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ENTRE NATUREZA E SOCIEDADE: Reflexões sobre a paisagem urbana de Maceió a partir das suas relações com o riacho homônimo BARROS, CARLINA ROCHA DE ALMEIDA; DOS SANTOS, CAROLINE GONÇALVES; MAIA, ROBERTA FÉLIX; CARVALHO, SIBÉRIA FREITAS DE. Centro Universitário CESMAC. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 1 Rua Cônego Machado, nº 918 Farol Maceió-AL [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected] RESUMO As cidades, meio artificial criado pelas sociedades humanas, vêm crescendo em ritmo acelerado e incorporando áreas anteriormente rurais ou de domínio da natureza. Esse processo não é tão recente, e a busca por um controle cada vez maior sobre o meio natural é algo que foi possibilitado pelo desenvolvimento técnico-científico, especialmente a partir do séc. XVIII, com a Revolução Industrial em marcha. Esse avanço marcou outras maneiras de interferir e interagir com o território, alterando paisagens e adaptando-as a novas demandas. Territórios e paisagens diversificadas são manipulados pelo uso da técnica, considerando o meio físico natural e a forma como a sociedade se relaciona com ele. As cidades incorporam novas áreas ao seu território, assim como elementos naturais como os cursos d´água, que muitas vezes foram condição essencial ao surgimento do urbano. Em Maceió, capital do estado de Alagoas, isso não foi diferente. O processo de modernização da cidade ao longo do séc. XIX, favorecido pela transferência da Capital para Maceió em 1839, envolvia o domínio de diversos tipos de cursos d´água em um terreno pantanoso. O riacho Maceió naquele momento constituía-se como elemento divisor dos dois núcleos da cidade, dificultando a mobilidade e escoamento de mercadorias para o porto. Diversos planos começam a refletir sobre a cidade ao longo do séc. XIX, sempre tendo como norteador o controle das águas que se apresentavam em abundância no sítio, estando o riacho Maceió presente em todos eles. Aos poucos aquele elemento natural que representava um obstáculo à expansão urbana vai sendo alterado, culminando com a intervenção realizada em 1947 para sua canalização, retificação e mudança da posição da foz. Naturalmente móvel, a foz arenosa teve sua condição de mobilidade desconsiderada em prol de ganhos com área urbanizável e maior mobilidade urbana. Esses impactos serão convertidos em mudanças radicais na paisagem urbana, mas não apenas de ordem física. Os impactos refletem na apropriação e simbologia dos elementos afetados, como é o caso do riacho Maceió, objeto de reflexão deste artigo. Palavras-chave: Território; Meio urbano; Natureza; Planos Urbanísticos; Maceió. 1 Todas as autoras estão vinculadas à mesma Instituição, sendo as duas primeiras, professoras da graduação, e as duas últimas, alunas vinculadas à pesquisa de iniciação científica realizada entre agosto 2013 a julho 2014.

ENTRE NATUREZA E SOCIEDADE: Reflexões sobre a … · 2 O riacho também é conhecido como Salgadinho em seu baixo curso, devido à proximidade com o mar; e como Reginaldo em toda

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ENTRE NATUREZA E SOCIEDADE: Reflexões sobre a paisagem urbana de Maceió a partir das suas relações com o riacho

homônimo

BARROS, CARLINA ROCHA DE ALMEIDA; DOS SANTOS, CAROLINE GONÇALVES; MAIA, ROBERTA FÉLIX; CARVALHO, SIBÉRIA FREITAS DE.

Centro Universitário CESMAC. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

1

Rua Cônego Machado, nº 918 Farol Maceió-AL [email protected]; [email protected]; [email protected];

[email protected]

RESUMO As cidades, meio artificial criado pelas sociedades humanas, vêm crescendo em ritmo acelerado e incorporando áreas anteriormente rurais ou de domínio da natureza. Esse processo não é tão recente, e a busca por um controle cada vez maior sobre o meio natural é algo que foi possibilitado pelo desenvolvimento técnico-científico, especialmente a partir do séc. XVIII, com a Revolução Industrial em marcha. Esse avanço marcou outras maneiras de interferir e interagir com o território, alterando paisagens e adaptando-as a novas demandas. Territórios e paisagens diversificadas são manipulados pelo uso da técnica, considerando o meio físico natural e a forma como a sociedade se relaciona com ele. As cidades incorporam novas áreas ao seu território, assim como elementos naturais como os cursos d´água, que muitas vezes foram condição essencial ao surgimento do urbano. Em Maceió, capital do estado de Alagoas, isso não foi diferente. O processo de modernização da cidade ao longo do séc. XIX, favorecido pela transferência da Capital para Maceió em 1839, envolvia o domínio de diversos tipos de cursos d´água em um terreno pantanoso. O riacho Maceió naquele momento constituía-se como elemento divisor dos dois núcleos da cidade, dificultando a mobilidade e escoamento de mercadorias para o porto. Diversos planos começam a refletir sobre a cidade ao longo do séc. XIX, sempre tendo como norteador o controle das águas que se apresentavam em abundância no sítio, estando o riacho Maceió presente em todos eles. Aos poucos aquele elemento natural que representava um obstáculo à expansão urbana vai sendo alterado, culminando com a intervenção realizada em 1947 para sua canalização, retificação e mudança da posição da foz. Naturalmente móvel, a foz arenosa teve sua condição de mobilidade desconsiderada em prol de ganhos com área urbanizável e maior mobilidade urbana. Esses impactos serão convertidos em mudanças radicais na paisagem urbana, mas não apenas de ordem física. Os impactos refletem na apropriação e simbologia dos elementos afetados, como é o caso do riacho Maceió, objeto de reflexão deste artigo.

Palavras-chave: Território; Meio urbano; Natureza; Planos Urbanísticos; Maceió.

1 Todas as autoras estão vinculadas à mesma Instituição, sendo as duas primeiras, professoras da graduação, e

as duas últimas, alunas vinculadas à pesquisa de iniciação científica realizada entre agosto 2013 a julho 2014.

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Metamorfoses da paisagem: sociedade x território

―O meio urbano é cada vez mais um meio artificial, fabricado com restos da

natureza primitiva, crescentemente encobertos pelas obras do homem‖.

(Santos, 2012, p. 46).

As relações entre o Homem e o meio físico natural sempre se deram ao longo da existência

humana, e com o passar do tempo um maior domínio desse território, muitas vezes

imprevisível e perigoso, coloca-se como condição essencial para a ocupação definitiva e

consequente expansão territorial, deixando marcas profundas na natureza e seus elementos.

Aos poucos a presença da natureza vai sendo comprimida em um território artificializado

construído pelo Homem, sendo a cidade a expressão maior desse novo meio manipulado pela

sociedade a partir de interesses políticos, econômicos e socioculturais. Para este fim, a

técnica e seu desenvolvimento, especialmente a partir do séc. XVIII, foram a mola propulsora

na realização desses desejos de mudança e maior controle territorial gerando o que Deleuze e

Guattari (1997) classificaram como estriamento do espaço em alusão à sua subordinação a

interesses específicos a partir dos meios tecnológicos.

Esse meio urbano vai sendo construído a partir de um processo histórico de embates entre

uma natureza anteriormente posta e uma sociedade que demanda espaço. ―Uma paisagem é

uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança

de muitos diferentes momentos‖ (Santos, 2012, p. 73). A paisagem urbana, resultado dessa

apropriação sociocultural, econômica e política do território, vai se construindo a partir de

diversas camadas de influência e de sobreposições da tecnologia e seus usos segundo as

demandas de cada momento histórico.

Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas

de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o

sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos

preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se

transforma. (Santos, 2006, p.39).

A incorporação de elementos naturais ao meio urbano vai desencadeando uma mudança nas

relações entre a sociedade e a natureza, e esta passa a ser transformada de maneira a ter sua

influência e imprevisibilidade dirimidas. Para além disso, mudam as maneiras de apropriação

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e consequentemente as simbologias que os elementos naturais passam a ter para a

sociedade, segundo as transformações realizadas ao longo do processo histórico e evolutivo

urbano.

Elementos naturais como os corpos d´água são frequentemente presentes em paisagens

urbanas, e também um dos mais sujeitos a transformações devido a certa imprevisibilidade

resultante de seu complexo sistema de relações com outros elementos naturais, como a

vegetação, as marés marítimas, o regime de chuvas e até mesmo o vento; e também

socioculturais, como a ação do Homem sobre o desmatamento, as ocupações, poluição, entre

outros. Talvez por essas razões, os rios e riachos urbanos tendem a ser elementos dos mais

violados em sua naturalidade a partir do desenvolvimento da técnica, que altera meandros e

canaliza suas águas.

Os conflitos entre processos fluviais e processos de urbanização tem sido de

um modo geral enfrentados através de drásticas alterações na estrutura

ambiental dos rios, onde, em situações extremas, chega-se ao

desaparecimento completo dos cursos d’água da paisagem urbana.

(Antunes, 2006, p. 10).

Apesar disso, os rios foram grandes condicionadores da ocupação e desenvolvimento urbano

de inúmeras cidades brasileiras, sendo utilizados para controle territorial, transporte de

mercadorias e de pessoas, subsistência, energia hidráulica, lazer, entre outros (Antunes,

2006). Dessa forma estabeleceram relações não apenas paisagísticas, mas de apropriação e

uso pela sociedade que os incorpora em seu meio urbano.

Em Maceió, capital do estado de Alagoas, o riacho Maceió constituía-se desde tempos

remotos da ocupação territorial em elemento de grande referência espacial, estabelecendo o

limite entre os dois bairros que iniciaram a ocupação urbana. Inicialmente a referência natural

que marcava a entrada da cidade pela frente marítima e se constituía em cartão postal, vai

sendo transformada em sua morfologia e apropriação pela sociedade através do uso da

técnica, alterando completamente seu valor paisagístico e de uso perante o meio urbano e a

sociedade.

Dessa forma, este artigo se propõe a refletir sobre a paisagem urbana de Maceió e suas

relações com o território natural tendo como objeto o riacho Maceió e as metamorfoses

sofridas por ele no primeiro século de ocupação urbana (séc. XIX até primeira metade do séc.

XX). O estudo é pautado pelas intervenções pensadas e/ou concretizadas e que envolviam o

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riacho, através de planos e intenções que se demonstraram ao longo do processo histórico e

de evolução urbana de Maceió como Capital.

...e havia um Maceió no meio do caminho.

[...] entre 1840 e 1869 Maceió se urbanizara numa linda cidade ordenada de

bons prédios particulares e elegantes edifícios públicos, sendo assim uma

capital de província que tinha aumentado e progredido. (Lindoso, 2005, p.

48).

Maceió, toponímia que segundo Duarte (1965) vem do termo tupi ―aquilo que tapa o

alagadiço‖, nomeia uma cidade com grande apelo turístico e conhecida atualmente pela

alcunha ―Paraíso das Águas‖. Ambas as titulações denotam a riqueza de paisagens de águas

doces e salgadas que delimitam o território urbano, desde a lagoa Mundaú até o oceano

Atlântico que banha grande extensão da área urbana.

Hoje uma cidade de porte médio e em processo de expansão, nos inícios da ocupação urbana

o território de Maceió não apresentava facilidades para sua ocupação. Originalmente seu

território inicial era formado por terrenos alagadiços e pantanosos ao longo de uma extensa

planície litorânea e fluvial. Dentro desse contexto, o riacho nomeado como Maceió2 separa

fisicamente as duas principais áreas de ocupação urbana quando, em 1839, a então vila

ganha o título de cidade e capital da Província.

A ocupação das planícies litorânea e lagunar densamente construídas nos dias atuais foi

possibilitada por sucessivas intervenções territoriais com uso da técnica visando facilitar o

escoamento de mercadorias e desenvolver as rotas econômicas da Província no transcorrer

do séc. XIX. O Código de Posturas de 1845 já tratava do aterro de pântanos e áreas

inundáveis, demonstrando preocupações de cunho higienista ainda na primeira metade do

séc. XIX. De acordo com Nolasco Maciel (apud Almeida, 2011, p. 24), Maceió torna-se ―uma

nova cidade que ganha porte na medida em que dois pontos são fortalecidos: as entradas e a

saída, as estradas e o fundeadouro, o modo de ser relacionado à economia agroexportadora‖.

2 O riacho também é conhecido como Salgadinho em seu baixo curso, devido à proximidade com o mar; e como

Reginaldo em toda a sua extensão, em alusão a Reginaldo Correia de Melo, antigo proprietário das terras que envolviam o riacho.

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Aos poucos o território ganha área com a drenagem e aterro de grandes extensões

pantanosas. O desenvolvimento da cidade dá-se a partir de dois pontos: o Centro comercial,

também conhecido como Maceió propriamente dita, e a localidade Jaraguá, onde se localiza

até hoje o porto que onde escoava a produção dos engenhos de cana-de-açúcar vinda do

interior da Província de Alagoas. ―A história da Província passa a ser contada a partir dos

interesses de classe dos grandes proprietários rurais e da burguesia mercantil urbana”

(Lindoso, 2005, p. 37).

Ao longo do séc. XIX, o riacho Maceió colocava-se como um elemento cada vez mais

incorporado ao ambiente urbano. O próprio fato de conservar o mesmo nome da cidade revela

muito de sua importância e visibilidade, possivelmente potencializadas por marcar o acesso à

cidade (o Centro) através da frente marítima. Esse acesso dava-se por uma ponte que ao

longo do tempo foi sendo substituída por outras de materiais diversos, sendo inicialmente em

madeira, e posteriormente em ferro e por fim alvenaria. Pela ponte era possível controlar

entrada e saída de mercadorias e cobrar os devidos impostos para fins de receita provincial.

Contudo, a ponte oferecia limitações quanto à mobilidade, especialmente diante de enchentes

do riacho Maceió que eventualmente ocorriam. Aliado a isso, com a busca cada vez maior por

espaço para expansão urbana e maior mobilidade entre os núcleos existentes, o riacho

Maceió começa a se colocar como obstáculo ao ganho de território urbanizável na direção sul

(para onde se dirigia a sua foz) e a uma maior mobilidade entre o Centro e o porto. Essa

constatação acarreta em uma série de propostas e intervenções que contribuirão para uma

mudança física e simbólica do riacho Maceió, subtraindo significados e iniciando um processo

degenerativo do riacho e sua natureza.

Planos e enganos sobre o riacho e suas águas

O [...] riacho Maceió é um rio infante com as graves mazelas dos rios velhos.

Nisto, há um culpado: é o Homem que, criminalmente, cortou suas matas [...]

mata de sucupiras da margem esquerda, hoje substituída pelos casebres!.

(Brandão, 2001, p.103).

Com o destaque dado à Maceió e o seu porto no desenvolvimento econômico da Província,

ainda em 1820 surge a primeira proposição de organização física do espaço da até então vila

Maceió, que alcançaria a condição de capital da Província de Alagoas em 1839. Por ordem do

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Governador da Província de Alagoas, Mello e Póvoas, e com o título Carta Topographica da

Capitania das Alagoas, o plano de traçado simples, segundo Cavalcanti (1998), desconsidera

a geografia existente na proposição de ruas e alargamentos das existentes.

Melo e Póvoas cuidou seriamente da vila. As suas preocupações não ficaram

limitadas às obras de defesa militar que realizou; foram adiante,

estenderam-se à remodelação urbana, traçando o plano de uma cidade,

cortada por grandes avenidas, partindo do mar para a lagoa‖. (Costa, 2001,

p.119).

Em decorrência da elevação de Maceió à Capital, em 1841 novo plano urbano é proposto,

onde segundo Cavalcanti (1998) é possível se perceber a expansão em sentido norte em

decorrência de terrenos pantanosos e cursos d´água como o riacho Maceió e outros em

sentido sul. Percebe-se que ambos apresentavam propostas limitadas pelos elementos

físicos existentes naqueles alagadiços e ainda pouco manipulados, seja pela ausência de

condições técnicas de fazê-lo, seja pelas limitações financeiras existentes.

Com o passar dos anos e uma maior estruturação da Capital, surge em 1865 uma proposta

gráfica de expansão do porto de Maceió. Nela é possível perceber que, apesar de se constituir

como elemento divisor dos dois núcleos de ocupação urbana naquele momento (Centro e

Jaraguá), o riacho ainda apresentava margens vegetadas, o que pode indicar uma vegetação

nativa ou das chácaras existentes na região, e ausência de ocupação em seu entorno

imediato. Apesar disso, já há relatos como no Relatório da Província das Alagoas em abril de

1875, acerca dos problemas em uma das pontes ocasionados pelas ―contínuas cheias‖ do

riacho Maceió, nesse momento já identificado como ―Reginaldo‖ pelo documento.

Em 1868 mais um plano é proposto, e pela primeira vez o riacho Maceió é incorporado

fisicamente em uma intervenção de expansão urbana. No plano é proposta uma malha

ortogonal com expansão da ocupação entre Centro e Jaraguá, sendo interrompida pelo curso

do riacho. Duas vias são propostas serpenteando o curso do riacho em direção ao mar, uma

ligando ao porto e outra ligando ao Centro, o que denota a prioridade às questões não só de

expansão urbana e ordenamento, mas aquelas referentes à mobilidade urbana e uma ligação

mais fluida entre os núcleos (Ilustração 01).

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A existência do riacho, especialmente em seu último trecho onde segue paralelo ao mar,

compromete a ocupação de uma extensa área de planície considerando a escala da cidade

naquele momento. É possível observar que o riacho apresenta duas ―bocas‖, diferente do que

apresentava em 1865, variação possível devido à mobilidade da boca arenosa, segundo

Cavalcanti (1998).

Essa variação é perceptível a partir de uma simulação da mobilidade comparando cartografias

de 1841, 1865 e 1868 sobrepostas a uma planta de 1931 (Ilustração 02). Mesmo

considerando as limitações técnicas da época no que diz respeito à precisão quanto à posição

do curso do riacho e sua boca, certamente a mobilidade acontecia como é possível visualizar

em outros cursos d´água existentes no território de Maceió com características de mobilidade

similares. Assim constata-se a restrição à ocupação desse trecho por onde a foz se

movimenta, repleto de alagadiços.

Ilustração 01: Montagem de diversos momentos da evolução urbana de Maceió e do riacho homônimo através de planos e plantas da cidade. Fonte: Autoras, 2014.

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Ao longo de todo o século XIX e especialmente no seu último quartel, com a instauração da

República que amplia as finanças públicas (Diegues Junior, 2001), Maceió sofre uma série de

intervenções com fins higienistas e de embelezamento que vão alterando a paisagem a partir

de novas técnicas e segundo os interesses da época. A partir da década de 1870 inicia-se

uma ocupação mais expressiva ao longo da frente marítima nas proximidades do porto,

especialmente após o projeto para sua estruturação finalizado em 1875 e que previa uma

ligação mais direta entre a lagoa Mundaú e o porto de Jaraguá e que deveria interferir na foz

do riacho Maceió. Nesse momento o riacho tinha seus meandros incorporados ao traçado

viário, estando devidamente inserido no meio urbano, apesar de jornais noticiarem sobre

enchentes como a de 1870, resultado das fortes chuvas, conforme Cavalcanti (1998).

Em decorrência de mais uma enchente, em 1871 é inaugurada a ponte de ferro que ficou

conhecida como Ponte dos Fonseca em substituição à antiga ponte em madeira que cruzava

o riacho Maceió, por ordem do presidente da Província José Bento da Cunha Figueiredo

Junior. O nome da ponte foi uma homenagem à família do Marechal Deodoro da Fonseca,

filho de Alagoas, que tinha ido à guerra no Paraguai com mais cinco irmãos e onde três deles

morreram. Provavelmente no mesmo momento de construção da ponte o riacho passa por

Ilustração 02: Três momentos que mostram a mobilidade da foz do riacho Maceió, através de sobreposição ao mapa de 1931 (traçado em vermelho): em 1841, 1865 e 1868 (em azul). Fonte: Autoras, 2014.

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uma intervenção de embelezamento, sendo canalizado no trecho próximo à ponte dos

Fonseca de forma a valorizar o acesso à cidade pela praça Euclides Maia, atual praça

Visconde de Sinimbú, conforme registrado em antigos cartões postais do período.

Embora tenha sofrido pequenas intervenções nos últimos anos do séc. XIX, até o ano de

1902, quando é realizada uma planta da cidade, a área junto ao riacho Maceió ainda não

apresenta interferências significativas. Uma ocupação já se consolida junto à sua margem

direita, no lado do Jaraguá, enquanto do lado esquerdo junto ao Centro a ocupação mantém

alguma distância em relação ao riacho. Contudo, a vegetação existente na planta de 1865 não

mais é representada. A expansão urbana mais uma vez é buscada, desta feita para além dos

perímetros dos planos anteriores, englobando parte do planalto da cidade, só ocupado no séc.

XX, e também outras direções adjacentes aos núcleos iniciais, que ainda funcionam como

foco do processo expansivo.

Nas primeiras décadas do séc. XX Maceió continua a se desenvolver, ampliando suas frentes

de expansão a partir da ocupação do planalto da Jacutinga. Em abril de 1924 a ponte de ferro

(dos Fonseca) é destruída por uma enchente do riacho Maceió, deixando novamente

incomunicáveis os bairros do Centro e Jaraguá. Contudo, a ponte foi refeita, dessa vez em

alvenaria e sendo abaulada, pois estudos apontavam que o fato de a ponte de ferro ser reta

teria influenciado na sua destruição.

No plano de 1932 o riacho é retratado já englobando parte do médio curso, e aos poucos a

ocupação de suas margens vai se consolidando (Ilustração 03), especialmente com a

migração de outras populações em busca de trabalho e habitação. Esse processo se

prolongou ao longo do séc. XX e persiste atualmente, sendo um dos maiores fatores de

deterioração do riacho e suas margens.

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Já no início do séc. XX havia não apenas a degradação das margens do riacho como também

a sua ocupação com moradias simples e muitas vezes improvisadas. Sendo a paisagem

resultado de diferentes momentos históricos, a situação atual do riacho reflete as relações

entre sociedade e natureza acumuladas ao longo do processo de urbanização de Maceió,

assim como as consequências dessas na apropriação do elemento natural.

Segundo relatos encontrados em jornais e periódicos do início do séc. XX, percebe-se que

naquele momento já existe uma mudança de sentido do riacho para a população, quando o

mesmo inicia seu processo de poluição resultado da ausência de saneamento e da expansão

urbana ao longo de suas margens como resultado das influências da sociedade sobre o meio,

transformando-o segundo suas demandas.

A história atribui funções diferentes ao mesmo lugar. O lugar é um conjunto

de objetos que têm autonomia de existência pelas coisas que o formam –

ruas, edifícios, canalização, indústrias... mas que não têm autonomia de

significação, pois todos os dias novas funções substituem as antigas, novas

funções se impõem e se exercem. (Santos, 2012, p. 59).

Ilustração 03: Ocupações ao longo do curso já ocorriam no início do séc. XX e se expandiram ao longo das décadas, espraiando-se por toda extensão da bacia hidrográfica. Fonte: Autoras, 2014.

1924 2013

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Em fins da década de 1930 o porto passa por grande intervenção que implicou em novas

demandas para a área, como a ampliação da Avenida Duque de Caxias. Passa-se mais de

uma década e o riacho continua seu curso, criando um obstáculo à expansão urbana e

urbanização daquele trecho de costa. Reportagens como a veiculada em 1947 pelo Jornal de

Alagoas trata sobre a importância de uma intervenção de retificação do riacho, enfatizando a

estética da obra e a ―proteção das margens‖.

Assim, entre 1947 e 1948 o riacho Maceió sofre uma drástica intervenção que altera sua foz e

engessa sua condição natural de mobilidade que tanto dificultava a expansão urbana ao sul

devido aos alagadiços. A intervenção acarretou no aterro de boa parte de seu curso final, mais

precisamente todo o trecho que corria paralelamente ao mar, gerando expansão da planície

litorânea no sentido sul. Isso permitiu a ampliação da agora Avenida da Paz, toponímia em

homenagem ao fim da 2ª Grande Guerra, e permitiu a ocupação de todo o trecho que antes

sofria com as flutuações da boca do riacho. Assim aumentou-se a mobilidade entre áreas

urbanas e foram saneadas áreas alagadiças.

Com a alteração da posição da foz e seu engessamento, o local da nova boca atinge

diretamente um antigo balneário visitado pela população. A praia fica comprometida com a

sujeira trazida pelo riacho e torna-se imprópria para o banho até os dias atuais. Isso criou um

afastamento cada vez maior das pessoas em relação ao riacho, que passa a ser visto como

elemento indesejável e tem seu uso cada vez mais restrito, repercutindo até hoje. Percebe-se

a mudança de apropriação e significado de um elemento natural de grande importância

paisagística e que durante um século marcou o acesso à cidade (Ilustração 04).

―Posteriormente foi aquele curso d’água, que passava pela Praça Sinimbu,

desviado para o oitão do Hotel Atlântico, por onde sai toda a poluição de parte

da Cidade infestando a Praia da Avenida e toda a Enseada de Jaraguá [...]‖.

(Pedrosa, 1998, p. 26).

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A intervenção também promoveu a retificação dos meandros do riacho, o que pode ter

contribuído para uma nova enchente em 1949. A enchente parece ter ocorrido como resposta

à drástica intervenção provocada pelo homem que alterou o riacho retificando seus meandros,

devastando sua mata ciliar e contaminando ainda mais o seu leito. A retificação de parte do

seu percurso tornou mais direto o encontro do riacho com o mar, agora em ângulo

perpendicular. Também contribuiu para potencializar a velocidade das águas, e

consequentemente o poder das enchentes. ―A natureza atua sobre o Homem e,

inversamente, o Homem atua sobre a natureza. Resulta, daí, uma ação recíproca‖ (Brandão,

2001, p. 10). Uma reportagem veiculada em 21 de Maio de 1949 do Jornal de Alagoas revela

o caos que era vivenciado naquele momento em decorrência da enchente, com mortes,

destruição e epidemias como tifo.

Dessa forma o riacho faz uma transição, de elemento parte de um território natural passa a

fazer parte de um meio artificial resultado da ocupação urbana em que inicialmente é aceito,

mas aos poucos é transformado pelo uso da técnica e segundo os interesses de cada

momento histórico. Como afirmava Santos (2006, p. 62):

―[...] o mesmo objeto, ao longo do tempo, varia de significação. Se as suas

proporções internas podem ser as mesmas, as relações externas estão

sempre mudando. Há uma alteração no valor do objeto, ainda que

materialmente seja o mesmo, porque a teia de relações em que está inserido

opera a sua metamorfose, fazendo com que seja substancialmente outro.

Está sempre criando-se uma nova geografia‖.

Ilustração 04: Comparação entre cartão postal (1910-1911) com riacho Maceió em primeiro plano; e a situação do riacho atualmente, quase 70 anos após a retificação. Fonte: Autoras, 2014.

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Ou seja, um mesmo ―objeto‖ (neste caso o riacho) adquire diversos significados ao longo de

sua existência, conforme as relações que se dão entre sociedade e território gerando o

espaço habitado.

Considerações finais

A reflexão realizada esclarece elementos fundamentais da evolução histórica da cidade de

Maceió, mostrando que as consequências das ações antrópicas implicam em grandes

transformações no meio urbano, seguida de um distanciamento cada vez mais evidente do

espaço natural, de modo que com o passar dos anos perde-se no imaginário coletivo símbolos

e significados tão importantes no processo histórico de produção urbana de uma cidade.

Esse processo aconteceu com o riacho Maceió, que após as grandes transformações guiadas

pelos princípios higienistas e progressistas o riacho que pode ter dado o nome à cidade e era

significativo elemento na paisagem urbana tornou-se um dos principais meios de escoamento

de esgoto.

O riacho Maceió, assim como outros elementos naturais presentes na geografia primitiva do

território e com significativo papel no processo histórico da produção, foi sofrendo

transformações, artificializando-se através das retificações e mudança do curso, e ao mesmo

tempo distanciando-se do contexto urbano, quando antes existia a sua integração.

Pode-se dizer que o riacho não mais se apresenta como elemento natural de importância

paisagística e simbólica em Maceió, mas como um elemento indesejável que apresenta sérios

problemas decorrentes do despejo de esgotos sem tratamento, agravados pela ocupação ao

longo de toda a sua bacia. que corre paralelamente à ocupação urbana do Planalto da

Jacutinga (Farol). As matas, que vinham em processo de desmatamento já denunciado por

Brandão em 1917 foram extintas, substituídas por um grande adensamento de habitações

precárias que despeja seus dejetos no riacho por ausência de saneamento. A devastação de

suas margens também comprometeu o volume de suas águas, gerando grande escassez nos

dias atuais. A sociedade não o reconhece mais como riacho, e pouco se sabe ou se fala sobre

o que foi um dia o riacho Maceió e sua importância para a história da cidade e de sua

ocupação.

O estudo dos Planos Urbanos propostos para Maceió no séc. XIX até meados do séc. XX,

aliado a informações históricas e documentais, possibilitou uma maior compreensão sobre as

relações estabelecidas entre território natural e construído na ocupação urbana de Maceió. O

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riacho Maceió, assim como outros elementos naturais presentes na geografia primitiva do

território, foi sofrendo um processo de transformação, artificializando-se e ao mesmo tempo

distanciando-se do contexto urbano, quando antes existia a sua integração e apropriação pela

sociedade. Os planos urbanos, embora representem territorialmente o espaço, não podem

trazer o elemento dinâmico que diferencia e distingue o território do espaço, que é animado

pelos seres sociais, segundo Santos (2006). Apesar disso, podem auxiliar na construção da

evolução urbana, podendo insinuar ou mesmo revelar parte das relações sociais que

compreenderam o espaço em determinado momento histórico, colaborando no entendimento

do presente e orientando possíveis mudanças na qualidade do espaço resultante,

considerando um maior equilíbrio entre sociedade e meio natural.

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