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ENSINO RELIGIOSO NA PROPOSTA CURRÍCULAR DE SANTA CATARINA: PASSOS RUMO AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE CULTURAL RELIGIOSA 1 EDUCATION RELIGIEUSE AU COURS DE SANTA CATARINA PROPOSITION: ÉTAPES VERS LA RECONNAISSANCE DE LA DIVERSITÉ CULTURELLE RELIGIEUX Adecir Pozzer (USJ e SED) 2 Resumo: O presente trabalho apresenta aspectos históricos do Ensino Religioso (ER) nas diferentes edições da Proposta Curricular de Santa Catarina (PCSC). A partir da versão atualizada no decorrer de 2014, procuramos identificar e refletir aspectos epistemológicos e curriculares deste componente, concebido como responsável pelo estudo dos saberes e conhecimentos religiosos e não religiosos, sem proselitismos, partindo de pressupostos científicos. Na primeira parte, apresentamos um breve histórico da construção da PCSC, refletindo os seus fundamentos teóricos e identificando a presença e desenvolvimento do ER na educação básica catarinense, como um espaço de construção de uma cultura de respeito e reconhecimento da diversidade cultural religiosa. Na sequência, refletimos sobre a perspectiva do Ensino Religioso no documento atualizado da PCSC, em que se privilegia o acesso e a aprendizagem de saberes e conhecimentos produzidos pelas distintas culturas e tradições religiosas, constituindo-se nos currículos escolares, espaços polifônicos, dialógicos e interculturais. Palavras-chave: Ensino Religioso; Proposta Curricular de Santa Catarina; Diversidade Cultural Religiosa. Résumé: Cet article présente des aspects historiques de la Religion Enseignement (RT) dans les différentes éditions du programme proposé de Santa Catarina (PCSC). Basé sur la version mise à jour 2014, nous cherchons à identifier et refléter les aspects épistémologiques et pédagogiques de cette composante, conçu comme responsable de l'étude de la connaissance religieuse et non religieuse, sans prosélytisme, basée sur l'hypothèse scientifique. Dans la première partie, un bref historique de la construction du PCSC est présenté, reflétant sa fondation théorique et identifier la présence et le développement de la religion enseignement à Santa Catarina l'éducation de base, comme un espace de construction de la culture de respect et de reconnaissance de la diversité religieuse et culturelle. Dans la séquence nous réfléchissons sur la perspective de Religion enseignement basé dans la mise à jour (PCSC), dans lequel l'accès et l'apprentissage des connaissances produites par les différentes cultures et traditions religieuses est en surbrillance, modifier les programmes scolaires dans les espaces polyphoniques, dialogiques et interculturelles. Mots-clés: Enseignement de la Religion. Curriculum Proposé de Santa Catarina. Diversité Culturelle Religieux. Introdução O ER é Área de Conhecimento da Educação Básica (Resolução CNE/CEB nº 04/2010) e Componente Curricular do Ensino Fundamental (Resolução CNE/CEB nº 07/2010) das 1 Texto apresentado e discutido no GT Currículo do I Fórum Internacional de Ensino Religioso Lisboa 2015, aceito para publicação nos anais do evento. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Coordenador da Comissão de Currículo do FONAPER (2014-2016). Assistente técnico-pedagógico da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED) e Professor substituto do Centro Universitário Municipal São José (USJ). Contato: [email protected]

Ensino Religioso na Proposta Currícular de Santa Catarina

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Ensino Religioso na Proposta Currícular de Santa Catarina: Passos Rumo ao Reconhecimento da Diversidade Cultural Religiosa, de Adecir Pozzer

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ENSINO RELIGIOSO NA PROPOSTA CURRÍCULAR DE SANTA CATARINA:

PASSOS RUMO AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE CULTURAL

RELIGIOSA1

EDUCATION RELIGIEUSE AU COURS DE SANTA CATARINA PROPOSITION:

ÉTAPES VERS LA RECONNAISSANCE DE LA DIVERSITÉ CULTURELLE

RELIGIEUX

Adecir Pozzer (USJ e SED)2

Resumo:

O presente trabalho apresenta aspectos históricos do Ensino Religioso (ER) nas diferentes edições da Proposta

Curricular de Santa Catarina (PCSC). A partir da versão atualizada no decorrer de 2014, procuramos identificar

e refletir aspectos epistemológicos e curriculares deste componente, concebido como responsável pelo estudo

dos saberes e conhecimentos religiosos e não religiosos, sem proselitismos, partindo de pressupostos científicos.

Na primeira parte, apresentamos um breve histórico da construção da PCSC, refletindo os seus fundamentos

teóricos e identificando a presença e desenvolvimento do ER na educação básica catarinense, como um espaço

de construção de uma cultura de respeito e reconhecimento da diversidade cultural religiosa. Na sequência,

refletimos sobre a perspectiva do Ensino Religioso no documento atualizado da PCSC, em que se privilegia o

acesso e a aprendizagem de saberes e conhecimentos produzidos pelas distintas culturas e tradições religiosas,

constituindo-se nos currículos escolares, espaços polifônicos, dialógicos e interculturais.

Palavras-chave: Ensino Religioso; Proposta Curricular de Santa Catarina; Diversidade Cultural Religiosa.

Résumé:

Cet article présente des aspects historiques de la Religion Enseignement (RT) dans les différentes éditions du

programme proposé de Santa Catarina (PCSC). Basé sur la version mise à jour 2014, nous cherchons à identifier

et refléter les aspects épistémologiques et pédagogiques de cette composante, conçu comme responsable de

l'étude de la connaissance religieuse et non religieuse, sans prosélytisme, basée sur l'hypothèse scientifique. Dans

la première partie, un bref historique de la construction du PCSC est présenté, reflétant sa fondation théorique et

identifier la présence et le développement de la religion enseignement à Santa Catarina l'éducation de base,

comme un espace de construction de la culture de respect et de reconnaissance de la diversité religieuse et

culturelle. Dans la séquence nous réfléchissons sur la perspective de Religion enseignement basé dans la mise à

jour (PCSC), dans lequel l'accès et l'apprentissage des connaissances produites par les différentes cultures et

traditions religieuses est en surbrillance, modifier les programmes scolaires dans les espaces polyphoniques,

dialogiques et interculturelles.

Mots-clés: Enseignement de la Religion. Curriculum Proposé de Santa Catarina. Diversité Culturelle Religieux.

Introdução

O ER é Área de Conhecimento da Educação Básica (Resolução CNE/CEB nº 04/2010)

e Componente Curricular do Ensino Fundamental (Resolução CNE/CEB nº 07/2010) das

1 Texto apresentado e discutido no GT Currículo do I Fórum Internacional de Ensino Religioso – Lisboa – 2015, aceito para

publicação nos anais do evento. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos,

Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Coordenador da Comissão de Currículo do FONAPER (2014-2016).

Assistente técnico-pedagógico da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED) e Professor substituto do Centro

Universitário Municipal São José (USJ). Contato: [email protected]

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escolas públicas brasileiras. Esse reconhecimento é resultado de inúmeros processos

históricos, marcados por tensões, dilemas e contradições. No decorrer da história, em especial

após a separação Estado-Igreja (1889), surgem inúmeras concepções teórico-metodológicas

de ER com perspectivas diversas: confessional, interconfessional e ecumênica. Na atualidade,

experiências inter-religiosas e interculturais se apresentam como possibilidades capazes de

dialogar abertamente com os demais componentes e áreas de conhecimento no contexto da

Educação Básica, de modo a assegurar o reconhecimento e respeito à diversidade cultural

religiosa.

Os dilemas, incompreensões e resistências em torno do ER estão presentes em

diferentes setores da educação e, quando tratado no currículo escolar, evidenciam-se

desconhecimentos e ambiguidades relacionados a este componente. Paralelamente, observa-se

também uma maior compreensão e aceitabilidade entre os profissionais da educação e

familiares, quando tratado e compreendido enquanto possibilidade de estudo, construção e

sociabilização de saberes e conhecimentos religiosos das culturas e tradições religiosas sem

proselitismo; quando contribui com o questionamento de concepções e práticas

discriminatórias e preconceituosas em relação ao Outro3; quando questiona a utilização do

religioso4 para fomentar desigualdades e injustiças; e quando problematiza as relações de

poder relacionadas ao religioso, utilizado em muitos casos, para legitimar a negação da

dignidade humana.

É neste contexto de tensões, diálogos e avanços que o ER vem ocupando espaço nas

edições da PCSC, possibilitando que nas escolas públicas catarinenses os sujeitos sejam

reconhecidos em suas identidades e escolhas no que diz respeito à crença religiosa, e, de igual

maneira, (re)conheçam os elementos básicos que integram os fenômenos religiosos das

distintas cosmovisões.

Neste sentido, apresentaremos aspectos históricos da construção e atualização da

PCSC, procurando situar alguns desafios que o ER tem enfrentado para o seu reconhecimento

no currículo escolar catarinense, bem como seu aprofundamento e ampliação do ponto de

vista epistêmico e pedagógico na atual edição da PCSC, atualizada no decorrer do ano de

2014.

3 Outro (com a inicial em maiúsculo) quer indicar os Outros e Outras. Para Levinas, representam aqueles que não podem ser

contidos, nem reduzidos a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói. (LEVINAS, 2005). 4 De acordo com Ruedell (2007, p. 45) o termo religioso refere-se a um “elemento constitutivo do ser humano [...] é o que há

de mais profundo e basilar na multidimensionalidade da vida”.

Page 3: Ensino Religioso na Proposta Currícular de Santa Catarina

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Proposta Curricular de Santa Catarina: Percurso histórico e aportes

teórico/metodológicos

O processo de redemocratização do Brasil, ocorrido amplamente após o período

ditatorial (1964-1985), possibilitou inúmeras discussões no campo da educação, provocando

no Estado de Santa Catarina, abertura para um pensamento mais social e político na educação,

cujo fundamento teórico encontra-se em pensadores como Vygostsky (1896-1934), Wallon

(1879-1962), Gramsci (1891-1937) e outros da vertente teórica histórico-cultural.

Neste contexto, a Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED)

organizou discussões e estudos que culminaram com a publicação da primeira edição da

PCSC, em 1988. No entanto, o Estado já contava com o Plano Estadual de Educação (PEE),

regulamentado pela Lei nº 4.394, de 20 de novembro de 1969, do qual já havia esboçado um

programa curricular que contemplava os componentes curriculares, sobre o qual se

organizaram formações continuadas de professores, dentre elas para o Ensino Religioso,

denominado na época de Educação Religiosa Escolar (ERE) (SANTA CATARINA, 1969).

Uma segunda versão da PCSC na perspectiva histórico-cultural ocorreu no início do

ano de 1991, cujo objetivo foi rever e incorporar aspectos ausentes na primeira edição. A

partir de 1995, constituiu-se um “Grupo Multidisciplinar” para organizar um Projeto de

Revisão e Aprofundamento da Proposta Curricular, ampliado com educadores de todas as

regiões do Estado em 1997 que, após uma ampla discussão, chegou-se a publicação da

terceira edição, em 1998. Ficou organizada em três volumes, uma contendo as disciplinas

curriculares, uma segunda os temas multidisciplinares, e a última, as disciplinas de formação

para o magistério (SANTA CATARINA, 1998).

No caso do ER, o Conselho Interconfessional da Educação Religiosa Escolar (CIER)

participou da organização de uma proposta, em 1997, não contemplada na terceira edição.

Antes disso, sempre esteve articulando cursos de formação continuada e estudos em torno da

concepção, conteúdos e metodologias deste componente. Somente em 2001 a SED reuniu um

grupo de professores vinculados a Universidades Comunitárias (FURB, UNIVILLE e

UNISUL) que ofertavam formação inicial para o Ensino Religioso, Sistemas de Ensino,

Conselho do Ensino Religioso de Santa Catarina (CONER/SC) e representante do Fórum

Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER), para elaborar a Proposta Curricular

de Santa Catarina, tendo em vista a implementação do Ensino Religioso nas escolas da rede

pública estadual. Neste mesmo ano, a SED organizou as Diretrizes para a Organização da

Prática Escolar na Educação Básica, com a participação dos professores da rede.

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Em 2005, a PCSC sofreu uma reformulação que resultou na publicação dos Cadernos

de Estudos Temáticos. Eles são produto de uma discussão, sistematização e socialização

iniciada em 2004, pela SED, através da Diretoria de Educação Básica e Profissional. A partir

da organização de seis temas multidisciplinares, considerados relevantes no momento

histórico, discutiu-se e organizou-se as diretrizes curriculares para as temáticas: educação e

infância, alfabetização com letramento, educação e trabalho, educação de trabalhadores,

ensino noturno e educação de jovens (SANTA CATARINA, 2005).

Diante das novas demandas sociais, educacionais e curriculares, novas Diretrizes

Curriculares educacionais em âmbito nacional foram publicadas nos últimos anos,

evidenciando a centralidade no direito à aprendizagem e ao desenvolvimento dos estudantes.

Frente a estes desafios, a Atualização da PCSC, ocorrida em 2014, orientou-se por três fios

condutores, a saber: a educação integral; a concepção de percurso formativo e; inclusão da

diversidade para o reconhecimento das diferenças, enquanto princípio formativo (SANTA

CATARINA, 2014).

Neste sentido, os diferentes sujeitos têm de ter a possibilidade de dialogar e

reconhecerem-se mutuamente, através da criação de processos polifônicos que propiciam

vivências interculturais, em que lógicas monoculturais são questionadas e extirpadas dos

processos educacionais. Implícito ao percurso formativo está a diversidade como princípio

formativo, trazendo à roda outras racionalidades e diálogos possíveis e necessários em tempos

cada vez mais marcados e provocados pelo multiculturalismo5.

Quanto a perspectiva teórico-metodológica, identificamos uma escolha desde a

primeira versão da PCSC. Através da abordagem filosófica do materialismo histórico e

dialético, busca-se compreender que tipo de ser humano se quer formar, para quê sociedade e

quais os processos de aprendizagem são necessários para tal. O enfoque metodológico centra-

se na concepção histórico-cultural de aprendizagem, conhecida também como sócio-histórica

ou sociointeracionista (SANTA CATARINA, 1998).

O ser humano, um ser social e histórico, é concebido enquanto resultado de um

processo conduzido pelo próprio homem. É ele que faz a história, ao mesmo tempo em que é

determinado por ela. Esta compreensão pressupõe concebê-la como elaboração humana. “Os

5 O multiculturalismo é um termo que possui uma pluralidade de abordagens, como o multiculturalismo conservador, o

liberal, o pluralista, o comercial, o crítico ou revolucionário. Dentre estes, optamos pela compreensão desenvolvida por

McLaren sobre o multiculturalismo revolucionário, no qual se “reconhece que as estruturas objetivas nas quais vivemos, as

relações materiais condicionadas à produção nas quais estamos situados e as condições determinadas que nos produzem estão

todas refletidas em nossas experiências cotidianas. [...] O multiculturalismo revolucionário não se limita a transformar a

atitude discriminatória, mas é dedicado a reconstituir as estruturas profundas da economia política, da cultura e do poder nos

arranjos sociais contemporâneos. Ele não significa reformar a democracia capitalista, mas transformá-la, cortando suas

articulações e reconstruindo a ordem social do ponto de vista dos oprimidos” (MCLAREN, 2000, p. 284).

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homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob

circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com as quais se defrontam diretamente,

legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1851-1852, p. 6).

Se o ser humano é o sujeito, seu objeto é o conhecimento, concebido como um

patrimônio coletivo. Sendo assim, precisa ser acessado e sociabilizado, inclusive entre as

camadas populares. O conhecimento científico, quando socializado, precisa relacionar-se com

outros saberes, como o cotidiano e o religioso, por exemplo. Na perspectiva histórico-cultural

da aprendizagem, os conhecimentos do cotidiano não podem ser ignorados, mas considerados

ponto de partida para estabelecer diálogos com os demais saberes que, quando apropriados,

podem levar a formas mais científicas de pensar (SANTA CATARINA, 1998).

Pensar de uma maneira mais científica não significa a mera apreensão de informações

científicas, mas implica reconhecer os processos de produção do conhecimento, a autonomia

dos sujeitos e a valorização das singularidades na busca e construção do mesmo,

reconhecendo as diversas racionalidades. Na socialização do conhecimento, há que se

considerar abordagens locais e universais. Na perspectiva universal, implica abordar os

conhecimentos sem se prender a saberes localizados, bem como à abordagens localizadas do

conhecimento. Não representa desprezo dos saberes locais e individuais, mas ampliação do

leque de compreensão da vida, assim como as possibilidades de interação com o mundo e a

sociedade (ibidem, 1998).

Na perspectiva histórico-cultural da aprendizagem, a interação social possui fatores

determinantes na formação das funções psicológicas dos sujeitos, diferenciando-se de

perspectivas inatistas6 e empiristas

7. Neste sentido, a aprendizagem sempre acontecerá

independente do contexto social ou cultural, porém, com diferenças, pois uma criança de um

meio intelectualmente mais amplo de possibilidades, tende a aprender mais que outra criança

que supostamente vive num meio intelectualmente com menos acessibilidade de informações

e conhecimentos universalmente difundidos. Com isso, “ser mais ou menos capaz de

acompanhar as atividades escolares deixa de ser visto como uma determinação da natureza, e

passa a ser visto como uma determinação social” (ibidem, 1998, p. 14).

Diante das discussões contemporâneas da diversidade cultural, do multiculturalismo e

da interculturalidade, em que medida esta perspectiva histórico-cultural tem possibilitado o

reconhecimento dos saberes e conhecimentos produzidos pelas distintas culturas, movimentos

6 De origem grega, o inatismo compreende que todo conhecimento possui origem em estruturas mentais inatas, sendo,

portanto, anterior a toda experiência (SANTA CATARINA, 1998). 7 Também originário da Grécia antiga, o empirismo entende que todo conhecimento é transmitido, com isso, o sujeito

receptor não age sobre ele, transformando-o de maneira a ampliá-lo ou não (SANTA CATARINA, 1998).

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sociais, tradições religiosas e demais organizações, de modo equânime aos conhecimentos

científicos?

Admite-se no texto da atualização da Proposta Curricular de 2014 que, “por força do

processo pela qual foi construída, manifesta algum pluralismo teórico-metodológico,

expressando o próprio movimento político e epistemológico presente nos debates

contemporâneos sobre educação, bem como possíveis contradições deles decorrentes”

(SANTA CATARINA, 2014, p. 20).

É necessário reconhecer que historicamente inúmeras culturas e grupos humanos

construíram e validaram um conjunto de conhecimentos através da organização social e da

constituição de suas identidades, que necessariamente não foram validados pela razão

científica, mas por outras racionalidades. Há na PCSC abertura para suspeitas que,

necessariamente, precisam existir para continuar provocando o pensar dos processos

formativos e educacionais, de modo a se tornarem cada vez mais estratégias de inter-

reconhecimentos dialógicos, interculturais e polifônicos. Não nos ocuparemos desta análise

no momento, porém, reconhecemos a questão como crucial para continuarmos a pensar a

temática.

Ensino Religioso na PCSC: Desafios, perspectivas e direito do estudante

O Estado de Santa Catarina sempre procurou contemplar o ER em conformidade com

as legislações federais. No entanto, somente a partir de 1935 é que aparece na Constituição8

um tratamento mais claro de como se dará este ensino na escola pública catarinense, mesmo

sem haver uma discussão específica de currículo. Estas mesmas orientações legais se

mantiveram semelhantes nas constituições estaduais subsequentes, como dos anos de 1945,

1947, 1967 e 1970 (CECCHETTI; THOMÉ, 2007).

De acordo com Caron (2007), até os anos de 1969, o ER possuía caráter confessional

católico, não possuindo na Secretaria de Estado da Educação uma proposta curricular, pois era

orientada e definida pela própria igreja católica. Devido às mudanças sociais, discussões em

torno da educação no país e experiências ecumênicas existentes entre diferentes confissões

8 O Art. 138 da Constituição do Estado de Santa Catarina de 1935, afirma que o Ensino Religioso será de frequência

facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis,

e constituirá matéria dos horários das escolas públicas primárias e secundárias, profissionais e normais (SANTA

CATARINA, 1935)

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religiosas cristãs no estado, a partir dos anos de 1970, organizou-se o CIER9. Este conselho

teve grande influência na formação continuada de professores para o Ensino Religioso, bem

como na definição do currículo para este componente no período de 1970 a 1997. Sua

finalidade era a de acompanhar a implantação e atualização do currículo da Educação

Religiosa Escolar10

.

Um dos motivos da fundação do CIER foi a criação de um Programa de ERE por parte

da SED/SC, implantado em 1972. É reconhecido como um projeto pioneiro para esta área no

país. O programa tinha caráter ecumênico, pois a grande maioria11

dos estudantes pertencia às

igrejas que integravam o CIER. Este programa se tornou o primeiro projeto curricular de ER

no estado. Por ser pioneiro e de caráter ecumênico, uma das grandes dificuldades encontradas

estava relacionada à formação de professores para trabalhar nesta perspectiva, o que trazia

implicações diretas ao desenvolvimento do currículo nas escolas. Por isso, um dos critérios

para a seleção dos professores da Comissão Regional de Educação Religiosa (CRER)12

, era

conhecer e assumir o programa de ERE elaborado pelo CIER em comum acordo com a

Secretaria de Estado da Educação (CARON, 1995).

Para a referida autora,

Desde 1970, a Educação Religiosa Escolar é reconhecida como disciplina do

currículo no Ensino Fundamental e Médio das escolas da rede pública estadual,

passando a ter proposta curricular com programas seriados. O conteúdo das aulas

seguia a estrutura do pensamento cristão, com linguagem própria ao nível de cada

série. Para este novo fazer pedagógico da ERE, a tônica estabeleceu-se em torno da

formação de professores (CARON, 2007, p. 201).

9 Em 1972, com a implantação do Programa de ERE, o Pe. Osmar Muller, representante da Regional Sul IV da CNBB,

convidou líderes religiosos de confissões cristãs para tratar da criação do CIER, enquanto espaço destinado a tratar das

questões relacionadas ao ERE (CARON, 1995). 10 O termo Educação Religiosa Escolar foi utilizado nas escolas públicas de Santa Catarina com base no Decreto nº 13.692,

de 14/04/1981. Somente em 1996, por ocasião da nova LDB que, em seu Art. 33 denomina Ensino Religioso, assim como

consta na Constituição Federal de 1988, é que se passa a denominar Ensino Religioso. 11

A maioria não contempla todos/as, pois havia nas escolas muitos estudantes descendentes de outras culturas, como as

africanas e indígenas, as quais não eram contempladas e muito menos reconhecidas. Participavam das aulas e aprendiam

sobre as religiões cristãs, mantendo-se a negação ao direito a diferença e, consequentemente, levando os estudantes a

questionar os fundamentos da própria identidade cultural religiosa. 12

Para ser professor de ERE, a Comissão Regional de Educação Religiosa (CRER), criada para auxiliar no processo de

seleção e formação de professores, possuía alguns critérios, a saber: I – Pertencer a uma das confissões religiosas filiadas ao

CIER que esteja regularmente representada na Comissão Regional de Educação Religiosa (CRER); II – Ter idoneidade moral

e profissional, dar testemunho e vivência cristã e estar integrado em sua comunidade eclesial de fé; III – Ser recomendado

pela autoridade religiosa de sua comunidade eclesial de fé com aprovação do CRER, considerando a legislação estadual

vigente; IV – Possuir curso de nível superior na área de educação, preferência com curso de Teologia, Ciências Religiosas e,

na impossibilidade desses, curso de magistério ou outro nível de 2º grau; V – Participar de encontros, cursos, seminários e

outros pertinentes à área de ERE promovidos pelo CIER, CRER, pela Secretaria de Estado da Educação, Secretaria Executiva

Regional de Educação ou outras entidades ligadas direta ou indiretamente, dentre e fora do estado; VI – Evitar o proselitismo

e a polêmica durante as aulas de ERE e estar comprometido com a mesma; VIII – Conhecer e assumir o programa de ERE

(elaborado pelo CIER e adotado em Santa Catarina), e ser capaz de orientar sua adaptação à realidade e desafios

educacionais; IX – Levar em conta o tempo de serviço como professor e a avaliação de desempenho pela direção e/ou equipe

pedagógica da unidade escolar (CRER, 1993, p. 2,apud CARON, 1995,p. 124).

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De caráter ecumênico, o objeto de estudo era o Transcendente, concebido numa

perspectiva cristã, desconsiderando ainda concepções e práticas de outras cosmovisões

constituintes das diferentes identidades presentes nos espaços escolares, como as de origem

indígenas, afro-brasileiras, ciganas e outras que, por serem minoria, não eram reconhecidas. A

metolodologia proposta centrava-se em discussões e experiências celebrativas de temáticas

previstas para cada nível no Programa de ERE.

Como já dissermos, em 1997, a SED solicitou ao CIER a elaboração de uma Proposta

Curricular para a ERE, a qual foi elaborada e aprovada internamente. Tal proposta centrava-se

nos valores e objetivos comuns a todas as crenças, a fim de promover o respeito à diversidade

cultural e religiosa. Afirmava que é de responsabilidade da escola disponibilizar ao estudante

os conhecimentos históricos elaborados pela humanidade, de modo a serem apropriados

através dos processos de ensino-aprendizagem. Sendo a dimensão religiosa do ser humano um

dos componentes deste conhecimento, precisava estar disponível para o seu acesso (SANTA

CATARINA, 1998).

Na proposta apresentada pelo CIER, o objeto da ERE continuou sendo o

Transcendente, considerado o núcleo e razão de ser do fenômeno religioso, substrato de toda

cultura. São apresentados também os pressupostos, a saber: antropológicos, culturas e

tradições religiosas, ritos e celebrações, ethos, teológicos e pedagógicos. O tratamento

didático priorizava a organização social das atividades, organização do espaço e do tempo e

os critérios para seleção e utilização de materiais e recursos. A metodologia indicada

orientava para a vivência, ação interativa e o conhecimento. (ibidem, 1998).

A Proposta Curricular de Santa Catarina - implementação do Ensino Religioso, de

2001, foi elaborada a partir da parceria entre SED e CONER/SC, que naquele período era

composto por representantes de quatorze denominações religiosas. Esta produção se deu pela

necessidade de implementar o ER com base nos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional nº 9.394/1996, alterada pela Lei de nº 9.475/1997, e da Lei Complementar

nº 170/1998, que dispõe sobre o sistema estadual de educação, apontando alguns avanços

significativos na sua compreensão e nos encaminhamentos.

De acordo com a perspectiva teórica da PCSC, o documento da implementação do ER

em Santa Catarina, propõe que o conhecimento do ER se dê através da “releitura do fenômeno

religioso a partir do convívio social dos educandos” (SANTA CATARINA, 2001, p. 8),

concebido agora como o seu objeto de estudo. Trata dos princípios organizativos, dos

conceitos essenciais, das ideias mais específicas e dos possíveis enfoques dos temas para cada

ano do ensino fundamental. Os conceitos essenciais selecionados são: ser humano,

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conhecimento revelado, conhecimento elaborado, diversidade de práticas e caminhos de

reintegração. O tratamento didático proposto é que ele ocorra em nível de análise e

conhecimento, contemplando a pluralidade cultural. Tem de abarcar e valorizar os

conhecimentos prévios que os estudantes possuem, de modo que a aprendizagem se

desenvolva para níveis de maior complexidade no entendimento dos fenômenos religiosos. A

proposta lança também os fundamentos da avaliação em ER, entendida de modo processual,

contínua e subsidiadora dos processos de ensino e aprendizagem (SANTA CATARINA,

2001).

Neste mesmo ano de 2001, a SED organizou e publicou as Diretrizes para a

Organização da Prática Escolar na Educação Básica 3: Conceitos Científicos Essenciais,

Competências e Habilidades. Essas diretrizes objetivaram subsidiar a elaboração dos Projetos

Político-Pedagógicos das escolas da rede pública estadual. Assim como aos demais

componentes, foi elaborado para o ER um mapa conceitual em que se manteve o fenômeno

religioso como seu objeto de estudo. Elaborou-se ainda um quadro de ênfase dos conceitos

científicos essenciais da 1ª a 8ª série que, ao serem trabalhados, deveriam desenvolver

determinadas competências e habilidades, elencadas também nestas diretrizes (SANTA

CATARINA, 2001a).

A participação do CIER e do CONER/SC nos momentos históricos em que estiveram

atuantes no estado foi determinante para que o ER fosse reconhecido e inserido nas diferentes

edições da PCSC, bem como na formação e organização do ER na rede de ensino.

Atualmente, nenhuma das organizações está em atividade. Em virtude do decrescente

envolvimento das instituições religiosas e o crescimento do número de professores habilitados

na área, por meio dos Cursos de Ciências da Religião: Licenciatura em Ensino Religioso,

atrelado ao desejo de autonomia por parte dos professores, criou-se em 2003, a Associação de

Professores de Ensino Religioso do Estado de Santa Catarina (ASPERSC). Em conjunto com

as universidades que ofertam licenciatura para este componente, esta associação tem

fomentado a formação continuada dos professores em articulação com a Secretaria de Estado

da Educação, ou junto as Gerências de Educação (GEREDs) e algumas secretarias municipais

de educação, a fim de assegurar o direito dos estudantes compreenderem a dinâmica dos

fenômenos religiosos nas diferentes culturas e tradições religiosas. Esse conhecimento

propicia o desenvolvimento de uma maior consciência sobre o direito à liberdade religiosa, o

respeito à diferença e a responsabilidade ética frente às alteridades.

Nesta perspectiva, o direito ao ER nas escolas brasileiras, além de possuir um caráter

legal, tem se sustentado nas dimensões pedagógicas e epistemológicas, pois uma das

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principais finalidades é a de contribuir com a formação integral dos sujeitos. Neste sentido, na

última versão da PCSC afirma-se que:

Esse sujeito tem o direito a uma formação que tome como parâmetro todas as

dimensões que constituem o humano. Uma formação que reconheça e ensine a

reconhecer o direito a diferença, a diversidade cultural e identitária; que contemple

as dimensões ética, estética, política, espiritual, socioambiental, técnica e

profissional (SANTA CATARINA, 2014, p. 27).

Esse é um dos fundamentos da educação integral, que necessariamente ultrapassa os

muros da escola ou da sala de aula, propiciando e exigindo diálogos e interações com o

contexto sociocultural dos estudantes, isto é, com o mundo da vida e sua cotidianidade. Para

efetivar uma perspectiva intercultural, dialógica e polifônica na educação e no Ensino

Religioso, há que se realizar uma profunda revisão das concepções e práticas em educação,

questionando visões e relações que, com base em Foucault (2004), permitem o conhecimento

tendo em vista o controle das pessoas através da burocracia escolar, treinando-as

simplesmente para ocupar os lugares na estrutura social. Assim, somos interpelados a pensar a

escola como um não-lugar, num conjunto de extensões ou estratégias que propiciam

aprofundamentos, ressignificações, dialogicidade e apreensão de conhecimentos que

assegurem uma maior compreensão daquilo que afeta a integralidade dos corpos, mentes,

consciências e ações dos sujeitos envolvidos - ou que deveriam estar incluídos - nos processos

formativos.

Atualização da PCSC de 2014: Espaços Polifônicos e ER Intercultural

Como já assinalamos, na edição de atualização da PCSC de 2014 não identificamos

grandes mudanças em termos de opção epistemológica. No entanto, algumas aberturas

teóricas são perceptíveis e admitidas na tentativa de abarcar as discussões contemporâneas de

educação em suas múltiplas interfaces. Essa constatação indica a necessidade de a educação

constituir-se cada vez mais como que uma polifonia, em que os diferentes sujeitos tenham

assegurado o direito ao inter-reconhecimento das identidades culturais e religiosas.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica sustentam esta perspectiva,

quando afirmam que:

A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes, a

socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes abordagens,

exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e

emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos

socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola

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11

a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção “transgressora”, por que

rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de

crise de identidade institucional (BRASIL, 2010, p. 25).

Justifica-se assim a inserção da diversidade como princípio formativo. Esta escolha

requer que se assuma um conjunto de transformações necessárias que repercutem na

organização curricular, nos conteúdos, nos encaminhamentos metodológicos, na seleção e

utilização de materiais, na gestão escolar, na avaliação, nos tempos e espaços formativos, sem

abdicar do caráter provisório e contextual do cotidiano da vida.

Para assegurar o diálogo entre as áreas de conhecimento e o eixo da Diversidade,

definiram-se alguns princípios13

basilares. O ER, tratado nas Ciências Humanas devido a sua

proximidade com a História, Geografia, Sociologia e a Filosofia, contribuiu com a

compreensão crítica e responsável da sociedade, permeada por saberes, conhecimentos e

práticas historicamente construídas, mas em constantes transformações. “A área de Ciências

Humanas assume, ao longo do processo formativo da Educação Básica, o papel de contribuir

para que os estudantes elaborem conceitos sobre o ser humano e suas relações, tecidas

consigo, com o outro, com o ambiente e com o transcendente” (SANTA CATARINA, 2014,

p. 139).

Conceber e organizar a prática pedagógica do ER numa perspectiva interdisciplinar e

intercultural pressupõe que todos os sujeitos envolvidos nos processos formativos superem a

rigidez das fronteiras disciplinares. Neste sentido, as Ciências Humanas na PCSC de 2014,

organizam-se estrategicamente em torno de conceitos estruturantes14

, que se desdobrarão em

conteúdos, abordagens e atividades de aprendizagem dos componentes curriculares que

integram esta área. Caberá aos componentes curriculares potencializar os conceitos mais

próximos aos seus objetos de estudo, sem perder de vista as dimensões interdisciplinares e

dialógicas em todo o percurso formativo (SANTA CATARINA, 2014).

É neste contexto mais amplo que os saberes e conhecimentos religiosos, enquanto

produção histórica das diferentes culturas e tradições religiosas tornam-se objeto de estudo do

ER ao subsidiarem o entendimento dos fenômenos religiosos. Amparados em princípios

13 Os princípios da Diversidade são: Educar na alteridade; Consciência política e histórica da diversidade; Reconhecimento,

valorização da diferença e fortalecimento das identidades; Sustentabilidade ambiental; Pluralismo de ideias e de concepções

pedagógicas; Laicidade do Estado e da escola pública e; Igualdade de direitos para acesso, permanência e aprendizagem na

escola, (SANTA CATARINA, 2014). 14

Os conceitos estruturantes na área das Ciências Humanas na PCSC 2014 são: “tempo, espaço e relações sociais que se

desdobram em outros conceitos, tais como ser humano, relações socioambientais, relações sociais de produção,

conhecimento, território, ambiente, natureza, redes, transformações sociais, cultura, identidade, memória, temporalidade,

imaginário, ideologia, alteridade, indivíduo, sociedade, poder, trabalho, tecnologia, economia, linguagem, ética, estética,

epistemologia, política, Estado, direitos humanos, imanência, transcendência, patrimônio, corporeidade, sociabilidade,

convivência, cooperação, solidariedade, autonomia e coletividade” (ibidem, 2014, p. 142).

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12

éticos e legais, não podem servir à prática de proselitismo, mas para assegurar o respeito à

diversidade cultural religiosa (BRASIL, 1997) na escola laica. Necessitam, pois, ser

concebidos e tratados pedagogicamente enquanto elementos de aprendizagem na educação

básica, a fim de contribuir com a formação de cidadãos críticos, capazes de analisar e

compreender as distintas percepções, vivências e elaborações relacionadas ao religioso,

elemento que integra o substrato das culturas (FONAPER, 2009).

Na educação básica, a presença do ER em perspectiva intercultural contribuirá para o

enfrentamento e superação da intolerância e da discriminação cultural religiosa, assim como

em relação a outras diferenças utilizadas para justificar concepções e práticas discriminatórias

em relação ao Outro.

Neste sentido, concordamos que:

[...] discriminações e preconceitos étnicos, culturais, religiosos, sexuais, de gênero,

dentre outros, têm a oportunidade de ser problematizados na medida em que são

abordados como elementos de aprendizagem, contribuindo para o conhecimento e

respeito das histórias, identidades, memórias, crenças, convicções e valores de

diferentes grupos religiosos e não-religiosos (SANTA CATARINA, 2014, p. 146).

É de responsabilidade da escola oportunizar o acesso e a reflexão crítica dos

conhecimentos religiosos presentes na vida social dos estudantes, bem como de outras

culturas e tradições religiosas. Tais conhecimentos são legítimos para cada cultura e tradição

religiosa, manifestando-se na “multiplicidade de ritos, textos, mitos, símbolos, espaços,

linguagens, atitudes, valores e referenciais éticos que balizam e até determinam como o ser

humano se define e se posiciona no mundo” (ibidem, 2014, p. 147).

A apreensão dos conhecimentos da diversidade religiosa, através do exercício do

diálogo, do estudo, pesquisa e reflexão crítica e responsável, proporciona às crianças e jovens,

uma formação voltada à compreensão e acolhimento das distintas identidades e diferenças,

favorecendo o desenvolvimento de relações menos exploratórias, individualistas e

preconceituosas em todo percurso formativo. Desta maneira, as diferenças religiosas não se

tornam motivo de violência que provocam (re)ações de grandes proporções, como a II Guerra

Mundial, os recentes atentados terroristas e tantos outros acontecimentos e estratégias

legitimadas por governantes e multinacionais, reproduzindo assim a colonialidade que afronta

a dignidade humana. Fatos em que o Outro é simplesmente ignorado por pertencer a uma

determinada cultura, crença ou por possuir outros princípios ideológicos, corroboram com a

construção e manutenção de uma cultura que produz a diferença e as desigualdades sociais.

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13

É visível que a negação do direito ao acesso e à aprendizagem dos saberes e

conhecimentos religiosos das distintas cosmovisões, de modo acolhedor, respeitoso,

responsável e crítico, a partir de pressupostos científicos e culturais, vem desencadeando uma

espécie de analfabetismo religioso. Este analfabetismo é um pressuposto que favorece a

criação e difusão de estereótipos relacionados às pessoas de uma determinada religião,

afrontando os princípios básicos da democracia, como a liberdade de consciência,

pensamento, expressão e de crença. Está longe de ser uma defesa de que toda pessoa deva ter

uma religião. O que se propõe é que toda pessoa, seja adepta a uma religião ou não, tenha

clareza das suas escolhas no campo religioso, e possua conhecimento e respeito aos princípios

que orientam a prática religiosa ou não religiosa do Outro.

Por isso, um ER de perspectiva intercultural, apresenta-se como um desafio a si

mesmo no contexto da educação, pois, especificamente a escola existente na atualidade, foi

pensada, estruturada e é mantida, em certa medida, sob uma única lógica, a monocultural e

colonialista. Para a sua difusão, utilizou-se oficialmente da religião cristã, em detrimento a

outras crenças que constituem a rica diversidade religiosa brasileira, para estabelecer um

padrão civilizatório fundado nas características do homem branco, europeu, masculino e

cristão. A efetivação de um ER intercultural, portanto, requer que se assumam os riscos de

uma profunda transformação na forma de conceber e organizar os tempos, espaços e práticas

pedagógicas, que inadiavelmente, precisam atingir os fundamentos que orientam a formação

dos formadores.

A interculturalidade implica na criação de outras formas de relacionamento social e de

representação dos “nós” e dos “Outros”, questionando padrões culturalmente aceitos e

difundidos que historicamente impediram interações enriquecedoras entre pessoas de

diferentes identidades. A constituição das sociedades ocidentais orientou-se por princípios

homogeneizadores e padronizadores que excluíram formas diversas de interagir com o

mundo, com o cotidiano da vida e com a diversidade humana e cultural. É intransferível,

portanto, a responsabilidade de pensar a vida questionando as imagens e autoimagens que

temos em relação a nós mesmos e aos Outros. Questões estas que precisam integrar o

cotidiano da vida e os processos formativos, ampliando e potencializando as formas de

interação social, pois, de acordo com Fornet-Betancourt (2004), a interculturalidade não se

reduz a fala e análise dos sistemas sociais, das relações de poder e cosmovisões, mas se trata

de uma contínua e profunda reflexão em torno de nós mesmos, de nossa potência criadora e

destruidora, de nossos anseios e receios, enfim, de nossa condição de seres humanos

inconclusos e infinitos.

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14

Considerações finais

A concepção e a abordagem dos conhecimentos religiosos, articulados a partir da

manifestação dos fenômenos religiosos propostos na atualização da PCSC, apresentam

indicativos de um ER intercultural, pois busca acolher todos os sujeitos que integram os

processos educacionais, desde os que assumem uma identidade religiosa, bem como aqueles

que se declaram sem religião. Esta compreensão de ER, aliada às inúmeras práticas e

experiências pedagógicas já desenvolvidas na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa

Catarina, tornam este componente curricular e área de conhecimento da educação básica, um

tempo e espaço privilegiados ao considerar a diversidade como princípio formativo. É um

potencial estimulador das relações interculturais ao promover a interação e o diálogo entre

pessoas com seus saberes, conhecimentos e experiências que, ao serem problematizados e

analisados a partir de pressupostos científicos, geram ampliações de perspectivas para melhor

compreender o mundo da vida e sua cotidianidade.

Deste modo, o acesso, a apreensão e a significação dos conhecimentos presentes nos

inúmeros diálogos proporcionados pelo ER, geram transformações nos sujeitos envolvidos e

atitudes de profundo respeito e inter-reconhecimento das pessoas e suas diferenças,

especificamente as culturais e religiosas, sem proselitismo, em um Estado laico.

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