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SOB INSPIR ÇÃO DE CLIO

uma introdução ao estudo da História

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Sob a inspiração de Clio: uma introdução ao estudo da História

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SOB INSPIR ÇÃO DE CLIO

uma introdução ao estudo da História 

São Paulo/Passo FundoDigital Publish & Print Editorial/PPGH-UPF

2013

 Adelar Heinsfeld 

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Adelar Heinsfeld

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ____________________________________________________________

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610, de 19/02/1998.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA UNIVERSIDADEDE PASSO FUNDOBR 285 – Km 17199001-970 - Passo Fundo – RSwww.ppgh.upf.br 

Conselho Editorial:Adelar HeinsfeldAdriano ComissoliAlvaro Antonio KlafkeAna Luiza Setti ReckziegelGerson Luís TrombettaGizele ZanottoIronita Policarpo Machado

Isabel BilhãoJanaína Rigo SantinJoão Carlos TedescoLuiz Carlos Tau GolinMário MaestriMarlise Regina MeyrerRosane Marcia Neumann

H471s Heinsfeld, Adelar

Sob a inspiração de Clio : uma introdução ao estudo da

história / Adelar Heinsfeld.  –  2ª ed. revisada  –  São Paulo : DPP

Editora; Passo Fundo : PPGH-UPF, 2013. 

248 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-65294-11-9

1. História  –  Estudo e ensino. 2. Historiografia. I. Universi-

dade de Passo Fundo. Programa de Pós-Graduação em História.

II. Título.

CDU : 981

Copyright@Adelar Heinsfeld

Capa: Clio, de Carlo Franzoni Marble (1819) 

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 Amo a história. Se não a amasse não seria

historiador. Fazer a vida em duas: consa-

grar uma à profissão, cumprida sem

amor; reservar a outra à satisfação das

necessidades profundas– 

 algo de abomi-

nável quando a profissão que se escolheu

é uma profissão de inteligência. Amo a

história –  e é por isso que estou feliz por

vos falar, hoje, daquilo que amo. 

(LUCIEN FEBVRE) 

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SUMÁRIO

PARA COMEÇO DE CONVERSA ..................................................................... 11

I-O QUE É HISTÓRIA .......................................................................................... 15

II-PARA QUE SERVE A HISTÓRIA ................................................................ 25

III-TEMPO E ESPAÇO NA HISTÓRIA ........................................................... 37

3.1-Tempo, temporalidade, duração ...................................................... 37

3.2-Espaço, espacialidade, território ..................................................... 56

IV-A HISTÓRIA DA HISTÓRIA ....................................................................... 75

4.1-A História Mítica ..................................................................................... 76

4.2-A História na Antiguidade Clássica ................................................. 784.3-A História na Idade Média ............................................................ ...... 89

4.4-A História na Época Moderna ........................................................... 98

4.5-A História no Século XIX ...................................................................... 107

4.6-A História no Século XX ......................................  ............................... 122

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10 

V-OS PARADIGMAS TRADICIONAIS DA HISTORIOGRAFIA ............. 145

5.1-O Positivismo ............................................................................................ 147

5.2-O Historicismo .......................................................................................... 156

5.3-O Marxismo ................................................................................................ 164

5.4-A Escola dos Annales ............................................................................. .  177

VI-A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO ............................ 195

6.1-A pesquisa histórica .............................................................................. 199

6.2-As fontes do historiador ...................................................................... 206

6.3-Os passos da pesquisa .......................................................................... 222

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 231

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PARA COMEÇO DE

CONVERSA

“A história encontra-se hoje perante responsabilidadestremendas, mas simultaneamente exaltantes.”1  Esta frase pro-

ferida por Fernand Braudel, em 01 de dezembro de 1950, aoiniciar sua aula inaugural no Collège de France, permaneceatual. Poderia ter sido dita hoje, uma vez que a História é aciência social que é feita por todos os seres humanos.

No momento em que você está colocando os olhos nestapágina você está fazendo História. Somos daqueles que acredi-tam que a História é feita por todos os homens, todas as mulhe-res, todos os seres humanos. A partir do momento em que o serhumano foi capaz de se organizar para conseguir sobreviver,ele começou a fazer História. 

O jornalista uruguaio Eduardo Galeano certa vez escre-veu que “a História é um profeta com o olhar voltado para tr|s;pelo que foi e contra o que foi anuncia o que ser|”. 

1  BRAUDEL, Fernand. Posições da História em 1950. In: ___. História e ciências

sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 51.

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Se todas as pessoas de uma determinada sociedade ti-vessem a consciência clara da realidade vivida por elas, perce-

beriam as tendências das transformações sociais e teriam cons-ciência também do seu poder de transformar o mundo. Portan-to, não mais teriam a visão fatalista do profeta. Aliás, os profe-tas não mais precisariam existir. As pessoas seriam, em verda-de, os senhores de seus destinos. Saberiam que seus atos seri-am de enorme importância para o futuro de toda a humanidadee estariam assim, conquistando e construindo, passo a passo, oseu futuro. Ou melhor: o tempo que os separa do futuro seriaapenas o tempo gasto para a construção do sonho do presente.E as pessoas seriam livres de todas as amarras, pois estariamabrindo caminho para sua própria libertação e para a liberta-ção de todos os seres humanos.

Em qualquer grupo social, as pessoas que o compõemprecisam conhecer a história da sociedade em que atuam. Pre-cisam ter consciência histórica para serem verdadeiramente

seres humanos. Ter consciência histórica é conhecer as trans-formações vividas na sociedade em que atua. Ter consciênciahistórica significa ter consciência do nosso poder de transfor-mação - do nosso poder de fogo, poderíamos dizer - do nossopoder de sermos os agentes da história e não seres passivos,acomodados, que sofrem a história, ou que vejam a históriapassar ao largo.

A consciência histórica não se adquire através da leitura

passiva da historiografia existente. A consciência histórica seconstrói e, como toda construção, é um processo ativo, detransformação interior do ser humano. A sua construção impli-ca, principalmente, numa ação sobre o mundo. Será a nossaprática social, a nossa participação como elemento de umaclasse social que nos levará a uma percepção histórica. A partirda luta para a satisfação das necessidades vitais e reais, preci-samos buscar conhecimento do passado, conhecer os grupos

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sociais que empreenderam essa luta, que hoje também é nossa.Neste sentido é que temos que dirigir o olhar para trás.

Claro! Não pode ser o olhar para as coisas mortas, mas oolhar de quem quer compreender a vida, a vida dos seres hu-manos, de todos os seres humanos, a vida das pessoas comuns,a vida das pessoas dos grupos dirigentes... Perceber como sealimentavam, como organizavam seu trabalho, como pensa-vam, como elaboravam suas leis, como brigavam, como se ama-vam... Desta forma, o nosso olhar para trás será sempre de ma-

neira a captar a dinâmica da história, pois a história é vida, ahistória é transformação, a História é movimento. E é isto queeste livro está propondo: inseri-lo no estudo da História.

Este é um livro elaborado para quem está iniciando seusestudos de História. Nele, o leitor não encontrará nem uma no-va tese sobre a ciência, ou área de conhecimento, chamada His-tória. O principal objetivo do livro é introduzir o estudante aoestudo da História. Em função disso, procuramos escrevê-lo de

uma forma simples, para que possa ser facilmente compreen-dido.

Notará o leitor que ao longo do texto, aparecerá as ex-pressões “História” e “história”. A primeira forma, com inicialem maiúscula, se refere à História como ciência, disciplina ouconhecimento. Usamos a segunda forma, em minúscula, quan-do estamos nos referindo à experiência humana ao longo dotempo.

Quando decidimos nos dedicar ao estudo da História,tínhamos em mente, mesmo sem conhecê-lo, o que o historia-dor francês Marc Bloch, fuzilado pelos nazistas em 1944, emsua derradeira obra escreveu:

Pessoalmente, do mais remoto que me lembre, ela sem-pre me pareceu divertida. Como todos os historiadores,

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eu penso. Sem o que, por quais razões teriam escolhidoeste ofício? Aos olhos de qualquer um que não seja um

tolo completo, com quatro letras, todas as ciências sãointeressantes. Mas todo cientista só encontra uma únicacuja prática o diverte. Descobri-la para a ela se dedicar épropriamente o que se chama vocação.2 

Assim, fazemos votos para que aqueles que estão pre-tendendo se dedicar ao estudo desta instigante área do conhe-

cimento humano – a História – encontrem nela sua vocação eque possam ter nela uma atividade prazerosa.

Para esta segunda edição foram muito úteis os aponta-mentos e comentários da colega Isabel Bilhão, que utilizou estelivro com seus alunos na disciplina Introdução aos EstudosHistóricos, do curso de História da Universidade de Passo Fun-do.

Espero que esta edição revisada possa continuar contri-buindo para um melhor entendimento da História.

Boa leitura!

O autor

2  BLOCH, Marc.  Apologia da História, ou, o oficio do historiador. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2001, p. 43. 

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O QUE É HISTÓRIA

Quem somos? De onde viemos? Onde vamos encontraras respostas para estas perguntas? Alguém poderá responder:na história!

A palavra História - - é de origem grega e foi

utilizada pela primeira vez por Heródoto –  tradicionalmenteconsiderado o pai da História. Ele a empregou como “pesquisaou investigaç~o” bem como “resultado de tal pesquisa”.3  Deuma forma até considerada simplista, podemos dizer que a pa-lavra História pode ser empregada em dois sentidos diferentes:objetivo e subjetivo.

O termo história em seu sentido objetivo refere-se aosfatos, aos próprios acontecimentos, ou seja, consiste no objeto a

ser estudado.No sentido subjetivo, empregamos o termo história

quando estamos nos referindo ao estudo, conhecimento ouexposição dos acontecimentos do passado da sociedade huma-na. Assim, é que podemos dizer: “ A História do Brasil tem sidolevada ao grande público por obras que se tem mantido na lista

3 HERÔDOTOS. História. Brasília: Ed. UnB, 1985, p. 19.

Capítulo I 

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dos mais vendidos durante v|rias semanas”, ou que “A Históriada Segunda Guerra Mundial está sendo reescrita pelos chama-

dos historiadores revisionistas.” Entre os próprios historiadores existem diferentes con-

cepções sobre o que é a História, fato que dificulta uma únicaconceituação. Assim, temos alguns conceitos de História:

  Henri-Irénée Marrou: “A História é o conhecimento do

passado humano.”4 

  José van de Besselar: “A História é a ciência dos atos hu-

manos do passado e dos vários fatores que neles influíram,vistos na sua sucess~o temporal.”5 

  Edward Hallet Carr: “[A história] se constitui de um pro-cesso contínuo de interação entre o historiador e seus fatos,um di|logo intermin|vel entre o presente e o passado.”6 

  Paul Veyne: “A história é uma narrativa de acontecimentosverdadeiros. Nos termos desta definição, um fato deve pre-

encher uma só condição para ter a dignidade da história: teracontecido realmente.”7 

  Benedetto Croce: "A História consiste essencialmente em

ver o passado através dos olhos do presente e à luz dos seusproblemas, já que o trabalho principal do historiador não éregistrar, mas avaliar; porque, se ele não avalia, como podesaber o que merece ser registrado?"8 

4  MARROU, Henri-Irénée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro: Zahar,1978, p. 32.

5  BESSELAR, José Van Den. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974, p. 30.

6 CARR, Edward Hallet. Que é a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 29.7 VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasília: Editora UnB, 1982, p.

8 Apud CARR, 1987, p. 22.

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  E. Zhúkov: “A História é uma Ciência que destaca as diver-

sas formas de movimento da sociedade e ajuda a descobrir

os complicados caminhos percorridos pela humanidade emseu desenvolvimento.”9 

  Jorn Rusen: “‘História’ é exatamente o passado sobre o qualos homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à fren-te em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela preci-sa ser concebida como um conjunto, ordenado temporal-mente, de ações humanas, no qual a experiência do tempopassado e a intenção com respeito ao tempo futuro são uni-ficadas na orientação do tempo presente.”10 

  Fernand Braudel: “A História nada mais é do que uma cons-

tante indagação dos tempos passados em nome dos proble-mas e curiosidades - ou mesmo das inquietações e dasangústias - do tempo presente que nos cerca e asse-dia.”11 

Segundo o eminente historiador Marc Bloch a História éa ciência dos homens no tempo, que vincula incessantemente oestudo dos mortos ao dos vivos, reconhecendo, na faculdade deapreensão do que é vivo, a qualidade fundamental do historia-dor.12 

Podemos, portanto, concluir que a História é a ciência

social que estuda as ações dos seres humanos, procurando ex- 9  ZHÚKOV, E. Metodologia de la História. Moscou: Academia de Ciencias de La

URSS, 1982, p. 11.10 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da História: os fundamentos da ciência histó-

rica. Brasília: Editora UNB, 2001, p. 74.11 BRAUDEL, Fernand. O espaço e a História no Mediterrâneo. São Paulo: Martins

Fontes, 1988, p. 1.

12 BLOCH, 2001, p. 52.

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plicar as relações entre seus diferentes grupos. Essas relaçõesacontecem na forma de um movimento permanente e são es-

sencialmente dinâmicas e contraditórias. A História estuda astransformações e as permanências que ocorrem na vida dosindivíduos e sociedades, através do tempo e do espaço. É umaconstrução intelectual que envolve investigação, registro, pro-blematização, crítica, reflexão, narrativas e divulgação.

Há toda uma discussão a respeito da cientificidade daHistória. Para muitos, a História não pode ter o estatuto de ci-

ência, uma vez que o conhecimento histórico não consegue ob-ter resultados exatos e não é regido por leis.

Mas afinal, o que é ciência?

O conceito mais abrangente de ciência é formulado porAnder-Egg: "A ciência é um conjunto de conhecimentos racio-nais, certos ou prováveis, obtidos metodicamente sistematiza-dos e verificáveis, que fazem referência a objetos de uma mes-ma natureza."13 

Por sua vez, Michel Blay apresenta um conceito maisrestrito, para quem a ciência é "o conhecimento claro e eviden-te de algo, fundado quer sobre princípios evidentes e demons-trações, quer sobre raciocínios experimentais, ou ainda sobre aanálise das sociedades e dos fatos humanos.”14 

Entre os próprios historiadores há quem coloque emdúvida a cientificidade da história. Paul Veyne afirma que “n~o

existe uma ciência da história, uma chave do devir, um motor  da história.”15  Para este historiador “o esforço histórico asse-

 13 ANDER-EGG, Ezequiel. Introducción a las técnicas de investigación social : para

trabajadores sociales. Buenos Aires: Humanitas, 1976, p. 15 (Tradução livre).14 BLAY, Michel (coord.). Dictionnaire des concepts philosophiques. Paris: Larousse;

CNRS Editions, 2006, p. 734 (Tradução livre).15 VEYNE, Paul. A história conceitual. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História:

novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 67. 

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melha-se mais ao esforço filosófico que ao esforço científico. Ahistória explica menos do que explicita.”16 Por isso a afirmação

que a história “comporta núcleos de cientif icidade”, ou dito deoutra forma, “a história é um conjunto de acontecimentos ondecada um é determinado, mas dos quais apenas alguns são obje-tos de ciência”.17 

Em outra obra, Paul Veyne faz uma espécie de profecia:“Para que a história pudesse ser elevada ao nível de uma ciên-cia, seria preciso que a ciência fosse a mesma coisa que o mun-do real.”18 Como o conhecimento histórico nunca consegue re-produzir o real, logo, a História não é ciência.

Outros historiadores partem do princípio que a Históriaé uma ciência. É o caso de Jörn Rüsen, para quem “ciência [...] éa suma das operações intelectuais reguladas metodicamente,mediante as quais se pode obter conhecimento com pretensõesseguras de validade.”19 Para este historiador alemão, a Históriapode ser considerada uma ciência não por que pretende alcan-

çar a verdade, mas sim “por sua regulaç~o metódica” na reivin-dicação desta verdade. A cientificidade da narrativa históricaconsiste na regulamentação metódica das suas operações. Porisso é que Rüsen conclui: “Ciência é método”.20 Jacques Le Goff,por sua vez, diz que “a melhor prova de que a história é e deveser uma ciência é o fato de precisar de técnicas, de métodos ede ser ensinada.”21 

Por outro lado, a História tem um objeto de estudo defi-

nido. O historiador francês Marc Bloch definiu que “o objeto daHistória é por natureza o homem. Digamos melhor: os ho-

 16 Ibid, p. 64.17 Ibid, p. 64-65.18 VEYNE, 1982, p. 118.19 RÜSEN, 2001, p. 97.20 Ibid, p. 98. 

21 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 2003, p. 105.

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mens.”22  Outro mestre francês, Lucien Febvre, colega e amigode Marc Bloch, foi mais adiante, afirmando que o objeto da His-

tória são “as sociedades humanas, os grupos organizados”.O objeto de estudo da História é sempre uma determi-

nada sociedade, em determinado momento e local, semprepensada como um todo, embora nem sempre analisada em suatotalidade.

Para Marc Bloch a História era uma ciência em marcha,ou melhor, uma “ciência na inf}ncia.”23 Michel Foucault consi-

dera a História a primeira das ciências humanas. Defende que aHistória, para as demais ciências humanas, apresenta uma rela-ção perigosa e ameaçadora, uma vez que ela serve como panode fundo para as demais. “A história revela o car|ter temporaldos homens, sobre as quais as ciências humanas tendem aconstituir um saber sem idade.”24 

A História é ciência quando vê o processo de transfor-mação da natureza e das sociedades, processo este produzido

com a participação efetiva dos seres humanos. Ela é uma ciên-cia autônoma e ao mesmo tempo integrada às demais ciênciashumanas. Assim, a História não deve ser vista somente comouma mera disciplina acadêmica, para aprofundamento cultural,mas como processo inacabado, em constante transformação.

A História dos seres humanos enquanto experiênciavivida reveste-se de algumas características fundamentais. Em

primeiro lugar, trata-se de uma experiência que só pode desen-volver-se socialmente, isto é, com a contribuição solidária dosdiversos segmentos de um conjunto humano determinado. To-das as pessoas, embora de modo diferente, são partícipes e

22 BLOCH, 2011, p. 54.23 Ibid, p. 47.24 FOUCAULT apud REIS, José Carlos. A História entre a filosofia e as ciências. Belo

Horizonte: Autêntica, 2011, p. 84-85. 

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responsáveis pelo desenrolar desta experiência, da vida dogrupo; a vida humana, e por extensão a de uma realidade qual-

quer é, no fundo, um continuado esforço de sobrevivência ereprodução, ou seja, de continuidade da vida.

No esforço de sobrevivência e reprodução, os seres hu-manos desenvolvem uma luta constante no sentido de crescen-te dominação da natureza, que se expressa no avanço da ciên-cia e da tecnologia. Simultaneamente ocorre uma luta entre osseres humanos, objetivando a apropriação dos benefícios resul-

tantes do domínio da natureza. Desta luta é que se estabelecemas relações de dominação e subordinação. O antagonismo sem-pre presente nestas relações constitui-se no elemento dinâmicoda História enquanto experiência concreta dos seres humanos.

Aí entra o papel da História enquanto ciência. Cabe a elaa tarefa de, reconhecendo estas características da experiênciavivida, descrever e explicar o desenvolvimento destas forçasantagônicas que resultam na construção da sociedade através

do tempo. A História enquanto ciência tem que explicar a reali-dade em sua totalidade e em sua contrariedade.

Para explicar o desenvolvimento de uma sociedade, de-senvolvimento extremamente dinâmico, como é tudo em que oser humano se faz presente, a História não pode ficar presa aleis explicativas, a esquemas rígidos, pré-determinados.

A experiência social de que a História pretende dar con-

ta não pode ser reduzida, numa visão dicotômica, a bons e/oumaus; dominadores e/ou dominados; vencedores e/ou venci-dos, enfim a mocinhos e/ou bandidos. O que se faz necessário éreconhecer o caráter contraditório, mas não excludente destesgrupos ou facções, que embora antagonicamente, constroemjuntos uma experiência concreta.

Estudar História é perceber todos os aspectos destesgrupos antagônicos: as relações de poder, a maneira como se

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organizam para garantir a sobrevivência, a forma como pen-sam, como odeiam, como amam...

No século XIX, considerado o século da História, o co-nhecimento histórico alcançou a forma científica, tornando-seuma atividade de especialistas que atribuíam grande ênfase aotrabalho de pesquisa e de crítica histórica das fontes. Refletin-do o "cientificismo triunfante", o verbete "Historie" da GrandeEnciclopédia francesa registrava:

O estudo e a representação dos fatos é, antes de tudo,uma obra científica, na qual o historiador deve seguirtanto quanto os métodos das ciências experimentais. AHistória [...] tem por objeto as ações passadas dos ho-mens e das sociedades, isto é, os fatos reais e concretos,verificados por ela, não por observação direta, pois setrata de fatos passados, mas mediante a análise e a in-

terpretação de traços materiais ou dos vestígios intelec-tuais por ele deixados.25 

Um conjunto de técnicas, preocupações, perspectivasteóricas, tornaram distinto o historiador de outros eruditos queaté então se preocupavam em preservar o passado ou os vestí-gios dele. Houve um salto qualitativo no oficio historiográfico,criando um abismo entre este profissional e os demais estudio-

sos da história. O trabalho de antiquaristas e memorialistas nãomais satisfazia às necessidades científicas de uma nova histó-ria.

No entanto, junto com a nova forma de fazer história,emergiu uma outra história, preocupada não apenas em des-

 25  Apud GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. São Paulo: DIFEL,

1983, p. 21.

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Como pode ser observado, a palavra “história” é ambí-gua, e esta ambigüidade é encontrada na maioria das línguas

modernas: história e estória, history e story,.... Por isso, LucienFebvre chegou a propor que se substituísse por outro vocábuloo termo história, “velha palavra reprisada e destituída de signi-ficaç~o precisa”.26 Seu colega e amigo Marc Bloch não concor-dava com isso, afirmando que a história, “seguramente, desdeque surgiu, já há mais de dois milênios, nos lábios dos homens,ela mudou muito de conteúdo.”  Para Bloch isto era mais quenormal, uma vez que “é a sorte, na linguagem, de todos os ter-mos verdadeiramente vivos. Se as ciências tivessem, a cadauma de suas conquistas, que buscar por uma nova denomina-ção para elas, - que batismos e que perdas de tempo no reinodas academias!”27 

Para concluir este capítulo, podemos dizer, concordan-do com José D’Assunç~o Barros, que a História é a única ciênciaque trás como sua própria designação um nome que coincide

diretamente com o seu objeto de estudo.28 

26 FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1983, p. 145.27 BLOCH, 2001, p. 51.28 BARROS, José D’Assunção. Teoria da História – Os primeiros paradigmas: positi-

vismo e historicismo. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 30.

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PARA QUE SERVE A

HISTÓRIA

Ao iniciar esta reflexão sobre a importância da História

podemos evocar Cícero (106-43 a. C.), um dos maiores filósofosda Roma antiga, que deixou registrado: “Ignorar o que acont e-ceu antes de termos nascido equivale a ser sempre criança.” 

Mas hoje, afinal, para que serve a História? 

Ao responder esta pergunta, o historiador Marc Bloch,já em 1941 afirmou que, ainda que a história fosse incapaz de

outros serviços, seria possível dizer que ela distrai um grandenúmero de homens, pois oferece prazeres estéticos que não seassemelham aos de nenhuma outra disciplina, satisfazendo asensibilidade e a inteligência. Em síntese: se ela não servissepara mais nada, deveria ao menos servir para divertir.29 

29 BLOCH, 2001, p. 43

apítulo II 

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Utilizando as palavras de Durval Muniz de AlbuquerqueJúnior, podemos dizer que “a história serve { vida.”30 Claro que

num mundo onde a tônica é o imediatismo, segundo o autor,

a história não tem essa serventia imediata. A história,como as humanidades de uma forma geral, tem umaserventia muito mais ampla, no sentido da formação docidadão, da formação da pessoa, na formação da subje-tividade, da personalidade, da forma da pessoa ser, per-

ceber o mundo.31

 

Ainda que nem todas as correntes das ciências sociaisaceitem a utilidade da História e até questionem sua legitimi-dade, podemos afirmar que a História, ao estabelecer as rela-ções entre o passado e o presente, ilumina em perspectiva ofuturo, tornando compreensível a trajetória dos indivíduos esociedades.

O historiador, enquanto um profissional das ciências so-ciais reconhece a sua função social, assumindo um compromis-so com a sociedade e com o tempo em que vive e produz, agin-do como um cidadão crítico, participativo e solidário.

O papel do historiador é colocar sua disciplina e seutrabalho a serviço da superação dos problemas e dos impassesque a situação de sua época coloca como desafios a serem res-

pondidos. Para isto, o historiador, cuja cultura é ao mesmotempo disciplinar e engajada, precisa dominar as ferramentasteóricas e metodológicas mais avançadas do seu ofício.

30 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: Métier e prazer (entrevista).Revista Espacialidade (on line). Natal, vol. 1, 2008, p. 1.

31 Ibid, p. 2.

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A História não é apenas o estudo do passado pelo cultoao passado, mas a elaboração de uma investigação e de um en-

sino comprometidos com o estabelecimento de um diálogo en-tre as diferentes gerações e com a busca de soluções e novoscaminhos.

Quando se pergunta para que estudar História, tradicio-nalmente são apontadas três razões para conhecer o passado:como explicação do presente; como veículo de cultura; comolição para a Humanidade.

 Explicação do Presente

A compreensão do tempo presente através do estudo dopassado sempre é colocada como a mais importante das finali-dades de História. É evidente que nem tudo que aconteceu nopassado está relacionado aos acontecimentos do presente. Poroutro lado, existem algumas situações cujas explicações for-mam uma longa cadeia que atravessam séculos. Alguém podeignorar que a situação de crise vivida pelo Brasil em anos re-centes pode ser explicada pela forma como o país esteve inse-rido no contexto internacional nestes 500 anos? Ou que a ex-ploração que sofremos por parte dos centros do capitalismointernacional é o resultado das opções que nossas elites diri-gentes fizeram no passado? E que continuam fazendo?

É através do estudo do passado que adquiriremos aconsciência da nossa verdadeira personalidade. Conhecendo ahistória pregressa do nosso país, da nossa comunidade oumesmo da nossa família conheceremos muito melhor a nósmesmos. Não existe possibilidade de entendermos o presentesem entendermos o que aconteceu no passado. Como diz Dur-val Muniz Albuquerque Junior, a história somente tem sentidopor causa do presente. “Acho que um dos grandes equívocos de

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quem estuda história, de quem escreve história, é achar que ahistória tem alguma coisa a ver com o passado [...] A história

traz versões do passado para servir ao presente.”32 

 Veículo de Cultura

O historiador francês Henri Marrou já dizia que “n~oestudamos a história com o fim exclusivo de melhor compre-ender o presente: dedicamo-nos ao passado também por causa

do próprio passado.”33  Dito de outra maneira, poderíamos a-firmar que o ser humano precisa beber nas fontes do passadopara ter conhecimento, não apenas como utilidade prática, maspara alargar seus horizontes culturais. Um médico não podeconhecer apenas as formas atuais de tratamento de uma de-terminada doença. Ele precisa saber também como era feito otratamento em tempos remotos, mesmo que não vá utilizaraquelas formas de tratamento consideradas ultrapas-sadas.Quando Cícero afirmou que “a História é a mestra da vida” cer-tamente ele estava preocupado em ver a História como algoque pudesse ter uma utilidade prática, mas também como for-ma de aumentar a cultura geral de um povo.

 Lição para a Humanidade

Um dos importantes estadistas que a sociedade brasilei-ra produziu no século passado, Tancredo Neves, dizia que “inf e-liz do povo que não conhece sua História.” Por que isto? É sim-ples de responder: quem não conhece o passado, corre o riscode repetir seus erros. Certamente, o mundo não teria ficado tão

32 ALBUQUERQUE JR, 2008, p. 11.

33 MARROU, 1978, p. 251.

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apreensivo quando alguns anos atrás, na Áustria, assumiu umdeterminado tipo de governo com claras tendências nacionalis-

tas de direita, se não conhecesse o horror da experiência nazis-ta.

De acordo com Vavy Pacheco Borges a História procuraver as transformações pelas quais passaram as sociedades hu-manas.34 A transformação é a essência da História: quem olharpara trás, na história de sua própria vida, compreenderá issofacilmente. Nós mudamos constantemente; isso é válido para o

indivíduo e também é válido para a sociedade. Nada permaneceigual e é através do tempo que se percebem as mudanças

Sintetizando, podemos dizer que a História ainda é umguia para orientação universal nesta passagem de século e demilênio. Usando as palavras do poeta e ensaísta mexicano, JoséJoaquim Blanco, dizemos que “se hace história para avan-zar en la interpretación del mundo, para transformar la so-ciedad, para participar politicamente, para defender principiosy causas sociales, para denunciar esto y mejorar aquello y tam-bién porque es placentero hacerlo.”35 

No entanto, não é tão simples assim, quando se pensaqual é a função da história. A busca pela melhoria da sociedadeatravés da melhoria dos indivíduos deveria contar com as li-ções aprendidas sobre fatos históricos, incorporando as estaslições a quase todas as questões modernas e contemporâneas.

O filósofo alemão Niestzche afirmava que a utilidade, ou valorde uso da história residiria no fato de que:

34 BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 8.35  Apud PEREYRA, Carlos et alii. Historia ¿para qué? México: Siglo XXI editores,

1980, p. 78.

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Ele [o homem] aprende com isso [a história] que agrandeza, que existiu uma vez, foi, em todo caso, possí-

vel uma vez e, por isso, pode ser que seja possível maisuma vez; segue com ânimo sua marcha, pois agora a dú-vida, que o assalta em horas mais fracas, de pensar quetalvez queira o impossível é eliminada.36 

Assim, é possível dizer que não podemos atribuir umautilidade fundamental representada pelo estudo da história. É

necessário refletir sobre algumas questões que procuram defi-nir essa utilidade ou fazer apologia a ela. Existindo ou não umautilidade única ou principal para o estudo do passado, é neces-sário admitir que a utilidade da História não reside em si mes-ma, nem talvez no fato de podermos aprender com erros dopassado a fim de evitá-los no futuro. A utilidade da História éproduzida pelo próprio contexto construído por quem a pro-duz.

Há milênios o ser humano vem se perguntando se podeaprender com o passado a ter uma vida melhor no futuro. E oque percebemos é que o tempo passou e os erros históricos serepetem e se multiplicam pela humanidade. É óbvio que seriainocência acreditar que a humanidade não consegue aprendercom seus erros. O que precisa ser questionado é por que oserros continuam a ser repetidos.

No caso deste questionamento ser feito, ele pode ser nosentido de que:

  Será que o ser humano quer parar de cometer esses erroshistóricos?

36 NIETZSCHE, Friedrich, Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida. In:

 ___. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 68.

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divertimento, “um meio de evas~o e um meio de ‘formaç~o’ docidad~o e do ‘homem de sociedade’.”38 

Atualmente, os elementos para uma resposta à pergunta“ para que serve a História”, precisa contemplar:

• História enquanto memória coletiva, essencial à compreensão daevolução da sociedade 

Como o individuo não pode conhecer a si mesmo se as

suas recordações de infância desaparecer, também não poderáaspirar conhecer o mundo sem conhecer o seu passado.

Como diz Caio Cesar Boschi é importante estudar histó-ria “para que possamos nos conhecer melhor”. Ent~o, é neces-sário compreender por que as coisas aconteceram de determi-nada maneira. “E também por que n~o acontecem do mesmojeito em todas as sociedades humanas. Entender como o mundo

se tornou o que é e não em algo diferente. Mais do que encon-trar respostas, estudar História é aprender a fa zer perguntas.” 39 

• História enquanto ferramenta indispensável para a construção deuma cidadania dinâmica.

Se não compreendermos o significado do voto, ou a ori-gem da divisão de poderes, por exemplo, será que conseguimos

valorizar suficientemente uma eleição?

38  DUBY, Georges. A História - um divertimento, um meio de evasão, um meio deformação. In: LE GOFF, Jacques et alii.  A Nova História. Lisboa: Edições 70,1991, p. 43.

39  BOSCHI, Caio César. Por que estudar História?  São Paulo: Ática, 2007, p. 10.

(grifos nossos)

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Ou mais importante, será que conseguimos pensar nomundo como ele podia ser e não apenas em como ele é?

Quem se interessa pela História procura mais do querespostas a questões pessoais: quer experimentar tam-bém o fascínio exercido pelo conhecimento do passado.Mas esse fascínio, que muitas vezes, nos é apresentadoatravés de jogos, minisséries televisivas ou por revistasde grande circulação, pode ser uma armadilha. É precisodesconfiar de um passado que vem “arrumado”, bem

apresentado, que nos convence facilmente e nos apare-ce como a “verdadeira” história do acontecido. O passa-do não fala por si só, como alguns desses produtos po-dem fazer supor. É uma reconstrução feita pelos ho-mens do presente e, portanto, marcada por experiênciasatuais. Por isso, as imagens do passado, transmitida pordiferentes veículos de comunicação, da mesma formaque podem nos esclarecer podem nos iludir.40 

• História enquanto fonte de experiência coletiva essencial à resolu-ção de futuros desafios. 

Sempre que uma sociedade se depara com um proble-ma, não será sensato ver que soluções, no passado, foram ado-tadas? Estas soluções foram eficazes ou não?

A história também possui caráter prospectivo, o quequer dizer que valendo-se do conhecimento histórico épossível projetar ou delinear o futuro. Não se trata defazer previsão, mas de concluir que a realidade futuraterá tais e tais prováveis desdobramentos a partir dasindicações ou tendências de hoje. Para realizar essa pro-

 

40 Ibid, p. 13-14.

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jeção é preciso dominar as informações do presente.Quanto mais conhecermos o presente maior será nossa

capacidade de delinear aspectos do futuro.41 

Sempre se disse que a História é importante para quenão cometamos os mesmos erros do passado, para que tenha-mos a oportunidade de organizar o presente e planejar o futurode modo mais seguro. Sob tal perspectiva, o estudo dos fatosconsumados teria um valor estratégico. Dito de outra forma,

essa ideia sugere que a análise e a crítica do passado determi-nam o alcance de um futuro livre dos problemas que um diaafligiram nossa sociedade.

Ao fazer esse tipo de uso para o passado, acabamos ro-mantizando a História como ferramenta indispensável ao pro-gresso. No entanto, seria o mesmo que dizer que a compreen-são do passado garante uma sociedade ou uma civilização maisaprimorada. Um exemplo: se todos os problemas sócio-

econômicos que a Primeira Guerra Mundial trouxe para a Eu-ropa conseguissem incutir a “liç~o”, uma Segunda Guerra Mun-dial jamais deveria acontecer. Mas não foi bem assim que ascoisas se deram....

Diante desse tipo de incoerência é que podemos intuirque a História não tem essa missão salvadora de alertar ao ho-mem sobre os erros que ele não pode cometer novamente. Na

verdade, antes de acreditar que as sociedades e civilizações jácometeram um mesmo equívoco duas vezes, devemos entenderque esses homens que são objetos de estudo do passado nãopensam, sentem, acreditam ou sonham da mesma forma atra-vés do tempo.

41 Ibid, p. 23.

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Desta forma, a noção de progresso atribuída à Históriadeve ser abandonada em favor de uma investigação dos valo-

res, das relações sociais, conflitos e outros vestígios que apon-tam a transitoriedade e a mudança dos contextos em que osfatos históricos ocorreram. É desse modo que entendemos queo homem e as sociedades que lutaram e sofreram na PrimeiraGuerra Mundial não são exatamente os mesmos que surgiramno cenário da Segunda Guerra Mundial.

Depois dessa reflexão, não devemos pensar que os con-

textos e períodos em que a História decorre são radicalmentediferentes entre si. De uma época para outra, podemos obser-var que as sociedades não abandonam seu antigo modo de agirpara assumir uma postura completamente inovadora. Em cadaperíodo é necessário reconhecer que existem continuidades edescontinuidades, que mostram a força que o passado possuiuenquanto referencial importante na formação dos indivíduos edas coletividades posteriores.

O historiador inglês Eric Hobsbawm chama a atençãosobre o “mau uso” que muitas vezes se faz da história. Visandofazer com que determinada população aceite uma ideologiapolítica, a história é manipulada.

Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias na-cionalistas ou étnicas ou fundamentalistas, tal como as

papoulas são a matéria-prima para o vício da heroína. Opassado é um elemento essencial, talvez o elemento es-sencial nessas ideologias. Se não há nenhum passado sa-tisfatório, sempre é possível inventá-lo.42 

42 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 17.

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Na opini~o do historiador inglês, “o passado legitima”,uma vez que “o passado fornece um pano de fundo mais glorio-

so a um presente que n~o tem muito o que comemorar.”43 Noentanto, ao contrário do que defende o senso comum, Hobs-bawm alerta que “o abuso ideológico mais comum da históriabaseia-se antes em anacronismo que em mentiras”44 

Diante deste quadro, a investigação do passado se trans-forma em um grande debate, em que cada pesquisador tem aoportunidade de mostrar uma riqueza inédita sobre um mesmo

tema. Assim sendo, não só temos a chance de pensar sobreaquilo que o ser humano já fez, mas também temos uma manei-ra curiosa, mesmo que seja pela completa diferença, de debateros nossos valores e questionar o agora com os “olhos” de nos-sos antepassados.

Sobre os “olhos” do historiador, é interessante observaro que diz Edward H. Carr sobre o profissional da História: “Ohistoriador nada mais é do que um figurante caminhando com

dificuldade no meio da procissão [...] o historiador é parte dahistória. O ponto da procissão em que ele se encontra determi-na seu ângulo de visão sobre o passado”.45 

43 Id. Ibid.44 HOBSBAWM, 1998, p. 19.

45 CARR, 1987, p. 35.

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tempo não é uma exclusividade do historiador. Pesquisadoresde outras áreas do conhecimento também têm dedicado ao

estudo deste tema. O não historiador Albert Einstein, ao se re-ferir ao tempo, registrou que o mesmo não passa de uma ilusão.“A distinç~o entre passado, presente e futuro não passa de umafirme e persistente ilusão."47 

O tempo sempre foi uma questão fundamental para aexistência humana.48 Inicialmente, os primeiros seres humanosa habitarem a terra determinaram a contagem do tempo por

meio da constante observação dos fenômenos naturais. Dessaforma, as primeiras referências de contagem do tempo estipu-lavam que o dia e a noite, as fases da lua, a posição de outrosastros, a variação das marés ou o crescimento das plantas pu-dessem mensurar “o quanto de tempo” se passou. Na verdade,os critérios para essa operação são diversos.

Ao longo da história da humanidade, acompanhando asnecessidades e a evolução da tecnologia, a definição de uma

unidade padrão para a medida do tempo evoluiu de forma sig-nificativa. A definição de uma unidade de tempo tem que terdois aspectos principais: ser condizente com a sua aplicação aocotidiano; ser precisa o suficiente para permitir seu uso emeventos situados, em escala de tempo, nos limites do conheci-mento científico à época de sua validade.

47 SAIGH, Yeda Alcide. Psicanálise e tempo. Montevideo.www.fepal.org/nuevo/images/stories/yeda_saigh.pdf , 2010, p. 4.48 Recentemente, um estudo veio desmentir essa premissa. Pesquisadores britânicos

e brasileiros constataram que os índios Amondawa, de Roraima, não têm noção doconceito abstrato de tempo, não o percebendo como algo em que os eventos ocor-rem. A tribo não possui as estruturas linguísticas que relacionam tempo e espaço,não tendo uma palavra equivalente a "tempo", nem mesmo para descrever perío-dos como "mês" ou "ano". Como não contam os anos, as pessoas não tem idade eassinalam a transição da infância para a vida adulta mudando de nome, assumin-

do uma nova identidade.

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Ao estabelecer o padrão unitário para a medida do tem-po é necessário escolher um fenômeno que se repita de forma

constante e regular, para que a contagem das repetições oufrações desta representação direta possa ser utilizada comomedida do tempo. Dentre os fenômenos naturais que podemser utilizados como fenômeno periódico, temos o movimentode rotação da Terra, sendo a sucessões dos dias e noites uma desuas consequências diretas, que são perceptíveis e influentesnão só ao ser humano, mas a todos os demais seres vivos inte-grantes do planeta.

A forma como o homem conta o tempo não é apenas ba-seada em uma percepção da realidade material; ela também évisivelmente influenciada pela maneira com que a vida é com-preendida. Ao longo da existência humana, em algumas civili-zações, a ideia de que houve um início em que o mundo e otempo foram concebidos juntamente vem acompanhada pelaterrível expectativa de que, algum dia, esses dois elementos

alcancem seu fim. Já outros povos entendem que o início e o fimdos tempos se repetem através de uma compreensão cíclica daexistência.

Santo Agostinho, um dos grandes doutrinadores daIgreja Cristã, foi o primeiro a questionar sobre a categoria tem-po. Indagava ele:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara ebrevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só como pensamento, para depois nos traduzir por palavras oseu conceito? E que assunto mais familiar e mais batidodas nossas conversas do que o tempo?49 

49 SANTO AGOSTINHO. Confissões. Porto: Apostolado da Imprensa, 1981, p. 303.

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Ao tentar dar uma resposta para o que seria o tempo,Santo Agostinho deixa registrado:

Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.Compreendemos também o que nos dizem quando delenos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se nin-guém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quemme fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a de-clarar, sem receio de contestação, que, se nada sobrevi-

esse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houves-se, não existiria o tempo presente.50 

Para Santo Agostinho, a existência de qualquer dostempos é condicionada à existência dos demais tempos, quedeixarão de existir ou não mais existem; logo, a própria exis-tência do tempo é uma incógnita, repleta de “n~o mais é”; “se oé já não se sabe, pois j| foi ou ser|” e de “nunca foi”. 

De que modo existem aqueles dois tempos – o passado eo futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda nãoveio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, enão passasse para o pretérito, já não seria tempo, maseternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem ne-cessariamente de passar para o pretérito, como pode-

mos afirmar que ele existe, se a causa de sua existênciaé a mesma pela qual deixará de existir? Para que diga-mos que o tempo verdadeiramente existe, porque tendea não ser?51 

50 Ibid, p. 304.

51 Id. Ibid.

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Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), um dos no-mes mais importantes da historiografia brasileira, dizia que “os

historiadores sempre foram e sempre serão presa fácil de seutempo”. Em funç~o disso, segundo ele “toda história é históriacontemporânea. Ou seja, nós sempre privilegiamos um aspectoem função de nossa realidade... Nós contamos a história a partirda vivência cotidiana de nossos problemas, de nossa realida-de”.52 

A História constitui um discurso sobre o mundo e a so-

ciedade, cujo objeto pretendido de investigação é o passado.Um mesmo objeto de pesquisa pode ser interpretado de manei-ras diversas, com diferentes leituras do passado. Isto se tornaimportante se considerarmos que quem controla o passadocontrola o presente quem controla o presente controla o futu-ro. O que se investiga, escreve e se ensina sobre o passado, des-ta forma, está ligado à realidade de hoje.

Nas palavras de Marc Bloch: "O passado é, por definição,um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento dopassado é uma coisa em progresso, que incessantemente setransforma e aperfeiçoa."53 

Hipoteticamente, podemos admitir que não exista pas-sado, pelo menos como algo com o que podemos estabelecercontato direto. Pelo menos não como popularmente nos refe-rimos a ele: algo mensurável, como se fora uma entidade con-

creta com a qual poderíamos fazer contato em todo instanteque assim desejássemos. Sendo assim, somos levados a admitir,também, que não temos acesso ao presente. Aquilo que cha-mamos de presente é um furacão que arremessa tudo para o

52 COELHO, João Marcos. A democracia é difícil: entrevista com Sérgio Buarque deHolanda. Veja, 28 jan. 1976.

53  BLOCH, 2001, p. 75.

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uma criança de hoje [...] domina uma trajetória que os homenslevaram milênios a percorrer”.56 

Esta posição pode ser reforçada pelas palavras de umespecialista no estudo do tempo. Gerald James Whitrow afirmaque

Em outras épocas, a maioria das pessoas trabalhava ar-duamente, mas se preocupava menos com o tempo quenós. Até o advento da moderna civilização industrial, a

vida das pessoas era muito menos conscientementedominada pelo tempo do que passou a ser desde então[...] Para entender como o conceito de tempo chegou adominar nossa compreensão tanto do universo físicocomo da sociedade humana, assim como controla o mo-do como organizamos nossas vidas e atividades sociaisdevemos examinar o papel que ele desempenhou ao lo-go da História.57 

O que distingue o historiador dos outros cientistas soci-ais é sua preocupação fundamental com o tempo, a duração, omovimento, as transformações e as permanências.

Sabemos que várias ciências não podem abstrair suapreocupação com o tempo. Contudo, para muitas delas, que porconvenção fragmentam o tempo em partes artificialmente ho-

mogêneas, o tempo é apenas uma medida.Mas, afinal o que é o tempo? É uma perpétua mudança;

é algo fatalmente irreversível e irrevogável. Nenhum esforçohumano o poderá retardar ou acelerar.

56 Id. Ibid.57 WHITROW, G. J. O tempo na História: concepções do tempo da pré-história aos

nossos dias. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 31.

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44 

Comumente, o tempo pode ser compreendido e estuda-do de três maneiras: tempo físico, tempo psicológico e tempo

histórico.O tempo físico é definido pelo movimento dos astros,

marcando o dia e a noite, as estações do ano e é marcado peloritmo dos relógios, calendários, cronômetros, etc. É o tempoobjetivo, visível, que é matemático, homogêneo, linear, quanti-tativo e convencional. Ele é composto de fragmentos comple-tamente iguais: os "momentos".

O tempo psicológico compõe-se de "situações" hetero-gêneas, isto é, de parcelas qualitativamente diferentes, que sãoúnicas e irrepetíveis. Não obedece à cronologia, não mantémnenhuma relação com o tempo físico, cuja passagem é alheia àvontade humana. É o tempo sentido, vivido pela dimensão hu-mana e que constitui uma situação concreta e individual. Otempo psicológico transcorre no interior de cada ser humano,numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação e

reflete suas vivências subjetivas, suas angústias e ansiedades. Éo tempo interior, que se alarga ou se encurta conforme o estadode espírito em que o individuo se encontra. Por isso, o tempopsicológico altera-se de pessoa para pessoa. Através de seusdevaneios e memórias, o indivíduo poderá ir ao passado e aofuturo, sem obedecer à ordem do tempo cronológico.

O tempo empregado pelos historiadores é o chamado

“tempo histórico”, que possui uma importante diferença dotempo físico, cronológico. Enquanto os calendários trabalhamcom constantes e medidas exatas e proporcionais de tempo, aorganização feita pela ciência histórica leva em consideração oseventos de curta e longa duração. Dessa forma, o historiador seutiliza das formas de se organizar a sociedade para dizer queum determinado tempo se diferencia do outro.

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O tempo histórico é uma realidade concreta, viva e irre-versível. O historiador usa o tempo para fixar com precisão o

momento em que um fato ocorreu na vida de um indivíduo e deuma sociedade. Mas o tempo histórico é social, qualitativo, des-contínuo, não estando preso às convenções estabelecidas peloscalendários. Uma "situação" no plano do tempo histórico é aprismatização do passado através do espírito humano.

A duração do tempo histórico é ritmada pelo modo deprodução econômico-social e pelos valores culturais predomi-

nantes em cada sociedade.O historiador pode admitir que a passagem de certo pe-ríodo histórico para outro ainda seja marcado por permanên-cias que apontam certos hábitos do passado, no presente deuma sociedade. Com isso, percebe-se que a História não admiteuma compreensão rígida do tempo, onde a Idade Moderna, porexemplo, seja radicalmente diferente da Idade Média. Na ciên-cia histórica, as mudanças nunca conseguem varrer definitiva-

mente as marcas deixadas pelo passado.Mesmo que o tempo histórico e o tempo cronológico se-

jam marcados por várias diferenças, o historiador utiliza a cro-nologia do tempo para organizar as narrativas que constrói.Concomitantemente, se o tempo cronológico pode ser organi-zado por referenciais variados, o tempo histórico também podevariar de acordo com a sociedade e os critérios que sejam rele-

vantes para o  estudioso do passado. Sendo assim, ambos têmgrande importância para que o ser humano organize sua exis-tência.

Na historiografia, o tempo passou a ser interpretado deuma forma diferente a partir dos anos 30 do século XX, com aEscola dos  Annales. Sob a influência das ciências sociais, ocor-reu uma revolução epistemológica quanto ao conceito de tem-po histórico. Para José Carlos Reis, no novo tempo histórico “h|

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nas o começo do trabalho do historiador. O tempo histórico nãose prende ao calendário diário ou aos ponteiros do relógio. O

tempo histórico é o próprio desenvolvimento do percurso quea humanidade fez até o presente momento.

Em outras palavras, o tempo histórico é o que chama-mos de “processo histórico”. É desse processo histórico que podemos obter esclarecimentos sobre a forma de agir e pensarde uma sociedade em um momento histórico específico. A no-ção de tempo histórico está ligada ao conjunto de ações sociais

e políticas, a seres humanos concretos, às instituições e organi-zações que dependem deles.

Contudo, o conceito de tempo histórico e a noção de du-ração não são aprendidos espontaneamente, nem são inatas,precisam ser construídas por meio de operações mentais e pormeio da linguagem e do pensamento, num longo e difícil pro-cesso de aprendizagem.

O tempo da História tem sua própria história, que deveconsiderar as diversas concepções de duração existentes nassociedades humanas e levar em conta as diferentes categoriasde tempo construídas pelas diferentes ciências (o tempo físico,o tempo psicológico, o tempo social, o tempo geológico, o tem-po astronômico, etc.).

Fernand Braudel concebia o tempo histórico em trêsdimensões distintas, estabelecendo uma dialética da duração:

tempo curto – acontecimento; tempo médio – conjuntura; tem-po longo - estrutura.

O grande historiador francês, ao refletir sobre a dimen-são temporal e sua dialética, explicita mais detalhadamentecada um destes tempos históricos. Desta forma, o tempo curtoou breve tem que ser assim compreendido:

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Em relação ao tempo longo ou à longa duração, Braudelafirma que esta dimensão temporal é a mais útil para uma ob-

servação e reflexão que sejam comuns às ciências sociais.

Para além dos ciclos e dos interciclos, está o que os eco-nomistas chamam, ainda que nem sempre a estudem, atendência secular [...] a palavra estrutura. Boa ou má, éela que domina os problemas da longa duração. Os ob-servadores do social entendem por estrutura uma orga-

nização, uma coerência, relação suficientemente fixasentre realidades e massas sociais. Para nós historiado-res, uma estrutura é [...] uma realidade que o tempodemora imenso a desgastar e a transportar. Certas es-truturas são dotadas de uma vida tão longa que se con-vertem em elementos estáveis de uma infinidade de ge-rações.62 

Por outro lado, se Braudel distingue três níveis tempo-rais, é importante o que ele diz sobre a articulação entre eles:“Longa duraç~o, conjuntura, acontecimento, ajustam-se semdificuldade, posto que todos têm a mesma escala de medida.”63 

É preciso registrar também que cada sociedade, ao lon-go da sua existência, constituiu historicamente o seu conceitode tempo e sua noção de duração, criando suas próprias formas

para medir, registrar e controlar o tempo.Os historiadores, por sua vez, procuram assinalar nas

suas periodizações as transformações que marcam a passagemde um período para outro no tempo. Há sempre uma dificulda-de para estabelecer-se uma periodização: qual é a data limite

62 Ibid, p. 14.

63 Ibid, p. 34.

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de um determinado período? Toda e qualquer divisão da Histó-ria em períodos suscita dúvidas e discussões.

A maior divisão que existe é aquela que divide a Históriaem dois grandes períodos: Pré-História e História propriamen-te dita. Tradicionalmente tem-se apontado o surgimento daescrita como o marco divisor entre Pré-História e História. As-sim, todas aquelas sociedades que não dominaram um sistemade escrita são incluídas na Pré-História. A dúvida que fica é se osurgimento da escrita é algo assim tão importante para servir

como marco divisor. Por exemplo: será que o surgimento daagricultura, quando o Homem passa a dominar as forças danatureza para garantir a sua própria sobrevivência não seriamais importante que o surgimento da escrita?

A periodização histórica mais conhecida é aquela quedivide a história em quatro grandes períodos:

História Antiga: tem início com o surgimento da escrita, porvolta de 4.000 a. C. e vai até o ano de 476, quando ocorre aqueda do Império Romano do Ocidente;

História Medieval : inicia-se em 476 indo até 1453, quando osTurcos tomam a cidade de Constantinopla, capital do ImpérioBizantino (Império Romano do Oriente),

História Moderna: compreende o período de 1453 até 1789,quando ocorre a Revolução Francesa;

História Contemporânea: tem início em 1789 e se estende atéos dias atuais.

Esta divisão é resultado da influência do Renascimento,que colocou um grande período da História da humanidade,classificado como obscuro e atrasado, no meio de dois períodosmarcados pelo desenvolvimento cultural. Surgia assim a tri-partição da História, proposta efetuada em 1685, por um pro-fessor da Universidade de Halle, Cristóvão Keller, que por mo-

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tivos didático-pedagógicos, dividiu-a em três períodos: Antiga,Média e Moderna.

Devido às enormes mudanças sofridas pela humanidadea partir da Revolução Francesa e da efetivação da ordem capi-talista, os historiadores do século XIX propuseram que seacrescentasse uma nova “era histórica”: a Idade Contemporâ-nea.

Esta periodização apresenta alguns problemas. Primei-ramente, ela foi feita levando-se em consideração apenas acon-

tecimentos históricos europeus. Além disso, há divergências noestabelecimento das datas limites que marcam o fim de umperíodo e início do outro. Por exemplo, em relação ao fim daIdade Antiga e início da Idade Média, diz Jean Glénisson:

É principalmente a data inicial da Idade Média que temprovocado as controvérsias. Esta idade intermediáriacomeça em 330, no dia da fundação de Constantinopla,ou em 378, quando os godos obtém a vitória de Andri-nopla; ou, de maneira ainda bem mais precisa, a 3 de ou-tubro de 382, data do tratado que reconhece aos visigo-dos, estabelecidos em solo do Império Romano, umaverdadeira autonomia? Ou, ainda, em 395, com a mortede Teodósio e a partilha definitiva do Império Romano?Isto se não preferimos 406, com a torrente dos hunos e

refluxo germânico; ou 476 quando é deposto RômuloAugústulo, último Imperador romano do Ocidente.64 

Para o fim da Idade Antiga, poderíamos ainda apontar adata de 391, quando o Cristianismo é declarado religião oficiale única do Império Romano. Da mesma forma, o fim da Idade

64 GLÉNISSON, 1983, p. 53.

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Média e início da Idade Moderna, várias datas podem ser apon-tadas: por volta de 1440, com a invenção da imprensa; 1453,

tomada de Constantinopla; 1492, descoberta da América; 1498,chegada dos europeus, pelo oceano, no Oriente (Indias); 1500,descoberta do Brasil; 1517, quando Martin Lutero dá início aReforma Protestante, dividindo a cristandade.

Assim, poderíamos apontar outras controvérsias quemarcam o limite entre um período Histórico e outro. O maisimportante é lembrar que sempre há um período de transição

entre uma “era Histórica” e outra. N~o é um simples marcocronológico que irá estabelecer as diferenças entre os períodoshistóricos. Da mesma forma, ninguém sai da adolescência eentra na fase adulta no dia em que faz 18 anos. Na realidadeesta divisão tradicional da História em períodos tem apenas umvalor simbólico, como aliás, acontece com todas as outras for-mas que estabelecem datas ou acontecimentos para periodizaro processo histórico.

Há outras formas de fazer a periodização histórica, to-das elas sendo passíveis de observações e críticas.

A história da Portugal, por exemplo, até a Proclamaçãoda República (1910) é dividida através do estabelecimento dasDinastias: 1139-1315: dinastia de Borgonha; 1315-1580: di-nastia de Avis; 1580-1640: União Ibérica (dinastia de Habsbur-go, da Espanha); 1640-1910: dinastia de Bragança.

Na periodização da história brasileira considera-se ocritério político-administrativo: 1500-1815: Colônia; 1815-1822: Reino Unido; 1822-1831: Primeiro Reinado; 1831-1840:Período Regencial; 1840-1889: Segundo Reinado; 1889-1930:República Velha (ou Primeira República); 1930-1945: Era Var-gas (ou Segunda República); 1945-1964: Período Democrático(ou Terceira República); 1964-1985: Ditadura Cívico-Militar;1985-... Nova República (ou qualquer outro possível nome...).

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A historiografia de cunho marxista estabelece uma peri-odização através dos chamados Modos de Produção. Assim

teríamos uma História dividida em: Era Primitiva  (Modo deProdução Primitivo); Era Antiga (Modo de Produção Escravistae Modo de Produção Asiático); Era Medieval   (Modo de Produ-ção Medieval); Era Capitalista (Modo de Produção Capitalista);Era Socialista (Modo de Produção Socialista). O que marcaria apassagem de uma “Era” para outra, com o estabelecimento deum novo Modo de Produção, seria a Revolução, entendida comoas transformações profundas pelas quais passa uma sociedade.

•  O Anacronismo

Um dos problemas mais sérios que existe no estudo e nacompreensão da história é o anacronismo.

O anacronismo (expressão que origina-se das palavras

gregas "contra" e "tempo") é um erro em cronologia, expressa-da na falta de alinhamento, consonância ou correspondênciacom uma época. Ocorre quando pessoas, eventos, palavras, ob-jetos, costumes, sentimentos, pensamentos ou outras coisasque pertencem a uma determinada época são erroneamenteretratados em outra época. Anacronismos podem ocorrer emum relato narrativo ou histórico, numa pintura, filme ou qual-quer meio.

Na História, o anacronismo consiste basicamente emutilizar os conceitos e ideias de uma época para analisar os fa-tos de outro tempo. Em outras palavras, o anacronismo é umaforma equivocada onde tentamos avaliar um determinadotempo histórico à luz de valores que não pertencem a essemesmo tempo histórico. Por mais que isso pareça um erro ba-nal ou facilmente perceptível, é necessário estar atentos sobre

como o anacronismo interfere na compreensão que temos da

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História. De acordo com Fernando Novais, "o historiador incor-re no anacronismo quando ele imputa aos protagonistas o co-

nhecimento sobre os acontecimentos posteriores. A reconsti-tuição se torna uma profecia do passado."65 

Ao analisar o anacronismo, José D’Assunç~o Barros fazalguns alertas para os cuidados necessários:

O que o historiador não deve fazer, com vistas a evitaros riscos do anacronismo, é inadvertidamente projetar

categorias de pensamento que são só suas e dos homensde sua época nas mentes das pessoas de determinadasociedade ou de um determinado período. Para com-preender os pensamentos de um chinês da época dosmandarins, terei de me avizinhar dos códigos que (tantoquanto me for possível perceber) regeriam o universomental dos chineses. Este exercício de compreender o'outro chinês' é que tem que ser feito. Mas não é a análi-

se que tem que ser chinesa.66 

Lucien Febvre já disse que o anacronismo é consideradoo "pecado capital" do historiador, o vício historiográfico inad-missível para o historiador profissional.67 Todavia, não são ra-ras as confusões entre o verdadeiro anacronismo - este quedeve preocupar todo bom historiador - e a capacidade ou ne-

cessidade de o historiador pensar com as categorias de suaprópria época.

É óbvio que não dá para desconsiderarmos, em deter-minados momentos, o fato de que quando examinamos as fon- 65 NOVAIS, Fernando Antonio. Entrevista à Folha de São Paulo. São Paulo, 24 de

abril de 2000.66 BARROS, José D'Assunção. O campo da História. Petrópolis: Vozes, 2004, p.53.

67 FEBVRE, 1969, p. 83.

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tes históricas, possamos projetar categorias de pensamento danossa época na mente das pessoas da época que estamos anali-

sando. Temos que entender uma outra época nos seus própriostermos, quando estamos trabalhando com as fontes. Entretan-to, na hora de concluirmos a nossa análise, temos de retornar ànossa época. As perguntas do historiador começam na sua pró-pria época. A partir destas perguntas, o historiador vai iluminaruma outra época, tentando enxergá-la nas suas fontes; e final-mente, ao analisar estas fontes, depois de tentar compreendercomo viviam os homens daquele período de seu passado, elevolta à sua época para fechar a análise.

O anacronismo só se dará se o historiador deformar osmateriais do passado. Por exemplo: não tem nenhum sentido“enxergar” uma força sindical entre os escravos que se rebela-ram sob a liderança de Spartacus, na Roma Antiga. Mas pode-mos analisar a revolta no contexto da crise econômica que fa-voreceu o declínio do Império Romano.

Tanto quanto possível, devemos procurar nos acercardos modos de pensar dos indivíduos da época que estamosestudando, através das fontes, e tentar compreendê-los. É umprocedimento análogo ao de um investigador criminal, quepara realizar o seu trabalho, também procura penetrar na men-te do criminoso, imaginar suas idiossincrasias a partir das pis-tas e indícios deixadas na cena do crime. Esse exercício de secolocar no lugar do outro é importante; mas não podemos nostransformar nesse outro. O investigador criminal não pode setransformar no criminoso. Da mesma forma, o historiador, paraestudar as guerras medievais, não precisa se vestir com a ar-madura dos cavaleiros, nem realizar a redação de seu texto emum castelo.

O historiador demonstra sua habilidade ao trabalharcom duas temporalidades da maneira adequada: a sua própria

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e a do período que está examinando. Da mesma forma, precisasaber fazer a distinção entre um conceito a ser operacionaliza-

do ao nível de sua análise e uma categoria de pensamento que éa dos homens de uma outra época, no momento em que estátrabalhando com as fontes e tentando compreendê-los.

O homem pertence ao seu tempo. Dito de outra forma,ele está arraigado de valores e, consequentemente, posturas daépoca em que vive, sendo passivo às influências da época emque está inserido. Assim sendo, o historiador deve ter todo o

cuidado, respeitando os valores de uma época quando se pre-dispõe a estudá-la, utilizando-se de metodologia e postura éticapara que possa fazer uma análise criteriosa e buscando dene-grir o mínimo possível seu objeto de estudo.

3.2-Espaço, espacialidade, território

É provável que a noção de espaço tenha sido percebidapelos seres humanos antes da noção de tempo. As línguas maisantigas que nos deixaram documentos, como o sumério, o egíp-cio, tendiam a espacializar o tempo. Mesmo em língua portu-guesa, estamos espacializando o tempo quando o qualificamoscomo “curto” ou “longo”.

Os historiadores também sempre perceberam as rela-ções profundas existentes entre História e o espaço, pois osfatos históricos ocorrem num espaço determinado, em limitesgeográficos. 

Sob o ponto de vista da História, o conceito de espaçodeve englobar duas dimensões: a geográfica (no sentido daGeografia Física, espacial) e a social (no sentido da GeografiaHumana, Demográfica, política). É onde se compreende espaço

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geográfico como lugar físico, onde se processam os eventos e sesucedem as lutas na história, as relações entre o homem e tal

espaço. É onde se compreende espaço social como aquele ocu-pado e transformado pelo homem, gênese do espaço econômi-co e, portanto, integrado e constituído do espaço histórico.

A concepção espacial compreende a concepção de tem-po, pois nele está inserida; compreende movimento, pois o ho-mem e as sociedades se deslocam no espaço geográfico; com-preende mudança, pois o homem e as sociedades estão em con-

tinuo processo de transformação no espaço que ocupam e como qual se relacionam; compreende transformação, pois o ho-mem, da mesma forma, transforma o meio em que vive; com-preende processo; pois há linhas gerais identificáveis nas modi-ficações naturais que ocorrem no espaço físico. Por fim, a con-cepção de espaço compreende relação, pois há uma continuadependência entre a sociedade e o meio físico. Tal concepçãocompreende em última análise uma inter-relação entre História

e Geografia, no que resulta numa relação entre cons-ciênciahistórica e a noção de espaço. 

Se formos analisar as obras de alguns pensadores do pas-sado desde a Antiguidade, vamos perceber que muitos delesviram as relações históricas em função do espaço geográficocomo motivo de suas preocupações: Heródoto (484 - 420 a.C),denominado o “Pai da História”, se preocupou com a descriç~odos lugares, numa perspectiva regional; Tucídides  (465-395a.C.) apresentou a idéia de crescimento orgânico dos Estados,bem como da influência do território sobre o caráter das na-ções; Hipócrates (460-375 a.C), “Pai da Medicina”, em sua obraDos Ares, das Águas e dos Lugares, trabalhou a influência doclima, ar, água e situação geográfica sobre o homem, e o efeitodas mudanças de estações sobre atitudes de indivíduos e po-vos, bem como a influência do ar, água e situação geográfica

sobre o homem;  Aristóteles  (384-322 a.C), realizou estudos,

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embora desarticulados, sobre a concepção de lugar (na suaFísica), sobre a relação homem-natureza (na sua Política), e

sobre a classificação dos tipos de Clima (na sua Meteorologia);Platão  (427-347 a.C), questionou se a situação marítima ou amontanhosa era a que traria maiores vantagens para um Esta-do; Estrabão (63 a.C-20 d.C), na sua obra Geografia, em 17 vo-lumes, relaciona o homem com o meio, destacando a relação daascensão do Império Romano com as características geográfi-cas da Itália. 

No final da Antigüidade teremos os estudos realizadospor Claudio Ptolomeu  (90-168), considerado o último dosgrandes cientistas gregos, e cabe-lhe a glória de ter feito a sín-tese da obra de seus predecessores, tratando de astronomia,física e geografia. Em sua principal obra,  A Grande Síntese (tra-duzida para o árabe com o título de Almagesto, pelo qual é maisconhecida) defendia o geocentrismo, que colocava a Terra nocentro do Universo, tese que terá grande influência nas concep-

ções de mundo por cerca de um milênio e meio. Foi ele tam-bém o primeiro a usar, em Introdução à Geografia, os termos“paralelo” e “meridiano”. As obras de Ptolomeu vão constituir-se num dos principais veículos de resgate das descobertas dopensamento grego clássico.

Além destes pensadores ocidentais, podemos acrescen-tar o filósofo chinês Sun Tzu, que no séc. VI a. C., escreveu so-bre a arte da guerra, onde é necessário considerar as condiçõesgeográficas para se obter sucesso no campo de batalha.

Durante a Idade Média o conhecimento geográfico nãoprogrediu na Europa. Estudiosos da Geografia somente serãoencontrados entre os árabes.  Al-Idrisi (1099-1165), construiuum globo celeste e um mapa-mundi de prata, e fez estudos queabrangiam Ásia, África e Europa. Ibn Khaldun  (1332-1406)chega hoje a ser considerado um dos precur-sores da geografia

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humana. Desenvolveu um pensamento que considerava haveruma analogia entre a vida dos seres vivos e dos Estados: os

impérios têm vida própria, nascem, crescem, atingem a maturi-dade, declinam e morrem.

É importante salientar que o conhecimento geográficoera agradável a Alá, por que facilitava a peregrinação anual dosfiéis até Meca, bem como auxiliava nas “Guerras Santas 

No início dos tempos Modernos veremos a continuidadedos estudos que vinculavam o desenvolvi- mento histórico com

o espaço. Assim, Gerhard Kremer, mundialmente conhecidocomo  Mercator (1512-1594), revolucionou as representaçõescartográ-ficas, elaborando um mapa-mundi e um globo terres-tre, utilizando projeções para desenhá-los; Jean Bodin (1530-1596) viu com claridade a relação entre a terra e o Estado. Paraele, o solo determina os habitantes, molda-os física e espiritu-almente, decide suas ações e sua história. Mas o efeito do climalhe parecia ser mais forte do que outros fatores geográficos.

Com o Iluminismo, nas obras de alguns de seus pensa-dores também veremos a relação História e espaço ser aborda-da: Montesquieu (1689-1755), tratou do tamanho dos Esta-dos, o espaço, a distância, as diferenças de nível, todos fatoresfundamentais, que desempenharam papel importante no de-senvolvimento da geografia política moderna e na formação deuma Weltanschauung68  geográfica. Rousseau (1712-1778)

discutiu a relação entre a gestão do Estado, as formas de repre-sentação e a extensão do território de uma sociedade. Afirmavaque a democracia só era possível nas nações que possuíam ter-ritórios pouco extensos e que os Estados de grandes dimensõesterritoriais tendiam necessariamente para formas de governoautocráticas.

68 Weltanchaung pode ser entendida como ideia ou concepção de mundo.

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“Espaço é Poder” : Este princípio ratzeliano vai embasartodo o pensamento geopolítico posteriormente. Ratzel partiu

do princípio de que existia uma estreita ligação entre o solo e oEstado. Diante disso, afirmava que o solo aparece como a causa“mais profunda da sujeição humana, na medida em que perma-nece rígido, imóvel e imutável, abaixo das mutáveis disposiçõeshumanas”, e por outro lado “se ergue dominador acima do ho-mem toda vez que este ignora sua presença para adverti-loseveramente de que a raiz da vida está unicamente no solo.76 

Este posicionamento de Ratzel trata-se de uma ilustraçãopolítica daquilo que alguns de seus detratores, principalmenteos vinculados à Escola Geográfica Francesa, passaram a chamarde determinismo geográfico.77  A concepção determinista dageografia, na verdade, foi obra de alguns dos discípulos de Rat-zel, mais precisamente dos geógrafos Ellen Semple e EllsworthHuntington, que deturparam e radicalizaram as formulaçõesteóricas do mestre.

Ellen Churchill Semple  (1863-1932) foi a principalresponsável pela divulgação do pensamento ratzeliano nosEUA. Radicalizando as ideias do mestre, desenvolveu uma teo-ria que relaciona a religião com o relevo: nas regiões planas,

76 RATZEL, F. Geografia do Homem (antropogeografia ). In: MORAES, 1990, p. 81.77 É lugar comum classificar Ratzel como determinista. No entanto, muitos estudiososde sua obra defendem a tese de que o geógrafo alemão não foi um deterministasimplista, como o acusaram seus adversários. Entre estes estudos, ver por exem-plo: MORAES, 1990, p. 10; CARVALHO, Marcos B. de. Ratzel: releituras contem-porâneas. Uma reabilitação? Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Socia-les. Barcelona, nº 25, abril de 1997; HARTSHORNE, Richard. Propósitos e natu-reza da Geografia. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1978, p. 61, nota nº 5; CAPEL, H.Filosofia y ciencia en la geografia contemporánea. Una introducción a la geogra-

fia. Barcelona: Barcanova, 1981, p. 284-285.

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predominariam religiões monoteístas, enquanto nas regiõesmontanhosas predominariam religiões politeístas.78 

Para Ellsworth Huntington  (1876-1947) as condiçõesmais hostis proporcionariam maior desenvolvimento de umasociedade. Assim, os rigores do inverno explicariam, pelas ne-cessidades impostas, o desenvolvimento das sociedades euro-peias.79 

O que fica claro é que Ratzel defendia que o meio físicoexerce influência sobre a organização dos seres humanos. Ele

identifica quatro formas de influência da natureza sobre o ho-mem:80 

i) a que se exerce sobre os indivíduos e produz nestes uma mo-dificação profunda; ela age primeiramente sobre o corpo e so-bre o espírito do indivíduo; posteriormente passa a agir noâmbito da história e da geografia, estendendo-se a povos intei-ros;

ii) a que direciona, acelera ou dificulta a expansão das massasétnicas, determinando a direção desta expansão, sua amplitudee posição geográfica, culminando com os limites;

iii) sobre a essência íntima de cada povo, impondo a ele condi-ções geográficas que favoreçam seu isolamento, conservando ereafirmando determinadas características, ou ao contrário,facilitando a miscigenação com outros povos e perdendo aspróprias características;81 

78 SEMPLE, Ellen Churchill. Influences of Geographic environment  – on the basis ofRatzel’s system of anthropogeography. New York: H. Holt, 1911.

79  HUNTINGTON, Ellsworth. Civilization and climate.  New Haven: Yale UniversityPress, 1915.

80 RATZEL, 1990, p. 59-60.81 “Um território fechado em si mesmo favorece a formação de um povo homogêneo

impedindo ou limitando a penetração de elementos estranhos. Por esta razão as

ilhas se caracterizam em geral por uma grande homogeneidade ética e de civili-

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iv) sobre a constituição social de cada povo, oferecendo-lhemaiores ou menores riquezas naturais, facilitando-lhe ou difi-

cultando-lhe a obtenção dos meios necessários à vida.A concepção geográfica de Ratzel é a de uma Geografia do

Estado - que aliás, não poderia ser diferente, tendo em vista ocontexto histórico em que ele formulou sua teoria geográfica -pois veicula uma concepção totalitária, a de um Estado todo-poderoso. Ratzel é um Homem de Estado. Ele teve ligações ofi-ciais com o Estado Prussiano. Um ano após seu ingresso na

Universidade de Heidelberg foi convocado pelo exército daPrússia, participando da guerra franco-prussiana como oficial.Mais tarde vai ser coordenador do Comitê Central para o Estu-do da Geografia da Alemanha, organismo estatal inter-univer-sitário. Para ele, os Estados, “se s~o fortes exercem uma enor-me influência exterior, enquanto fracos se encontram em graveperigo. Esta é em qualquer parte da Terra a vantagem e a des-vantagem que confere a um Estado a centralidade da posição

política.”82 Ratzel enxergava no Estado - e, portanto, no território

delimitado por fronteiras políticas - o objeto de estudo da geo-grafia. Desta forma, interpretou a construção do território esta-tal como a mais elevada conquista do espírito e da cultura hu-mana.83  Como defendia que “com o Estado, est amos tratando

zação de seus habitantes. Ao contrário, um território muito aberto favorece a mis-cigenação e o cruzamento dos povos.” (RATZEL, 1990, p. 59.)

82 Ibid, p. 102.83 Estas ideias de Ratzel foram posteriormente manipuladas para fins de legitimação

do expansionismo nazista. Segundo ideólogos do nazismo, Ratzel explicitava asuperioridade alemã, como por exemplo, quando faz a afirmação: “Os alemães vie-ram do interior das florestas para os grandes cenários da história, e na paz ou naguerra fizeram com que seu nome esteja entre os mais respeitados e os mais te-

midos.” (RATZEL, F. As raças humanas In: MORAES, 1990, p. 109).

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Ao contrário da Alemanha, a França se unificou preco-cemente: a centralização do poder estava assegurada há sécu-

los com o advento da monarquia absolutista.O pensamento geográfico francês terá como finalidade

combater a geografia ratzeliana legitimadora da ação imperia-lista do Estado alemão. Eis a razão das críticas que La Blachefazia à geografia alemã.

A crítica mais importante que é feita à Ratzel é a respei-to da politização explícita de seu discurso, ou seja, La Blache

condenava o fato das teses ratzelianas abordarem abertamentede questões políticas ligadas ao poder. Em função de uma su-posta objetividade, La Blache condenava a vinculação entre opensamento geográfico e a defesa dos interesses políticos ime-diatos. Acenando com o cl|ssico argumento liberal da “necessá-ria neutralidade do discurso científico”, a ideia era produziruma geografia despolitizada. Na verdade não passava de umadissimulação da ideologia burguesa, temerosa do potencial

revolucionário do avanço das ciências humanas.La Blache critica também o caráter naturalista da obra

de Ratzel, onde o elemento humano aparece quase passiva-mente frente {s imposições do meio. A este “determinismo ge-ogr|fico” é contraposto o “possibilismo geogr|fico”, teoria queprocurará mostrar a reciprocidade de influências entre o ho-mem e o meio natural, no interior do qual a capacidade humana

dota o homem de ampla “possibilidade” de dominar o meio. LaBlache atribuirá um papel maior à história para levar em contaas maneiras pelas quais o homem se relaciona com os fatoresfísicos. Esta é a maior contribuição lablachiana para o desen-volvimento do pensamento geográfico. Apesar disso, não houveum rompimento total com a visão naturalista, pois afirmavaque “a Geografia é uma ciência dos lugares, n~o dos homens.” 

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Outra crítica era feita à concepção fatalista e mecani-cista da relação entre os homens e a natureza. Atacava assim, a

ideia da determinação da História pelo meio natural. Propõe LaBlache uma postura relativista no trato desta questão, afir-mando que tudo o que interessa ao homem é “mediado pelacontingência”. Diante disso, vai definir o objeto da Geografiacomo a relação homem-natureza, na perspectiva da paisagem,colocando o homem como um ser “ao mesmo tempo, activo epassivo”, que apesar de sofrer a influência do meio, atua sobreeste meio, transformando-o. No entanto, La Blache faz um aler-ta:

Em todo caso, as causas físicas, cuja importância os geó-grafos se tinham anteriormente esforçado por subli-nhar, não devem por isso ser desprezadas; importasempre assinalar a influência do relevo, do clima, da po-sição continental ou insular sobre as sociedades huma-

nas.87 

Vidal de La Blache fortaleceu o propósito humano daGeografia. Porém, sua geografia fala da população, de agrupa-mentos humanos, nunca de sociedade; aborda estabeleci-mentos humanos, mas não relações sociais; estuda técnicas einstrumentos de trabalhos, mas não o processo de produção.Discutindo a relação homem-natureza, esquece das relaçõesentre os homens.

Nos desdobramentos da proposta de La Blache surge apreocupação com os estudos regionais. Ele estava convicto deque somente nos estudos regionais minuciosos é que se daria aunidade da geografia. A ideia de região foi sendo compreendida

87 LA BLACHE, Vidal de. Princípios de Geografia humana. Lisboa: Cosmos, 1954.

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como um produto histórico, que expressaria a relação dos ho-mens com a natureza. Este processo de historicização do con-

ceito de região representou um fortalecimento da GeografiaHumana. O grande número de estudos regionais fez aparecer asespecializações: Geografia Agrária, Geografia Urbana, Geografiada População, entre tantas outras. Também a cartografia aca-bou sendo uma técnica privilegiada da pesquisa e da reflexãogeográficas, tendo em vista seu poder de sintetizar as relaçõesregionais a serem estudadas.

Vidal de La Blache terá uma influência significativa so-bre as primeiras gerações dos membros da Escola dos Annales.Lucien Febvre e, principalmente, Fernand Braudel vão utilizaro pensamento lablachiano para compreender a organizaçãoespacial onde se desenvolvem os fenômenos históricos.

Na verdade, a história das sociedades humanas, dequalquer nível, não pode ser dissociada das condições geográfi-cas. Há a necessidade de se articular espaço e tempo, história e

geografia. Esta articulação - geo-história - foi evidenciada porFernand Braudel, analisando a dialética entre os limites estabe-lecidos pelo tempo da natureza e pelo tempo da história. O his-toriador francês mostrou de que forma a geografia pode servircomo grade de leitura da sociedade, como rocha sólida a partirda qual os homens se fixam.88 

Assim a geo-história, segundo Fernand Braudel, é umolhar mais espacial que temporal, podendo ser identificadacomo uma das estruturas da História. Em sua principal obra, OMediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II , considerada pelo New York Times como “a obra histórica maissignificativa do nosso tempo”, Braudel utilizou mais de 300páginas para mostrar como as condições geográficas interfe-

 88 HEINSFELD, Adelar. As ações geopolíticas do Barão do Rio Branco e seus refle-

 xos na Argentina. Porto Alegre: PUCRS (Tese de doutorado), 2000, p. 53-54.

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rem na organização sócio-econômico-política de um povo. Poroutro lado, em outra obra, alerta para a necessidade de tomar-

se cuidado para n~o cair no “determinismo geogr|fico”, lem-brando que “os fatores geogr|f icos, que devem ser levados emconta pela História, só ganham importância decisiva quandopostos em relação com outros dados, econômicos, sociais e cul-turais.” E enfaticamente conclui: “Essa consideraç~o, banal, énecessária se quisermos evitar qualquer equívoco deterministaf|cil.”89 

Ao analisar esta proposição da relação tempo-espaço,pode-se dizer que Fernand Braudel é revolucion|rio. “Ele sub-verte nossa visão de mundo em seu sentido próprio, ou seja, osquadros comuns da representação que fazemos do espaço e dotempo histórico.”90 

Durante muito tempo, se estabeleceram relações neces-sárias entre o meio geográfico e as sociedades humanas, defen-dendo-se o princípio que o meio geográfico determinaria o ca-

ráter e o comportamento dos grupos e indivíduos humanos.A Geografia mesmo se encarregou de criticar essa con-

cepção determinista, servindo-se da História para pesquisar asmudanças e as sobrevivências, reconhecendo a existência decondições estáveis criadas pelo espaço geográfico, mas conclu-indo, como a História, que as condições geográficas mudamcom o tempo e a história.

Para além da discussão envolvendo determinismo epossibilismo, que teve origem com as escolas geográficas alemãe francesa, surge a Geografia Crítica, que engloba várias pos-turas contrárias à chamada Geografia Tradicional. Ela se nota-

 89 BRAUDEL, 1988, p. 85.90 FOURQUET, François. Um novo espaço-tempo. In: LACOSTE, Yves (Coord.). Ler

Braudel . Campinas: Papirus, 1989, p. 79.

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biliza pela defesa que seus autores fazem da necessidade datransformação da realidade social. É uma Geografia militante,

que luta por uma sociedade mais justa e que desmistifica a i-deia do conhecimento geográfico neutro. Este conhecimentoassume uma postura política.

O autor que fez a critica mais radical à Geografia Tradi-cional foi o francês Yves Lacoste (1929-...) em A Geografia: issoserve em primeiro lugar, para fazer a guerra,91 escrito em 1976.Ele argumenta que o saber geográfico se manifesta em dois

planos: a “Geografia dos Estados Maiores” e a “Geografia dosProfessores”. A primeira, sempre foi ligada { pr|tica do poder,seja através dos Estados ou de grandes corporações internaci-onais, que estabelecem estratégias de dominação da superfícieterrestre. A segunda, seria a Geografia Tradicional, que temuma dupla função: i) mascarar a existência da “Geografia dosEstados Maiores”, apresentando o conhecimento geográficocomo inútil, mascarando o valor estratégico de saber pensar o

espaço, tornando-o desinteressante para a maioria das pessoas;ii) levantar, camufladamente, dados para a “Geografia dos Es-tados Maiores”, fornecendo informações precisas sobre os va-riados lugares da Terra, sem gerar suspeita. Assim, o indivíduotem uma visão fracionada do espaço, enquanto o Estado temuma visão integrada e articulada deste espaço, pois age em to-dos os lugares, facilitando a dominação.

Influências extra-geográficas também colaboram paraque a Geografia adquirisse uma nova dimensão, como é o casode Michel Foucault , ao enfatizar: “seria preciso fazer uma his-tória dos espaços - que seria ao mesmo tempo uma história dospoderes - que estudasse desde grandes estratégias da geopolí-

 91  LACOSTE, Ives.  A Geografia: isso serve em primeiro lugar, para fazer a guerra.

Campinas: Papirus, 1988.

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tica até as pequenas t|ticas do habitat.”92  A preocupação deFoucault é com a discussão entre o espaço e o poder. Na verda-

de, a Geografia Crítica tem como seus objetivos, também, rom-per o isolamento do geógrafo em relação à outras áreas do co-nhecimento.

Sem dúvida uma das grandes contribuições na área daGeografia, nos últimos anos, é o conjunto da obra do brasileiroMilton Santos (1926-2001). A partir da sua obra Por uma Geo- grafia Nova,93  o autor mostra a necessidade de se discutir o

espaço social e que o mesmo é histórico, fruto do trabalho dohomem.94 

Para Milton Santos, toda atividade produtiva dos ho-mens implica numa ação sobre a superfície terrestre, criandonovas forças. Assim, “o ato de produzir é igualmente o ato deproduzir espaço. A promoção do homem animal a homem soci-al deu-se quando ele começou a produzir”95. A organização doespaço é determinada em função do modo de produção adota-

do.As diferenças dos lugares são naturais e históricas; a

variaç~o da organizaç~o do espaço é fruto de “uma acumulaç~odesigual de tempo”. Esta organizaç~o é uma combinaç~o devariáveis, resíduos vivificados pelo tempo presente, unificadosnum movimento geral pelo Estado. No sistema Capitalista, esteprocesso obedece à lógica do capital e não aos interesses do ser

humano, definindo o uso do solo, a apropriação dos recursos92 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder . Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 212.93 SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitc, 1990.94  Outras obras de destaque: SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis:

Vozes, 1982; ___. O trabalho do Geógrafo no terceiro mundo. São Paulo: Hucitec, 1986; ___. Metamorfose do espaço habitado.  São Paulo: Hucitec, 1988; ___.Técnica, espaço, tempo: Globalização e meio-técnico-científico informacional . SãoPaulo: Hucitec, 1996; ___. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1998.

95 SANTOS, 1990, p. 161.

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naturais, a relação entre os lugares,... Resulta daí uma organiza-ção do espaço caracterizado pela desigualdade, uma vez que a

história do capital é seletiva, elegendo áreas, estabelecendodivisão territorial do trabalho, impondo uma hierarquia de lu-gares.

Existem outras questões importantes para a discussãosobre história e espaço. O geógrafo suíço Claude Raffestin (1936-...) faz uma distinç~o bastante interessante entre o “es-paço” e o “território”: 

o território se forma a partir do espaço, é o resultado deuma ação conduzida por um ator sintagmático (ator querealiza um programa) em qualquer nível. Ao se apro-priar de um espaço, concreta ou abstratamente (porexemplo, pela representaç~o), o ator “territorializa” oespaço.96 

Esta concepção de espaço trabalhada por Raffestin estáligada ao aspecto físico deste espaço, deixando de fora outrasconcepções de espaço que, necessariamente, no mundo atualtem que ser levadas em consideraç~o, como o “espaço social”, o“espaço imagin|rio”, o “espaço virtual”, que s~o resultados dasações humanas. Ele lembra que o espaço é um “local” de possi-bilidades, a realidade material preexistente a qualquer conhe-

cimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir domomento em que um determinado ator manifeste a intenção dese apoderar deste espaço. Nesta concepç~o, “o território seapóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partirdo espaço.” Toda produção, por causa das relações que envolve,“se inscreve num campo de poder.”97 

96 RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do poder . São Paulo: Ática, 1993, p. 143.

97 Ibid, p. 144.

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A HISTÓRIA DA HISTÓRIA

“A história da história n~o pode ser uma operaç~o ino-cente,”98 afirma o historiador francês Pierre Nora. Por que nãoé inocente? Por que ao fazer uma história da história, o histo-riador está carregado de subjetividades, onde seus valores e

seus interesses estão presentes e vão nortear o olhar sobrecomo se produziu a história ao longo do tempo.

Desde os tempos mais remotos, os grupos humanosquerem explicar a sua origem e a sua evolução, criando paraisso, um conjunto de símbolos com os quais representam a rea-lidade, de acordo com a sua cultura.

Alguns povos da antiguidade, em que pese o seu desen-

volvimento cultural, não sentiram a necessidade de fixar porescrito suas lembranças coletivas. Podemos citar o caso do Egi-to e da India, onde havia as condições para o desenvolvimentode uma historiografia: “havia um público instruído, capaz de lê-la, e todos os elementos de uma história documentada acumu-lavam-se em arquivos organizados nos palácios e nos templos

98 NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto Histó-

ria. São Paulo: PUC/SP, nº 10, dez.1993, p. 10.

apítulo IV 

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pelos funcionários e sacerdotes.”99 No entanto, estes povos nãose interessaram pelos fatos históricos considerados em si

mesmo.Vai ser somente na Grécia que surgirá a preocupação

em registrar de forma sistemática o passado das ações empre-endidas pelo ser humano.

4.1 - A História Mítica

A História, quando surgiu na Grécia entre os séculos VI eV a.C., estava relacionada à explicação mítica da realidade, ba-seada nos mitos, nas lendas e nas crenças mágico-religiosas,compartilhada por todos os membros do grupo, sob a formados rituais e da linguagem, e transmitida oralmente de geraçãopara geração. Nos primórdios da história, as narrativas, emborajá contivessem informações importantes sobre a vida social,

confundiam os mitos com a realidade e davam grande destaqueàs aventuras dos heróis míticos.

A história mitológica é sempre uma história com perso-nagens sobrenaturais, os deuses, sendo que os homens são ob-jetos passivos da ação desses deuses.

Os mitos contam em geral a história de uma criação, doinício de alguma coisa. É sempre uma história sagrada.Comumente se refere a um determinado espaço detempo que é considerado um tempo sagrado: é um pas-sado tão distante, tão remoto, que não o datam concre-tamente, não sabem quando ele se deu. É um tempoalém da possibilidade de cálculos.100 

99 GLÉNISSON, 1983, p. 14.

100 BORGES, 1983, p. 11.

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4.2 - A História na Antiguidade Clássica

Com o desenvolvimento histórico das sociedades hu-manas, outras formas de explicação da realidade surgiram.Embora predominassem nesta fase as explicações baseadas emprincípios racionais, a explicação mítica ainda sobrevive, para-lelamente, mas não mais como a única forma de explicar a rea-lidade.

Com a desagregação das sociedades primitivas, a pro-

priedade coletiva foi substituída pela propriedade privada,acarretando a formação de classes sociais e, por conseguinte, osurgimento do Estado, com poder de legitimar o novo sistemade propriedade e de manipular a produção intelectual, visandoo reforço do seu poder. Com o desenvolvimento da cidade-estado grega - a  pólis - possibilitou o desenvolvimento de umaabordagem mais objetiva da realidade pela Filosofia e pela His-tória.

Nas obras dos primeiros historiadores, como Heródoto,Tucídides, Xenofontes e Políbio, estavam presentes a busca daverdade dos fatos e a preocupação com a pesquisa e a críticadas fontes, ainda que as suas reconstruções da realidade incor-porassem a imaginação e tivessem uma finalidade comprobató-ria, ou seja, apelavam ao real para comprovar a história queeles imaginavam ter ocorrido. De qualquer forma, pode-se di-

zer que a historiografia grega é uma forma de produção do co-nhecimento histórico que "passa o sobrenatural para o segun-do plano, deixando o primeiro para o humano", instalando umnovo método - a pesquisa e a crítica sistemática dos fatos ver-dadeiros e reais.

Assim, durante a antiguidade, houve a consciência, porparte de quem escrevia a história, de que em relação ao passa-do havia ocorrido uma ruptura no decorrer do século V a. C.

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Naquele período emergiu um discurso histórico que aspirava averdade.

Quando Heródoto (484 a.C.-420 a. C.), nascido em Hali-carnasso, capital da Cária, territorio situado na atual Turquia,escreveu sua obra, chamada História, na introdução ele explicaseus objetivos:

Os resultados das investigações de Herôdotos de Hali-carnassos são apresentados aquí, para que a memoria

dos acontecimentos não se apague entre os homens como passar do tempo, e para que os feitos maravilhosos eadmiráveis dos helenos e bárbaros não deixem de serlembrados, inclusive as razões pelas quais eles se gue-rrearam.102 

Heródoto merece o título de "Pai da História", alcunha

dada pelo filósofo romano Cícero, não por ter inventado a his-tória tal como a concebemos hoje, e sim por ter dado um gran-de passo nessa direção. Embora Heródoto avance na questãoda criticidade das fontes, tentando diferenciar quais delas nãosão confiáveis, o "Pai da História" ainda possui uma grandequantidade de características de seus antecessores, os logógra-fos (sistematizadores de mitos). Tal como estes, Heródoto crêna infalibilidade dos oráculos e na determinação do destino

humano pelos deuses. Podemos afirmar que Heródoto vê a his-tória como que regida por uma lei divina, que escapa do contro-le dos homens. Para ele, os homens estão fadados a não ultra-passarem jamais certos limites de poder, riqueza ou beleza, sobpena de atraírem a inveja dos deuses, que castigam impiedo-samente a arrogância. Dessa forma, os grandes homens, os

102 HERÔDOTOS, 1985, p. 19.

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toriográfica, caso fosse comprovado que Heródoto acreditavanos deuses gregos, o "Pai da História" perderia o direito ao seu

título, pois não estaria realizando uma história científica. Esta linha de pesquisadores, que busca transformar He-

ródoto em um historiador nos moldes positivistas, na mais es-trita concepção do termo, tem no historiador britânico RobinGeorge Collingwood (1889-1943) um de seus representantesmais ilustres. Para este autor, Heródoto preenchia os quatrorequisitos básicos para fazer uma história positivista: a) cientí-

fica - começa por uma indagação e procura uma resposta; b)humanista - preocupa-se, basicamente, com os feitos realizadospelos homens; c) racional - busca fundamentar com provas assuas conclusões; d) auto-reveladora - mostra aos homens o queos seus semelhantes realizaram no passado.103 

De qualquer forma, Heródoto continua sendo uma refe-rência obrigatória da historiografia grega, embora outros histo-riadores gregos o tenham suplantado.

De forma geral, como características básicas da histori-ografia produzida pelos gregos, podemos apontar:

• A narração dos fatos singulares vividos coletivamente. Comotinham uma visão geral daquilo que presenciavam, os histori-adores escreviam como se já soubessem de antemão aquiloque iria acontecer. Embora tivessem a preocupação com apesquisa e a crítica das fontes como fundamentos da verdadehistórica, nada impedia que o historiador imaginasse fatos ousituações não descritos nas fontes que utilizavam. Era possí-vel o autor reescrever com suas próprias palavras os discur-sos pronunciados por autoridades políticas da época;

103 COLLINGWOOD, Robin George. A Idéia da História. Lisboa: Editorial Presença,

1994, p. 33.

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ser possível buscar a verdade dos fatos em narrativas baseadana falha memória humana e nas interpretações de “homens que

tem aversão pela pesquisa meticulosa da verdade, e tão grandeé a predisposição para valer-se apenas do que está ao alcanceda m~o”.107  Assim, sua história  teria a utilidade de lembrar oshomens, ser memória escrita, uma aquisição a qual se poderiaconsultar sempre, diferentemente das “estórias dos temposanteriores, transmitidas por tradição oral, mas muito raramen-te confirmadas pelos fatos, deixaram de ser incríveis”.108 

Uma outra característica da historiografia grega era aglorificação do Homem, como o herói grego. Diante disto, Polí-bio (203 a.C.-120 a.C.) criticava os historiadores que, até então,não conseguindo encontrar um desenlace para sua narrativahistórica, faziam “intervir deuses e filhos de deuses na história” para explicar determinados fatos.109 

Políbio considerava a História uma verdadeira ciênciaque exigia o amor à verdade, o exame metódico e crítico das

informações disponíveis e, ainda, o exame direto dos locais emque os eventos ocorreram. Foi ele, aparentemente, o primeirohistoriador a atribuir tal importância à geografia. 

Ao refletir sobre o oficio de registrar a história, Políbioescreveu:

a tarefa específica do historiador é em primeiro lugar

procurar saber quais foram as palavras realmente pro-nunciadas, quaisquer que tenham sido elas, e em segui-da descobrir as razões pelas quais o que foi feito ou ditolevou os personagens ao fracasso ou ao sucesso. Real-

 107 TUCIDIDES, 2001, p. 13.108 Ibid, p. 15.

109 Apud GLENISSON, 1983, p. 17.

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mente, a simples afirmação de um fato pode interessar-nos mas não nos trás benefícios; quando porém, acres-

centamos ao fato a sua causa, o estudo da História tor-na-se frutuoso. A transposição mental para o nossotempo de circunstâncias passadas análogas dá-nos osmeios para fazer previsões a respeito dos acontecimen-tos futuros, capacitando-nos às vezes a tomar precau-ções, e às vezes, graças á reprodução de situações ante-riores, a enfrentar com maior confiança as dificuldadespendentes sobre nós.110 

Um outro historiador, menos conhecido, Deodoro daSicília  (90 a.C.-30 a.C.), grego que viveu sob domínio romano,deixou registrado a importância utilitária da história:

Em todas as circunstâncias da vida, dever-se-ia acredi-tar que a história é a mais útil das disciplinas. Aos jo-

vens ela confere a prudência dos adultos. Em relaçãoaos velhos, ela redobra e multiplica a experiência já ad-quirida. Ela torna simples particularidades dignos degovernar, e, em relação aos governantes, ela os inclina afaçanhas admiráveis pela imortalidade advinda da gló-ria! Graças aos elogios que estes merecerão depois desua morte, ela predispõe mais os militares a correr ris-cos pela Pátria! E desvia os criminosos da senda do malpelo temor às ignomínias eternas!111 

É interessante observar que os “criadores” da histórianão tinham a ideia de uma “humanidade universal”. De acordo

110 POLIBIOS. História. Brasília: Ed. UnB/IPRI, 1985, p. 414-415.111 Apud PINSKY, Jaime. 100 textos de História Antiga. São Paulo: Global, 1980, p.

149.

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com José Carlos Reis, os historiadores gregos não pretenderamrevelar o destino da humanidade. “Eles criaram um conheci-

mento dos homens estranho a toda ideia de evolução, progres-so, restringindo-se ao registro e à interpretação das ações hu-manas de alcance limitado”.112 

Normalmente se considera Tucídides como o maior his-toriador grego, importante pelo rigor que colocava na seleçãodos testemunhos e pela imparcialidade que pretendia introdu-zir na narrativa histórica; por sua vez, com Políbio faz-se a

transição da tradição historiográfica para os Romanos, desta-cando-se especialmente de entre estes, Tito Lívio e Tácito.

O primeiro historiador romano que se tem noticias éQuinto Fábio Pictor  (254 a.C.-200 a.C), um senador que noséculo III a. C. escreveu em grego, e não em latim, a história deRoma.

Os romanos tomaram dos gregos o método da História eacentuaram-lhe o caráter utilitário. Além de ser pragmática emoral, a História tem que ser patriótica e didática. Como osromanos colocaram Roma no centro do mundo, a História pro-duzida por eles tem como finalidade a sua glorificação. Alémdisso, tem que ensinar aos outros povos - os bárbaros - o modode vida romana.

A ruptura da história feita pelos romanos em relaçãoaos gregos é que eles começaram a formular uma ideia de “his-

tória universal”. O futuro passou a ser o centro de gravidade dahistória, uma vez que o objetivo era a romanização de todo omundo antigo. “O fim da história era o domínio de Roma sobreo mundo.”113 

112 REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade everdade. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 16.

113 Ibid, p. 18.

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Tito Lívio  (59 a.C.–17 d.C.) foi o primeiro historiadorromano não pertencente à aristocracia senatorial, o que não o

impediu de centralizar seu relato na narrativa das sucessivasguerras travadas pela urbs para defesa e expansão de seu pró-prio território, guerras cujo planejamento, condução e sucessodependeram da atuação política de uma aristocracia cada vezmais consciente de sua posição e determinada a mantê-la ereforçá-la. Ao escrever sobre seu entendimento de História,deixou registrado as características da historiografia romana:

O que a história oferece de salutar e de fecundo estános exemplos, instrutivos e de toda espécie, descobertosà luz da obra: encontram-se modelos a seguir, tanto pa-ra o bem próprio como para o do país a que se pertença;encontram-se ações vergonhosas, a serem evitadas, tan-to pelas suas causas como pelas consequências. […] ja-mais houve Estado de maior grandeza, mais puro, mais

rico em bons exemplos, jamais qualquer povo foi duran-te tão longo tempo inacessível à cupidez e ao luxo, ouguardou de maneira tão duradoura e profunda o cultoda pobreza e da economia [quanto o povo de Roma].114 

Flávio Josefo (38–100), historiador romano, de origemjudaica, tenta explicar as razões pelas quais alguém torna-sehistoriador:

Tenho observado que aqueles que tentam escrever his-tórias são levados não por um mesmo objetivo, mas, pe-los mais diferentes motivos. Alguns, ansiosos para exibirsua competência literária e ganhar daí a fama almejada,lançam-se nesse departamento de letras; outros, para

114 Apud GLÉNISSON, 1983, p. 17.

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obsequiar as pessoas a quem o relato referiu-se, têmempreendido o necessário trabalho, embora muito além

dos seus poderes; há aqueles que têm sido compelidospela pura força dos acontecimentos nos quais elesmesmos tomaram parte, expondo os eventos numa nar-rativa compreensiva; enquanto vários outros têm sidopersuadidos pela predominante ignorância acerca dosimportantes assuntos de utilidade geral, publicando suahistória para o proveito público.115 

Ao narrar as guerras travadas pelos judeus contra osromanos, com a dominação desses, Flávio Josefo expõe as ra-zões pelas quais ele se tornou historiador, ao mesmo tempoque faz sua profissão de fé em relação a veracidade histórica:

Houve, no entanto, pessoas que se dispuseram a escre-vê-la, embora por si mesmas dela nada soubessem, ba-seando os seus conhecimentos apenas em informaçõesvãs e falsas. Quanto aos que nela tomaram parte, a suabajulação aos romanos e o seu ódio pelos judeus os fezrelatar as coisas de maneira muito diferente do queeram na realidade. Os seus escritos estão cheios de lou-vores a uns e censuras a outros, sem qualquer preocu-pação com a verdade. Foi isso o que me fez decidir es-crever [...]116 

Em outro momento, Flávio Josefo volta a referir-se aopapel do historiador frente { verdade dos acontecimentos: “Fa-

 115 Apud PINSKY, 1980, p. 150.116  JOSEFO, Flavio. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: Casa publicadora das

Assembléias de Deus, 2004, p. 12.

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de exemplos políticos, religiosos, jurídicos e, sobretudo, moraise éticos. Assim, os temas abordados, preferencialmente guerras

e batalhas, davam aos historiadores a oportunidade de regis-trar as ações virtuosas dos heróis.

O importante era imortalizar esta “verdade ética”, o que,inclusive, permitia ao historiador o recurso à imaginação norelato dos acontecimentos, por exemplo, reproduzindo discur-sos com palavras que não tivessem sido pronunciadas origi-nalmente pelo orador. O que importava ao historiador era nar-

rar o feito de uma forma convincente, com elegância, perpetu-ando uma virtude ou qualidade exemplar. Desta forma, o con-ceito de história na antiguidade designa um ramo da retórica,constituído num modelo de saber prudencial, sintetizado naconstatação de que o passado sempre tem algo a ensinar.

4.3 - A História na Idade Média

A chamada Era Medieval ou Idade Média é o períodocompreendido entre os séculos V e XV, e pode ser classificadaem Alta Idade Média (séculos V - X), Idade Média Central (sécu-los XI - XIII) e Baixa Idade Média (Séculos XIV-XV).

O uso do termo Idade Média se popularizou no séculoXVI, no Renascimento e, a partir daquele momento, recebe uma

conotação de ignorância, retrocesso e superstições. Este des-prezo em relação à Idade Média se acentua no século XVIII, comos Iluministas, que vão caracterizá-lo como um período de obs-curantismo. A crítica que os iluministas faziam estava relacio-nada ao domínio do clero em vários setores da sociedade medi-eval e o forte uso da religião como elemento explicativo, queimpedia o uso da razão.

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De fato, a igreja católica assumiu um papel fundamental,sendo a única instituição que se manteve inabalável após a

queda do Império Romano do Ocidente. Assim, assumiu o po-der temporal e o poder religioso, constituindo-se num elo deligação entre romanos e germânicos.

Ao longo da Idade Média, em que pese o obscurantismoe o analfabetismo generalizado entre a população, alguns “his-toriadores” se destacaram, marcando sua época. 

Eusébio de Cesaréia (265-339) é considerado o “pai da

história da igreja”. Foi bispo de Cesaréia, maior cidade romanana Palestina. Ele é conhecido, sobretudo, como o primeiro his-toriador do cristianismo, e também como o filósofo maior daIgreja antiga.

Na sua principal obra, Eusébio explicita sua concepçãode história:

tentaremos dar corpo a uma trama histórica e estare-mos satisfeitos por poder preservar do esquecimento assucessões, se não de todos os apóstolos de nosso Salva-dor, ao menos dos mais importantes nas Igrejas maisilustres que ainda hoje são lembradas.118 

Enquanto alguns autores pagãos tomados por uma visãopessimista, tenderam a encarar o saque de 410 efetuado pelos

visigodos sobre Roma, sob a perspectiva de um acontecimentoque sinaliza uma decadência do Império, será outra a visão dePaolo Orósio (385-420) – autor da primeira história universalescrita por um cristão, que fazia uma avaliação dos aconteci-mentos históricos, onde cada aspecto ou acontecimento era

118 EUSEBIO DE CESARÉIA. História eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002, p.

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medido em função da sua aproximação ou afastamento em re-lação ao cristianismo. Para Paulo Orósio, o saque visigodo de

410 é positivado como uma demonstraç~o do “juízo de Deus”que anunciava uma nova era que estaria por vir. Enfatizava opapel de Alarico, que como chefe visigodo convertido, desfe-chou um golpe fatal sobre a Roma pagã. Este tipo de leituradivinizante da História, onde cada acontecimento - fosse suces-so ou fosse catástrofe - falava diretamente de Deus e de umarelação dos atores humanos com Ele, seria prontamente incor-porada na Idade Média. 

O processo histórico constituía-se não mais em torno deRoma, mas sim em torno do cristianismo. Em função disso, ahumanidade passou a viver à espera do retorno do Salvador,que representaria o final da História.

A historiografia medieval, com o predomínio do cristia-nismo triunfante, assumiu uma dimensão "filosófica" na produ-ção de seus historiadores e instituiu um novo sistema cronoló-

gico de valor universal.Do ponto de vista técnico, durante a Idade Média, houve

uma regressão na produção historiográfica, como não poderiaser diferente, uma vez que houve uma regressão cultural geral.A população vivia em sua grande maioria na área rural e impe-rava o analfabetismo; inclusive o grande Imperador franco,Carlos Magno, era analfabeto. Apenas os representantes da

Igreja Católica tinham o conhecimento da escrita. Grande pro-prietária de terras, a Igreja registrava a organização e as formasde trabalhar estas terras. Estes registros são importantes, hoje,para o estudo do sistema feudal. Há que se considerar, no en-tanto, que não se tinha escrúpulos em adulterar ou forjar do-cumentos, quando estavam em jogo os interesses de um mos-teiro ou de uma igreja, ou a glorificação de um determinadosanto.

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vez, foi o filósofo que mais questionou sobre a problemática dotempo. Em sua obra Confissões, ele se pergunta: “Que é, pois, o

tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem opoderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depoisnos traduzir por palavras o seu conceito?”122 

Para Santo Agostinho o futuro de ontem é o presente dehoje e será o passado de amanhã. A existência de qualquer umdos tempos é condicionada à existência dos demais tempos. 

Por isso, na obra  A Cidade de Deus, a racionalidade da

História só pode encontrar fundamento na sua compreensãoescatológica. Desta forma, o fim e a finalidade são constitutivasinternas da História.

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro  (485-580), romano,foi conselheiro do rei Teodorico, dos ostrogodos. Em Vivarium,edificou um mosteiro dedicado a Santo Martinho, que se tornoucentro de estudos com a finalidade de adquirir um conheci-mento mais aprofundado da Bíblia, utilizando para isso, semlimitação, as contribuições da cultura pagã e da escola clássica.No mosteiro fez os monges se dedicar à compilação e cópia demanuscritos antigos, tanto cristãos como pagãos. E deixou re-gistrada sua preocupação:

Sabendo como cresce, com grande impulso, o estudo dasletras profanas, de tal modo que grande parte dos ho-

mens crê poder, através dele, alcançar a prudência dacarne, fui invadido de uma grandíssima dor ao consta-tar a ausência de mestres públicos para as Sagradas Es-

 122 SANTO AGOSTINHO. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981,

p. 303-304.

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que as histórias eram escritas em códices um pouco maioresque os habitualmente utilizados para os poemas e cartas, por

conta da quantidade de informações e pela natureza da própriaobra e do público que a consultava. Para ele, as histórias eramdestinadas aos leitores preparados para “verem” com os pró-prios olhos os acontecimentos narrados pelos historiadores etranscritos pelos copistas, pois era muito melhor e mais verda-deiro ler e comprovar que simplesmente escutar e duvidar.

O bispo de Sevilha afirmava que a “História é a narração

de acontecimentos, pela qual se conhecem os sucessos que ti-veram lugar em tempos passados”. Em sua pr|tica historiográ-fica defendia que é “melhor conhecemos os feitos que obser-vamos com nossos próprios olhos que o que conhecemos porouvido. As coisas que se vê podem ser narradas sem falsidade.Essa disciplina se integra à gramática porque às letras se confiaquando é digno de recordaç~o.”125 

Desta forma, da História escrita e preservada podia-se

retirar vários ensinamentos fundamentais para o conjunto detoda a sociedade política da Espanha visigótica da primeirametade do século VII. Em função disso, Isidoro de Sevilha é re-tratado como o primeiro autor de uma obra historiográfica na-cionalista espanhola.

No desenvolvimento do pensamento histórico medievalnota-se o movimento das Cruzadas como o responsável por

uma relativa humanização da História. Com as Cruzadas, oguerreiro cristão foi elevado à dignidade de objeto da narrativa,em função de seus esforços para realizar a obra de Deus.

125 Apud SILVEIRA, Verônica da Costa. História e historiografia na antiguidade tardiaà luz de Gregório de Tours e Isidoro de Sevilha. São Paulo: USP (Dissertação de

Mestrado em História), 2010, p. 99.

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Na Baixa Idade Média, o processo de reconhecimento dopoder dos reis levou à criação de representações sobre a legi-

timidade das monarquias feudais, nas lutas políticas que trava-vam entre si e nos enfrentamentos diante das pretensões polí-ticas da Igreja e do Império. No processo de constituição dopoder régio o “historiador” alcançou um status privilegiado,pois ele atuou como o construtor da memória, uma espécie dearquiteto da linhagem real e de seu reino, construindo e divul-gando suas origens gloriosas, bem como os traços que caracte-rizariam uma identidade comum.

Com isso a leitura de textos que abordavam a Históriapassou a atingir uma parcela mais ampla de leitores. Assim, foipossível que nos fins da Idade Média, a escrita da História rom-pesse o círculo dos ambientes clericais (mosteiros, seminários,abadias, etc.), para tornar-se um gênero literário de prestígio,concorrendo com as canções de  gesta  e com os romances decavalaria. São dessa época as chamadas crônicas do tempo pre-

sente, do tempo vivido e narrado pelo historiador-cronista.Neste gênero destacaram-se autores como Jehans de

Joinville  (1224-1317), com as narrativas da Sétima Cruzada,enaltecendo as virtudes sacras do rei francês Luís IX, em  A vidade São Luiz   e Jean Froissart   (1337-1405), nas narrativas daGuerra dos Cem Anos, retratava, como historiador oficial, a vidana corte de Eduardo III, rei da Inglaterra. Nestas crônicas me-dievais já aparecem o inicio das primeiras exaltações de um“espírito nacional”. Tais crônicas eram histórias da corte e debatalhas, narrativas dessacralizadas dos acontecimentos mili-tares, mas ainda não totalmente laicas, realistas e meio nacio-nais, que apresentavam prenúncios do Renascimento. 

De qualquer forma, as Universidades medievais não re-conheceram a História em seus programas de ensino. Para Pi-erre Chaunu, a Idade Média viveu muito intensamente a Histó-

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ria para que se pudesse falar dela. Passado e presente forma-vam uma só dimensão, em meio a um imaginário social e políti-

co dominado pelos prodígios divinos.126 Sintetizando, é possível afirmar que a historiografia

medieval teve três correntes principais: a cristã ocidental, daqual apresentamos alguns exemplos, a bizantina e a muçulma-na. Na primeira, que nos interessa mais diretamente, além dosautores já mencionados, convém recordar a história profanadas crônicas ligadas aos feitos de monarcas ou de dinastias. Nas

outras duas correntes, os historiadores bizantinos aliaram atradição grega à cristã. Entre eles, destacaram-se Prisco, Pro-cópio, Nicetas e outros. De sua parte, o historiador muçulmanoIbn Khaldun procurou pesquisar as causas do nascimento dasculturas, segundo uma concepção cientificista ausente nas crô-nicas cristãs.

Com a crise do mundo feudal e o ressurgimento urbanoe comercial, a Europa passa por profundas transformações cul-

turais e intelectuais, que vai refletir na maneira de entender aHistória. 

4.4 - A História na Época Moderna

A chamada Idade Moderna é caracterizada pela forma-

ção dos Estados Nacionais, com o absolutismo real, a expansãomarítimo-comercial, que resultou na conquista da América edos mercados do Oriente, a reforma religiosa, que colocou emcheque as “verdades” da Igreja Católica, o renascimento cultu-ral, que colocava o Homem no centro do mundo, ao contráriodo que existia na Idade Média com o Teocentrismo.

126 CHAUNU, Pierre. A História como ciência social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 

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Além da redescoberta e imitação dos clássicos, a im-prensa será o grande suporte material, junto com um certo en-

riquecimento dos Estados e o aparecimento de mecenas e pro-tetores abastados, na evolução da historiografia renascentista ena crescente difusão das suas obras, cada vez em maior núme-ro.

Para o conhecimento histórico, certamente, o renasci-mento cultural foi muito importante. O Renascimento foi a ex-pressão do movimento humanista nas Artes, Letras, Filosofia e

Ciência. Passou-se a valorizar o espírito crítico. Isto deve-se àimportância que se atribuiu à razão, qualidade inerente ao SerHumano e à necessidade de apurar a veracidade das informa-ções contidas nos documentos da Antiguidade greco-romana

Em Nápoles, Lorenzo Valla (1407-1457),  ficou célebrepor sua aplicação dos novos padrões de crítica à documentosusados pelo Papado em apoio de seu poder temporal. Em 1440,a serviço de Afonso V, de Aragão, conseguiu demonstrar a falsi-

dade da Doação de Constantino, famoso documento, pelo qual aautoridade imperial romana teria sido transmitida ao Papado.

O Renascimento foi um período caracterizado pelaconsciência de uma ruptura entre presente e passado. A ideiada modernidade recusava o passado recente, os tempos medie-vais e seu legado, para espelhar-se num passado bem mais dis-tante, o da Antiguidade.

Mesmo na época do Renascimento a História desempe-nhou papel bastante secundário no elenco das disciplinas uni-versitárias. A primeira cátedra de que se tem notícia foi criadaem Mayence, Alemanha, no ano de 1504. Depois disso, outrascadeiras de História foram também criadas na Europa, mas atéo final do século XVIII sempre foram iniciativas isoladas. Entreos homens que brilharam como historiadores nos séculos quese estendem do humanismo até o romantismo figuraram muito

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lógica de Roma.  Outros, ainda, atribuem-lhe uma "concepçãodogmática e ingênua da história".131 

No Renascimento, ocorre a laicização da ciência históri-ca, fazendo com que fato humano se separasse da teologia, co-mo havia feito Maquiavel e irá fazer o francês Jean Bodin.

Jean Bodin  (1530-1596) deu uma perspectiva muitomais abrangente e plural, num plano empírico e científico, aoconceito e objeto da História, defendendo a sua articulação comoutros ramos do conhecimento humano. Em sua obra, Método

 para facilitar o conhecimento da história, de 1566, escreve que

É a história que nos permite reunir as leis dos antigos,dispersas aqui e acolá, para operar a sua síntese; na rea-lidade, o melhor do direito universal oculta-se na histó-ria porque nela se encontram os costumes dos povos,sem contar a origem, o incremento, o funcionamento, as

transformações e o fim de todos os negócios públicos.132

 

Em uma época em que os homens olhavam para a anti-guidade por prazer estético, Bodin mostrou que daquela mes-ma fonte poderiam ser retiradas lições em história, política, emoral. No entanto, ao contrário da maioria dos intelectuais doseu tempo, que se confinaram à observação da antiguidadegrega e romana, Bodin inspirou-se também na história moder-na da Alemanha, da Inglaterra, da Espanha, e da Itália. Lançouos fundamentos da Filosofia da Historia, propondo a teoria do

131 Id. Ibid.132 BODIN, Jean. Método para facilitar o conhecimento da história. In: CHEVALLIER,

Jean Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Ja-

neiro: Agir, 1976, p.52.

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efeito do clima na sociedade e no governo, bem como uma teo-ria do progresso.

A questão da unidade do reino que se colocou pelasguerras de religião na França no século XVI, deu origem a tra-balhos de historiadores que pertencem à corrente chamada de"história perfeita", que mostra que a unidade política e religio-sa da França moderna era necessária.

Em 1560, a publicação da obra Pesquisas da França, deÉtienne Pasquier (1529-1615) marcou o advento dessa nova

escrita da História. Ele conceituava a História como “um ins-trumento de valor pedagógico, uma difusão de uma identidadenacional distinta da raça e do Estado, definida por seus costu-mes, sua língua, sua cultura”.133 

O Século XVI era o período de construção do Estadomonárquico, onde o historiador deveria escrever esta históriatendo em vista a memória. Apesar de se tratar de uma históriaeminentemente política. Étienne Pasquier, na opinião de Fran-çois Dosse, “n~o deu prioridade ao passado inst itucional, masse preocupou também com aspectos da vida em sociedade, tan-to a evoluç~o das técnicas quanto a dos h|bitos alimentares”.Assim, ao escrever a sua história da França, descartou o mitode origem troiano, destacando a originalidade dos gauleses nafundação da nação francesa.134 

Entre os séculos XVI e XVIII nasceram as modernas téc-

nicas da História, com a constituição das chamadas "ciênciasauxiliares" (a numismática, a diplomática, a paleografia, a ge-nealogia, a cronologia, etc.) e desenvolveu-se a crítica histórica.

133 Apud DOSSE, François. A História. São Paulo: EDUSC, 2003, p. 267.134 DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resga-

te do sentido. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 266.

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Todavia, no século XVII ressurgirá a tendência provi-dencialista da História. O melhor exemplo é Jacques-Bénigne

Bossuet (1627-1704), um dos principais teóricos do absolu-tismo monárquico baseado do direito divino. Em sua obra Dis-curso sobre a história universal ,135 de 1681, desvalorizou o sig-nificado de qualquer mudança histórica, defendendo que é im-possível conhecer-se a verdade histórica.

No século XVII, com o triunfo do Estado absolutista, aHistória crítica que tinha sido desenvolvida pelos humanistas

acabou regredindo. O gênero histórico que cresceu significati-vamente foi o dos “romances de reis”, com o elogio { monar-quia de direito divino e ao seu núcleo sagrado: a realeza cris-tocêntrica.

Neste período não se pode esquecer a influência intelec-tual de René Descartes (1596-1650), nem um pouco favorávelà História. Para Descartes, a História não era capaz de explicarcoisa alguma; por isso passou a ser obra de escritores laudató-

rios de cabeças coroadas.Segundo Descartes, a História era uma forma de conhe-

cimento tão limitada, que até mesmo uma simples escrava quetivesse vivido na Antiguidade, conheceria melhor a história doImpério Romano que o maior dos historiadores do século XVII. 

Mas nem tudo foi estagnação e atraso no campo dos es-tudos históricos no século XVII. Ordens religiosas, como os Be-

neditinos e Jesuítas concederam à História espaço considerávelem seus colégios. Além do ensino, estas ordens afinaram osinstrumentais da crítica documental. 

135 BOSSUET, Jacques Bénigne. Discursos sobre a história universal ao Monsenhoro Delphim para explicar a série da religião e as transformações dos imperios.  Rio

de Janeiro: H. Garnier, [19--]. 548 p.

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A partir do início do século XVIII a ordem estabelecidaentrou em crise. O passado deveria explicar o presente, pro-

pondo soluções à corrupção dos costumes e das instituições.Anteriormente, a história era usada para legitimar a monarquiaabsolutista; a partir do chamado “Século das Luzes” ela passoua legitimar as oposições. No século XVIII, com a sociedade emplena transformação, desestruturando os resquícios que aindapermaneciam do sistema feudal e avançando a ordem burgue-sa, surge o Iluminismo:

corrente filosófica que procura mostrar a história comosendo o desenvolvimento linear progressivo e ininter-rupto da razão humana. Para os iluministas, a IdadeMédia foi o período das trevas (causadas pela fé, comoexplicação de tudo), mas agora, com o iluminismo, o co-nhecimento se aproxima da verdade. Para esses filóso-fos, a humanidade irá cada vez mais dominar a nature-

za, numa evolução progressiva constante.136 

Os historiadores iluministas substituíram Deus pela Ra-zão e a salvação espiritual pela natural. Reforçava-se assim oprogresso do racionalismo baseado na experiência.

Montesquieu  (1689-1755), no seu Espírito das Leis(1748), definiu as leis como motoras da história, não na pers-

pectiva legislativa ou do Direito, mas no entendimento do seufuncionamento nos fenômenos físicos ou sociais, cuja causadeve ser encontrada na moral.

Muitos consideram Voltaire  (1694-1778) o homemmais influente do século XVIII. Seus livros eram lidos por toda aEuropa e vários monarcas pediram seus conselhos. Deixou uma

136 BORGES, 1983, p. 29-30.

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obra que reúne cerca de 70 volumes. Seu livro O século de Luís14, de 1751, é a primeira obra de historiografia que inclui a

história da cultura, das letras e das artes. Por sua vez, o Ensaiosobre os costumes e o espírito das nações, de 1756, é a primeiratentativa de uma História universal do ponto de vista do libera-lismo religioso e político.

Voltaire caracterizava a História como uma “narraç~ode fatos considerados verdadeiros”. Para ele, o conhecimentohistórico precisaria opor-se à fábula e abordar somente aquilo

que realmente aconteceu, descartando toda a ficção. Voltairesepara a História em sagrada e profana. Ele criticava a Históriasagrada por constituir uma “sequência de operações divinas emiraculosas”. 

A História, para Voltaire, servia para compreender opresente, o mundo em que se vivia. Por isso, sua perspectivahistórica é evolucionista, dividindo a história em quatro épocas,quatro grandes séculos: Grécia clássica, Roma Imperial, Europa

do Renascimento e o Século de Luiz XIV. Assim, a História deVoltaire é a história das civilizações.

Voltaire distingue a memória da História. A primeira eramarcada pela imprecisão, enquanto a segunda era um conhe-cimento mais crível do passado. A história dos tempos anterio-res só pode ser transmitida de memória e sabe-se como a lem-brança das coisas passadas altera-se de geração para geração.

As primeiras histórias foram escritas apenas pela imaginação. Ecada povo inventou não somente sua própria origem, mas tam-bém a do mundo inteiro.137 

Para Voltaire, a História implica na crítica e análise dosfatos e testemunhos sobre o passado. Defendia a busca por no-

 

137 VOLTAIRE. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 206.

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vos temas e a consulta de documentos e testemunhos originais,bem como o uso de uma cronologia precisa.

Jean Jaques Rousseau  (1712-1778) foi um crítico doshistoriadores, ou pelo menos da maior parte deles. A crítica sedá no sentido de que estes, ao escolherem os fatos a serem nar-rados, nem sempre, ou apenas raramente, escolhiam aquelesque seriam de maior relevância para auxiliar na tarefa de seaprofundar ou desvendar o caráter e a essência do homem.Para Rousseau a questão é que:

A história mostra muito mais as ações do que os ho-mens, porque ela só os toma em certos momentos esco-lhidos, com seus trajes de gala; ela só mostra o homempúblico que se arrumou para ser visto; não o segue emsua casa, em seu escritório, na família; junto aos amigos;só o retrata quando ele representa; ela pinta muito maisa sua roupa do que sua pessoa.138 

Em sua obra, Emílio, a História deve ajudar o indivíduo aviver melhor em uma sociedade corrompida. O estudo da His-tória deve ajudar a conhecer o homem e servir como termôme-tro para a própria vida, mas, sobretudo, deve permitir ao Emí-lio conhecer a depravação da sociedade sem que seja necessá-rio experimentar no cotidiano essa corrupção. Neste sentido, aHistória preconizada por Rousseau é, antes de tudo, uma Histó-ria exemplar, da qual se podem extrair lições morais. Para ele,antes de o jovem ser capaz de ler a História nesta perspectiva, éabsolutamente inútil e mesmo prejudicial ensinar-lhe História. 

138 ROUSSEAU, Jean Jaques. Emílio, ou da educação. São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 316. 

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O italiano Giambattista Vico (1668–1744), na sua obraScienza Nuova139 , de 1725, recuou perante a tendência raciona-

lista das Luzes e concebeu a História como retorno aos primór-dios do Homem e das instituições, reforçando o seu papel cria-dor (a História como ideia do nascimento, crescimento e deca-dência dos povos).

Vico demonstrou o avanço do homem e do conhecimen-to do mundo baseado nas divindades representadas pelos fe-nômenos naturais, compreendidos como a manifestação da

vontade divina, passando por um tempo dos grandes heróis ouentes aglutinadores dos povos, que tem suas peripécias conta-das nos mitos, chegando por fim no mundo controlado pelarazão ou idade dos homens. Ele irá aplicar este esqueleto desustentação teórico para explicar o desenvolvimento da lingua-gem, do aprendizado e em uma teoria do Estado.

4.5 - A História no Século XIX

O século XIX é considerado o século da História. A razãoé simples: foi o momento em que a História adquiriu o status deciência.

No século XIX houve uma série de conflitos nacionais. OsEstados organizados e estabilizados, como França e Inglaterra,e os em processo de unificação, como Itália e Alemanha, vãoincentivar o interesse pelo estudo da sua História nacional.Diante disso, surgem sociedades de pesquisa, tanto governa-mentais como particulares, que farão o levantamento da docu-mentação do passado de cada país.

139 VICO, Giambattista. A ciência nova. Rio de Janeiro: Record, 1999. 502 p.

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Naquele século a busca da identidade de uma sociedadepassava pelo sentimento nacional, portanto pela pesquisa de

suas origens, pela história e pelo historiador. No início do XIX professores de algumas Universidades

europeias, notadamente na Alemanha e secundariamente naFrança, deixaram de reconhecer na História uma mera discipli-na destinada a dar exemplos de ações aos grandes homens, oua servir para a interpretação das leis gerais do progresso hu-mano. A partir de então, a História foi transformada em um

campo disciplinar autônomo, numa matéria de domínio quaseexclusivo de profissionais especializados, que punham em prá-tica técnicas de pesquisa reconhecidas por seus pares. 

Durante muito tempo abandonada aos literatos, produ-zir conhecimento histórico tornou-se uma profissão, uma ativi-dade de especialistas. Até então, a produção do conhecimentohistórico preocupava-se, exclusivamente, com a exposição dorelato histórico. A partir do século XIX, a preocupação voltou-se

para o trabalho preparatório, ou seja, com os métodos da pes-quisa. Para isto, a História chegou à Universidade. Foi na Ale-manha que isto ocorreu. Até 1870, não havia a Alemanha, massim vários reinos alemães. Naquele ano completou-se a chama-da Unificação Alemã, em torno do Estado alemão mais forte: aPrússia. Para o novo Estado Alemão, a História será de extremaimportância, no sentido de ajudar a criar uma consciência naci-onal alemã. Surgem historiadores oficiais, que patrocinadospelo governo, vão buscar no passado a caracterização do espíri-to de cada povo; este espírito é que explicaria sua situação esua maneira de ser.

Dentro dessa visão nacionalista é que se encaixam al-guns historiadores que são classificados como românti-cos, pois, dotados de uma certa contemplação sentimen-

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tal da história, procuram uma volta ao passado cheia denostalgia. Para eles, a história não pode ser feita como

uma analise fria: o passado deve ser ressuscitado emtodo o seu ambiente próprio. a sua época predileta foi aIdade Média, com seus castelos, suas lendas e sua cruel-dade, seus cavaleiros e seus torneios, suas catedrais eseu misticismo.140 

A Europa vivia uma época de grande desenvolvimento

das ciências naturais. Os historiadores alemães querem que aHistória se torne uma ciência, o mais segura possível, comoeram as ciências exatas. Para viabilizar isto era necessário ela-borar métodos de trabalhos semelhantes e efetivos, estabele-cendo leis e verdades de alcance universal. Devido as diferen-ças do objeto de estudo, isto era impossível de ser concretiza-do. Porém, esta preocupaç~o toda teve um “final feliz”: estabe-leceu-se o chamado Método Histórico, onde o trabalho de pro-

dução de conhecimento histórico vai estar centralizado numacrítica seriíssima dos documentos, objetivando o levantamentocriterioso dos fatos acontecidos.

Coube à Leopoldo von Ranke  (1795-1886), o maiornome da chamada “Escola Científica Alem~” o avanço do pen-samento histórico alemão, influenciando as futuras geraçõesde historiadores alemães e franceses. Suas teses postularamafastar a História das especulações filosóficas, subjetivas e mo-ralizantes. Para ele, “a ciência positiva pode atingir a objetivi-dade e conhecer a verdade da história”. Ranke, utilizando-se daheurística, da erudição e da crítica, transformou as regras etécnicas desenvolvidas pelos estudiosos em princípios metódi-cos.

140 BORGES, 1983, p. 31.

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acreditava na isenção do historiador e na produção de umaHistória totalmente verdadeira.

Em sua obra sobre O conceito  de História Universal  (1831), Leopold von Ranke expõe sua concepção de História:

A história se diferencia das demais ciências porque elaé, simultaneamente uma arte. Ela é ciência na medidaem que recolhe, descobre, analisa em profundidade; earte na medida em que representa e torna a dar formaao que é descoberto, ao que é apreendido. Outras ciên-cias se contentam simplesmente em registrar o que édescoberto em si mesmo: a isso se soma, na História, acapacidade de recriação. Enquanto ciência, ela se apro-xima da Filosofia; enquanto arte, da poesia.142 

Ao contrário do que acontecia na França, que tinha uma

identidade baseada nos limites geográficos, os alemães, semum território demarcado, ainda estavam perdidos, tentandolevar em consideração alguns critérios pouco objetivos como,por exemplo, a identificação através do idioma e outras manei-ras ainda menos claras de classificação. Ranke ofereceu aosalemães um trabalho histórico que, valendo-se de uma aborda-gem factual, fez com que eles conseguissem se identificar. Emvirtude desta contribuição de Ranke, foi criada para ele a cáte-

dra de História na Universidade de Berlim.A partir disto, foi importante que se trabalhasse a noção

de identidade alemã e fazer isto através da História se mostroueficiente para colocar ordem no debate estabelecido. A institu-

 142 RANKE, L. O conceito de história universal. In: MARTINS, Estevão de Rezende

(Org.)  A História pensada: teoria e método na historiografia europeia do século

XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 202.

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cionalização da História como disciplina no espaço acadêmicoprussiano esteve diretamente ligada { “criaç~o” da História da

Alemanha, como parte da construção de uma identidade para oseu povo. 

A nova disciplina se tornou uma forma de narrativaquase hegemônica sobre o passado, trazendo também todauma metodologia própria, que num primeiro momento, foi pau-tada por aqueles aspectos que o próprio Ranke instaurou comonecessários para a escrita da História. Sua percepção de Histó-

ria, diferentemente dos filósofos da história, partia da análisedo particular para a compreensão do todo e isto era feito atra-vés da consulta de fontes históricas, que para ele, representa-vam o próprio passado. A função do historiador era “dar vida” aeste passado. A partir da pesquisa documental, Ranke listava eorganizava os fatos históricos, articulando-os com o contextocontemporâneo e dando-lhes forma. Para ele, isto seria a ma-neira mais imparcial e, por isso, correta de produzir conheci-

mento em História. Não caberia ao historiador emitir nenhumaopinião ou juízo de valor no que escrevia. Ranke acreditava nodocumento como o fato  per se. Por isso sua assertiva: “H| do-cumentos? Se tiver, há História!” 

Através desta normatização, como sendo o processo dedar forma às informações que o pesquisador tira dos documen-tos e transforma-os em História, Ranke acabou padronizando oofício do historiador.

No entanto, no século XIX já havia aqueles que pensa-vam a História como um trabalho muito mais de problematizardo que, a partir de sequência de eventos, tirar conclusões, ouainda julgar que os próprios eventos falariam por si, e istoconstituía umas das tensões vivenciadas naquele momento.

Na França, Jules Michelet  (1798-1874) realiza uma im-portante sistematização histórica em sua obra História de Fran-

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ça,143  livro que melhor documenta o que foi a historiografiaromântica do século XIX. Nesta obra, Michelet tem a ambição de

escrever a história da França, por meio de um trabalho minuci-oso, na tentativa de uma compreensão total do passado. Consi-derado por muitos como um dos maiores historiadores de to-dos os tempos, é conhecido como o primeiro historiador aafirmar que não eram as grandes personalidades e sim as mas-sas os principais agentes das mudanças sociais, originando osideais da revolução francesa. Por isso é considerado por muitoscomo o “grande astro da historiografia burguesa”.144 

Como um historiador romântico, para Michelet a Françaera o povo. Ao invés de fazer história política, retomando nar-rativas nobiliárquicas, defendia que o historiador deveria fazersoar a voz do povo. O ato historiográfico era concebido peloautor como o esforço de uma ressurreição integral da vida, emque o historiador agiria como um sacerdote encarregado damissão sagrada de velar pela memória dos mortos. E isso se

daria, em termos metodológicos, pela contínua citação das falasdos agentes históricos do passado, encontradas nos documen-tos.

Considerado o maior nome da chamada escola historio-gráfica romântica, Michelet combina a exigência científica doestudo da História com a visão apaixonada dos acontecimentos,marcada pela imaginação poética e pelo estilo vibrante, dei-xando transparecer as suas convicções democráticas e populis-tas.

143  MICHELET, Jules.  A História da Revolução Francesa: da queda da Bastilha àfesta da federação. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

144 QUEIROZ, Tereza Aline Pereira; IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. A História do histori-ador . São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999, p. 74.

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mo, poesia e sentidos e a História era o invólucro que dava sig-nificado às questões do Estado. 

Na interpretação de Michelet, a França não nasceu daatuação política da aristocracia e sim como fruto da atuação dopovo. Esse é o rompimento de Michelet com a história políticatradicional. Essa é sua inovação, sua herança às gerações vin-douras de historiadores. O povo é o agente da história univer-sal, o construtor da pátria. Assim, ele pode registrar:

Os pobres amam a França como se tivessem obrigaçõese deveres para com ela. [...] O camponês desposou aFrança em matrimônio legítimo; ela é sua mulher parasempre, ambos são um. Para o operário, é a amanteformosa; ele não tem nada, mas tem a França, seu pas-sado nobre, sua glória.149 

Outro historiador francês, Fustel de Coulanges (1830-1889), por sua vez, foi o historiador que contribuiu para a fixa-ção dos procedimentos da História erudita na França. Ele expli-cava o estudo do passado como um encadeamento lógico dosfatos, elaborando assim um método científico. De acordo comMarc Bloch, Fustel de Coulanges era de opinião que a História é“a mais difícil de todas as ciências.”150 

Considerado o fundador da moderna historiografia deseu país, publicou  A cidade Antiga,151  em 1864, com enormeimpacto nos meios intelectuais. Várias traduções e reediçõesdepois, o livro foi considerado um clássico e, mesmo muito

149 MICHELET, 1988, p. 103. 150 BLOCH, 2001, p. 47.151 COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: EDAMERIS,

1961.

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tempo após a morte do autor, permanece, como está escrito noprefácio, uma obra "muito conhecida e famosa, ainda que pou-

co lida, um elemento do patrimônio literário da França".Esta obra insere-se entre os primeiros trabalhos volta-

dos para a compreensão da civilização antiga. Desde o Renas-cimento, tornou-se costume invocar eventos daquela épocacom o intuito de colher ensinamentos e aplicá-los à circunstân-cia contemporânea do autor. A Revolução Francesa imaginouque poderia reviver o esplendor da Roma Antiga adotando as

suas denominações para os cargos públicos. Provavelmente eranisso que pensava Coulanges quando explica o seu propósito:“Ora, os erros nessa matéria s~o perigosos. A ideia que se temda Grécia e de Roma muitas vezes perturbou várias de nossasgerações. Observando mal as instituições da cidade antiga, qui-seram fazê-las reviver entre nós”.152 

O autor utiliza-se do método positivista, em que se crêestar distante do objeto e podendo analisá-lo sem se misturar

com ele, o autor se entrega a sua pesquisa crendo-se desapai-xonado e livre. O passado tem que ser visto como um objetoseparado do historiador, que pode ser observado com “umolhar mais calmo e mais e mais seguro”  do que o presente, oque permite distinguir mais facilmente a ilusão da verdade.

Para conhecer a verdade a respeito desses povos anti-

gos, deve-se estudá-los sem pensar em nós, como se nosfossem completamente desconhecidos, com o mesmodesinteresse e liberdade de espírito com que estudarí-amos a Índia antiga ou a Arábia.153 

152 Ibid, p. 10. 

153 Id. Ibid.

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Coulanges deixava clara a prudência contra os impulsosda subjetividade: “A história é uma ciência; n~o imagina; ape-

nas vê.” Para ele, a história n~o era uma arte; era uma ciênciapura, como a física ou a geologia. Por isso exige “um espíritoabsolutamente independente e livre sobretudo a respeito de simesmo”. Partia do princípio que a história deve basear-se es-sencialmente nos documentos escritos: “O historiador só devepensar segundo os documentos e escrever sob o seu ditame”.Segundo ele, a habilidade do historiador consiste em tirar dosdocumentos tudo o que eles contêm e nada acrescentar do quenão contêm. Desta forma, o melhor dos historiadores é aqueleque está mais próximo dos textos, que é capaz de interpretá-loscom mais rigor, e que escreve e pensa segundo os documen-tos.154 

No século XIX, as concepções de História e de historio-grafia passaram por uma mudança notável e decisiva. As diver-sas escolas e correntes historiográficas do século XIX coinci-

dem pelo menos em um ponto: deixam de considerar a históriacomo uma crônica baseada nos testemunhos legados pelas ge-rações anteriores e entendem-na como uma investigação, peloque o termo “história” recupera seu sentido origin|rio em gre-go.

Até 1880, a História enquanto disciplina ainda não tinhatotal autonomia universitária, pois era vinculada à filosofia ouàs humanidades literárias. É criada uma licença específica parao ensino de História e um grande número de cátedras universi-tárias. O historiador passa a ser um profissional. Em 1890, naFrança, Charles Seignobos (1854-1942) é encarregado de umcurso de pedagogia das ciências históricas. Junto com Charles-Victor Langlois  (1863-1929), publica, em 1898, a Introdução

154 BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 78-79.

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No século XIX a produção historiográfica tornou-se cien-tífica, com o surgimento das grandes escolas nacionais na Eu-

ropa. A produção historiográfica no século XIX sofreu a influên-cia predominante de duas correntes filosóficas: o positivismo eo historicismo.

Os historiadores positivistas acreditavam na Históriacomo ciência. O Positivismo é marcado pela concepção de queleis naturais imutáveis constroem a sociedade, e, aplicado esteconceito teórico-metodológico à História, o trabalho do histori-

ador se resumiria no “dissecamento” dos fatos, pois estes re-presentariam o passado e o historiador em nada influenciaria,pois o rumo natural dos fatos, por assim dizer, independe dele.

No entanto, muitas vezes chama-se de positivista umaconcepção da historiografia essencialmente narrativa, episódi-ca (factual), descritiva, fruto de uma erudição bem à moda doséculo XIX. Na realidade, esse tipo de historiografia é o exemplomais típico da “História tradicional”, mas n~o tem por que sernecessariamente confundido com a historiografia “positivista”. 

A historiografia positivista é a dos “fatos” estabelecidosmediante os documentos, indutivista, narrativa, por certo, mastambém sujeita a um “método”.

Os historiadores influenciados pelo historicismo defen-diam a introdução da subjetividade na história, com base numaconcepção subjetiva, intuitiva e relativista desta disciplina,concebida como uma "ciência cultural". O historicismo, enquan-to forma de se analisar o passado, tem como centro os fatoshistóricos e o encadeamento destes numa perspectiva constru-tivista. Caberia ao historiador então, ordenar os fatos. Ou seja, aHistória, na perspectiva historicista, não seguiria uma ordemnatural, esta ordem seria tarefa, ofício, do historiador.

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Não podemos deixar de mencionar que, fora do mundodos historiadores profissionais do século XIX, surgiu o marxis-

mo, produzindo uma teoria global da estrutura e da dinâmicada sociedade capitalista, priorizando o papel dos fatos econô-micos e introduzindo o seu estudo na História.

No final do século XIX também levantaram-se as primei-ras críticas às historiografias positivista e historicista. Algunshistoriadores procuraram estabelecer regularidades para alémdos fatos isolados, "únicos" e particulares, através do manejo

do método comparativo, e outros dedicaram-se à crítica da His-tória "historizante" ou "episódica", defendendo uma síntesehistórica global.

A História, tal como era predominantemente entendidano século XIX, se restringia à pesquisa dos fatos políticos e aoconhecimento das ações individuais dos grandes vultos, à pes-quisa do fato único e particular, enquanto, nas suas fronteirasnovas ciências sociais se desenvolviam, outorgando-se o privi-

légio do conhecimento do geral e da formulação de leis.Essas controvérsias geraram muitos questionamentos

acerca do caráter científico da História e propiciaram o reapa-recimento das afirmações de que a História era uma arte, a arteda palavra escrita, a literatura.

Porém, ainda no século XIX, a História, não ficandoalheia às transformações econômicas e sociais, que estavam na

raiz das ciências humanas, e influenciada pelo marxismo, in-corporou o estudo dos fatos econômicos e sociais. Surgiu a His-tória Econômica, que se vale das matemáticas sociais, do cálcu-lo matemático e da estatística.

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4.6 - A História no Século XX

No século XX a História continuou a se desenvolver, ar-ticulando convenientemente a teoria e a realidade empírica,explicitando seu método de trabalho e segmentando-se em di-versos setores especializados, como a História Econômica, aHistória Social, a História Cultural, a História Demográfica, etc.,renovando seus métodos, objetos e abordagens. Novas concep-ções de História também se manifestaram, mostrando que ela éuma ciência em plena construção.

É claro que ao mesmo tempo em que ocorrem avançosna produção historiográfica, existiram historiadores que fica-ram marcados por uma posição conservadora, e que tiveraminfluência significativa sobre a maneira de produzir conheci-mento histórico.

Numa época em que a grande maioria dos intelectuaismilitava politicamente na esquerda e o pensamento marxista

era dominante,  Arnold Toynbee  (1889-1975), historiador in-glês, teve a coragem de navegar contra a maré e foi alvo de dis-criminação e críticas. Sua obra de impacto é Um estudo de His-tória,157 em que examina, em doze volumes, o processo de nas-cimento, crescimento e queda das civilizações sob uma pers-pectiva global. Para Toynbee, todo este processo obedece a umpadrão comum, independentemente da época ou do lugar ondea história se passa. Há uma razão para a existência de culturas ecivilizações, aplicável a todas elas.

Apesar da grande aceitação da obra, Toynbee foi criti-cado por fazer generalizações arbitrárias, cometer erros fatuaise enfatizar em demasia a força da religião.

157 No Brasil foi publicada uma síntese desta obra: TOYNBEE, Arnold. Um estudo da

História. São Paulo: Martins Fontes, 1986, 592 p.

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Com a vitória da revolução socialista na Rússia em1917, o marxismo irá se expandir enquanto teoria explicativa

da história.No entanto, a partir dos anos 20, uma série de circuns-

tâncias políticas na URSS (União das Repúblicas Socialistas So-viéticas), com a ascensão de Joseph Stalin ao poder, em 1924, eno movimento comunista internacional levou a uma dogmati-zação do esquema marxista de evolução das sociedades, esta-belecendo-se uma série de etapas consideradas como válidas

universalmente, admitindo-se pouquíssimas exceções, como apossibilidade de “saltar” uma etapa devido a influência de outrasociedade mais avançada.

Ainda antes de Stalin já aconteciam certas distorções,como a tentação de transformar os esquemas de evolução deMarx e Engels - cujo caráter hipotético e inacabado os autorestinham consciência - em verdades absolutas e intocáveis. Aconsagraç~o m|xima, “oficializando” o pensamento “marxista”,

aconteceu em 1938, quando Stalin publicou Sobre o Materia-lismo histórico e o materialismo dialético.160 Em nome de Marx,comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo esocialismo, passaram a ser considerados os cinco estágios ca-racterísticos do desenvolvimento histórico.

Após a queda de Stalin na URSS, o marxismo, que se tor-nara uma posição teórica dogmática e economicista, renovou-

se, principalmente, nas obras de historiadores ingleses, como Christopher Hill161  (1912-2003),  Edward Palmer Thomp-

 160 STALIN. Materialismo dialético e materialismohHistórico. São Paulo: Global, 1979.161 HILL, Cristopher. A revolução inglesa de 1640 . Lisboa: Presença, 1981; __. Mun-

do de ponta-cabeça: ideias radicais durante a revolução inglesa de 1640. SãoPaulo: Cia das Letras, 2001; __. Origens intelectuais da revolução inglesa. São

Paulo: Martins Fontes, 1992; __. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a revolução

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Com a queda do Muro de Berlim e a consequente crisedo socialismo real, o marxismo enquanto instrumental de aná-

lise histórica sofreu os efeitos da crise, fazendo com que muitoshistoriadores abandonassem esta concepção teórica.

Atualmente, após a passagem do furacão que destruiuos sonhos do socialismo, o marxismo voltou a ser aceito e utili-zado como uma importante ferramenta de análise da sociedadee da história.

• A História quantitativa

A História quantitativa é uma corrente que marcou aprodução historiográfica dos anos 1960 e 1970 em muitos paí-ses, principalmente nos Estados Unidos e, secundariamente naFrança, influenciando campos de estudos históricos bastanteamplos.

É possível distinguir uma metodologia quantificadoraaplicável a uma vasta área de estudos históricos, não apenas noâmbito próprio da historiografia e um paradigma quantitativis-ta da explicação do social, questão que apresenta implicaçõescognitivas muito fortes e abrangentes.

O movimento quantitativista iniciou-se na história eco-nômica nos anos 1930 e permanece até hoje. No entanto, no

panorama atual da historiografia, não são muitos os trabalhosque fazem uso da quantificação ou, mais ainda, do quantita-tivismo, mesmo no caso particular da história econômica.

Na História chamada quantitativista existem dois gran-des grupos de orientação. Um é o representado pela cliometria,que refere-se ao quantitativismo estrito, que é expressado namatematização de modelos específicos de comportamento

temporal e que pretende "explicar" formalmente os processos

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históricos de longo prazo. O outro é definido como uma Histó-ria estrutural-quantitativista, que recorre amplamente à esta-

tística, à informatização, à quantificação, de uso instrumental,para perceber as "estruturas" econômicas, sociais ou culturais.

O apogeu da historiografia quantitativa foi nos anos1960. Nesta forma de fazer História, os historiadores ditos "ci-entíficos" aplicam métodos quantitativos e modelos de compor-tamento elaborados pelas ciências sociais. Assim sendo, a his-tória "científica" seria a que se integrasse plenamente aos mé-

todos das ciências sociais, em especial aos da economia.

A verdadeira história quantitativa resultaria assim, nalógica desta concepção, de uma dupla redução da histó-ria: redução, pelo menos provisória, do seu campo àeconômica, e redução do sistema descritivo e interpre-tativo ao sistema que foi elaborado pela ciência socialmais rigorosamente constituída nos nossos tempos: a

economia matemática.165 

Num primeiro momento, a quantificação foi sentida nosestudos de história econômica, principalmente na história dospreços. Neste sentido, um dos historiadores que marcou esteinício foi o francês Ernest Labrousse  (1895-1988), marxista,que ocupou um lugar central na historiografia da Escola dos

Annales. Em 1934 publica Esboço do movimento dos preços erendimentos na França durante o século XVIII.166  Nesta obra,fazendo uso da estatística, ele emprega as séries de preços dotrigo, do centeio, do vinho, etc, registrados durante o períodode estabilidade monetária - 1726 a 1789-, analisa o movimento

165 FURET, François. A oficina da História. Lisboa: Gradativa Publicações, s\d, p. 60.166  LABROUSSE, Ernest.  Fluctuaciones económicas e historia social. Madrid: Tec-

nos, 1973.

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cipais autores, incluindo dois prêmios Nobel de economia,167 em 1971 e 1993, ampliaram significativamente a sua influência.

Seus adeptos praticavam uma história econômica apreendida apartir da utilização retrospectiva de procedimentos e modeloseconométricos. Metodologicamente, uma de suas dimensõesfundamentais era a utilizaç~o de “hipóteses alternativas” { rea-lidade histórica, onde promoviam expedientes de simulação,destinados a verificar a importância de determinadas variáveiseconômicas ao longo do tempo.

Este método implica na construção de hipóteses contra-factuais e na ampla utilização de modelos econométricos para aprodução de dados na ausência de evidências documentais di-retas ou séries completas. Um exemplo disso são os estudos deAlbert Fishlow168  e Robert Fogel sobre a economia latino-americana e norte-americana no século XIX. Para avaliar a im-portância da construção de ferrovias para o crescimento daeconomia, utilizaram a hipótese da não construção de ferrovias,

167  Em 1971 o ganhador foi Simon Kuznets  (Universidade de Harvard), premiadopelas investigações no domínio da história econômica quantitativa, pelo estudocomparativo do crescimento das economias nacionais, num trabalho empírico derecolha de séries históricas do rendimento e produto nacionais e da sua composi-ção, da população, da população ativa e de outras variáveis macroeconômicas. Apartir da compilação destes dados ele formulou a sua teoria sobre as característi-

cas e tendências gerais do crescimento econômico de longo prazo nos séculosXIX e XX, na época que ele designa por crescimento econômico moderno.

Em 1993 Robert W. Fogel  (Universidade de Chicago) e Douglass C. North (Universidade de Washington) foram os ganhadores, por terem renovado a inves-tigação em história econômica ao aplicarem teoria econômica e métodos quantita-tivos para explicar a mudança econômica e institucional.

168 Albert Fishlow dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros - Universidade da Columbia.FISHLOW, Albert. O Novo Brasil   – As conquistas políticas, econômicas, sociais enas relações internacionais. São Paulo: Saint Paul, 2011; ___. Desenvolvimento

no Brasil e na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. 

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Em relação às fontes utilizadas pela História serial,François Furet, distingue três grupos,171  segundo o grau cres-

cente de dificuldade relativamente à constituição das séries: 

a. Fontes estruturalmente numéricas, reunidas e usadas pararesponder a perguntas diretamente relacionadas com seucampo de pesquisa, tais como registros paroquiais para a his-tória demográfica, resultados eleitorais para a história políti-ca. Quando tais fontes requerem a aplicação de processos depadronização, ou quando há lacunas e é preciso extrapolar,

tais operações podem ser feitas de modo relativamente fácile confiável;

b. Fontes estruturalmente numéricas, mas usadas pelo histori-ador substitutivamente para encontrar respostas a questõestotalmente estranhas a seu campo de pesquisa, tais como autilização de preços como indicadores de crescimento eco-nômico, o estudo da estrutura social a partir de documentosfiscais, etc. O historiador, neste caso, deve justificar a validezdo emprego de suas fontes, relativamente a sua problemáti-ca. O manejo dos dados será mais difícil e poderá conduzir aresultados mais arbitrários do que no primeiro caso;

c. As fontes não estruturalmente numéricas, mas que o histori-ador utiliza de modo quantitativo, mediante processo substi-tutivo, tais como o uso serial de fontes administrativas ou re-lacionadas à justiça.

171  FURET, François. O quantitativo em história. In: LE GOFF, Jacques; NORA,Pierre. História:  novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 56-

57.

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desta revista reuniram-se os historiadores que estavam insatis-feitos com a forma como era produzido o conhecimento histó-

rico até então. De forma geral, é possível dizer que os membrosda chamada École des Annales - assim chamada devido ao nomeda revista – tinham como característica “o desprezo ao acont e-cimento e insiste na longa duração; deriva a sua atenção davida política para a actividade econômica, a organização sociale a psicologia colectiva; esforça-se por aproximar a história dasoutras ciências humanas.”174 

A Escola dos  Annales apareceu como um novo paradig-ma da história, síntese de tudo o que havia surgido de novo namoderna ciência social, buscando a superação do historicismo,positivismo e do determinismo marxista. Negou a existência deleis na história ou de quaisquer determinações, questionando aprópria objetividade do conhecimento histórico, a existência daverdade na história, a totalidade do real, o progresso, a evolu-ção. Procurou buscar a interdisciplinaridade, a colaboração

com as demais ciências e disciplinas, resultando em uma gran-de renovação nos métodos e nas técnicas do historiador. Assim,a História aproximou-se da geografia, da estatística, da demo-grafia, da linguística, da psicanálise e articulou-se com a socio-logia, a arqueologia, a antropologia. Proporcionou também,uma abertura para outras fontes, além dos documentos escri-tos, como a tradição oral, os vestígios arqueológicos, a icono-grafia, etc.

A primeira geração dos  Annales  é representada pelosseus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch.

Febvre criticou a concepção de história baseada no re-gistro sequencial dos acontecimentos e fundamentada somenteem documentos escritos, ao mesmo tempo que defendia uma

174 BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 119.

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História total, que abordasse todos os aspectos das atividadeshumanas.

Bloch destacava que a importância não estava apenasem estudar novos documentos, mas descobrir-lhes novos as-pectos; propunha ainda a compreensão do passado, tendo emvista o presente, e esse pela reflexão do passado. Com a eclosãoda Segunda Guerra Mundial e a França tornando-se “colabora-cionista” da Alemanha Nazista, Marc Bloch, por sua origem ju-daica, vai ser afastado da direção da revista, que a esta altura se

chamava  Annales d’Histoire Sociale. Entrando na resistênciacontra os invasores de seu país, ele vai ser preso, torturado efuzilado pelos nazistas em 16 de junho de 1944.

A segunda geração dos  Annales tem como grande nomeFernand Braudel175  (1902-1985), considerado o mais impor-tante historiador do século XX. Entre os elementos centrais doseu pensamento estão a dialética da duração e a ênfase ao es-paço geográfico.

Ao pensar o tempo na história, Braudel propõe a tripar-tição dos níveis de temporalidade. O primeiro nível seria o deuma história dos acontecimentos, episódica, marcada pelotempo breve ou curto, característica da história política. O se-gundo nível seria o conjuntural, estudado nos ciclos e interci-

 175 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe

II . Lisboa: Martins Fontes, 1983, 2 vol; __. Gramática das Civilizações. São Paulo:Martins Fontes, 1989; __. O espaço e a história no mediterrâneo. São Paulo: Mar-tins Fontes, 1988;__. A dinâmica do Capitalismo. Lisboa: Teorema, 1985; __. Civi-lização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII . São Paulo: MartinsFontes, 1997, 3 vol; __. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectivas, 1978; __. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1982; __. Reflexões sobre a His-tória. São Paulo: Martins Fontes, 2002; __. A identidade da França. São Paulo:Globo, 1991, 3 vol; __. Os homens e a herança no mediterrâneo. São Paulo: Mar-tins Fontes, 1988; __. Jogos das trocas: civilização material, economia e capita-

lismo. Lisboa: Cosmos, 1985.

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clos econômicos, marcado pelo tempo médio, e que seria carac-terística da história econômica. Por fim, apareceria uma histó-

ria estrutural, caracterizada pela longa duração, determinandoséculos inteiros.176 As mentalidades e a geografia seriam exem-plares deste terceiro nível, marcado pelas permanências.

Fernand Braudel defende a pesquisa histórica que prio-riza a longa duração, mas sem negar o evento, ele passa a pen-sar a história em termos de “dialética das durações”, que liga,relaciona, articula os diferentes tempos da história. E apesar de

dar maior importância à longa duração, o autor afirma em vá-rios de seus escritos a necessidade de se pensar a conjuntura eo evento. Superar a história dos acontecimentos atribuindouma importância maior à relação entre as diferentes velocida-des com as quais o tempo histórico transcorre, exprime sinteti-camente a ideia de dialética das durações.

Quanto à ênfase ao espaço geográfico, Fernand Braudelescolhe a Geografia como parceira primordial para seus estu-dos, sobretudo na sua monumental obra O Mediterrâneo e omundo mediterrânico na época de Felipe II . Segundo ele, quemmais contribuiu para isso foi a obra do geógrafo Paul Vidal de laBlache, por ter despertado a atenção dos historiadores parauma série de assuntos até então esquecidos ou menosprezados.Assim, para Braudel, o espaço explica diversos aspectos dascivilizações e a geografia torna-se instrumento fundamentalpara a compreensão de uma sociedade. Desta forma, em suaobra, a geo-história – mais espacial do que temporal – diminuia importância do homem, colocando o Mediterrâneo o principalsujeito e ator de sua história.

176  BRAUDEL, Fernand. História e Sociologia. In: ___. História e ciências sociais.

Lisboa: Presença, 1982, p. 81-81.

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A partir do final da década de 1960, surge na Françaaquela que é considerada a terceira geração dos historiadores

ligados a Escola dos Annales. Nesta fase merecem destaque osnomes de Jacques Le Goff 177  (1924-....), Emmanuel Le RoyLadurie178 (1929-...), George Duby179 (1919-1996), Phillippe

177 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas. Ed. Unicamp, 1996; __. Mer-cadores e banqueiros na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991; __. A ci-vilização do ocidente medieval . Bauru: Edusc, 2005; __. O maravilhoso e o quoti-diano no ocidente medieval . Lisboa: Edições 70, 1989; __. A Nova História. São

Paulo: Martins Fontes, 1998; __. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vo-zes, 2007; ___. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001; __. SãoLuis: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999; __. Os intelectuais na Idade Média.São Paulo: Brasilense, 1995; __. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994; __. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa: Estampa, 1980;

178 LE ROY LADURIE, Emmanuel. Saint-Simon ou o sistema da corte. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 2004; __. O Carnaval de Romans: da Candelária à quar-ta-feira de cinzas, 1579-1580. São Paulo: Cia das Letras, 2002; __. Montaillou,

 povoado occitanico: 1294-1324. São Paulo: Cia das Letras, 1997; __. O Estadomonárquico: França, 1460-1610. SãoPaulo: Cia das Letras, 1994; __. Montaillou:cátaros e católicos numa aldeia francesa, 1294-1324. Lisboa: Ed. 70, 1975; __.Os camponeses do Languedoc . Lisboa: Estampa, 1997; __. Entre los historiado-res. México: Fondo de Cultura Económica, 1989.

179 DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa,1982: __. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Cia dasLetras, 1997; __. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989; __. A idade média na França (987-1460): de Hugo Capeto a Joana d'Arc. Rio de Ja-

neiro: Zahar, 1992; __. Idade Média, idade de homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1989; __. Guerreiros e camponeses: os primórdios docrescimento econômico europeu do século VII ao século XII.  Lisboa: Estampa,1980; __. Senhores e camponeses: homens e estruturas na idade média. Lisboa:Teorema, 1989; __. Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval . Lis-boa: Edições 70, 1988; __. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Ciadas Letras, 2001; __.  A História continua. Rio de Janeiro: Zahar, 1993; __. Ano1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1997; __. O tem- po das catedrais: a arte e a sociedade, 980-1420. Lisboa: Estampa, 1993; __.Diá-

logos com a Nova História. Lisboa: Dom Quixote, 1989;

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 Ariès180 (1914–1984). Com eles, a História passou a ter novaspreocupações, interessando-se pelas atitudes e mentalidades

dos seres humanos diante da morte, do medo e da doença. Umatrilogia organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, em 1974,com o título História,181  e seus três volumes Novos Problemas,Novas Abordagens e Novos Objetos  dá uma ideia clara do queestá sendo pensado para a história. Voltou-se para analisar oscostumes, as crenças, as festas, os cultos, o lazer, o cotidiano, aeducação, o amor, as relações entre gêneros. Incorporou novosobjetos ao seu estudo, tais como as mulheres, a família, a crian-ça, as minorias étnicas, religiosas e de gênero, os loucos e osprisioneiros, construindo novas abordagens e levantando no-vos problemas. Surgia a chamada Nova História.

A Nova História, que marca a terceira geração dos  Anna-les, será marcada pela fragmentação do discurso histórico epela ampliação de objetos e abordagens historiográficas. Asanálises econômicas e sociais foram perdendo espaço para as

mentalidades, através de um diálogo cada vez maior com a an-tropologia, sobretudo a cultural ou “simbólica”. Ocorreu o afas-tamento de qualquer tentativa de explicação holística e total dasociedade.

A considerada quarta geração dos Annales tem como re-presentantes significativos os historiadores Roger Chartier182 

180 ARIÈS, Phillippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: J. Zahar,1981; __. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989; __.Um historiador diletante. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1994; ___. O Tempoda História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

181  LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1988, 3 vol.

182  CHARTIER, Roger.  A história cultural: entre práticas e representações. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1988; ___. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizon-te: Autêntica, 2002; ___. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo:

Unesp, 2009. ___. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-

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(1945-...), Jacques Revel183  (1942-...),  André Burguière184 (1938-...), que investigam as práticas culturais a partir da in-

fluência de Michel Foucault, no que se refere aos pressupostosfundamentais da História Social. Assim como Foucault, estesenfatizam que os objetos como loucura, medicina, Estado sãotermos constituídos historicamente para cada época. Para Ro-ger Chartier e Jacques Revel “as relações econômicas e sociaisnão são anteriores ás culturais, nem as determinam; elas pró-prias são campos da prática cultural e produção cultural –  Oque não pode ser dedutivamente explicado por referencia auma dimensão extra-cultural da experiência.”185 

Nas últimas décadas, até em decorrência do tipo de his-tória produzida pelos últimos representantes da Escola de  An-nales, surgiram expressões como História Cultural, História dasMentalidades, História do Imaginário, História Serial, HistóriaQuantitativa, Micro-História, apenas para mencionar algumas, apartir das quais os historiadores começaram a pensar o tipo detrabalho que realizavam no âmbito da História.

XVIII). São Paulo: Unesp, 2007; ___. Leituras e leitores na França do Antigo Re-gime. São Paulo: Unesp, 2004. ___. A ordem dos livros: leitores, autores e biblio-tecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1994; ___. Formas e

sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Le-tras, 2003; ___.  À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes.  PortoAlegre: Ed. UFRGS, 2002. ___. Os desafios da escrita. São Paulo: Unesp, 2002.

183  REVEL, Jacques. Invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989; ___. Jogos deescalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998; ___. Proposi-ções  – Ensaios de História e historiografia. Rio de Janeiro: UERJ, 2009; ___. His-tória e historiografia: exercícios críticos. Curitiba: EdUFPR, 2011.

184  BURGUIÈRE, André. Dicionário das ciências históricas. Rio de Janeiro: Imago,1993.

185 HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 9.

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Os inúmeros critérios a partir dos quais puderam serpropostas as subdivisões do “fazer História” faz o ofício do his-

toriador mergulhar em um complexo mundo de especialidadesou especializações possíveis.

José D’Assunç~o Barros ao dividir o “campo da hist ória”utiliza três critérios: dimensões, abordagens e domínios.186 

O primeiro critério usado para dividir a história em mo-dalidades mais específicas refere-se ao que chamaremos dedimensões, que corresponde àquilo que o historiador traz para

o primeiro plano em seu exame de determinada sociedade: aPolítica, a Cultura, a Economia, a Demografia,... Deste modo,teríamos na História Econômica, na História Política, ou na His-tória das Mentalidades, campos do saber histórico relativo àsdimensões ou aos enfoques priorizados pelo historiador.

Um segundo critério para estabelecer divisões no saberhistórico é o que se chama de abordagens, referindo-se aos mé-todos e técnicas de fazer História, aos tipos de fontes, bem co-mo às formas de tratamento das mesmas. Assim, é possívelpensar na História oral, História serial, a micro-História e tan-tas outras. A História oral lida com fontes orais e depende detécnicas como a das entrevistas; a História serial trabalha comfontes seriadas – documentação que apresente um determina-do tipo de homogeneidade. A micro-História refere-se a abor-dagens que reduzem a escala de observação do historiador, que

procura captar em uma sociedade aquilo que normalmenteescapa aos olhos de quem trabalha com uma visão mais pano-râmica. Também a História regional é uma modalidade histori-ográfica ligada a uma abordagem. Ao examinar um espaço deatuação onde se desenvolvem as relações sociais, políticas eculturais, a História regional viabiliza um tipo de saber histori- 186 BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: princípios e conceitos fundamen-

tais. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 193ss.

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ográfico que permite estudar uma ou mais dimensões nestaregião, que pode ser analisada tanto nos seus aspectos inter-

nos, como no que se refere à sua inserção em universos maisamplos, sejam nacionais ou internacionais.

Um terceiro critério para estabelecer divisões do “f azerHistória” é o que se chama de domínios, se referindo a campostemáticos privilegiados pelos historiadores. São domínios, aHistória da mulher, a História do direito, a História da sexuali-dade, a História rural, a História diplomática...

Alguns domínios podem se referir aos “agentes históri-cos” que s~o examinados (a mulher, o marginal, o jovem, o tra-balhador, as massas anônimas), outros aos “ambientes sociais”’(rural, urbano, vida privada), outros aos “}mbitos de estudo”(arte, direito, religiosidade, sexualidade), e a outras tantas pos-sibilidades sem fim.

Alguns domínios surgem e desaparecem ao sabor dasmodas historiográficas, que podem ser motivados por eventossociais e políticos, ou mesmo por ditames editoriais e tendên-cias de mercado. Outros domínios surgem quando a sociedadena qual se insere o historiador está preparada para isso (porexemplo, uma “História da mulher” só poderia surgir no séculoXX, quando a mulher começa a conquistar o mercado de traba-lho e surgem movimentos feministas e de valorização social damulher). Outros domínios, no entanto, são tão antigos quanto a

própria História – caso da História religiosa e da História mili-tar – e tendem a ser perenes na sua durabilidade.

Uma observação detalhada do atual panorama historio-gráfico nos convida a pensar, ao menos como hipótese de tra-balho, que as novidades mais transcendentes não tem que serbuscadas no campo da metodologia. Este é um elemento impor-tante, posto que na anterior renovação da ciência histórica, astécnicas historiográficas jogaram um papel fundamental: tanto

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Cabe, em qualquer caso, uma reflexão mais profunda: ahistória das últimas décadas havia caído em um cientificismo

estreito que a havia alijado de seu mercado natural, que semprefoi mais além do círculo dos historiadores profissionais. Não épor nada que nos últimos anos entre os livros que abordam aHistória, os mais vendidos são os que foram escritos por jorna-listas.

4. Influências intensas da antropologia, da psicologia e daliteratura , que tem substituído em grande medida a economia,

a sociologia e a teoria política como fontes conceituais de inspi-ração. As novas influências têm obrigado a repensar o signifi-cado de conceitos básicos, tais como cultura, sociedade, mudan-ça, etc., tem incorporado novos métodos e tem orientado asinvestigações para temas considerados como secundários atéagora.

Em geral, de uma historiografia centrada no desentra-nhamento dos processos de mudança estrutural, tem-se passadoa outra, centrada nas permanências. Se até agora interessavamconceitos como ideologia, conflito social, revolução, transfor-mação econômica, interesses ou estratégias, a atual Historia sepreocupa por tudo aquilo que é subjacente a barreiras de tiposociológico ou econômico: categorias sociais como as de idade,sexuais, religiosas, raciais, etc.; dimensões de agrupamentocomo a família ou a comunidade vicinal, em que os laços comu-

nitários — emotivos — tem maior peso que os interesses raci-onais compartidos.

Num editorial da Revista de Annales de 1988, parece es-tar uma boa síntese do momento da historiografia:

Hoje, parece ter chegado o tempo das incertezas. A re-classificação das disciplinas transforma a paisagemcientífica, questiona primazias estabelecidas, afeta as

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vias tradicionais pelas quais circula a inovação. Os pa-radigmas dominantes, que se ia buscar nos marxismos

ou nos estruturalismos, assim como no uso confiante daquantificação, perdem sua capacidade estruturadora.187 

O que se pode dizer hoje é que a História, enquanto ci-ência está passando por um processo de profundas transfor-mações. Já desde alguns anos as verdades "definitivas" da his-toriografia pertencem ao passado. Sua dinamicidade inquestio-

nável faz aparecer novas tendências que apresentam novasalternativas metodológicas, bem como o interesse por temasque ficaram durante muito tempo relegados ao esquecimento.

187 Apud CHARTIER, Roger. A História hoje. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, V. 7,

nº 13, 1994, p. 100.

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OS PARADIGMAS

TRADICIONAIS DA

HISTORIOGRAFIA 

A tentativa de apreensão do panorama da História comociência é tarefa árdua que exige o pertencer ao mundo dos ini-ciados. Só a partir de uma visão crítica das principais posiçõesno âmbito da produção científica é que se pode dimensionar oselementos integrantes e essenciais e os complementos de uma

ciência - a teoria e a pesquisa.Uma ciência que pergunta a si própria o seu papel, os

seus limites, as suas lacunas, as suas possibilidades, as suas“fronteiras”, as suas realizações, é uma ciência que avança namultiplicidade de opções. A escolha das alternativas é o princí-pio da definição de sua atuação. Das divergências brotam astendências mais aproximadas no jogo da verdade da explicaçãocientífica.

apítulo v 

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5.1 - O positivismo

O sistema filosófico chamado de Positivismo, que teráuma grande influência sobre o conhecimento histórico, foi con-cebido pelo francês Augusto Comte (1798-1857). Educado numcontexto de lutas entre a burguesia e o proletariado, Comteassistiu, muitas vezes, a embates violentos, que, posteriormen-te, chamou de anarquia e desordem. Diante daquele contexto,para Comte, a ordem se apresentava enquanto uma condiçãofundamental para o progresso da humanidade. A sociedade era

entendida como um corpo social, dividido em várias partes,cada uma com sua função e importância. Para que esse corpofuncionasse bem, deveria ocorrer a cooperação de todos osórgãos entre si. A harmonia e a convivência pacífica de todos ossujeitos, independentemente da classe e do papel desempe-nhado na sociedade, conduziria a humanidade ao bem público eà felicidade individual, a partir do momento em que cada umcompreendesse sua funç~o no “corpo” social. 

De forma geral, o positivismo fundamenta-se em algu-mas premissas:189 

1. A sociedade é regida por leis naturais, que são leis invariá-veis, independentes da vontade e da ação humanas. Como re-sultado, na vida social, reina uma harmonia natural;

2. A sociedade pode ser epistemologicamente assimilada pela

natureza e então ser estudada pelos métodos e processos utili-zados pelas ciências da natureza;

3. Assim como as ciências da natureza, as ciências da sociedadedevem limitar-se à observação e à explicação causal dos fenô-

 189  LÖWY, Michael.  As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: 

marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez Edito-

ra, 2000, p. 17.

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e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menosnumerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as

anomalias aparentes do universo.190 

No estágio Metafísico, que na realidade não seria maisdo que uma simples modificação do estado Teológico:

os agentes naturais são substituídos por forças abstra-tas, verdadeiras entidades (isto é, abstrações personifi-

cadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e conce-bidos como capazes de engendrar por eles mesmos to-dos os fenômenos observados, cuja explicação consiste,então, em atribuir a cada um a entidade corresponden-te.191 

Por fim, após ter passado pelas duas primeiras etapas,

chegar-se-ia ao estágio Positivo:

o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade deobter noções absolutas, renuncia a procurar a origem eo destino do universo e a conhecer as causas íntimasdos fenômenos, para se consagrar unicamente à desco-berta, pelo uso bem combinado do raciocínio e da ob-servação, das suas leis efetivas, a saber, suas relações

invariáveis de sucessão e de similitude.192 

190 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.10.

191 Id. Ibid.

192 Id. Ibid.

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Nesta evolução, a noção de tempo utilizada pela histori-ografia positivista advém do iluminismo: progressivo, linear,

evolutivo em direção à sociedade positiva, que seria baseada namoralidade, igualdade e fraternidade.

  A lei da subordinação da imaginação à observação.

Esta “lei fundamental” do positivismo pretende quequalquer proposição que não possa ser reduzida à simplesenunciação de um fato particular ou geral carece de sentido

real e inteligível. Como resultado, numa certa versão do empi-rismo, considerava como atividades das ciências: a) o estabele-cimento dos fatos; b) sua explicação mediante leis (no sentidode estabelecer relações constantes de sucessão e similaridadeentre os fenômenos observados).

Para o positivismo, a história torna-se ciência a partirdo momento em que considera seus temas de estudo como fe-

nômenos naturais, ainda que produzidos pela vontade humana.O historiador não pode limitar-se apenas ao estabelecimentodos fatos, mas avançar no sentido de determinar as leis capazesde darem sua explicação. Assim, a História é considerada umaciência que visa descobrir a ordem de sucessão dos fenômenose determina suas relações de dependência, para que, atravésdela, possamos conhecer o passado e prever o futuro. Por isso éque já em 1822, ao publicar o Plano dos trabalhos científicos

 para a reorganização da sociedade, Augusto Comte escrevia queas obras históricas até ent~o produzidas “obedeciam { discri-ção e à disposição cronológicas de uma sucessão de factos par-ticulares, mais um menos importantes, mais ou menos exactos,mas sempre isolados, sem relaç~o lógica ou científica.” Em fun-ç~o disso, até aquele momento n~o existia “uma  verdadeirahistória, concebida por um espírito científico, quer dizer, tendo

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É interessante lembrar o lema comtiano: “O amor   porprincípio, a ordem por base e o  progresso  por fim”. Ao aplicar

este lema à ciência histórica, teremos uma história incruenta,feita por um povo ordeiro, que busca constantemente o pro-gresso; não se questiona as contradições sócio-econômicas, quegeram violência, desigualdades,...

Da mesma forma, o positivismo defendia o alijamentodas classes populares em relação aos assuntos governamentais,que deveriam ficar sob a responsabilidade de homens públicos

moralizados e conhecedores das leis que regulariam a naturezae a vida em sociedade, que Augusto Comte acreditava haverapreendido.

O positivismo, “um filho tempor~o do iluminismo do sé-culo dezoito”196  surge como uma utopia crítico-revolucionáriada burguesia anti-absolutista, tornando-se uma ideologia con-servadora identificada com a ordem industrial-burguesa. Aaplicação dos princípios positivistas na organização social “h|

de preparar os proletários para respeitarem, e mesmo reforça-rem, as leis naturais da concentraç~o do poder e da riqueza.”197 

Um historiador insuspeito, por ser um dos expoenteshistoricista, aponta as contribuições do positivismo para a His-tória. Para Robin George Collingwood, através do método posi-tivista,

os historiadores meteram ombros à tarefa de determi-nar todos os factos que pudessem. O resultado foi umconsiderável aumento de conhecimento histórico por-

 196 HOBSBAWM, Eric. A contribuição de Karl Marx à historiografia. In: BLACKBURN,

Robin (Org.). Ideologia na ciência social: ensaios críticos sobre a teoria social. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 247.

197 COMTE, 1973, p. 37.

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menorizado, com base numa proporção, sem preceden-tes, de exame cuidadoso e crítico das provas. Foi a época

de enriquecimento da história por meio da compilaçãode enormes quantidades de material cautelosamentepeneirado, como: anais reservados e patentes, o corpodas inscrições latinas, novas edições de textos e fonteshistóricas de toda a espécie, e todo o mecanismo da in-vestigação arqueológica.198 

Eric Hobsbawm, um dos maiores expoentes do marxis-mo e um dos historiadores mais respeitados no início desteséculo XXI, diz que a contribuição do positivismo não foi des-prezível: “Sua maior contribuiç~o para a história foi a introdu-ção de conceitos, métodos e modelos das ciências naturais nainvestigação social, e a aplicação dessas descobertas, sempreque possível, { história.”199 

É fácil, atualmente, constatar a insuficiência do métodocrítico tradicional positivista como arma de investigação histó-rica; é possível sorrir de suas ingenuidades, mostrar que o ditométodo e as “disciplinas auxiliares tradicionais” s~o o produtode uma tendência a concentrar as investigações em certas cate-gorias de fatos e documentos em certas épocas. Também é fácildemonstrar que a “objetividade” ou “imparcialidade” do hist o-riador positivista não passam de um mito cientificista.

Mas nem tudo pode ser colocado na lata do lixo: o mé-todo crítico positivista acostumou os historiadores a uma dis-ciplina mental útil; de todos os modos há que saber situar ade-quadamente os documentos no tempo e no espaço, estar segu-ro de sua autenticidade e confiabilidade, como de seu conteúdo

198 COLLINGOOD, 1994, p. 165

199 HOBSBAWM, 1982, p. 247.

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exato. O velho método crítico - momento essencial da constitui-ção da História como ciência - ainda que não esgota o horizonte

metodológico dos historiadores, segue sendo indispensável.

5.2 - O Historicismo 

O historicismo surgiu no fim do século XVIII e início doséculo XIX, sobretudo na Alemanha, como uma reação conser-vadora à filosofia do Iluminismo, à Revolução Francesa e à ocu-pação napoleônica. Sua base social é composta pelo conjuntodas camadas vinculadas a um modo de vida pré-capitalista evisceralmente hostil à sociedade burguesa em gestação.200 Por-tanto, é possível afirmar que historicismo e conservadorismoaparecem como dois espelhos que se refletem, se confirmam e

se reforçam reciprocamente ad infinitum.No final do século XIX o historicismo alemão começou a

mudar de caráter: o próprio ponto de vista conservador apare-ce como historicamente superado. Em nome da história, não sepode mais defender as leis feudais tradicionais, o direito localconsuetudinário, as virtudes aristocráticas, já que a própriahistória os condenou a desaparecer. O historicismo tende, por-tanto, a se redefinir e a se transformar em um questionamento

de todas as instituições sociais e formas de pensamento comohistoricamente relativas: ele deixa assim de ser conservadorpara se tornar mais relativista.201 

200 LÖWY, 2000, p. 66.

201 Ibid, p. 70.

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da particularidade histórica por oposição às grandes generali-zações que haviam sido feitas pelo Iluminismo e que, de modo

bem mais conservador, eram encaminhadas pelo Positivismo;neste sentido, a busca de lei gerais – típica do positivismo – eracontestada por uma concepção da História como ciência doparticular, do vivido humano que dificilmente poderia se ajus-tar às grandes receitas positivistas que buscavam aproximar asconcepções das ciências sociais às concepções das ciências na-turais.

Não existe um historicismo único. Arno Wehling identi-fica três etapas/formas do historicismo: 203 

a. Historicismo filosófico - Compreende a produção de filósofosdo século XVII, até as obras de Kant e Hegel. A característicaprincipal é o antimecanicismo, ou seja, a busca de explicaçõesparticulares a épocas e momentos históricos. O caráter relati-vista encontrada nas obras da maioria dos filósofos da história

do século XVIII não implica em adesão ao irracionalismo ou aoromantismo, pois admitiam o padrão newtoniano de interpre-tação do real. Aceitavam a ideia do universo regido por leis eprocuravam apenas encontrar as regularidades particulares aodesenvolvimento histórico. Nomes de destaque: GiambattistaVico (1668–1744) e Johann Gottfried Herder (1744-1803).

b. Historicismo romântico - Compreende a produção de histori-

adores, e de outros intelectuais, contemporâneos do romantis-mo e do nacionalismo, surgidos posteriormente à RevoluçãoFrancesa e vai até 1850.

Esta fase corresponde ao apogeu do anti-racionalismo,com os autores recusando-se a admitir a existência de leis his-tóricas, gerais ou relativas a cada povo ou época. O grande des-

 

203 Ibid, p. 33-34.

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taque é Leopoldo von Ranke (1795-1886), que juntamente comseus seguidores, construiu a crítica histórica. Além disso, tam-

bém surgiram os primeiros pilares metodológicos de outrasciências sociais, como etnologia, sociologia, direito.

c. Historicismo cientificista - Corresponde à produção intelectu-al da maioria esmagadora dos autores entre 1850 e a PrimeiraGuerra Mundial, nos campos da história, antropologia, direito,sociologia, ciência política e psicologia. Foi caracterizada pelaprevalência da explicação histórica sobre a sistêmica, da dia-

cronia sobre a sincronia. Benedetto Croce (1866-1952), RobinGeorge Collingwood (1889-1943), Friedrich Meinecke (1862-1954), são alguns dos nomes que se destacam.

De acordo com Francisco Ricardo Rüdiger204  o histori-cismo empreendeu um trabalho de fundamentação da ciênciahistórica embasado, de forma geral, nas seguintes teses:

i. Os fenômenos históricos, políticos, sócio-culturais, distin-

guem-se qualitativamente dos fenômenos naturais, na medidaem que constituem fenômenos “espirituais” dotados de signif i-cado humano;

ii. Os fenômenos históricos, políticos, sócio-culturais, só podemser estudados na sua historicidade, através da compreensão,mediada pelas fontes, do seu significado vivido ou montadopelos seus contemporâneos. Em suma, o fato histórico só pode

ser entendido dentro da história, através da história, em rela-ção ao processo histórico;

iii. O historiador, assim como seus fenômenos de análise, en-contra-se imerso no fluxo da história, no processo histórico,que determina suas perspectivas e conceitos de estudo.

204  RÜDIGER, Francisco Ricardo. Paradigmas do estudo da História. Porto Alegre:

IEL/IGEL, 1991, p. 21.

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Em função dessas premissas, pode-se identificar umatríade do pensamento historicista: i. Relatividade do objeto

histórico; ii. Especificidade metodológica da História; iii. Subje-tividade do historiador.

Assim, a pesquisa histórica é determinada por uma pré-compreensão do seu assunto que provém da própria história.Essa pré-compreensão recebe o nome de pergunta histórica. 

O historiador não se limita a reconstituir o pensamento

passado, faz a sua reconstituição no contexto do seu co-nhecimento. Desse modo, ao reconstituí-lo, critica-o,forma um juízo próprio sobre o seu valor, corrige quais-quer erros que consiga discernir nele.205 

Muito do que foi preconizado pelo positivismo, o idea-lismo historicista pegou para si, a começar pela afirmaç~o de “ahistória se faz com documentos”; documentos escritos, cert a-

mente.O método utilizado por ambos - positivismo e histori-

cismo - compreende várias etapas: a heurística é a primeiradelas. Trata-se do trabalho de pesquisa, descoberta e reuniãodas fontes. A etapa seguinte consiste na crítica externa e inter-na das fontes. A última etapa do procedimento metodológico éa síntese. Neste momento, o historiador “estabelece” as rela-

ções existentes entre os fatos dentro do seu processo histórico.Entretanto, Collingwood faz uma severa crítica ao mé-

todo histórico da “tesoura e cola” utilizado por muitos historia-dores positivistas. Não basta tirar do documento as informa-ções. “A história atua através da interpretaç~o das provas, quesão a expressão coletiva das coisas que singularmente se cha-

 

205 Idem, p. 268.

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mam documentos.... o procedimento histórico, ou método, con-sistir essencialmente na interpretaç~o das provas.”206 Por isso

em outro momento ele afirma que “para a história, o objeto adescobrir não é o simples acontecimento, mas o pensamentonele expresso. Descobrir esse pensamento é já compreendê-lo.Depois de o historiador ter estabelecido os fatos, não há qual-quer outro processo de averiguaç~o das suas causas.”207 

No século XIX a valorização do Estado Nacional não eraaleatória. Integrava uma ampla concepção de história baseada

na ideia de que os homens são fundamentalmente diferentes eproduzem formas diferentes de vida, expressas no curso dahistória.

O maior expoente do historicismo alemão, Leopoldo vonRanke, embora acreditasse em um sentido para a história uni-versal, para ele não eram valores universais e imutáveis queguiavam os homens, mas o seu conjunto moral e ético individu-al. O valor historicista da individualidade faz-se bastante pre-

sente nesta postura frente à História. O específico emergia co-mo o signo da investigação histórica, a história como ciênciaconfirmava o singular como seu principal objeto de investiga-ção. E como narrativa do único, a História aprimorou seu dis-curso relativista, ressaltando que a principal característica detodos os objetos de estudo da ciência histórica é sua historici-dade. Diante disso, não há lugar para qualquer tipo de determi-nismo na História. Collingwood vai dizer que “o estudo históri-co do espírito, portanto, nem pode predizer os futuros desen-volvimentos do pensamento humano nem estabelecer leis paraeles, exceto na medida em que tenham no presente o seu pontode partida.”208 

206 COLLINGWOOD, 1994, p. 17.207 Idem, p. 267.

208 Idem, p. 274.

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Para Leopoldo von Ranke, o indivíduo apenas existiriano Estado; por isso, a história que ele escreveu privilegiou os

fatos políticos e negligenciou a análise econômica e social. OEstado seria a expressão da coletividade e estava organizadopara representar a nação perante as outras nações. A ética queguiava o Estado deveria estar alicerçada em sua própria indivi-dualidade e não em valores universalmente válidos. Por issoRanke afirma: “o que proponho aqui é um ideal, e dirão que éimpossível convertê-lo em realidade. Não importa. O importan-te é ter podido mostrar o caminho certo e chegar a algum resul-tado que se sustente até mesmo em face das investigações ecríticas que possam vir depois”.209 

A história influenciada pelo historicismo destacou o pa-pel do singular e a necessidade de que ele fosse compreendidoem toda sua originalidade. Mas a preocupação com o desenvol-vimento geral da história não está ausente nas preocupaçõeshistoricistas. Por exemplo, Ranke ressaltou a necessidade de

estudar as conexões entre a história de cada país e sua inserçãona história europeia. Ao decidir estudar as grandes potências,Ranke admitiu que o contato entre as diversas individualidadescria o movimento da História e este movimento influencia mu-tuamente as individualidades que o criaram. Por isso, ao iniciarsua apreciação sobre o tema, ele confirmou que “atenho-me, decaso pensado, aos grandes acontecimentos, ao progresso dasrelações externas entre os Estados. Destarte, o estudo não po-

derá deixar de enfocar também muito dos acontecimentos in-ternos que se entrelaçam com aqueles de modo vário e recípro-co.”210 

209  Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org). Ranke: História. São Paulo: Ática,1979, p. 17.

210 RANKE, Leopold von. As grandes potências. In: HOLANDA, 1979, p. 147.

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Para além desta crítica, é provável que o aspecto maisimportante do historicismo tenha sido o de chamar a atenção

sobre as falácias do positivismo, ocultadas sob um otimismobeato, de suficiência. Por isso a afirmaç~o de R. Collingwood: “opensamento histórico está em quase toda a parte, a libertar-sedos laços da falácia positivista, reconhecendo que, em si mes-ma, a história não é mais do que a reconstituição do pensamen-to passado, no espírito do historiador.”213 

Isso tudo resultou no conjunto uma influência negativa

e esterilizante, mas cada vez mais poderosa na medida em quea Primeira Guerra Mundial, as dificuldades do pós-guerra esuas sequelas (como por exemplo, a proliferação das ditadurasfascistas ou de outro tipo, o crescente declínio da Europa nocenário mundial), e a depressão consecutiva à crise de 1929iam destruindo pouco a pouco as certezas, princípios e visão domundo que vinham do século XIX.

5.3 - O Marxismo

A influência do marxismo sobre a evolução recente dahistoriografia não podia deixar de ser considerável. Desde oséculo XIX, tal corrente de pensamento havia elaborado ques-tões tão essenciais como a unidade das ciências – “conhecemos

apenas uma ciência - a ciência da história”214

 , escreveram Marxe Engels - a utilização do noção de estrutura e a construção demodelos. Sem dúvida, se tratou mais de uma influência difusa,uma vez que o período decisivo da evolução da ciência históri-ca, no período do entre-guerras e imediatamente posterior à

213 COLLINGWOOD, 1994, p. 283.214 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.  A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes,

1989, p. 9.

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Segunda Grande Guerra, coincidiu em grande parte com umalonga fase de estancamento do pensamento marxista, que cor-

responde à época Stalinista - que em muitos países mesmoapós a morte de Stalin demorou muito para ser superada.

Um dado que é importante ter presente é que na vastaobra de Marx não há uma específica sobre sua concepção dehistória. Há a necessidade de se fazer uma verdadeira garimpa-gem para perceber os diferentes aspectos da sua concepçãosobre esta área do conhecimento. Arriscaríamos a dizer que,

talvez,  A ideologia alemã (1845-1846) seja a obra de Marx emque esteja mais presente o seu pensamento sobre a história.Nesta obra fica exposta a teoria materialista histórica, que con-sidera como base da história a forma de vida econômica relaci-onada com esta forma de produção e por ela gerada. Mostra asociedade civil nos seus vários estágios e em sua ação comoEstado. A partir da base econômica a teoria materialista explicaassuntos como religião, a filosofia, a moral, e a razão do curso

da história em sua evolução.A visão evolutiva da história para Marx é aquela que

aparece no Manifesto comunista  (1848). O fio condutor dessaperspectiva histórica é a tese de que a história de todas as soci-edades ao longo do tempo é a história da luta de classes. A his-tória possuiria uma ordem evolutiva racional, em que as fasessucessivas que a constituem engendram umas às outras emdireção à utopia social, ou seja, a sociedade comunista. Assim,“o sentido da história é a emancipação dos homens pela açãode um sujeito coletivo – o proletariado – que implantaria o uni-versal humano, fazendo cessar a luta de classes.”215 

Marx não rompe com os postulados historicistas, traba-lha com eles na fundamentação do saber histórico, mas assen-

 215

 REIS, 2011, p. 66. 

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necessário para sua época. A tarefa do historiador é descobrirestas leis, a fim de dar aos homens a capacidade de participa-

rem da história com total consciência de seu movimento.Marx e Engels defendem que “toda historiografia deve

partir destes fundamentos naturais e de sua modificação nocurso da história pela aç~o dos homens.” Ao mesmo tempolembram que:

o primeiro pressuposto de toda a existência humana e,

portanto, de toda a história, é que todos os homens de-vem estar em condições de viver para poder 'fazer his-tória'. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer,beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. Oprimeiro fato histórico é, portanto, a produção dos mei-os que permitam que haja a satisfação dessas necessi-dades, a produção da própria vida material.218 

Modo de Produção é o conceito mais importante domarxismo. É entendido como uma articulação, específica e his-toricamente dada, entre um nível e um tipo de organização de-finidos das forças produtivas e as relações de produção corres-pondentes. “O modo de produç~o da vida material condiciona odesenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral.Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o

seu ser social que, inversamente, determina a sua consciên-cia.”219  Modo de produção é um conceito abstrato. Como naprática cada formação econômico-social apresenta mais de ummodo de produção, empiricamente inexiste o modo de produ-ção em estado puro.

218 MARX; ENGELS, 1989, p. 10.219 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fon-

tes, 1983, p. 23.

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Ao se referir ao conceito de modo de produção, Marx eEngels lembram que:

não deve ser considerado como mera reprodução daexistência física dos indivíduos ... é uma forma definidade expressarem sua vida, um modo definido de partedeles. O que eles são, portanto, coincide com a produçãodeles, tanto com o que produzem, quanto com o comoproduzem.220 

Partindo deste conceito, Marx explica como ocorre oprocesso histórico da humanidade:

Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças pro-dutivas materiais da sociedade entram em contradiçãocom as relações de produção existentes [...] De formas

evolutivas das forças produtivas que eram, essas rela-ções convertem-se em entraves. Abre-se, então, umaépoca de revolução social. A transformação que se pro-duziu na base econômica transtorna mais ou menos len-ta ou rapidamente toda colossal superestrutura.221 

As  forças produtivas que entrarão em contradição po-dem ser entendidas como:

o conjunto dos fatores de produção, recursos, ferramen-tas, homens, que caracterizam uma sociedade determi-nada em uma determinada época e que é necessário

220 MARX; ENGELS, 1989,

221 MARX, 1983, p. 23.

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combinar de modo específico para produzir os bens ma-teriais de que a referida sociedade precisa.222 

Por sua vez, as relações de produção serão alteradascom as modificações das forças produtivas. Segundo Marx:

na produção social da própria existência, os homens en-tram em relações determinadas, necessárias, indepen-dentes de sua vontade [...] que correspondem a um grau

determinado do desenvolvimento de suas forças produ-tivas materiais.223 

Em função das relações de produção, é que Marx e En-gels escreveram no Manifesto comunista que:

a história da Sociedade se confunde até hoje com a his-

tória das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrí-cio e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação ecompanheiro, em outros termos, opressores e oprimi-dos em permanente conflito entre si, não cessam de seguerrearem em luta aberta ou camuflada, luta que, his-toricamente, sempre terminou ou numa reestruturaçãorevolucionária da Sociedade inteira ou no aniquilamen-to das classes em choque.224 

O estágio de desenvolvimento das forças produtivasdetermina o caráter das relações de produção entre os homens

222 Id. Ibid.223 Id. Ibid.224  MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista.  São Paulo:

Global, 1981, p. 19.

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te, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata,absurda.225 

A partir do momento em que o Stalinismo apropriou-sedo “conhecimento marxista” a noç~o de modo de produção foiesvaziada de seu conteúdo dialético. Embora ainda que for-malmente se fizesse sempre referência às forças produtivas, seprivilegiava de fato na elaboração histórica a definição das re-lações de produção correspondentes às sociedades de classes

com distintas formas de exploração (ou seja: escravidão = es-cravismo; servidão = feudalismo; assalariado = capitalismo).Claro que isto tinha um objetivo: ao privilegiar as relações deprodução, que muitas vezes eram entendidas como “relaçõesde exploraç~o”, colocava-se a luta de classes como a única forçadinâmica da história. Através dela, a revolução aconteceria e sechegaria à sociedade socialista.

Quando preconiza o fim da sociedade capitalista, Marx

também explicita a sua divisão de História e Pré-História:

podem ser designados, como outras tantas épocas pro-gressivas da formação econômica da sociedade, os mo-dos de produção asiático, antigo, feudal e burguês mo-derno. As relações de produção burguesas são a últimaforma antagônica do processo de produção social, anta-

gônica não no sentido de um antagonismo individual,mas de um antagonismo que nasce das condições deexistência sociais dos indivíduos; as forças produtivasque se desenvolvem no seio da sociedade burguesa cri-am, ao mesmo tempo, as condições materiais para re-

 225  MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas  –  Vol. III. São Paulo: Alfa-

Omega, 1984, p. 284.

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solver este antagonismo. Com esta formação social ter-mina, pois, a pré-história da sociedade humana.226 

O modo de produção asiático, que se encontra em al-guns textos de Marx227, foi eliminado, pelos orientalistas sovié-ticos em 1929, da lista das etapas de evolução das sociedades,não a partir de considerações científicas, mas de uma análisepolítica derivada do estágio que atravessava a revolução chine-sa até fins da década de 20. Com relação aos países do chamadoTerceiro Mundo, o marxismo dessa fase sustentava as teses dacoexistência em, todos eles,  do feudalismo (ou de “restos feu-dais” ou “semi-feudais”) com o capitalismo, o que servia parabasear a estratégia da “revoluç~o por et apas”: inicialmente umarevolução democrático-burguesa, anti-feudal e anti-imperialista, seguida de uma revolução proletária-socialista; setratava, visivelmente, de uma generalização feita a partir docaso chinês (coexistência de uma burguesia nacional, industriale progressista, e de uma burguesia comercial aliada ao imperia-

lismo e ao latifúndio feudal).228

 Tal situação começou a mudar nos anos 50 e principal-mente na década seguinte. A discussão sobre o modo de produ-ção asiático, após ganhar força nos ambientes marxistas dospaíses da Europa Ocidental, se estendeu a muitas outras regi-ões, incluindo os países socialistas. Seu resultado principal foi odescrédito crescente da teoria da evolução unilateral das so-ciedades baseada numa visão eurocêntrica. Por outro lado, o

marxismo voltou a discutir os problemas fundamentais da de-finição e conteúdo das noções de “forças produtivas” e “rela-ções de produç~o”, e os vínculos existentes entre ditos elemen-tos; dos conceitos de “modo de produç~o” e “formaç~o econô-

 226 Ibid, p. 234.227 MARX, Karl. O Capital . São Paulo: Civilização Brasileira, 1982, p. 291-292.228

 STALIN, 1979. 

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mico-social”, das relações entre base e superestrutura, etc. Mui-tas questões que pareciam fixadas para sempre nas receitas do

dogma passam, portanto, a constituir matéria de discussão eatividade criadora. Algo muito importante para os historiado-res é a abertura de discussões e investigações concretas sobreos problemas da “difus~o” e a “circulaç~o cultural”, em lugar derechaçar tais questões em nome da prioridade da dinâmicaestrutural interna.

Não há dúvida que, sem constituir o único e principal fa-

tor, o advento do estruturalismo teve uma grande influêncianas mudanças recentes do pensamento marxista, forçando areflexão sobre numerosos problemas, conceitos e definições,sobre as questões da teoria e do método. Mas há que advertirque o estruturalismo marxista é muito distinto do de Lévi-Strauss, por exemplo.229  A antropologia estrutural, com seumétodo que consiste em definir pares de oposições comple-mentares, privilegia as causas externas da mudança estrutural,

a “invari}ncia” das estruturas; o marxismo afirma a prioridadedo autodinamismo das estruturas, a identificação da estruturado processo de evolução, a contradição como motor da varia-ção.

Sintetizando, pode-se dizer que o marxismo apresentatrês hipóteses principais para a “ciência” histórica: 

i.  a ênfase no papel das contradições, priorizando o estudo dos

conflitos sociais. Na opinião balizada de Eric Hobsbawm, es-ta é a hipótese mais original de Marx, sua contribuição espe-cífica à historiografia.230 As interpretações anteriores valori-zavam a harmonia, a unidade, a continuidade, entre os di-versos grupos sociais;

229 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural . Rio de Janeiro: Tempo Brasilei-ro, 1967.

230 HOBSBAWM, 1982, p. 252.

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  um renovado interesse pela pesquisa sobre classes sociais e

o papel dos movimentos de massa na história;

 

uma crescente preocupação com os problemas de interpre-tação e, especialmente, com o estudo das leis ou mecanismosde evolução das sociedades e por sua comparação.

No entanto, segundo os mesmos autores, é grave a fortetendência ao ensaísmo, predominante entre boa parcela doshistoriadores marxistas. É raro encontrar trabalhos que pas-sem de reinterpretações, a partir de fontes secundárias ou,

quando muito, de documentos impressos (relatórios de viajan-tes, antologias de fontes,...). O trabalho de pesquisa históricabásica, a partir de documentação primária, muitas vezes lhes érepugnante, como se isso fosse uma atividade intelectual infe-rior. Evidentemente que há exceções e também existem muitosensaios úteis.233  Por outro lado, pode-se fazer bons trabalhosusando os resultados de pesquisas históricas de terceiros.

Independente da interpretação stalinista que o marxis-mo assumiu, acreditamos que ele não deixa de ser uma ideiaaberta de síntese contínua em situações conjunturais. Mas énecessário romper com todos os dogmatismos ainda existentes.Para que isto aconteça, é preciso que se discuta noções quecoloquem no centro as atividades do sujeito, que se recupere opapel do indivíduo no processo histórico. Para sair do determi-nismo esquemático, é preciso que se estabeleça a autodetermi-

nação da práxis real na transformação. Dito de outra forma, nãose pode colocar na lata do lixo a contribuição marxista para oentendimento da História, como aliás, muitos fizeram por oca-sião da crise do chamado Socialismo real e do próprio marxis-mo.

233 Id. Ibid.

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Marx.”235 De qualquer forma, é muito mais fácil decorar a últi-ma frase do Manifesto Comunista, do que entender a metodolo-

gia marxista da história.

5.4 - A Escola dos Annales 

Um dos maiores saltos qualitativos na historiografiaOcidental aconteceu em 1929, quando se dá início ao movimen-to intelectual denominado Escola dos Annales. Movimento este,que foi o mais importante para a construção de uma Históriacientífica e que, definitivamente, afirmou como uma ciênciasocial.

Até o início do século XX prevalecia a chamada “Históriatradicional”. A preocupaç~o essencial desta História era o acon-tecimento, que os franceses chamavam de “Histoire événe-

mentielle”, ou seja, um fato que nascia de forma espontânea dodocumento escrito, o qual era submetido ao rigorosíssimo mé-todo histórico, sofrendo a chamada crítica externa e interna,para determinar a veracidade e a autenticidade do documento.

A reaç~o { “História tradicional” teve início com umgrupo de Historiadores, que na França, liderados por HenriBerr, fundam em 1900 a Revue de Synthèse Histórique, ponto deencontro de especialistas de diversas disciplinas. Começava apreocupação com a síntese histórica.

Nos passos de Henri Berr seguem outros historiadores.Em 1928, Marc Bloch propõe à Lucien Febvre um projeto deuma revista francesa com colaboração internacional. Diante

235 Apud LAPA, José Roberto do Amaral. Introdução ao redimensionamento do deba-te. In: ___. (Org.). Modos de Produção e realidade brasileira.  Petrópolis: Vozes,

1980, p. 23.

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disto, nascia em Janeiro de 1929 a revista  Annales d’HistoireÉconomique et Sociale.

Ao longo do tempo, devido às circunstâncias, a revista mudoude nome várias vezes:Annales d’Histoire Économique et Sociale: 1929-1939;Annales d’Histoire Sociale -1939-1942;Mélanges d’Histoire Sociale - 1942-1944;Annales d’Histoire Sociale - 1945;

Annales: Économies, Sociétés, Civilizations -1946-1994;Annales: Histoire, ciências Sociales -1994 até hoje.

A revista tinha como objetivos: a) eliminar o espírito deespecialidade; b) promover a pluridisciplinaridade; c) favore-cer a união das ciências humanas; d) passar da fase dos debatesteóricos para a fase das realizações concretas, nomeadamenteinquéritos coletivos no terreno da história contemporânea. Opúblico alvo seria formado pelos grandes estudiosos das ciên-

cias sociais, a exemplo dos historiadores, sociólogos, geógrafos.

Com a criação da referida revista, estava dado o passoinicial para o surgimento da chamada Escola dos Annales, queno dizer de Ciro Flamarion Cardoso representou entre 1929 e1969, uma “ História nova no sentido real da express~o”.236 

Os membros da Escola dos  Annales- se é que se podechamar de escola, pois não apresentou uma teoria histórica que

pudesse servir de modelo - não concebiam a edificação da His-tória fora da prática quotidiana. Aliás, o próprio Fernand Brau-del af irmou que “os  Annales, apesar da sua vivacidade, nuncaconstituíram uma escola no sentido estrito, isto é, um modelode pensamento fechado em si mesmo.”237 O que eles recomen-

 236 CARDOSO, Ciro F. S. Ensaios racionalistas. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 95.237

 BRAUDEL apud REIS, 2011, p. 76. 

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dam ao historiador é o não conformar-se com os dogmas deuma nova filosofia, e sim a assunção diante da História de uma

atitude nova. O historiador tem que abrir-se ao mundo exte-rior, participando da vida de seu tempo. Não se encontra naobra dos fundadores dos  Annales uma doutrina histórica siste-matizada. Para eles, a História tem que ser trabalhada livre-mente, “sem doutrina estreita, sem catecismo constrangedor”. 

O historiador britânico Peter Burke, que se intitula“companheiro de viagem” dos  Annales, divide este movimento

pela História (ele chama de “movimento” e n~o de “Escola”) emtrês fases: i) de 1920 à 1945, caracterizado como um movimen-to pequeno, “radical e subversivo, conduzindo uma guerra deguerrilhas contra a história tradicional, a história política e ahistória dos eventos”,  que é o período dominado por MarcBloch e Lucien Febvre; ii) de 1945 { 1968, os “rebeldes” adqui-rem uma “estabilidade” histórica, apoderando-se do controleda produção histórica. Esta fase é a “que mais se aproxima ver-

dadeiramente de uma ‘escola’, com conceitos diferentes (part i-cularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (espe-cialmente a ‘história serial’ das mudanças na longa duraç~o)”, efoi dominada pela importante presença de Fernand Braudel;iii) a partir de 1968, marcada de forma profunda pela fragmen-tação do conhecimento histórico. “A inf luência do movimento,especialmente na França, já era tão grande que perdera muitodas especificidades anteriores.”238 

É possível pensar-se numa quarta fase dos  Annales, cu-jos membros se dedicam a investigar as práticas culturais apartir da influência de Michel Foucault, enfatizando objetoscomo a loucura, medicina,...

238 BURKE, Peter. A Escola dos Annales: 1929-1989 - a revolução francesa da histo-

riografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1991, p.12.

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Mesmo não possuindo normas rígidas, pode-se detectaralguns pontos em que os historiadores da Escola dos Annales 

convergem. Alguns destes pontos são:i. a necessidade de se passar da “História-narraç~o”, t~o cara aopositivismo e ao historicismo, para a “História-problema”, coma construção mais rigorosa de seu objeto através da formulaçãode hipóteses explícitas pelos historiadores, ou como escreveuLucien Febvre: “Colocar um problema é precisamente o início eo fim de qualquer história. Sem problemas, n~o h| história.”239 

ii. a crença no caráter científico da História, mesmo tratando-sede uma ciência que se encontra em processo de constituição.No dizer de Marc Bloch “a história n~o apenas é uma ciência emmarcha. É também uma ciência na infância: como todas aquelasque tem por objeto o espírito humano, esse temporão no cam-po do conhecimento racional.”240 

iii. o contato e debate crítico permanente com as outras ciên-cias sociais, sem reconhecimento de fronteiras irredutíveis en-tre estas, e a aceitação de problemáticas, métodos e técnicas detais ciências a serem utilizadas pela História.

De acordo com Braudel, o contato permanente com ou-tras ciências n~o implicaria num “desejo de unificaç~o”, maspara chegar a “uma problem|tica comum que liberte (as ciên-cias do homem) de uma quantidade de falsos problemas, deconhecimentos inúteis”. Continuando esta linha de raciocínio,

Braudel explica que “desejaria que as ciências sociais deixas-sem, provisoriamente, de discutir tanto as suas recíprocas fron-teiras, o que é ou não é ciência social, o que é ou não é estrutura[...] Que tentem antes traçar melhor, através das nossas investi-gações, as linhas que possam orientar uma investigação coleti-

 239 FEBVRE, 1983, p. 22.

240 BLOCH, 2001, p. 47.

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va.” Em relação ao profissional da História, o mestre francês écategórico: “o historiador quiz ser - fez-se - economista, soció-

logo, antropólogo, psicólogo, lingüista”.241 iv. a ambição de ampliar os horizontes da História, com a pre-tens~o de chegar a uma “síntese histórica global do social”, vin-culando os diversos níveis articulados da estrutura social - téc-nicas, economia, poder, mentalidades coletivas - mas sem es-quecer suas características próprias e suas oposições. Saía-seda História dos meros acontecimentos. Braudel exemplifica o

que significa a História dos acontecimentos:

Guardei a lembrança, uma noite, perto da Bahia, de tersido envolvido por um fogo de artifício de pirilamposfosforescentes; suas luzes pálidas reluziam, extinguiam-se, brilhavam de novo, sem romper a noite com verda-deiras claridades. Assim são os acontecimentos: para

além do seu clarão, a obscuridade permanece vitorio-sa.242 

v. a insistência nos aspectos sociais, coletivos e cíclicos do só-cio-histórico, em lugar dos “biogr|ficos” e sua fixaç~o nos indi-víduos (os “grandes homens” da História), grupos dominantes efatos “singulares” e “irrepetíveis”: surge daí a ênfase na Hist ó-ria demogr|fica, econômica, social e pelas “mentalidades cole-

tivas”. 

241 BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1982,p. 39.

242  BRAUDEL, Fernand. Posições da História em 1950. In: ___. Escritos sobre a

História. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 23.

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vi. abertura para a utilização de todos os tipos de fontes dispo-níveis e o consequente abandono da preocupação exclusiva

com os documentos escritos.Para os historiadores da Escola dos  Annales, o acontecer

histórico se faz a partir das ações dos homens. Desta forma,Marc Bloch afirmava que “a investigaç~o histórica, à medidaque progredia, foi levada a confiar cada vez mais na segundacategoria de testemunhos, isto é, nos testemunhos que não pre-tendiam sê-lo [...] É quase infinita a diversidade dos testemu-

nhos históricos.”243

 Desta forma, se passa a dar importância aos vestígios

arqueológicos, à tradição oral, à icnografia, aos restos de siste-mas agrários ainda visíveis na paisagem contemporânea. É im-portante a posição de Lucien Febvre sobre as fontes históricas:

A História faz-se com documentos escritos, certamente.Quando eles existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-sesem documentos escritos, no caso da inexistência des-tes. Isto é, com tudo quanto o engenho do historiadorpuder permitir-se utilizar para fabricar o seu mel, na fal-ta de flores habituais (...) A História se faz com palavras,sinais, paisagens e telhas. Com as formas de campo e er-vas daninhas. Com os eclipses da lua e colares de atrela-gem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedra por

geólogos e análises de espadas de metal por químicos.Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem,depende do homem, serve o homem, exprime o homem,

243 BLOCH, 2001, p. 58-61.

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demonstra a presença, a atividade, os gostos e as manei-ras de ser do homem.244 

A relação do historiador com o documento se modifica.Não mais o documento fala por si mesmo, mas passa a necessi-tar de perguntas adequadas. A intencionalidade começa a serpreocupação por parte do historiador, num duplo sentido: aintenção do agente histórico presente no documento e a inten-ção do pesquisador ao se acercar deste documento. O historia-

dor escolhe as fontes com as quais irá trabalhar e formula asperguntas que lhe parecem necessárias. Assim o ponto de par-tida da investigação passa do documento para o problema.

vii. a construção de temporalidade múltiplas em lugar da limi-tação ao tempo simples e linear até então utilizado na História.

“Para o historiador, tudo começa e tudo acaba pelo tem-po” costumava afirmar Fernand Braudel, ao refletir sobre suaconcepção da multiplicidade do tempo histórico. Para ele, otempo da História estava dividido em três níveis: tempo curto,tempo médio e tempo longo.

A história situa-se em diferentes níveis, quase diria emtrês níveis, se isso não fosse simplificar demasiado: [...]À superfície, uma história episódica, dos acontecimen-tos, que se inscreve no tempo curto: trata-se de uma mi-

cro-história. A meia profundidade, uma história conjun-tural de ritmo mais amplo e mais lento; foi estudada atéagora, sobretudo no plano da vida material, dos ciclosou interciclos econômicos [...] a história estrutural ou delonga duração determina séculos inteiros: encontra-seno limite do móvel e do imóvel; e, pelos seus valores

244 FEBVRE, 1983, p. 87.

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Os fatores geográficos, que devem ser levados em contapela história, só ganham importância decisiva quando

postos em relação com outros dados, econômicas, soci-ais e culturais [...] Essa consideração, banal, é necessáriase quisermos evitar qualquer equívoco determinista fá-cil.248 

Fica claro que Braudel, bem como seus companheiros Annalistes n~o s~o partid|rios do “determinismo geogr|fico”, e

sim da “Geo-história”, t~o útil no estudo da formação de fron-teiras e na colonização de uma determinada área ou região.

A geo-história,[...] engloba tanto os fenômenos de ordemclimática quanto os fatos culturais.[...] A geografia comograde de leitura da sociedade, como rocha sólida a par-tir da qual os homens se fixam, assim é a geo-história,segundo Fernand Braudel, um olhar mais espacial que

temporal. [...] A outra dimensão da geo-história consistena identificação àquilo que Fernand Braudel chama deas estruturas da História.249

ix. o reconhecimento da ligação indissolúvel e necessária entreo presente e o passado no conhecimento histórico, pois  “a in-compreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do

passado”.250

 No entanto, no dizer de Marc Bloch é “erro gravejulgar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas inves-tigações tenha necessariamente de modelar-se pela dos acon-

 248 BRAUDEL, Fernand. O Espaço e a História no Mediterrâneo. São Paulo: Martins

Fontes, 1988, p. 85.249  DOSSE, François.  A História em migalhas: dos “Annales” à Nova História. São

Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. Unicamp, 1992, p. 136-137.

250 BLOCH, 2001, p. 42.

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tecimentos.”251 Desta forma, pode ocorrer a interrogação dopassado pelo presente, ou seja, uma História retrospectiva.

x. o interesse pelos estudos regionais. Ciro Flamarion Cardoso eHéctor Brignoli252  apontam alguns motivos da preferência daEscola dos Annales por este tipo de investigação histórica:

a) investigando-se a História regional, pode ser feito um “traba-lho artesanal de historiador”, valendo-se de toda a docu-mentação disponível e podendo trabalhá-la conveniente-mente;

b)  permite seguir a evolução de determinado grupo social alongo prazo, analisando distintos níveis estruturais: econô-mico, social, demográfico, geográfico, ideológico, mental.

A Escola dos Annales tem sofrido algumas críticas, prin-cipalmente por parte de historiadores marxistas, apesar deexistir vários pontos de convergência entre ambos. Ciro Flama-rion Cardoso, historiador marxista afirma que:

entre os movimentos intelectuais surgidos entre histo-riadores profissionais, o dos Annales foi de longe o maisinfluente na construção de uma história científica: porsua insistência na formulação de hipóteses verificáveis;por seu espírito crítico muito desenvolvido quanto àspossibilidades e limites afetivos da documentação; pela

vis~o global que, recusando a singularidade do “fato his-tórico” isolado, abriu possibilidades de sistematizaç~o,de visão estrutural; por sua abertura a novos métodos,técnicas e problemáticas, o que permitiu que a História

251 Ibid, p. 44.

252 CARDOSO; BRIGNOLI, 1987, p. 473-474.

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se aproveitasse criticamente dos avanços de outras ci-ências.253 

Os membros dos  Annales são acusados de terem deixa-do de lado questões de ordem política. Porém, é necessáriolevar em consideração, por exemplo, que as obras de MarcBloch Os reis taumaturgos,254  bem como  A sociedade feudal ,255 tratam de questões relacionadas ao poder e à forma de gover-no. No caso da obra de Braudel, O Mediterrâneo e o mundo me-

diterrâneo na época de Felipe II , na parte dedicada às estrutu-ras, existem capítulos sobre o Império e a preparação para aguerra. Claro que ele rejeitou a história dos acontecimentospolíticos e militares, pois os considerava a mais superficial es-pécie de História. Em relaç~o aos “jovens” historiadores dos Annales, em obras de grande parte deles, temas como relaçõesde poder político estão presentes. O que foi negligenciado, istosim, foi a chamada “história política utilit|ria”, aquela feita com

o objetivo de buscar resultados políticos. Mas, por outro lado,não se pode dizer, que - a exemplo dos “três cavaleiros da His-toriografia”, Febvre, Bloch e Braudel - fossem alienados: Feb-vre, voluntariamente lutou na Primeira Guerra Mundial e so-mente não participou na Segunda grande guerra devido à ida-de; Bloch participou da Primeira Guerra Mundial, foi um doslíderes da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial,quando foi preso, torturado e fuzilado pelos nazistas durante a

ocupação da França; Braudel, também como voluntário, foi ofi-cial durante a Segunda Guerra, também sendo preso pelos na-zistas. Aliás, foi durante o longo período da prisão que ele es-creveu sua tese.

253 CARDOSO, 1988, p. 97.254 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos - o caráter sobrenatural do poder régio: Fran-

ça e Inglaterra. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

255 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

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Os  Annalistes  tem sido acusados de produzirem um co-nhecimento histórico onde se percebe a ausência de uma Histó-

ria da estrutura de classes e dos conflitos sociais. No entanto,para Lucien Febvre, “toda História é social”, mas isto é vistoapenas como uma definição do objeto História. Febvre tambémafirmava: “o homem isolado, essa abstraç~o; o homem em gru-po, essa realidade”, demonstrando que havia preocupação emestudar as classes sociais; só que ao invés de preocupar-se comas relações e com o antagonismo entre as classes sociais, haviaa preferência em tematizar as permanências materiais e espiri-tuais.

A não preocupação em formar um modelo teórico rígi-do, fez com que fossem acusados de produzir uma Históriadespreocupada com a mudança social.

Braudel rebate esta crítica alegando que uma teoria demudança social para a História implicaria em modelos pré-determinados.

Devemos renunciar a utilizar qualquer das explicaçõescíclicas do destino das civilizações ou das culturas, tra-duções, na realidade da tão repetida e insistente frase:nascem, vivem e morrem. Ficariam assim rejeitadas astrês idades de Vico (idade divina, heróica, humana), co-mo as três idades de Augusto Comte (teológica, metafí-

sica, positivista) as duas fases de Spencer (coacção emais tarde liberdade), as duas solidariedades sucessivasde Durkhein (a externa e a interior), as etapas econômi-cas de Hildebrant, de Friedrich List ou de Bücher, asdensidades crescentes de Levasseur e Ratzel, finalmen-

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te, o encadeamento de Karl Marx: sociedades primitivas,esclavagismo, feudalismo, capitalismo, socialismo.256 

Como se percebe, estamos longe das leis da História. Anoção de uma pluralidade de destinos, o cuidado em não deixarnada escapar daquilo que o Homem pode ser, fazer ou pensar,impelem Fernand Braudel e seus companheiros a rejeitar comvigor os sistemas definidos “{ priori” e todas as explicações domundo que se refiram a um fator dominante ou determinante.

Desde o início do movimento dos  Annales, Marc Bloch eLucien Febvre sempre se opuseram com tenacidade à tendên-cia de fragmentar o corpo da História em “especialidades” in-dependentes e paralelas, demonstrando a necessidade de umasíntese global, de uma História total, que chamavam de HistóriaSocial. Mas isto foi até 1969, quando Fernand Braudel se “apo-sentou”. A partir daí, a Escola dos Annales passou a seguir umoutro rumo.

O fato dos Annales não ter construído um modelo teóri-co rígido, fez com que “historiadores” de diversas tendências,auto-proclamados herdeiros dos mestres Bloch, Febvre e Brau-del, dessem um impulso na historiografia, fazendo surgir a“Nova História”. Assim, temos a terceira geração dos  Annales,com nomes como Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie,François Furet, Marc Ferro, Michel Vovelle, George Duby, Phil-

lippe Ariès... Este grupo, ao desenvolver a antropologia históri-ca, vai promover o que François Dosse chamou de a “históriaem migalhas”. Segundo este autor, “o preço a pagar por essanova readaptação é o abandono dos grandes espaços econômi-

 

256 BRAUDEL, 1982, p. 115.

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importante, principalmente nas investigações sobre as práticasculturais. Surge então a chamada “História cultural”. 

A “Nova História” compartimentada, de forma estanque,despolitizada, deslocando o interesse para temas politicamentedesmobilizadores, no dizer de Ciro Flamarion Cardoso, “inco-modam muito menos aos governos do que as manifestações elutas que ponham em jogo a essência do poder político, o capi-tal, a propriedade privada” e certamente “convém muito me-lhor do que a historiografia francesa de antes de 1969”,258  ou

seja, a historiografia produzida pelos membros da Escola dos Annales.

O que dizer hoje sobre os paradigmas?

Para início de conversa, podemos lembrar das palavrasde Astor Antônio Diehl, que nos inícios dos anos 1990 afirma-

va: “Viemos de uma tradiç~o historiogr|fica em que a Históriacomo ciência era utilitária e justificava atos políticos e ideológi-cos enquanto situações estruturais.”259 

O que se pode dizer é que a História aparece hoje comouma ciência em plena evolução; as verdades "definitivas" dahistoriografia positivista e do marxismo stalinista pertencemao passado. Seu dinamismo incontestável não deve fazer es-

quecer, sem dúvida, uma série de problemas importantes. Háque reconhecer que o desenvolvimento dos diferentes ramosda investigação histórica obedece a ritmos heterogêneos: bastacomparar a História econômica ou demográfica com a político-

 258 CARDOSO, 1988, p. 108259 DIEHL, Astor Antônio.  A cultura historiográfica nos anos 80: mudança estrutural

na matriz historiográfica brasileira – (IV). Porto Alegre: EVANGRAF, 1993, p. 8.

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institucional, por exemplo; durante um bom tempo, o atrasometodológico e conceitual desta última era algo evidente, com

exceção de certos aspectos parciais.Por outro lado, a ciência histórica vacila entre sua ten-

dência à totalidade e a tendência à fragmentar-se em váriasdisciplinas autônomas; esta última tendência se vê reforçadapelo contato com outras ciências sociais, o qual, introduzindona  História métodos que exigem certo grau de especialização,favorece a diferenciação dos investigadores em historiadores-

demógrafos, historiadores-economistas, etc. O corte absolutoentre História econômica e História global constitui um dosperigos mais graves, posto que favorece a não consideração, nomarco das investigações histórico-econômicas, da especi-ficidade histórica dos sistemas sócio-econômicos. Por fim, aquantificação, que está no centro das preocupações dos histori-adores, não pode aplicar-se a todo o campo das investigaçõeshistóricas: resistem muitos aspectos cujo caráter qualitativo

parece irredutível, e ademais, a ausência de dados estatísticosconfiáveis e abundantes, ou de material suficiente e adequadopara reconstruí-los ou elaborá-los, impede ou limita muito suaspossibilidades de aplicação a vastos períodos e setores da his-tória da humanidade.

As atuais tendências da historiografia andam no sentidode apresentar alternativas teórico-metodológicas diferenciadas

dos postulados defendidos pelos paradigmas aqui apresenta-dos. Como são ainda muito recentes constituem apenas ten-dências, não podendo, ainda, serem considerados como novosparadigmas. Obviamente, como a “história é um de campo pos-sibilidades” –  lembrando Braudel –, há quem pense diferente.Ciro Flamarion Cardoso, por exemplo, se refere a existência de

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A PRODUÇÃO DO

CONHECIMENTO

HISTÓRICO

A História não é um resgate do passado, como se fossealgo perdido, mas é sempre uma interpretação de algo a quenão se tem mais acesso. O que podemos dizer ou escrever so-bre o processo que produziu um determinado fato é sempreuma interpretação, e não uma reprodução do processo ou dofato. E quando estamos interpretando algo, estaremos dando a

nossa versão sobre o acontecido. Então, sempre será uma in-terpretação de um ponto de vista situado, avaliativo, de alguémque está limitado a outro tempo e espaço, circunscrito a outrosvalores. Além disso, no caso do pesquisador, estará fundamen-tado em uma teoria, a qual tem o poder de direcionar seusolhos em direção ao fenômeno que pretende estudar.

Está claro que não temos meios de voltar diretamenteao passado, mas temos a necessidade de visitá-lo. Assim, nós

apítulo VI 

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buscamos não o passado em si mesmo, pois dessa forma ele éinacessível, mas por meio das fontes históricas vamos visitá-lo

pela mediação de nossas teorias.O relato de um evento do passado representa uma re-

construção baseada nos vestígios do que aconteceu. O trabalhodo historiador é identificar os vestígios para poder depois cole-tá-los, organizá-los, analisá-los e interpretá-los.

Estes vestígios são os documentos, cuja recuperação éuma valiosa contribuição ao conhecimento do passado. Toda-

via, os documentos constituem-se na “matéria prima” da Hist ó-ria, mas n~o se constituem propriamente na “história”. Tor-nam-se “história” por meio da an|lise e da interpretaç~o. 

Henri-Irénée Marrou definiu muito bem qual deve ser aatitude do verdadeiro historiador diante da documentação,onde ele busca desvelar o passado:

Ele (o historiador) não deve adotar, em relação às tes-temunhas do passado, essa atitude carrancuda, esmiu-çadora e rabugenta, que é a atitude do mau policial paraquem toda pessoa intimada a prestar depoimento é apriori suspeita e tida como culpada até prova em con-trário; tal superexcitação do espírito crítico, em vez deser uma qualidade, seria para o historiador um vício ra-dical, que o tornaria praticamente incapaz de reconhe-cer o significado real, o alcance, o valor dos documentosque estuda; uma atitude desse tipo é tão perigosa emhistória como, na vida cotidiana, o medo de ser iludi-do.262 

262 MARROU, 1978, p. 78-79.

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Na tentativa de explicar a história do passado humano,o historiador examina sempre uma determinada realidade, que

aconteceu concretamente em um determinado tempo e numdeterminado espaço, partindo do princípio de que cada reali-dade histórica é única, não se repetindo nunca de forma exata-mente igual. Às vezes dá-nos a impressão de que a História serepete; mas ao analisarmos com maior profundidade, perce-bemos que as circunstâncias são sempre diferentes. Até porque, diferentemente do que ocorre com as chamadas ciênciasnaturais, onde as mesmas causas levam sempre ao mesmoacontecimento, produzindo as mesmas consequências, na his-tória, fatores motivadores iguais, podem levar à acontecimen-tos diferentes. Por outro lado é necessário lembrar que:

ao historiador não cabe redescobrir a verdade, mas res-tabelecer um diálogo entre a época em que atuou e opassado que se projeta dos documentos. A linguagem

permite uma fusão de horizontes, isto é, a reconstruçãodo passado, o diálogo do presente com o passado, reme-tendo o historiador a uma tradição repleta de significa-ções.263 

O trabalho de um historiador é semelhante ao trabalhode investigação de um detetive. O historiador tem que buscarprovas e testemunhos, buscando encontrar os condicionamen-tos, motivos e razões de um determinado acontecimento histó-rico.

Ao se referir à produção do conhecimento histórico,José Murilo de Carvalho diz:

263 MURARO, Valmir Francisco. Sobre hermenêutica, História e narrativa. Fronteiras:

Revista Catarinense de História. Florianópolis, nº 7, 1999, p. 110.

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Parodiando o que se dizia à época do cinema novo, obom trabalho historiográfico requer uma ideia na cabe-

ça e um documento na mão, isto é, requer uma informa-ção e uma maneira de interpretá-la. Requer, ainda, queou o documento, ou a ideia, ou ambos, sejam novos.264 

Quando se pensa em produção do conhecimento, duasgrandes tendências da pesquisa surgem à nossa frente: a quan-titativa e a qualitativa. A pesquisa quantitativa atua em níveis

de realidade na qual os dados se apresentam aos sentidos e temcomo campo de práticas e objetivos trazer à luz fenômenos,indicadores e tendências observáveis. Por sua vez, a pesquisaqualitativa trabalha com valores, crenças, hábitos, atitudes,representações, opiniões e adequa-se a aprofundar a complexi-dade de fatos e processos particulares e específicos a indiví-duos e grupos. A abordagem qualitativa é empregada, portanto,para a compreensão de fenômenos caracterizados por um alto

grau de complexidade interna.Do ponto de vista metodológico não há contradição,

assim como não há continuidade, entre a investigação quantita-tiva e a qualitativa. Ambas são de natureza diferente. Do pontode vista epistemológico, nenhuma das duas abordagens é maiscientífica do que a outra. Uma pesquisa, por ser quantitativan~o se torna “objetiva” e, portanto, “melhor”. Da mesma forma,

264 CARVALHO, José Murilo de. Consolidação da República nos governos de Deodo-ro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais. In: Anais do Congressonacional de história da propaganda, proclamação e consolidação da república no

Brasi l. Rio de Janeiro: IHGB, 8 a 10 de novembro de 1989, vol. 2, p. 9.

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tuações em que o pesquisador vê-se obrigado a redimensionaro seu estudo frente a algumas dificuldades, seja na coleta de

dados, na continuidade de financiamento,...No dizer de Franz Victor Rudio, pretender desenvolver

uma pesquisa sem projeto “é lançar-se à improvisão, tornandoo trabalho confuso, dando insegurança ao mesmo, reduplican-do esforços inutilmente e que, agir desta maneira, é motivo demuita pesquisa começada e não terminada, num lastimoso es-banjamento de tempo e recursos.”267  Elaborar o projeto de

pesquisa é traçar um caminho eficaz que conduzirá ao fim quese pretende atingir, impedindo que o pesquisador se perca an-tes de tê-lo alcançado.

Não existem regras formalizadas quanto à forma deapresentar um projeto de pesquisa. Na realidade, num projetode pesquisa têm que estar presentes algumas perguntas:

• O que fazer? • Para que? • Por que? • Como? • Com que?

• Onde? • Quando? • Quanto? • Quem paga? 

Não tem sentido pensar num projeto de pesquisa histó-rica sem uma boa delimitação, com um bom recorte espácio-temporal. José D’Assunç~o Barros afirma que “uma delimitaç~oadequada do período histórico que será examinado é, natural-mente, uma questão de primeira ordem para qualquer histori-ador. A escolha de um recorte qualquer de tempo historiográfi-co n~o deve, por outro lado, ser gratuita.” Acrescenta ainda quea escolha de um recorte temporal historiogr|fico “n~o devecorresponder a um número propositalmente redondo (dez,cem, ou mil), mas sim a um problema a ser examinado ou auma tem|tica que ser| estudada.” Em síntese, “é o problema

267 Id. Ibid.

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que define o recorte, e não qualquer coisa como uma dezena deanos escolhida a partir de critérios comemorativos.”268 

Os melhores recortes nem sempre coincidem com umgoverno, um país ou uma cidade, até por que o objeto a ser in-vestigado pode desejar romper essas muralhas artificiais queinsistem em aprisioná-lo.

É sempre possível [...] que o problema a ser investigadorequeira um recorte que comece na metade de um go-verno e se estenda para a primeira metade do governoseguinte, ou que faça mais sentido abarcando dois paí-ses do que um único, ou ainda duas regiões pertencen-tes a dois países distintos. A delimitação de uma regiãoa ser estudada pelo historiador não coincide necessari-amente com um recorte administrativo ou estatal: podeser definida por implicações culturais, antropológicas,

econômicas, ou outras. Um grupo humano a ser exami-nado não estará necessariamente enquadrado dentrodos parâmetros de um Estado-Nação. Um padrão dementalidade que se modifica pode corresponder a umenquadramento que abranja duas pequenas regiõespertencentes a duas realidades estatais distintas, oucorresponder a uma vasta realidade populacional queatravessa países e etnias distintas, que se interpõe entre

duas faixas civilizacionais, e assim por diante.269 

Um outro tipo de recorte possível para o historiador é o“recorte serial”, em que o objeto a ser investigado n~o é recor-

 268  BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História: da escolha do

tema ao quadro teórico. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 41-42.

269 Ibid, p. 43.

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tado em função de uma determinada realidade histórico-socialdelimitada pelo espaço e tempo, mas sim em função de uma

determinada série de fontes ou de materiais que são constituí-dos pelo historiador. Neste caso, o historiador não escolhe es-tudar uma determinada sociedade para depois ir buscar as fon-tes que propiciarão este estudo. O que ele vai estudar é exata-mente a “série”. Pode-se entender como uma “série” os fatosrepetitivos que permitem uma avaliação comparativa, bemcomo uma determinada documentação homogênea.270 

No século XIX Leopoldo von Ranke dizia que “a históriasomente começa quando os documentos tornam-se inteligíveise quando existem documentos dignos de fé.” Uma premissa queficou famosa e que foi o norte de muitos historiadores durantelongo tempo foi explicitada por Charles Seignobos e CharlesLangrois, no seu manual escrito no início do século XX: “Semdocumento n~o h| história”. Com isto buscavam situar a fontehistórica como o princípio da operação historiográfica. Algu-

mas décadas mais tarde, esta frase seria contraposta por umaoutra, criticamente pronunciada por Lucien Febvre: “Sem pro-blema n~o h| história”. O historiador dos  Annales, com isto,queria mostrar que a operação historiográfica principiava naverdade com a formulação de um problema. Seria um problemaconstruído pelo Historiador o que permitiria que ele mesmoconstituísse as suas fontes, agora deslocada para o segundopasso da pesquisa.

Atualmente, passadas várias décadas após os primeiros“combates pela história” dos historiadores dos Annales contra ahistoriografia positivista, percebe-se claramente que os doiselementos – o “Problema” e a “Fonte” - acham-se muitas vezesentrelaçados: se o problema construído pelo historiador sinali-za para algumas possibilidades de fontes, determinadas fontes

270 Ibid, p. 47-48.

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também recolocam novos problemas para os historiadores. Porum lado, se o problema proposto pelo historiador permite que

ele constitua suas fontes de determinada maneira, por outro, aspróprias fontes históricas também devolvem “problemas” aohistoriador.

Ao iniciar uma pesquisa, o historiador vai partir de umdeterminado problema, fazendo questionamentos sobre esteproblema. A pesquisa somente poderá ser executada a partir dadefinição de um problema. Assim, geralmente, o projeto de

pesquisa começa a ser elaborado a partir deste elemento.O problema é uma dificuldade, tanto teórica quanto prá-tica, que surge em relação ao conhecimento de algo considera-do importante, para o qual deve ser encontrada uma solução.

Formular o problema consiste em dizer, de forma clara,objetiva, explícita, compreensível e operacional, qual a dificul-dade que encontramos e que pretendemos resolver, limitandoseu campo e apresentando suas características. A principalpreocupação do problema de pesquisa é torná-lo individualiza-do, específico, inconfundível.271 

Franz Victor Rudio aponta alguns questionamentos quesão necessários partir do pesquisador no momento em que estátentando formular a problematização da sua pesquisa:272 

a)  este problema pode realmente ser resolvido pelo pro-cesso de pesquisa científica?

b) 

o problema é suficientemente relevante a ponto de jus-tificar que a pesquisa seja feita (se não é tão relevante,existe, com certeza, outros problemas mais importan-tes que estão esperando pesquisa para serem resolvi-dos)?

271 RUDIO, 1980, p. 75.

272 Ibid, p. 77.

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c)  trata-se realmente de um problema original?

d) 

a pesquisa é factível?e)  ainda que seja “bom”, o problema é adequado para

mim?

f)  pode-se chegar a uma conclusão valiosa?

g)  tenho a necessária competência para planejar e execu-tar um estudo deste tipo?

h) 

os dados, que a pesquisa exige, podem realmente serobtidos?

i)  há recursos financeiros disponíveis para a realizaçãoda pesquisa?

j)  terei tempo de terminar o projeto?

l) serei persistente?

Por sua vez, Silvio Luiz de Oliveira273

 diz que o proble-ma, antes de ser considerado apropriado, deve ser analisadosob o aspecto de sua valoração:

  Viabilidade: pode ser eficazmente resolvido por meio dapesquisa;

  Relevância: deve ser capaz de trazer conhecimentos novos.

  Novidade: está adequado ao estágio atual da evolução cientí-

fica.  Exequibilidade: pode chegar a uma conclusão válida.

  Oportunidade: atende a interesses particulares e gerais.

273 OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Tratado de Metodologia Científica. São Paulo: Pioneira,

1997, p. 154.

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205

Para descrever o problema, inicialmente é feita umaintrodução ao tema da pesquisa, tentando localizá-lo no tempo

e no espaço, dando uma ideia central do trabalho proposto.Após esta descrição inicial, é apresentado o problema, ou seja, agrande pergunta a ser respondida através da pesquisa. Estapergunta deve ser clara e objetiva.

O problema é empírico, descrito a partir das informa-ções que o pesquisador possui, da sua vivência em relação aotema em questão. A escolha do problema de pesquisa sempre

implica algum tipo de comprometimento por parte do pesqui-sador. No entanto, é essencial que a formulação do problemaseja destituída de juízo de valor. Sabemos que não existe neu-tralidade científica, mas é necessário que estejamos livres depreconceitos para levantar um problema; caso contrário, esta-remos com o trabalho prejudicado desde seu início.

Uma outra questão que se apresenta na formulação doproblema é o modismo. Muitas vezes, quando em países desen-

volvidos são realizadas com sucesso pesquisas em determinadaárea do conhecimento, a tendência é que em outros paísesaconteça algo análogo. Mesmo dentro do país, no mundo aca-dêmico, quando instituições de renome passam a desenvolverinvestigações científicas abordando determinadas problemáti-cas, instituições menores acabam seguindo o mesmo caminho.

Por outro lado, quando algumas temáticas passam a

dominar o debate nos meios de comunicação, acabam desper-tando o interesse dos pesquisadores, influenciando na formula-ção de problemas para seus projetos de pesquisa.

Algumas condições são importantes para a elaboraçãodo problema de pesquisa:

•  Imersão sistemática no objeto;

• Estudo sistemático da literatura existente;

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• Discussões com pessoas que acumularam experiência práticaneste campo de estudos.

Também algumas regras práticas são interessantes deserem observadas:

• O problema deve ser formulado como pergunta;

• O problema deve ser claro e preciso;

• O problema deve ser empírico;

• O problema deve ser suscetível de solução;

• 

O problema deve ser delimitado a uma dimensão viável.

6.2 - As Fontes do historiador

Como foi visto anteriormente, há dois caminhos maiscomuns e possíveis para iniciar uma pesquisa histórica. Primei-ro, escolher um campo documental e inventariar seus temas,segundo, selecionar um tema e inventariá-lo em toda a docu-mentação do período.274 Assim, não importa a ordem escolhida:reunir um corpus documental é uma das primeiras tarefas dohistoriador.

Com o problema definido o historiador vai fazer questi-onamentos sobre este problema. Para encontrar as respostaspara suas perguntas, o historiador recorre às chamadas fontes

históricas. No entanto, cabe o alerta: “As fontes ou documentosnão são um espelho fiel da realidade, mas são sempre a repre-sentação de parte ou momentos particulares do objeto emquestão. Uma fonte representa muitas vezes um testemunho, a

274 PATLAGEAN, E. História do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. (org.) A História

Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 291-318.

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fala de um agente, de um sujeito histórico; devem ser sempreanalisadas como tal.”275 

As fontes históricas se constituem no material os quaisos historiadores se utilizam por meio de abordagens específi-cas, métodos diferentes, técnicas variadas para construíremseus discursos históricos.276 Nas últimas décadas, o conceito defonte histórica ampliou-se significativamente, e elas passaram aser vistas como vestígios de diversas naturezas deixados porsociedades do passado. Para realizar o seu trabalho, o historia-

dor deve dominar métodos de interpretação, entendendo queas fontes devem ser criticadas e historicizadas. “Fontes têmhistoricidade: documentos que ‘falavam’ com os historiadorespositivistas talvez hoje apenas murmurem, enquanto outrosque dormiam silenciosos querem se fazer ouvir. E que dizer daHistória oral, das fontes audiovisuais, de uso t~o recente?”277 

No século XIX, quando a História se estabeleceu comociência, métodos rigorosos de análise foram impostos, privile-giando o documento escrito e oficial, pautando-se na autentici-dade do documento, tendo este como o “relator da verdade” dofato histórico tal como ocorreu. Por isso Fustel de Coulangesafirmava que “a habilidade do historiador consiste em retirardo documento o que contem e nada a acrescentar.” Esta con-cepção está ligada à escola positivista, que acreditava que acomparação de documentos permitia reconstituir os aconteci-

mentos do passado, desde que encadeados numa correlaçãoexplicativa de causas e consequências.278 

275 BORGES, 1983, p. 61.276 PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 7.277 Id. Ibid.278  JANOTTI, Maria de Lourdes. O livro Fontes históricas como fonte. In: PINSKY,

2005, p. 11.

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Ao trabalhar com as fontes históricas, o historiador fazdeterminadas interpretações, influenciado pelo seu presente.

No entanto, a partir de outros textos, de elementos diversosinscritos em uma historicidade específica, contextualizada, ohistoriador buscará a compreensão do significado de tal fonte,identificando em qual representação de mundo está inserido ogrupo que a construiu. Neste sentido, as fontes têm que serentendidas como artefatos culturalmente construídos e reple-tos de intencionalidade pelos grupos que a fabricaram. Con-forme Julio Aróstegui atualmente h| uma “concepç~o cada vezmais disseminada de que ‘fonte para a história’ pode ser, e defato é, qualquer tipo de documento existente, qualquer realida-de que possa aportar um testemunho, vestígio ou relíquia,qualquer que seja sua linguagem”.280 Quando se referia às fon-tes, Marc Bloch j| havia dito que “tudo que o homem diz ouescreve, tudo que fabrica tudo o que toca pode e deve informarsobre ele”.281 

Como a diversidade dos vestígios e testemunhos éenorme, para facilitar, dividimos didaticamente as fontes histó-ricas em quatro grandes grupos:

a) Fontes Escritas: São consideradas por muitos historiadoresas fontes mais importantes e, sem dúvida, são as mais utiliza-das. Todo registro escrito pode servir como fonte histórica.Podemos fazer uma sub-divisão das fontes escritas:

- Oficiais - são todos os documentos produzidos por autorida-des e instituições oficiais: ofícios, telegramas, despachos, rela-tórios, leis, decretos, processos judiciais, inventários, testamen-tos, registros cartoriais, registros paroquiais, notas fiscais...

280  ARÓSTEGUI, Julio.  A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, São Paulo:EDUSC, 2006, p. 489.

281 BLOCH, 2001, p. 79.

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- Particulares – são todos os registros escritos feitos por qual-quer pessoa: correspondências particulares, bilhetes, diários

pessoais, cartinhas de amor, cadernos escolares...- Imprensa – são os artigos de jornais e revistas, que registramas impressões do dia-a-dia. Para os historiadores positivistas, aimprensa não poderia ser utilizada como fonte histórica, por-que suas matérias contém uma subjetividade implícita, uma vezque um órgão da imprensa sempre está defendendo posições,querendo formar opinião ao emitir uma informação. Isto é ver-

dadeiro, mas é bom lembrar que toda fonte histórica pode tereste mesmo tipo de problema, uma vez que ao deixar registra-do, todo agente histórico acaba registrando, mesmo que impli-citamente, suas impressões e opiniões sobre o que está aconte-cendo.

Embora largamente utilizados como fonte de apoio epara confirmação de outros tipos de documentação, os jornaisdurante bastante tempo receberam pouca atenção em estudos

que aprofundassem seus posicionamentos adotados em dife-rentes momentos do processo histórico.

Modelos políticos, sociais e culturais foram (e são) vei-culados pela imprensa escrita, que quiseram (e querem) fazer oleitor acreditar que aquilo que est| sendo veiculado é a “verda-de”. Estudos históricos que trazem a imprensa como objeto deinvestigação são relativamente recentes no Brasil. Embora nos

últimos anos temos uma quantidade significativa de trabalhosinvestigativos que utilizaram a imprensa como fonte principal.

A escolha do jornal como objeto de estudo, deve ser en-tendida que a imprensa n~o é mero “veículo de informaç~o”,mas instrumento de manipulação, fazedor de mentes e condu-tas, manipulador da “consciência social ”. 

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b) Fontes Orais: a transmissão oral das informações desempe-nhou, outrora, um papel importantíssimo conservando entre

inúmeras gerações a lembrança de certos acontecimentos. En-tre as fontes orais, podemos citar as sagas, as lendas, contospopulares, cantigas de rodas, anedotas,... Atualmente está mui-to em uso o depoimento de pessoas que presenciaram deter-minado acontecimento histórico, consistindo na chamada His-tória Oral.

Já houve muitas tentativas de classificações para a ex-

pressão história oral. Ela foi classificada como método, técnicae teoria. Há um consenso no meio acadêmico em classificar amesma como uma metodologia de pesquisa. Refletindo sobreisso, Verena Alberti afirma que:

a História Oral é uma metodologia de pesquisa e deconstituição de fontes para o estudo da história con-temporânea surgida em meados do século XX, após a in-

venção do gravador a fita. Ela consiste na realização deentrevistas gravadas com indivíduos que participaramde, ou testemunharam acontecimentos e conjunturas dopassado e do presente.282 

A mesma autora chama a atenção para um equívoco queé muito comum: pensar que a entrevista já é a própria história.

O pesquisador deve interpretar e analisar a entrevista comofonte, uma fonte oral . Para facilitar esse trabalho é aconselhávela transcrição das entrevistas. Estando na forma de texto, deve-se analisar a fonte oral como qualquer documento, fazendoperguntas e verificando como se pode usufruir dessa fonte,tirando dela as evidências e os elementos que contribuirão pa-

 

282 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, 2005, p. 155.

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ra resolver o problema de pesquisa que está movendo o histo-riador.

A História oral representa a experiência real, vivida pe-las pessoas. Através da oralidade, são resgatadas informaçõesnão só pela e para a História, mas também por e para outrasáreas do conhecimento humano.

Pelas mesmas razões apontadas na utilização da im-prensa, os historiadores positivistas são contrários à utilizaçãodas fontes orais. Assim, ainda hoje, existem algumas restrições

a este tipo de fonte, por que a informação obtida através delapode ser parcial, carregada de subjetividade. Mas isto acontececom todos os tipos de fontes documentais para a História. Numdos primeiros trabalhos acadêmicos sobre a História oral feitono Brasil, afirma-se: "O que interessa à História oral é a experi-ência individual, única e inédita, de cada entrevistado. O valiosopara a História oral é poder se conseguir elementos novos so-bre cada caso, elementos que ainda não foram registrados e,

portanto, publicados.”283 Para uma informação oral ter crédito, ela tem que ser

obtida através de técnicas próprias e com critérios definidos.Isto é obtido através da técnica da História oral, que consiste naentrevista de pessoas que vivenciaram diversos acontecimen-tos do processo histórico, e sua posterior transcrição, obser-vando critérios próprios. A partir do registro e da transcrição, a

informação obtida via entrevista ou depoimento, transforma-seem documento. Na História oral, o fato é verbalizado por quemo presenciou ou por quem “ouviu falar” sobre ele. Como qual-quer fonte histórica, ela é parcial, e deve ser confrontada comoutras fontes históricas.

283 CORREA, Carlos Humberto Pederneiras. História oral: t eoria e técnica. Florianó-

polis: UFSC, 1978, p. 31.

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pria escrita, quando inventada, “não foi mais do que uma novacristalizaç~o do relato oral.”286 

Um dos importantes trabalhos publicados no Brasil quediscute a importância da História oral foi produzido por Anto-nio Torres Montenegro, que aponta esta técnica "como ummeio privilegiado para o resgate da vida cotidiana, tendo emvista que esta se mantém firmemente na memória, apesar depoder sofrer alterações como resultado de experiências poste-riores ou mudanças de atitude." O mesmo autor ressalta que "o

processo de registro da memória popular se realiza através deentrevistas gravadas nas quais se buscou reconstituir as histó-rias que as camadas populares têm da sociedade a sua volta ede fatos relacionados a sua vida e trabalho."287 

Graças ao trabalho realizado através da História oral,muitas experiências humanas foram recuperadas. Esta técnicapermite que a memória coletiva de uma determinada popula-ção seja preservada para a posteridade.

A história oral, no trabalho com a população, tem possi-bilitado o resgate de experiências, visões de mundo, re-presentações passadas e presentes. Nesse sentido, asentrevistas permitem instituir um novo campo docu-mental que, muitas e muitas vezes, tem-se perdido como falecimento dos seus narradores.288 

Sobre o processo de manutenção da informação oral,após a mesma ser obtida, em virtude das gravações magnéticasterem um limitado tempo de vida útil, Maria Isaura Pereira de

286 Ibid, p. 16.287 MONTENEGRO, 1994, p. 17, 23-24.

288 Ibid, p. 24-25.

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Queiróz explica a solução: "A única forma de se conservar orelato por longo tempo está ainda em sua transcrição. Volta-se

ao que se acreditara evitar com o gravador, isto é, a interme-diação escrita entre o narrador e o público para a utilização dorelato, e as possíveis deturpações dela decorrentes."289 

Dentro do amplo quadro da História oral encontramos aentrevista, a história de vida, o depoimento pessoal. MariaIsaura Pereira de Queiroz290 explica os diferentes tipos de prá-ticas de História Oral:

- Entrevista: "supõe uma conversação continuada entre infor-mante e pesquisador; o tema ou o acontecimento sobre queversa foi escolhido por este último por convir ao seu trabalho.O pesquisador dirige, pois, a entrevista."

- História de vida: "se define como o relato de um narrador so-bre sua existência através do tempo, tentando reconstituir osacontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência queadquiriu." 

- Depoimento: "O colóquio é dirigido diretamente pelo pesqui-sador; pode fazê-lo com maior ou menor sutileza, mas na ver-dade tem nas mãos o fio da meada e conduza entrevista". 

De qualquer forma, trabalhar com História oral é nãopretender uma história totalizante a partir dos depoimentoscoletados; da mesma forma é não pretender provar uma ver-dade absoluta. Através da História oral se dá espaço aos sujei-

tos anônimos da história na produção e divulgação desta, pro-curando articular suas narrativas aos contextos e elementosdo(s) objeto(s) em pesquisa. Ouvi-los é estar preparado paracompreender que nem sempre o ato de rememorar é uma açãosaudável e positiva para o sujeito, pois pode trazer dores e so-

 289 QUEIROZ,1988, p. 17.

290 Ibid, p. 20-21.

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frimentos. Pelos depoimentos dos sujeitos que vivenciaram oprocesso histórico, é escrever história sem sacramentar certe-

zas, mas sim diminuir o campo das dúvidas.

c) Fontes Pictóricas ou imagéticas: são constituídas pela re-presentação figurada das cenas do passado. Estão incluídasneste grupo desde pinturas feitas pelo “Homem das Cavernas”(pinturas rupestres), quadros históricos famosos ou não, escul-turas, plantas de cidades, mapas, brasões, fotografias, filmes,..

Ao utilizar fontes pictóricas ou imagéticas, é necessárioconsiderar que:

A prosa pictórica estabelece também uma narrativa,mas que, desta feita, ilumina a observação a partir de di-ferentes códigos. A imagem se manifesta e se organizasempre no espaço, e, portanto, ao olhar, a imagem éapreendida em uma totalidade.291 

François Cadiou chama a atenção para dois perigos nouso das fontes imagéticas, principalmente, no estudo da anti-guidade: 1) isolar arbitrariamente certos elementos (vestuário,armas, mobília) da imagem. O risco seria a dissolução do senti-do geral que ela veicula: muitas cenas mitológicas apresentam-se como um conjunto codificado, estruturado e coerente, que se

deve analisar como tal; 2) analisar uma imagem isoladamentedo restante da produção iconográfica à qual está ligada, poistoda imagem est| ligada a uma “rede de imagens”. Além disso,as imagens antigas privilegiavam mais alguns aspectos do que

291 CZESNAT, Ligia. O espelho infletido: ensaios sobre a mudança do registro plásti-co simbólico da representação no Brasil do Império à República (1840-1920/30).Esboços:  revista do Programa de Pós-graduação em História. Florianópolis, vol.

7, 2000, p. 27.

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eram encontrados em documentos escritos.294  As inscriçõesconstituíram a primeira categoria de fontes arqueológicas que

determinaram e influenciaram, de forma decisiva, a escrita daHistória, em meados do século XIX.295 

O desenvolvimento das técnicas de Arqueologia foi fun-damental para o uso das fontes materiais para a investigaçãohistórica.

Podemos, pois afirmar que a pesquisa arqueológica

permite-nos ver o processo histórico das sociedadeshumanas de uma pesquisa ainda mais ampla do queaquela que nos indicaram os documentos escritos. A no-ção de processo histórico global amplia os horizontesdos indivíduos e estimula a sua solidariedade, acima deseus preconceitos de classe ou raça, reconstitui umamemória que será acessível a toda a comunidade naforma de um patrimônio cultural, favorecendo a valori-

zação dos bens culturais, tão importantes, quanto os do-cumentos escritos.296 

A arqueologia foi concebida como complemento da His-tória, visando preencher as possíveis lacunas da documentaçãoescrita e, por isso, foi por muito tempo estigmatizada comomera análise técnica de culturas materiais passadas, principal-

mente daquelas que não dispunham de registros escritos. Re-duzida à prática de campo a serviço da História ou da Antropo-logia, ou a um simples divertimento, mesmo depois de adquirir

294 FUNARI, Pedro Paulo. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY, 2005, p.85.

295 Ibid, p. 88.296  KERN, Arno Alvarez. A importância da pesquisa arqueológica na universidade.

Revista do CEPA. Porto Alegre, v. 12, nº 14, 1985, p. 5.

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sobre a vida cotidiana individual ou coletiva. No entanto, é ne-cessário ressaltar que o artefato em si não fala – o pesquisador

faz a sua leitura, conforme seu referencial teórico e as questõespreviamente estabelecidas, produzindo um discurso a seu res-peito. O objeto material recebe um sentido que seu produtordesloca a partir de relações sócio-culturais ou econômicas enão há garantia de que este sentido seja absorvido integral-mente pelo pesquisador no futuro. Mas não é o artefato quemente ou distorce a realidade, e sim os discursos construídossobre ele.

Para ser fiel ao objeto e ao seu significado “real”, a fimde ser razoavelmente preciso na descrição das sociedades pas-sadas, o pesquisador deve descobrir como operava o objeto emrelação ao entorno humano e físico e em relação à estruturaeconômica e social, para assim construir um sentido novo.

As fontes materiais ou arqueológicas acabam dando vozàqueles que não têm vez de se expressar através da escrita. Em

determinados momentos a documentação escrita revela aspec-tos apenas de alguns grupos sociais, em detrimento de outros.De uma forma simplista, poderíamos dizer que a história daselites está presente nos documentos escritos e que a históriadas classes menos privilegiadas está ausente neste tipo de fon-tes. Outras vezes, nas fontes escritas está presente apenas aversão oficial dos fatos.

Pedro Paulo Funari cita o exemplo do Quilombo de Pal-mares, em que a documentação escrita, oficial, ignora a presen-ça indígena e de colonos no quilombo. As escavações arqueoló-gicas mostram que muita coisa ficou submersa durante muitotempo. Elementos materiais comprovam coisas que estão au-sentes na documentaç~o. “Encontraram-se vestígios cerâmicosque atestam uma variedade de influências e origens, com des-taque para as peças vidradas populares dos colonos, as formas

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de origem indígena e as mesclas originais também possivel-mente inspiradas em tradições africanas.”297 

Atualmente o historiador também dispõe de fontes vir-tuais, que recentemente começaram a ser utilizadas. Isso temfacilitado enormemente o acesso às fontes. Mas de qualquermodo, o espaço virtual é apenas um depositário das fontes jáexistentes.

Talvez o mais interessante é que um desdobramentonormal da familiarização com fontes virtuais é o aprendizado

que poderá levar o historiador a se utilizar da virtualidade co-mo meio para a produção de seu próprio discurso. Portanto,um último Campo Histórico  que se abre como possibilidadehistoriográfica para o futuro, relativamente aos processos deescrita da História, seria o da História virtual. Haveria um con-junto muito rico de alternativas para essa modalidade de Histó-ria em que a informática e os meios virtuais deixariam de serferramentas auxiliares, para se tornar ambientes e meios para

a própria escrita da História.298 A revolução tecnológica promovida pela informática

promoveu um forte impacto na relação dos historiadores comsuas fontes. Primeiro, no final do século XX, o uso do computa-dor permitiu a análise de séries de dados, ou seja, a prática deuma história quantitativa para épocas mais contemporâneas.Segundo, a internet favoreceu, no final do século passado e iní-

cio do século XXI, o segundo movimento de expansão contínuados antigos e novos fundos documentais. Surgiram grandesprojetos de digitalização de microfilmes de corpus documentaisde arquivos ou bibliotecas por meio de máquinas com moderna

297 FUNARI, 2005, p. 102.298 BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: olhares sobre um caminho percor-

rido e perspectivas sobre os novos tempos.  Albuquerque: revista de História.

Campo Grande, Vol. 3, nº 1, 2010, p. 34. 

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Basicamente os passos seguidos pelo investigador numapesquisa histórica são três: heurística, crítica e interpretação.

A heurística é o processo de localização, coleta, reunião,sistematização, classificação das fontes históricas relevantespara o tema que está sendo investigado. Em seguida faz-se lis-tas, repertórios, índices remissivos e o consequente exame dopotencial informativo destas fontes documentais, sejam escri-tas, imagéticas, orais e/ou arqueológicas. É nesta etapa querevela-se o “faro” do historiador. No dizer de Henri Marrou, “o

grande historiador não será apenas aquele que melhor souberpropor os problemas, mas que, ao mesmo tempo, melhor sou-ber elaborar um programa prático de pesquisas capazes defazer surgir os mais numerosos, mais seguros e mais revelado-res documentos.”299 

Tradicionalmente a documentação está depositada emarquivos, bibliotecas, museus. É importante o pesquisador co-nhecer um pouco da história dessas instituições, até por que

elas não surgiram do acaso. O seu passado é que explica a suaorganização e o seu conteúdo.

Outro detalhe importante é que o pesquisador, antes deiniciar a sua busca, deverá saber manejar os catálogos, inventá-rios, listas, fichários que permitirão a orientação nos arquivos,bibliotecas e museus, facilitando a composição e coleta de da-dos. A forma de catalogação da documentação pode variar de

arquivo para arquivo. Então é  imprescindível que o pesquisa-dor saiba manejar estas ferramentas de trabalho. Ter algumasnoções das chamadas ciências auxiliares da História como apaleografia, papirologia, criptografia, etc, ajudam o pesquisadorno manejo das suas fontes documentais. 

299 MARROU, 1978, p. 65.

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224 

É claro que as fontes que o pesquisador busca nemsempre estão depositadas em instituições. Muita coisa está em

posse de particulares, onde não há a mínima catalogação. Nestecaso, o processo heurístico é mais árduo, exigindo muito maisdo pesquisador. No caso das fontes orais, o pesquisador só en-contrará entrevistas e depoimentos em arquivos de poucasinstituições. Na grande maioria das vezes é necessário ir atrás,identificar aquelas pessoas, cujas “falas” ir~o se transformar emfontes históricas.

Feito o levantamento, coleta e sistematização das fontesdocumentais, vem o passo seguinte, que é o estabelecimento doprocedimento de crítica das fontes, ou seja, o estabelecimentode critérios capazes de tornar mais preciso o conhecimentosobre as origens e a confiabilidade destas fontes a serem utili-zadas. Não basta possuir um grande número de fontes parareconstruir um acontecimento do passado. É necessário saberfazer as perguntas corretas a estas fontes.

A crítica dos documentos procura determinar com rigoro valor dos testemunhos e das informações contidos nas fonteshistóricas. Para isso, as fontes passam por dois tipos de críticanas mãos do historiador: crítica externa e crítica interna.

A crítica externa dos testemunhos históricos é tambémconhecida como crítica da autenticidade. Neste caso verifica-sea autenticidade ou falsidade do documento, sua datação, ori-

gem, local de produção, procedência, motivo de sua configura-ção e sua singularidade. Além disso, verifica-se também se é umdocumento original ou trata-se de uma cópia.

Algumas perguntas que deverão ser feitas ao documen-to são básicas na crítica externa:

• Quem elaborou o documento?

• Em que momento?

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225

• Em que lugar?

• 

Para qual destinatário?• Sob que forma se apresenta?

• Como chegou até nós?

• Que língua e alfabeto foi empregado? 

• Que tipo de material foi utilizado? 

Através da crítica externa é possível descobrir a forjica-ção documental, ou seja, documentos que durante algum tempoconseguem fazer acreditar que são verdadeiros, quando narealidade são falsos. Entre as mais famosas forjicações, encon-tram-se, a Doação de Constantino e Os Protocolos dos Sábios deSião.

O primeiro documento refere-se a uma doação que oImperador Constantino (272-337), supostamente, havia feito

ao papa Silvestre I (285-335). De acordo com esta doação, oImperador havia concedido ao Papa poderes excepcionais so-bre Roma, sobre os antigos territórios do Império Romano esobre todos os cristãos. Este documento vai ser apresentado aPepino, o Breve, rei dos francos, em 754, pelo papa Estevão II.Esta falsificação foi descoberta em 1440, pelo historiador napo-litano Lourença Valla.

O segundo documento apresenta um plano que preten-dia estabelecer a dominação mundial pelos judeus. Foi escritono final do século XIX ou início do século XX e muito serviu pa-ra a propaganda anti-judaica, inclusive pelos nazistas.300 

300 No Brasil Os Protocolos dos Sábios de Sião foi publicado pela Editora de Revisão,de Porto Alegre, que utiliza este texto, entre outros, para justificar sua propaganda

neonazista. Esta editora tem sido alvo de inúmeras manifestações, inclusive sen-

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Na História do Brasil, também houve algumas forjicaçõesimportantes. Citamos aqui o Plano Cohen, apresentado por Ge-

túlio Vargas em novembro de 1937; este plano demonstravacomo os comunistas iriam conquistar o poder, inclusive assas-sinando muitas autoridades. Tempos depois se descobriu que oautor do Plano Cohen foi o tenente Olimpio de Mourão Filho (omesmo que em 1964, na condição de general, liderou o GolpeMilitar que depôs o presidente João Goulart). Getúlio Vargas, naépoca, utilizou-se deste plano, para dar um Golpe de Estado epermanecer no poder, como ditador, dando inicio ao EstadoNovo.

A segunda etapa em relação à crítica documental é achamada crítica interna,  também conhecida como crítica dasinceridade, onde o historiador vai procurar saber se as infor-mações que o documento possui são verdadeiras.

O mais importante é perceber que, de fato, nenhum do-cumento é inocente e isto não é válido apenas para um tipo de

documentação. Um dos grandes nomes da atual historiografiafrancesa já afirmou que:

do impedida judicialmente de participar da feira do Livro que acontece anualmentena capital rio-grandense.

“O historiador russo Mikhail Lepekhine descobriu a identidade do autor do

livro Os protocolos dos sábios de Sião (1903) que relata supostas reuniões secre-tas judaico-maçônicas nas quais um certo Sábio de Sião expunha ao povo judeuum plano de dominação da humanidade. Esse texto serviu como fundamento paraa ideologia nazista. Na verdade essas reuniões nunca existiram. O falsário é Ma-thieu Golovinski, que escreveu o livro para o czarismo da Rússia. Os protocolosrepetiam o Dialogue aux enfers entre Maquiavel et Montesquieu , publicado em1864 por Maurice Joly, um antibonapartista que tentava mostrar que o imperadorarmava um complô para aniquilar seus opositores. Golovinski usou o mesmo textosubstituindo Napoleão e seus adeptos pelo povo judeu.” (ISTOÉ, 08.12.1999, nº

1575).

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“O problema da exatid~o dos testemunhos históricos liga-se, em suma, ao da subjetividade”,303 diz Jean Glénisson. Temos

que considerar que todo testemunho histórico, ao ser elabora-do, tem uma boa dose de interesses por parte do seu autor. Issoquando o autor não mentiu deliberadamente para atingir de-terminados propósitos. Por isso o velho conselho dado por to-dos os especialistas que abordam a crítica documental: procu-rar confrontar as informações obtidas em uma fonte com outrafonte.

Após os passos anteriores da pesquisa, ou seja, o estudodo referencial bibliográfico, seguido da coleta e seleção de fon-tes (heurística) e do diálogo e averiguação íntima do documen-to (crítica), se dará o processo interpretativo da pesquisa, re-sultando então, em um produto, uma produção que possa re-dimensionar as considerações produzidas sobre o assunto atéentão, além, é claro, de trazer novas leituras, interpretações eanálises sobre a temática que está sendo investigada. 

Ao passar para a etapa da interpretação, o historiadortem que estar consciente que é impossível ser capaz de avaliar,discutir, compreender e explicar todos os acontecimentos, sen-timentos e pensamentos que contribuíram para que determi-nado evento acontecesse. Assim, o historiador escolhe, deacordo com a finalidade de sua pesquisa, os aspectos que iráestudar, as fontes que irá analisar, as opiniões que pretendediscutir, os sentimentos que julga mais importantes.

Como se fosse um detetive, o historiador analisa umacontecimento com base em fontes históricas, aceita ou recusainterpretações já existentes, colhe depoimentos e chega a umaconclusão.

303 Id. Ibid.

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O conhecimento histórico, aspecto particular do conhe-cimento do homem, é essencialmente movediço e sem-

pre provisório. Nossas ideias a respeito do homem, domundo e da vida não cessam de transformar-se: não háassunto histórico que não seja necessário retomar peri-odicamente para reenquadrá-lo numa perspectiva exa-ta, por haver-se modificado, entrementes, a visão deconjunto.304 

A partir da interpretação das informações coletadas, ohistoriador vai produzir um texto abordando a temática que elese propôs a pesquisar. Assim, o conhecimento histórico produ-zido chega ao grande público: é a síntese histórica.

Esta é fase em que a partir das informações coletadas,confrontando com a revisão bibliográfica anteriormente reali-zada, o historiador dará vida ao fenômeno histórico sobre oqual ele se debruçou.

Ao redigir o texto, com a síntese histórica, é necessárioconsiderar o alerta de Vavy Pacheco Borges: “escrever histórianão é estabelecer certezas, mas é reduzir o campo das incerte-zas, é estabelecer um feixe de probabilidades.”305 

O historiador tem que ter consciência que toda conclu-s~o é provisória, e que n~o existe verdade, nem “saber absolu-to”. Aliás, uma verdade histórica absoluta somente serve “aostotalitários, tanto de direita como de esquerda, que, colocando-se como donos do saber e da verdade, procuram, através daexplicaç~o histórica, justificar a sua forma de poder.”306 

304 MARROU, Henri-Irénée. História da educação na Antiguidade. São Paulo: EPU,1990, p.3.

305 BORGES, 1983, p. 66.

306 Id. Ibid. 

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