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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA PORTUGUESA
FLAVIO FELICIO BOTTON
Entre Clio e Calope: Literatura e Histria no Teatro de Miguel Franco
So Paulo 2015
2
UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA PORTUGUESA
Entre Clio e Calope:
Literatura e Histria no Teatro de Miguel Franco
Flavio Felicio Botton
Tese apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Letras. rea de Concentrao: Literatura Portuguesa
Orientadora: Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro
So Paulo 2015
3
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a
fonte.
Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
4
FOLHA DE APROVAO Nome: BOTTON, Flavio Felicio. Ttulo: Entre Clio e Calope: O Teatro Histrico de Miguel Franco Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Letras Aprovado em: Banca Examinadora Prof(a). Dr.(a) ______________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Julgamento: _______________________________________________ Assinatura: ________________________________________________
Prof(a). Dr.(a) ______________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Julgamento: _______________________________________________ Assinatura: ________________________________________________
Prof(a). Dr.(a) ______________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Julgamento: _______________________________________________ Assinatura: ________________________________________________
Prof(a). Dr.(a) ______________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Julgamento: _______________________________________________ Assinatura: ________________________________________________
Prof(a). Dr.(a) ______________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Julgamento: _______________________________________________ Assinatura: ________________________________________________
5
Aos dois sis que findaram a nvoa em mim, Fernanda e Arthur
e
memria de Miguel Franco, homem sem medo, portanto ainda vivo em ns,
dedico.
6
Aos gigantes que me carregaram nos ombros, Ennio, Terezinha e Fabiana;
Maria Joo Franco, por me deixar compartilhar da vida desse grande homem que foi seu pai;
Aos carssimos professores Carlos Alberto Vechi e Maria Luiza Guarnieri Atik,
leitores atentos, mas afetuosos, da primeira verso deste trabalho,
A Ana Cristina Verdasca Aceto, por me ajudar nos caminhos, rduos para mim, do bom vernculo,
A Jad Nidiane Pereira Silva, pela providencial ajuda nos primeiros passos em
direo tranqilidade
agradeo.
Abro meu corao minha querida orientadora, Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro, pois sem a sua ajuda este trabalho no seria realmente possvel. Por ter
renovado a minha crena na profisso e por toda a inumervel ajuda,
agradeo imensamente.
7
Mas eu no quis s fazer um drama, sim um
drama de outro drama, e ressuscitar Gil Vicente
a ver se ressuscitava o teatro Almeida Garrett
(Prefcio primeira edio de Um auto de Gil
Vicente).
Poesia e a Histria so duas asas da mesma
criatura que respira, os momentos ligados da
mente que conhece Benedetto Croce (Histria
como histria da liberdade).
8
Resumo:
Miguel Franco nasceu em Leiria em 1918, atuou no teatro amador de sua cidade,
sendo varias vezes premiado como encenador e como ator. Na dcada de 60, em
plena ditadura salazarista, Franco leva ao Teatro Avenida de Lisboa, por meio da
consagrada Companhia Companhia Rey Colao Robles Monteiro sua mais
importante peca de teatro histrico, O motim, que retoma os eventos ocorridos aps
o levante do povo da cidade do Porto contra a Companhia dos Vinhos do Alto Douro,
criada pelo ministro de d. Jos, o Marques de Pombal. A peca, aps poucos dias em
cartaz, brutalmente retirada de cena pelo aparelho de represso do regime
salazarista. Este trabalho tem por objetivo analisar a pea de Franco, como exemplo
do subgnero dramtico do teatro histrico, procurando compreender como e por
que se do as relaes que se estabelecem entre o tempo da ao da pea (sculo
XVIII) e o tempo de sua escrita (segunda metade do sculo XX).
Palavras-chave: Teatro (literatura) (Histria e Crtica) Portugal; teatro histrico;
Miguel Franco; O Motim
Abstract:
Miguel Franco was born in Leiria in 1918, acted in amateur theater of his city, and
several times was awarded as director and as an actor. In the 60s, during the
Salazar dictatorship, Franco leads to Teatro Avenida de Lisboa, with the consecrated
Company Company Rey Colaco - Robles Monteiro his most important play of
historical theater, O Motim, which incorporates the events that occurred after the
uprising of the people of Porto against the Companhia dos Vinhos do Alto Douro,
created by d. Jos minister, Marques de Pombal. The play, after only a few days on
stage, was brutally removed from the scene by the Salazar regime repression
apparatus. This paper aims at examining the Franco play as an example of the
dramatic subgenre of historical theater, trying to studying how and why occur the
relations established between the time of action of the play (XVIII century) and the
time of its writing (second half of the twentieth century).
Keywords: Theatre (literature) (History and Criticism) Portugal; historic theater;
Miguel Franco; O Motim
9
Sumrio
INTRODUO .......................................................................................................... 10
CAPTULO 1 TEATRO HISTRICO: QUANDO A HISTRIA GERMINA A FICO .................................................................................................................................. 14
1.1 As relaes entre histria e literatura ................................................................ 14
1.2 A histria da historiografia ................................................................................. 19
1.3 O teatro histrico ............................................................................................... 57
1.3.1 Esboo histrico: os primrdios do teatro histrico ................................... 58 1.3.2 A tradio do teatro histrico em Portugal ................................................ 61 1.3.3 O teatro histrico: tentativas de definio e discusses sobre a sua especificidade. ................................................................................................... 69 1.3.4 Tipologias do teatro histrico .................................................................... 72 1.3.5 Funes primordiais .................................................................................. 81
CAPTULO 2 UM HOMEM SEM MEDO NO MORRE: MIGUEL FRANCO, O ESTADO NOVO PORTUGUS, A CENSURA E O TEATRO. ................................. 83
2.1 Prlogo .............................................................................................................. 83
2.2 Ato Primeiro: Teatro e Cultura ........................................................................... 84
2.3 Ato Segundo: Teatro de anlise crtica e social ................................................ 96
2.4 Ato Terceiro: Portugal ps-salazar .................................................................. 116
2.5 Eplogo ............................................................................................................ 128
CAPTULO 3 O TEATRO HISTRICO DE MIGUEL FRANCO: O MOTIM ............ 131
III.1 O motim histrico: a histria como a contam os historiadores ....................... 132
III. 2 O motim, segundo o teatro de Miguel Franco ............................................... 137
III. 2. 1 O entrecho: da vida plena e da morte; da represso e da resistncia . 139 III. 2.2 Personagens: um heri sem medo, e legtimo, no morre .................... 145 III. 2.3 Cronotopo: espao e tempo um ciclo sagrado de renovao ............ 155
III. 3 Outras fontes ................................................................................................. 168
III. 3 .1 Uma fonte histrica: Recordaes, de Jacomme Ratton e o passado como mote ....................................................................................................... 169 III. 3. 2 Uma Fonte literria: Um Motim h cem anos, de Arnaldo Gama, o liberalismo em pauta no sculo XVII? .............................................................. 172
III. 4 Represso e resistncia: relaes entre tempo da escrita e tempo da ao 182
CONCLUSO ......................................................................................................... 189
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 196
Miguel Franco- Breve Cronologia .......................................................................... 207
Imagens..................................................................................................................209
10
INTRODUO
Em 6 de fevereiro de 1965, durante o regime ditatorial de Oliveira Salazar e
com a presena de importantes nomes do governo, inclusive o prprio presidente
Amrico Toms, sobe aos palcos de Lisboa O Motim, de Miguel Franco.
A pea, cujas cenas de interrogatrio, tortura e opresso causam
constrangimentos aos governantes presentes, , alguns dias depois, brutalmente
retirada de cartaz.
No mesmo ms, uma carta endereada ao ministro da educao nacional
pede o fim das restries que pesam sobre o teatro portugus. A carta leva mais
de uma centena de assinaturas de polticos, intelectuais, escritores, como lvaro
Salema, Alexandre Pinheiro Torres, Joo Gaspar Simes, Sophia Melo Breyner
Andresen, entre tantos outros.
A proibio da pea desperta um grande movimento de resistncia ditadura
e, em especial, de reao s dificuldades da expresso artstica sob o regime
opressivo de Oliveira Salazar.
O teatro histrico de Miguel Franco ganha destaque como instrumento de
combate ditadura salazarista, muito embora a pea trate de um episdio da
histria de Portugal do sculo XVIII.
Esse fato, a brusca retirada de cartaz de uma pea anteriormente aprovada
pelos rgos da censura, nos leva a especular sobre os motivos de to brutal
reao. Em outras palavras, o que naquele distante episdio histrico teria ofendido
as autoridades, levando-as a tomar medidas drsticas e, sem nenhum disfarce,
enviar a polcia poltica para rasgar os cartazes da pea e fechar as bilheterias do
teatro?
Sendo assim, dois pontos correlacionados motivam o trajeto que este trabalho
escolheu trilhar.
O primeiro deles, objetivo em termos gerais, seria tentar esclarecer certas
caractersticas do teatro histrico, com vistas compreenso deste subgnero
dramtico. Intenta-se esclarecer por que o uso de episdios histricos, mais ou
menos distantes, causa, em quase todos os casos, uma associao com o presente.
Procuramos ento expor os motivos que levam a uma identificao entre o tempo da
ao da pea e o tempo de sua escrita.
11
O segundo ponto, em carter especfico, objetiva o estudo da pea O Motim,
obra histrica de Miguel Franco, procurando verificar se ela realiza esse paralelismo
entre os dois tempos, o da ao e o da escrita. Mas, ainda mais importante e muito
mais significativo, busca-se investigar com qual evento, de seu prprio tempo, em
particular, a pea trava relaes e o que isso provoca.
A perquirio destes dois pontos levou o trabalho a se dividir em trs
captulos, sendo que o primeiro deles ocupa-se das questes relacionadas ao teatro
histrico e os outros dois voltam-se ao teatro de Miguel Franco.
O primeiro captulo tem, ento, dois objetivos, ambos ligados ao estudo do
teatro histrico.
Primeiro, dar base ideia de que a histria sempre se refere ao presente do
historiador e, desse modo, o teatro histrico caminha da mesma forma. Em outras
palavras, mesmo se referindo ao passado, no perdem, nem a histria nem o teatro
histrico, o seu vnculo com o presente. Esse objetivo ser alcanado por meio do
estudo da trajetria da prpria historiografia, o que nos mostrar as caractersticas
da Histria que so herdadas pelo teatro histrico. Ocupa-se igualmente das
relaes da literatura com a histria e procura-se propor caractersticas para a arte
que se irmana com a histria. Identificamos, portanto, o que caracterstico da
narrativa histrica que acaba por contaminar a criao literria que se baseia em
episdio ou personagem histrico. Esse estudo justifica-se, pois necessrio dar
embasamento terico e uma resposta slida afirmao de que a arte histrica
estabelece vnculos no s com o passado que acaba de retratar, mas tambm com
o seu presente. Essa conexo com os dois tempos inevitvel justamente devido
s caractersticas da narrativa histrica que a arte histrica carrega, como
desejamos mostrar. Segue-se aqui ainda a premissa de que um bom trabalho deve
passar pela definio dos termos dos quais se utiliza, para evitar equvocos e
desentendimentos em torno de palavras que tomam, ao mesmo tempo, sentidos
tericos e sentidos correntes de necessria separao.
O captulo trata igualmente de assuntos referentes ao teatro histrico com
vistas a auxiliar na anlise da obra histrica de Miguel Franco. Aps um introdutrio
esboo cronolgico do subgnero do teatro histrico, apresenta-se uma srie de
tipologias propostas por diversos autores e procura-se alinhavar as possibilidades de
funes que podem ser atribudas s obras artsticas histricas, em especial ao
12
teatro. Essas tipologias sero utilizadas no terceiro captulo como auxlio na anlise
das peas de Miguel Franco.
Por fim, traado ainda um panorama da tradio portuguesa do teatro
histrico desde os primrdios at a gerao de 1960, a de Miguel Franco, passando
pelo momento crucial do subgnero marcado pela reforma teatral de Almeida
Garrett. Esse panorama justifica-se no sentido de localizar o nosso autor dentro de
uma tradio slida em terras portuguesas. ainda oportuna a viso diacrnica
sobre o subgnero histrico, na medida em que as propostas para as leituras da
obra histrica de Miguel Franco se identificam com outras j consolidadas pela
tradio, como o caso do citado Garrett, mas tambm de Jos Anselmo Correia
Henriques e dos mais recentes, Sttau Monteiro e Cardoso Pires.
Em um segundo captulo, apresentamos aspectos relevantes da trajetria de
vida do autor, assim como comentrios que visam a delinear a sua obra, o que se
justifica por se tratar de autor pouco estudado, no s no Brasil, mas tambm em
Portugal.
So aqui reunidas informaes histricas de apresentaes de suas peas,
da sua atuao como encenador, incentivador cultural, entusiasta do teatro amador
e escritor. Da mesma maneira, so esboados, na medida do possvel, seus
interesses polticos e sua formao cultural. So tecidos comentrios sobre as obras
no histricas do autor. Em certo termo, o trabalho de Franco contextualizado em
relao ao seu tempo, passando pelo salazarismo e pelo marcelismo1, destacando o
papel da censura nesse perodo. importante apontar, ainda que rapidamente, a
conjuntura do teatro dos anos 60, em que se encaixa o corpus deste trabalho.
No terceiro captulo analisada a mais importante pea histrica de Miguel
Franco, principal objetivo deste trabalho, alm de suas fontes literrias e de suas
fontes histricas, estabelecendo quais tipos de teatro histrico so utilizados, assim
como se procura esclarecer sobre as funes almejadas pelo autor. Fazendo uso
das tipologias apresentadas no captulo anterior, das caractersticas da narrativa
histrica, assim como da anlise das peas, pretende-se apontar pontos de vista
lanados por Franco sobre o passado, mas tambm, e principalmente, sobre o seu
prprio tempo, de represso e censura.
1 Utiliza-se aqui salazarismo e marcelismo para designar os respectivos perodos de governo de Oliveira Salazar (1926, ainda como mago das finanas at 1968) e de Marcelo Caetano (entre 1968 e 1974), conforme nomenclatura de MATTOSO (1998).
13
O trabalho alicera-se fundamentalmente no mbito da anlise intrnseca e
extrnseca do texto literrio. Alm disso, busca-se o auxlio da Teoria da Histria no
que diz respeito aos recursos, temas, problemas e objetivos da narrativa que se
baseia em episdio histrico.
Porm, sem dvida alguma, o texto literrio ponto de partida e de chegada
desta tese. Destarte, o gnero e subgnero eleitos por Miguel Franco determinaram
o estudo realizado no primeiro captulo, da mesma maneira que se procurou delinear
o autor e seu contexto histrico no segundo para enfim perceber a importncia de
seu texto no terceiro.
14
CAPTULO 1 TEATRO HISTRICO: QUANDO A HISTRIA GERMINA A FICO
Este captulo ocupa-se das relaes da literatura com a histria e procura
propor caractersticas para a arte que se irmana com a histria. Identificamos,
portanto, o que caracterstico da narrativa histrica que acaba por contaminar a
criao literria que se baseia em episdio ou personagem histrico.
Pretende-se com isso, ainda que de forma modesta, deixar aqui uma
contribuio para o estudo do teatro histrico como subgnero extremamente
profcuo na dramaturgia portuguesa e mundial.
Por conta disso, aps um esboo cronolgico do subgnero do teatro
histrico, aglutina-se uma srie de tipologias propostas por diversos autores e
procura-se alinhavar as possibilidades de funo que podem ser atribudas s obras
artsticas histricas, em especial ao teatro. traado ainda um panorama da
tradio portuguesa do teatro histrico desde os primrdios at a gerao de 1960, a
de Franco, passando pelo momento crucial do subgnero, marcado pela reforma
teatral de Almeida Garrett. As tipologias e outros estudos aqui apresentados sobre o
teatro histrico sero ferramentas utilizadas na anlise da obra do autor.
Esse estudo inicial justifica-se ainda, por ser necessrio dar embasamento
terico e uma resposta slida afirmao de que a arte histrica estabelece
vnculos no s com o passado que acaba de retratar, mas tambm com o seu
presente. Essa conexo com os dois tempos inevitvel justamente devido s
caractersticas da narrativa histrica que a arte histrica carrega, como desejamos
mostrar.
1.1 As relaes entre histria e literatura
Parece bastante difcil iniciar uma discusso sobre as relaes entre histria e
literatura sem nos remeter clebre e incansavelmente repetida diferenciao feita
por Aristteles.
Essa distino talvez nunca tenha sido to necessria quanto na
modernidade, que se entretm em quebrar todos os paradigmas possveis. Dizia o
filsofo que a histria relata o que aconteceu, enquanto a literatura conta o que
poderia ter acontecido. Assim, a primeira dedicar-se-ia ao particular e a segunda ao
15
universal, o que conferiria literatura um carter mais filosfico (ARISTTELES,
Captulo IX)2.
Nascidos quase como um ser indistinto, a separao desses dois campos das
atividades humanas foi bastante tardia, s se efetivando por volta do sculo XVIII,
mas, como se percebe, a preocupao em diferenci-los aparece desde cedo.
A procura de definio de fronteiras entre as duas reas traz obstculos
construdos pela prpria literatura grega, que combinava indiscriminadamente mito e
histria, mas os embaraos seguem por todo o trabalho de todos os historiadores ou
tericos da literatura.
Se pensarmos a histria como uma atividade que, alm de outras finalidades,
intenta reconstruir um passado, lidaremos com algumas etapas, no
necessariamente nessa ordem, tais como escolha de uma poca e/ou de uma
personalidade, recolha de documentos e, havendo possibilidade, de depoimentos
sobre o tema. evidente que, por mais material que se ponha disposio de um
historiador, uma parte da histria ficou retida inexoravelmente no passado e no
poder, de maneira alguma, ser resgatada. Esses entremeios, que se esquivam ao
registro, precisam, ainda assim, de um processo de reconstruo para dar um
sentimento de totalidade histria. Nesse momento, preciso preencher os vazios
judiciosamente, procurando-se relatar como seria a forma mais provvel de eles
terem realmente acontecido. Sem perceber, entrou-se no terreno do que poderia ter
acontecido, no terreno da literatura. Muito embora no seja mais to difcil encontrar
quem pensa dessa maneira, no se quer dizer com isso que a histria seja outra
forma de literatura, mas h que se reconhecer que as fronteiras no so to claras
quanto pareciam ao filsofo.
Da mesma maneira, mais e mais historiadores tm procurado a literatura
como forma privilegiada de acesso ao imaginrio de uma sociedade, confundindo os
permetros divisores tambm pelo outro lado (JATAHY, 2006).
Assim, se nos conceitos aparentemente absolutos de literatura e histria no
estamos em terreno seguro, as fronteiras desenhadas no poderiam ser mais frgeis
ao tratarmos de algo que se move em campo aparentemente hbrido, como a
literatura ou o teatro histrico, que ser estudado mais adiante.
2 Pelo que atrs fica dito, evidente que no compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possvel (...) Por tal motivo a poesia mais filosfica e de carter mais elevado que a histria, porque a poesia permanece no universal e a histria estuda apenas o particular (ARISTTELES, sem data, p. 252).
16
Como se disse, a preocupao em separar literatura e histria data do sculo
XVIII, momento em que a prpria palavra literatura passa a fazer referncia a um
mundo imaginrio e a histria assume caractersticas racionalistas. Apesar disso, o
processo de autonomizao longo e pode ser identificado desde as primeiras
investigaes histricas impetradas por Herdoto e at mesmo na Idade Mdia, em
que as novas formas literrias, como a novela de cavalaria, por exemplo, tornam-se
mais conscientes do carter figurativo da arte. Simultaneamente, a histria principia
a se reconhecer como crnica do passado (GOSSMAN, 1990).
J no sculo XIX, ambos os conceitos se aproximam para, logo em seguida,
voltarem a se distanciar. O Romantismo viu a histria como experincia pessoal e
assistiu ao fortalecimento do romance histrico. Porm, com o surgimento do
positivismo e com o desenvolvimento do cientificismo, ocorre algo como um veto ao
ficcional. Interessa lembrar que a literatura no passou imune pela febre positivista e
muitos escritores sentiram forte necessidade de documentar os romances ou de
coloc-los a servio das cincias, como o conhecido caso do Naturalismo.
Uma oposio bastante sensvel ir se estabelecer no sculo XX, momento
em que a histria apela para as estatsticas e procura uma forte exatido
quantitativa. J a arte literria dirige-se, grosso modo, para as descries
psicolgicas, para o monlogo interior, alm da criao da literatura que se vai
rotular de metafico historiogrfica, segundo as formulaes de Linda Hutcheon
(1988).
simples identificar o tom geral das discusses sobre as relaes entre
literatura e histria: comum que se argumente e se reflita sobre as duas reas com
o intuito de estabelecer uma hierarquia entre elas, atribuindo valor superior a uma ou
a outra. Exemplo importante de caso em que a literatura afirmou ter prioridade sobre
a histria seria o do estruturalismo. Acontece o mesmo com historiadores, mas o
mais discutido atualmente um autor que fez o caminho inverso, priorizando o
literrio, Hayden White, que voltaremos a mencionar mais adiante (SCHULZ, 1983).
Alm disso, a histria tratada como elemento necessrio para a
contextualizao do discurso literrio e, apenas raramente, emprega-se a literatura
como fonte alternativa para a construo do conhecimento histrico.
Segundo Pesavento (1998), h uma forma diferente e bastante produtiva de
se encarar as relaes entre literatura e histria, que seria a retomada do conceito
de representao. Essa ideia, que remonta filosofia de Durkheim, seria algo como
17
a forma pela qual, atravs dos tempos e em diferentes localidades, o homem teria
representado a si mesmo.
A representao a presentificao de algo ausente, que dado a ver por
uma imagem mental ou visual que, por sua vez, suporta uma imagem discursiva
(PESAVENTO, 1998, p. 19), ou seja, a ideia de que o homem de uma determinada
poca tem dele mesmo e de sua sociedade atualizada por seu discurso. E, em
muitos casos, o que o homem percebe de si e de sua sociedade to ou mais
importante quanto o que eles realmente so.
A noo que est no fundamento da representao o imaginrio, cuja
definio acaba por convergir com a prpria representao: o imaginrio sempre
um sistema de representaes sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade,
sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente (PESAVENTO, 2006).
Assim, como se disse, a literatura seria uma fonte privilegiada de acesso a esse
mundo do imaginrio.
Mesmo se trilharmos por outros caminhos, podemos admitir que tanto histria
quanto literatura so narrativas explicativas do real, embora partam de pressupostos
distintos. Ambas possuem o real como referente, mas podem, alm de explic-lo,
ultrapass-lo, neg-lo, ou apenas confirm-lo. Assemelham-se as duas reas
tambm no que diz respeito ao processo de composio, pois, se o romance possui
um narrador, a histria tambm tem uma figura com a mesma funo:
o historiador que tem tambm tarefas narrativas a cumprir: ele rene os dados, seleciona, estabelece conexes e cruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta solues para decifrar a intriga montada e se vale das estratgias de retrica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma verso o mais possvel aproximada do real acontecido (PESAVENTO, 2006).
Porm, nem s de semelhanas alimenta-se essa relao. No se pode dizer
que o historiador crie personagens ou eventos, sem nenhuma espcie de registro.
Da mesma maneira, por mais que se tenha que preencher os vazios deixados
pelos documentos, como apontamos acima, o trabalho do historiador sempre
controlado por certos procedimentos. preciso que tudo esteja disponvel para a
comparao e para o cruzamento de dados bibliogrficos e fontes utilizadas. Alm
disso, faz-se necessrio o uso de certos procedimentos retricos e argumentativos
que colaborem para o processo de convencimento do leitor (PESAVENTO, 2006).
18
As noes de veracidade e de verossimilhana so tambm ligadas de forma
sensvel a cada uma das reas. A histria se conecta inevitavelmente ao conceito de
verdade, ainda que todos os historiadores, como veremos mais adiante, admitam a
subjetividade na composio do relato histrico. Por outro lado, a literatura no tem
obrigao de provar nada, ainda mais se nos aproximarmos da literatura nossa
contempornea que procura, cada vez mais, confundir as fronteiras entre real e
imaginrio.
Literatura e histria distanciam-se tambm, na opinio de Bastos, quanto ao
critrio de interioridade e exterioridade: o historiador trata das aes e do carter
dos homens apenas at onde lhe possvel deduzi-lo de suas aes (...) da que a
funo do romancista [que compe o romance histrico] revelar essa vida oculta
na sua fonte (BASTOS, 2007, p. 30).
Seria possvel dissertar longamente sobre essas relaes entre literatura e
histria. Porm, podemos fazer um caminho mais proveitoso se admitirmos, como
afirma Maestri, que:
Apesar do desenvolvimento e especializao milenares, histria e literatura possuem caractersticas comuns que denotam a referncia a uma existncia comum. Ambas registram, expressam e explicam as experincias humanas, cada uma na sua linguagem e no seu programa (MAESTRI, 2002, p. 40).
Da mesma maneira, tambm Leenhardt acredita que histria e literatura so
dois caminhos diferentes para se chegar ao mesmo lugar (LEENHARDT, 1998, p.
42). Benedetto Croce da mesma forma afirma que a poesia e a histria so duas
asas da mesma criatura que respira, os momentos ligados da mente que conhece
(CROCE, 2006, p. 421).
Assim, se histria e literatura nasceram juntas e se, como tantos afirmam, so
irms, possvel estudar os conceitos de histria procurando neles o que so
caractersticas comuns entre as reas.
Ainda mais produtivo seria nos remetermos ao objeto desse trabalho, o teatro
histrico. Ento, admite-se com facilidade que o teatro histrico arte. Se assim ,
ele carrega, em sua composio e em seu resultado final, todas as prerrogativas do
fazer artstico. Por outro lado, se o teatro histrico, ou seja, se ele em parte
19
histria, quais seriam os elementos da narrativa histrica que ajudam a modelar a
sua forma?
Para responder a essa pergunta, preciso trilhar os caminhos das escolas
historiogrficas e entender como a histria foi entendida em seu milenar trajeto e at
onde ela chegou. Valemo-nos aqui de analisar o intradiscurso do discurso
historiogrfico, ou o o conjunto dos percursos semnticos, temticos ou figurativos,
presentes em seu interior (MOREIRA, 1999).
1.2 A histria da historiografia
Uma caracterstica marcante das cincias humanas a sua tendncia
historicidade, entendida aqui como a convergncia que todas elas acabam por
realizar quando se trata de compreender os seus prprios processos. Em outras
palavras, os procedimentos de teorizao sobre qualquer uma das cincias em
pauta passam sempre pelo levantamento diacrnico de suas disposies. Parece
mesmo indispensvel, por exemplo, pensar o conceito de literatura ao longo de sua
histria para que se possa chegar, com mais propriedade, ao nosso entendimento
contemporneo sobre a arte literria3. Em todas as cincias humanas, o
procedimento de debruar-se sobre si mesmo , e precisa ser, prtica comum para
que a reflexo leve a bom termo o trabalho.
O mesmo acontece com a histria, com a historiografia e com a teoria da
histria. Para que possamos entender satisfatoriamente a histria e como hoje ela
se configura, assim como os desafios que ela enfrenta e questionamentos que deve
responder, precisamos retomar as suas origens e parte de sua evoluo.
Assim, com a inteno de compreender algumas caractersticas da histria,
faremos um levantamento de momentos cruciais para o desenvolvimento da cincia
histrica, desde a sua formao, chegando at nomes mais atuais e bastante
pertinentes s discusses que esse trabalho deseja levantar. Dessa maneira, por
meio de uma leitura diacrnica da historiografia, chegaremos a uma srie de
caractersticas que sero possveis de divisar em outros gneros de discurso
baseados em fatos histricos, obviamente, como o teatro histrico.
3 Como fazem, por exemplo, GOMES e VECHI (1991), passando pela viso diacrnica do conceito de literatura antes de propor uma viso sincrnica do mesmo conceito.
20
Vale, antes de comear, a ressalva de que os termos enumerados acima
(histria, historiografia e teoria da histria) no so sinnimos e se estendem por
suas prprias especificidades, ainda que muitas vezes se entrecruzem. No caso
desse trabalho, tendo em vista os seus objetivos, procuraremos no carregar nas
distines dos campos, mas em suas abrangncias comuns. Vale-se aqui de Croce
(1955) que acredita que essa histria , no fundo, a histria do pensamento humano
e no necessrio, nem to pouco possvel, distinguir exatamente o que h de
teoria e o que h de filosofia nessa evoluo.
Dando incio jornada, vemos que os primeiros passos da histria so dados,
como no poderia deixar de ser, na Grcia e podemos encontrar as suas
verdadeiras razes no mito, planalto aparentemente oposto s plancies histricas. A
oposio inicial apenas superficial, pois, se a histria trabalha com explicaes
para o mundo no tempo dos homens, o mito procura cumprir a mesma tarefa,
tratando, no entanto, de narrativas de origens no tempo imemorial. Em seu sentido
mais limitado, o mito se relaciona com o sagrado, com a essncia do mundo
religioso, mas foi a primeira forma encontrada para se explicar a origem e a vida dos
homens.
As explicaes mticas colocam sempre o homem como objeto passivo da
ao dos deuses, os grandes responsveis pela criao de todas as coisas. O maior
exemplo de mito cosmognico em que se v a passividade humana a Teogonia,
de Hesodo, mas tambm na Ilada, de Homero, as grandes aes so sempre
praticadas pelos deuses, estabelecendo uma verdadeira teomaquia, em que os
homens so meros fantoches. Os prprios narradores dos mitos, normalmente,
fazem, nas invocaes de seus textos, referncias s musas como verdadeiras
responsveis pelo canto a ser emitido, como se v no primeiro verso da Ilada
(Canta-me a clera deusa funesta de Aquiles Plida) ou da Odisseia (Canta,
Musa, o varo que astucioso rasa lion santa).
Assim, da mesma maneira que a histria, o mito vai procurar sanar uma
carncia de ordem intelectual que precisa ser resolvida para o bom andamento da
vida social. Sem a resoluo de determinado problema, a carncia embaraa o
homem que, inatamente, necessita de respostas para continuar em frente.
A transio entre mito e histria mais suave do que se possa imaginar
primeira vista, pois, nos mitos, j esto includas as narrativas de heris e
21
antepassados. Segundo Ricouer (2012), essas histrias, mais propriamente
definidas como narrativas lendrias, so a transio do mito em direo histria.
Porm, mesmo com o surgimento dos relatos feitos por aqueles que so
considerados os primeiros historiadores, o mito no estar de todo fora da ordem do
dia:
(...) A histria nem sempre toma necessariamente o lugar do mito, mas pode subsistir a seu lado no mbito da mesma cultura, junto a outros tipos de narrao: ento a questo do relacionamento entre mito e historiografia deve ser feita direcionando a classificao dos diferentes tipos de narrao produzidos por uma determinada sociedade num dado momento histrico (...) (RICOUER, 2012).
A presena do mito perceptvel ainda nas narrativas de historiadores como
Herdoto e Tucdides. Vejamos o primeiro, nascido por volta do ano 485 a.C., no
territrio em que hoje se situa a Turquia.
Como se disse, a histria aparece primeiramente na Grcia, ocasio em que
Herdoto de Halicarnasso utiliza, pela primeira vez, a palavra histria no sentido de
investigao.
As Histrias de Herdoto so divididas em nove livros, sendo que os seis
primeiros descrevem a ascenso da Prsia at a sua derrota na famosa Batalha de
Maratona, que causa um grande revs no avano imperialista. Os outro trs livros
tratam da tentativa frustrada de vingana por essa derrota e da vitria definitiva dos
gregos. Esse confronto, em que os gregos resistem ao expansionismo persa,
garantindo a sua independncia, ser fundamental, pois, conforme Borges, vai
permitir o seu [grego] grande desenvolvimento posterior (1993, p. 19). importante
ressaltar que a escolha das guerras mdicas no aleatria, pois se trata de um
dado histrico importante para explicar a Grcia da poca de Herdoto. Como se
disse, a narrativa realizada para sanar uma carncia intelectual contempornea
do historiador.
Interessa reler o pargrafo inicial do Promio de Herdoto, considerado por
muitos como o pai da histria, pois nesse ponto percebemos que, naquela em que
seria a proposio do texto do autor, no se fazem referncias s musas, como era
comum para a pica contempornea, limitando, pelo menos a princpio, os fatos
narrados como sendo de responsabilidade dos homens e no dos deuses:
22
Esta a exposio das investigaes de Herdoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens se no desvaneam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos helenos quer pelos brbaros; e sobretudo a razo por que entraram em guerra uns contra os outros (HERDOTO, 1994, p. 53).
Como se pode ver, so trs os objetivos da narrativa de Herdoto. Os dois
primeiros esto relacionados com a conservao da memria para que os feitos dos
homens no deixem de dar-lhes a merecida glria, algo importante para o
pensamento grego. Mas o objetivo mais importante, que se destaca na traduo
portuguesa pelo uso do advrbio sobretudo, investigar as causas do conflito,
procurando as razes que levaram os povos guerra. Ainda como aponta Guterres:
o ato de investigar se torna central em sua obra [de Herdoto]; a investigao que garante ao autor o acesso ao que ocorreu no passado ou, ao menos, o que os informantes contam acerca do que ocorreu. O que vemos uma clara tentativa de distanciamento por parte do autor, que determina seu espao de atuao e o carter de sua investigao (GUTERRES, 2010, p. 164).
Pela primeira vez, ento, uma narrativa baseada em documentos,
observaes e depoimentos vai procurar estabelecer relaes de causa e efeito
entre eventos para procurar conferir-lhes um novo sentido, em que a causalidade
seria capaz de revelar como uma determinada situao levaria inevitavelmente a
uma outra.
O segundo historiador citado, Tucdides, que viveu em Atenas,
aproximadamente entre os anos de 460 e 400 a.C., ir procurar realizar um trabalho
semelhante ao de Herdoto. Da mesma maneira que o seu antecessor, Tucdides
via um conflito blico como um dos mais importantes momentos para a formao da
sociedade grega. As narrativas histricas do ateniense concentram-se nas guerras
do Peloponeso, os conflitos entre Esparta e Atenas, dos quais o historiador foi
contemporneo e participante.
A obra A Histria da Guerra do Peloponeso composta de oito livros, com
muitos subcaptulos, que cobrem aproximadamente cinco perodos. So resumidas
as etapas formativas da Grcia e os antecedentes do conflito, a primeira parte do
23
conflito, a guerra na Siclia e a batalha naval de Cinossema. Tucdides, porm, no
chegou a concluir a narrao por conta de sua morte prematura.
So vrias as aproximaes que podem ser feitas entre Tucdides e
Herdoto. perceptvel que ambos procuram estabelecer um vnculo forte com o
que acreditam ser a verdade da narrativa. Essa tentativa faz com que os dois se
refiram a Homero com descrena e, s vezes, com desdm. Herdoto, ao comentar
sobre os trajetos martimos de Esparta a Troia, aproveita para referir-se aos
exageros homricos por mais de uma vez, mas, ao fim, sugere que se abandonem
as citaes do aedo, pois no poeta quem no sabe fingir (Livro II, CXVIII). A
srie de consideraes feitas pelo historiador sobre os dados do poeta nos mostra o
valor que a narrativa pica alcanava sobre os leitores das narrativas de Herdoto.
As relaes entre as narrativas homricas e herodotianas chamaram a
ateno de muitos e Luiz da Costa Lima aponta-as em seu aspecto mais intrigante.
Muito embora, como se disse acima, as musas no estejam presentes:
A sentena de abertura de Herdoto com sua declarao de desejo de no deixar que os feitos dos homens se tornem sem fama, akle, lembra a frase homrica [...] kla andron, os gloriosos feitos dos homens na Ilada (LIMA, 2006, p. 46).
Alis, as relaes que se travam aqui no so apenas da histria com a
pica, mas tambm com a dramtica, pois no episdio descrito pelo historiador, em
que Creso pergunta a Solon por que no o considera entre os mais felizes dos
homens, a resposta do segundo, A vida do homem, Creso, uma srie de
incertezas (Livro I, XXXII), remete inevitavelmente mesma situao vivida pela
protagonista de Hcuba, contada pelo contemporneo de Herdoto, o dramaturgo
Eurpedes:
Eu era uma rainha e hoje estou aqui, Na condio de escrava; l em Troia Eu era me feliz de numerosos filhos E agora eis-me aqui, uma anci sem eles. (...) Em meio a tantos males que me afligem hoje Sinto vergonha quando te vejo por perto. Diante de quem j me viu muito feliz, Leva-me o meu pudor a sentir claramente A miservel condio a que cheguei
24
(EURPEDES, 1992, p. 193 e 199)
As relaes tempestuosas com Homero aparecem tambm em Tucdides.
Segundo a observao do mesmo autor:
No mesmo livro em que pe em dvida que se possa dar algum crdito a Homero (II, 10), imediatamente recorre a dados recolhidos da Ilada: na frota chefiada por Agammnon, as naus vindas da Becia eram tripuladas por 120 homens cada e as comandadas por Filoctetes traziam cinquenta (II, 10) (LIMA, 2006, p. 105).
Ambos os historiadores esto, tambm, preocupados com o que seria uma
questo importante para a sociedade de seu prprio momento histrico, o que faz
com que eles se distanciem das explicaes atemporais. Isso nos leva a concluir
que as narraes mticas, ainda que no sejam abandonadas por nenhum deles,
pois a presena dos deuses ainda se faz sentir, colocam-se em segundo plano.
Apesar da constante presena da vontade divina nas narrativas de Herdoto e de
Tucdides, ambos tentam no atribuir as explicaes a causas sobre-humanas,
procurando examinar os costumes, os interesses econmicos, os climas e suas
aes (BORGES, 1993). A importncia da Guerra do Peloponeso destacada pelo
prprio Tucdides no Livro I: ela seria grande e mais importante que todas as
anteriores (Livro I, 1).
Cabe citar outro excerto da Histria da Guerra do Peloponeso, pois l
veremos, concentrados, elementos de separao entre histria, mito e poesia. Da
mesma forma, j so perceptveis os problemas dos testemunhos sobre eventos
histricos, questes relacionadas funo didtica da histria e a subjetividade dos
depoentes e, por consequncia, dos prprios autores das narrativas histricas:
Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relat-los, no como apurados atravs de algum informante casual nem como me parecia provvel, mas somente aps investigar cada detalhe com o maior rigor possvel (...). O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vrios eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memria. Pode acontecer que a ausncia do fabuloso em minha narrativa parea menos agradvel ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara
25
tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltaro a ocorrer em circunstncias idnticas ou semelhantes em consequncia de seu contedo humano, julgar a minha histria til e isto me bastar. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimnio sempre til, e no uma composio a ser ouvida apenas no momento da competio por algum prmio (TUCDIDES, 1987, p. 14. Grifos nossos).
Como ser patente em todos os casos, as preferncias pessoais do narrador
no sero deixadas de lado e, apesar de ser considerado como mais racionalista e
metdico que Herdoto, muitas das passagens de Tucdides refletem seus
interesses. Recorremos aqui a Hornblower (apud LIMA, 2006) para sintetizar o dado
de que as simpatias do narrador afetam a narrativa:
as coisas que ele omite so, com frequncia, to cuidadosamente escolhidas como aquelas sobre as quais escolhe escrever. (...) Tucdides foi injusto em negar-lhe (a Clon) a palavra. A chave est na malcia pessoal de Tucdides contra Clon [que] foi ocultado [no Livro I] e se lhe negou a palavra [Livro IV]. Com Hermcrates de Siracusa, a quem Tucdides admirava, [...] sucedeu o oposto: Tucdides apresentou-o corajosamente, fazendo-lhe proferir um discurso poderoso no Livro IV, dez anos antes de sua proeminncia efetiva (...) (HORNBLOWER apud LIMA, 2006, p. 80).
Apesar de muitos afirmarem que nem Herdoto nem Tucdides deixaram
herdeiros diretos, possvel encontrar, pelo menos, o esprito investigativo e a
crena em uma verdade documental que os caracterizavam em outro historiador da
Antiguidade Clssica. Trata-se de Polbio (203 a.C. 120 a.C.) nobre grego que
chegou a alar importante carreira poltica, mas que, por conta de reveses nas
negociaes pela defesa da independncia da Liga da Aqueia, foi feito refm dos
romanos. Em Roma, dada a sua vasta cultura, foi preceptor daquele que seria, no
futuro, um dos maiores generais romanos, Cipio Africano, responsvel pela derrota
de Anbal de Cartago.
As Histrias de Polbio tratavam do mundo Mediterrneo no perodo
imediatamente anterior a ele. Alm disso, em alguns casos, temos seus relatos
presenciais de fatos que, de outra forma, teriam sido relegados para sempre ao
esquecimento, como acontece com elementos da cultura cartaginense descritos em
suas narrativas.
26
Tido como historiador rigoroso na anlise dos fatos e na busca de
testemunhos, faz uso de procedimentos j empregados por Herdoto e por
Tucdides. Apesar de ter influenciado grandes nomes de Roma, como Tito Lvio e
Ccero, seu estilo frequentemente descrito como enfadonho e carregado
(COLLINGWOOD, 1994).
Porm, com Polbio, a histria adquire uma caracterstica peculiar dos
romanos, o pragmatismo. Ele acredita que a histria deve ser estudada, no apenas
por ser uma busca da verdade, mas por ser uma escola e um campo de instruo
para a vida pblica:
Para os romanos, a histria significa continuidade: a herana, do passado, de instituies escrupulosamente preservadas na forma em que eram recebidas; a conformao da vida, segundo o modelo do costume ancestral. Os romanos, perfeitamente cnscios da sua continuidade em relao ao passado, tinham cuidado de preservar os monumentos desse passado. No s conservavam em casa os retratos de seus antepassados, (...) mas tambm antigas tradies de sua histria coletiva, numa extenso desconhecida dos gregos. (COLLINGWOOD, 1994, p. 52)
Os propsitos das narrativas histricas de Polbio so bastante prticos
realmente. No s eram exemplo da conhecida vita magistrae, mas precisavam
responder a uma pergunta que todos os gregos se faziam, dada a rpida ascenso
de Roma e a decadncia do mundo helnico: como tudo aconteceu to depressa?
As Histrias de Polbio vo esforar-se em sanar a maior carncia
intelectual de sua sociedade, procurando esclarecer justamente os motivos pelos
quais os romanos tiveram a sua ascenso to rpida quanto a decadncia grega. O
historiador ser, inclusive, uma espcie de embaixador romano junto aos povos
gregos, quando a administrao romana for ser definitivamente instalada nas
cidades helnicas. Talvez essa misso explique a presena em suas narrativas de
um carter simultaneamente ecumnico e nacional, duma histria em que o heri
da narrativa o esprito continuador e coletivo de um povo e em que o enredo da
narrativa a reunificao do mundo, sob a direo daquele povo (COLLINGWOOD,
1994, p, 53). As motivaes subjetivas de Polbio so reconhecidas tambm por
Carr:
27
Os gregos (...) aps seu pas ter sido reduzido a uma provncia, atriburam os triunfos de Roma no ao mrito, mas sorte da repblica (...) divertido notar que os gregos, aps sua conquista pelos romanos, tambm se entregaram ao jogo do que poderia ter sido na histria o consolo favorito dos derrotados; se Alexandre, o Grande, no tivesse morrido jovem, diziam eles para si mesmos, ele teria conquistado o Ocidente e Roma teria sido submetida aos reis gregos (CARR, 1982, p. 133).
Apesar dos avanos, o carter de veracidade dos fatos narrados pelos
historiadores no alcanou privilgio de inquestionvel. Mesmo com todo o esforo
feito em relao a fontes e depoimentos confiveis por Herdoto, Tucdides e,
sobretudo, por Polbio, chegamos, algum tempo depois, a observaes como a de
Quintiliano (35 d.C. - 95 d.C):
31. History also may nourish oratory with a kind of fertilizing and grateful aliment. But it must be read with the conviction that most of its very excellences are to be avoided by the orator, for it borders closely on poetry and may be said, indeed, to be a poem unfettered by the restraints of meter (QUINTILIAN, 2006).
O clebre orador romano v, em certa medida, com bons olhos a contribuio
do estilo histrico para a oratria, porm o comentrio de que as suas fronteiras
esto por demais prximas s da poesia, invalida a inteno anterior de proximidade
aos fatos como queria, por exemplo, Herdoto. Quintiliano vai alm e praticamente
acusa a histria de ser um relato que, apesar de buscar a transmisso dos eventos
para a posteridade, procura conseguir a fama de hbil para o seu autor. Claro est
que estas eram as palavras de um orador e no de um homem que realmente
pensava a histria como narrativa independente, pois ele d como positiva a
ausncia de subjetividade no relato histrico de Herdoto, que, como todo
historiador, deixava-se influenciar pelos seus prprios motivos, como procuramos
mostrar.
Da se percebe que os ns entre arte e histria no sero to facilmente
desatados como desejavam os primeiros historiadores.
Os comentrios feitos at aqui sobre os historiadores gregos e romanos nos
do um panorama do que ser a histria, mas tambm, dos problemas que ela ir
enfrentar ao procurar se separar da arte literria. Todos os historiadores comentados
tinham por inteno explicar as causas de fenmenos que levam s transformaes,
28
as guerras, no caso. Podemos dizer que, mesmo hoje, essa no uma tarefa fcil
de ser realizada, se que o possa ser. Para explicar a causa de um dado evento,
no havia mtodo na poca de Herdoto e ainda no h um que no gere
controvrsias. Os procedimentos para se alcanar um resultado de compreenso em
histria ainda so polmicos. Como exemplifica Lima, a causalidade , por certo, o
meio de conexo entre os eventos; mas no h segurana sobre seu acerto. Com
Herdoto, a histria nasce pela impossibilidade de encontrar razo para a
permanente beligerncia entre os homens (LIMA, 2006, p. 54).
Ao procurar explicar as causas de uma guerra em particular, com todos os
seus detalhes, nomes de envolvidos e eventos que a compem, a histria
permanece em um caso especial, sem transcend-lo. Por outro lado, se busca a
generalizao dos conflitos e pretende elaborar algo parecido com leis que
demonstrem causas e consequncias para eventos desse tipo, corre o srio risco de
cair em descrdito completo, dado que as experincias histricas no so
passveis de reproduo emprica, no so demonstrveis e nem mesmo podem ser
elaboradas em narrativa com uma linguagem especfica e exclusivamente sua, pois
a histria se serve da linguagem culta ou erudita comum.
Mesmo assim, ou tendo em conta a percepo desses problemas, a
historiografia de gregos e romanos foi um imenso salto epistemolgico.
Aps isso, no entanto, deparamo-nos com um perodo em que a viso da
histria como cincia baseada em atos humanos sofre uma razovel regresso.
Trata-se obviamente dos anos da Idade Mdia e da presena intensa do
pensamento cristo, que tender a romper com as formas narrativas de at ento e
propor uma espcie de retorno s explicaes mticas e cosmognicas. Nas
palavras de Croce, quando h uma sbita ruptura ou suspenso, como houve na
Europa no incio da Idade Mdia, ento a escrita da histria quase cessa e recai na
barbrie, junto com a sociedade a que pertence (CROCE, 2006, p. 27).
Apesar de radical, a observao de Croce vlida e compartilhada por
Collingwood (1994), pois a histria volta a ser escrita de uma maneira no cientfica
e no sistemtica.
O maior efeito das ideias crists na narrativa da histria foi o desenvolvimento
de uma atitude que admite que o processo histrico no , como o era para os
historiadores antigos, um processo de execuo das vontades, intenes e
desejos humanos, mas sim a realizao dos desgnios divinos, tal como ocorria
29
com as explicaes mticas. Para classificar a historiografia realizada nesse perodo,
chega a se cunhar a expresso histria teolgica.
Mesmo nos casos de relatos feitos por cronistas leigos, o clima anticientfico
se instaura e os fatos so pouco investigados, as narrativas so realizadas com
menor rigor e com uma mnima preocupao com explicaes. H ainda o dado de
que, como muitos cronistas eram contratados por uma famlia real ou por um ducado
para escrever a sua histria, os narradores procuravam constantemente agradar os
sujeitos dela:
A dependncia dos historigrafos em relao ao prncipe por vezes de tal modo que se torna difcil distingui-los dos panegiristas (...) [dessa dependncia] derivam vrias servides para o memorialista: a estreiteza do seu campo de viso que se limita aos fatos militares, vida na corte, (...) o uso do estilo nobre (ou a escrita empolada da Borgonha) (...) e finalmente a obrigao de tomar a defesa do prncipe comanditrio da obra, ou mecenas pelo menos (BORD e MARTIN, 1983, p. 35).
Alm disso, a presena do milagre, do maravilhoso e do sobrenatural passa a
ser visto com toda a propriedade e naturalidade (BORGES, 1993). Tambm o fato
de a maioria dos homens alfabetizados no perodo pertencerem ao clero pode nos
dar uma noo de quem escreveu a histria durante a Idade Mdia.
O nome mais influente para a historiografia do perodo o do Bispo de
Hipona, Santo Agostinho. Amplamente conhecido como telogo e doutor da igreja,
alm de filsofo, Santo Agostinho autor de um alentado livro em que, sob a
influncia de Plotino, estabelece a realidade universal como estando dividida em
dois planos, o superior e perfeito e o inferior e imperfeito. Trata-se de A Cidade de
Deus, que pode ser vista como a sua teoria da histria. Alm disso, outras obras do
bispo fazem referncia a uma teorizao sobre o tempo que, apenas em parte,
influencia sua viso da histria, e uma teoria da salvao, talvez o ponto mais
conhecido de seu pensamento.
A Cidade de Deus uma extenso em termos de teoria da histria da teoria
da graa e da predestinao de Agostinho. O mundo dividido em duas esferas e, por
consequncia, a dualidade entre os eleitos e os condenados, o inteligvel e o
sensvel, a alma e o corpo, o esprito e a matria, determina a histria segundo o
Bispo de Hipona. Todos os homens seriam vtimas do pecado original, mas alguns
30
permanecem nele e so os responsveis pela cidade dos homens, enquanto outros,
os bem-aventurados da graa de Deus, so os edificadores da Cidade de Deus. De
acordo com ele, neste mundo, as duas cidades so inseparveis, mas, aps o juzo,
os que receberam a graa divina e os pecadores sero separados.
Apesar de sua grandeza histrica e filosfica, o livro de Santo Agostinho
claramente uma argumentao em favor de dois propsitos. O primeiro deles, e foi
nesse ponto que a obra exerceu a sua maior influncia, deu-se em favor da
separao entre Igreja e Estado. A principal questo seria a de que o Estado no
poderia, por si s, edificar a Cidade de Deus e, sendo assim, deveria submeter-se
sempre Igreja. De acordo com Bertrand Russel,
Durante toda a Idade Mdia e o desenvolvimento gradual do poder papal, bem como durante todo o conflito entre os Papas e os imperadores, Santo Agostinho forneceu Igreja ocidental a justificao terica de sua poltica (1957, p. 68).
O segundo argumento que nos interessa no mbito desse trabalho trata,
como foi feito nos casos anteriores, das motivaes que levaram o autor a narrar a
histria por ele escolhida. Em outras palavras, precisa-se responder qual seria a
carncia intelectual que motivou Agostinho na composio de A Cidade de Deus.
A obra, escrita entre os anos de 412 e 427, teve como mote inicial o saque de
Roma pelos godos em 410. Os povos pagos acabaram por atribuir a tragdia da
pilhagem e da decadncia do imprio ao abandono dos antigos deuses, em
especial, ao desamparo de Jpiter que, enquanto era adorado, protegia firmemente
o imprio.
Tendo essas observaes em mente, Agostinho comea o livro mostrando
que o passado histrico foi ainda muito mais terrvel nos tempos anteriores ao
cristianismo. Diz ele que os romanos nunca pouparam a nenhum dos povos
conquistados os seus templos e que, se agora o mesmo acontece com Roma, a
situao muito menos severa e dolorosa do que foi no passado por conta do
abrandamento do cristianismo. O bispo segue narrando diversos episdios que
tratam da perversidade do povo de Roma, sua caracterstica marcante, segundo ele,
desde o rapto das Sabinas.
Mas, chegando ao seu ponto principal, afirma que no verdade que o povo
romano no tenha sofrido e que tenha sido sempre protegido por Jpiter. Agostinho
31
exemplifica sua afirmao com a dura conquista da Glia e com as sanguinolentas
guerras civis enfrentadas pelo imprio.
Os saques de Roma pelos godos e o motivo pelo qual Deus no protege os
romanos de tamanha barbrie so as principais carncias intelectuais a serem
supridas pela histria narrada em A Cidade de Deus:
O que Santo Agostinho fez foi reunir (...) elementos e relacion-los com a histria de sua prpria poca, de tal modo que a queda do Imprio ocidental e o perodo subsequente de confuso pudessem ser assimilados pelos cristos sem que isso constitusse uma provao demasiado severa para a sua f (RUSSEL, 1957, p. 68).
Como se percebe, as preocupaes do autor so, sempre, as de seu
prprio tempo histrico. Apesar de a obra de Agostinho ser um visvel retrocesso
concepo cosmognica, ao afirmar, por exemplo, que No devemos procurar
entender o tempo e o espao antes da criao do mundo: no havia tempo antes da
criao, e no h lugar onde no h mundo (apud RUSSEL, 1957, p. 62), fazendo-
se como um hiato para a historiografia cientfica, o bispo de Hipona e o cristianismo
sero determinantes em alguns pontos da evoluo da histria principalmente no
que diz respeito viso historicista e universal.
Universal no sentido de que todos os povos so parte da criao divina, o que
leva a dizer que se:
Todas as pessoas e todos os povos so abrangidos pela realizao dos desgnios divinos (...) portanto, o processo histrico , sempre e em todos os lugares, da mesma espcie, sendo cada uma de suas partes parte de um mesmo todo (COLLINGWOOD, 1994, p. 72).
Assim, faz-se uma transio mais sensvel entre a histria de um povo ou de
um evento para a histria de toda uma civilizao.
J no caso do historicismo ou da viso historicista, deve-se reconhecer que o
cristianismo, ao contrrio das vises mticas, entende o tempo como linear e no
como cclico. Diz Agostinho: Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados (apud
RUSSEL, 1957 p. 63). Alm disso, so interessantes em A Cidade de Deus as
sincronizaes que o autor realiza entre o tempo sagrado (bblico) e o profano
(histrico).
32
Segundo Borges:
O cristianismo uma religio eminentemente histrica, pois no prega uma cosmoviso atemporal, mas sim uma concepo que aceita um tempo linear que se ordena em funo de uma interveno divina real na histria. A vinda de Jesus/Deus um fato histrico, concreto em um tempo e local determinados (BORGES, 1993, p. 23).
Essa percepo de fundamental relevncia, pois abaliza o valor que o
mundo cristo d ao pensamento histrico, da mesma forma como sempre aceita a
importncia da histria e das datas histricas. De tudo que o Cristianismo nos legou,
mais esse dado pode ser acrescido. H historiadores, como tienne Gilson, que
ressaltam ainda mais essa importncia, dizendo que o Cristianismo
quebrou a golilha antiga da viso cclica da histria para impor uma concepo linear desta: a histria humana comea com a criao e comporta um momento central; est orientada para o fim segundo o Juzo Final (BORD e MARTIN, 1983, p. 13).
Terminada essa grande crise da historiografia europeia (COLLINGWOOD,
1994), a concepo humanista voltaria a ser o norte das atividades e, como foi
expresso pela Oratio de Hominis Dignitate, de Pico della Mirandola, o homem dito
e considerado justamente um grande milagre e um ser animado, sem dvida digno
de ser admirado (MIRANDOLA, 1989, p. 51) e, assim, as suas aes reassumem a
posio de destaque no fazer historiogrfico.
Esse perodo histrico, o renascimento e seus desdobramentos, traz uma
decadncia gradativa nos poderes da Igreja, da mesma forma como deixa antever
uma crescente valorizao do pensamento cientfico, sentimento que, cultivado pelo
Iluminismo, ter seu auge no cientificismo no sculo XIX. Pode-se dizer que esse
movimento, o de substituir Deus pela cincia, ser a grande caracterstica do
processo de desenvolvimento cientfico e o mesmo vale para a historiografia. Assim,
fato que deixaria Herdoto, Tucdides e Polbio satisfeitos, a histria volta a
abandonar a vontade divina e admitir apenas o fenmeno humano, compreensvel e
documentado.
Com o renascimento houve um regresso concepo humanista de histria baseada nos antigos. A investigao rigorosa tornou-se importante, porque as aes humanas j no eram reduzidas
33
insignificncia, em comparao com um plano divino. O pensamento histrico voltou a colocar o homem no centro de seu quadro. (...) A histria tornou-se a histria das paixes humanas, consideradas como manifestaes necessrias da natureza humana (COLLINGWOOD, 1994, p. 82).
Tambm Croce aponta como grande marco da historiografia renascentista a
contraposio com a religiosidade medieval: La negacin de la trascendencia fu
obra de la poca del Renacimiento, cuando (...) la historiografia se secularizo
(CROCE, 1955, p. 183).
Os primeiros e mais importantes embates entre as mundividncias distintas
se do no campo da astronomia com a teoria heliocntrica de Coprnico, que, ao
chegar s mos de Galileu, provocar grandes avanos dos progressistas contra os
dogmticos e, posteriormente, ir se estender por todos os campos do
conhecimento. Mas com o incio do processo de ascenso da burguesia, com a
filosofia humanista e o empirismo, no sentido de experincia no conhecimento dos
fatos, o antropocentrismo renascentista ir se projetar da mesma forma na escrita da
histria.
possvel resumir a ascenso humanista como a troca de um dogmatismo
por outro, pois, se o historiador renascentista criticava a histria medieval, a que
chamava de monstica, fazia por todos os meios a imitao do estilo e da
composio literria dos historiadores da Antiguidade. Houve uma grande averso
ao estilo medieval chamado de brbaro, na mesma medida em que os autores
romanos, como Tito Lvio e Tcito, foram elevados ao supremo alvo da imitatio
(BESELAAR, 1974).
A redescoberta do mundo da Antiguidade Clssica trouxe uma verdadeira
corrida aos manuscritos o que, logicamente, inclui no s os historiadores antigos,
mas tambm o interesse em escrever ou reescrever a histria de gregos e romanos.
O interesse por manuscritos antigos descrito por Dresden:
Os humanistas mostraram por um lado um interesse novo e despido de preconceitos, pelos antigos textos e em que nutriam, por outro lado, uma quase insacivel curiosidade por manuscritos desconhecidos. De fato, houve aquilo que se pode chamar de corrida aos manuscritos (DRESDEN, 1968, p. 21).
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Essa imensa curiosidade ir estabelecer a divisa dos historiadores do
perodo, ite ad fontes, ir s fontes. O processo, em seu conjunto, alm de facilitar a
divulgao e a procura dos textos, faz com que se desenvolvam diversos mtodos
de coleo e crtica de documentos, afora as tcnicas especficas para cada rea de
trabalho, como a numismtica, a onomstica, a filatelia, a herldica, a epigrafia, a
arqueologia, associadas ao incremento dos estudos das lnguas grega e latina
clssicas. Essas chamadas cincias auxiliares da histria tm seu nascimento no
incio do perodo renascentista, mas s sero efetivamente utilizadas com o
fortalecimento da cincia histrica nos sculos seguintes.
Outra grande contribuio da historiografia renascentista est naquilo a que
se pode chamar de setorizao da histria, uma modalidade que voltou a estar em
voga nos sculos XX e XXI. Dado o seu interesse pelos tempos da Antiguidade, o
historiador volta-se a determinados campos em particular e acaba por compor, por
exemplo, a histria do direito, a histria das formas polticas, a histria dos mitos e
das crenas, entre outras (CROCE, 1955).
Alguns vcios, porm, so frequentes na historiografia do perodo e dois so
os mais significativos. O primeiro deles uma espcie de culto personalidade, que
torna a histria universal quase uma extenso da histria de alguns indivduos dos
quais ela estaria completamente merc. Sem a participao desses homens
especiais, no se sabe o que seria a histria. Os valores espirituais do humanismo
eram tratados como se dependessem sempre da astcia e da capacidade de um
indivduo engenhoso e nunca como se fossem geradores dessa habilidade.
Croce exemplifica esse vcio com o caso do primeiro grande livro de histria
da arte, que, na realidade, a histria da vida de pintores, de Giorgio Vasari:
El prncipe para Vasari se llama Giotto, el cual por si solo, aunque habia nacido entre artfices ineptos, por gracia de Dios resucit a la pintura que iba por mal camino y llev a tal forma que se podia llamar buena. Individualistas son tambin las biografias, que nunca llegan a fundir em modo perfecto al indivduo y la obra que el hace, y que a su vez hace a l (CROCE, 1955, p. 191).
Somada a essa viso, que Croce nomeia de humanstico-abstrata, os outros
vcios a que faz referncia se colocam na linha das carncias e interesses dos
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historiadores, que, ainda que possam ser encontradas em qualquer poca, vm a
comprometer definitivamente os relatos, caso os seus autores fossem:
Literatos cortesanos sostenedores de los interesses de su seor, o historiadores oficiales de repblicas aristocrticas y conservadoras como Venecia, u hombres de alguma de las partes em pugna en el mismo Estado, como los optimates y las gentes del pueblo em Florncia, o quizs los propugnadores de confesiones religiosas opuestas (...) (CROCE, 1955, p. 190).
Benedetto Croce procura chamar a ateno para o problema da objetividade
e da imparcialidade do relato histrico, no apenas como vcio do perodo da
renascena, mas como uma caracterstica intrnseca da historiografia. Ser preciso
ainda discutir esse assunto, assim que passarmos pela evoluo das escolas
histricas subsequentes.
Seria difcil e pouco produtivo estabelecer um marco para o nascimento da
historiografia moderna, pois uma nova cincia j estava praticamente anunciada
com as inovaes alcanadas pelas cincias auxiliares, a que nos referimos
anteriormente, entre os sculos XIII e XVII. Porm, com o iluminismo que se
instaura definitivamente a ideia de que a histria um desenvolvimento linear,
progressivo e ininterrupto da razo humana (BORGES, 1993, p. 29).
As palavras mais utilizadas no perodo so luz, razo e esclarecimento
de onde se originam os rtulos de idade das luzes e de iluminismo para os anos
que vo de Descartes a Kant. Nas palavras de Voltaire, a razo elevada
categoria de arma contra o monstro (apud MAESTRI, 2002, p. 38) da maldade e do
despropsito.
Junto com essas, outra palavra comea a ser familiar, progresso, que se
torna um critrio para julgar os fatos e os feitos, assim como um parmetro para
conduzir a prpria vida, mas, acima de tudo, una nueva especie de histria: la
histria de los progressos del espritu humano (CROCE, 1955, p. 200). Esse gnero
est bem representado por Esboo de um quadro histrico dos progressos do
esprito humano, de Condorcet, obra que marca ainda o extremo otimismo e
confiana que atinge os homens da poca. Como descreve Croce (1955), a histria
passa a ser vista como se os homens, finalmente desembarcados em terra firme,
pudessem observar com calma o mar tempestuoso por onde antes navegavam.
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Embora no se trate rigorosamente de um historiador, preciso marcar a
contribuio de Descartes para o processo historiogrfico iluminista. Seu apoio se d
no sentido de firmar a crena de que possvel escrever a histria, mas, acima
disso, pensar sobre o processo de escrita, dando um passo alm, possibilitando a
visualizao do processo de conhecimento histrico:
Descartes, que foi o primeiro a estabelecer a posio do homem como um ser que pode no apenas pensar, mas pensar sobre o seu prprio pensamento, que pode observar-se no ato de observar, de maneira a ser simultaneamente o sujeito e o objeto do pensamento e da observao (CARR, 1982, p. 168).
Descartes e Voltaire expressam satisfatoriamente uma sntese dos ideais
iluministas, no que diz respeito ausncia de limites para o conhecimento humano,
o que leva ao poder de alcanar a verdade histrica e, algo comum a todos os
pensadores do perodo, o anticlericalismo. Segundo Maestri (2002):
No sculo XVII, confiante, Ren Descartes escrevia: [...] todas as coisas [...] sucedem-se da mesma maneira e, desde que se evite tomar como verdadeira alguma [coisa] que no o seja [...] no podem existir to longnquas [coisas] que no se alcancem, nem to ocultas que no se descubram. Na centria seguinte, Voltaire propunha que o homem deixasse respeitosamente o que divino queles que so seus depositrios e se ocupasse das coisas terrenas (MAESTRI, 2002, p. 38).
A ideia de histria para Voltaire retoma um importante aspecto da histria na
antiguidade que o da vita magistrae. Segundo o filsofo, os grandes erros do
passado teriam sempre muita utilidade e nunca seria demais expor as desgraas e
os crimes, pois, conhecendo-os, seria possvel aprender com uns e prevenir
outros.
Em alguns casos, porm, o uso da histria como exemplo acabou levando a
certa despreocupao com a investigao da verdade histrica. Em outras palavras,
se um evento servisse de aprendizado, no era necessrio que fosse verdadeiro,
dado que seria til assim mesmo.
No entanto, essa prtica no chegou a configurar um retrocesso na
historiografia. Pelo contrrio, com Voltaire, h um grande avano para tornar a
histria menos individualista e mais social. Por trs da noo de esprito humano,
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como se destacou acima, aparece tambm o esprito das naes, o esprito do
tempo, entre outros. Segundo Voltaire, alguns elementos bsicos influenciavam o
esprito dos homens, que seriam o clima, o governo e a religio. Destarte, para
chegar a uma concluso sobre o homem, dissertar sobre esses assuntos era
imprescindvel, o que leva a uma tentativa de conhecer o homem frente a aspectos
sociais antes no pensados (BORD e MARTIN, 1983).
Assim, em seu conjunto, as concepes histricas dos iluministas foram to
bem aceitas que, mesmo nos livros nossos contemporneos, ainda se encontram
afirmaes de cunho generalizante, moldadas no perodo, e familiares ao nosso
pensamento. Assim, quando se pensa em histria do sculo XVIII:
Ressurge de inmediato em la memoria el perfil general de una historia en que ls sacerdotes engaan, ls contesanos intrigan, ls sbios monarcas discurren y realizan buenas instituiciones combatidas o anuladas com preteza por la malignidad de ls dems y por grosera ignorancia, y sin embargo perpetuo objeto de admiracin y gratitud para ls espritus esclarecidos (CROCE, 1955, p. 204).
de extrema importncia ressaltar que, mesmo passado tanto tempo e aps
to grande nmero de pginas de historiografia escritas sobre o perodo, assim
como muitssimas outras tratando da teoria da histria, a descrio feita da
sociedade pelos iluministas ainda tem eco. A ressonncia de certos topoi da histria
muito difcil de eliminar, por mais preconceituosos e ultrapassados que sejam. O
mesmo acontecer com outras formas como veremos mais adiante: por mais que a
cincia evolua, algumas formas de ver o mundo, e mais importante, a prpria viso
que se tem da cincia histrica, perdura.
Logicamente, como aconteceu com todas as escolas estudadas at o
momento, a descrio da sociedade acima citada no ingnua e vem para atender
os interesses de uma burguesia em ascenso, cujo liberalismo ser a filosofia a
explicar a histria. O uso poltico da histria, como vimos, no novo e, como a
histria vem para suprir as carncias intelectuais, vem tambm em formato
semelhante para sanar as dvidas dos inimigos da burguesia, enaltecendo o
liberalismo e facilitando as alianas com o rei.
Aps as guerras napolenicas, a burguesia vai procurar reorganizar suas formas de pensamento, no so mais telogos, mas filsofos
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que esto frente. O liberalismo a explicao, a justificao racional dessa nova sociedade (...) que reclama o progresso atravs da liberdade, contra a forte autoridade das monarquias e da igreja (...). Depois da Revoluo Francesa, esse liberalismo (...) vai se fixar numa posio organizadora do Estado (...). Alguns dos historiadores do perodo (...) so muitas vezes estadistas, envolvidos na ao poltica, com esse intuito amplo, produzem suas obras, em geral, de carter nitidamente poltico. (BORGES, 1993, p. 30).
Portanto, a historiografia iluminista configura um grande avano na
apropriao dos mtodos investigativos, mas, por outro lado, no foi feita nenhuma
tentativa de erguer a histria acima do nvel da propaganda; pelo contrrio, esse
aspecto foi intensificado, pois a cruzada a favor da razo foi ainda uma guerra santa
(COLLINGWOOD, 1994, p. 112)
Porm, se a racionalidade florescera com tanto entusiasmo durante todos
esses sculos, o seu oposto, aos poucos, armava a sua ascenso. Desprezado pela
Antiguidade e pelos humanistas, reconhecido, embora deixado em segundo plano
pelos iluministas, o sentimentalismo alcanar valor preponderante como categoria
espiritual durante o Romantismo (ABAGNANNO, 2003).
Nesse perodo, ganha fora uma vertente nostlgica da historiografia que
tende a estabelecer como modelo tudo aquilo que humanistas e iluministas
consideravam como uma grande barbrie, o medievo. O tradicionalismo romntico, a
sua exaltao das tradies e das instituies, elegeu a Idade Mdia como era ideal,
perfeita para representar a religiosidade em seu carter mais primitivo, em que se
encarnavam os aspectos mais nobres da cavalaria, assim como um tempo em que
se comea a delinear os traados nacionais, tema relevante para muitos pases em
meados do sculo XIX, como se comentar mais adiante.
O apreo pela Idade Mdia levou a uma srie de consequncias culturais
imediatas tais como a reimpresso de inmeras crnicas medievais, quase
esquecidas, que encontraram um grande crculo de leitores. Foram fundados os
primeiros museus medievais, como o Muse National du Moyen Age, conhecido
como Cluny, em Paris. Antigas abadias de arquitetura gtica tiveram a sua
restaurao rapidamente proposta e executada4. E, segundo Croce, a historiografia
4 Sobre isso, interessante notar que o imaginrio romntico sobre a Idade Mdia se sobrepe inclusive a qualquer fato documental, como acontece na proposta de restaurao da Igreja de Notre Dame de Paris por Viollet-le-Duc em que se adicionam, mesmo ciente de
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entrou em estrecha relacion e intercambio com el nuevo gnero literrio, la novela
histrica (CROCE, 1955, p. 216), de Walter Scott, por exemplo, que ser
determinante na constituio dos romances histricos modernos.
Se a historiografia nostlgica se desenvolveu, pode-se dizer o mesmo de um
novo campo dentro da histria, pois o sculo XIX foi o sculo das filosofias da
histria. Nomes como Schelling, Herder, Kant e Hegel, dentre outros, comeam a
pensar a cincia a partir de um ponto de vista diferente.
Sob a influncia de Herder, Kant levou esta ideia [a ideia de filosofia da histria] mais longe, de tal modo que a filosofia da histria se converteu na procura de um sistema grandioso sobre o desdobramento da evoluo da natureza humana, testemunhado em fases sucessivas o progresso da racionalidade ou do Esprito (BLACKBURN, 1997, p. 250).
Cabe, no mbito desse trabalho, comentar, pelo menos, um dos nomes
associados com a filosofia da histria romntica: Johann G. Fichte (1762 - 1814).
Discpulo de Kant, Fichte foi professor universitrio com vida razoavelmente
atribulada, pois, por conta de acusaes de atesmo, perdeu sua cadeira na
Universidade de Jena, sendo, posteriormente, admitido em Berlim e Erlangen.
A filosofia de Fichte considera o ato de conhecer como uma ao de
transformao em que o dado que objeto do conhecimento passa a ser um objeto
para o sujeito e sua existncia s possui sentido a partir desse instante. Em outras
palavras, o objeto no tem vida prpria antes de entrar em contato com o sujeito,
pois ele s existe em funo do sujeito. Assim, no h como saber como um
determinado objeto em si mesmo, apenas como ele quando est dentro de um
eu.
O mais conhecido conceito de Fichte para a histria a liberdade racional e,
para explic-la, o filsofo estabelece trs estgios. Baseando-se na dialtica,
acreditava que esses estgios levariam sempre a uma superao. Em um primeiro
momento, haveria uma liberdade grosseira, em que as atitudes dos indivduos no
seriam diferentes dos regidos pelo princpio do prazer. Esse estgio geraria, no
entanto, um segundo em que liberdade do indivduo se limita voluntariamente, pela
criao duma autoridade superior, a autoridade de um governo que lhe impe leis
ser uma fantasia nunca construda no perodo medieval, as famosas grgulas tidas hoje como legitimas esculturas medievais.
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no da sua autoria. Nesse estgio, parece no haver liberdade, mas, de fato, ela
est a se desenvolver para se tornar algo melhor, que se concretizar no terceiro
momento, em que uma sntese levaria ao estado de liberdade civil
(COLLINGWOOD, 1994).
A proposta de Fichte que cada perodo dessa histria tem um carter
prprio que interfere em todos os aspectos da vida. Em sua obra mais importante,
Caractersticas da Idade Contempornea (1806), ele se prope a explicar a sua
prpria poca, por meio da anlise dos seus traos fundamentais e ainda mostrando
como tudo o mais derivado desses aspectos. Seguindo a sua concepo, percebe-
se que:
os estdios passados, conduziram necessariamente a histria ao presente; uma dada forma de civilizao s pode existir quando o tempo est apto a receb-la (...) Assim, os romnticos concebiam o valor dum estdio histrico passado, como a Idade Mdia, de modo duplo: em parte, como algo de valor permanente em si mesmo como uma realizao nica do ser humano e, em parte, como ocupando o seu lugar no curso dum desenvolvimento que leva a coisas de valor ainda maior (COLLINGWOOD, 1994, p. 122).
O mais importante a ser dito que, talvez pela primeira vez, o discurso da
histria se voltava diretamente e sem evasivas para o seu tempo
contemporneo. Desde os antigos, sempre houve a referida carncia intelectual a
ser suprida, porm, com Fichte, ela est expressa no prprio discurso, no objetivo
fundamental da narrativa histrica.
Segundo Collingwood, Fichte concebe:
o presente como foco em que as linhas do desenvolvimento histrico convergem. Consequentemente, para Fichte, a tarefa fundamental do historiador compreender o perodo histrico em que vive (COLLINGWOOD, 1994, p. 145).
Alm disso, h que se destacar que se assiste nesse perodo a uma onda
nacionalista, que valoriza o que h de mais peculiar e prprio em determinada
cultura (GOMES e VECHI, 1992, p. 16). Na historiografia, tende-se a substituir cada
vez mais o Estado pela ideia de Nao, assim como o conceito de humanidade
preterido pelo de nacionalidade (CROCE, 1955).
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Esse fato nos leva, mais uma vez, a fazer sobressair o que h de carncia
intelectual a ser suprida pela historiografia. No perodo em pauta, muitos pases,
como Inglaterra e Frana, esto em processos de estabilizao. J a Itlia, est em
unificao, processo que toma praticamente todo sculo XIX, desde o Congresso de
Viena, em 1814, at a real unificao com o Tratado de Latro, em 1929. Caso
semelhante acontece com a Alemanha, em uma demanda bastante violenta e
complexa que se inicia com a formao da Confederao Alem, aps a queda de
Napoleo, e segue at o final da Guerra Franco-Prussiana, em 1870 (PAZZINATO e
SENISE, 1993).
justamente nesse contexto que surgem as sociedades de pesquisa,
governamentais e particulares, com o propsito de trazer luz tudo o que for
particular da nao, seja para ajudar a entender o seu progresso e a sua
estabilizao ou os motivos que justificam a unificao e pelos quais vale a pena
lutar. Em outras palavras, os nacionalismos europeus vo estimular o estudo da
histria nacional dos pases (BORGES, 1993), atendendo, mais uma vez, s
demandas do momento histrico dos historiadores.
Aps isso, se o comeo do sculo XIX havia sido o perodo de florescimento
das filosofias da histria, justamente contra elas que iro se revoltar os
historiadores da escola metdica.
Historiadores, essencialmente os alemes, comeam a desenvolver a crtica
histrica, utilizando o mtodo erudito, criado pelos iluministas franceses no sculo
XVI e XVII. Sua principal contenda com os filsofos e historiadores romnticos se
deu na tentativa de separar a filosofia e a histria, mas tambm na busca da
autonomizao da histria em relao literatura.
De acordo com o clima cientificista do perodo, a realidade se resumiria a um
dado imediato dos sentidos e no poderia, de forma alguma, se confundir com o
aleatrio e subjetivo campo de ao da literatura. Em relao ao pensamento
filosfico, no se trata de abandon-lo, mas de estabelecer dois campos de trabalho
distintos: a filosofia da histria e a historiografia.
A fixao pelo documento e pelo detalhe da narrativa histrica levou essa
vertente da historiografia, chamada de metdica, historista, realista ou positivista, a
uma maior aproximao das histrias nacionais ou das teses monogrficas, em que
se pode estudar com mais segurana determinadas questes particulares.
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O nome mais importante e mais representativo da escola metdica o de
Leopold von Ranke, nascido na Prssia em 1795 e falecido na Alemanha em 1886.
Ranke se tornou o pai da histria realista e anti-literria, segundo a qual um
bom historiador deve descrever fielmente o passado histrico, baseando-se
exclusivamente nos documentos, exaustivamente criticados e analisados (SCHULZ
e WETZELS, 1983), sem fazer uso da linguagem literria e, muito menos, da
imaginao.
O prprio Ranke conta que, quando comeou a lecionar, se surpreendeu com
o pouco material que havia sido composto sobre a histria mais recente, posto que a
maioria da literatura historiogrfica tratasse da Antiguidade Clssica. Ele comeou,
ento, a estudar outros momentos histricos e acreditou que, by comparison the
truth was more interesting and beatiful than the romance (RANKE apud SCHULZ e
WETZELS, 1983, p. 5).
Em 1824, Ranke publicou a sua histria dos povos latinos e teutnicos e, j
em seu prefcio, reafirma a separao da linguagem historiogrfica da literria, pois
a primeira deve apenas realizar a descrio, sem maiores preocupaes que no
sejam as de representar fielmente os fatos ocorridos: The strict representation of
facts, contingent and unattractive though they may be, is undoubtedly the supreme
law (RANKE apud SCHULZ e WETZELS, 1983, p. 6). Ranke acreditava que o
passado estava preservado em sua plenitude nos documentos e, por esse motivo,
bastava ao historiador ser um bom e imparcial ouvinte para que pudesse harmonizar
as falas dos arquivos que brigavam por serem ouvidas.
Tendo esse objetivo em mente, a proposta de Ranke para a histria passa
por algumas recomendaes. Primeiro, os comentrios e julgamentos do autor
devem desaparecer do texto (atribuio de culpa, por exemplo). A arte deve
igualmente esvanecer e o fato precisa ser narrado por si s e assim, supostamente,
vai oferecer-se ao leitor, belo e interessante.
Cabe ressaltar que, ao descrever o passado, Ranke no acreditava que o
estava interpretando. Para ele, o passado era um texto diferente do presente, mas
escrito pelo mesmo Deus e na mesma linguagem. Pode-se dizer que Ranke e os
intelectuais da sua poca sentiram uma nova responsabilidade em relao ao
passado. Seria como se eles procurassem preservar o homem em si, como criao
de Deus. Ranke escreveu:
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Everything is threatened