de mulheres e homens pela liberdade até a resistência pela escolha do suicídio à escravidão (Gilroy, 2001). É, portanto, necessária outra temporalidade para o ensino des-ses conteúdos, e a noção de diáspora é particularmente rica, pois ela rompe com a periodicidade comum ao campo historiográfico do qual a maioria dos cursos de formação de historiadores no Brasil é adepto.

Os estudos pós-coloniais têm buscado problematizar os cânones históri-cos e rever a história desses povos. A colonização, por exemplo, desponta da escravização em uma relação hierárquica e coloca em cena a resistência, a negociação e a subversão como elementos centrais das relações na colonização. Um fator essencial nesse processo é a identificação dos trabalhos que constru-íram suas análises nessa dimensão e pouco avançaram em uma mudança na concepção dessa temática.

O termo “pós” opera uma quebra no tempo, visto que o termo pós-colo-nial como teoria se alia aos outros “pós” feminismo, colonialismo, modernis-mo –, mas não do ponto de vista de uma produção teórica diferenciada, ‘após’ (no sentido de continuidade) tais períodos, e sim como um novo olhar sobre a maneira pela qual conceitos e noções são construídos. O ‘pós’ reúne espaços distintos e reorganiza suas temporalidades, rompe com categorizações binárias e nos obriga a considerar os conceitos em suas relações contingentes, relacio-

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nais e históricas. Permite compreender de que maneira discursos racializados são contados, narrados de forma repetida, cotidianamente,23 formando tropos estereotipados com os quais se criam as ideias que temos sobre os africanos e os afrodescendentes.

A diáspora nos auxilia também a operar o caráter contingente da história, possibilitando uma historicidade aos eventos – estudar e compreender como eles se tornam históricos e qual lugar ocupam na história. Para o ensino de história que pode utilizar a dimensão diaspórica como recurso sugere-se a apresentação dos eventos históricos de forma não linear, articulando temáticas que comumente aparecem separadas nos cursos de história e em boa parte dos materiais didáticos disponíveis. Aqui entra o quilombo.

O espaço das comunidades quilombolas

Para aludir às comunidades quilombolas, marcaremos, em princípio, o lu-gar onde as consideramos para este texto. Pensamos o quilombo de forma dias-pórica. Consideramos a historiografia que busca compreender o movimento das comunidades quilombolas voltando-se para o seu surgimento e para as relações que elas estabeleceram com outros grupos. No entanto, colocamos o quilombo diasporicamente ao lado desse campo consolidado da pesquisa sobre quilombos. Pensá-lo de forma diaspórica centraliza o espaço e seu movimento.

Entre as principais referências históricas e sociológicas das comunidades quilombolas está a visão de que elas atuaram por um lado como uma insurrei-ção ao escravismo e, por outro, como uma experiência de sociedades marcadas por elementos pluriculturais.24 Em alguns momentos elas se opuseram ao go-vernamento estabelecido no Brasil, mantendo-se de forma constante na his-tória brasileira (Moura, 1988). Isso exige retomarmos o fato de que os quilom-bolas, majoritariamente africanos e descendentes, ressignificaram seu papel como comunidades resistentes ao escravismo brasileiro, o que não impediu a presença no interior do espaço quilombola de pessoas como desertores e per-seguidos.25 Ou ainda, “índios, perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perse-guidas pela polícia, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço mili-tar, mulheres sem profissão, brancos e prostitutas” (Munanga, 2004, p.34), cujos registros de participação em muitas comunidades quilombolas apontam formas de socialibilidade entre esses grupos que escapavam à hierarquia social

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da época. Munanga destaca que “imitando o modelo africano, eles transfor-maram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, cam-pos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade ... prefigurando um mo-delo de democracia plurirracial” (2004, p.63) ou pluricultural.

Há inúmeros processos históricos de ressemantização para designar as experiências de resistência à opressão dos negros no Brasil e em outros países. Entre eles há pluralidade de termos: quilombos, quilombolas, mocambos e comunidades remanescentes de quilombo são exemplos desse processo. A pa-lavra, de acordo com o contexto histórico, tem apresentado significados dife-rentes, apontando transformações de ordem semântica e prática em sua utili-zação. Assim, estudar quilombos no século XVII remete a características diferentes do que encontraremos nos séculos XVIII e XIX. Distancia-se de nós a denominação atribuída aos quilombos como “refúgios de escravos fugidos”,26 mas, ao serem ressignificados, despontam noções sobre as formas de lutas contra as investidas de destruição dos quilombos e resistências solidárias.27 A prática da quilombagem à época era também marcada pelo assalto, pelo se-questro de outros escravizados, pela formação de famílias e pela recriação de aspectos culturais africanos (Reis, 1996).

O histórico da existência de quilombos não se restringe ao Brasil. Grupos de diferentes denominações (palanques na Colômbia, México, Equador e Cuba; cumbes na Venezuela; marrons no Haiti, nas ilhas do Caribe Francês, Suriname, Estados Unidos, Guiana e Jamaica; cimarrons na América Espanho-la, marrons e bush negroes na Guiana Francesa)28 expressaram e expressam em diferentes localizações a inconformidade com um sistema de exclusão social e opressão, principalmente aos negros e seus descendentes, mas que também se estende aos camponeses, pobres e marginalizados. Firmaram-se como espaço político e social de domínio dos excluídos, espaços de resistência.

Atualmente, uma característica comum às comunidades quilombolas dos séculos XX e XXI é o traço da luta, prioritariamente luta pela terra. Tal ação vem sendo acompanhada por vários setores da sociedade organizados em grupos de reivindicação social, com destaque para os movimentos sociais ne-gros. No âmbito legislativo, a mais significativa conquista é voltada ao con-teúdo do Art.º 68 das Disposições Transitórias da Constituição Brasileira de 1988, que prevê:

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§ 68º Aos remanescentes das Comunidades de Quilombos que estejam ocu-pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emi-tir-lhes os respectivos títulos.29

Além do direito à permanência na terra, o processo de reconhecimento assegura a posse da terra a esses grupos, coletivizando-a, obedecendo a prin-cípios que propõem “utilização do solo e recursos naturais em geral, de forma ecologicamente equilibrada, por interesse histórico, cultural, científico, públi-co, econômico e por justiça social”.30

Segundo Clóvis Moura o quilombo foi uma forma de resistência ao escra-vismo, representativa na medida em que conheceu registros durante todo o período escravista e mantém uma noção de ‘recriação’ aos modos de vida de alguns reinos africanos, como especialmente em Palmares.31 O enfoque de Moura é importante, pois constrói a análise por meio da ação do escravizado, fornecendo uma análise da unicidade atribuída ao escravizado negro – sua passividade. O autor se junta a outros, como Décio Freitas, que empreenderam uma crítica historiográfica e sociológica ao estudo das revoltas escravas e da noção de democracia racial presente à época de suas publicações. Contempo-raneamente, sua característica de resistência persiste para ser preservada como um espaço do campo,32 sendo denominados como ‘comunidades remanescen-tes de quilombo’.

Com base nessa proposição, comunidades de todo o Brasil vêm buscando o reconhecimento como quilombolas. Com ressalvas ao termo ‘remanescen-tes’, alvo de discussões e embates, cabe ao grupo considerar-se ‘quilombola’ e se autodefinir como tal, traçando seu percurso histórico, cultural e étnico. De acordo com a legislação,33 ser remanescente de quilombo está diretamente associado ao uso que se faz das ‘terras de preto’ e ao processo histórico-cultu-ral que alicerça o grupo. Como várias comunidades ainda se encontram em processo de reconhecimento, salientamos que o que se observa – além do re-conhecimento ou titulação de cunho legal – é o interior desses espaços, deno-minando-os indistintamente como comunidades quilombolas, e seus habitan-tes, como quilombolas. Embora conscientes de seu processo dinâmico de formação e das várias interferências culturais a que estão atreladas, dedicamos maior atenção à relação que essas comunidades constroem com uma ances-tralidade africana, sua cultura, história e diálogo com o presente. Como pro-

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dução de resistência, a ação dos quilombos passa a ser denominada de quilom-bagem, articulando-se com a ação dos movimentos sociais negros contemporâneos, o que permite ao historiador em sala de aula construir ana-logias entre as formas de resistência atuais.

Educação quilombola

Na consideração das diretrizes que propõem o ensino de história da Áfri-ca e cultura africana e afro-brasileira algumas possibilidades são abertas. A primeira retoma a linguagem, ao observarmos que os livros, artigos e materiais didáticos que fazem referência ao quilombo trazem em sua maioria uma ima-gem de Zumbi ou uma imagem de um espaço quilombola do período colonial, produzindo uma determinada linguagem que é retomada quando se atêm a esse tema. É possível recriar uma revisão do ‘quilombo histórico’, trazendo para nosso cotidiano as comunidades quilombolas hoje, observando sua pro-dução histórica, cultural e modo de viver e fazer educação. Pode-se atentar a essa construção com aulas a respeito da constituição dos quilombos, sua atual luta pela terra e os diversos conflitos agrários presentes na sociedade brasileira.

Em ambas as possibilidades, podemos tratá-las diasporicamente, repen-sando uma estrutura metodológica do ensino de história, o que pode ir além das estratégias convencionais de leitura e compreensão de textos didáticos. Tal ideia segue o princípio de que é necessário considerar o próprio dado consti-tutivo do ensino de história e da própria história, ou seja, reconhecer que a história como disciplina científica ou forma de pensamento infere o “olhar retrospectivo sobre os objetos, a certeza de que cada uma das realidades que observamos no presente pode e deve ser mais bem compreendida através do conhecimento de sua inserção no tempo”.34

A título de exemplo, podemos considerar as práticas desenvolvidas no âmbito de pesquisa etnográfica junto à Comunidade Remanescente de Qui-lombo de Bombas, no interior do estado de São Paulo.35 O trabalho teve enfo-que na experiência da ludicidade infantil e nos saberes produzidos com e entre as crianças na comunidade, observando também a relação entre o lúdico e a construção de conhecimentos genuínos da comunidade entre os demais habi-tantes. Há uma dimensão pedagógica inserida na comunidade, que figura no lugar do que se denomina educação não formal. A ideia é que se pode aprender

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história além do que está no livro didático ou apostila, mas que é possível compreendê-la, ensiná-la e aprendê-la na dinâmica em que estamos inseridos, transformando a lógica do “currículo uniforme”,36 pois o considerado ‘não saber’ também é conhecimento.

Em linhas gerais, a comunidade apresenta aspectos peculiares quanto à sua formação e organização. Localizada no centro da floresta, prescinde de saneamento básico, energia elétrica ou estrada, tendo seus moradores de se deslocar por trilhas. A organização social é marcada por papéis definidos, for-temente marcados pelo gênero, prefigurando uma dimensão ‘invisível’ 37 das normas sociais válidas no interior da comunidade.

O plural se apresenta como uma diversidade de jogos, brincadeiras e si-tuações lúdicas. Dentre os mais conhecidos estão a mancala e pernas de pau, que permitem ver como as crianças em diversos espaços inspiram suas brin-cadeiras a partir de referências culturais – no caso citado, matrizes africanas –, embora elas também estejam conectadas com a sua contemporaneidade, como nos momentos em que brincam com o celular. Hoje, o lúdico assume forma variada, transitando entre o saber local e os saberes advindos do conví-vio com outros espaços e pessoas. Por exemplo, os mais jovens ouvem músicas como o rap, como os jovens que vivem nas cidades, mas não deixam de ouvir canções sertanejas e conhecem danças tradicionais como o fandango.

Na comunidade existem escolas iniciadas com as pessoas do local: os que mais sabiam ensinavam aos outros, até o reconhecimento pelo poder público municipal. Quando essas iniciativas foram reconhecidas como escolas públi-cas, os professores que passaram a atuar deixaram de ser necessariamente do entorno e trouxeram outras referências, normalmente de experiência urbana. Os materiais didáticos utilizados partem de outra realidade e pouco ressoam no fazer cotidiano dos habitantes de Bombas. Uma vez que essas escolas fazem parte da rede municipal, os materiais didáticos, sobretudo apostilas indicadas pela Secretaria de Educação, uniformizam o conhecimento, sem atentar para a diversidade do conhecimento ou para as especificidades do contexto. Deslo-cam, quando não renegam, os saberes produzidos pela comunidade.

Tornando mais claro: as narrativas do grupo recuperam tradições que dialogam com o passado e o presente, com a história, trazendo elementos (categorias do saber histórico) como trabalho, terra, tempo, espaço, ocupação territorial, exploração capital, classe social, divisão de trabalho, gênero, rela-

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ções raciais, cultura e sociedade. Exemplo: um dos moradores mais antigos conta que seu pai nunca teve documento, e que ele, o filho, no dia em que o pai faleceu, tirou “os dois documentos: o de nascimento e o de morte”.

Com base nesse relato, e em vários outros, é possível a um professor de história do ensino fundamental e mesmo do ensino médio abordar algumas questões históricas. Brincadeiras como o canjém, um tipo de balanço, e tilim-buque, espécie de gangorra, apontam para saberes em que a notoriedade cen-tra-se no corpo, como espaço de experimentação, e na linguagem, que revela o processo de significação próprio da comunidade, pois essas brincadeiras, da maneira como acontecem, só podem ocorrer na floresta: para se balançar no canjém é preciso um cipó forte para cruzar determinado espaço, de um ponto a outro; quanto ao tilimbuque, construção com restos de toras de madeira, carece do conhecimento dos mais velhos tanto para fazer a armação desse tipo de gangorra, quanto para a escolha das madeiras resistentes o suficiente para servirem de base.

O diálogo com sujeitos até então silenciados, ou classificados na categoria coadjuvante ou figurativa, inverte a proposição do ensino denominado tradi-cional em história. A oralidade, muito presente em histórias, causos, lendas e cantos, traça a identidade dos habitantes em meio à diversidade e marca outra relação com o conhecimento, levando em consideração aquilo que ainda não foi padronizado ou estereotipado nos livros didáticos.

Considerações finais

Autores do campo de ensino de história38 têm demonstrado que a área não pode se constituir por meio de uma história única, seja ela calcada nos livros didáticos, manuais de ensino ou apostilas, seja em uma única referência – a eurocêntrica, por exemplo –, consolidando um ensino “com pouca crítica e pouca criatividade” (Fonseca, 2010). Apontam também lacunas no processo de formação do professor de História, principalmente o desgaste do campo com a proposição, na década de 1970, da formação em curso único para His-tória e Geografia, na extinta grade dos Estudos Sociais. A perda da especifici-dade e da reflexão em torno do ensinar e aprender história ainda é observada em instituições escolares onde primam o livro, o resumo e o questionário co-mo tripé do ensino. Porém, o licenciado em história não é o único a trabalhar

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com seu ensino: nos primeiros anos de escolarização os pedagogos são respon-sáveis por articular o campo, e nem sempre a formação desses profissionais atenta para as demandas do ensino de história, fato que pode gerar equívocos e consequências nos anos posteriores. É nesse cenário que se insere o desafio de ensinar e aprender história no século XXI.

No decorrer do debate proposto neste texto foram trabalhadas algumas questões epistemológicas e metodológicas sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. A questão do método é um dos pontos chaves na perspectiva do ensino, especialmente no que toca ao ensino de história. Des-taca-se assim a categoria diáspora e a dimensão dos quilombos como alterna-tivas metodológicas criativas para ensinar a história das populações africanas e de seus descendentes.

Tais noções rompem com os elos nodais na construção do conhecimento histórico. Rompimento, aqui, não significa uma ruptura vazia na qual a pro-posta seria trocar uma perspectiva pela outra, romantizando a história e seu ensino, mas potencializar diversas formas de construir metodologias conforme o conteúdo a ser ofertado. Implica considerar as especificidades locais e regio-nais de escolas, perfis de estudantes e professores, o que permite ampliar as formas de ensinar história. Em relação ao estudo de história da África e cultu-ra afro-brasileira e africana as características específicas sobre o lugar dessas temáticas no ensino da história é fundamental. Aqui consideramos que o en-sino desses conteúdos específicos deve ser construído de forma orgânica na preparação da didática dos conteúdos.

Os cursos de formação de profissionais da educação sobre a temática da educação das relações étnico-raciais apontam que esses profissionais mantêm uma ideia estereotipada sobre o Continente africano e sobre as pessoas que habitam esse espaço. Muitos tiveram pouca ou nenhuma incursão nesses con-teúdos, durante sua trajetória escolar. Com os historiadores em formação isso se repete, sendo flagrantes nas salas de aulas as opiniões ainda enviesadas sobre os africanos e seus descendentes. A publicação em português da Coleção His-tória Geral da África,39 sob indicação da Unesco, vem agir no sentido de dis-ponibilizar um material denso sobre a história do Continente africano. A des-crição dos capítulos por historiadores dedicados ao tema da história africana revela postura que aponta para uma construção histórica sobre os africanos e suas produções culturais, de forma a considerar suas especificidades, e permi-

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te aos profissionais do ensino de história buscar fontes diversas como mapas, relatos e imagens para compor uma didática para o ensino da história africana e de seus descendentes.

O grande desafio para estudantes e professores está na busca de tais fontes e documentos. Deve-se considerar que uma das possibilidades de ‘releitura’ concentra-se nas próprias fontes oriundas da história considerada tradicional. O trabalho com todo tipo de iconografia,40 mitos,41 diários de viagem,42 contos tradicionais, provérbios,43 filmografia44 e literatura45 pode ser ressignificado a partir da apresentação e discussão do conceito de quilombo para além do ‘re-fúgio de escravos fugidos’, aproximando os alunos de outra referência para os quilombolas. Tais possibilidades podem auxiliar o professor a trazer as expe-riências dos estudantes para a sala de aula. Embora esse discurso tenha se tornado lugar-comum na educação, só é possível pensar uma inter-relação com a dimensão quilombola ouvindo de fato o que essas pessoas têm a dizer sobre si mesmas e suas histórias, observando e registrando seu cotidiano e fazeres. É preciso considerar as experiências desses espaços e o que podem nos ensinar sobre formas de sociabilidade, saberes tradicionais e relações interge-racionais, entre outras experiências.

Contemporaneamente o fenômeno do racismo e a percepção das diferen-ças são condicionados a uma confluência de elementos, língua, nacionalidade e religião. Operam em uma processualidade que configura nossa apreensão das diferenças, e esse movimento é instável e contingente. Todo esse universo abrange características específicas no ensino de história da África e das cultu-ras de seus povos e descendentes.

Esses conteúdos nos colocam também o desafio de repensar a função do ensino de história e a importância de seu estudo. Não se pode ensinar sobre a história dos povos africanos e o movimento da diáspora negra sem compreen-der as experiências diaspóricas vividas por esses grupos. Não se pode também ignorar a estrutura e a funcionalidade do racismo brasileiro e sua perpetuação mesmo no ambiente escolar. Tal postura exige que tenhamos uma compreen-são da presença das várias faces em que o fenômeno do racismo se perpetua, e nesse sentido o ensino de história e da cultura dos africanos e de seus des-cendentes nos oferece um caminho para uma história plural.

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NOTAS

1 CASTRO, Amélia D. O ensino: objeto da didática. In: CARVALHO, Anna Maria P. de. Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Cengage Lear-ning, 2001. p.13-29.2 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.330.3 Não esqueçamos o contexto e o impacto da análise de Hegel sobre a ausência da história dos povos negros africanos à época, “A África não é uma parte histórica do mundo” ( HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília: Ed. UnB, 1995, apud OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na litera-tura didática. Est. Afro-Asiáticos, v.25, n.3 p.421-461, 2003; p.438) e o fato de que textos como esses continuam ainda hoje a ser lidos nos cursos de formação de historiadores.4 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Ed. UFBA, 2008.5 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001. p.432; MIGNOLO, W. D. La idea de América Latina: la herida colonial y la opci-ón descolonial. Barcelona: Gedisa Ed., 2007. p.240.6 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Avila, Eliana Lourenço L. Reis, Glaucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.238.7 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Hori-zonte: UFMG, 2009. p.410.8 Movimento artístico e político criado por intelectuais negros de maioria da língua france-sa, na década de 1930, que produziu uma crítica literária ao colonialismo e ao racismo.9 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.150. (Col. Cultura e Identidade Bra-sileira).10 WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas bases para o Ensino da História da África no Brasil. In: Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília: Secad/MEC, 2005. p.134-142.11 CURTIN, P. D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição a história em geral. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.) História Geral da África. 2.ed. rev. Brasília: Unesco, 2010. p.44.12 O termo afrocêntrico se refere a uma perspectiva aplicada ao modo de estudar as temáti-cas relativas ao continente africano por uma perspectiva orgânica, pensada desde o início a partir de uma forma específica de operar o tempo e a narrativa acerca das experiências africanas (ASANTI, in: CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad. Dinah Kleve. São Paulo: Selo Negro, 2000. 598p. p.62-64).

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13 Cf. THORTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2004.14 NDIAYE, Pap. La condition noire: essai sur une minorité française. Paris: Gallimard, 2008. p.501.15 Referimo-nos ao decreto imperial de 1870, que impedia o acesso de negros escravizados às escolas, entre outras leis que impediam o acesso a africanos livres ou libertos.16 Estamos nos referindo às medidas legislativas de caráter estatal, no entanto não descon-sideramos as propostas pedagógicas das associações negras como, por exemplo, o Teatro Experimental do Negro (TEN) e da Frente Negra Brasileira.17 DAVILA, Jerry. Diploma de brancura. Política social e racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. p.399.18 PINTO, R. P. Movimento negro e a educação do negro: a ênfase na identidade. Cadernos de pesquisa, São Paulo, n.86, p.25-38, 1993.19 SANTOS, S. A. A lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. SECAD. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília, 2005. p.21-38.20 Nas leis de Porto Alegre em 1991, de Belém em 1994, na disciplina de História. Para a efetivação dos conteúdos na disciplina, as leis propõem, de maneira geral, levantamento de bibliografia específica, reuniões e organização de seminários. Em 1994, o município de Aracaju institui curso preparatório para a inclusão de conteúdos relativos à História e Cul-tura do negro e do índio na rede de ensino. Em 1994 o município institui o ensino da ‘Raça Negra’. Em São Paulo, no ano de 1996, o município institui os ‘estudos contra a discrimi-nação racial’; em Brasília, também em 1996, os conteúdos relativos à ‘Raça Negra’ são in-cluídos no sistema de ensino do Distrito Federal.21 WIEVIORKA, M. O racismo: uma introdução. Trad. Fany Kon. 1.ed. São Paulo: Perspec-tiva, 2007. p.164.22 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997. p.235.23 Valentin Mudimbe chama de discours subreptices um determinado modo pelo qual os discursos são construídos e repetidos. Ver em NDIAYE, 2008. 24 Cf. em Quilombismo (2.ed. Brasília: Fundação Cultural Palmares; OR Ed., 2002) a análise de Abdias do Nascimento da proposta de ‘Estado quilombista’.25 REIS, João J. Quilombos e revoltas no Brasil. O povo negro no Brasil. Revista da USP, São Paulo, v.28, p.14-39, 1996. p.16.26 No século XVI, o Conselho Ultramarino denominava quilombo como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ran-chos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA apud MUNANGA; GOMES, 2006, p.70). Já no século XIX, a lei Provincial 157 (9 ago. 1848, Rio Grande do Sul) define: “por

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quilombo entende-se a reunião no mato ou em lugar oculto de mais de três escravos” ou “habitação clandestina nas matas e desertos que serviam de refúgio a escravos fugidos”. PINHO, José Ricardo Moreno. Escravos, quilombolas ou meeiros: escravidão e cultura po-lítica no meio São Francisco (1830-1888). Dissertação (Mestrado) – UFBA. Salvador, 2001. p.84.27 MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006. p.9-140.28 Cf. ANJOS, Rafael; CIPRYANO, André. Quilombolas: tradições e cultura da resistência. São Paulo: Aori Comunicação, 2006.29 ITESP. Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e conquista de território. São Paulo, 2000 (Cadernos ITESP, 3). p.3.30 ITESP, 2000, v.3, p.8. A questão da ressemantização do termo ‘quilombo’, passando por quilombolas e comunidades remanescentes de quilombos, tem sido pauta de vários estu-dos, dentre os quais se destaca ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola (Bauru: Edusc, 2006), que traça não apenas o históri-co desse processo como também as relações implicadas no âmbito das políticas públicas. 31 MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 4.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p.24-25.32 Todavia, é importante destacar que entre os quilombos contemporâneos, comunidades urbanas também têm direito à nomeação e titulação como quilombolas, como é o caso da Comunidade de Brotas, em São Paulo.33 Decreto 4.888 de 10 nov. 2003: “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade ... com pre-sunção de ancestralidade negra relacionada com a opressão historicamente sofrida” (cf. MATTOS, H. Remanescentes das comunidades dos quilombos: memória do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.68, p.104-111, 2005-2006).34 CERRI, L. F. Uma proposta de mapa do tempo para artesãos de mapas do tempo: histó-ria do ensino de História e didática da História. In: MONTEIRO, A. M.; GASPARELLO, A. M.; MAGALHÃES, M. S. (Org.) Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. 1.ed. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2007. v.1, p.59-72. p.60.35 SANTOS, Maria Walburga dos. Saberes da Terra: o lúdico em Bombas, uma comunida-de quilombola (estudo de caso etnográfico). Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, USP. São Paulo, 2010.36 FORMOSINHO, João. O currículo uniforme, pronto a vestir, de tamanho único. Man-gualde (Portugal): Ed. Pedago, 2007.37 Cf. MOURA, G. o aprendizado nas comunidades quilombolas: o currículo invisível. In: BRAGA, Maria Lúcia de S.; SOUZA, Edileuza P. de; MAGALHÃES PINTO, Ana Flávia (Org.) Dimensões da inclusão no Ensino Médio. Brasília: MEC; BID; Unesco, 2006. p.259-

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270. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/001463/146328por.pdf; Acesso em: 21 abr. 2012.38 CIAMPI, Helenice. A História pensada e ensinada: da geração das certezas à geração das incertezas. São Paulo: Educ; Fapesp, 2000; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensi-no de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009; FONSECA, Selva Gui-marães. Caminhos da História ensinada. Campinas (SP): Papirus, 2010.39 A coleção composta por oito volumes foi publicada em 1981, em inglês, e em 2010 foi publicada em português por uma parceria entre a Unesco, o Ministério da Educação e a Universidade Federal de São Carlos. Disponível em: www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/general_history_of_africa_collection_in_portugue-se-1/; Acesso em: 21 abr. 2012.40 As ‘pranchas’ tradicionais de Debret, por exemplo, para serem problematizadas e discu-tidas à luz dos conceitos de diáspora e quilombos.41 Observar os trabalhos de Roger Bastide e Reginaldo Prandi.42 Trabalhos de Vanhargen, orientando leituras e promovendo reflexões. Cf. LAPA, José R. A. História e Historiografia do Brasil pós 64. São Paulo: Paz e Terra, 1985.43 Obras de Luís da Câmara Cascudo, no caso de contos tradicionais, folclóricos e provér-bios.44 Além de filmes do circuito comercial, observar a produção de documentários como Qui-lombos da Bahia (dir. Antônio Olavo. Salvador: Portfolium, 2005).45 Cf. AMÂNCIO, I. M. C.; GOMES, N. L.; JORGE, M. L. S. Literaturas africanas e afro--brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.168.

Artigo recebido em 10 de janeiro de 2012. Aprovado em 23 de abril de 2012.

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Para construir outro olhar: notas sobre o ensino de história

e cultura africanas e afro-brasileirasTo build another look: notes on the teaching

of African and Afro-Brazilian history and culture

Hilton Costa*

ResumoO presente texto busca destacar a im-portância da construção de um novo olhar no que diz respeito ao ensino de história e cultura africanas e afro-brasi-leiras. O texto se divide em dois mo-mentos: o primeiro versa sobre a impor-tância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira, por meio da Lei 10.639/2003, e sua relação com a formação de docentes. O segundo apon-ta para uma sugestão de trabalho em sala de aula: parte-se do contexto inte-lectual pós-abolição no Brasil, indican-do sua relação com o senso comum e a maneira como este articula a manuten-ção de estereótipos e estigmas acerca da população negra no Brasil.Palavras-chave: educação; cultura e his-tória afro-brasileiras; relações raciais.

AbstractThis paper seeks to emphasize the im-portance of constructing a new perspec-tive regarding the teaching of African and Afro-Brazilian history and culture. The text is divided in two sections: the first relates to the importance of the changing of the Law of Guidelines and Bases of Brazilian Education, by means of the Law 10.639/2003 and its relation-ship with the process of training teach-ers. The second suggests a way to work with the issue in classrooms: as a part of the intellectual context in post-abolition in Brazil, indicating the liaison with common sense and the ways in which it reinforces the maintenance of stigmas and stereotypes about black population in Brazil.Keywords: education; afro-brazilian history and culture; racial relationship.

* Doutorando em História. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Rua General Carneiro, 460, sala 716, 7º andar, Ed. Dom Pedro I, Centro. 80060-150 Curitiba – PR – Brasil. [email protected]

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Para ser mais claro: excluindo um seleto grupo de intelectuais e pesquisadores, uma parcela dos afrodescendentes e pessoas ilu-minadas pelas noções do relativismo cultural, nós, brasileiros, tratamos a África de forma preconceituosa. Reproduzimos em nossas ideias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam um Continente marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabi-lidade política, aids, fome e falência econômica. Às imagens e informações que dominam os meios de comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estu-dos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos os afrodescendentes aqui dentro.1

O espaço escolar, desde pelo menos a Reforma Protestante, no século XVI, ganhou centralidade na vida das pessoas no mundo ocidental. A escola se tornou, em teoria, algo obrigatório às pessoas, seja pela necessidade de se ajus-tar à sociedade envolvente, seja pela imposição do Estado, ou ainda pela com-binação das duas situações. No Brasil, uma pessoa que consiga cumprir o per-curso educacional formal deverá passar de 12 a 13 anos na escola. E nisso se excluem os períodos anteriores à inserção no ensino fundamental, o momento outrora denominado pré-escolar, e o ensino superior. Desta feita, durante um período de 12 ou 13 anos uma pessoa pode vir a passar de quatro a cinco horas diárias no espaço escolar. Logo, não é difícil admitir a relevância da escola enquanto ambiente essencial de socialização admitida em sentido amplo.2 A socialização é assim entendida porque não diz respeito somente à relação da/do discente com os conteúdos das diferentes disciplinas, mas também à convivência com as/os colegas, professoras/es, funcionários/as. É nesse uni-verso que inúmeras pessoas estabelecem suas primeiras relações de amizade/inimizade, de trabalho em equipe, reconhecem as primeiras sensações de su-cesso/insucesso. Ou seja, a escola é o primeiro local onde as pessoas são apre-sentadas a inúmeras situações da vida social, circunstâncias mais amplas e complexas, na maioria dos casos, do que aquelas vividas no ambiente familiar, primeiro ambiente de vida social para muitos. A escola, mesmo sendo confes-sional ou militar, as expõe às diferenças, diferenças estas que dão uma dimen-são mais próxima do que é a vida social nas sociedades modernas. É no am-biente escolar, também, que se dá a necessidade de lidar com a diferença.

De um modo geral e generalizante, a tendência é trabalhar com a diferen-ça, com as diferenças, fazendo uso de algumas ferramentas interpretativas. Tais

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ferramentas compõem a forma ou as formas como as pessoas lidam com o mundo à sua volta. Elas são aqui agregadas na expressão conceitual: visão de mundo. Esta é elemento essencial, básico para a interação dos indivíduos com a sociedade. É construída em vários espaços sociais e, evidentemente, a escola é um deles, talvez um dos mais importantes. A escola fornece elementos es-senciais à forma como elas vão ler e interagir com o mundo à sua volta. Assim sendo, a atuação docente e dos programas escolares é decisiva à composição da forma como muita gente vai perceber o mundo. Desta feita, mostra-se ne-cessário a quase toda e qualquer tentativa de rever posições e ideias socialmen-te arraigadas que passe por um diálogo sério com professores/as, educadores/as e pelos programas escolares. As mencionadas posições arraigadas não o são desde sempre, elas foram se tornando sócio-historicamente o que são. De mo-do a poderem ser desarraigadas.

Assim, voltando diretamente ao tema que propomos tratar aqui, pergun-tamos: o que sabemos sobre a África, suas populações, civilizações? Ou sobre a população negra do Brasil? Anderson Ribeiro Oliva, em artigo publicado em 2003, mesmo ano da Lei 10.639, faz observações importantes acerca da imagem da África no Brasil. Apesar das mudanças em curso nos últimos anos, suas colocações são pertinentes. Além daquelas presentes no excerto que serve de epígrafe para o presente texto, Oliva ainda destaca que:

Para além da educação escolar falha, é certo afirmar que as interpretações racis-tas e discriminatórias elaboradas sobre a África e incorporadas pelos brasileiros são resultado do casamento de ações e pensamentos do passado e do presente ...

As distorções, simplificações e generalizações de sua história e de suas popu-lações são comuns a várias partes e tempos do mundo ocidental. Dessa forma, se continuarmos a reproduzir leituras e falas ... é muito provável que o imaginário de nossas futuras gerações sobre a África não sofra modificações significativas. (Oliva, 2003, p.431)

Oliva informa acerca da existência de posições, imagens bastante arraiga-das acerca da África, suas populações e civilizações, bem como sobre história e cultura afro-brasileiras no cotidiano escolar. Posições e imagens, em geral, postas a apresentar visões, se não negativas, pelo menos estereotipadas. E isso se dá em um local importante para a formação da visão de mundo das pessoas. De fato, como se buscará apresentar adiante, essa situação vem se alterando,

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mas ainda há no senso comum, no senso comum escolar, no senso comum acadêmico, imagens distorcidas da África e de suas civilizações, há muito ar-raigadas. Tais imagens foram, em grande medida, construídas pelo colonialis-mo, pelo neocolonialismo e também pela nova onda de hegemonia euro-esta-dunidense nomeada de globalização. A produção cultural e intelectual vinculada de alguma maneira à visão de mundo desses movimentos difundiu e fixou a imagem da região como o local de guerras endêmicas, ou ainda a do lugar sem humanidade, espaço do natural por excelência, lar dos grandes ma-míferos das savanas e do Saara. E seus povos foram vistos como atrasados. Esse rol de estigmas e estereótipos, infelizmente, ainda persiste quando a Áfri-ca é discutida em sala de aula. De fato, existem inúmeros conflitos armados no continente africano, há a epidemia de aids, há a fome, e lá estão os grandes mamíferos e o Saara; a questão é que a África não se resume a isso. Com efei-to, devemos chamar a atenção para o fato de que em se olhando para essas situações com outro olhar pode-se buscar compreender o processo que as for-mou – os motivos dos conflitos armados, por exemplo – e analisar vários as-pectos, como o fato de que o Saara aumenta a cada ano.

Um tratamento estigmatizado e estereotipado também foi dado – e infe-lizmente ainda o é – à história e à cultura dos descendentes de africanas e africanos do Brasil. Essa população tem sua imagem associada recorrentemen-te à violência, à pobreza, à indolência e a uma sexualidade animalesca, ou seja, a um rol de características negativas. E quando se almeja valorizá-la, isso se dá por meio de outro estereótipo, o da ‘festividade’, ou seja, pela alegoria de pes-soas aptas a fazerem ‘festas’, mas inaptas a responsabilidades de outra ordem. Nesse caso, como no anterior, outro olhar pode revelar, em vez de estereótipos, os processos sócio-históricos que produziram a situação que leva parte consi-derável da população negra brasileira a viver se não na pobreza, muito perto dela. Mas para tudo isso ser viável é necessário preparar o olhar para ver outras coisas, para além dos estereótipos, e, evidentemente, ter a vontade de ver outra coisa. A construção desse outro olhar é possivelmente um dos principais ob-jetivos da Lei 10.639/2003. Pois a constituição de outro olhar é fundamental para o rompimento da situação mencionada.

Desta feita, o presente texto se divide em dois momentos: o primeiro versa sobre a importância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira e sua relação com a formação de docentes. E nesse sentido é impos-

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sível ignorar a democracia racial, elemento dos mais importantes à formação da visão de mundo dos/as brasileiros/as, bem como à sua contestação. O se-gundo momento aponta para uma sugestão de trabalho em sala de aula: parte--se do contexto intelectual pós-abolição no Brasil, indicando sua relação com o senso comum e analisando como este articula a manutenção de estereótipos e estigmas acerca da população negra no Brasil. Essa sugestão é uma tentativa de exemplificar a constituição desta outra forma de olhar.

A importância da alteração da Lei de Diretrizes e Bases

O ano de 2003 constitui um momento importante na reestruturação da forma como deveriam ser abordados no ensino escolar brasileiro os conteúdos referentes à África, às suas populações e à população afro-brasileira. É nesse ano que se dá a aprovação e sanção da Lei federal de número 10.639, a lei que estabeleceu alterações na Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB), esta datada de 1996:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º. A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

§ 3º. (VETADO)Art. 79-A. (VETADO)Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia

Nacional da Consciência Negra’.Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.3

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Desde sua sanção até o presente momento esta lei foi objeto de inúmeros debates que proporcionaram uma fortuna crítica bastante extensa, ainda mais porque no mesmo período ganham espaço no Brasil as políticas de ações afir-mativas para a população negra. A Lei 10.639/2003, como se pode observar, altera o artigo 26 da LDB, colocando de maneira enfática a obrigatoriedade do ensino de História da África e das populações africanas e afro-brasileiras. O texto da lei permite a formulação de algumas inferências: a primeira, bastante evidente, é que essa temática vinha sendo negligenciada, ou seja, ela admite a negação/invisibilização desses conteúdos por parte da educação brasileira. As-sim, a partir da promulgação da lei intensificou-se o debate em torno da obli-teração dessa temática no meio educacional. Tal debate indicou, entre outras questões, a ausência de um número mais expressivo de profissionais especia-lizados em história africana no Brasil, bem como localizou a falta de conteúdos referentes a esse tema na formação dos/das docentes. A situação no que diz respeito aos temas referentes à história e cultura afro-brasileira é um tanto diferente, pois nesse caso existia um número bem mais expressivo de profis-sionais aptos a lidar com o conteúdo. O problema consistia em esses assuntos se fazerem presentes na formação dos/das docentes (Costa, 2011).

Esse cenário de início dos anos 2000 vem dando sinais de reversão, mui-to em função da legislação aprovada e sancionada em 2003, fruto de uma luta de anos dos movimentos sociais da população negra. Os cursos superiores de História vêm buscando transformar as disciplinas sobre África, até então op-tativas raramente ofertadas, em disciplinas obrigatórias. Os concursos para docentes efetivos nessa área são evidências dessas mudanças. Por exemplo, em 2010 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fizeram concursos para docentes nessa área. Em 2011 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) abriu vaga, e no mesmo ano a Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizou concurso para suprir a demanda. São estas algumas evidências da nova situação.

Mas, se por um lado esse reflexo da Lei 10.639/2003 pode ser entendido como positivo, por outro se torna relevante observar que entre as Universida-des formarem profissionais e estes estarem em sala de aula existe um lapso de tempo considerável, os professores e professoras que já estão em sala podem não ter tido essa formação e, em teoria, têm a obrigação de trabalhar história e cultura africanas e afro-brasileiras. Nesse ponto pode surgir uma situação

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perigosa, mais perigosa, talvez, que a própria obliteração dessa temática, que é a abordagem por meio de visões estereotipadas, estigmatizantes, exotizantes, enfim, visões que venham a sacramentar posições oriundas do colonialismo, do racismo científico, da democracia racial.

As posições referentes à visão colonialista receberam críticas bastante apropriadas dos estudos pós-coloniais, bem como dos estudos culturais. As teorias feministas também colaboraram e colaboram na crítica à abordagem colonialista.4 Não são poucas as abordagens que explicitam o caráter racista da cultura ocidental, tais como o trabalho, já clássico, de Frantz Fanon.5 Sobre a história e a crítica ao racismo científico são muitas as obras disponíveis: pode-mos citar, entre outras, as de Tzvetan Todorov para a gênese do racialismo, sobre a ideia de raça o texto de Michael Banton e, para inserção dessas questões no cenário brasileiro, obras como as de Mariza Corrêa e de Lilia Moritz Schwarcz.6

Com efeito, a fortuna crítica da ‘democracia racial’, acerca da sua cons-trução e desconstrução, é abundante. A ideia de que no Brasil não haveria preconceito de cor e raça não é nova, porém seu uso, mais sistematizado, pode ser localizado, especialmente, na década de 1880, ou seja, às vésperas da Abo-lição (1888). Por exemplo, Joaquim Nabuco (1849-1910) via a situação racial no Brasil assim:

A escravidão, por felicidade nossa, nunca azedou a alma do escravo contra o se-nhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato en-tre elas foi sempre isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante de si.7

A expressão ‘democracia racial’ não é, evidentemente, utilizada por Na-buco, porém é flagrante em seu discurso a construção de uma imagem de harmonia racial. Ele deixa nítido que uma vez encerrada a escravidão, todas as portas estariam abertas à população negra. Formalmente elas de fato estavam, mas apenas formalmente. Sílvio Romero (1851-1914) também não fez uso dessa expressão, todavia, seus escritos, em especial os da década de 1880, po-dem ser compreendidos como genitores da ideia do Brasil como ‘democracia racial’. No primeiro tomo de sua História da Literatura Brasileira (1888) Ro-mero positiva o mestiço como o elemento genuinamente brasileiro, fator de

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distinção da nacionalidade brasileira e de coesão do país. O mestiço romeria-no é um mestiço de fenótipo branco, mas ainda assim um mestiço.8 Desse tipo de argumentação e já nesse período, fim do século XIX, surgia a ideia de que se o Brasil é mestiço, logo não haver no país espaço para o preconceito de cor nem para o preconceito racial.

Os antecedentes são vários, mas é atribuída a Gilberto Freyre (1900-1987) a formulação da ideia do Brasil como uma ‘democracia racial’. Ele mesmo não utilizou a expressão em seus primeiros trabalhos de destaque, porém a ele foi dada a paternidade da ideia. Freyre abraçará a causa com vigor; talvez por isso a criação da ideia, bem como da expressão, seja vinculada a ele. Esse autor, em um estudo que pode ser entendido como comparativo das relações raciais entre brancos e negros nos Estados Unidos e no Brasil, afirmou não haver no segundo país as barreiras formais nem a perseguição explícita aos negros ve-rificadas no primeiro. Também destacava a ausência de uma legislação segre-gacionista no Brasil como prova da inexistência de discriminação, já que o inverso acontecia nos Estados Unidos. Além disso, a larga miscigenação era tomada como a evidência máxima da ausência de preconceitos no Brasil.9 En-tretanto, estudiosos posteriores começaram a se indagar acerca das conclusões propostas por Freyre. Mesmo durante a década de 1930, quando a revolucio-nária obra Casa-grande & senzala foi publicada pela primeira vez, algumas vozes contestavam a sua visão das relações raciais no Brasil, em especial vozes vinculadas às organizações negras. Todavia, a crítica ao modelo freyriano só se sistematizará, por assim dizer, na década de 1950. Assim, o início da des-construção da suposta democracia racial brasileira pode ser verificado, no que diz respeito à produção acadêmica, com os textos da equipe de Florestan Fer-nandes (1920-1995) e Roger Bastide (1898-1974), nas décadas de 1950 e 1960.10

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) promoveu vários genocídios, muitos deles com algum tipo de motivação racial. Ao término do conflito tais práticas se tornaram objeto de reflexão. Estas, mais os dilemas e conflitos ra-ciais espalhados por várias regiões do mundo, se tornaram um problema a ser investigado e, mais importante, solucionado. Assim, a recém-criada Organi-zação das Nações Unidas (ONU) resolveu financiar um estudo sobre o Brasil, pois o país era considerado tanto externa quanto internamente (ao menos pela maioria) como o lugar da ‘democracia racial’, portanto livre de precon-ceitos raciais e dos conflitos decorrentes.11 Entretanto, as pesquisas empíricas

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patrocinadas pela ONU e desenvolvidas pela equipe de Florestan Fernandes e Roger Bastide revelaram outra realidade. As conclusões da equipe de Fernan-des indicaram, ao invés da ausência de preconceito racial no Brasil, a sua pre-sença em formas bem mais refinadas do que uma legislação segregacionista pura e simples. A discriminação racial no caso brasileiro se construía não pela sua afirmação, mas por sua negação. As atitudes e práticas discriminatórias se articulam em ações sutis, porém com efeitos nada sutis. Um deles é tão forte que promove a autoexclusão da população negra de inúmeros espaços, levan-do-a a entender de modo bem nítido o sentido da famosa frase: “no Brasil não tem essas coisas de racismo, porque preto sabe o seu lugar”.

O processo de autoexclusão sugerido pela sociedade conduz parte signi-ficativa da população negra a nem tentar ocupar alguns espaços, uma vez que os relatos das ‘barreiras’ invisíveis são comentados no seio dessa população.12 E nesse ponto outro aspecto do ‘racismo à brasileira’ aparece com toda a força: o peso do racismo brasileiro só recai sobre os discriminados, pois os discrimi-nadores não necessitam exercer o seu racismo, uma vez que este é construído como um não-problema. Logo, os discriminados reclamariam de algo que não existe.

Essa situação toda é bem expressa na assertiva de Fernandes (1971): “o preconceito de ter preconceito”, de modo que o preconceito no Brasil não é demonstrado pela manifestação pública explícita – por exemplo, por meio de legislações segregacionistas. A discriminação e o preconceito racial se efetivam por meio de ações, em grande medida, implícitas. Obviamente elas são implí-citas apenas para quem está na posição de discriminador, pois para quem está na condição de discriminado tais ações são bem explícitas (Costa, 2011).

Nesse contexto, por vezes a forma como se problematiza em sala de aula a história da África, de seus povos e civilizações, por mais que a intenção seja diversa, pode vir a reificar estereótipos e estigmas. A situação da história afro--brasileira não é diferente. Esta argumentação não quer de modo algum inferir que todo o conhecimento acerca da história e da cultura africanas e afro-bra-sileiras que se trabalhavam ou que se vêm trabalhando nas escolas detém estas características, mas sim que a formação em alguns casos inadequada de do-centes pode levar à situação destacada anos atrás pela equipe de Florestan Fernandes e Roger Bastide. Ou seja, pode se configurar em mais uma forma sutil de discriminação, de estigmatização. Atentos a essa possibilidade, os Nú-

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cleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) formados em várias universidades brasileiras também no contexto da Lei 10.639/2003 e das políticas de ação afirmativa vêm buscando levar a cabo cursos de formação de docentes na te-mática, no intuito de construir um novo olhar dos profissionais de educação sobre a África e suas populações, bem como acerca da população negra do Brasil, um olhar que escape às determinações racistas e discriminatórias. Em sendo a escola um espaço vital à conformação da visão de mundo das pessoas, a figura do professor torna-se igualmente fundamental. Assim, a formação de professoras e professores com uma visão de mundo mais aberta à diversidade cultural é essencial para a constituição de pessoas detentoras de condição se-melhante. Em suma, a formação docente é passo mais do que fundamental para a construção de um novo olhar sobre a história e a cultura africanas e afro-brasileiras.

Buscando um novo olhar

A segunda seção desta argumentação, como mencionado anteriormente, aponta para uma sugestão de trabalho em sala de aula. Toma-se o contexto intelectual pós-abolição no Brasil, indicando como essa situação se articula ao senso comum e como este, por sua vez, se relaciona com a manutenção de estereótipos e estigmas acerca da população negra no Brasil, como indicado na seção anterior. A ideia subjacente a esta proposta é a tentativa de exempli-ficar a constituição dessa outra forma de olhar.

De maneira geral, até o ano de 1888 a sociedade brasileira tinha uma or-ganização muito próxima àquela definida como estamental. Pois, mesmo exis-tindo todo um setor de homens e mulheres livres vivendo e trabalhando du-rante a vigência do regime escravocrata, a sociedade dividia-se essencialmente entre pessoas livres e cativas, como bem indica Maria Sylvia de Carvalho Franco.13 Essa divisão básica pode ser entendida como marco essen-cial à composição do modo como ambos os grupos liam o mundo e com ele interagiam. E com isso não se descartam, evidentemente, as inúmeras divisões internas presentes tanto entre os livres (do senhor de escravos latifundiário até o trabalhador por jornadas) quanto entre a população cativa (do escravo com ofício ao trabalhador da lavoura), mas se destaca o marco básico à construção do modo de se lidar com o mundo. Desta feita, estamos a falar de uma socie-

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dade hierarquizada e organizada segundo uma diferença essencial entre as pessoas, a diferença entre livres e escravos. Após o decreto de 1888, que pôs fim à escravidão e formalizou que todos seriam iguais perante a lei, impôs-se uma alteração substancial no ordenamento básico da sociedade.14

A sociedade, até então pensada em termos de uma diferença clara e aber-ta, agora deveria se orientar pela igualdade. Contudo, é interessante lembrar que cerca de uma década antes da assinatura do decreto imperial já iam se constituindo, ao menos entre as elites intelectuais, novas maneiras de perceber o mundo. Nos anos 1870, como destacou João Cruz Costa (1904-1978), fazen-do uso da expressão cunhada por Silvio Romero, chegou ao Brasil “um bando de ideias novas”.15 Entre essas ideias está presente todo um jargão cientificista, positivista, como também as proposições referentes ao racismo científico.16 Tais proposições estavam em voga na Europa desde princípios do século XIX. Entretanto, o denominado racismo científico só adentrou o Brasil com alguma força quando a escravidão no país já apresentava nítidos sinais de esgotamen-to. As leis abolicionistas são sinal disso. Assim, uma das formas de pensar tal coincidência entre a proximidade da abolição, da equiparação jurídica das pessoas, e a entrada do racismo científico no Brasil pode estar na necessidade de demarcar posições na sociedade, ou seja, manter uma dada hierarquia (Cos-ta, 2007a).

A indicação de Mariza Corrêa é extremamente pertinente, pois, para essa autora,

não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica, apoiada em relações de fa-vor entre as raças, que os negros e seus descendentes foram socialmente excluí-dos da participação de vários setores da vida pública brasileira, mas também pela manutenção de uma política autoritária em cuja definição a presença da discri-minação não pode ser esquecida. Essa exclusão parece ter sido também o resul-tado de uma atuação coerente, apoiada por um racismo ‘científico’, que legitimou iniciativas políticas seja no nível nacional – como no caso dos privilégios conce-didos à imigração que tiveram como consequência uma entrada maciça de bran-cos no país – seja em nível regional, como políticas específicas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros ... Se não foi explicitado em leis civis discriminatórias, como a segregação racial norte-americana, o racismo, enquan-to crença na superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras, teve larga vigência entre os nossos intelectuais no período do final do século passado

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[século XIX] e início deste [século XX], sendo o ponto central de suas análises a respeito de nossa definição como povo e nação. (Corrêa, 2001, p.63)

Evidencia-se, assim, que não existe a necessidade de uma legislação espe-cífica para a efetivação de práticas discriminatórias. A divulgação e a assimi-lação de ‘verdades científicas’ que versam sobre a superioridade de uns e a inferioridade de outros acabam por ser incorporadas pelos atores sociais, e esses passam a atuar conforme esse papel. Por isso a relevância dos intelectuais empenhados em divulgar essas ‘verdades científicas’, pois no caso brasileiro eles são também deputados, senadores e ministros de Estado, ou seja, suas ideias são, em grande medida, transformadas em práticas de modo muito rá-pido. Basta lembrar que um proeminente divulgador – tardio, é bem verdade – do racismo científico, Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), foi peça importante na elaboração teórica do Regime Vargas.17 As posições desses intelectuais atingiam muito rapidamente as gazetas e os manuais escolares. Aliás, é importante enfatizar a relevância da sala de aula para a divulgação desses ideais.

De pronto a pergunta a se estabelecer é como transportar este universo de discussão para a sala de aula, como discutir de modo menos áspero História das Ideias, História Intelectual, intelectuais, como demonstrar que essas figu-ras fazem, sim, parte do nosso dia a dia.18 O meio mais recorrente, e nem por isso menos eficiente, consiste em citar trechos, num primeiro momento sem referenciá-los, e solicitar aos alunos seu debate, para posteriormente demons-trar quando e por que foram escritos, indicando a que demandas tais textos procuravam responder. Conforme a argumentação que se faz aqui, a utilização do racismo científico se dava com o intuito de manter determinada hierarquia social. Inúmeras premissas presentes nesses textos de fins do século XIX e do início do século XX tornaram-se parte indissolúvel do senso comum contem-porâneo. Por exemplo, quase todo/a brasileiro/a detém consigo uma versão sua das palavras do intelectual sergipano Sílvio Romero.19 Escritas em 1888, dizem elas acerca da formação do povo local:

A história do Brasil, como se deve hoje ser compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não também, como quis supor de passagem o ro-manticismo, a história dos tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes

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do africanismo entre nós, a dos negros no Novo Mundo. É antes de tudo a histó-ria da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo o brasileiro é mestiço, quando não no san-gue, nas ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira. (Romero, 2001, p.57, grifo nosso)

Existe outra abordagem bastante interessante para demonstrar a presen-ça dos intelectuais da virada do século XIX para o XX na nossa vida cotidiana: citar e problematizar algumas expressões, máximas e ditos populares vulgar-mente utilizados mesmo na mídia. Vejamos:

– Não tinha cara de bandido!– Olha só, com essa cara, só podia ser bandido mesmo!– Carioca é tudo vagabundo!– Baiano é tudo preguiçoso! Só sabem fazer festa!– Hoje é dia de preto!– Preto quando não faz na entrada faz na saída!

O que se sugere é o seguinte: com os alunos divididos em grupos, cada qual recebendo uma dessas frases ou outras do gênero, pedir a eles que discu-tam, segundo suas próprias opiniões, quais seriam as origens e as motivações por trás dessas assertivas. Com base nas considerações dos alunos, correlacio-nar as posições intelectuais que sustentaram e sustentam essas frases. Assim, as duas primeiras remetem à escola de criminalística italiana de Cesare Lom-broso, ao movimento que levou à fundação do Instituto de Identificação na França, protótipo de todos os demais que hoje estão mundo afora.20 A escola de criminalística italiana propunha ser possível reconhecer um criminoso, ou, ainda melhor, um criminoso em potencial mediante sua composição física, notadamente do crânio, do formato deste, surgindo dessa argumentação uma especialidade que foi considerada ciência durante certo período: a craniome-tria. Atualmente essa perspectiva vigora com toda força nas duas primeiras assertivas listadas, bem como nas abordagens policiais e nos jornais sensacio-nalistas. Esse tema da previsibilidade do crime é tão recorrente que o cinema hollywoodiano, por exemplo, o visita constantemente. Logo, poder-se-ia tra-balhar também com mais um mecanismo de problematização dessa questão: o filme Minority Report. Nele, a justiça e a ciência procuram deter o crimino-

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so antes do crime, embora sem recorrer à busca por ‘caras de bandido’. Nesse sentido faz-se o monitoramento dos pensamentos, pois, por meio deles se lo-calizaria o/a criminoso/a em potencial.21 Ou seja, vigiando-se o pensamento, é possível monitorar o crime. Troca-se a aparência física pela aparência dos pensamentos para indicar o tipo criminoso.22

O nascimento dos institutos de identificação está intimamente ligado à perspectiva há pouco exposta. O instituto de identificação francês, pioneiro na área, tinha como grande objetivo localizar possíveis criminosos – identificar o tipo criminoso. Fazendo uso de métodos à época considerados científicos, como os da craniometria, o instituto procurou identificar e classificar a popu-lação parisiense na busca dos desviantes. Coincidentemente ou não, a cons-trução ‘científica’ do protótipo do criminoso era exatamente igual à da popu-lação pobre da capital francesa, ou seja, o procedimento era em realidade mais um meio de estigmatizar, perseguir e oprimir a já sofrida população pobre de Paris.23 No Brasil tais teorias tiveram ampla aceitação; um dos seus mais proe-minentes divulgadores foi o médico maranhense, radicado na Bahia, Raymun-do Nina Rodrigues (1862-1906); todavia, esse intelectual nada mais fez do que dar ‘cores de cientificidade’ a algo já usual.24 Desde fins do século XIX, ou mesmo antes, a assertiva “cara de bandido” significa pobre, preferencialmente negro e/ou afrodescendente, e a sua oposta, “não tinha cara de bandido”, re-fere-se a brancos, bem trajados, não pobres. Enfim, por trás de duas assertivas corriqueiras podemos discutir intelectuais e ciência do século XIX e princípio do século XX, a constituição de processos de discriminação e estigmatização que não dependem, necessariamente, de nenhuma legislação específica.25 Na contemporaneidade a situação se alterou, contudo, a lógica das abordagens policiais não foge muito a esse princípio: tal questão pode ser trabalhada em sala de aula, por exemplo, com base na música Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, do grupo O Rappa, donde se avalia a comunicação entre as premissas de fins de século XIX com as do início do século XXI no que diz respeito à estigmatização das populações negras e pobres.26

As assertivas que dizem “Carioca é tudo vagabundo!” e “Baiano é tudo preguiçoso!”, ademais complementadas com outra máxima recorrente, “Só sabem fazer festa!”, também é uma vertente importante desse processo de es-tigmatização oriundo do racismo científico do século XIX. Pois qual é o perfil da maioria da população, tanto da cidade do Rio de Janeiro quanto do próprio

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estado do Rio de Janeiro? E de Salvador, ou do estado da Bahia? A resposta é a mesma: a maioria da população é negra e afrodescendente. Com efeito, essas assertivas retomam aquilo que já era voga no período escravista: se não fosse a escravidão, negros e mulatos não trabalhariam: em razão de sua indolência nata, eles desatariam a ficar fazendo festas e batuques. Com o fim da escravidão o discurso muda um pouco e fica mais ou menos assim: negros e afrodescen-dentes não se mostram como sujeitos aptos ao trabalho livre, assalariado, em função da sua tendência natural à indolência e a ficar fazendo festas e batuques. Essa inaptidão de negros e afrodescendentes para o trabalho livre, assalariado, foi tema de intensos debates parlamentares no Brasil de fins do século XIX. A despeito da oposição de alguns parlamentares, o remédio apontado era o de trazer mão de obra da Europa, sobremaneira da Europa do Norte. Até mesmo o abolicionista Joaquim Nabuco entendia a imigração europeia como funda-mental ao Brasil.

E quando se admite que negros e mulatos sejam de fato capazes de exercer funções no mercado de trabalho livre, a eles se reservam atividades braçais, de baixa remuneração e status, normalmente aquelas que são extremamente ex-tenuantes, ou seja, atividades que mantêm viva a lembrança da escravidão – o animal de carga, o que executa tarefas de menor prestígio social, de subalter-nidade. O racismo científico configurou-se em propositor e divulgador, com outras vestes, de uma antiga vulgata – “O que é bom nasce feito!”. Ou seja, da ideia das aptidões natas: alguns grupos são naturalmente aptos para isso ou aquilo, e não para outra coisa. Esse tipo de pensamento afirma que as popula-ções negras não seriam biologicamente aptas a funções profissionais mais com-plexas, que exigissem maior capacidade intelectual. Logo, as ocupações pro-fissionais histórica e socialmente construídas para os grupos negros e afrodescendentes brasileiros, por essa lógica, seriam aquelas passíveis de serem expressas na assertiva “Hoje é dia de preto!”, que pode muito bem ser enten-dida como referência a um dia de trabalho pesado, difícil e mal remunerado. A manutenção de tais expressões no senso comum, especialmente do centro--sul do país, revela a intensa comunicação ainda existente entre a atualidade e a virada do século XIX para o XX no intuito de se manter certa visão de mun-do. O trabalho escolar com história e cultura afro-brasileiras deve procurar desconstruir esse tipo de perspectiva, e nesse sentido deve-se entender sua construção e formas de manutenção.

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E aqui surge a necessidade de se abrir parênteses importantes, uma vez que atualmente discussões acerca das supostas aptidões natas das pessoas se revestem de outra vestimenta – a genética. Tal grupo de pessoas possui genes apropriados para isso e aquilo, e não para aquilo outro. Dado o alto desenvol-vimento científico e tecnológico envolvido com as questões da genética, pou-cos se atrevem a problematizar algumas das afirmações originárias de suas proposições.27 Um ponto de partida interessante para fomentar essa discussão em sala de aula vem de outra produção hollywoodiana: Gattaca.28 A trama se passa num futuro indeterminado, no qual a reprodução humana é toda assis-tida: escolhem-se os ‘melhores’ espermatozoides do pai e os ‘melhores’ óvulos da mãe para a realização de uma concepção in vitro, para posteriormente se introduzir o embrião no útero materno. Evidentemente, existem aqueles que discordam da prática e os que não podem pagar por ela: a esses resta o ‘méto-do antigo’. Não há nenhuma proibição a ele, contudo as pessoas que nascem dessa forma são consideradas geneticamente inferiores, pois não possuem os ‘melhores’ genes, logo só podem ocupar cargos subalternos. Isso não é de fato novo, é a nova roupa de uma doutrina antiga (Costa, 2007b).

O debate sobre profissões e ocupações é deveras interessante, pois ele pode servir tanto para destacar que no Brasil não há exclusão por critérios raciais quanto para o inverso, dependendo de ‘quem fala’ e ‘de onde se fala’. As pessoas que compartilham da primeira posição indicam que o Brasil possui advogados/as, médicos/as, dentistas negros/as, mas não problematizam seu número em relação à população negra. Nos seus 123 anos de República, o Brasil já teve dois ou três governadores de estado negros, um ministro do Supremo Tribunal Federal, uns três ou quatro ministros de Estado igualmen-te negros, e atualmente algumas ministras. Essas situações são mobilizadas para corroborar a tese de que não há exclusão, muito pelo contrário. Entretan-to, as pessoas que concordam com a segunda posição apontam: quantos mé-dicos, dentistas e advogados negros conhecemos? Poucos. Se o sistema não fosse excludente, a proporção não deveria ser próxima à desse grupo na socie-dade como um todo? Da seguinte forma: os dados indicam cerca de 40% da população brasileira composta por negros e afrodescendentes; dentre os mé-dicos que conhecemos, por exemplo, 40% são negros/as? O caráter de excep-cionalidade é marcante. E em muitos casos utiliza-se da exceção que confirma a regra para se bradar que o sistema não é excludente, aliás, é exatamente o

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contrário disso. Porém, é mais provável que, ao surgir uma exceção, a pessoa seja percebida na condição de intruso/a e, praticamente ao primeiro deslize, surja a assertiva que indica seu caráter de estrangeiro, de indesejado, de im-pertinente, num meio que não seria o seu: “Preto, quando não faz na entrada, faz na saída!”. Tal situação também pode ser apreendida como a materialização de outra expressão clássica da situação racial brasileira: “Não existe racismo no Brasil, pois aqui o preto sabe o seu lugar!”. Não é esse um exemplo fantás-tico de internalização de papéis sociais? O da superioridade de uns e da infe-rioridade de outros, com manutenção do individualismo? Todos esses elemen-tos remetem, então, para a permanência de um tipo de reflexão intelectual. Esta ocupa o lugar de uma legislação específica, pois sua ampla divulgação constrói barreiras invisíveis dentro dos indivíduos (Costa, 2007b).

A perpetuação dessas barreiras se dá por inúmeros instrumentos, alguns já apresentados aqui, mas um deles nos interessa sobremaneira: a atuação dos intelectuais de fins do século XIX e início do século XX. Raymundo Nina Ro-drigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha, entre outros, estão vivos na re-presentação que se faz de suas obras. A atuação desses e de outros intelectuais do período compreendido entre 1880 e 1930 é essencial para a construção e manutenção das barreiras invisíveis mencionadas. Suas considerações são peças-chave no processo de internalização e naturalização dos papéis sociais de superioridade e inferioridade presentes na sociedade brasileira. Nina Ro-drigues indicava a respeito do povo brasileiro a necessidade premente de

determinar [o] quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra que possui e se de todo fica essa inferioridade com-pensada pelo mestiçamento, processo natural por que os negros se estão inte-grando no povo brasileiro, para a grande massa de sua população de cor.29 [Pois] ... no Brasil, onde sobre eles [os negros], puros ou mestiçados, se levantou a nos-sa nacionalidade, cumpre julgá-los separadamente, discriminando as suas capa-cidades relativas de civilização e progresso. (p.13)

Essa discussão foi incorporada pela população negra em expressões que tratam da necessidade de ‘clarear um pouquinho a raça’, ou seja, a internali-zação da política do branqueamento mediante miscigenação, pela pessoa des-cendente de africanos. Romero, como já indicado, afirmava que todo brasilei-ro é mestiço – mas qual mestiço era esse? O intelectual sergipano idealizou um

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mestiço que não seria um qualquer, aleatório, mas um tipo específico e bem definido: seria o mais branco possível.30 Em suas próprias palavras: “o mestiço, que é a genuína formação histórica brasileira, ficará só diante do branco qua-se puro, com o qual se há de, mais cedo ou mais tarde, confundir” (Romero, 2001, p.101). Ele concorda aqui com outra posição interessante de Nina Ro-drigues, o mestiço de retorno a uma suposta origem, neste caso “o mulato claro de retorno à raça branca”.31 E tudo isso acaba por se resumir em outra expressão bastante usual do dia a dia, “O brasileiro é isso, um pouquinho de tudo!”. Assertiva ambígua e complexa que, por um lado, refuta a pureza racial como um critério relevante e, por outro, impossibilita a discussão em torno dos mecanismos de discriminação no interior da sociedade brasileira. Tal as-sertiva foi desta forma inserida por Euclides da Cunha em Os sertões: “Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca”.32 Para ele isso era mo-tivo de lamentação. A falta de uma unidade racial era entendida como empe-cilho sério ao desenvolvimento do país. A ausência em questão seria a marca peremptória da suposta dificuldade do Brasil em desenvolver-se. Contempo-raneamente, em conversas casuais, essa marca de origem, considerada ruim, é trazida à tona para sustentar argumentações acerca dos problemas brasileiros e da dificuldade em resolvê-los.

As assertivas citadas aqui são exemplos significativos da transposição de uma discussão intelectual para o cotidiano, sem que se perceba a complexida-de do conteúdo presente. Estimular essa discussão é algo rico por alguns mo-tivos.

1. Demonstrar o quanto os intelectuais estão presentes em nossa vida co-tidiana, em vez de serem aquelas criaturas distantes, encurvadas, com óculos de lentes grossas e palavras esquisitas. Muito pelo contrário: eles estão no cotidiano, por meio da apropriação que fazemos de suas ideias, nos terminais de ônibus, nos botequins, nos estádios de futebol, na sala de jantar, no momento em que se assiste à telenovela.

2. Indicar como discussões intelectuais de fins do século XIX e do início do século XX, construídas para responder a determinadas demandas, se mantêm em forte comunicação com o contexto sócio-histórico con-temporâneo e, em grande medida, ainda pelo mesmo motivo – justificar e ou manter uma dada hierarquia social. E, como indica Marisa Corrêa,

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essa apropriação, esse diálogo pode implicar a construção de um refi-nado sistema de discriminação que dispensou e dispensa a presença de um código legislativo formal. Ele se utiliza dos mecanismos de coerção estabelecidos. E pode contar com uma forma de coerção mais efetiva do qualquer equipamento externo poderia fornecer: aquela que o indi-víduo exerce sobre si mesmo.

Com efeito, o presente artigo visou destacar a formação de docentes como extremamente relevante para a constituição de outro olhar sobre a História da África e de suas populações, bem como sobre a História afro-brasileira. Apon-tou as demandas resultantes da Lei 10.639/2003, a importância da promoção de atividade de capacitação para os/as docentes que não tiveram em suas gra-duações ou pós-graduações acesso à temática africana e afro-brasileira, para tentar desfazer visões estereotipadas. O artigo buscou, também, indicar a vin-culação entre a discussão acadêmica e a vida cotidiana, bem como a comuni-cação entre fins do século XIX e o princípio do século XXI no que diz respeito à estruturação de certas hierarquias sociais, notadamente as raciais. Por fim, buscou exemplificar uma possibilidade de trabalhar conteúdos relacionados à história afro-brasileira sob outro olhar, almejando indicar a escola como local privilegiado para debater e criticar constructos intelectuais. Essa proposta se insere num processo mais amplo de transformação das/nas salas de aula bra-sileiras, que se espera venha desconstruir estereótipos arraigados e desenvolver uma visão de mundo antirracista.

NOTAS

1 OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n.3, p.431, 2003.2 COSTA, Hilton. Formação de professores: por um novo olhar da história e cultura afro--brasileira. In: PINHEL, André; COSTA, Hilton; SILVEIRA, Marco Silva da. (Org.) Uma década de políticas afirmativas: panorama, argumentos e resultados. Ponta Grossa (PR): Ed. UEPG, 2011.3 Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm.4 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.5 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008.

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6 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993; BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Ed. 70, 1979; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ed. Bragança Paulista (SP): Ed. USF, 2001; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espe-táculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.7 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p.40.8 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo I. Org. Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro: Imago; Aracaju: UFS, 2001.9 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 21.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.10 Sobre o projeto Unesco, ação que contemplava a equipe de F. Fernandes, ver MAIO, 1997; ver, também: COSTA, 2011.11 MAIO, Marcos Chor. A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese (Doutorado) – Instituto Universitário de Pesquisas. Rio de Janeiro, 1997.12 Entre outros, podemos citar: FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971; PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, profis-são e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. São Paulo: Pioneira; Ed. USP, 1967; TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003; GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999; ______. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002; ______. Preconceito e discriminação. São Paulo: Fundação de Apoio à Univer-sidade de São Paulo; Ed. 34, 2004.13 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4.ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.14 COSTA, Hilton. Hierarquias brasileiras: a abolição da escravatura e as teorias do racismo científico. Comunicação apresentada no III Encontro ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL. Florianópolis, 2007a.15 COSTA, João Cruz. Contribuição à História das ideias no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.16 Cientificismo é uma crença desenvolvida em fins do século XVIII e amplamente divulga-da no transcorrer do século XIX, que defende a ideia de humanidade genérica desenvol-vendo-se de modo linear do menos ao mais avançado, definição clássica de progresso, e tal desenvolvimento só seria possível, bem como sua compreensão e aprimoramento, através da ciência; Positivismo pode ser lido como uma sistematização das crenças cientificistas, realizada por Auguste Comte: ele apregoa que toda explicação e todo conhecimento advêm da ciência e pela ciência; Racismo Científico, doutrina que defendia a existência de raças

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humanas distintas entre si; apesar de poderem se combinar, o resultado dessa ação geral-mente era considerado ruim, e tais diferenças eram cientificamente passíveis de compro-vação, definindo de modo definitivo a superioridade de uns e a inferioridade de outros.17 Francisco José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, estado do Rio de Janeiro, em 1883, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1951. Bacharel em Direito, historiador e sociólogo, foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e ministro do Tribunal de Contas; também foi membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Entre suas principais obras figuram: Populações meridionais do Bra-sil (1920), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), A evolução do povo brasileiro (1923), Problemas de política objetiva (1930), Raça e assimilação (1932), Formação étnica do Brasil colonial (1932) e Instituições políticas brasileiras (2v., 1949), to-das elas marcadas por forte conservadorismo. Os conservadores sempre constituíram um grupo determinante na História das Ideias, e essas obras são consideradas como um mo-mento importante dos estudos brasileiros.18 Definições bastante acessíveis acerca do que pode ser compreendido por História das Ideias e História Intelectual são encontradas em CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 19 Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero nasceu em Lagarto, Sergipe, em 21 de abril de 1851, e faleceu em 18 de julho de 1914, no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito, foi pro-fessor do Colégio Dom Pedro II e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa.20 Cesare Lombroso nasceu em Verona no dia 6 de novembro de 1835 e faleceu em Turim em 19 de outubro de 1909. Formou-se em medicina na Universidade de Pavia em 1858, e no ano seguinte na Universidade de Gênova. Depois de formado, segue para Viena para aperfeiçoar seus conhecimentos e lá se alinha ao pensamento positivista. Desde cedo de-monstra interesse em estudos sobre a loucura, mas logo se volta para uma vertente mais antropológica. Essas observações têm início em Pavia, num curso de psiquiatria. Daí lança hipóteses acerca da influência do meio sobre a mente. Dirige o manicômio de Pádua de 1871 a 1876, ano em que assume a cadeira de Higiene e Medicina Legal da Universidade de Turim. Nesse mesmo ano publica sua primeira obra sobre criminologia, onde já aparece a influência da ‘frenologia’: O homem delinquente.21 MINORITY REPORT. Dir. Steven Spielberg, com Tom Cruise, Estados Unidos, 2002.22 COSTA, Hilton. A vida do senso comum: do racismo científico do pós-abolição ao dia a dia contemporâneo. In: COSTA, Hilton; SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Notas de his-tória e cultura afro-brasileiras. Ponta Grossa (PR): Ed. UEPG, 2007b.23 Sobre o instituto de identificação parisiense há reflexão breve, mas interessante em SCHWARCZ, 1993.24 Raymundo Nina Rodrigues nasceu em 4 de dezembro de 1862 na cidade de Vargem

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Grande, Maranhão, e faleceu em 17 de julho de 1906 em Paris. Médico e antropólogo, foi o fundador da medicina legal no Brasil e um dos precursores da antropologia.25 GOFFMAN, Erwing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. 26 Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Letra: Marcelo Yuka; Música: O Rappa; Álbum O Rappa, 1994.27 LE BRETON, David. O corpo rascunho das ciências da vida. In: ______. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas (SP): Papirus, 2003. p.101-140.28 GATTACA. Dir. Andrew Niccol, com Ethan Hawke e Uma Thurman, Estados Unidos, 1997.29 RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 7.ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacio-nal; Brasília: Ed. UnB, 1988. p.264.30 COSTA, Hilton. Horizontes raciais: a ideia de raça no pensamento social brasileiro. 1880-1930. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. Porto Alegre, 2004. p.94.31 ROMERO, Sílvio. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3.ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1938. p.119-121.32 CUNHA, Euclides da. Os sertões. 39.ed. Rio de Janeiro: Livr. Francisco Alves, 1997. p.94.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2011. Aprovado em 11 de abril de 2012.

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Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

A look at African and African-Brazilian historiography

Luciano Everton Costa Teles*

ResumoO artigo tem como objetivo lançar um olhar sobre a construção de uma nova historiografia sobre a África, destacan-do o movimento histórico que promo-veu o processo de construção desta his-toriografia e suas características. Visa também resgatar e caracterizar a produ-ção histórica brasileira sobre o afro-bra-sileiro.Palavras-chave: história; historiografia africana; historiografia afro-brasileira.

AbstractThe article aims to cast a glance at the construction of a new historiography about Africa, highlighting the historical movement which promoted this process and the characteristics of this new histo-riography. It also seeks to recover and characterize the historical production of the African-Brazilian population.Keywords: history; African historiogra-phy; African-Brazilian historiography.

No primeiro semestre de 2011, quando eu atuava como professor substi-tuto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), surgiu uma oportunida-de de trabalho no programa federal de formação de professores (Parfor) em Manacapuru. A disciplina era História da África e dos Africanos no Brasil.

No decorrer das aulas algumas questões emergiram e geraram inquieta-ções, sobretudo após discussões estabelecidas com os professores da Educação Básica. Apesar dos esforços realizados nos últimos 30 anos para produzir e difundir estudos relacionados à África e aos afrodescendentes – fruto da ins-titucionalização desses campos e das pesquisas daí resultantes, nacional e in-ternacionalmente – e apesar das obras já publicadas, esses professores recla-maram da ausência de uma sistematização dos pontos centrais da nova perspectiva historiográfica que emergiu num contexto histórico específico, o mundo pós-guerra, em que dois elementos convergiram e proporcionaram

* Centro de Estudos Superiores de Tefé, Universidade do Estado do Amazonas (Cest/UEA). Estrada do Bexiga, 1085, Jerusalém. 69470-000 Tefé – AM – Brasil. [email protected]

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essa renovação nos estudos africanistas, quais sejam: o processo de libertação nacional de regiões da África e as renovações conceituais e metodológicas no campo da História.

Entre as questões propostas, destacam-se estas: “Que elementos históricos concorreram para a emergência de uma nova historiografia africana?”; “Quais são as bases e os elementos que compõem esta nova historiografia?”; “E no Brasil, como se caracterizou a historiografia que tomava o elemento afrodes-cendente como objeto de estudo?”.

Buscando responder a essas questões, buscou-se sistematizar e apresentar uma breve discussão sobre a (des)construção da história da África pelos afri-canos, destacando o movimento que promoveu esse processo, bem como as características dessa produção. Em seguida, procurou-se resgatar e caracterizar a produção brasileira sobre os afrodescendentes.

A (des)construção da historiografia da África pelos africanos

Os primeiros trabalhos sobre a história da África são tão antigos quanto o início da história escrita. Os historiadores do velho mundo mediterrânico e os da civi-lização islâmica medieval tomaram como quadro de referência o conjunto do mundo conhecido, que compreendia uma considerável porção da África.1

No campo da História, os estudos sobre a África remontam a tempos antigos. Tais estudos incorporavam sobretudo o norte da África, e se estende-ram até a expansão do Império Otomano (século XVI). Ao longo do tempo, notadamente no decorrer do século XIX, o norte da África continuou sendo um campo de estudos (Fage, 2010, p.2).

Percebe-se que nos momentos de expansionismo militar e econômico, porções do continente africano tornaram-se áreas de influências de determi-nadas potências europeias – principalmente Inglaterra e França. Essas potên-cias realizaram uma série de estudos nos mais variados campos do conheci-mento – História, Geografia, Literatura etc.

Com efeito, uma construção discursiva sobre a África constituiu-se, per-meada por interesses políticos e econômicos. Edward Said realizou reflexões acerca desse processo para o Oriente, colocando em relevo os interesses acima

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Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

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mencionados bem como as relações de poder que permeavam os discursos sobre o Oriente. Consoante Said, no decorrer do século XIX “o conhecimento político sobre o Oriente era político”.2

Cabe destacar que foi com a obra de Said intitulada Orientalismo: o Orien-te como invenção do Ocidente que a discussão acerca das perspectivas eurocên-tricas no campo das ciências sociais, em especial a História, implantou-se no cenário acadêmico internacional.

Nesse sentido, desde tempos antigos é por meio das frentes de expansão econômica e militar europeia que a África foi observada pelos olhos3 europeus. Em determinados contextos, como por exemplo, o da expansão marítima e comercial realizada pelos europeus a partir do século XV e, em momento pos-terior, como no século XIX sob a égide do Imperialismo, os contatos e, conse-quentemente os discursos e intervenções sobre o continente africano torna-ram-se mais intensos.

Considerando o século XIX, não se deve esquecer que ele foi marcado pelo avanço do capitalismo na Ásia e na África.4 Nesse sentido, a presença e a exploração dessas áreas necessitavam de justificativas. Essas justificativas fo-ram construídas tendo como base os discursos estabelecidos sobre porções da Ásia e da África. Existia no bojo de alguns discursos uma ideia de ‘missão ci-vilizatória’:

No século XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo Social e do Determinismo Racial, alocaram os africanos nos últimos degraus da evolução das ‘raças’ humanas. Infantis, primitivos, tribais, incapazes de aprender ou evoluir, os africanos deveriam receber a benfazeja ajuda europeia, por meio das intervenções imperialistas no continente.5

As construções discursivas sobre a África entre os séculos XV-XVII e XIX-XX foram criadas em função dos interesses políticos e econômicos das potências que a tornaram área de influência. À medida que os contatos com esse continente foram acontecendo, produções de obras literárias, jornalísticas e similares foram se constituindo e sendo utilizadas pelos historiadores.

Denominados de ‘historiadores modernos’, esses estudiosos se ampara-ram justamente nos documentos construídos graças aos viajantes e comercian-tes que se fizeram presentes em regiões da África, incorporando nos seus es-

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tudos muito dos preconceitos que esses grupos acabaram registrando, principalmente a ideia de que a sociedade europeia prevalecia sobre a africana.

Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No pre-sente, porém, ela não existe; o que existe é a história dos europeus na África. O resto são trevas... e as trevas não constituem tema de história. Compreendam-me bem. Eu não nego que tenham existido homens mesmo em países obscuros e séculos obscuros, nem que eles tenham tido uma vida política e uma cultura in-teressantes para os sociólogos e os antropólogos; mas creio que a história é essen-cialmente uma forma de movimento e mesmo de movimento intencional. Não se trata simplesmente de uma fantasmagoria de formas e de costumes em transfor-mação, de batalhas e de conquistas, de dinastias e de usurpações, de estruturas sociais e de desintegração social.6

De qualquer maneira, a África era vista como algo menor. Os movimen-tos e as dinâmicas das etnias que ali estavam presentes eram literalmente en-carados como se não tivessem nenhuma influência sobre as regiões da própria África e do mundo.

A escrita da história sobre a África era externa (de fora) e assentada no eurocentrismo. Interessante entender o eurocentrismo como “ideologia e pa-radigma, cujo cerne é uma estrutura mental de caráter provinciano, fundada na crença da superioridade do modo de vida e do desenvolvimento europeu--ocidental”.7 Estrutura mental de caráter provinciano pelo fato de o modelo de desenvolvimento econômico e social ser estritamente singular, europeu, o que foi exportado ideologicamente. Segundo o conjunto de ideias exportadas, ine-vitavelmente todas as sociedades caminhariam para o modelo de desenvolvi-mento europeu, o que tornou esse modelo um paradigma.

Assim entendido, é hoje perceptível o quanto este eurocentrismo esteve presente nos textos clássicos que fundaram a historiografia moderna no Iluminismo, de-turpando a visão dos europeus acerca dos demais povos do mundo. Estes eram vistos, então, na melhor das hipóteses, como crianças a serem educadas pelas luzes da razão....O mesmo olhar pode ser identificado no pensamento social europeu do Nove-centos, de forma mais diversificada. Existe uma tendência eurocêntrica recor-rente, por exemplo, nas Filosofias da História dos séculos XVIII e XIX, a partir

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Um olhar sobre a historiografia africana e afro-brasileira

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de autores clássicos como Voltaire, Vico, Condorcet, Hegel, Marx e Engels. É certo que existe uma heterogeneidade evidente no pensamento de tais autores. Todavia, o que os une – enquanto principais fundadores da Teoria da História – são suas tentativas de, a partir da Filosofia, construir interpretações evolutivas da sociedades humanas, baseadas no progresso da história europeia-ocidental. (Barbosa, 2008, p.47)

Por força disso, aspectos das sociedades e culturas africanas como práticas agrárias, receitas de cozinha, medicamentos da farmacopeia, direitos consue-tudinários, organizações políticas, produções artísticas, celebrações religiosas e refinados códigos de etiqueta eram temáticas não cogitadas8 ou marginais, vistas pelo contraponto de uma “compreensão econômico-social europeia (o capitalismo); culturalista (modernidade, cultura greco-romana); religiosa (judaico-cristã); racial (‘branca’), etc.” (Barbosa, 2008, p.48).

Numa espécie de movimento contrário, um grupo de intelectuais africa-nos mobilizou esforços no sentido de reescrever a história africana:

A partir de 1947, a Societé Africaine de Culture e sua revista Présence Africaine empenharam-se na promoção de uma história – da África descolonizada. Ao mesmo tempo, uma geração de intelectuais africanos que havia dominado as téc-nicas europeias de investigação histórica começou a definir seu próprio enfoque em relação ao passado africano e a buscar nele as fontes de uma identidade cul-tural negada pelo colonialismo. Esses intelectuais refinaram e ampliaram as téc-nicas da metodologia histórica desembaraçando-a, ao mesmo tempo, de uma série de mitos e preconceitos subjetivos. (Fage, 2010, p.20)

Nessa esteira, a reconstrução da história da África passou a ser almejada. Três elementos se colocaram como pilares para essa reconstrução. O primeiro elemento se materializou num esforço no sentido de corrigir as interpretações anteriores, modificando os julgamentos de valor: “De heróis da civilização em marcha, os desbravadores, governadores das colônias, oficiais do exército, tornam-se cruéis exploradores”.9 O segundo elemento esteve ligado a um pro-cesso de descolonização da história do período colonial que se deu simulta-neamente aos movimentos nacionalistas pela independência:

Sobretudo nos anos 60, os estudiosos começaram a retroceder o tempo, buscan-do as raízes da resistência e dos movimentos de protesto no início da época colo-

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nial e, mais longe ainda, nas primeiras tentativas de resistência ao jugo europeu. Estes trabalhos sobre os movimentos de resistência e de protesto constituem uma importante contribuição para corrigir os desvios da história colonial... (Curtin, 2010, p.44)

O terceiro e último elemento caracterizou-se numa abordagem diferen-ciada que emergiu contra a história eurocêntrica e elitista. Ou seja, era funda-mental resgatar os movimentos e as dinâmicas próprios das sociedades africa-nas, considerando os grupos sociais presentes no continente.

Esses três elementos tinham como finalidade a construção de uma nova escrita da história para o continente africano, tarefa levada a cabo por histo-riadores africanos. Para estes, era essencial resgatar temas e questões antes negligenciados por uma historiografia exógena que não percebia a África como histórica ou que a percebia por meio das ações dos europeus nesse continente ao longo do tempo.

No âmbito deste esforço geral, o papel dos historiadores da África na própria África e fora dela assumia particular importância, provavelmente pelo fato de a história africana ter sido mais negligenciada que a das regiões não europeias equivalentes e porque os mitos racistas a desfiguram ainda mais que a estas últi-mas. (ibidem, p.40)

Esse processo, como é possível notar na citação, envolveu historiadores ‘externos’ também. Quando os estudos africanistas começaram a ser introdu-zidos no mundo acadêmico em países ocidentais entre 1950 e 1960, sobretudo na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, as pesquisas ainda estavam ancoradas em bases eurocêntricas. Porém, aspectos relacionados ao continen-te africano e as relações estabelecidas historicamente com esse continente fo-ram alvos de reflexão.

Cabe destacar que o continente africano e também aqueles que começa-ram um processo de formação na área de História dependiam das instituições acadêmicas dos países citados anteriormente. Assim, professores ocidentais atuaram como professores de História nas instituições africanas, assim como as universidades europeias recepcionaram estudantes africanos.

Porém, esse contexto promoveu uma ampliação dos estudos africanos que, junto ao movimento de renovação na oficina de Clio, cuja proposta para

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nortear uma nova escrita da história teve como eixo três pontos básicos – in-terdisciplinaridade, perspectiva totalizante e história-problema e os movimen-tos de libertação nacional na África –, passaram a impulsionar os estudos his-tóricos, com a formulação de métodos de investigação e interpretação histórica.

Dessa forma, a História da África passou a ser (re)escrita considerando o africano como sujeito da sua própria história, agindo de forma decisiva nos acontecimentos históricos. Além disso, a História Oral passou a ser utilizada como suporte para construir uma nova interpretação da África, e a interdisci-plinaridade tornou-se instrumento para estabelecer um diálogo com outras áreas do conhecimento visando uma compreensão maior de determinados aspectos, sobretudo materiais e culturais. Enfim, estabeleceu-se, entre 1950 e 1980, um processo de (des)construção da história da África pelos profissionais africanos. O maior exemplo desse processo foi a participação de intelectuais estrangeiros, principalmente africanos, num projeto com apoio e financiamen-to da Unesco que visava produzir uma nova história da África.

A evolução dessa articulação intelectual e política alcançou, então, os organismos permanentes internacionais ainda na década de 60. Amadou-Mahtar M’Bow, eminente intelectual senegalês, assume o cargo de diretor geral da Unesco – Ór-gão das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura. Entre 1965 e 1969 foi gestado sob seu patrocínio um ambicioso projeto: tratava-se de organizar o mais extensa e completamente a historiografia sobre África até o momento, ao mesmo tempo que propiciar aos especialistas as condições de intensificar e aprimorar pesquisas com diversas abordagens, além de estudarem mais ampla e detidamente as rela-ções inter-regionais em África e dessa com outros continentes. O resultado foram oito volumes com cerca de 800 páginas cada. A redação e a publicação das obras ficaram a cargo de um comitê internacional de 39 membros (dois terços de africa-nos) sob a coordenação geral de Joseph Ki-Zerbo – um professor senegalês.10

No Brasil esses volumes foram publicados mediante convênio entre a Unesco e a Editora Ática, nos primeiros anos da década de 1980. Recentemen-te o governo brasileiro disponibilizou o conjunto na internet,11 o que denota um esforço em tornar públicos os estudos sobre a África.

Mais recentemente, a escrita da história sobre a África incorporou estudos ligados “às epidemias, ao cotidiano, às novas tendências da economia e da

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ciência política, da importância do regional, do gênero, da escravidão, da cul-tura política e das influências da literatura” (Curtin, 2010, p.43). Para além disso,

Estudos sobre o passado remoto ou recente das regiões, do processo de formação da África atual, do entendimento da diversidade de suas culturas e povos, das releituras sobre os contatos com os europeus e sobre os complexos problemas a que submerge hoje o continente foram alvo de uma quantidade avassaladora de investigações. (ibidem, p.41)

As investigações caminharam, portanto, no sentido de “focar a África em sua própria trajetória. As histórias dos reinos e civilizações africanas...” (Oliva, 2003, p.440). Assim, uma nova história da África acabou emergindo, incorpo-rando novas temáticas com base em novas visões e interesses.

Um dos principais debates atuais dessa historiografia refere-se à questão do tráfico de escravos. Numa perspectiva tradicional, eurocêntrica, o tráfico de escravos intensificou-se e consolidou-se a partir da montagem do império marítimo e comercial europeu. Foi estabelecido pela hegemonia do capital mercantil europeu com o objetivo de assegurar e suprir de mão de obra os setores produtivos incentivados pelas metrópoles europeias nas colônias. Nes-se ínterim, o tráfico de escravos acabou sendo percebido como um fenômeno externo à África, produzido pelos europeus.

Nesse esquema explicativo, a África só era mencionada à medida das ope-rações ligadas ao tráfico de escravos, identificando, quando muito, as regiões de onde os escravos provinham. A participação e os interesses que levaram o continente africano a estabelecer contato e fornecer escravos para os europeus, por exemplo, não eram questionados. Nem a lógica interna que porventura tenha contribuído para a estruturação da oferta de escravos aos europeus.

Atualmente, os estudos relacionados ao tráfico negreiro não negligenciam a história da África. Nesse sentido, as regiões e os segmentos africanos que estabeleceram contato e produziram escravos para serem oferecidos aos euro-peus foram questionados, a exemplo da obra de Manolo Florentino intitulada Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, publicada pela Companhia das Letras em 1997.

Outro ponto de debates no campo da atual historiografia da África refere--se à inclusão dos territórios da diáspora como parte das áreas cobertas pela

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história da África. Na perspectiva eurocêntrica, as relações entre o continente africano e o mundo atlântico, por exemplo, eram consideradas como um aci-dente geográfico entre o Oriente e o Ocidente. Desse modo, consoante Amail-ton Magno Azevedo

Os processos de desterramento, desterritorialização e escravidão que provoca-ram as ondas migratórias da Diáspora foram vistos como um projeto balizado pelo expansionismo do Estado-nação, da economia capitalista e dos desdobra-mentos da modernidade europeia. Sendo assim, as Áfricas e as Diásporas não são associadas a espaços e vivências portadores de memórias, saberes e fazeres.12

Com efeito, construiu-se uma crítica sobre essa ideia acerca dos territórios da Diáspora. Estes passaram a ter papel decisivo “na formação de novas me-mórias, saberes e fazeres no Mundo Atlântico” (ibidem, p.365). A obra de Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul, publicado também pela Companhia das Letras em 2001, constitui exemplo interessante dessa nova perspectiva.

Os dois debates atuais no campo da historiografia africana destacados neste artigo (Tráfico negreiro e Territórios da Diáspora) apenas mencionam o enriquecimento e as possibilidades presentes nesse campo de estudos.

História e cultura afro-brasileiras

No Brasil, os temas e discussões ligados às questões afro-brasileiras são alvo de reflexões há mais de um século. Nina Rodrigues se destacou nesses temas, mas o negro foi considerado por ele como degenerado, sem capacidades de aperfeiçoamento moral e social, visto portanto como obstáculo ao desen-volvimento do país. Em sua obra, Os africanos no Brasil,13 procurou explicitar esse quadro.

Resultado de pesquisa conduzida por Nina Rodrigues entre africanos remanes-centes na Bahia do fim do século XIX, mas só publicada, postumamente, em 1932, o livro tinha objetivos claros: identificar os traços físicos e culturais africa-nos que haviam se infiltrado na ‘raça’ brasileira durante os séculos anteriores, resultante da maciça importação de africanos pelo tráfico atlântico e de intensa miscigenação. A reflexão do médico era inspirada pela ideologia racista que atri-

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buía à miscigenação os males e entraves ao desenvolvimento do país, porque a ‘civilização’ estava associada a uma população de cor branca e hábitos europeus.14

Somente na Semana de Arte Moderna, em 1922, surgiu um repensar da nação – a brasilidade –, lançando as bases do mito das três raças como elemen-tos essenciais da formação do Brasil, fato esse explorado pela Revolução de 1930 e pelo Estado Novo.15

Esse movimento forçou o universo acadêmico a inquirir sobre o lugar do negro na identidade brasileira. Por força disso realizou-se o I Congresso Afro--Brasileiro (Recife, 1934) e sua segunda edição (Salvador, 1937), com Gilberto Freyre, Édison Carneiro e Manuel Querino. Nesses Congressos o principal objetivo era entender a ‘questão negra’ para a constituição do ‘caráter nacional brasileiro’.16 Nesse sentido, Gilberto Freyre17 lançou a ideia da ‘democracia racial’.

Embora Gilberto Freyre tenha valorizado a presença dos portugueses, indígenas e africanos e suas culturas para a formação do Brasil, minimizou o preconceito racial entre os portugueses.18

Outros estudiosos como Arthur Ramos,19 Édison Carneiro20 e Luiz Viana Filho21 se debruçaram sobre temáticas afro-brasileiras, formando até mesmo um Centro de Estudos:

Quando se realizou, em 1959, em Salvador, o 2º Colóquio de Estudos Luso-Bra-sileiros, chegou à Bahia o professor George Agostinho da Silva, um português que tinha se autoexilado no Brasil depois de haver sido perseguido pelo governo Salazar. Agostinho propôs ao então reitor da Universidade da Bahia, Edgar Rego dos Santos, a criação de um Centro de Estudos Afro-Orientais. O Centro foi criado e retomaram-se, então, os estudos sobre os negros da Bahia.22

Nesse Centro de Estudos, as reflexões sobre o negro intensificaram a ideia de sua importância para o entendimento do processo de construção cultural brasileira.

Por sua vez, Caio Prado Júnior,23 Florestan Fernandes24 e Octávio Ianni25 lançaram bases para a compreensão do negro numa outra perspectiva. Anco-rados em aportes marxistas, tenderam a considerar o trabalho compulsório como elemento de um sistema de opressão, o capitalismo comercial. A escra-

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vidão derivava, portanto, do sentido mercantil da colonização, e estava umbi-licalmente ligada a ela.

Assim, os africanos teriam sido utilizados estritamente como mão de obra, como força de trabalho. Com efeito, surgia a concepção de que a escravidão reduzia o africano a uma condição de anomia social.26 Era a ideia reificadora da escravidão.

Entretanto, a África e as suas relações com o nosso país foram minima-mente destacadas. Foi somente com José Honório Rodrigues que a relação entre a África e o Brasil emergiram.27 Nas últimas duas décadas esses estudos se avolumaram, sobretudo com relação ao africano no Brasil, colocando-o como sujeito de sua própria história. Nessa linha, cabe destacar a obra de Ká-tia Mattoso, Ser escravo no Brasil, que, segundo Ronaldo Vainfas,

recolocou a importância do paternalismo como mecanismo de poder senhorial e, por meio disso, negou a quase exclusividade do fator violência como explica-ção do sistema escravista. Indicou também a importância de se estudar a África, o tráfico, as etnias, os mores, as religiões, para se entender a conformação da cultura negra no Brasil – cultura que muitos chamaram de afro-brasileira. (Vain-fas, 1999, p.10)

Ainda na década de 1980, os estudos sobre a história da África para com-preender os afro-brasileiros começaram a entrar na cena histórica. Por exem-plo, João Reis, em sua obra Rebelião escrava no Brasil, recorreu à história da África para analisar a revolta dos Malês na Bahia, em 1834. Também Manolo Florentino e José Roberto Góes, em A paz das senzalas, recorreram a aspectos históricos ligados ao continente africano para lançar luzes sobre os afro-bra-sileiros. Enfim, a historiografia mais recente tem buscado considerar a história da África como fundamental para o entendimento do tráfico negreiro, da es-cravidão e dos territórios da Diáspora, só para citar alguns exemplos. Nesse sentido,

Depois de uma geração de historiadores engajada em desmontar o mito da escra-vidão benevolente, através de estudos sobre a violência no sistema e sobre a resis-tência escrava, sobretudo violenta, assumiu o debate uma nova geração preocu-pada com o cotidiano dos escravos e com a variedade de relações dentro do sistema escravista. A nova perspectiva da escravidão se abre com pesquisa empí-

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rica intensiva em materiais manuscritos antes inexplorados, como inventários post-mortem, processos-crime, ações de liberdade, correspondência policial, além de uma leitura ‘a contrapelo’ de relatos de viajantes e de documentos oficiais ... A pesquisa revela com riqueza de detalhes o funcionamento das relações no sistema escravista e a vida dos escravos propriamente. Enquanto antes os escravos eram vistos como uma massa uniforme, agora percebe-se uma hierarquia entre escra-vos, e o entrecruzar de identidades, baseadas em gênero, idade, ocupação (escra-vos rurais, urbanos, domésticos, artesãos, ganhadores etc.) e origem (africanos de diversas etnias ou nascidos no Brasil). (Mamigonian, 2004, p.35-36)

Com efeito, os estudos sobre a África e a cultura afro-brasileira se aden-saram. As relações entre a África e o mundo, em especial o Brasil, foram pos-tas em relevo com o surgimento e avanço de cursos de pós-graduação Lato Sensu e Stricto Sensu sobre a História da África e da Cultura Afro-brasileira, além de centros de estudos, a exemplo do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Considerações finais

Observa-se que no decorrer de algumas décadas, uma reconstrução da História da África pelos africanos veio se colocando como atividade primor-dial, não somente para resgatar o movimento e a dinâmica próprios do conti-nente e das populações africanas, como também para promover um olhar mundial tendo a África como foco.

No âmbito nacional, os estudos africanos foram avançando ao longo do tempo, sobretudo deixando de se assentar em questões biológicas e racistas (como é o caso das obras de Nina Rodrigues), em estudos etnográficos (nota-damente nas décadas de 1950 e 1960, no interior do Centro de Estudos Afro--Orientais), na percepção da escravidão e do trabalho escravo como elementos do capitalismo comercial, para focar as relações entre a África e o Brasil e as contribuições dos afrodescendentes na formação cultural brasileira.

Os desafios que se apresentam atualmente requerem uma ampliação e intensificação daquilo que a historiografia internacional e nacional vem sina-lizando. O grande desafio que o universo docente brasileiro tem é o de “disse-

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minar, para o conjunto da sua população, num curto espaço de tempo, uma gama de conhecimentos multidisciplinares sobre o mundo africano”.28

Sabe-se que o povo afrodescendente há séculos vem sofrendo preconcei-tos no interior de nossa sociedade. Parafraseando Laureano, “somente o co-nhecimento da história e uma compreensão de sua cultura vão encaminhar a nossa sociedade para o rompimento com práticas preconceituosas e discrimi-natórias”.29

NOTAS

1 FAGE, J. D. A evolução da historiografia da África. In: UNESCO. História Geral da Áfri-ca, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília, 2010. p.1.2 SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.3 Olhos no sentido de observação e percepção da África a partir de uma ideologia e de um discurso tendo como base os parâmetros europeus...4 HOBSBAWM, E. A era do capital (1848-1975). 13.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.5 OLIVA, A. R. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n.3, 2003. p.436.6 TREVOR-HOPER citado em FAGE, 2010, p.8-9.7 BARBOSA, Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. Revista Sankofa, n.1, jun. 2008. p.47.8 HAMA, B.; KI-ZERBO, J. A evolução da historiografia da África. In: UNESCO. História Geral da África. I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília, 2010.9 CURTIN, P. D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral. In: UNESCO. História Geral da África. I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília, 2010. p.43.10 PEREIRA, Amauri Mendes. Por que estudar História da África. Grupo de Estudos Afro--brasileiros e Educação, Rio de Janeiro: Uerj, n.21, s.d. p.7.11 Na página do domínio público encontram-se os oito volumes.12 AZEVEDO, Amailton Magno. África, Diáspora e o Mundo Atlântico na Modernidade: perspectivas historiográficas. Caderno de Pesquisa Histórica, Uberlândia (MG), v.23, n.2, jul.-dez. 2010. p.363.13 RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.14 MAMIGONIAN, B. G. África no Brasil: mapa de uma área em expansão. Revista de His-tória da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.9, v.5, 2004. p.34.

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15 ZAMPARONI, V. Estudos africanos no Brasil: Veredas. Revista de Educação Pública, v.4, n.5, 1995.16 LEITE, M. D. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 4.ed. São Paulo: Pioneira, 1983.17 FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998.18 Cabe destacar que Freire, ao observar aspectos relacionados ao espaço da escravidão doméstica, acabou estendendo esses aspectos ao âmbito do escravismo colonial, dando a ele uma conotação menos dura.19 RAMOS, A. O Negro Brasileiro. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1940.20 CARNEIRO, E. Antologia do Negro Brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1950.21 VIANA FILHO, L. O Negro na Bahia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1946.22 Entrevista concedida por Waldir Freitas Oliveira. Estudos Avançados, São Paulo, v.50, n.18, 2004. p.128.23 PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1945.24 FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. v.1. 3.ed. São Paulo: Áti-ca, 1978.25 IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.26 Os estudiosos da chamada escola histórico-sociológica paulista (1960-1970) encaminha-ram seus estudos no sentido de afirmar a completa anomia social a que a escravidão acaba-va reduzindo o africano. Ver VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, Universi-dade Federal Fluminense, n.8, ago. 1999. p.9.27 RODRIGUES, J. H. Brasil e África – outro horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-ra, 1961.28 WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas Bases para o ensino da História da África no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti-zação e Diversidade. Educação Anti-Racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília, 2005. p.4.29 LAUREANO, M. A. O Ensino de História da África. Ciência e Letras, Porto Alegre, n.44, 2008. p.343.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2011. Aprovado em 11 de abril de 2012.

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

Cyberspace, cyberculture and academic research

Marcos Silva*

ResumoO texto relata os resultados de uma pes-quisa sobre cibercultura e as possibilida-des de sua utilização pedagógica. Além disso, descreve os esforços de constru-ção de um instrumento metodológico de pesquisa acadêmica utilizando o es-paço cibernético como principal fonte de informações.Palavras-chave: cibercultura; pesquisa acadêmica; representação docente.

AbstractThe text is the report of the results of a research about cyberculture and the possibilities of its pedagogic use. Be-sides, it describes the efforts of con-struction of a methodological instru-ment of academic research using the cybernetic space as main source of in-formation.Keywords: cyberculture; academic re-search; educational representation.

O intuito deste artigo é descrever o desenvolvimento de uma pesquisa que teve como um dos objetos de estudo as principais manifestações da mais nova fronteira cultural da humanidade, a cibercultura. Acrescenta-se a esse objetivo a exposição do teste, aplicado durante a pesquisa, de um instrumento que se destinava a sugerir uma metodologia de utilização do espaço cibernético como fonte de pesquisa acadêmica.

Com base no Projeto de Pesquisa intitulado “A Integração do Ciberespa-ço na Práxis dos Professores de Humanidades”, admitiu-se como uma das hipóteses de trabalho a necessidade de os professores de ciências humanas incorporarem uma nova dinâmica pedagógica tendo como suporte o espaço cibernético. Dentre os recursos indicados na pesquisa para a consecução des-se objetivo destaca-se, pelo seu caráter original, a apropriação pedagógica da

* Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cidade Universitária Prof. José Aloízio de Campos. Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze. 49100-000 São Cristóvão – SE – Brasil. [email protected]

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cibercultura e o exame das possibilidades iniciais de introdução de algumas dessas manifestações1 no currículo escolar.

Com o fim de executar uma pesquisa exploratória no ciberespaço em busca de websites dedicados às principais manifestações da cibercultura, foram incorporados/as à equipe do projeto três bolsistas de IC Júnior (Iniciação Cien-tífica Júnior) que, após a realização de leituras básicas de fundamentação teó-rica, foram apresentados/as ao desafio da construção de um instrumento que servisse de roteiro para guia-los nas incursões pela internet.

Na realidade, a coordenação da pesquisa tomou como ponto de partida a necessidade do estabelecimento de critérios para a análise de websites, utiliza-dos como fonte de informação de pesquisa acadêmica. Às voltas com proble-mas de validação e normalização de documentos online,2 de interface gráfica e de filtragem de conteúdos, e com um número viável de websites para análise, percebeu-se a necessidade de construção de um instrumento capaz de meto-dologizar a pesquisa e que pudesse servir de subsídio para pesquisas acadêmi-cas que fizessem uso do espaço cibernético como fonte de pesquisa.

Na realidade, é bom esclarecer, não se trata meramente da possibilidade de acesso a documentos, artigos, livros, ensaios, dissertações e teses que são disponibilizados online, algo que diz respeito à digitalização da cultura escrita. Para esse tipo de pesquisa já se podia contar com ferramentas como o Google Scholar que, na descrição do próprio website,

Fornece uma maneira simples de pesquisar literatura acadêmica de forma abran-gente. Você pode pesquisar várias disciplinas e fontes em um só lugar: artigos revisados por especialistas (peer-rewiewed), teses, livros, resumos e artigos de editoras acadêmicas, organizações profissionais, bibliotecas de pré-publicações, universidades e outras entidades acadêmicas. O Google Acadêmico ajuda a iden-tificar as pesquisas mais relevantes do mundo acadêmico.3

A nova perspectiva é outra, e implica partir do pressuposto de que o es-paço cibernético é um fenômeno tão significativo para o homem pós-moder-no que as suas manifestações culturais peculiares constituem-se em um novo e importante objeto de investigação acadêmica. Assim, convém estabelecer princípios para nortear pesquisas exploratórias que tomem os conteúdos pro-duzidos e veiculados na internet como corpus documental principal.

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

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Lucia Santaella explica que esse novo campo de investigação se deve à circunstância de que “o computador colonizou a produção cultural. Uma má-quina que estava destinada a mastigar números, começou a mastigar tudo: da linguagem impressa à música, da fotografia ao cinema. Isso fez da cibernética a alquimia do nosso tempo e do computador seu solvente universal”.4

Deve-se, porém, acrescentar um breve adendo a essa constatação de Lucia Santaella. Assmann complementa bem ao afirmar:

Fica evidente que deixou de fazer sentido falar do computador como se fosse uma referência totalizável em si. Entenda-se bem: o computador isolado já se tornou um objeto obsoleto. Hoje o computador só faz sentido como nó de acesso a essa vasta redificação planetária. E como tal passou a ser entendido pela quase totalidade de seus usuários. Essa imersão nas redes digitais passou a ser uma ex-periência concreta até mesmo das crianças, que têm acesso a um computador li-gado à rede mundial de computadores. O computador isolado deixou pratica-mente de existir e, com sua desaparição, desapareceram muitos aspectos da anterior experiência do aprender.5

Instrumento para sistematização de pesquisas na internet

Como maneira de encaminhar a construção do formulário para a siste-matização da procura de documentos/websites foram propostas algumas lei-turas à equipe de trabalho, como maneira de possibilitar a participação de todos na elaboração da ferramenta de pesquisa. Dentre as leituras, merecem destaque aquelas realizadas com o objetivo de compreender a lógica de fun-cionamento do principal mecanismo de busca em operação na atualidade, o Google.6

Uma primeira dificuldade foi a determinação de um critério que justifi-casse, diante da imensa quantidade de websites localizados pelo mecanismo de busca quando de uma pesquisa, a análise de determinado número de páginas. Porém, a própria lógica de funcionamento do mais eficiente mecanismo de busca em operação, o Google, ajudou a encaminhar a solução desse problema, uma vez que os websites são relacionados de acordo com um critério lógico de importância dentro do ciberespaço.7 Na explicação do próprio Google, o me-canismo de busca trabalha assim:

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O Google funciona através de uma combinação complexa de hardware e softwa-re tecnologicamente avançados ... O PageRank (algoritmo de pesquisa do Google, ou seja, um sistema de classificação e ordenamento de páginas web) assenta na natureza excepcionalmente democrática da web, ao utilizar a sua vasta estrutura de links como uma medida do valor de uma página individual. Essencialmente, o Google interpreta um link da página A para a página B como um voto da página A em direção à página B. No entanto, o Google analisa mais do que o simples volume dos votos ou os links recebidos por uma página; analisa, também, a página que lança o voto. Os votos dados pelas páginas que são, por si próprias, ‘importantes’, têm maior peso e ajudam a tornar outras páginas ‘importantes’.8

Desse modo, admitindo-se que os websites que resultam de uma pesquisa já aparecem obedecendo a uma ordem lógica de importância, convencionou--se analisar apenas 10% dos primeiros resultados apresentados como resposta a uma pesquisa efetuada.

Em seguida, procedeu-se à identificação das principais manifestações da cibercultura que, além de consistirem na estrutura lógica da investigação em operação, determinariam os termos principais a serem utilizados nas buscas na internet. Foram selecionadas as seguintes expressões culturais: blogosfera, ciberarte (web arte), poesia digital, ciberjornalismo, comunidades virtuais, ci-bercidadania, ciberpsicologia e cibergeografia.

Depois dessa etapa, chamada no formulário de coleta de dados de ‘Fase Global’, iniciou-se a testagem do instrumento mediante duas manifestações da cibercultura, escolhidas aleatoriamente: ‘poesia digital’ e ‘comunidades vir-tuais’. Para cada uma dessas expressões da cibercultura foram determinadas, como fruto de uma pesquisa exploratória inicial, palavras-chave que, distin-guidas como termos de maior incidência no assunto pesquisado e, enquanto pormenorização, com um número total de resultados no Google bem menor, viabilizavam uma análise de conteúdo dos documentos/websites encontrados.

Na fase que se segue, utilizando as palavras-chave específicas, o modelo busca determinar questões ligadas à autoria do documento/website, a confia-bilidade das informações prestadas (validação), os requisitos de interface, pe-quena sinopse do assunto e uma avaliação da possibilidade de utilização do-cente do conteúdo do website (ver Anexo).

Como os bolsistas de IC Jr. enfrentariam dificuldades se fossem utilizadas outras línguas além do português, definiu-se que as pesquisas ficariam restritas

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

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ao idioma pátrio. À medida que a pesquisa ia se desenvolvendo, os dados co-letados eram enviados para um disco virtual, sendo armazenados para poste-rior análise e utilização.

Entendendo as principais expressões da cibercultura

A consideração da cibercultura como o mais recente e avançado espaço de produção cultural da humanidade se deve ao fato de que a imagem que outro-ra se tinha da televisão como ‘lareira’, ou ponto em torno do qual se reunia a família, está sendo substituída, segundo Galimberti e Gatti,9 pela imagem do PC como ‘novo tear’, indicando que a relação dos indivíduos e da família com a nova media não é mais passiva e de mão única (emissor-receptor), mas ense-ja a produção de informações pelos sujeitos pós-modernos. Essa perspectiva pode ser mais bem compreendida na explicação de Santaella (2003, p.176):

Se é verdade que cada período da história da arte no Ocidente é marcado pelos meios que lhe são próprios, os meios do nosso tempo, neste início do terceiro milênio, estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridiza-ções dos ecossistemas com os tecnossistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pela criação artística, tudo isso abrindo ao artista horizontes inéditos para a exploração de novos territórios da sensorialidade e sensibilidade.

O ‘novo tear’, a nova paleta, suporte privilegiado e mídia polivalente, é a telemática. No entanto, esta, ao invés de se constituir como apenas mais um mass media, por suas características singulares está se transformando em um personal media. Em função disso, Turkle10 considera que o computador, como ‘máquina intimista’, tem efeitos subjetivos que tendem a alterar a relação da pessoa com os outros, com a sexualidade, com a política, com a identidade e, deve-se acrescentar, como corolário, com a produção cultural.

Assim, nota-se a importância desse levantamento sobre as produções e manifestações culturais surgidas em função do novo sensorium de base digital. Essa percepção se fortalece na medida em que o advento desse novo meio de comunicação está alterando até a compreensão das categorias tradicionais de explicação da realidade utilizadas por algumas ciências, como é o caso da Sociologia.

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1. Comunidades virtuais

Atribui-se a expressão ‘comunidade virtual’ ao escritor norte-americano Howard Rheingold, que a teria cunhado em 1993, com o lançamento do livro A comunidade virtual (publicado em português pela Gradiva, Portugal). Uma procura no Google por esse termo resulta em algumas centenas de milhares de páginas, mostrando que esse é um dos aspectos mais considerados da nova cultura.

A concepção que Rheingold11 passa de comunidade virtual é simples: um novo tipo de cultura, uma teia de relações pessoais mediadas por computador ou agregados sociais que emergem no ciberespaço, que respondem a uma ne-cessidade das pessoas por vivência comunitária, cujas finalidades e/ou possi-bilidades são as mais diversas possíveis, desde psicoterapia, passando por jogos, chegando a atividades científicas e artísticas, formando um ecossistema de subculturas, com potencial para mudar a relação das pessoas com o mundo real.

No dizer de Castells, “o novo padrão de sociabilidade em nossas socieda-des é caracterizado pelo individualismo em rede”.12 Ou seja, a própria noção de comunidade está mudando, deixando-se de enfatizar os aspectos espaciais e culturais para ressaltar o seu papel de suporte a indivíduos e famílias. Isso significa que o sentimento de pertença agora se dá com base em interesses compartilhados. Wellman e Gulia13 apontam alguns exemplos de como esses novos laços se constroem por meio da internet. Pode ser a partir de in-formações sobre tratamentos, em função da consulta a médicos especialistas, pela participação em grupos de apoio emocional para pessoas que se recupe-ram de vícios em álcool e drogas, pelo desejo de obtenção de companhia e conselhos, a partir do teletrabalho etc.

Na verdade, o que se afigura é a possibilidade concreta de uma glocaliza-ção (o global com suporte no local, que está sendo chamado de glocal). Isso porque a partir da infraestrutura técnica proporcionada pela telemática “não é que o mundo tenha se tornado uma aldeia global, como McLuhan disse originalmente, a aldeia particular de cada um pode agora abranger todo o globo”, no dizer de Wellman e Gulia (2005).

Dessa forma, percebe-se como as redes sociais amparadas por computa-dor transformaram-se em elemento fundamental de laço social, a ponto de

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

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Castells (2003) afirmar que as relações de família estão ultimamente sendo ajudadas pelo uso do e-mail.

2. Cidades digitais

Com o surgimento do novo meio de comunicação propiciado pela inter-conexão planetária dos computadores, o ciberespaço, afigura-se também a configuração de, no mínimo, um novo espaço antropológico, espaço de signi-ficação ou de proximidade, chamado por Lévy de ‘espaço do saber’.14

Esse novo sistema de agregação social precisaria, à semelhança do espaço tradicional, desempenhar as mesmas funções de proteção, compartilhamento simbólico e centro de atividades comerciais, administrativas, científicas e be-neficentes.

Essa é a pretensão do novo surto urbanístico da humanidade. Desta vez, constituído não de cidades-Estado, mas de cidades virtuais enquanto “novo ambiente tecnológico de mobilização social” (Castells, 2003, p.120). Nesse fe-nômeno urbano destacam-se as cidades digitais de Amsterdã,15 Bolonha16 e Aveiro.17

Na definição de Zancheti,18 uma cidade digital é “um sistema de pessoas e instituições conectadas por uma infraestrutura de comunicação digital (a internet) que tem como referência uma cidade real”. Os objetivos dessa cidade vão desde a instauração de uma utópica democracia eletrônica a ser desfruta-da pelos netizens, cidadãos da internet, à formação de redes comunitárias, ou seja, integração social; manifestações culturais, notadamente aquelas que ca-racterizam a nova fronteira cultural da humanidade, a cibercultura; banco de dados sobre a comunidade originária; incubação de negócios; possibilidade de atuação do governo eletrônico,19 o chamado e-gov, e divulgação turística, den-tre outros.

3. Poesia digital

A poesia digital é a poesia

que circula nos computadores (discos rígido e flexível), nos CD-ROMs e nos sites da internet. Essa poesia pode ser chamada de poesia experimental, nova poesia visual, poesia digital, poesia internética ou nova poesia das mídias e, de certa

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forma, ela se constitui num gênero, o gênero da poesia digital, como um dos muitos gêneros de poesia existentes (poesia verbal, visual, sonora etc.).20

Com base no levantamento realizado destacou-se a produção de Eduardo Kac21 e a pesquisa de Sergio Caparelli,22 da Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul (UFRGS). Uma pesquisa mais detida será suficiente para revelar obras interessantes do novo gênero de poesia.23

4. Webart

São os trabalhos de arte que foram especialmente desenvolvidos para a internet e que por isso utilizam as possibilidades e características desse meio, como hipertextualidade, interatividade, imaterialidade e reprodutibilidade incalculável. Ou seja, nessa nova expressão cultural ocorre a digitalização dos instrumentos da produção artística.

Algumas manifestações da cibercultura de evidente e imediata aplicação pedagógica são o ciberjornalismo, que já se transformou até em disciplina aca-dêmica de cursos superiores, e a blogosfera, um campo de expressão pessoal em franca expansão que tem influenciado bastante até a esfera política.

Para uma aplicação pedagógica dos weblogs, importantes sugestões podem ser encontradas no Aulablog,24 um projeto desenvolvido por professores espa-nhóis com sugestões para o uso educacional de blogs, com artigos, experiências e links interessantes.

A questão principal não deixa de ser: “Como se poderia incluir a ciber-cultura no currículo dos Cursos Superiores de Ciências Humanas?”. As suges-tões abrangem desde a proposição de disciplinas específicas sobre cibercultu-ra no currículo até a correspondência com autores de outras universidades (troca de experiências), a utilização de atividades extraclasse e, especificamen-te no caso do curso de Geografia, a utilização das cidades digitais como mode-lo para análise e planejamento dos problemas urbanos.

Esta última representa uma excelente sugestão. Porém, a manifestação da cibercultura que desperta especial interesse para o campo da educação é a das comunidades virtuais. Segundo Lévy, “comunidade virtual é um grupo de pes-soas se correspondendo mutuamente por meio de computadores interconec-tados”.25 Para Castells (2003), as características fundamentais das comunidades virtuais são: o valor da comunicação livre, horizontal, e a formação autônoma

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

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das redes, sobre o princípio de que qualquer um é livre para divulgar sua men-sagem.

Com base nessa classificação e na percepção de que a cultura das comu-nidades virtuais tem um potencial pedagógico ainda por ser explorado, algu-mas categorias importantes vêm à tona. Destacam-se os conceitos de ‘comu-nidades aprendentes’, ‘inteligência coletiva’ e ‘ecologia cognitiva’.

A ideia básica que se pode apreender da articulação desses conceitos é que as ‘comunidades virtuais’, enquanto coletivos interconectados para fins peda-gógicos, podem aspirar a se tornarem ‘comunidades aprendentes’ que desen-volvam uma ‘inteligência coletiva’ a partir do compartilhamento de uma rica ‘ecologia cognitiva’.

Na definição de Lévy (2000, p.28), inteligência coletiva “é uma inteligên-cia distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. O objetivo da inteligência coletiva seria, então, o ‘enriquecimento mútuo’ das pessoas que partilham a mesma comunidade virtual aprendente.

Para conceituar ‘ecologia cognitiva’, Lévy argumenta:

Quem pensa? É o sujeito nu e monádico, face ao objeto? São grupos intersubjeti-vos? Ou ainda as estruturas, as línguas, as epistemes ou os inconscientes sociais que pensam em nós? Ao desenvolver o conceito de ecologia cognitiva, irei defen-der a ideia de um coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinâmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes...26

Assim, na perspectiva de Lévy (1993, p.144), uma ecologia cognitiva é for-mada não apenas por seres humanos, mas também por máquinas, ferramentas, estradas, carros, cidades, enfim, “todos os elementos do universo físico que as ações humanas implicam”. Como fica o professor diante do desafio de propiciar ‘ecologias cognitivas’ que favoreçam o aprendizado? Lévy responde:

A principal função do professor não pode mais ser uma difusão dos conheci-mentos, que agora é feita de forma mais eficaz por outros meios. Sua competên-cia deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem e o pensamento. O professor torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividade será centrada no acompanhamento e na gestão das

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aprendizagens: o incitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbó-lica, a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem etc. (1999, p.171)

O desafio é aproximar as contribuições da pedagogia com as da técnica, aqui representada pelos recursos do ciberespaço, o conteúdo das humanidades, sem olvidar a produção da cibercultura, no intuito de sugerir um processo de formação regular e continuada dos professores de Ciências Humanas que lhes propicie uma nova dinâmica didática.

Considerações finais

Os dados coletados na pesquisa exploratória através da internet em do-cumentos/websites revelam que a cibercultura é um vasto campo aberto para a realização de pesquisas acadêmicas, não só pelo surgimento de novos objetos de pesquisa, mas também porque o ciberespaço permite a adoção de novos procedimentos metodológicos. Além disso, o ciberespaço e a sua cultura cor-relata também constituem um vasto campo inexplorado, especialmente do ponto de vista educacional.

Ora, essas considerações permitem concluir este breve relatório de pes-quisa levantando a tímida hipótese de que as novas possibilidades acadêmicas, as dificuldades sentidas para a sua incorporação pedagógica e até mesmo as hesitações constatadas em relação à cibercultura deixam entrever que esses são fenômenos que se associam a um autêntico movimento de vanguarda. Assim, defendendo a cibercultura como um fenômeno que está guiando a cultura dos dias atuais, sinalizamos para a importância do prosseguimento dos estudos aqui esboçados.

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Espaço cibernético, cibercultura e pesquisa acadêmica

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AnexoA INTEGRAÇÃO DO CIBERESPAÇO NA PRÁXIS DOS PROFESSORES DE HUMANIDADESForMUlÁrio De avaliaÇÃo De WeBsites / teMa Da PesQUisa: ciBercUltUra

FASE

GLO

BAL

1. Manifestação da Cibercultura 2. Ferramenta de Busca 3. Data de Acesso____/____/_____

4. Idioma 5. Resultados (∑)(Número Total de chamadas)

6. % de Visitação do ∑

7. No de Sites Analisados

8. Palavras-Chave definidas:

FASE

PA

RCIA

L

9. Palavra-Chave Utilizada

10. URL

11. Autor(es) (Responsável)

Pessoal ________________________________________________________________ Institucional ___________________________________________________________ Não Identificado.

12. Validação: Baixa Média Elevada. (Confiabilidade da Informação)

13. Sinopse

14. Características/Curiosidades

15. Requisitos de interface Navegação fácil Sim Não Cores amenas Sim Não Contraste de cores Sim Não Fácil leitura Sim Não Possibilidade de interação Sim Não (E-mail, Chat, Blog etc.) Identidade visual Logomarca, banners Sim Não Animações, multimídia Sim Não Presença de Notícias, Informações Sim Não

16. Aplicação/Possibilidade de utilização docente Sim Não

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NOTAS

1 As manifestações da cibercultura abrangem várias subculturas, desde videogames, webart, música, fotografia, filmes, universo hacker, tecnologias de ponta, poesia digital e ciberjor-nalismo, passando pelas comunidades virtuais e práticas sociais online, tais como chats, weblogs, fotologs, webcams, listas, newsgroups ou fóruns. Abrange também o cibersexo, o imaginário cyberpunk e até as FlashMobs, as manifestações-relâmpago, combinadas e di-vulgadas no ciberespaço por pessoas, a maioria desconhecidas, para se reunirem em locais públicos e dispersarem-se logo em seguida sem uma causa definida. De um modo geral fala-se de ciberarte, ciberliteratura, ciberciência, cibercidadania, cibersociologia, ciberpsi-cologia, cibergeografia e cibersociedades, e até a criação de cidades digitais também é con-siderada um subproduto desta nova expressão cultural.2 Um estudo introdutório sobre essas questões pode ser encontrado em: PALACIOS, Mar-cos. A internet como ambiente de pesquisa: problemas de validação e normalização de documentos online. Revista da FAEEBA, Faculdade de Educação do Estado da Bahia, Sal-vador, n.6, jul.-dez. 1996.3 SCHOLAR.GOOGLE. Disponível em: scholar.google.com.br/intl/pt-BR/scholar/about.html; Acesso em: 2 jun. 2006.4 SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultu-ra. São Paulo: Paulus, 2003. p.20.5 ASSMANN, H. Redes digitais e metamorfose do aprender. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005. p.9.6 Um texto de fácil acesso, que apresenta a lógica de funcionamento do Google, foi publi-cado pela revista SuperInteressante (n.201, jun. 2004), intitulado: “O Mundo Google”. Também já é possível encontrar nas livrarias mais de uma dezena de títulos de obras que abordam diferentes aspectos dessa ferramenta de busca. O próprio website do mecanismo de busca disponibiliza algumas informações básicas sobre seu funcionamento e dicas de operacionalização: www.google.com.br/intl/pt-BR/about.html.7 A revista SuperInteressante (jun. 2004) comparou o funcionamento do Google ao do mundo acadêmico, onde a importância de uma publicação é aferida pelo número de cita-ções que ela recebe em outras obras do meio universitário.8 GOOGLE. Disponível em: www.google.com.br/intl/pt_BR//why_use.html; Acesso em: 4 jun. 2006.9 GALIMBERTI, Carlo; GATTI, Fabiana. Nova mídia e família. In: PELUSO, Ângelo (Org.) Informática e afetividade. Bauru (SP): Edusc, 1998.10 TURKLE, Sherry. A vida no ecrã: a identidade na era da internet. Lisboa: Relógio D’água, 1997.11 RHEINGOLD, Howard. The virtual community. Disponível em: www.rheingold.com/vc/book/; Acesso em: 4 jun. 2006.

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12 CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.108.13 WELLMAN, Barry; GULIA, Milena. Comunidades virtuais como comunidades: os sur-fistas da rede não viajam sozinhos. Disponível em: members.fortunecity.com/cibercultura/vol6/comucomo.html; Acesso em: 5 mar. 2005.14 LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2000.15 www.amsterdam.nl/asp/get.asp?ItmIdt=00000494&SitIdt=00000005&VarIdt=00000002.16 www.comune.bologna.it/.17 www.aveiro-digital.pt/.18 ZANCHETI, 2004, citado em DA SILVA, Michele Tancman Candido. A (ciber)geografia das cidades digitais. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografia y Ciências Sociales, Bar-celona: Universidad de Barcelona, v.VIII, n.170 (36), 1 ago. 2004. [ISSN:1138-9788]. Dis-ponível em: www.ub.es/geocrit/sn/sn-170-36.htm; Acesso em: 30 nov. 2004.19 www.redegoverno.gov.br/.20 ANTONIO, Jorge Luiz. O gênero poesia digital. Symposium, ano 5, n.1, jan.-jun. 2001. p.65.21 www.ekac.org./index.html.22 www.capparelli.com.br.23 www.pucsp.br/pos/cos/epe/mostra/; www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/epoesia/; artecno.ucs.br/; www.cce.ufsc.br/nupill/; www.lucialeao.pro.br/.24 www.aulablog.com/.25 LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. p.27.26 LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informá-tica. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1993. p.10-11.

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 10 de abril de 2012.

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem para os anos finais do ensino

fundamental no Brasil (2007-2012)Curriculum of History and learning expectations for

the final years of primary education in Brazil (2007-2012)

Margarida Oliveira* Itamar Freitas**

ResumoO artigo traça um perfil das propostas curriculares produzidas entre 2007 e 2011, por 18 estados da Federação, des-tinadas aos anos finais do ensino funda-mental. O texto é um dos resultados da pesquisa empreendida nos últimos três anos por pesquisadores das universida-des federais do Rio Grande do Norte e de Sergipe, que prioriza o exame das ex-pectativas de aprendizagem histórica em termos de finalidades, quantidades, distribuição, habilidades, conhecimen-tos e níveis de incorporação da pesquisa de ponta. O objetivo é fornecer subsí-dios para o conhecimento e a discussão sobre políticas públicas e apontar a oportunidade de investigação de temáti-cas e problemas ainda pouco explorados pela academia.Palavras-chave: ensino de história; cur-rículo; ensino fundamental.

AbstractThe article presents a profile of curricu-lar proposals produced between 2007 and 2011 by 18 states of Brazil, for the final years of primary education. The text is one of the results of a research undertaken in the last three years by re-searchers at the federal universities of Rio Grande do Norte and Sergipe, which prioritizes the review of learning expectations in terms of historical pur-poses, amounts, distribution, skills, knowledge and levels of incorporation of cutting edge research. The goal is to provide subsidies for knowledge and discussion of public policy and point out the opportunity to research issues and problems few explored by the acad-emy.Keywords: History Teaching, Curricu-lum, Elementary school.

* Departamento de História, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Campus Universitário de Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. [email protected]

** Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Educação, Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”. Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze. 49100-000 São Cristóvão – SE – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 269-304- 2012

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1270

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Há 14 anos, Circe Bittencourt publicou um balanço das propostas curri-culares de história produzidas entre o fim da década de 1980 e o início da de 1990 em 22 estados brasileiros. A intenção da pesquisadora era “identificar o alcance de tais propostas no que se refere às mudanças do conhecimento his-tórico escolar”,1 transformações essas operadas a partir do processo de demo-cratização pelo qual passara o país, que resultou até mesmo no retorno da disciplina História aos currículos do ensino fundamental.

Em seu balanço, como o próprio título sugeria, Bittencourt apontou con-tinuidades e transformações. Entre as primeiras, destacou a presença do ensi-no de história fundado no ‘tempo cronológico como único ordenador das mudanças’ e do ‘estruturalismo’ na versão dos ‘modos de produção’ – com a consequente subsunção do indivíduo à coletividade. Das mudanças, destacou o esforço de algumas propostas para estabelecer uma ‘história problema’, os cuidados com a análise das noções de tempo histórico, a introdução, ainda que tímida, de estudos sobre as ‘culturas africanas’ e a superação da ideia de ‘espa-ço europeu’ como ‘lugar do nascimento da nação’ – formação fundada na mistura de raças e no predomínio da experiência portuguesa.

A quase uma década e meia da publicação desse importante inventário, vivenciamos o debate em torno da elaboração e circulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a produção das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, a ampliação do Ensino Fundamental em mais um ano e o atendimen-to de várias demandas sociais que resultaram em prescrições sobre a legislação de ensino, a exemplo das orientações sobre o estudo da história da África e dos afrodescendentes, para citarmos apenas os temas de maior difusão entre os professores do Ensino Básico.

Em termos historiográficos, os novos objetos, problemas e abordagens introduzidos no ambiente acadêmico, no final da década de 1980, parecem conviver civilizadamente com as perspectivas um pouco mais à esquerda. Em-pregando as categorias de Ciro Flamarion Cardoso,2 diríamos: os paradigmas rivais – o ‘iluminista’ e o ‘pós-moderno’ –, enfim, reconheceram os seus exa-geros (e as possibilidades de interação).

Acerca das ideias de aprendizagem, ensino e currículo, vigoram as mes-mas certezas cunhadas a partir da obra de autores como Jean Piaget, Lev Se-menovich Vygotsky, Jerome Bruner, David Ausubel, Philippe Perrenoud, César Coll e de um grupo de teóricos críticos entre os quais podem ser incluí-

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Junho de 2012 271

Currículos de História e expectativas de aprendizagem

dos os nomes de Paulo Freire e de Dermeval Saviani. Tais ideias são por demais conhecidas da maioria dos profissionais: desenvolvimento humano em termos de estágios, respeito aos saberes prévios, aluno como construtor de conheci-mento, professor como mediador das situações de aprendizagem, pedagogia das competências e dialogismo.

Novidade mesmo, afirmaríamos, foi o crescimento da produção acadê-mica resultante da pesquisa básica sobre o ensino de história. Encontros na-cionais, revistas, consolidação de grupos de investigação e formação de mestres e doutores proporcionaram o acúmulo de grande experiência analítica (em-bora de forma desequilibrada) sobre os aspectos que envolvem a aprendizagem histórica em todas as etapas do ensino básico e até do nível superior. Quais os desdobramentos dessa nova conjuntura para a formatação das propostas cur-riculares elaboradas nos estados do Brasil no período 2007-2012? Que desafios detectados no final da década de 1980 foram superados e que novos problemas se busca enfrentar? Qual o perfil das expectativas de aprendizagem formuladas na última década para os anos finais do ensino fundamental – ambiente privi-legiado de formação de pré-adolescentes e adolescentes onde atua o profissio-nal com formação inicial em história?

Este artigo retoma a discussão por nós levantada nos últimos três anos3 no sentido de produzir indicadores sobre a experiência brasileira em termos de ensino de história, visando subsidiar políticas públicas, bem como chamar a atenção dos pesquisadores para a importância do investimento na investiga-ção sobre determinadas temáticas e problemas que fogem aos interesses de tal ou tal estado, corrente historiográfica, pedagógica, ou seja, que refletem sobre o ensino de história em escala nacional, frente a outros movimentos e expe-riências internacionais.

Nos trabalhos de 2011, examinamos as prescrições de pesquisadores de vários países sobre o ensino de história como também as expectativas de apren-dizagem produzidas para os anos iniciais do ensino fundamental, no âmbito de 12 capitais brasileiras. Aqui, dando continuidade à pesquisa, analisamos as propostas curriculares produzidas para os anos finais do ensino fundamental, entre os anos 2007 e 2012, em 18 estados da Federação.4 Nosso objetivo é es-clarecer alguns pontos que consideramos fundamentais para o conhecimento da realidade brasileira em termos de prescrições sobre o ensino de história. Os indicadores que se seguem fornecem, portanto, a estrutura deste artigo: 1. o

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1272

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

lugar da história na formação do aluno (ou ideal de aluno a ser formado); 2. o sentido de conteúdo e a quantidade de expectativas anunciadas; 3. as prescri-ções em termos de conhecimentos e de habilidades (conhecimentos substan-tivos e meta-históricos); e 4. os usos dos diálogos entre as durações, e dos jogos de escala.

O lugar da história na formação do aluno

As propostas curriculares para o ensino de história datam da década de 2000, como já informamos. As 18 com as quais trabalhamos5 foram elaboradas entre 2007 e 2012, demonstrando a concentração, nesse período, das reformas curriculares estaduais, em grande parte estimuladas pela ampliação do ensino fundamental de nove anos, como também pela ascensão de partidos de centro--esquerda ao poder nos estados, a partir do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Do ponto de vista das concepções de história que norteiam as propostas, podemos afirmar que a tônica, diferentemente do que imaginávamos, é a in-definição ou, pelo menos, a não explicitação desse ou daquele paradigma, cor-rente ou escola. Dois terços das propostas não indicam orientação. Traçam panorama da historiografia europeia do século XX, criticam a ‘história positi-vista’, mas, ao contrário das propostas da década de 1980, não fundam as es-colhas sobre um ou outro autor.

Mesmo entre os projetos que partem de uma definição de ciência histó-rica, as afirmações são gerais. Há referências aos historiadores Eric Hobsbawm – a defesa do exame da relação presente-passado-futuro –, Marc Bloch – a história como fornecedora de prazer – e Jörn Rüsen – o estudo das formas de superação das carências humanas. A história também é definida metaforica-mente, a exemplo de termos como ‘espelhos do tempo’ e ‘expressão de huma-nidade’.

Apesar de anunciadas em algumas propostas, as definições não chegam (solitariamente) a determinar a escolha de habilidades, a seleção e a distribui-ção dos conhecimentos. Isso ocorre por um motivo óbvio, embora pouco com-preendido: nenhum historiador/corrente fornece o suporte necessário a todas as demandas do ensino. Observemos, por exemplo, a proposta do estado do Paraná. Ela está centrada na ‘perspectiva da formação da consciência histórica’,

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

devedora da nova história social alemã, que tem Rüsen como figura de proa. No entanto, para a eleição dos ‘conteúdos estruturantes’ (relações de trabalho, relações de poder e relações culturais), os autores das expectativas reivindicam a contribuição de Eric Hobsbawm e Edward Thompson (trabalho), Norberto Bobbio e Michel Foucault (poder), Raymond Williams, Roger Chartier e Car-lo Ginzburg (cultura).

No que se refere às funções da disciplina escolar História, a situação se inverte, uma vez que a maioria explicita essa informação fundamental para os professores, sobretudo. Mesmo na ausência de explicitação da ideia de história--ciência, a maioria das propostas converge para quatro grandes finalidades: a formação de identidades, a capacitação para a cidadania, a leitura crítica da realidade e a compreensão dos procedimentos meta-históricos.

Assim, uma verdadeira vulgata, interligando identidade, cidadania, leitu-ra da realidade e operação historiográfica, se instaura nas propostas. A forma-ção da identidade surge como aquisição das noções e compreensão das iden-tidades individuais/pessoais e coletivas (locais, nacionais, por exemplo). A identidade também aparece na forma de sentimento de pertença, compreensão de si e dos outros, e de percepção da condição do aluno como sujeito histórico. Identidade oscila entre fundamentos e abordagens políticas, antropológicas e historiográficas, mas que convergem para a ideia de formação cidadã.

A cidadania é requerida em termos de conhecimento dos princípios, com-preensão e preparação para a ação (atuação). É também traduzida como luta contra a exclusão social e em favor dos direitos fundamentais. Cidadania faz par com a preparação do aluno para a vida em regime democrático, o desen-volvimento da habilidade de fazer escolhas, agir e intervir no mundo que o cerca. Aqui surge o terceiro e mais referido objetivo para o ensino de história: a habilidade de ler o real.

A leitura da realidade, anunciada como leitura do mundo que cerca o aluno, do presente ou da sociedade, atribui à disciplina escolar História a res-ponsabilidade de desenvolver no/com o aluno as habilidades de observar, in-terpretar, compreender e pensar.

O domínio dos conteúdos meta-históricos, por fim, complementa o leque de finalidades expresso pela vulgata histórica. As justificativas implícitas, aqui, parecem oscilar entre as orientações da psicologia do desenvolvimento – a habilidade de identificar semelhanças e diferenças, continuidades e permanên-

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1274

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

cias – e as prescrições da teoria/metodologia da história: identificar mudanças e permanências, semelhanças e diferenças, relacionar presente/passado, racio-cinar, pensar historicamente, construir consciência histórica ou, simplesmen-te, conhecer os princípios da ciência da história.

O sentido de conteúdo e quantidade de expectativas anunciadas

O que os adolescentes devem aprender com o ensino de história? Essa questão é respondida com o emprego da expressão ‘expectativas de aprendi-zagem’. Não obstante a variedade de concepções de ‘aprendizagem’, a locução não deixa dúvidas sobre o sentido que queremos transmitir: o que os legisla-dores, gestores e professores esperam que os alunos aprendam sob a rubrica de uma área do conhecimento chamada história.

Nas propostas, evidentemente, a diversidade de nomenclatura impera. As expectativas são chamadas de ‘aprendizagens básicas esperadas’ (AL), ‘expec-tativas de aprendizagem’ (PR), ‘expectativas de ensino e aprendizagem’ (GO), ‘atitudes’ (AM), ‘habilidades’ (ES, MG, SE, TO), ‘capacidades’ (MT, SP), ‘com-petências e habilidades’ (MS, RS), ‘conteúdos’ (CE), ‘conteúdos, habilidades e competências’ (RJ) e ‘objetivos’ (AC, BA, PB, PE). Como vemos, o glossário indica a incorporação da vulgata construtivista e o quase abandono do vocá-bulo ‘objetivo’, associado, no senso comum da docência, ao tecnicismo com-portamentalista.

Para nós, entretanto, o anúncio de uma expectativa de aprendizagem ga-nha a forma de um objetivo educacional, independentemente dos sentidos de ensino e de aprendizagem que se queiram emprestar. Dizendo de outro modo, informar sobre o que se espera que o aluno aprenda requer a construção de uma sentença composta por verbo(s) e substantivo(s) que expressem, simul-taneamente, processos cognitivos (lembrar, compreender, aplicar, avaliar, criar, entre outros) e conhecimentos (factuais, conceituais, procedimentais, metacognitivos, entre outros).6

Nesse sentido, excetuando-se as propostas do Ceará e de São Paulo7, todos os documentos analisados anunciam expectativas em forma de objetivo edu-cacional – alguns mais extensos, contendo dois, três ou mais verbos, outros

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

resumidos (veremos isso adiante) –, constatação que nos leva a questionar de início com quantos objetivos se faz uma proposta curricular.

Aqui, novamente, a variação é a tônica. Há estados que prescrevem entre duas e cinco dezenas de objetivos (AC, AL, BA, CE, ES, MT, PR, RS, SE, SP), que estabelecem de seis a nove dezenas objetivos (AM, MG, MS, PB, RJ), e um terceiro grupo que lista entre dezoito e dezenove dezenas de objetivos educa-cionais (GO, PE, TO). Embora não possamos discutir neste artigo as razões de cada uma dessas escolhas,8 podemos inferir que tais números fornecem indí-cios sobre a pluralidade de concepções acerca de ‘conteúdo histórico’ (mais ou menos factuais, conceituais ou generalistas) e, ainda, sobre graus diferenciados de autonomia docente e/ou de apoio teórico-metodológico fornecido pelas equipes técnicas.

A forma de distribuição das expectativas por ano9 também indica varia-ção. Há propostas que estabelecem a mesma quantidade de objetivos para os dois primeiros ou os dois últimos anos, para os três primeiros ou os três últi-mos anos do ensino fundamental. Rara é a proposta que os distribui equitati-vamente. No geral, o 7º e o 9º anos recebem o maior número de objetivos. Esses dados nos levam à conclusão de que, em termos de quantidade de obje-tivos, as propostas não sugerem qualquer tipo de progressão da aprendizagem.

Gráfico 1 – Distribuição das expectativas entre os anos finais do ensino fundamental e por estado (2007-2011)

60%

50%

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10%

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-10%AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

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Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Substantivos Meta-históricos

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AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Breve Conjuntural Longa Longuíssima

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AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Observação: Para a adequada leitura do gráfico, conferir os comentários da Nota 5 sobre as propostas de Alagoas, Ceará e Amazonas, que explicam a homogeneização dos quantitativos referentes a cada ano.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1276

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Encerrando este tópico, esclareçamos um pouco mais sobre a natureza das expectativas de aprendizagem ou, como circula na vulgata pedagógica, sobre o sentido de conteúdo nos currículos prescritos para a história. A lite-ratura da área não chegou a um consenso sobre o que seria o específico em termos de aprendizagens históricas,10 razão pela qual consideramos os três tipos de ‘conteúdo’ correspondentes às posições em disputa: 1. habilidades específicas do ofício do historiador; 2. conhecimentos produzidos a partir das habilidades específicas do ofício do historiador; e 3. habilidades e conheci-mentos que excedem às tarefas da heurística, análise, síntese e escrita históri-cas (ofício do historiador), demandadas, por exemplo, pela linguística, psico-logia do desenvolvimento, psicologia da aprendizagem, filosofia (principalmente, a ética e a estética), política, sociologia e antropologia, ou seja, áreas do conhecimento que, geralmente, fundamentam as políticas edu-cacionais para a escolarização básica.

Partindo dos saberes experienciais dos professores do ensino fundamen-tal, poderíamos, sem grandes problemas, nomear o primeiro e o segundo tipo como objetivos específicos, e o terceiro como objetivos gerais. Eles serão deta-lhados no próximo tópico. Aqui, é bastante informar que 90% do total de objetivos são constituídos por habilidades e conhecimentos ‘específicos’ da história e apenas 9% enfocam outras áreas do saber.11 Examinado caso a caso, verificamos que 13 das 18 propostas possuem de 84% a 100% de objetivos voltados para as habilidades e conhecimentos específicos do ofício do histo-riador, demonstrando uma compreensão endógena e restrita a respeito dos ‘conteúdos’ concebidos como históricos.

As propostas da Paraíba e do Espírito Santo, por exemplo, são constituí-das, respectivamente, por 71% e 65% de objetivos específicos, um pouco abai-xo, portanto, da taxa majoritária. Esses dados significariam, então, que os dois desenhos curriculares reduzem o espaço do conhecimento histórico na forma-ção dos adolescentes? É evidente que não. Conclusões desse tipo são possíveis somente após o levantamento em detalhe dos conhecimentos e habilidades explorados pelos objetivos.

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

As prescrições em termos de conhecimentos e de habilidades

1. Conhecimentos e habilidades nos ‘objetivos gerais’

Comecemos pelos mais raros, os conhecimentos e habilidades constituin-tes dos objetivos que supostamente excederiam as tarefas clássicas do historia-dor. Eles somam 118 em um total de 1.380 objetivos. Além de serem minori-tários em todas as propostas que os contemplam, eles não compõem os currículos de quatro estados (AM, BA, CE e PR). Porém, apresentam números significativos outros quatro: 47% (SP), 35% (ES, PB) e 23% (MT).

As expectativas expressas por objetivos gerais abordam conhecimentos relativos à comunicação (39%),12 quais sejam: leitura13 (sobretudo, busca de informações e interpretação de texto escrito) e escrita, análise e leitura de grá-ficos e tabelas e uso de mapas.

Os objetivos gerais também exploram temas relacionados aos valores que fundamentam o comportamento individual e a vida em sociedade (68%).14 Nesse sentido, e em ordem decrescente de ocorrências, abordam cidadania, identidade, alteridade, diversidade cultural, étnica e de gênero, democracia, justiça, tolerância, solidariedade, direitos humanos, sociedade, o meio ambien-te e o planeta. Esses objetivos também exploram a capacidade humana de transformação e de convivência da diversidade na unidade.

Na mesma rubrica, espera-se que os alunos ampliem as capacidades de viver em grupo, conviver com as ideias do outro, compreender e combater as ideias de dominação (entre os países), a atitude consumista, o preconceito e a discriminação em relação à mulher, aos idosos, aos afrodescendentes e aos indígenas.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1278

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Gráfico 2 – Valores/atitudes x habilidades linguísticas por estado: Brasil (2007-2012)por estado: Brasil (2007-2012)

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-10%AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

6o ano 7o ano 8o ano 9o ano

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Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Substantivos Meta-históricos

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AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Breve Conjuntural Longa Longuíssima

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AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Observação: Os demais estados não apresentam expectativas em termos de valores/atitudes ou de habilidades linguísticas.

Em termos de habilidades, o ‘aplicar’ predomina nos objetivos de comu-nicação, coerente com a natureza da expectativa. Ao contrário, nos objetivos que abordam valores e atitudes, prevalecem as habilidades de baixa complexi-dade cognitiva – lembrar e compreender –, indicando maior ênfase na aquisi-ção de informações em detrimento da resolução de situações-problema.

Este é o momento de retomar aquela indagação do tópico anterior, acer-ca da menor frequência de objetivos ‘específicos’ nas propostas do Espírito Santo, Mato Grosso e Paraíba e indicar que se trata de uma ressignificação dos conteúdos históricos e não, propriamente, de uma redução do espaço da his-tória no currículo. Os valores e as atitudes, cidadãos em sua maioria, seriam absorvidos como tarefas da disciplina, tão importantes quanto a compreensão de acontecimentos do passado próximo ou distante.

No entanto, independentemente do desempenho desses e de outros esta-dos, como demonstra o Gráfico 2, valores, atitudes e habilidades linguísticas representam aproximadamente 6% do total de expectativas no Brasil. Caso quiséssemos estabelecer um paralelo entre a tipologia empregada neste artigo e as possíveis razões que fundamentam a introdução dos objetivos gerais,15 sobretudo aqueles que abordam valores e atitudes, poderíamos afirmar, com convicção, que os princípios éticos, estéticos e de cidadania, seja na sua versão

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

constitucional, seja na disposição indicada pela Unesco, ocupam um lugar restrito no currículo de história para os anos finais no Brasil.

2. Conhecimentos e habilidades nos objetivos específicos: conteúdos meta-históricos

Os objetivos ‘específicos’, como anunciamos no tópico anterior, são cons-tituídos por habilidades singulares ao ofício do historiador (as operações pro-cessuais do ofício – pesquisa e escrita da história) e conhecimentos produzidos a partir do emprego dessas mesmas habilidades (são os ‘fatos’ ou os ‘conteúdos propriamente ditos’ da vulgata docente). Nomeamos os primeiros conteúdos como meta-históricos, e os últimos, como substantivos. Eles representam, res-pectivamente, 11% e 79% do total das expectativas prescritas.16

Gráfico 3 – Conteúdos substantivos x conteúdos meta-históricos: Brasil (2007-2012)

60%

50%

40%

30%

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10%

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-10%AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

6o ano 7o ano 8o ano 9o ano

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Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Substantivos Meta-históricos

60%

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AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Breve Conjuntural Longa Longuíssima

60%

70%

50%

40%

30%

20%

10%

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AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Como podemos acompanhar pelo Gráfico 3, apenas duas propostas não explicitam os conteúdos meta-históricos (AL e MG) entre os seus objetivos. Nas demais, entretanto, tais conteúdos são distribuídos de forma bastante va-riada. Há desenhos, por exemplo, que reservam pouco menos (PR – 45%) ou pouco mais que a metade (ES – 58%, MT – 55%). Entretanto, há também propostas cujo espaço preenchido pelos conhecimentos e habilidades referen-tes à teoria da história, à pesquisa e à escrita histórica não ultrapassa os 5% do total dos seus objetivos específicos (BA, CE, MS, RJ – 4%, e TO – 5%).

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1280

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Resta saber quais são os conhecimentos e habilidades mais recorrente-mente utilizados pelas propostas. Esse exame é viabilizado mediante a recolha dos verbos e dos substantivos empregados no anúncio dos objetivos.

O Quadro 1 apresenta as escolhas de todas as propostas. Podemos obser-var as referências aos conceitos básicos (história-processo, história-ciência, fonte histórica, acontecimento, tempo, período, historicidade, sujeito históri-co, duração, espaço, memória, narrativa, interpretação e anacronismo) e aos procedimentos canônicos que guiam a pesquisa e a escrita da história (obser-vação, descrição, análise, comparação, interpretação, crítica e síntese) – ambos, objetos da formação inicial em história.

Tais escolhas, entretanto, não são expostas esquematicamente, como lis-tamos acima – pelo menos, não o são nas propostas que apresentam baixo índice de conteúdos meta-históricos. Um estado, por exemplo, privilegia os conceitos de duração, fontes, interpretação-versão e a diferenciação história--ciência/história-vida (AC). Outro já concentra os objetivos na importância da história-ciência (BA). O terceiro espera do aluno a compreensão da ideia de historicidade e da diferença entre história e mito (SE). Um quarto estado, por fim, sugere os conhecimentos e as habilidades meta-históricas, apresen-tando o ‘conteúdo’ ‘introdução à história’ (CE) e assim por diante.

Mesmo nos estados que reservam maior espaço para os conteúdos meta--históricos, os objetivos são concentrados em quatro ou cinco noções e/ou procedimentos. Podem, por exemplo, privilegiar o trabalho com narrativas, fontes e na relação presente-passado (PR), com os conceitos de história, his-toricidade e memória e tempo e os procedimentos de observação, simultanei-dade, mudança, permanência e ruptura, continuidade e descontinuidade (MT) ou, ainda, história, historicidade, tempo, narrativa e fontes (ES).

Verticalizando o exame sobre tais propostas, verificamos que os conteú-dos meta-históricos são distribuídos nos anos finais de forma equilibrada em dois currículos (ES, MT). Apenas três propostas apresentam tendência de-crescente, ou seja, maior quantidade de objetivos no sexto e menor no nono ano (TO, PB, PR), indicando possibilidade de progressão em termos quan-titativos.17

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Quadro 1 – Habilidades e conhecimentos meta-históricos: Brasil (2007-2012)

Habilidades ConhecimentosIdentificar Acontecimento (o conceito e o

referente)

Analisar Anacronismo (o conceito e o referente)

Utilizar Escalas (Cartografia)Definir, reconhecer, reconhecer a importância e compreender

História-ciência (o conceito e o referente)

Discutir Conceitos históricosComparar CronologiasIdentificar DuraçõesAnalisar, comparar, compreender, identificar, interpretar, ler, reconhecer, reconhecer a importância (para a escrita da história), utilizar, criticar e verificar

Fontes históricas

Reconhecer, diferenciar História conhecimento/história processo (vida) e história/mito

Relacionar História individual e história coletiva

Compreender HistoricidadeInterpretar Fontes (imagens)Comparar, interpretar, relacionar, buscar Informações em fontes históricasComparar, compreender Interpretações (versões) históricasCompreender, relacionar Tempo (medidas de)Identificar, coletar, discutir, comparar MemóriasDiferenciar Narrativa e mitoDiferenciar, comparar, compreender, produzir, utilizar

Narrativas

Desenvolver Noções de simultaneidade, mudança, permanência, ruptura, continuidade, descontinuidade e transformações

continua

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1282

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Habilidades ConhecimentosConhecer Noções de tempo, espaço, duração

e periodização, temporalidade e historicidade

Estimular, projetar Pesquisa históricaRefletir Tempo (presente/passado)Desenvolver Procedimentos de observação,

descrição, registro, comparação, análise e síntese

Problematizar, refletir Sujeito histórico (conceito)

Conhecer, identificar, compreender, comparar representar (em linhas de tempo), medir

Tempo

Refletir Valor do ensino de história

Outra informação relevante, mas que esse quadro não pode fornecer, é a frequência dos conhecimentos e das habilidades. De maneira geral (no soma-tório de todas as propostas), os conteúdos privilegiados são: fonte histórica, história-ciência e tempo. Esses três conceitos – isolados ou associados – pre-enchem mais da metade dos objetivos e estão presentes, respectivamente, em 11, 13 e 9 propostas, contabilizando 47, 26 e 14 ocorrências.

Quanto às habilidades, dos 27 verbos listados no Quadro 1, compreender, identificar, interpretar, comparar, conhecer e reconhecer concentram 50% das expectativas relativas aos conteúdos meta-históricos. Essa concentração reve-la um dado preocupante em relação aos procedimentos da pesquisa e da escri-ta da história: é diminuta a presença de habilidades de maior complexidade como analisar e diferenciar, e quase ausentes as iniciativas de avaliar (criticar/julgar) e criar (hipóteses/generalizações/narrativas).

3. Conhecimentos e habilidades nos objetivos ‘específicos’: conteúdos substantivos

Independentemente do paradigma historiográfico de apoio, da orientação pedagógica em termos de aprendizagem e currículo, da maior ou menor pro-ximidade com a legislação educacional produzida pelo estado, os conteúdos

continuação

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

substantivos de história consideram, majoritariamente, o acontecimento como elemento central,18 tal como o define Paul Ricoeur.19 Nas 18 propostas em es-tudo, 87% dos objetivos tratam direta ou indiretamente dos acontecimentos. O restante das ocorrências remete diretamente aos protagonistas (4%), artefa-tos (4%) e aos conceitos (4%).20 Vejamos, em, primeiro lugar, a categoria de maior frequência, ou seja, os conhecimentos e habilidades que exploram, na ausência de melhor palavra, a configuração21 dos acontecimentos.

Tabela 1 – Habilidades e conhecimentos substantivos – configuração dos acontecimentos: Brasil (2007-2012)

Habilidades* Conhecimentos*

Compreender (10%), identificar (8%), analisar (6%), reconhecer (4%), refletir (3%), relacionar (2%), discutir (2%), comparar, descrever, avaliar, caracterizar (1%), imaginar, valorizar (1%), diferenciar, listar, pesquisar, problematizar, ler, refletir, escrever, definir, posicionar-se, localizar, respeitar, sintetizar.

Consequências (8%), semelhanças/diferenças (6%), importância (5%), processo (5%), causas (5%), conceitos (4%), crescimento (3%), mudanças (2%), estrutura (1%), cronologia (1%), história (1%), contexto (1%), apogeu, características, decadência, fim, limites, permanências, representações, crescimento, imaginário, importância e origem.

* Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos substantivos. Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1% desse total.

Como exposto na Tabela 1,22 os conhecimentos auxiliam na identificação do acontecimento-chave, ou seja, exploram os seus constituintes, ciclo vital (início, desenvolvimento e fim), antecedentes e consequentes, a exemplo de: “Reconhecer as características da era imperialista: crescimento das cidades e a formação de um mercado e de uma cultura de massa” (AL, 9º ano). Nesse exemplo, espera-se que o aluno ‘reconheça’ (habilidade) as ‘características’ (conhecimento) do ‘imperialismo’ (acontecimento-chave).

No entanto, ainda que o objetivo refira-se ao acontecimento ‘imperialis-mo’, ele não induz o aluno a reconhecê-lo de forma direta como neste outro exemplo: “Relacionar o Imperialismo com a Primeira Grande Guerra” (GO, 9º ano). Aqui, a habilidade ‘relacionar’ é imediatamente seguida do acontecimen-

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to ‘Imperialismo’. Ambos, portanto, exploram o ‘imperialismo’, mas o primei-ro objetivo o faz de forma analítica (dando a conhecer as partes) e o segundo de forma sintética (requerendo conhecimento prévio de ‘imperialismo’ para que o objetivo seja cumprido).23

Dentro dessa categoria, como podemos acompanhar pela Tabela 1, as causas, consequências e relevâncias ainda imperam, presentes, respectivamen-te, em 11, 13 e 10 propostas. No entanto, as velhas demandas da história dita conservadora convivem com expectativas de aprendizagem que exploram se-melhanças e diferenças (14 propostas), processos (14), definições (11) e mu-danças (10) nos eventos, bem acima, portanto, das tradicionais demandas por cronologia (8). Sobre as habilidades, constatamos o predomínio dos processos cognitivos mais simples: compreender (presente em 14 propostas), identificar (11), analisar (11), reconhecer (10).24

Tabela 2 – Habilidades e conhecimentos substantivos – os acontecimentos-chave: Brasil (2007-2012)

Habilidades Conhecimentos

Compreender (7%), identificar (7%), relacionar (3%), caracterizar, analisar (3%), refletir, ler, escrever, reconhecer (2%), comparar, discutir, conhecer, definir, descrever, problematizar (1%), avaliar, diferenciar, estimular, imaginar, localizar (tempo/espaço), promover, sintetizar, valorizar e verificar.

Acontecimentos – Abolição, abolicionismo, absolutismo, acordos (Conferência de Berlim, Congresso de Viena, Aliados, Eixo, Pacto de Varsóvia), Anistia, bandeiras, barroco, belle époque, capitalismo, capitanias hereditárias, caudilhismo, código de desmembramento, colônia, colonização (espanhola, europeia, francesa, inglesa, portuguesa), Coluna Prestes, Confederação dos Tamoios, conquista/domínio (sobre os territórios indígenas, do movimento Cartista, sertão, do campo sobre a cidade, de Goiás, do Brasil, da América), Constituição de 1824, contracultura, controle, propriedade/posse/uso da terra, coronelismo, crise (de 1929, do século XIV), crescimento do Sudeste brasileiro, cruzadas, democratização, depressão econômica, descobertas (tecnológicas, arqueológicas), descolonização, desemprego, desenvolvimentismo, despotismo esclarecido, Diretas Já, ditadura (militar, Vargas), domesticação de plantas e animais, divisão social do trabalho, dominação muçulmana, economia (do açúcar, café), emigração, escravidão (antiga, moderna), centralização do poder, exclusão (social, econômica), êxodo rural, família real/corte no Brasil, Fascismo, festivais gastronômicos (GO), feudalismo, FICA (GO), Frente Negra Brasileira, fundamentalismo, globalização, Golpe Militar de 1964, governo (Jânio

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Quadros, João Goulart, militar, napoleônico, totalitário, Vargas), Guerra (do Paraguai, Fria, local), Guerrilha do Araguaia, Igreja Católica (combate à Reforma), Iluminismo, imigração, império (bizantino, carolíngio), inconfidências, independência (da América espanhola, EUA, América colonial, América francesa, América latina, Haiti), industrialização, intervenção (dos EUA), islamismo/islão, liberalismo, libertação nacional, lutas sociais, meio ambiente (preservação), mercantilismo, modernismo, modernização (do estado, do país), monarquia, movimentos (artísticos, culturais, de dominação, de resistência, intelectuais, nativistas, políticos), nacional-desenvolvimentismo, nacionalismo, nazifascismo, neoclassicismo, neocolonialismo, oligarquia, Período 1930, perseguição à esquerda (no Brasil, nos EUA), populismo, pós [segunda] guerra, pré-golpe militar, Primeira (Guerra Mundial, República), Primeiro (Império, Reinado), Proclamação da República, quilombos (resistência), redemocratização, reforma (agrária, religiosa), Regência, regime (democrático, ditatorial, militar, oligárquico), Renascimento (comercial, urbano), repressão, República (oligárquica), resistência (de esquerda), revolta, Revolução (de 1820, 1830, 1848, 1917, 1924, 1930, francesa, industrial, mexicana, russa, socialista, soviética, política, cultural, inglesa, religiosa, social), Rússia czarista, Segunda Guerra Mundial, Segundo (império, reinado), sistema colonial, socialismo, stalinismo, tenentismo, terrorismo, tráfico (indígena, negreiro), transição monarquia/república, Trombas (GO), Formoso (GO), Tropicalismo e urbanização.

Na segunda posição, no que se refere à frequência, encontram-se as de-mandas por acontecimentos-chave. Eles ocupam 40% do total de expectativas. Como podemos observar pela Tabela 2,25 tal categoria apresenta idêntica varia-ção em termos de habilidade e maior dispersão em termos de conhecimentos.

As habilidades de compreender (presente em 13 propostas), identificar (10), caracterizar (9), relacionar, analisar (7) e reconhecer (6)26 são as mais empregadas em termos de frequência relativa ao número total de objetivos como também em relação ao número de propostas que as adotam. Quando as comparamos com os dados da tabela anterior (Tabela 2), verificamos que, não obstante as pequenas variações de ordem e frequência, as expectativas referen-tes à configuração dos acontecimentos e aos próprios acontecimentos (acon-

Habilidades Conhecimentos

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tecimento em detalhe/acontecimento em sua totalidade) apresentam habilida-des idênticas e totais aproximados (25 habilidades para a ‘configuração’ e 24 para os ‘acontecimentos’).

Quanto aos acontecimentos, infelizmente, não podemos quantificar a fre-quência relativa ao total dos objetivos, uma vez que eles estão presentes em vários enunciados, de forma isolada ou relacionada.27 No entanto, é possível verificar que alguns deles constituem maioria absoluta das 18 propostas ana-lisadas, sendo os mais recorrentes: guerra (presente em 14 propostas), revolu-ção (14), república (12), cidadania (12), colonialismo, movimentos sociais (11), capitalismo, imperialismo (9). Além disso, considerada a presença das palavras política, economia, sociedade e cultura (com seus similares semânticos – po-lítico, econômico, social e cultural, socioeconômico e sociocultural), podemos afirmar que as dimensões mais conhecidas da topologia das capacidades hu-manas são referenciadas na maioria absoluta (algumas no total) das expecta-tivas anunciadas pelas 18 propostas na seguinte proporção: social (126 citações e 18 propostas), cultural (99/18), político (90/17) e econômico (85/16).

Vejamos, por fim, a configuração das três categorias minoritárias também anunciadas como conteúdos substantivos: os artefatos, os conceitos e os pro-tagonistas. Juntos, constituem apenas 12% do total de 1.118 objetivos.

Tabela 3 – Habilidades e conhecimentos substantivos – protagonistas, artefatos e conceitos: Brasil (2007-2012)

Habilidades* Conhecimentos*

Compreender (1%), analisar, avaliar, caracterizar, definir, diferenciar, identificar, ler, refletir, escrever, localizar, reconhecer, refletir e verificar.

Protagonistas – indígenas, asiáticos e africanos, família real, classe social, trabalhadores da mineração, intelectuais do iluminismo, massas populares, mercado, capital, cidades e vilas, Belo Horizonte, Goiânia, Egito, Mesopotâmia, EUA, Europa.

Identificar (2%), analisar (1%), avaliar, caracterizar, compreender, conhecer, descrever, discutir, listar, reconhecer.

Artefatos – códigos de leis, fontes, imagens, patrimônio, propaganda, rotas e técnicas.

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Habilidades* Conhecimentos*

Identificar (1%), compreender (1%), analisar (1%), caracterizar, comparar, contextualizar, definir, descrever, diferenciar, discutir, reconhecer, refletir, relacionar.

Conceitos – cidadania, cidadão, classe, clientelismo, coronelismo, democracia, divisão do trabalho, escravidão, federalismo, feudalismo, mito, monarquia dual, oligarquia, parlamentarismo, patriarcado, populismo, relações sociais, trabalho escravo, trabalho livre; doutrinas/ideologias/modelos de pensamento – Monroe, do branqueamento, dos movimentos políticos contemporâneos, do movimento operário, religiosas, totalitárias e iluministas; projetos – iluminista, universalista da história moderna, imperialista napoleônico, político-transformador, político-conservador, de ocupação e construção da identidade, de ocupação da América portuguesa.

* Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos substantivos. Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1% desse total.

Pela Tabela 3, constatamos que a variação das habilidades é menor, quan-do comparadas às habilidades referentes às categorias já analisadas (configu-ração dos acontecimentos e demandas por acontecimentos-chave). Contudo, os atos de identificar, analisar e compreender continuam na lista dos mais requisitados, seja para o tratamento dos artefatos, seja para a abordagem dos protagonistas. Observe-se que os artefatos são assim considerados em razão de sua natureza inanimada. Os conceitos, por sua vez, dão sentido aos acon-tecimentos e aos objetos que encarnam vontades, regras, saberes e identidades. Conceitos e artefatos, entretanto, aparecem isolados ou relacionados a outros artefatos/acontecimentos, como nos respectivos exemplos: 1. “Entender o que é ser cidadão no império” (RJ, 8º ano); 2. “Analisar a Lei de Terras de 1850 e relacioná-la com a questão agrária no Império” (MG, 8º ano).

Sobre os protagonistas (ou atores ou sujeitos históricos), é necessário aler-tar, mais uma vez, que listamos apenas os conteúdos substantivos anunciados imediatamente após as habilidades (também, de forma isolada ou relaciona-da).28 Eles são, principalmente, sujeitos individuais pessoais, coletividades, instituições jurídico-políticas, cidades, países e continentes considerados, al-guns de forma metafórica, como detentores de vontade e promotores de ação.

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Protagonistas são categoria diminuta em frequência no total de objetivos. Isso ocorre, provavelmente, por causa do apelo ao coletivo, tendência crescente na historiografia dos últimos 20 anos.

Ampliando, porém, o universo de análise, incorporando os sujeitos indi-viduais pessoais, por exemplo, mencionados nas categorias já comentadas, não será difícil constatar que tais protagonistas praticamente desapareceram dos currículos nas últimas duas décadas. Os tradicionais responsáveis pelas ações – os indivíduos, nomeados como pessoas – são tão raros que é possível listá-los aqui: D. João VI (RJ), D. Pedro II (PE), Napoleão Bonaparte (MS, PE), Abraham Lincoln (MG), Luís Carlos Prestes (AM, GO), Getúlio Vargas (AM, PE, MG, MX, GO, RJ, SP), Juscelino Kubitschek (MG), Jânio Quadros (MG) e João Goulart (MG). Ao que parece, perderam o status de objeto principal das expectativas de aprendizagem histórica, por exemplo, as figuras de Cabral, Camarão, Tiradentes, Isabel e Deodoro da Fonseca, entre os ‘nacionais’, e os irmãos Graco, Colombo e Henrique IV, por exemplo, entre os protagonistas da experiência estrangeira.

Outra constatação importante, mas que abrange todas as categorias de conteúdos analisados até aqui, foi a vigorosa referência aos novos sujeitos de-mandados na primeira década do século XXI. Eles estão presentes em 10% do total das expectativas inventariadas. Africanos/afrodescendentes/África/cul-tura africana/cultura afro-brasileira e indígenas/cultura indígena são referen-ciados, respectivamente, por 11 e 10 propostas (entre 18). Essa proporção cai à metade quando o tema são as mulheres (5 propostas), e rareia em relação às crianças (2), jovens (2) e idosos (1).

O peso que o conjunto dessas temáticas representa no total de expectati-vas de cada proposta, porém, é bastante diversificado. Elas ocupam 28% (em 1 estado), 19% (3), 14% (1) 10% (3), 9% (1), 7% (3), 6% (1), 4% (4), 3% (2) e até 2% (1). Em 80% dos casos, os protagonistas frequentam as expectativas de forma isolada (ou indígenas ou mulheres ou crianças entre outras composi-ções). Por isso, e pelo fato de as experiências indígenas, africana e afro-brasi-leira estarem presentes no currículo de história para os adolescentes há mais de um século (ainda que não tenham recebido a abordagem sugerida pela le-gislação atual), não nos é possível avançar nas afirmações sobre esse indicador. Apenas podemos inferir que a experiência de crianças, idosos e jovens repre-senta uma inovação no currículo, típica do século atual.

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Tempos, durações, espaços e escalas

Considerando os acontecimentos em todas as expectativas, independen-temente das categorias analisadas até agora, podemos examiná-las sob o pon-to de vista do recorte do tempo, das durações, dos espaços focados e das esca-las. Esses indicadores podem informar sobre o grau de permanência e/ou mudança em relação às periodizações e aos cenários privilegiados nas propos-tas da década de 1980 e início da de 1990. Eles também dão a conhecer os graus de incorporação de duas formas de abordar o tempo e o espaço que entraram para a historiografia brasileira (ao menos como sugestão) no mesmo período: os diálogos entre durações e os jogos de escala.

Em primeiro lugar, vejamos o tempo histórico, aqui viabilizado pelo ar-tefato calendário.29 Seu domínio e sua representação no ensino de história foram bastante criticados na década passada, uma vez que a divisão quadri-partite, entre outros problemas, não considerava experiências exteriores ao Velho Mundo.30 A nosso ver, não é o emprego da periodização clássica da experiência humana que aproxima ou distancia a proposta das prescrições inovadoras produzidas pelos especialistas e sim a distribuição de expectativas por períodos e a distribuição dos períodos por ano. O que temos, então, nas propostas do novo século?

Sobre o primeiro aspecto – expectativas por período –, os dados expres-sam maior preocupação por parte dos professores, técnicos e gestores com a experiência do contemporâneo31 (57%),32 seguida de longe pelos acontecimen-tos das idades Moderna (18%) e Antiga (6%), da Pré-História (4%), e do Me-dievo (3%).33

Ao contrário do que ocorre com o emprego das habilidades,34 em termos de conhecimento a presença de vários conteúdos substantivos no mesmo ob-jetivo é muito mais frequente. Dessa prática têm origem os objetivos compos-tos, ou seja, que incluem acontecimentos de dois ou mais períodos. Ainda assim, o emprego simultâneo das idades Moderna e Contemporânea é majo-ritário (7%), superando os outros dois pares mais recorrentes que também incluem as duas idades dominantes – idades Antiga/Contemporânea (1%) e Média/Moderna (1%).35

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Tabela 4 – Distribuição das expectativas de aprendizagem histórica por período e estado: Brasil (2007-2012)

% Atemporal Pré- -histórico

Pré- -colombiano Antigo Medieval Moderno Contemporâneo

AC 60 2 3 1 3 20 9

AL 7 – – – – 4 89

AM 34 – – 9 3 18 36

BA 4 4 4 8 12 28 40

CE 6 2 2 2 1 18 70

ES 100 – – – – – –

GO 27 1 2 5 1 22 43

MS 16 6 1 18 1 12 46

MT 93 – – – – 3 5

MG 11 4 – – 2 18 65

PB 38 8 – 4 1 12 37

PR 77 – – – 4 11 7

PE 14 – 3 4 3 19 58

RJ 21 9 – 11 7 19 34

RS – – 2 3 3 27 65

SP 5 2 3 7 9 31 43

SE 6 6 3 6 10 11 59

TO 81 1 1 – 1 5 13

Examinando a distribuição dos períodos em cada uma das propostas, ob-servamos que os acontecimentos referentes ao período contemporâneo são majoritários em 12 das 18 propostas, o mesmo ocorrendo com o período mo-derno, situado em segundo lugar (em termos de frequência) em 17 currículos. A dominação do par moderno/contemporâneo só não se efetivou por comple-to porque seis estados optaram por elaborar objetivos que não prescrevem temporalidades, pondo ênfase nos conteúdos substantivos não datados (TO, AC) ou nos conteúdos meta-históricos (PR, MT), ou, ainda, distribuindo os objetivos quase que de forma equitativa entre as demandas substantivas, meta--históricas ou relacionadas aos valores da cidadania e da democracia (ES, PR).

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Mesmo entre aquelas propostas que dataram a maioria dos seus objetivos, chamaram a nossa atenção as propostas centradas no contemporâneo (AL), e que não explicitam a abordagem dos períodos pré-histórico (AM, PE, RS) e antigo (MG). Isso reforça ainda mais a hipótese de que a compreensão sobre a relevân-cia do contemporâneo – bastante significativa no início da década de 1930 – cresceu ainda mais nos currículos, ampliando de 40%, na reforma Francisco Campos,36 para 57% nas reformas locais da primeira década do século XXI.37

Caminho inverso têm tomado os períodos antigo e medieval, reduzidos, respectivamente (e também em relação à reforma Francisco Campos) de 22% e 13% para 3% e 6% nas atuais reformas. Os acontecimentos da pré-história (considerada a experiência americana – aqui categorizada de pré-colombiana) mantiveram sua representação no currículo. Outra mudança importante foi a introdução dos conteúdos sem referências temporais.38

Saber a frequência com que aparecem os períodos em cada proposta é importante, mas conhecer as formas de distribuí-los ao longo dos anos finais do ensino fundamental é ainda mais esclarecedor. Para tanto, comparamos as propostas aos dois perfis aqui citados: a distribuição total dos currículos no Brasil de 2012 e a clássica distribuição dos períodos na reforma Francisco Cam-pos. Examinando a distribuição das expectativas atemporais, percebemos pro-postas que apresentam progressão decrescente (TO, PE, MG, GO) ou distribui-ção equânime para todos os anos (AL, AM, ES, MT, PB). Outras estão mais próximas das totalizações da reforma Campos (BA, CE, RJ, RS, SE), que apre-senta (se não expectativas, mas) acontecimentos datados em sua totalidade.

Isso mesmo se pode dizer em relação ao contemporâneo. Das 18 propos-tas, 12 apresentam expectativas em progressão crescente (AC, BA, CE, GO, MS, MG, PB, PR, PE, SP, SE, TO), ou seja, quanto mais se avança para o último ano do ensino fundamental, mais se propõe o contemporâneo como tema para discussão. De igual maneira, em 12 das 18 propostas, o contemporâneo ocupa todos os anos letivos (AC, AL, AM, CE, GO, MS, MG, PB, PE, SE, TO). Esses números representam uma permanência em relação à reforma Campos, uma vez que 8 das 12 propostas que têm o contemporâneo como majoritário reservam o 9º ano para as expectativas referentes a esse período.39

Desse exame, concluímos que não há modelo(s) dominante(s). Não se pode mais classificar os currículos prescritos de história como majoritariamen-te estruturados no quadripartidarismo (antigo, medieval, moderno e contem-

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porâneo). Porém, é cedo para se afirmar que os currículos contemporâneos integram os tempos e as temáticas de forma sofisticada, distante daquele mo-delo inaugurado pela reforma Campos. Isso só é possível conhecer por meio do exame da relação entre esses tempos, capturada mediante o diálogo das durações.

Gráfico 4 – Distribuição das durações nos anos finais do ensino fundamental: Brasil (2007-2012)

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%

-10%AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

6o ano 7o ano 8o ano 9o ano

50%

40%

30%

20%

10%

0%

Valores/atitudes Habilidades linguísticas

Substantivos Meta-históricos

60%

80%

100%

40%

20%

0%

AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Breve Conjuntural Longa Longuíssima

60%

70%

50%

40%

30%

20%

10%

0%

AC AL ES GO MS MT MG PB PE RJ RS SP TO

AC AL AM BA CE ES GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Como expresso no Gráfico 4, o tempo40 conjuntural ou a duração média dos acontecimentos predomina em 12 das 17 propostas. Em ordem decrescen-te, seguem-se a longa (MT, RJ, TO) e a breve (PR) duração.41 Observe-se que em duas propostas há concentração das durações longa (MT) e breve (PR).

Quando postas em comparação sob o ponto de vista da distribuição entre os anos finais do ensino fundamental, constatamos a predominância do tempo conjuntural no 7º, 8º e 9º anos, seguido das durações longa, longuíssima e breve. Também constatamos que os tempos configuram uma progressão entre o 6º e o 9º anos, sendo crescente para o conjuntural e o breve e decrescente para os tempos longo e longuíssimo.

Quanto ao diálogo entre durações, isto é, a possibilidade de observar a experiência humana da perspectiva de uma ou mais de uma duração, enrique-cendo, dessa forma a interpretação sobre um ou vários acontecimentos, os dados apontam para o exíguo emprego dessa estratégia (anunciada até mesmo pelos PCN). Do total de objetivos que informam sobre o tempo (996), apenas 4,3% (43) deles relacionam diferentes durações.42 O pequeno grupo de objeti-vos com tempos compostos explora as durações breve e conjuntural (16 ocor-

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rências), breve e longa (8), conjuntural e longa (9), longa e longuíssima (9), e longuíssima e conjuntural (1).

Quadro 2 – Distribuição das expectativas segundo o espaço privilegiado nos anos finais do ensino fundamental: Brasil (2007-2012)

6º ano 7º ano 8º ano 9º ano

A B C D E F G A B C D E F G A B C D E F G A B C D E F G

AC AL AM BA CE GO MS MT MG PB PR PE RJ RS SP SE TO

Legenda: A – local; B – estadual; C – regional; D – nacional; E – continental; F – transcontinental; G – global. Observação: Este quadro indica apenas a presença ou ausência dos referidos espaços. Os dados foram contabilizados com base nas expectativas datadas.

No que diz respeito aos espaços de ação – cenários ou locus dos aconteci-mentos – os dados indicam exígua vantagem do espaço nacional-brasileiro (36%) sobre o transcontinental (33%), seguidos de longe pelos espaços global (13%) e continental (11%). A tríade estadual (5%), regional (1%) e local/mu-nicipal (0,4%) apresenta a mais baixa frequência nas expectativas.

A distribuição desses espaços nos anos finais é bastante variável, não ex-plicitando, portanto, um padrão. O local/municipal como cenário está presen-te, apenas, em uma proposta (GO), situado nos dois primeiros anos,43 enquan-to o recorte estadual ocupa três ou mais de três anos em quatro propostas (GO, MG, MS, TO) e um entre os dois anos finais em dois currículos (AC, TO).44

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O reduzido número de expectativas que fazem referências ao regional45 (AM, GO, MG, MS, PE), por sua vez, explora a conquista e a ocupação e a formação de limites e fronteiras na Amazônia, no Centro-Oeste e no Sul, e a presença de indígenas no Centro-Oeste. Também abordam a urbanização do Nordeste e os processos de centralização administrativa e industrializa-ção no Sudeste.

Quanto ao continental,46 dominantemente surge a experiência das Amé-ricas – do Norte, Central e do Sul – com metade dessa categoria, difusa em um, dois, três ou em todos os anos do ensino fundamental. Os movimentos de independência e a vivência dos povos pré-colombianos são conteúdos subs-tantivos mais explorados, seguidos de acontecimentos da história moderna europeia.

Quando abordados dois ou mais continentes no mesmo objetivo, a situa-ção se inverte: a Europa ocupa dois terços das representações, tratando, sobre-tudo, de guerras e revoluções e de movimentos como a Reforma e o Renasci-mento e a formação dos Estados nacionais. Em seguida, vem a América (com os temas já citados). A Ásia e a África estão parcamente representadas nessa e na categoria anterior.

O cenário global, dominado por temas como o capitalismo e seus consti-tuintes – colonização, descolonização, globalização, entre outros –, está pre-sente na maioria das propostas, no 6º e no 9º anos. E, por fim, vem o nacional--brasileiro, espaço majoritário nas propostas, distribuído pelos quatro anos, com maior presença no penúltimo, onde são explorados, com grande frequên-cia, a economia do açúcar, a independência política, a transição monarquia/república, o governo Vargas, a industrialização, o golpe de 1964/ditadura mi-litar, a experiência indígena e a luta por cidadania.

A exemplo do que verificamos com as durações, os jogos de escala são pouco empregados nas propostas que anunciam objetivos com um ou mais cenários. Não chega a trinta o número de expectativas que sugerem o estabe-lecimento de relações entre dois ou mais espaços diferenciados.47 Assim, ape-sar de o espaço estadual ser bastante referenciado nas propostas, a explícita relação espaço estadual/espaço nacional é rara.48 As mais frequentes dão con-ta das interações entre espaço nacional e o americano49 e do espaço nacional e europeu.50

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Conclusões

Ao final desta análise, podemos elaborar um perfil das expectativas de aprendizagem histórica para os anos finais do ensino fundamental, ambiente privilegiado de formação de pré-adolescentes e adolescentes e lugar de atuação do profissional com formação inicial em história.

Sobre o papel do ensino nesse processo de formação, vimos declinar a prática de orientar as propostas curriculares por uma teoria da história ou corrente ou escola. Mesmo quando definida a ciência da história, seu lugar na formação incorpora elementos da vulgata defendida por pesquisadores de vá-rios países e recupera finalidades centenárias: formar identidades, cidadanias, compreender a realidade e os modos de produção do conhecimento histórico acadêmico.

A ideia de conteúdo é tributária do construtivismo (ou da aversão ao tecnicismo comportamentalista). As formas de nomeá-lo indicam pluralidade de concepções que vão do factualismo à história conceitual, do rígido contro-le à autonomia docente. Essa mesma variação pode ser observada quando se comparam as quantidades de expectativas por estado, encontrando-se desde indicações gerais até prescrições, por assim dizer, quase que diárias.

Em termos quantitativos, verificamos a ausência de progressão na maio-ria das propostas, a ênfase nos conhecimentos factuais e conceituais e proce-dimentais relacionados à pesquisa histórica, e a residual participação dos va-lores e conhecimentos linguísticos. Entre as expectativas que exploram os conteúdos meta-históricos, predominam as habilidades de baixa complexida-de (conhecer, compreender) em detrimento das iniciativas de analisar e dife-renciar. As habilidades de avaliar, criticar, elaborar hipóteses e narrar são raras. Das que empregam conhecimentos substantivos, também é patente o predo-mínio do ‘conhecer’ e do ‘compreender’, seja para explorar os acontecimentos como totalidade, seja para explorar os acontecimentos em sua configuração.

Ainda sobre os conhecimentos substantivos, pudemos verificar a presen-ça equilibrada de todas as conhecidas e difundidas dimensões humanas, hie-rarquizadas em termos quantitativos na seguinte ordem: social, cultural, polí-tico e econômico. Sujeitos individuais pessoais são raros, e já se contempla a experiência de crianças, idosos e jovens.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1296

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Quanto à incorporação de conceitos e abordagens recentemente introdu-zidos na historiografia de ponta, constatamos algumas assimetrias. O contem-porâneo continua ampliando seu espaço no currículo e hoje já ocupa mais da metade do total de expectativas. Isso não significa, porém, apropriação das abordagens difundidas pela historiografia universitária. Trata-se de uma ten-dência verificada, por exemplo, desde a Reforma Francisco Campos, originada nas próprias demandas escolares. É provável que o contemporâneo só inter-rompa esse crescimento quando a historiografia didática assumir a rubrica do ‘tempo presente’ como um novo período da experiência humana.

Ainda sobre a incorporação da historiografia acadêmica, é certo afirmar que a duração conjuntural predomina e são verificados indícios de progressão entre o 6º e o 9º ano, no que diz respeito às durações longa e breve. No entan-to, o diálogo entre durações tem uso restrito.

Isso mesmo podemos afirmar acerca dos jogos de escala. Apesar de bas-tante diversificadas em termos de recorte espacial – com ligeira vantagem do recorte nacional sobre o transcontinental –, as propostas que apresentam ex-plícita relação entre o espaço estadual e o espaço nacional são raras. Frequen-tes são as interações entre Brasil e América e Brasil e Europa.

Como anunciamos no início, nosso objetivo foi traçar um perfil que sub-sidiasse as políticas públicas e apontasse algumas questões e temas prioritários para a pesquisa sobre ensino de história. Nesse sentido, encerramos este artigo convidando-os a refletir sobre as seguintes indagações:

1. Estaria o ensino de história nos anos finais do ensino fundamental incorporando finalidades, conhecimentos e habilidades das ciências humanas e sociais, independentemente das demandas da historiogra-fia de ponta?

2. É possível reproduzir nas prescrições curriculares todas as inovações da pesquisa de ponta em termos de habilidades e de conhecimentos?

3. É possível atualizar a experiência crescente do tempo presente e man-ter os espaços ocupados pelos conhecimentos que explicam a constru-ção do modo de vida ocidental (Grécia, Roma, Europa) e as heranças recentemente concebidas como formadoras de uma brasilidade (Áfri-ca)?

4. Devemos continuar mantendo a história local segregada ao ensino dos anos iniciais?

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

5. As matrizes que fundamentam os instrumentos de avaliação nacional da aprendizagem em história, a exemplo do Exame Nacional do Ensi-no Médio, são representativas do conjunto das propostas curriculares em vigor?

6. A posição que o Brasil ocupa no cenário global (assim como as previ-sões sobre a manutenção e até o crescimento do seu papel) não suge-ririam uma revisão desses currículos em termos de prioridades na se-leção dos conhecimentos e das habilidades?

7. Após 25 anos de experiências curriculares, passando por dois grandes momentos na vida democrática – as lutas por extirpar os vestígios au-toritários e as vitórias dos movimentos sociais –, não seria o momento de pensar numa base comum em termos de expectativas da aprendi-zagem ou, de maneira inversa, esperaremos que a disputa por cursos superiores (fundada na carência de vagas no setor público) transforme os itens de prova dos exames nacionais no currículo real para todos os brasileiros?

FONTES

ACRE. Governo do Estado. Cadernos de orientação curricular – Orientações curriculares para o ensino fundamental: Caderno 1 – História. Rio Branco: Acre, 2010.

ALAGOAS. Governo do Estado. Referencial curricular da educação básica para as escolas públicas de Alagoas. Maceió: Secretaria de Estado da Educação e do Esporte, 2010.

AMAZONAS. Governo do Estado. Proposta curricular do ensino fundamental do 6º ao 9º ano: Rede pública estadual. Manaus: Secretaria de Estado de Educação e Qualidade de Ensino, s.d.

ESPÍRITO SANTO. Governo do Estado. Currículo básico da escola estadual: guia de imple-mentação. Vitória: Secretaria de Estado da Educação Básica e Profissional, 2009.

FORTALEZA. Prefeitura Municipal. Diretrizes curriculares para o ensino fundamental do sistema municipal de ensino de Fortaleza. Fortaleza: Secretaria Municipal de Educação, 2012.

GOIÁS, Governo do Estado. Reorientação curricular do 1º ao 9º ano. Currículo em debate: expectativas de aprendizagem – convite à reflexão e à ação. Goiânia: Secretaria de Es-tado da Educação, 2007.

MATO GROSSO DO SUL. Governo do Estado. [Proposta curricular para história nos anos finais do ensino fundamental]. Campo Grande: Secretaria de Estado da Educação, s.d.

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1298

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

MATO GROSSO. Governo do Estado. Orientações curriculares da educação básica do esta-do de Mato Grosso. Cuiabá: Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso, [2010].

MINAS GERAIS. Governo do Estado. Proposta curricular de história do ensino fundamen-tal: 6º ao 9º ano. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação, [2007].

PARAÍBA. Governo do Estado. Referenciais curriculares do ensino fundamental: ciências humanas, ensino religioso e diversidade sociocultural. João Pessoa: Secretaria de Edu-cação e Cultura, 2010.

PARANÁ. Governo do Estado. Diretrizes curriculares da educação básica: História. Curiti-ba: Secretaria de Estado da Educação Básica, 2008.

PERNAMBUCO, Governo do Estado. Orientações teórico-metodológicas – ensino funda-mental: História. Recife: Secretaria de Educação, 2011.

RIO DE JANEIRO. Governo do Estado. Currículo mínimo: História. Rio de Janeiro: Secre-taria de Estado da Educação, 2011.

RIO GRANDE DO SUL. Governo do Estado. Lições do Rio Grande do Sul. Ciências Huma-nas e suas tecnologias. Caderno do Professor (ensino fundamental/ensino médio). Porto Alegre: Secretaria de Estado da Educação, [2009].

SANTOS, Cristiano dos; SILVA, Irlana Jane Menos da; SANTOS, Selma dos (Org.) Mentes e mãos construindo o Projeto Político Pedagógico (PPP). Feira de Santana (BA): Univer-sidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Educação, Colegiados de Peda-gogia, Fórum de Dirigentes das Escolas Públicas Estaduais, 2009.

SÃO PAULO. Governo do Estado. Proposta curricular do estado de São Paulo: História. São Paulo: Secretaria da Educação, 2008.

SERGIPE. Governo do Estado. Referencial curricular: rede estadual de ensino de Sergipe. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação, 2012.

TOCANTINS. Governo do Estado. [Proposta curricular de História]. Palmas: Secretaria de Estado da Educação, [2009].

NOTAS

1 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Propostas curriculares de História: continuida-des e transformações. In: BARRETO, Elba Siqueira de Sá (Org.) Os currículos do ensino fundamental para as escolas brasileiras. 2.ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campi-nas (SP): Ed. Associados, 2000. p.127-161. p.128.2 CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronald. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.27-43.3 FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. Ensino de história nos currículos de história de doze municípios brasileiros: um perfil das habilidades e dos conhecimentos prescritos para a alfabetização histórica das crianças (2000/2010). Publicado em 27 mar. 2011. Disponível em: itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/curriculos-de-historia-e-expecta-tivas.html; FREITAS, Itamar. O que deve “saber” e “saber fazer” o profissional de História?

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

Publicado em 2 abr. 2011. Disponível em: itamarfo.blogspot.com.br/2011/04/o-que-deve- saber-e-saber-fazer-o.html.4 Este trabalho somente foi possível graças à colaboração de colegas pesquisadores de vá-rios estados, aos quais somos enormemente agradecidos: Arnaldo Pinto Júnior (ES), Car-los Augusto Lima Ferreira (BA), Egberto Melo e Jane Semeão (CE), Jussara Luzia Leite (ES), Luciana Oliveira (BA), Magda Ricci (PA), Maria Augusta de Castilho (MS), Nathalia Alem (BA), Rita de Lourdes Campos Feitoza (RN), Simone Dias Cerqueira de Oliveira (BA) e Tarcisio Normando (AM).5 O quadro que esboçamos aqui está condicionado à seguinte situação: 16 estados reformu-laram suas expectativas entre 2007 e 2012 – Acre, Alagoas, Amazonas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe e Tocantins; dois estados não prescre-vem expectativas para os anos finais (é o município quem o faz), razão pela qual adotamos como amostra as propostas da capital ou de uma das diretorias regionais – Bahia e Ceará; quatro estados, além do Distrito Federal, estão reformulando ou construindo suas propos-tas (alguns até já as concluíram, mas ainda não disponibilizaram no site da Secretaria de Educação) – Pará, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima; e um estado não será objeto de análise em virtude de a proposta ser datada de 1998 e, ainda, pelo fato de não apresentar expectativas de aprendizagem para os alunos – Santa Catarina. Apesar das buscas, até o fechamento deste artigo não obtivemos informações sobre as expectativas do Piauí e do Amapá. A proposta do Maranhão, que nos chegou após a conclusão do trabalho, será in-cluída em novo texto (em preparo) que examina as ideias de progressão e avaliação.6 Cf. ANDERSON, Lorin W.; KRATHWOL, David R. et al. A taxonomy for learning, tea-ching, and assessing: a revision of Bloom’s taxonomy of educational objectives. New York: Longman, 2001.7 A proposta do Ceará anuncia conhecimentos. Os processos cognitivos são citados na exemplificação dos ‘mapas de ensino’. A proposta de São Paulo indica processos cognitivos no texto introdutório. A informação objetiva sobre os ‘conteúdos’, entretanto, é também fornecida em termos de conhecimentos. A proposta do Rio Grande do Sul apresenta ‘com-petências e habilidades’ e ‘sugestões de conteúdo’. Os conhecimentos substantivos estão presentes nos dois tópicos, mas somente ‘competências e habilidades’ constituem objetivos completos (verbos e substantivos).8 Apesar da variação em termos de quantidade de aulas semanais e dias letivos.9 A maioria das propostas discrimina as expectativas por ano, seguindo o ensino funda-mental de 9 anos. As exceções são Alagoas, que aponta os objetivos ao final do 9º ano, e Amazonas, que discrimina por biênios (6º e 7º anos e 8º e 9º anos). Os estados não adapta-dos ao ensino fundamental de 9 anos ou que fizeram a opção pelo trabalho com ciclos tive-ram seus dados reclassificados para efeito de comparação. Foram os casos do Espírito San-to, Rio Grande do Sul (onde o 6º, 7º, 8º e 9º anos correspondem à 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries) e do Mato Grosso (6º ano corresponde ao segundo ciclo e 7º, 8º e 9º anos correspondem ao terceiro ciclo). A proposta do Ceará (Fortaleza) apresenta os ‘conteúdos’ em bloco para o

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Margarida Oliveira e Itamar Freitas

intervalo do 6º ao 9º ano. Para viabilizar as estimativas, distribuímos equitativamente os conteúdos da proposta do Ceará pelos quatro anos finais e repetimos as expectativas de Alagoas (do final do 9º ano para os anos 6º, 7º e 8º) e do Amazonas (do biênio para os anos correspondentes).10 O sentido de aprendizagem histórica e de conteúdos históricos está diretamente relacio-nado ao sentido de história-conhecimento, sobre o qual também não há consenso. Além desse condicionante, os interesses de pais de alunos (relativos aos exames e certificações), professores do ensino fundamental e professores universitários lotados em programas de pós-graduação, entre outros, se repartem nas defesas de um ‘conteúdo histórico’ mais ou menos factual (informação), centrado em conceitos das ciências humanas e sociais, ou nas habilidades e valores relativos ao ofício do historiador (que, às vezes, coincidem com os valores democráticos e de cidadania). Uma simples divisão encontrável nos textos de Peter Lee sintetiza e esclarece o sentido de conteúdo para aqueles que querem se iniciar na pes-quisa. Ele afirma que a aprendizagem da história faz uso de dois tipos: os conhecimentos factuais (conceitos substantivos) e os conhecimentos da disciplina (conceitos de segunda ordem ou conceitos meta-históricos). Cf. LEE, Peter J. Putting principles into practice: understanding history. In: DONOVAN, M. Suzanne; BRANSFORD, John D. How stu-dents learn: history in the classroom. Washington: National Research Council of The Na-tional Academies, 2005. p.31-77. p.31.11 Os dados restantes (1%) correspondem aos objetivos sobre os quais não foi possível esta-belecer classificações (alguns, por má redação ou erros tipográficos).12 Embora não ofereça orientações específicas sobre o desenvolvimento dessa habilidade, a proposta de São Paulo é a mais fértil (considerada a possibilidade de os seus autores terem prescrito tais processos para todos os objetivos), representando dois terços do somatório dos objetivos de todos os estados que prescrevem habilidades linguísticas (ler e escrever).13 A leitura é entendida aqui, sobretudo, como busca de informações em textos escritos. Quando o objetivo determina que a busca seja feita em texto de documentos históricos e seus sinônimos (fontes, textos históricos etc.), classificamos a expectativa como meta-his-tórica e não, somente, como atividade de ampliação das habilidades linguísticas.14 A proposta da Paraíba nomeia esse tipo de objetivo como ‘atitudinal’ e ‘procedimental’.15 Na Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional podem ser ob-servados os objetivos gerais nos princípios éticos (responsabilidade, solidariedade, respeito ao bem comum), de cidadania (exercício da criticidade, respeito à ordem democrática) e estéticos (sensibilidade, criatividade, diversidade de manifestações artísticas e culturais). Nas orientações da Unesco, os objetivos aqui rotulados como específicos correspondem ao ‘saber’ e ao ‘saber fazer’, enquanto os gerais estão relacionados ao ‘saber ser, estar e com-portar-se’.16 Os demais, como já afirmamos, correspondem aos objetivos gerais (9%) e aos não iden-tificados (1%).

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

17 Afora esses casos, nenhuma proposta formula objetivos para todos os anos finais do en-sino fundamental.18 Suponhamos a Revolução Francesa como exemplo. Certamente, as propostas que a in-cluem esperarão que os alunos apreendam o nome e os interesses dos sujeitos envolvidos, as causas, etapas, limites, consequências e importância da Revolução Francesa para deter-minado grupo, povo ou sociedade – não necessariamente contemplando todos os indica-dores ou obedecendo a essa mesma ordem de exposição.19 Para Paul Ricoeur, o acontecimento em História corresponde ao que Aristóteles chama-va de mutação de sorte – metabolé – na sua teoria formal da armação da intriga. Um acon-tecimento é o que não somente contribui para o desenvolvimento da intriga, mas dá a esta a forma dramática de uma mudança de sorte (Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1994. v.1, p.320).20 Não foi possível chegar a uma classificação em 1% dos objetivos.21 Maneira pela qual as coisas se apresentam ou se desenvolvem (HOUAISS, Antonio. Di-cionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2.0. Rio de Janeiro: Instituto Antonio Houaiss; Objetiva, 2007. 1 CD-ROM).22 Os termos constituintes dessa e das próximas tabelas não esgotam o glossário das pro-postas. As palavras foram agrupadas e codificadas dentro do seu campo semântico para viabilizar a estatística, tanto dos conhecimentos (a exemplo de bases/estrutura/matrizes, causas/fatores/razões, expansão/crescimento/evolução/desenvolvimento, importância/in-fluência/significado/legado/contribuição/papel/valor) quanto das habilidades (representar por desenho/desenhar, destacar o papel.../reconhecer, debater/discutir, distinguir/diferen-ciar, elencar/listar, entre outras).23 Pode parecer irrelevante essa sutil diferença. Mas, se mensurarmos as propostas esta-duais de história ao longo do século XX, não será difícil concluir que migramos da expec-tativa direta para o exame do entorno e do interior, o que significa dizer, em termos peda-gógicos, que estamos, gradativamente, substituindo a pergunta “o que é?” – inspiradora da memorização e da resposta ao pé da letra – para as questões “como é?” e “por que é?” – su-gerindo, assim, a compreensão sobre o que se estuda. O mesmo se pode dizer em termos de teoria da história. Estamos mudando da história dita factual para a história problema.24 As pequenas variações de ordem de exposição, entre essa listagem e o descrito na Tabela 1, apenas confirmam a informação sobre a representatividade dessas habilidades, uma vez que os primeiros números (as porcentagens da tabela) são relativos ao total de objetivos, e os últimos (os algarismos entre parênteses) informam sobre a frequência das habilidades no total de propostas. Cruzando as duas informações, entretanto, é fácil concluir pela dis-tribuição equilibrada de tal grupo de expectativas nas propostas brasileiras.25 Os números relativos são extraídos da base de 1.118 objetivos que veiculam conteúdos substantivos. Os conhecimentos destituídos de porcentagem alcançaram menos de 1% desse total.

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Margarida Oliveira e Itamar Freitas

26 O conjunto ‘refletir, ler e escrever’, como já alertamos, apresenta-se em destaque, mas está concentrado na proposta de um estado, apenas: São Paulo.27 Como nos respectivos exemplos: “1. “Reconhecer no capitalismo financeiro os aspectos da concentração de capital pelas nações industrializadas e a expansão do capitalismo como a origem da internacionalização do capital e dos entraves do protecionismo” (PE, 9º ano); 2. “Relacionar a crise do socialismo e do capitalismo, nova expansão capitalista (globaliza-ção)” (PB, 9º ano).28 Conforme os exemplos: 1. “Discutir o sertão como expressão de uma cultura” (GO, 7º ano); 2. “Identificar e caracterizar as instituições nacionais e internacionais que lutam pela garantia dos direitos dos cidadãos” (TO, 9º ano).29 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997. v.3.30 Na tabela a seguir, observem, isolamos os objetivos que abordam a experiência do Novo Mundo, anterior à colonização europeia, sob a rubrica de período pré-colombiano. Não queremos criar um novo período. É, apenas, um procedimento operatório para separar um tipo de acontecimento paralelo à experiência europeia e asiática, mas que não se enquadra na periodização quadripartite ou nas classificações que tomam por base os estágios tecno-lógicos comumente usados nos estudos de pré-história. Tentamos tratar com os mesmos critérios os acontecimentos relativos à história da África, mas a proposta mostrou-se invi-ável, dada a generalidade (ausência de referências sobre tempo e espaço no continente) com que os objetos abordam tal experiência.31 Aqui entendido como os acontecimentos referentes ao período iniciado a partir da Re-volução Francesa.32 Números calculados sobre o total de expectativas datáveis, já que 32% (474) dos 1.380 objetivos são atemporais (sobretudo aqueles relacionados aos conteúdos meta-históri-cos) ou genéricos (sem referências cronológicas, a exemplo das expectativas que abor-dam valores).33 Se somarmos os objetivos que tratam de povos pré-colombianos (2%) aos da classe de pré-história, os acontecimentos relacionados ao período medieval aparentam representa-ção ainda mais reduzida.34 Do total de expectativas que explicitam habilidades (111 não as explicitam), 86% (1.094) são constituídas por um verbo, 12% (155) por dois e 1% (17) por três verbos. Há, também, dois casos com quatro verbos e apenas um com cinco. Neste trabalho, priorizamos o pri-meiro verbo de cada expectativa.35 Os conjuntos antiga/contemporânea, pré-colombiano/moderno, antiga/média, antiga/moderna, média/contemporânea foram empregados, mas nenhum deles alcançou a fre-quência de 1%.36 A proposta Francisco Campos destinava-se ao nível secundário e estruturava-se em cin-co anos. No entanto, o público do secundário, em termos de faixa etária, é o mesmo dos anos finais do ensino fundamental (em média, a partir dos 10 anos de idade – na verdade,

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Currículos de História e expectativas de aprendizagem

tratava-se de um curso pós-primário). Além disso, o secundário foi substituído pelo curso de primeiro grau (séries 5ª, 6ª, 7ª e 8ª), que, por sua vez, ganhou o nome de ensino funda-mental (anos finais). O elemento definidor da reforma Campos como termo de compara-ção, entretanto, está no seu caráter inaugural em termos de currículo: é a primeira propos-ta oficial, declaradamente integrada (Brasil/América/Mundo), como também o é a maioria das propostas contemporâneas.37 Esse fato talvez seja explicado pelo crescimento, na ausência de melhor termo, vegetativo dos acontecimentos contemporâneos e estabilização, também na ausência de melhor ter-mo, dos acontecimentos da idade moderna que incluem a experiência brasileira. 38 É provável que esse novo elemento, aliado ao crescimento vegetativo do contemporâneo, tenha causado essa drástica redução no espaço dos períodos antigo e medieval.39 Em relação aos períodos antigo e medieval, excetuando-se os estados que não os incluem (ES, MG, AL), apenas uma proposta (GO) não os distribui nos dois primeiros anos, apro-ximando-se, portanto, da disposição de 1931. O mesmo ocorre no que diz respeito às ex-pectativas que tratam dos períodos pré-histórico e pré-colombiano. A maioria aproxima--se do modelo Francisco Campos (BA, CE, GO, MS, MG, PB, PE, SP, SE, TO), distribuindo-os ao longo dos primeiros anos, enquanto apenas uma proposta (RJ) prescre-ve o período pré-histórico para o 6º e 9º anos. As demais (AC, AL, AM, ES, MT, PR) não reservam, explicitamente, expectativas para o recorte pré-histórico.40 Estes foram os critérios de classificação das durações: tempo breve – 0 a 10 anos; duração conjuntural – 10 a 50 anos; longa duração – mais que 50 e até 300 anos; longuíssima dura-ção – mais que 300 anos.41 As durações conjuntural e longa se equivalem na proposta do Acre. O currículo do Espí-rito Santo não permite o cálculo, já que as suas expectativas não prescrevem durações.42 Os que assim o fazem são, sobretudo, objetivos que exploram causas, consequências, significados, semelhanças e diferenças entre acontecimentos, como neste exemplo que po-de reunir, respectivamente, as durações breve e conjuntural: “Compreender a Primeira Guerra Mundial como resultado das tensões territoriais-nacionalistas que marcaram a Eu-ropa entre o final do XIX e o início do XX, aliada às disputas por reservas de mercado ca-racterísticas da segunda revolução industrial” (SE, 9º ano).43 “Identificar as origens das cidades goianas, seus nomes originais, sua arquitetura, festas e costumes” (GO, 7º ano).44 “Identificar e caracterizar a pré-história no Tocantins” (TO, 6º ano).45 Aqui entendido no sentido jurídico-político-administrativo mais recente, que divide o país em cinco territórios (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).46 O continente tomado isoladamente.47 A maioria das expectativas compostas (aproximadamente uma centena e meia) propõe o estabelecimento de relações do tipo “Brasil x Brasil” e “Europa x Europa”.48 “Identificar as consequências políticas do golpe militar (1964) em Goiás” (GO, 9º ano).

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1304

Margarida Oliveira e Itamar Freitas

49 “Relacionar o processo da abolição da escravidão nas áreas dos confederados com o pro-cesso de abolição no Brasil” (PE, 9º ano).50 “Compreender as lutas socialistas e de libertação nacional contra a exploração e o domí-nio imperialista, bem como seus impactos na América Latina” (PB, 9º ano).

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2012. Aprovado em 7 de maio de 2012

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E-storiaDilton C. S. Maynard*

Marcos Silva**

Prezad@s colegas,

A História hoje navega nos mares das novas tecnologias da informação. Apesar dos muitos críticos, é impossível negar a inserção destes novos recursos na produção do conhecimento histórico. Desse modo, considerando os obje-tivos da nossa publicação, concebida como mais um suporte ao professor, resolvemos encarar o desafio de oferecer a cada edição algumas sugestões sobre novas tecnologias aos navegantes. Nosso alvo são principalmente aqueles me-nos íntimos, aqueles que podem achar muito difícil se adaptar ao mundo em redes e mudanças contínuas.

A ideia aqui não é apresentar uma simples listagem de endereços eletrô-nicos, mas oferecer exemplos de ambientes que propiciem experiências peda-gógicas inovadoras e que, em sua maioria, aliam um traço lúdico às atividades pedagógicas. Todavia, teremos sempre o cuidado de indicar diferentes cami-nhos possíveis. Poderemos apenas apontar um programa, aplicativo ou coisa do tipo, tendo o cuidado de explicar o seu potencial em sala de aula. Apresen-taremos sítios resultantes de iniciativas isoladas, de professores ou memoria-listas, páginas sem apoio financeiro e recursos sofisticados, mas também sítios eletrônicos construídos com amparo de órgãos de fomento e resultantes do empenho de equipes de profissionais, nem sempre todos eles da História. O ponto em comum será a capacidade que cada uma das experiências seleciona-das terá de disponibilizar um olhar inovador no ensino de História.

Nesta edição, apresentamos exemplos de ‘viagens virtuais’, ‘museus digi-tais’ e ‘educação e entretenimento’, cada um com uma pequena introdução. Além disso, indicamos um ambiente como exemplo de ‘ferramenta para o

* Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

** Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 307-311 - 2012

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ensino’, onde o destaque não é o ambiente em si, mas as alternativas pedagó-gicas que ele disponibiliza.

1. Viagem virtual

Viagens virtuais podem ser uma das maneiras mais interessantes de le-vantar informações sobre países e regiões. Em função do compromisso de localizar o estudante no tempo e no espaço, esse recurso online pode utilizar a ampla gama de possibilidades da Internet. Assim, será possível ensinar sobre outros países e/ou regiões apresentando filmes (www.youtube.com/), imagens de satélite e mapas (Google Earth e Google Maps), além de fotos, guias de turismo online etc.

a) viagem virtual à Índia: sites.google.com/site/viagemvirtualaindiaNem sempre um professor necessita de maiores recursos para construir ou acessar um ambiente com viagens virtuais. Um exem-plo claro é essa viagem virtual à Índia. Com facilidade para nave-gar e opções bem simples, o professor ou o aluno podem ter in-formações sobre o país, bem como acessar vídeos e mapas que informam sobre aspectos distintos da região. O formato simples não prejudica a proposta e é, além de tudo, um convite a experi-mentações no ensino de História.

b) viagem virtual para são Paulo: www.sp360.com.br Um ambiente pode ser interessante mesmo que ele não tenha sido planejado originalmente como um sítio para o ensino de História. Com recursos sofisticados, a página SP 360 possibilita um passeio agradável e rico em informações. Merecem destaques as imagens em 360 graus, que permitem ao navegante dar um giro em torno de lugares que marcam a paisagem da capital paulista. Evidente-mente, recomendamos ao professor que, caso pretenda visitar o ambiente, formule antecipadamente um ‘roteiro de viagem’, de forma a indicar aos alunos o que deve ser observado.

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E-storia

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2. Museus virtuais

Com o amplo processo de digitalização de todas as atividades e esferas humanas, a moda atingiu uma das áreas mais tradicionais possíveis, o mundo dos museus. A partir do exemplo dos principais museus internacionais como o Louvre (França) e o Museu Nacional do Prado (Espanha), com suas galerias online, não se concebe mais um projeto museológico atual sem a sua dimensão no espaço cibernético. Assim, de modo geral, o professor poderá sugerir aos estudantes atividades das mais diversas perspectivas cobertas pelos acervos digitais.

Entre as experiências pedagógicas no ensino de História ligadas às novas tecnologias, os museus virtuais talvez sejam aquelas mais conhecidas. Justa-mente por isso, nem sempre é fácil selecionar os ambientes que podem ser utilizados para enriquecer as atividades da sala de aula. Assim, optamos por apresentar aqui dois tipos de experiências que, em pontos quase opostos, ofe-recem suporte de igual relevância ao docente e ao aluno.

a) Museu afro-Digital: www.museuafro.ufma.br

É um projeto sofisticado, que conta com recursos da Capes-Pro-cultura e foi desenvolvido pelo Ceao/UFBA, além do apoio da UFPE e da UFMA, esta através do seu Programa de Pós-Gradua-ção em Ciências Sociais. Apresenta uma clara perspectiva de de-mocratização do acesso ao conhecimento, aliando a facilidade para navegar no ambiente à riqueza de seu acervo e a perspectivas atenciosas ao abordar minorias étnicas e grupos historicamente marginalizados. O museu ocupa-se com a digitalização de docu-mentos, acervos e usos de novas tecnologias para valorizar as me-mórias das culturas afrodescendentes.

b) Museu virtual do rio-Grande: www.riograndeemfotos.fot.br/museuvirtual/

Trata-se de um ambiente criado sem recursos financeiros, sem apoio governamental, mas isso não compromete a qualidade do que foi selecionado para ser exposto. Disponibilizando diversos tipos de documentos, o sítio deve ser visitado com atenção, pois

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aborda a memória regional de modo bem simplificado. Porém, é exemplo de que mesmo sem grandes aportes financeiros e sem um apelo altamente sofisticado é possível criar um ambiente que esti-mule o interesse pela História Regional. O desafio do professor está em selecionar as possíveis opções nele existentes que liguem o conteúdo do sítio à História do Brasil, de forma a não enclausu-rar a narrativa no Rio Grande do Sul. A página possui facilidade para a navegação, permite cópias de seus conteúdos e download das reproduções dos documentos nela disponibilizados.

3. Educação e entretenimento

Apesar de o processo ensino-aprendizagem incorporar uma carga de com-promissos e exigir esforço, uma perspectiva que vem se consolidando nos últi-mos tempos é a possibilidade de desenvolver atividades de ensino aliadas àque-las que as pessoas comumente realizam com o objetivo principal de obter prazer – o entretenimento. Assim, está se configurando um campo de pesquisa e desenvolvimento chamado de edutainment, o popular ‘aprender brincando’.

a) caça Digital ao Personagem: silva.marcos.sites.uol.com.br/meh/cd.htm

O exemplo inicial oferecido é de uma atividade que foi desenvolvi-da para alunos do Curso de História com o objetivo de fazê-los explorar a milenar e cativante prática da proposição e solução de enigmas. Assim, baseado nos princípios da emulação pela disputa de enigmas e da aprendizagem mediada por computador, o profes-sor sugeriu para a turma o desafio “Caça Digital ao Personagem”

b) Detetives do Passado: www.historiaunirio.com.br/numem/dete-tivesdopassado/

Não se engane se esta página demorar a ser completamente visua-lizada. Vale a pena a visita! “Detetives do Passado” é um projeto inovador, desenvolvido pelo Núcleo de Documentação, História e Memória (Numem) da UniRio e o pelo Centro de Estudos dos Oitocentos (CEO) e financiado pela Faperj e pelo CNPq. A equipe

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E-storia

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concebeu um ambiente dinâmico, no qual é possível, como numa atividade detetivesca, tentar resolver ‘casos’. A interface da página, com armários e gavetas que se abrem e dão acesso a pastas com as ‘pistas’, certamente encanta alunos. Mas o mais importante é o cuidado da equipe em oferecer suporte ao professor para que o ambiente seja adequadamente explorado. A navegação pode ser dificultada em algumas seções, talvez por conta da necessidade de carregar imagens ou pelo tipo de conexão utilizada. Mas nada dis-so deve impedir a experiência de convidar os alunos a serem de-tetives e, desse modo, tornar a História ainda mais divertida.

4. Ferramentas para o ensino

Alguns recursos podem congregar não apenas um, mas diversos expe-dientes pedagógicos. São ambientes que possibilitam desde viagens virtuais até atividades que mesclam entretenimento e educação. Nesta edição, gostaríamos de indicar um deles:

artehistoria: www.artehistoria.jcyl.es

Ambiente em espanhol, a página Arte Historia oferece diferentes ferramentas para o ensino de História. O sítio não se limita a uma época específica, aborda assuntos que passam da Antiguidade Clássica a temas recentes. Reúne biografias, mapas, animações e conexão com o YouTube, entre outras opções. Os muitos recursos fazem do sítio uma alternativa interessante para se encontrar exemplos de experiências que podem ser levadas adiante de modo interdisciplinar.

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Detetives do passado no mundo do futuro: divulgação científica, ensino de História e internet

Detectives of the past in the world of the future: popularization of science, teaching History, and internet

Keila Grinberg* Anita Almeida**

ResumoO objetivo do texto é refletir sobre a di-vulgação científica, o ensino de História e as possibilidades que a internet oferece nesse campo. E, ao mesmo tempo, dis-cutir uma experiência específica, a ela-boração do site “Detetives do Passado”, produzido pelas autoras e dedicado ao ensino de história.Palavras-chave: divulgação científica; ensino de História; internet.

AbstractThe aim of this paper is to discuss the popularization of science, history tea-ching and the possibilities the Internet offers in this field. At the same time, we intend to discuss a specific experience: the website “Detetives do Passado” [De-tectives of the Past], dedicated to the te-aching of history and produced by the authors. Keywords: popularization of science; history teaching; internet.

Os historiadores e a internet

Já chamada de ‘o quadro negro do futuro’, antes do entretenimento onli-ne e do e-commerce, a internet, ao surgir, foi imediatamente atrelada a possi-bilidades de renovação de métodos de ensino,1 mesmo que hoje dê para ver que o mundo dos negócios avançou bem mais rápido no uso da rede do que o da educação. A ideia de aliar os avanços tecnológicos e da comunicação a novas formas de educar já seduzia professores e universidades desde pelo me-nos a década de 1960, com a criação das primeiras Universidades Abertas na Europa, dedicadas ao ensino a distância, mais ou menos na mesma época em

* Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Av. Pasteur, 458, Urca. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

** Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Av. Pasteur, 458, Urca. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. anita.correialima@gmail

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 315-326 - 2012

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que a linguagem da educação em massa começava a mudar, e a ênfase na pa-lavra ‘aprendizado’ ganhava espaço em relação à quase démodé ‘ensino’.2

Mas o espaço que as chamadas novas tecnologias ganharam no campo da reflexão mais geral sobre Educação não parece ter encontrado correspondente similar na área de História.3 Para além da utilização do computador como fer-ramenta para construção de bancos de dados, principalmente por especialistas em história econômica, quantitativa ou demográfica – procedimento feito des-de a década de 1960 –, até recentemente foram poucos os historiadores que se dedicaram a refletir sobre as mudanças que a rede mundial de computadores traria à pesquisa, à produção e à divulgação do conhecimento em História.4

Como bem notou Camila Dantas, os primeiros historiadores a chegarem à internet foram os amadores, seguidos por centros universitários e instituições de memória. Atualmente, projetos de divulgação científica em História na internet, a maioria localizada nos Estados Unidos, estão mesclados a reflexões mais amplas sobre os documentos produzidos em meio digital e as novas for-mas de realização de pesquisa acadêmica, como o projeto Digital History5, desenvolvido por Daniel J. Cohen e Roy Rosenzweig na George Mason Uni-versity, talvez o primeiro a, ao dirigir-se igualmente a historiadores profissio-nais e amadores que elaboram projetos na internet, defender uma nova iden-

tidade para o historiador, expressa no logotipo do grupo.6

Hoje, a maioria das atividades de historiadores na internet é relativa à digitalização de documentos e de acervos de instituições, tanto para preservá-los quanto para torná-los disponíveis a pesquisadores e interes-sados que dificilmente a eles teriam acesso. No Brasil, além de iniciativas governamentais (como o Projeto Res-gate,7 que, em esforço sem preceden-tes, digitalizou aproximadamente 150 mil documentos, com 1,5 milhão de páginas manuscritas, do acervo do Ar-quivo Histórico Ultramarino de Lis-

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boa), e da atuação de instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, fundamentais na discussão pública sobre a digitalização de acervos, são importantíssimas as iniciativas de grupos de pesquisa, que vêm elaboran-do projetos de digitalização e disponibilização online de documentos de outro modo praticamente inacessíveis ao pesquisador. Exemplar, nesse caso, é o tra-balho do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) do Departamen-to de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), que vem, median-te projetos coletivos ou individuais, se dedicando a digitalizar documentos, que incluem até mesmo acervos de outros países, como Cuba e Angola.8 Outro bom exemplo são projetos de realização colaborativa de bancos de dados di-gitais, como fazem pesquisadores do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult) da Unicamp e do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO).9

Esses avanços na disponibilização e tratamento de fontes históricas nos colocam diante de novas e complexas questões: por exemplo, a de como pre-servar os documentos já criados em formato digital.10 Esse e outros desafios certamente acompanharão o trabalho dos historiadores do futuro.

Mas, passadas várias décadas da invenção do ‘quadro negro do futuro’, e apesar de iniciativas muito importantes11 que ajudam a mostrar a riqueza das possibilidades nessa área, os usos didáticos da internet, em sentido mais global, ainda parecem bem modestos.

Os historiadores, o ensino de História e a divulgação científica

Uma questão que talvez esteja relacionada ao pouco uso da internet, de maneira mais específica, como ferramenta para a divulgação científica e o en-sino de História, é o fato de que o interesse pelo próprio ensino de História, como área de reflexão e de produção, ainda é restrito na universidade. Um fenômeno que se observa é que, embora o campo tenha crescido bastante nos últimos anos, ainda são relativamente poucos os historiadores que se dedicam a pensar a forma como a História é ensinada nas escolas. Evidência disso é o fato de serem praticamente inexistentes os programas de pós-graduação no Brasil a se dedicarem ao assunto. Dos 63 cursos existentes na área de História no início de 2012, nenhum tem sua área de concentração dedicada ao Ensino de História. Há apenas alguns programas, como é o caso da Universidade Es-

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tadual de Londrina (UEL) ou da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que têm linhas de pesquisa dedicadas à pesquisa no campo. Para se ter ideia do contraste com outras áreas, existem hoje 72 cursos de pós-graduação no Brasil dedicados exclusivamente ao ensino de ciências – física, química, biologia, ciências da terra – e matemática, entre mestrado profissional (39), mestrado acadêmico e doutorado. Aliás, o número desses cursos cresceu tanto que eles deixaram de entrar na rubrica “Outros”, na classificação das áreas de avaliação da Capes, para ter nomenclatura própria: “Ensino”.12 O mesmo é observado quando se analisa o número de professores universitários de História que se dedica à redação de livros didáticos e demais produtos dirigidos ao público escolar. Como exemplo, veja-se o caso do Programa Nacional do Livro Didá-tico (PNLD) do Ministério da Educação. Na análise dos livros a serem adota-dos em 2012, há vários professores universitários de História avaliando as coleções, mas poucos escrevendo.13 Além disso, um aspecto da questão que precisa ser mencionado é que a Capes, por decisão dos comitês de área – e é assim na área de História – não considera o livro didático como produção in-telectual qualificada dos pesquisadores, item de fundamental importância na avaliação dos programas de pós-graduação.14

Há alguns indícios, no entanto, de que esse estado de coisas pode estar mudando – e para melhor. Nesse ponto, as agências de fomento têm ocupado papel importante, tanto o CNPq, através do prêmio José Reis de divulgação científica e tecnológica, quanto a Faperj, por exemplo, por meio dos editais de Difusão e Popularização da Ciência e Tecnologia no Estado do Rio de Janeiro, existente pelo menos desde 2007, e de Apoio à Produção de Material Didático para Atividades de Ensino e/ou Pesquisa, existente desde 2009. E há o sucesso de iniciativas recentes, no campo da divulgação, como a Revista de História da Biblioteca Nacional,15 ou no campo da pesquisa, como as atividades do grupo de pesquisa Oficinas de História, composto por pesquisadores de várias insti-tuições de ensino e pesquisa do país, que desenvolve, entre outras atividades, o projeto Caixa de História.16

O passado, a História e as questões do futuro

Voltando aos historiadores e à internet, no momento parece que estamos diante de vários desafios. O primeiro é o já mencionado anteriormente, que

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mobiliza, além de historiadores, arquivistas e cientistas da informação: o de-safio da preservação da documentação, produzida em vários suportes, inclu-sive a própria internet.

Outro desafio é a reflexão sobre a forma como o público em geral tem dialogado com os sites que disponibilizam documentos históricos, como pro-cessos criminais, registros de batismo, fotografias, relatórios oficiais etc. Hoje é muito mais fácil, para estudantes e interessados em geral, obter informações retiradas das próprias fontes históricas, algo anteriormente feito apenas pelos historiadores que sabiam localizá-las no mundo real.

Nesse sentido, a maior facilidade em consultar documentos de épocas e locais variados significa uma maior divulgação do conhecimento histórico? Por conta da internet, estaríamos mais perto de uma História Pública, no sen-tido atribuído ao termo pelo National Council on Public History, qual seja, o de tornar a História, seus procedimentos metodológicos e suas referências mais acessíveis ao grande público?17

Acreditamos que não. Sendo um pouco pessimistas, talvez um dos efeitos de tanta facilidade de acesso, neste caso principalmente a textos, possa até ter sido o contrário: apesar de ainda não termos estatísticas a respeito, é flagrante o aumento de plágios em trabalhos acadêmicos, e não há professor universi-tário que não tenha uma história triste para contar sobre a ocasião em que se sentiu um policial, procurando crimes de autoria no Google.18

Talvez esteja aí a maior dificuldade, e ao mesmo tempo o maior desafio, que une tanto o ensino de História quanto a divulgação científica na internet. Ao invés de apenas combater o plágio – que naturalmente já existia bem antes de serem criados os mecanismos de busca –, trata-se de evidenciar, através da internet, o processo de produção do conhecimento, a começar pela própria noção de autoria, tão discutida no âmbito da criação artística.19 Afinal, a aces-sibilidade a textos e documentos proporcionada pela rede mundial de compu-tadores, para ser bem usada, requer conhecimentos prévios sobre confiabili-dade e relevância das informações a serem obtidas na internet. Sem elas, o leitor – ou o usuário do sistema – não consegue avançar na leitura e na produ-ção de texto (de qualquer texto, de uma tese a um comentário em um blog).

Como fazer isso? Um caminho possível é criar mecanismos que permitam ao usuário – leitor, estudante, qualquer que seja seu login – conhecer as etapas do processo de produção do conhecimento em História. Assim, saber ler do-

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cumentos de época, contextualizá-los, criticá-los, cotejar as informações obti-das com outros documentos e com outros textos e verificar a procedência de informações obtidas nesses textos são alguns dos procedimentos que ajudam as pessoas a observar, analisar e classificar informações de qualquer natureza. No caso das informações de natureza histórica, isso é fundamental, tanto para os estudantes de História, quanto para os interessados no assunto.

Refletir sobre o processo de produção do conhecimento histórico talvez não seja o objetivo inicial das pessoas interessadas em História – público po-tencial das ações de divulgação científica – que buscam a internet como forma de aprimorar seus conhecimentos. Mas talvez esta seja uma surpresa que os historiadores podem reservar a seus leitores: além de divulgar o conhecimen-to produzido nas universidades, divulgar também seu processo de produção. E a internet, para isso, é um meio extraordinário.

O site “Detetives do Passado”

O site “Detetives do Passado” foi pensado como um espaço de atividades de investigação e pesquisa escolar, voltado para alunos da Educação Básica, tanto dos últimos anos do ensino fundamental, como do ensino médio. Ainda em fase experimental, nasceu da tentativa de lidar com algumas questões que envolvem o uso da internet no ensino de História, através do desafio que é a elaboração de um material específico. E é preciso dizer que se é possível ima-ginarmos que as possibilidades nessa área são amplas, as dificuldades também não são pequenas. Por ser um campo ainda novo, os procedimentos e recursos didáticos criados no mundo virtual da internet ainda não foram ampla e glo-balmente testados, por alunos e professores, e tampouco existem práticas con-solidadas. Esse é um campo em que ainda estamos mais ou menos tateando no escuro. E foi assim, como um pequeno experimento, em área que se imagina tão vasta e ainda pouco explorada, que o site foi desenvolvido.

O Projeto foi financiado pela Faperj, mediante o Edital de “Difusão e Popularização da Ciência e Tecnologia no Estado do Rio de Janeiro”, de 2007, e obteve apoio da Faperj e do CNPq, através do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex) “Dimensões da cidadania no Oitocentos”, liderado pelo prof. dr. José Murilo de Carvalho (UFRJ). E está disponível na página do Núcleo de Documentação, História e Memória da UniRio (Numem).20

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Como ajudar os alunos a estudar história navegando na rede? Uma das grandes possibilidades que a internet trouxe foi justamente a da facilidade de obter informações, inclusive sobre temas históricos. Todo mundo sabe que basta digitar um evento, uma data, um personagem, sobre qualquer lugar do planeta, em qualquer site de busca, que em poucos segundos há na tela bem mais resultados do que alguém é capaz de acessar. A dificuldade de estudar história usando a internet está muito longe de estar relacionada à escassez de recursos, e mesmo considerando apenas os sites de instituições de pesquisa que hoje dão acesso a documentos digitalizados, ainda assim estamos falando de milhões de documentos. A dificuldade certamente não está na quantidade de material disponível, e quase poderíamos dizer que, ao contrário, o perigo é ser soterrado. Na internet, então, o mais importante é saber fazer escolhas e ter um roteiro de pesquisa.

Voltando à ideia da importância de o aluno, ao mesmo tempo em que tem acesso a determinado conhecimento histórico, ter também contato com o pro-cesso de produção desse conhecimento, o Projeto foi elaborado com a preo-cupação, por um lado, de divulgar pesquisas recentes na área de História e, por outro, mas não menos importante, de poder funcionar como uma ferramenta para ‘aprender a investigar’.

Assim foi desenvolvida a ideia de oficinas, cuja realização se dá através do contato com as fontes, a matéria-prima dos historiadores.21 A metodologia de trabalho a ser desenvolvida nas oficinas – tanto na sua elaboração quanto no momento de serem colocadas em prática por professores e alunos – segue como inspiração a perspectiva do método indiciário, tal como explicitada por Carlo Ginzburg em Mitos, emblemas e sinais.22 Com base no paralelo com o trabalho do detetive, o objetivo foi mostrar como o conhecimento histórico é, necessariamente, fruto de uma investigação. O objetivo último, no entanto, era que os alunos, ao realizarem as oficinas propostas, exercitassem a autonomia. E assim fossem animados a seguir navegando pelo enorme arsenal de infor-mações – inclusive históricas – que a internet fornece. Mas com seus próprios olhos.

Como um projeto piloto, foram criadas oito atividades, todas com o tema da escravidão no século XIX. A escolha do tema da escravidão esteve relacio-nada a dois contextos. Em primeiro lugar, esse é um tema em que as pesquisas históricas se desenvolveram notavelmente nos últimos anos. Além disso, o

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ensino de história da África e cultura afro-brasileira foi tornado obrigatório no Brasil desde a promulgação da Lei 10.639/2003, e regulamentado através das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico--raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”, de 2004. Era possível, então, que o material se inserisse no conjunto das várias iniciati-vas que têm sido realizadas no sentido de promover o ensino do tema.

Para a criação das oficinas, optamos por selecionar casos e documentos reais, conservados em arquivos públicos brasileiros e de outros países, de ma-neira que os alunos do ensino fundamental e médio pudessem ter a experiên-cia de lidar com documentação utilizada nas pesquisas históricas.

As oito oficinas foram organizadas cronologicamente. A primeira, “Re-beldia no Engenho Santana”, baseia-se em um acordo ou ‘tratado de paz’, o “Tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados”, enviado pelos escravos do engenho Santana a seu senhor, por volta de 1789. Esse e outros documentos relativos ao engenho baiano estão depositados na Torre do Tombo, em Portugal, e fo-ram utilizados pela primeira vez pelo historiador Stuart Schwartz, em seu livro Segredos internos.23 Já a última oficina, “Padeiros livres, padeiros escravos e cartas de alforria falsas”, gira em torno de um documento, conservado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e escrito no ano de 1934, mas que remete a acontecimentos que se passaram nos últimos anos da escravidão, quando escravos e livres trabalharam lado a lado. Os outros casos analisam o processo de uma escrava contra seu senhor, no Desterro (Florianópolis), em 1813, a história de um ‘preto forro’ que em 1819, no Rio de Janeiro, pede au-torização para exercer a profissão de sangrador, e a vida em uma grande fa-zenda no Vale do Paraíba fluminense, observada a partir de um quadro pinta-do em 1844. Temos ainda a história da luta de um grupo de africanos libertos para conseguir a ajuda dos ingleses no intuito de voltar para a África e fundar uma cidade em Cabinda, em 1851, além de uma oficina sobre o trabalho dos escravos carregadores de piano, na década de 1860, no Rio de Janeiro, em que se contou com a ajuda de um romance de Machado de Assis. E, finalmente, o tema da abolição, investigado com base na poesia de Castro Alves.

Além dos documentos-chave usados na montagem de cada oficina, elas foram preenchidas com uma série de outras fontes, mapas, aquarelas, relatos de viajantes, trechos de romances, algumas tabelas com dados consolidados e

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citações de trechos de obras historiográficas, de maneira que todo esse material pudesse ser analisado, comparado e inter-relacionado, de diversas formas, du-rante a realização da atividade.

Todas as oficinas foram construídas sobre um esquema básico: o caso, a tarefa, o passo a passo e a solução. A partir do contato inicial com o ‘caso’, o aluno precisa consultar algumas ‘pistas’ (fontes de pesquisa), que são acessadas ao longo do passo a passo, e que ajudam na realização da tarefa proposta. Ele conhece a ‘solução’ – ligada ao documento central, com base no qual aquela oficina foi montada – apenas no final. A ideia era que, invertendo a lógica mais comum nos livros didáticos, o aluno não usasse as fontes apenas como ilustra-ção, ou que não fosse incentivado a analisar as fontes somente depois de já ter lido sobre aquele assunto, como um complemento do aprendizado, mas, ao contrário, que as fontes fossem indispensáveis para a elaboração da atividade. Não há, portanto, textos básicos ou explicativos sobre o tema, nas oficinas.

Para a solução dos casos, os alunos são convidados a participar, ora como pessoa próxima, ora como o próprio protagonista da história, escravo, descen-dente ou liberto. Escolhemos abordar histórias que colocassem em evidência a diversidade da experiência de escravos, libertos e seus descendentes no sécu-lo XIX, ainda que todas essas experiências estivessem ligadas, de uma maneira ou de outra, pela marca do cativeiro. Além disso, pretendemos criar situações em que os estudantes pudessem viver a experiência de ficar no lugar de pessoas reais, que viveram situações reais, e que, em alguma medida, e apesar da escra-vidão, puderam ser sujeitos da sua própria história.

E por falar em protagonistas, o nosso objetivo era que o aluno pudesse ter a experiência de ser o protagonista em relação, também, ao seu processo de aprendizagem, aprendendo a olhar, julgar, medir e comparar, a criar hipóteses de investigação, a sustentar uma argumentação e, afinal, a criar sua própria maneira de ver as coisas. E que assim pudesse ficar um pouco mais preparado para navegar, e pegar bons peixes, no mar que é a internet. Esse foi o nosso desejo, a nossa aposta.

NOTAS

1 A expressão é do Secretário de Educação de Bill Clinton, dita em 1996, por ocasião da implantação da ligação, por telefone fixo, das salas de aula da Califórnia com a internet.

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Citada em BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à in-ternet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p.303. 2 A Universidade Aberta da Grã-Bretanha (Open University) formou sua primeira turma em 1971. A expressão ‘sociedade de aprendizagem’, depois de ter sido utilizada pelo segun-do reitor da nova universidade das Nações Unidas, foi usada no título de estudo produzido pela Comunidade Europeia em 1995. BRIGGS; BURKE, 2006, p.307-308.3 Ver, a respeito, GALLO, Silvio; RIVERO, Cléa Maria (Org.) A formação de professores na sociedade do conhecimento. Bauru (SP): Edusc, 2004. Ver também o interessante, em-bora um tanto ingênuo, vídeo sobre o impacto das novas tecnologias na educação, postado por Bruno Leal na rede social Café Historia. Disponível em: cafehistoria.ning.com/video/o-impacto-das-novas; Acesso em: 5 mar. 2012. Outra forma de acessar o vídeo é pelo YouTube: www.youtube.com/watch?v=Uppyy6eRcBQ&feature=player_embedded; Acesso em: 5 mar. 2012.4 Ver, a respeito, FIGUEIREDO, Luciano. História e informática: o uso do computador. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.) Domínios da História. Rio de Ja-neiro: Campus, 1997. Para uma história da relação entre os historiadores e a internet, ver a excelente dissertação de mestrado de DANTAS, Camila Guimarães. O passado em bits: memórias e histórias na internet. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Memória Social, UniRio. Rio de Janeiro, 2008.5 DANTAS, 2008, p.50. Ver o projeto Digital History em: chnm.gmu.edu/digitalhis-tory/; Acesso em: 5 mar. 2012.6 A imagem também foi citada em DANTAS, 2008, p.49.7 O Banco de Dados do Projeto Resgate pode ser acessado no Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília, em www.cmd.unb.br/resgate_index.php.8 As atividades do LABHOI podem ser acessadas em www.historia.uff.br/labhoi/. Ver, por exemplo, os projetos de digitalização desenvolvidos por Mariza de Carvalho Soares, como “A escravidão africana nos arquivos eclesiásticos”. Disponível em: www.historia.uff.br/curias/modules/tinyd0/; Acesso em: 5 mar. 2012.9 Para acessar os projetos desenvolvidos por esses grupos de pesquisa ver, respectivamente, www.unicamp.br/cecult/ e www.ceo.historia.uff.br/.10 Ver, por exemplo, os projetos desenvolvidos pelo Arquivo Nacional (www.arquivona-cional.gov.br) e pela Biblioteca Nacional (www.bn.br). A questão da relação entre a His-tória e a preservação de documentos criados em suporte digital vem sendo desenvolvida por Camila Guimarães Dantas em seu projeto de doutorado, no Programa de Pós-Gradu-ação em Memória Social da UniRio.11 O Arquivo Nacional possui um grande Projeto – “O Arquivo Nacional e a História Luso--Brasileira” – elaborado com base na documentação da instituição, referente aos séculos XVI ao XIX, e voltado, ao mesmo tempo, para a difusão do acervo e para a sala de aula. Disponível em: www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.

Keila Grinberg e Anita Almeida

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htm?sid=134; Acesso em: 5 mar. 2012. Ver também, para um exemplo na universidade, o Projeto “Pesquisa e Produção de Material Didático para o Ensino de História do Brasil Colonial e República”, coordenado pelos professores Luiz Carlos Villalta e Priscila Bran-dão Antunes, da UFMG. Disponível em: www.fafich.ufmg.br/pae/; Acesso em: 5 mar. 2012. A ideia aqui não é, nem o espaço permite, a de um inventário dos diversos projetos em andamento nas universidades e em outras instituições de pesquisa. Mas um inventário desse tipo seria importante. Como exemplo de portal dedicado ao Ensino de História em outros países, ver teachinghistory.org/, da George Mason University, Estados Unidos; Acesso em: 5 mar. 2012.12 Os dados podem ser verificados no site da Capes: www.capes.gov.br. Para os dados sobre a área de História, ver diretamente: conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=pesquisarIes&codigoArea=70500002&descricaoArea=CI%CANCIAS+HUMANAS+&descricaoAreaConhecimento=HIST%D3RIA&descricaoAreaAvaliacao=HIST%D3RIA; Acesso em: 5 mar. 2012 (o site foi atualizado em 2 mar. 2012). Para os dados sobre a área de Ensino, ver: conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=pesquisarIes&codigoArea=90200000&descricaoArea=MULTIDISCIPLINAR+&descricaoAreaConhecimento=ENSINO&descricaoAreaAvaliacao=ENSINO; Acesso em: 5 mar. 2012.13 Ver, para o ensino fundamental, o Guia de livros didáticos: PNLD 2011: História (2010). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Para o ensino médio, o Guia de livros didáticos: PNLD 2012: História (2011). Os volu-mes podem ser acessados em: www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-livro-didati-co; acesso em: 5 mar. 2012.14 O Conselho Técnico-Científico da Educação Superior da Capes aprovou em 24 de agosto de 2009 o Roteiro para Classificação de Livros, que serviu de orientação para a classificação de livros com base na avaliação trienal de 2010. Disponível em: www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/Roteiro_livros_Trienio2007_2009.pdf; Acesso em: 5 mar. 2012). Por decisão da área de História, os livros didáticos elaborados por pesquisadores devem ser considerados como ‘inserção social’, item de menor importância na avaliação dos programas de pós-graduação. Os critérios adotados pela área de História estão no Relatório de Avaliação 2007-2009 – trienal 2010. Disponível em: trienal.capes.gov.br/wp-content/uploads/2010/12/HIST%C3%93RIA-RELAT%C3%93RIO-DE-AVALIA%C3%87%C3%83O-FINAL-dez10.pdf; Acesso em: 5 mar. 2012.15 A Revista tem uma seção – “Sala de aula” – voltada especificamente para o ensino de História. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/sala-de-aula; Acesso em: 5 mar. 2012.16 Sobre o grupo Oficinas de História, suas atividades e sua produção acadêmica, ver: www.oficinasdehistoria.com.br/; Acesso em: 5 mar. 2012. O projeto Caixa de História pode ser conhecido em projetocaixadehistoria.blogspot.com/; Acesso em: 5 mar. 2012.17 National Council on Public History. Disponível em: ncph.org/cms/; Acesso em: 5 mar. 2012.

Detetives do passado no mundo do futuro

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 1326

18 Ver, a respeito, o artigo de Brent Staples, “Cutting and Pasting: a senior thesis”, publica-do no New York Times em 12 jul. 2010. Disponível em: www.nytimes.com/2010/07/13/opinion/13tue4.html?_r=1&src=me&ref=opinion; Acesso em: 8 set. 2010.19 Neste sentido, são conhecidas as proposições de Gilberto Gil para a flexibilização da le-gislação do direito autoral. Ver o artigo de Gil, “Por uma reforma da lei do direito autoral”, publicado em O Globo em 11 nov. 2007. Disponível em: www.creativecommons.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=90&Itemid=1; Acesso em: 5 mar. 2012. Alguns professores vêm encontrando alternativas interessantes para lidar com o plágio realizado pelos alunos na internet, principalmente da Wikipedia: ver, por exemplo, o pro-jeto de atualização de verbetes da Wikipedia desenvolvido por Juliana Bastos Marques, do Departamento de História da UniRio. Mais informações sobre o projeto podem ser encon-tradas em: wikipedianauniversidade.blogspot.com/; Acesso em: 5 mar. 2012.20 A página do Numem é historiaunirio.com.br/numem/index.php, e o endereço do Projeto é www.historiaunirio.com.br/numem/detetivesdopassado/. Como o acesso à inter-net ainda é difícil em muitas regiões e escolas, foi feita uma edição em CD-ROM, com o mesmo conteúdo do site, para ser distribuída às escolas.21 As oficinas tiveram como inspiração as webquests, atividades de ensino baseadas na web, principalmente o site canadense Mystery Quests: www.mysteryquests.ca/indexen.html; Acesso em: 5 mar. 2012.22 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: _______. Mitos, emble-mas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.143-179.23 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1985. As referências completas dos documentos utilizados nas oficinas podem ser encontradas no próprio site.

Artigo recebido em 10 de janeiro de 2012. Aprovado em 22 de março de 2012.

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Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades, da gênese da historiografia

ao lugar da História Ensinada nos dias de hojeHistoriografia e Nação no Brasil – a classic and its possibilities,

from the beginnings of historiography until today

Mauro Cezar Coelho*

Guimarães, Manoel Luiz SalgadoHistoriografia e Nação no Brasil (1838-1857)Trad. Paulo Knauss e Ina de MendonçaRio de Janeiro: Ed. Uerj, 2011. 284p.

O livro de Manoel Luiz Salgado Guimarães, Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857),1 me fez reviver, pelo que recordo, a primeira vez em que a História me chamou atenção: uma visita ao Museu Histórico Nacional, no começo da década de 1970. Lembro ter notado a convergência entre o que aprendia nos livros didáticos, nas revistas ilustradas, nas festas cívicas e na narrativa das professoras e o que via no Museu: uma história de grandes ho-mens que superavam as limitações de seu tempo e o moldavam à sua vontade. O livro de Manoel Guimarães esclarece as origens da cultura histórica que engendrou a constatação feita por mim, naquela visita.

Ao desvendar as raízes da historiografia brasileira, Manoel Guimarães aponta os signos que a demarcaram desde o início. Essa, desde onde percebo, é uma contribuição importante e oportuna, no momento em que a formação do historiador passa por uma inflexão decisiva e o seu mais significante campo de atuação vive uma crise surda. A distinção dos cursos de bacharelado e li-cenciatura e os questionamentos sobre a importância da área de História na Educação Básica reeditam questões análogas àquelas presentes na origem da disciplina no Brasil.

* Faculdade de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Pará (UFPA). Av. Augusto Correa, 1, Guamá. 66075.110 Belém – PA – Brasil. [email protected]

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 329-333 - 2012

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Mauro Cezar Coelho

Revista História Hoje, vol. 1, nº 1330

O livro abarca os primeiros vinte anos de atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Nesse período, Manoel Guimarães identifica o “processo de promoção da nação brasileira”, quando os estudos históricos bus-caram atender aos objetivos de consolidação do Império e de formação da nação. Daí terem assumido importância política, a qual condicionou os seus primeiros passos e lhes delegou algumas de suas características mais duradouras.

A análise encaminha as conexões havidas entre os objetivos políticos e ideológicos do Império e a escrita produzida pelo IHGB. Identifico, nela, três movimentos. Primeiramente, as questões que importavam ao recém-constitu-ído Império do Brasil: o contexto geopolítico no qual o país estava inserido; as relações entre as diversas regiões do Império; o perfil populacional, com imen-sas parcelas da população consideradas impróprias, diante do modelo de nação almejado. Em seguida, o perfil dos intelectuais ligados ao instituto. Em que pesem as diferenças de origem social, tinham em comum a formação – a Uni-versidade de Coimbra – e a carreira – marcadamente dependente das oportu-nidades abertas pelo serviço público. Finalmente, a produção do IHGB. A questão indígena, o reconhecimento do território e os fatos históricos regionais ocuparam grande parte da produção da revista trimestral do instituto.

Os três movimentos sustentam um exame minucioso da cultura histórica que deu origem à historiografia brasileira. A análise que deles resulta desven-da os vínculos que ligavam o IHGB ao Estado imperial, tanto do ponto de vista programático (dos objetivos do instituto) quanto do ponto de vista ope-racional (a sua manutenção). Ela estabelece a identificação do instituto brasi-leiro com o modelo francês no qual se pautava. Ela esquadrinha a produção de seu sócio mais importante, Francisco Adolfo de Varnhagen, percebido como o formulador “da base da nacionalidade brasileira” a partir da perspectiva da elite imperial.

Trata-se de uma história da historiografia brasileira, demarcada pela in-dicação do significado assumido por ela, em meados do século XIX: para os sócios do instituto, a História constituía uma instância política – tanto de seu aprendizado, quando do seu exercício. Nesse sentido é que Manoel Guimarães encaminha a visão de história compartilhada pelos homens do instituto: uma história que se pretendia um manancial de exemplos e lições para os governos e comprometida com o progresso, desde certa perspectiva. Tal visão sustentou o caráter civilizador da escrita de uma História do Brasil, pelo IHGB, concre-

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Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades

tizado, sobretudo, pela consolidação de uma narrativa histórica que integrava os diversos elementos da população em acordo com uma ordenação que de-signasse o lugar de cada um, segundo uma hierarquia bem definida.

Da consideração da obra de Varnhagen, para quem a herança europeia deveria constituir a matriz da nacionalidade, emerge o argumento central do livro. A escrita da história do IHGB, demarcada pelos compromissos políticos com o Império, elegeu o Estado como principal agente, como “o motor da vida social”, instituindo um ideal de nacionalidade profundamente dependen-te dos interesses da classe dirigente e por ela demarcado. Da mesma forma, ela pretendeu “gerar sentimentos condicionadores de uma comunidade como passo relevante para o surgimento da nação brasileira” (p.229-258). A história formulada a partir desses princípios acentuava a participação dos colonos brancos no passado e encaminhava a sua liderança no presente e no futuro. Ela orientava uma visão do passado que delegava para as margens imensas parcelas da população brasileira.

A reflexão presente em Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857), des-de a publicação de seu resumo, deu azo a diversos estudos sobre a trajetória da disciplina, conforme apontam Paulo Knauss e Temístocles Cézar.2 Essa, po-rém, não é sua única contribuição. Ela nos convida a refletir, também, sobre o quanto aquelas raízes permanecem latentes na cultura histórica, especialmen-te aquela difundida pelo saber histórico escolar. Esse, me parece, é um desafio importante que deriva da obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães.

A remissão inicial à visita ao Museu Histórico Nacional e a relação que estabeleci, quando criança, entre o seu acervo e a narrativa que a disciplina História me apresentava não é fortuita. Ela ilustra a permanência daquele sig-no inicial que demarcou a historiografia brasileira e, sobretudo, a memória histórica. Manoel Guimarães deixa claro que a historiografia brasileira nasceu livre dos vínculos acadêmicos e em estreita relação com os imperativos políti-cos. Essa condição inicial foi decisiva para a produção subsequente, mesmo após a emergência de uma historiografia abalizada pelos ditames acadêmicos, determinando os rumos e usos da História entre nós. É certo que, desde a década de 1930, a historiografia problematiza tal herança, mas é igualmente certo que se a historiografia deixou de cumprir aquela função inicial e traçou outros rumos para si, o Ensino de História ainda se vê às voltas com ela.

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Mauro Cezar Coelho

Revista História Hoje, vol. 1, nº 1332

Ainda na década de 1970 e na seguinte, os historiadores que refletiam sobre o Ensino de História assumiram um novo compromisso: formar o cida-dão – um objetivo relacionado aos ideais democráticos que lutavam para afir-mar-se ao longo e ao final da Ditadura Militar. Desde então, ‘formar o cidadão crítico’ tem se constituído no apanágio do Ensino de História. A partir do que pontua a reflexão de Manoel Guimarães, poder-se-ia argumentar que a matriz inicial não foi superada, mas substituída.3 Não obstante, ela provoca a reflexão sobre o estatuto recentemente proposto e, principalmente, sobre a função e a importância do Ensino de História na Educação Básica, sua relação com a his-toriografia e seu lugar na constituição da memória histórica do Brasil de hoje.

Por mais de século e meio, os professores de História foram vistos (e se viram, também) como os responsáveis por transmitir a narrativa que inseria crianças e adolescentes no universo do qual faziam parte. Mesmo diante das críticas formuladas nas décadas de 1970 e 1980, essa responsabilidade perma-neceu inalterada. Grande parte das aulas de história configura narrativas sobre o passado brasileiro e ocidental, ainda de uma perspectiva eurocêntrica – re-sultado, também, da matriz dos cursos de formação de professores. Dois fato-res provocam a alteração desse quadro, desde fora, e colocam em questão a função da disciplina História em sala de aula: em primeiro lugar, a emergência de outros espaços a partir dos quais a memória histórica se constitui; em se-gundo lugar, a inclusão de novos agentes na narrativa sobre a formação do Brasil (refiro-me à inclusão da História da África, da Cultura Afro-brasileira e da História Indígena, na Educação Básica).

O livro de Manoel Luiz Salgado Guimarães sinaliza os caminhos a serem percorridos pelas reflexões que pretendam elucidar a trajetória da disciplina. Ele permite, portanto, entrever as questões que devem ser discutidas no que se refere à dimensão que incorpora e exige a atuação de um número imenso de historiadores: a Educação Básica. Desde onde falo, percebo três linhas de in-vestigação necessariamente interligadas: a reflexão sobre a trajetória dos cursos de formação de professores em História – uma História da Formação; a refle-xão sobre a prática docente em História – uma História do Ensino de História; e a reflexão sobre o estatuto do ensino de história na Educação Básica – uma História da Cultura Histórica Escolar.

Historiografia e Nação no Brasil (1838-1857) nasceu clássico. Ele não so-mente demarca uma periodização para a História da Historiografia, indicando

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Historiografia e Nação no Brasil – um clássico e suas possibilidades

o significado assumido por ela em dado momento, como inicia um campo de estudos. Isso já seria suficiente para torná-lo obra obrigatória. Mas, além de soberbamente escrito (o que acrescenta prazer à leitura), seu brilhantismo de-corre das questões que suscita não apenas sobre o passado da disciplina, mas sobre seu presente e seu futuro. Ao desvendar as origens da historiografia brasileira, ele nos convida a pensar os percursos traçados por ela e seus desdo-bramentos. Neste momento, segundo me parece, esse convite deve ser aceito, de modo a refletir sobre seus rumos. Há que se discutir qual o lugar da Histó-ria ensinada, qual a formação engendrada por ela, que compromissos lhe são pertinentes. Nosso agradecimento ao saudoso historiador pelo ensinamento e pela provocação. Boa leitura a todos!

NOTAS

1 Originalmente uma tese de doutoramento defendida em 1987 na Universidade Livre de Berlim, sob a orientação do professor Hagen Schulze. Desde 1988, um resumo da tese orienta um sem-número de reflexões sobre o período: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, n.1, p.5-27, 1988.2 Ambos assinam o belíssimo ensaio que apresenta a obra: KNAUSS, Paulo; CEZAR, Temístocles. O historiador viajante: itinerário do Rio de Janeiro a Jerusalém (Prefácio). In: Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2011. p.7-21. Acrescento ao rol elaborado por eles as seguintes obras: D’INCAO, M. A. História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr. São Paulo: Brasiliense; Ed. Unesp, 1989; SAMARA, Eni de Mesquita; SOIHET, Rachel; MATOS, Maria Izilda S. de. Gênero em debate: trajetórias e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: Educ, 1997; FREITAS, Marcos Cézar de (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001; SILVA, Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história das histórias da historiografia. Bauru: Edusc, 2001; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; GONÇALVES, Márcia de Almeida; GONTIJO, Rebeca. Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011.3 Sobre isso ver COELHO, Mauro Cezar. A história, o índio e o livro didático: apontamen-tos para uma reflexão sobre o saber histórico escolar. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Org.) A história na escola: auto-res, livros e leituras. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p.263-280.

Resenha recebida em 10 de janeiro de 2012. Aprovada em 10 de março de 2012.

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Oficina da história no ciberespaçoHistory workshop in cyberspace

Anita Lucchesi*

Maynard, Dilton Cândido SantosEscritos sobre história e internetRio de Janeiro: Fapitec; Multifoco, 2011. 152p.

Uma das mais belas apresentações de livros que já li começava assim: “Apresentar um livro é fazê-lo presente”. Ora, mas não é óbvio? Contudo, continua argutamente o autor: “Mas, qual poderia ser seu presente? O da es-critura, que já não é, ou o da leitura, que ainda não é?”. Repito as palavras e questionamentos de Jorge Larrosa1 pensando na velocidade com que se trans-formam as paisagens da seara em que Dilton Maynard decidiu se enveredar ao eleger como tema central de seu livro as relações entre história e internet.

Sendo assim, a obra Escritos sobre história e internet chama a atenção por um particular interesse pelo tema dos ambientes telemáticos e provoca, em virtude disso, certo conforto antecipado em, ao menos, podermos esperar que sua leitura abrace as discussões sobre o elemento digital e suas implicações para o nosso métier, historicamente analógico e papirofílico. Assim, recomen-do o livro desejando que as presenças que dele fizerem, consoantes ou disso-nantes à minha, venham incrementar o debate acerca deste Novo Mundo pa-ra onde as agitadas águas do ciberespaço nos levam. Por enquanto navegamos à deriva.

O breve mas consistente volume de Maynard se apresenta nos moldes de um pequeno códex, composto por quatro artigos que foram escritos em mo-mentos distintos e posteriormente linkados uns aos outros sob a tag dos pro-blemas que a internet traz para o dia a dia da Oficina da História. Decerto o livro não pretende esgotar o assunto, mas sim, apresentar reflexões e propor

Revista História. Hoje, v. 1, nº 1, p. 335-340 - 2012

* Mestranda, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco de Paula nº 1, sala 311, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

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Anita Lucchesi

Revista História Hoje, vol. 1, nº 1336

questionamentos de caráter introdutório que possam, em um horizonte augu-rável, ser desdobrados mais à frente por outros pesquisadores. Mesmo porque a publicação é uma cápsula de perguntas, um convite a novas investigações sobre a internet e através dela. Aliás, a grande pergunta do livro talvez seja justamente aquela não dita, mas todo o tempo presente no background dessa leitura: “Afinal, por que não trabalhar com internet?”.

Para evidenciar como a internet pode ser um objeto-problema e também uma ferramenta-problema para os historiadores do nosso século, Maynard primeiro nos apresenta o que é essa tal Rede Mundial de Computadores, para depois trazer alguns casos de estudos resultantes de sua experiência com a internet nos últimos anos e pesquisas que vem realizando nessa área.

No capítulo de abertura, o autor esboça uma breve história da internet. Descreve a trajetória dessa inovadora tecnologia, pontuando, sobretudo, quais foram as circunstâncias históricas que favoreceram seu surgimento. Apresen-ta a emergência da internet como um produto do seu tempo, de demandas sociais específicas e condições propícias para o desenvolvimento de seu caráter aberto, descentralizado e colaborativo. Características que se acentuaram prin-cipalmente a partir da década de 1990, depois que a rede se libertou dos gri-lhões de sua missão como tecnologia militar do Departamento de Defesa norte-americano e começou a ser viabilizada também para fins comerciais.

Segundo Maynard, professor de História Contemporânea da Universida-de Federal de Sergipe (UFS) e orientador de diversos trabalhos sobre cibercul-tura, intolerância e extrema-direita na internet, teriam sido o cenário bipola-rizado da Guerra Fria e, concomitantemente, o ambiente descentralizado dos protestos pacifistas e contraculturais das décadas de 1960 e 1970 a proporcio-narem as condições ideais para o surgimento e desenvolvimento da ‘rede das redes’. Para o autor, “a verdadeira questão não é ser contra ou a favor da in-ternet. O importante é compreender as suas mudanças qualitativas” (p.42).

É nessa esteira que o autor segue apresentando outros três principais filões por onde tem espreitado as implicações da internet nas dinâmicas sociais do Tempo Presente e, consequentemente, os desafios que tal panorama vem apre-sentando para a história. Na realidade, os capítulos centrais do livro dialogam todo tempo entre si. Isto porque ambos vão tratar em maior ou menor escala das apropriações que grupos de extrema-direita têm feito da internet. Suas preocupações referem-se ao modo como, cada vez mais, a internet se apresen-

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Oficina da história no ciberespaço

Junho de 2012

ta como “uma espécie de novo oráculo, como um espaço autônomo do conhe-cimento” (p.43). Do deslumbramento com essa realidade, e do fato de a inter-net ser uma espécie de zona neutra, território sem lei, ele alerta que decorrem graves perigos. Um deles, senão o principal, é o tema da engajada exposição do autor no Capítulo 2: a facilidade de produção de suportes pedagógicos na rede mundial de computadores e sua apropriação por grupos ou indivíduos de extrema-direita.

Para lidar com história em meio à superinformação característica da world wide web, em plena ‘Era Google’, tomando emprestada a expressão de Carlo Ginzburg,2 toda cautela é pouca, pois, como nos diz o historiador italiano, “No presente eletrônico o passado se dissolve”. Como assim? O ‘dissolver-se’ de Ginzburg pode ser lido em muitas direções, uma das quais é a que diz respeito aos dilemas da memória e do esquecimento na rede, como e o que preservar dos arquivos digitais neste século XXI. Entretanto, a preocupação do nosso autor é mais específica. A ‘dissolução’ do passado, para Maynard, está nas possíveis manipulações da história que podem ser feitas na internet. Uma das evidências desse problema, para ele, são os espaços virtuais destinados a servir de suportes pedagógicos para projetos de doutrinação, alguns deles compro-metidos, por exemplo, com retóricas revisionistas. Tais iniciativas pretendem fazer reconstruções historiográficas, tentam estabelecer falsificações e forjar narrativas que classifiquem, por exemplo, as memórias sobre o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial como meras conspirações. Ele chama a atenção:

Em inversões interpretativas, os algozes são vítimas, qualquer tipo de documen-tação que evidencie tortura, prisão, assassinatos e a racionalização das mortes em campos de concentração e câmaras de gás é descartada como ‘falsificação’ ... Em meio a apropriações simbólicas e batalhas da memória, estes portais são exem-plos de ferramentas eletrônicas dedicadas a promover uma leitura intolerante da história sob pretensa pátina de luta por liberdade de expressão. (p.45)

Dentre as tentativas de reescrita da história, um dos casos destacados pelo autor é o do portal Metapedia,3 autodenominado ‘enciclopédia alternati-va’, que traz, entre outros, verbetes sobre líderes e representantes da extrema--direita, em que estes são apresentados sem nenhuma menção aos seus xeno-fobismo ou racismo. Mesmo o führer nazista, Adolf Hitler, é descrito com benevolentes esquecimentos. Fica para a nossa reflexão a importância de um

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inventário, como esse que empreende Maynard, de ódios e revisionismos sol-tos pela rede. Se não nos ocuparmos deles, a quem os delegaremos? Às inteli-gências estatais ou às polícias? Mas, e pela história, quem fará vigília?

Cabe lembrar que essa batalha das memórias e dos lugares de memórias é atualíssima e extrapola as fronteiras do ciberespaço. É importante ressaltar, portanto, que apesar dos limites dessa obra, o esforço que nela se faz para advogar em favor da sistemática investigação histórica do e no ciberespaço, embora se baseie majoritariamente em exemplos e documentações disponíveis na própria rede, guarda estreita relação com a realidade ‘não virtual’.

A intolerância promovida na rede por grupos extremistas como os ski-nheads, os carecas paulistas e outros, desgraçadamente faz vítimas reais para além dos frios números de audiência que podemos verificar em web-estatísti-cas. O alcance das páginas de ódio, como o www.radioislam.org, o www.ildu-ce.net e o www.valhalla88.com,4 ou ainda o www.libreopinion.com (infeliz-mente os exemplos são vastos e de várias nacionalidades), é grande. E como lembra o título do terceiro capítulo, esses sites não trabalham isolados, em muitos casos se montam verdadeiras ‘Redes de Intolerância’, com troca de links, apoio ‘cultural’ (pela troca de banners etc.) e mesmo assistência mútua em caso de um site precisar ser hospedado em outra ‘casa’ para poder fugir ao rastreamento da polícia. Organizados e rápidos, eles conseguem escapar mais facilmente das investigações e das consequências, graças à transnacionalidade do mundo virtual, que permite, em certos aspectos, essa “anomia geográfica” (p.103-104), e assim prorrogam indeterminadamente a impunidade dos inte-grantes desses grupos. O que mais precisamos viver para lembrar o fascismo? Se a resposta for neofascismos, aí vamos nós. Preparem suas mentes, corações e hard disks para o caso de carregamentos muito pesados: xenofobia, machis-mo, homofobia, misoginia, racismo... eugenias.

Por fim, Maynard nos introduz no fantástico campo do ‘ciberativismo’ ou ‘hacktivismo’. Temas por onde esbarraremos também com os profissionais de Relações Internacionais preocupados com a diplomacia clássica em crise (será?) em tempos daquilo que algumas nações vêm chamando de ‘ciberguer-ra’ (guerra de informação) ou ainda ciberterrorismo. O autor demonstra como os Estados Unidos se apropriaram dos escândalos midiáticos referentes ao Cablegate 5 para alimentar uma interpretação belicista do momento, conde-nando as denúncias do Wikileaks e os atos de protestos do grupo de hackers

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Oficina da história no ciberespaço

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Anonymous em 2010 como terrorismo. Para Maynard, o perigo dessa mani-pulação de opinião a partir de apropriações políticas do ativismo cibernético é a criação de uma atmosfera promissora para um “indesejável remake dos dias da Guerra Fria” (p.141). A saber, com quais intencionalidades políticas, a tro-co de que esquecimentos...

Os problemas expostos nesse livro nos remetem a vários estudos sobre história e internet, ou, como já batizaram alguns estudiosos, ‘Historiografia Digital’. Todos, contudo, bastante recentes e também marcados, uns mais, outros menos, por uma levada introdutória, da apresentação de problemas e tímidas formulações de hipóteses, em virtude da relativa novidade do tema.6 Entretanto, pensando especialmente nas variantes ética, moral e política da história, gostaríamos de fazer referência aqui ao trabalho do historiador fran-cês Denis Rolland, que, assim como Maynard, também entende a internet como uma nova fonte e objeto para a história, inscrita no Tempo Presente e demandando cautelosos e redobrados exames críticos. Para Rolland, na rede, a história assume frequentemente a forma de narrativas de ‘costuras invisíveis’, cujo nível de credibilidade científica é quase sempre desconhecido ou inveri-ficável, o que pode acabar levando a um ‘mal-estar da história’, por ser, muitas vezes, repleta de dissimulações ou amnésias-construtivas, uma “história sem historiador”,7 exposta, portanto, aos riscos de reconstruções historiográficas tal qual nos adverte Maynard no Capítulo 2 (p.43-66). É por tudo isso que, como afirma o autor já no início do livro, “pesquisar a história da internet, assim como navegar, é preciso” (p.42).

NOTAS

1 LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Trad. Cynthia Farina. Belo Ho-rizonte: Autêntica, 2004. p.7.2 GINZBURG, Carlo. História na Era Google. Fronteiras do Pensamento, 29 nov. 2010. (Conferência). Disponível em: www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=wSSHNqAbd7E (Vídeo); Acesso: 22 mar. 2012.3 Página da ‘enciclopédia’ em Português: pt.metapedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal; Acesso em: 23 mar. 2012.4 Cujo conteúdo hoje se encontra disponível em outro endereço: www.nuevorden.net/por-tugues/valhalla88.html; Acesso em: 23 mar. 2012.

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5 Termo cunhado pela imprensa mundial para nomear o escândalo gerado pelo site Wiki-leaks ao divulgar centenas de documentos e telegramas ‘secretos’ de autoridades da diplo-macia norte-americana sobre vários países.6 Para uma apreciação mais detida dos problemas de ordem teórico-metodológica na rela-ção entre história e internet, sob o ponto de vista da Historiografia Digital, ver: COHEN, Daniel J.; ROSENZWEIG, Roy. Digital History: a guide to gathering, preserving, and pre-senting the past on the web. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006. Dispo-nível em: chnm.gmu.edu/digitalhistory/; Acesso em: 22 mar. 2012; RAGAZZINI, Dario. La storiografia digitale. Torino: UTET Libreria, 2004. Em língua portuguesa, ver: LUCCHESI, Anita. Histórias no ciberespaço: viagens sem mapas, sem referências e sem paradeiros no território incógnito da web. Cadernos do Tempo Presente, ISSN 2179-2143, n.6. Disponí-vel em: www.getempo.org/revistaget.asp?id_edicao=32&id_materia=111; Acesso em: 23 mar. 2012.7 ROLLAND, Denis. Internet e história do tempo presente: estratégia de memória e mito-logias políticas. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n.16, p.59-92. jan. 2004. p.2. Disponível em: www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg16-4.pdf; Acesso em: 23 mar. 2012.

Resenha recebida em 20 de janeiro de 2012. Aprovada em 26 de março de 2012.

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INSTRUÇõES PARA OS COLABORADORES

objetivo e política editorial

A revista História Hoje publica artigos, entrevistas, relatos de pesquisa e experiências de trabalho na área de História e Ensino.

Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas, desde que atendam aos requisitos mínimos apontados nas normas de apresentação de colaborações. Havendo pareceres con-trários, recorrer-se-á a um terceiro. O Editor responsável e o Conselho Editorial se reservam o direito de recusar os artigos que não atenderem às exigências mínimas previstas nas normas aos colaboradores, sem sequer dar início ao processo de avaliação.

Cabe ao Conselho Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das contri-buições recebidas.

Normas para a apresentação de colaborações

As colaborações para a revista História Hoje devem seguir as especificações:

1. Todos os trabalhos devem ser apresentados em duas versões, uma com e outra sem a identificação do autor; não é necessário enviar cópia impressa ou CD; em folha sepa-rada, devem constar os dados do autor (nome completo, titulação acadêmica, filiação institucional e endereço da instituição, telefone com DDD e e-mail para contato) e uma declaração de ineditismo (declaração simples em que atesta que o artigo nunca foi publicado nem foi submetido para avaliação em outro periódico ou livro). O pro-grama utilizado deve ser compatível com o Word for Windows. Imagens: 300 dpi.

2. Em uma folha separada devem constar os dados completos do autor (nome completo, filiação institucional, titulação acadêmica, endereço institucional e e-mail para corres-pondência). O autor deve também declarar que o texto submetido é inédito e não se encontra em processo de julgamento em nenhum outro periódico ou coletânea.

3. Caso o trabalho tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencio-nada.

4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto.

5. Os artigos terão a extensão de 15 a 20 páginas em formato A4, digitadas em fonte Times New Roman 12, com espaço 1,5. As citações de mais de três linhas deverão ser feitas em destaque, com fonte 11 e recuo de 2,5 cm. Margens: superior e esquerda: 3,0 cm; inferior e direita: 2,0 cm. Os artigos serão acompanhados do título em inglês, resumo e abstract de no máximo 10 linhas ou 140 palavras, 3 palavras-chave e 3 keywords.

6. As resenhas poderão ter entre 1.000 e 1.500 palavras. Fontes e margens seguem as mesmas normas dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados no mesmo ano ou no ano anterior ao da submissão, ou livros estrangeiros publicados nos últimos quatro anos.

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7. A publicação e os comentários a respeito de documentos inéditos seguirão as normas especificadas para os artigos.

8. As notas devem ser colocadas no final do texto, não ultrapassando o número de 30. Serão admitidas notas explicativas, desde que imprescindíveis e limitadas ao menor número possível. A revista não publica bibliografias.

9. Normatização das notas cf. NBR 6023:

livro: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cida-de: Editora, ano. nnnp.

capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Edi-tora, ano. p.xxx-yyy.

artigo em periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itáli-co, Cidade: Editora, v.xx, n.xx, p.xxx-yyy, ano.

trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título em itálico: subtítulo. Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em .....) � Unidade, Instituição. Cidade, ano. nnnp.

texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www..........; Acesso em: dd mmm. ano.

trabalho apresentado em evento: SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número (se houver), ano, Local do evento. Anais... Local: Editora (se hou-ver), ano. p.xxx-yyy.