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- 1 - FABIANO COELHO ENTRE O BEM E O MAL: REPRESENTAÇÕES DO MST SOBRE OS PRESIDENTES FHC E LULA (1995-2010) DOURADOS 2014

ENTRE O BEM E O MAL: REPRESENTAÇÕES DO MST SOBRE OS PRESIDENTES FHC … · 2017. 1. 10. · Mello e Itamar Franco, destacando-se que havia uma perspectiva continuísta nos discursos

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FABIANO COELHO

ENTRE O BEM E O MAL: REPRESENTAÇÕES DO MST SOBRE

OS PRESIDENTES FHC E LULA (1995-2010)

DOURADOS – 2014

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FABIANO COELHO

ENTRE O BEM E O MAL: REPRESENTAÇÕES DO MST SOBRE

OS PRESIDENTES FHC E LULA (1995-2010)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História da Faculdade de Ciências Humanas da

Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) como

parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor

em História.

Área de concentração: Movimentos Sociais e Instituições.

Orientadora: Profa. Dra. Marisa de Fátima Lomba de

Farias.

DOURADOS – 2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

C6

72

Coelho, Fabiano.

Entre o bem e o mal: representações do MST sobre os presidentes

FHC e Lula (1995 – 2010) /Fabiano Coelho. – Dourados, MS: UFGD,

2014.

440 f.

Orientador: Profa. Dra. Marisa de Fátima Lomba de Farias.

Tese (Curso de Pós-Graduação - Doutorado em História) –

Universidade Federal da Grande Dourados.

1. M

ST. 2. Presidente FHC. 3. Presidente Lula I. Título.

CDD – 301.242

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD.

©Todos os direitos reservados. Permitido a publicação parcial desde que citada a fonte.

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FABIANO COELHO

ENTRE O BEM E O MAL: REPRESENTAÇÕES DO MST SOBRE

OS PRESIDENTES FHC E LULA (1995-2010)

TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em ______ de __________________ de _________.

BANCA EXAMINADORA:

Presidenta e orientadora:

Marisa de Fátima Lomba de Farias (Dra., UFGD) ___________________________________

2º Examinador:

Reinaldo Lindolfo Lohn (Dr., UDESC) ___________________________________________

3º Examinador:

João Carlos de Souza (Dr., UFGD) ______________________________________________

4º Examinador:

Fernando Perli (Dr., UFGD) ____________________________________________________

5º Examinador:

Jones Dari Goettert (Dr., UFGD) ________________________________________________

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Dedico este trabalho às duas pessoas,

mulheres, mais importantes da minha vida. `

À minha mãe, Denir Coelho, que em sua

trajetória de vida se demonstrou uma lutadora e soube

criar e ensinar valores e princípios edificantes aos seus

filhos. Te amo, mãe.

À minha filha, Maria Eduarda Facco Coelho,

minha flor mais bela. O seu nascimento transformou

minha história. Contigo, minha flor, aprendi o verdadeiro

sentido da palavra amor e felicidade. Papai te ama,

indescritivelmente

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AGRADECIMENTOS

Há dez anos, quando resolvi sair da casa de minha mãe para estudar, tenho procurado

desenvolver e cultivar a gratidão. Muitas pessoas passaram por minha vida, cada uma delas,

em algum momento me estimularam para que não desistisse dos meus sonhos e objetivos.

Para não correr o risco do esquecimento, a princípio, agradeço todos e todas que direta ou

indiretamente contribuíram para a realização desta tese, seja com contribuições acadêmicas,

ou com a companhia e conversas no dia-a-dia.

No processo de construção deste trabalho não posso deixar de mencionar algumas

pessoas que foram fundamentais nessa jornada, ainda em construção.

Agradeço a Deus, que de forma miraculosa sondas o meu interior, conhece os meus

intentos e sabe quem sou.

Agradeço aos meus familiares, em especial à minha mãe, Denir Coelho.

À minha flor mais bela, Maria Eduarda Facco Coelho. A sua companhia e o seu

sorriso, minha filha, me deram forças para escrever esta tese.

Ao João Carlos de Oliveira e a Elsa Teles Lima de Oliveira, por todo auxílio e força

que me deram ainda quando cursava Graduação na UFMS, em Três Lagoas/MS.

À professora e orientadora, Marisa de Fátima Lomba de Farias. Obrigado pela

confiança e por aceitar trabalhar comigo na edificação da tese. Sua gentileza, humildade,

competência e profissionalismo são dignos de nota. Muito mais que aprender conhecimentos

acadêmicos, contigo aprendi que a academia deve transcender o universo das vaidades.

Agradeço aos professores e professoras do PPGH/UFGD, em especial, aos professores

Eudes Fernando Leite, João Carlos de Souza, Alzira Salete Menegat e Antonio Dari Ramos

pelos conhecimentos ministrados durante as disciplinas no Programa.

Aos técnicos administrativos do PPGH/UFGD, obrigado pela atenção e gentileza.

Agradeço aos professores João Carlos de Souza e Fernando Perli pelas contribuições

no processo de Qualificação da pesquisa.

Agradeço a Letícia Cerutti Facco pelo apoio e por cuidar/educar nossa filha, Maria

Eduarda, com tanta dedicação e amor.

À Nádia Maria Cerutti Facco (in memoriam), mulher e mãe admirável. Lembro do seu

sorriso e entusiasmo ao me dar os parabéns pela aprovação no curso de Doutorado. Sinto-me

honrado por ter a conhecido e desfrutado momentos em sua companhia.

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Agradeço aos amigos e amigas: Carlos Barros Gonçalves, Cássio Knapp, Gláucio

Knapp, Joseana Stecca Farezin Knapp, Tanise de Oliveira Fernandes, Leandro Possadagua

Juliana Grasiéli Bueno Mota, Daniele Reiter Chedid, Anderson Queiroz, Thiago Leandro

Vieira Cavalcante, Aline Moreti Cavalcante e Eudes Fernando Leite. Estimados, obrigado

pelas conversas, companhia, risadas, brincadeiras e apoio. Enfim, por tantos momentos

compartilhados.

Aos profissionais da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis da

Universidade Federal da Grande Dourados (PROAE/UFGD), especialmente: Eluciene

Cristina Zorzan Morale, Angelo Luiz de Lima Tetilia, Regina Alves Pedrosa Balbino, Adriana

Onofre Schmitz, Lady Daiane Pires de Araujo, Joana Lourdes Cristaldo Romero, Edvaldo

Pegorari, Érika Riromi Takebe, Manuel Pacheco Neto, Hermes Moreira Junior e Ceres

Moraes. Galera, é uma honra e satisfação trabalhar e desfrutar da companhia de vocês. Aquele

abraço!

À professora Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira pela gentileza, atenção e pelo cuidado

em ler e realizar a correção de Língua Portuguesa da tese.

Aos editores e editoras do Jornal Sem Terra, entrevistados para realização da

pesquisa: Igor Felippe Santos, Nilton Viana, Debora Franco Lerrer, Cristiane Gomes, Sinara

Sandri e Joana Tavares.

À Secretaria Nacional do MST, em São Paulo/SP, pela gentileza e atenção.

À Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) por me conceder afastamento

integral do meu trabalho pelo período de um ano (2014), o que foi fundamental para concluir

a escrita da tese.

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Então, não há nada impossível que não seja possível

quando você quer, quando você quer você consegue,

quando não quer também não consegue. Se for olhar pras

dificuldades, pra luta, não vai conseguir nada, não vai nem

conseguir sai daqui pra li, porque não é fácil (Maria

Ivânia, assentamento Estrela da Ilha, 2009).

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RESUMO

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ao longo dos seus 30 anos,

constituiu sólida organização em prol da reforma agrária, com atuação em diversas frentes de

luta, tais como: organização de acampamentos e assentamentos, criação de cooperativas,

escolas, articulações com outros movimentos sociais. O MST é um Movimento em

movimento, em construção, e analisá-lo significa olhar o seu devir, suas contradições, e sua

contribuição histórica para os trabalhadores rurais no Brasil. Em suas três décadas de

existência, tornou-se objeto de pesquisa nos mais variados campos do saber, o que evidencia

sua riqueza e amplitude de ações face à sociedade. Nessa perspectiva, a tese objetiva analisar

as representações do MST sobre os presidentes FHC e Lula, publicadas no Jornal Sem Terra,

entre os anos de 1995 e 2010. Nelas são destacados momentos de tensão resultantes da

relação do MST com esses presidentes e seus respectivos governos. Para escrita do trabalho,

além de referências bibliográficas, utilizou-se como fonte principal o Jornal Sem Terra, em

especial, seus editoriais. Outras fontes também foram analisadas como entrevistas com os

editores do jornal e materiais produzidos pela organização do MST. Por ser a fonte principal

da pesquisa, o Jornal Sem Terra também foi objeto de reflexão. Discutiu-se que o periódico

se configurou como um importante instrumento político de luta, utilizado pela Direção

Nacional do MST para construir representações sobre as diversas relações que envolviam sua

organização e seus integrantes. Historicamente, os presidentes brasileiros foram alvos das

representações do Movimento por meio do Jornal Sem Terra; essas representações carregam

uma carga ideológica sobre a leitura e as visões de mundo face aos presidentes. Embora a

ênfase da análise esteja relacionada aos presidentes FHC e Lula, na tese reflete-se também o

modo de elaboração de representações sobre os presidentes José Sarney, Fernando Collor de

Mello e Itamar Franco, destacando-se que havia uma perspectiva continuísta nos discursos do

jornal. Avaliou-se que o MST, em sua trajetória histórica, elaborou representações sobre FHC

e Lula a partir de uma visão maniqueísta, em que os presidentes foram personificados como a

tradução do bem e do mal. Nesse processo de construção de representações, houve dificuldade

de o Movimento compreender o Estado e as complexas e dinâmicas relações que envolviam

os governos no jogo político brasileiro. A personificação dos presidentes FHC e Lula nas

representações do MST sinalizam para uma visão romântica e idealizada da política, não se

considerando avanços, recuos e limites das ações dos referidos presidentes e das de seus

governos.

Palavras-chave: MST; FHC; Lula.

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ABSTRACT

The Movement of Landless Rural Workers (MST), throughout its 30 years constituted

a strong organization in favor of land reform, working on different fronts of struggle, such as

organizing camps and settlements, creation of cooperatives, schools, joints with other social

movements, among others. The MST is a moving Movement under construction, and

analyzing it means looking at its future, its contradictions, and its historical contribution to

rural workers in Brazil. In three decades of existence, it has become the object of research

study in several fields of knowledge, thus showing its wealth and range of actions before the

society. From this perspective, the thesis aims to analyze the representations of the MST over

Brazilian presidents FHC and Lula, through Jornal Sem Terra, from 1995 to 2010,

highlighting the tensions shrouded in respect of MST with these presidents and their

respective governments. For writing the work, besides bibliographical references, the Jornal

Sem Terra was used as the main source, in particular, its editorials. Other sources were also

analyzed, such as interviews with newspaper editors and materials produced by the

organization of the MST. As the main source of research, the Jornal Sem Terra was also an

object of reflection, and it was argued that the journal was configured as an important struggle

policy tool used by the National Office of the MST to construct representations of the various

relationships involving its organization and its members. Historically, Brazilian presidents

were targets of the Movement representations through the Jornal Sem Terra, and these

representations carried an ideological burden on reading and on worldviews about the

presidents. By emphasizing presidents FHC and Lula, the thesis is also reflected in the

development of representations about presidents José Sarney, Fernando Collor de Mello and

Itamar Franco, noting that there was a continuationist perspective in the newspaper

discourses. It was analyzed that MST, in its historical trajectory, elaborated representations

about FHC and Lula from a Manichean vision, where the presidents were personified as a

translation of good and evil. In this representations construction process, there was a difficulty

by the Movement in understanding the State and the complex and dynamic relationships

involving the governments in the Brazilian political game. When embodying presidents FHC

and Lula in his representations, the Movement showed a romantic and idealized view of

politics, did not consider the advances, setbacks and limitations of these presidents’ actions

and their Governments.

Keywords: MST; FHC; Lula.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Capa do Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de 1981 ------------p. 52.

Imagem 2 - Capa do Boletim Sem Terra. Porto Alegre, setembro de 1983 ------- p. 62.

Imagem 3 - Jornal Sem Terra. Porto Alegre, julho de 1984 ------------------------ p. 68.

Imagem 4 - Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro/março de 1987 ---- p. 82.

Imagem 5 - Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2004 -------------p. 83.

Imagem 6 - Os mesmos vícios do passado --------------------------------------------p. 134.

Imagem 7 - Amarelinha de Sarney -----------------------------------------------------p. 137.

Imagem 8 - A Constituinte está cada vez pior! ---------------------------------------p. 140.

Imagem 9 - Governo de mentiras -------------------------------------------------------p. 143.

Imagem 10 - Sarney dá golpe mortal na Reforma Agrária ------------------------- p. 144.

Imagem 11 - Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1990 ------------- p. 152.

Imagem 12 - Pressão permanente ------------------------------------------------------p. 159.

Imagem 13 – Reforma Agrária, quando? ----------------------------------------------p. 167.

Imagem 14 – A crise e o governo ------------------------------------------------------p. 169.

Imagem 15 – Itamar, as promessas serão cumpridas agora? ------------------------p. 171.

Imagem 16 – O caos do “desgoverno” Itamar --------------------------------------- p. 173.

Imagem 17 – Um governo velho e conservador --------------------------------------p. 182.

Imagem 18 – Por que os EUA querem impor o neoliberalismo na América Latina? -- p. 187.

Imagem 19 – Combater sem trégua o Neoliberalismo -------------------------------p. 189.

Imagem 20 – O governo FHC e a farsa do neoliberalismo -------------------------p. 190.

Imagem 21 – Continuamos em marcha contra o neoliberalismo -------------------p. 192.

Imagem 22 – Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1998 -------------p. 197.

Imagem 23 – Em defesa da Petrobrás --------------------------------------------------p. 200.

Imagem 24 – A ditadura moderna do governo FHC ---------------------------------p. 205.

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Imagem 25 – FHC: um governo sem moral -------------------------------------------p. 207.

Imagem 26 – Vamos derrotar a Alca ---------------------------------------------------p. 209.

Imagem 27 – Subserviência aos Estados Unidos -------------------------------------p. 211.

Imagem 28 – A crise tem nome: FHC -------------------------------------------------p. 213.

Imagem 29 – FHC quebrou o país ------------------------------------------------------p. 217.

Imagem 30 – Avança Brasil! ----------------------------------------------------------- p. 218.

Imagem 31 – A colonização do governo FHC --------------------------------------- p. 219.

Imagem 32 – Verdades e mentiras da atual conjuntura ------------------------------p. 226.

Imagem 33 – A grave crise que se instala no Brasil ---------------------------------p. 228.

Imagem 34 – Aumenta a crise no governo --------------------------------------------p. 230.

Imagem 35 – O mau cheiro que exala do Planalto -----------------------------------p. 232.

Imagem 36 – E as dificuldades continuam --------------------------------------------p. 235.

Imagem 37 – O negócio é assentar o pau --------------------------------------------- p. 237.

Imagem 38 – Confusões de adolescente ---------------------------------------------- p. 240.

Imagem 39 – O Rei está nu --------------------------------------------------------------p. 241.

Imagem 40 – Mais um Zé no banco dos réus -----------------------------------------p. 247.

Imagem 41 – Governo Rocambole ---------------------------------------------------- p. 249.

Imagem 42 – Balanço da Reforma Agrária -------------------------------------------p. 250.

Imagem 43 – Só mobilização mexe com esse governo! -----------------------------p. 252.

Imagem 44 – Tucanóquio --------------------------------------------------------------- p. 253.

Imagem 45 – FHC Pinóquio ------------------------------------------------------------p. 255.

Imagem 46 – Mais uma mentira do governo ------------------------------------------p. 256.

Imagem 47 – As mentiras do governo FHC ------------------------------------------p. 256.

Imagem 48 – Um governo vergonhoso! -----------------------------------------------p. 256.

Imagem 49 – A Reforma Agrária que não existe -------------------------------------p. 256.

Imagem 50 – A farsa da Reforma Agrária --------------------------------------------p. 256.

Imagem 51 – Só fachada: Banco da Terra ---------------------------------------------p. 266.

Imagem 52 – Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002 --------p. 274.

Imagem 53 – Uma vitória do povo ---------------------------------------------------- p. 276.

Imagem 54 – Lula no II Congresso Nacional do MST ------------------------------p. 284.

Imagem 55 – Lula recebe réplica do prêmio Nobel Alternativo -------------------p. 286.

Imagem 56 – Collor levou mas não ganhou -------------------------------------------p. 294.

Imagem 57 – Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1994 --------- p. 297.

Imagem 58 – Efeitos FHC e Lula ------------------------------------------------------ p. 300.

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Imagem 59 – Lula: piloto do governo popular ---------------------------------------p. 312.

Imagem 60 – Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para luta! ---------p. 313.

Imagem 61 – É preciso quebrar a resistência das elites ----------------------------- p. 315.

Imagem 62 – Dançar outra música ---------------------------------------------------- p. 316.

Imagem 63 – Atravessando a escuridão ---------------------------------------------- p. 318.

Imagem 64 – Os desafios da atual política econômica ------------------------------ p. 319.

Imagem 65 – Lula preso na poça de cola do neoliberalismo ----------------------- p. 326.

Imagem 66 – A macroeconomia de Lula ----------------------------------------------p. 328.

Imagem 67 – Mudanças ----------------------------------------------------------------- p. 333.

Imagem 68 – Lula: entre movimentos populares e elite ---------------------------- p. 334.

Imagem 69 – O concerto sem conserto ----------------------------------------------- p. 336.

Imagem 70 – Lula em más companhias ----------------------------------------------- p. 340.

Imagem 71 – Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003 -------------- p. 354.

Imagem 72 – É preciso agilizar a reforma agrária ----------------------------------- p. 362.

Imagem 73 – Reforma Agrária tartaruga --------------------------------------------- p. 368.

Imagem 74 – Enche o “tanque” da reforma agrária --------------------------------- p. 371.

Imagem 75 – Compromissos precisam ser honrados ------------------------------- p. 372.

Imagem 76 – A hora é de unidade popular e luta ------------------------------------ p. 374.

Imagem 77 – Os entraves da reforma agrária ---------------------------------------- p. 375.

Imagem 78 – Agronegócio: o pior negócio para os brasileiros -------------------- p. 381.

Imagem 79 – Consequências do agronegócio ---------------------------------------- p. 381.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Meios de comunicação vinculados ao MST, até 2007 ------------------ p. 92.

Tabela 2 – Editoriais relacionados ao presidente FHC (1995-2002) -------------- p. 179.

Tabela 3 – Editoriais relacionados ao presidente Lula (2003-2010) ---------------p. 308.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Brasil – Assentamentos Rurais (1995-2002) – Número de áreas obtidas -- p. 271.

Gráfico 2 – Brasil – Assentamentos Rurais (1995-2002) – Número de famílias em áreas

obtidas ----------------------------------------------------------------------------------------------- p. 272.

Gráfico 3 – Brasil – Assentamentos Rurais (2003-2010) – Número de áreas obtidas --- p. 393.

Gráfico 4 – Brasil – Assentamentos Rurais (2003-2010) – Número de famílias em áreas

obtidas ----------------------------------------------------------------------------------------------- p. 393.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABI – Associação Brasileira de Imprensa

ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária

Alca – Área de Livre Comércio das Américas

ANA – Agência Nacional de Águas

ANOTER – Associação Nacional dos Órgãos Estaduais de Terras

Antaq – Agência Nacional de Transportes Aquaviários

ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres

Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Arena - Aliança Renovadora Nacional

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CAMP – Centro de Assessoria Multiprofissional

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CEDEM – Centro de Documentação e Memória

Cepal – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe

CNA – Confederação Nacional da Agricultura

Conclat – Conferência Nacional da Classe Trabalhadora

CONCRAB – Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CPDA/UFRRJ – Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em

Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CUT – Central Única dos Trabalhadores

CVRD – Companhia Vale do Rio Doce

DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra

DEM – Partido Democratas

ECA/USP – Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e

Artes da Universidade de São Paulo

EIV – Estágio Interdisciplinar de Vivência

EMBRATER – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural

EUA – Estados Unidos da América

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EZLN – Exército Zapatista de Libertação Nacional

FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas

FHC – Fernando Henrique Cardoso

FMI – Fundo Monetário Internacional

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

IFES – Instituições Federais de Ensino Superior

Ilpes – Instituto Latino-Americano e o Caribe de Planejamento Econômico e Social

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

LSN – Lei de Segurança Nacional

Lula – Luiz Inácio Lula da Silva

MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MJDH/RS – Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

NERA – Núcleo de Estudos da Reforma Agrária

OAB/SP – Ordem dos Advogados do Brasil / São Paulo

OAN – Ouvidoria Agrária Nacional

OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras

ONG – Organização não Governamental

PAA – Programa Aquisição de Alimentos

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PCdoB – Partido Comunista do Brasil

PDS – Partido Democrático Social

PDT – Partido Democrático Trabalhista

Petrobrás – Petróleo Brasileiro S. A.

PFL – Partido da Frente Liberal

PIB – Produto Interno Bruto

PL – Partido Liberal

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Pnad

PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária

PP – Partido Progressista

PPGH/UFGD – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da

Grande Dourados

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PRN – Partido da Reconstrução Nacional

PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

PRTB – Partido Renovador Trabalhista Brasileiro

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PT – Partido dos Trabalhadores

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SCA – Sistema Cooperativista dos Assentados

SRC – Sociedade Rural Brasileira

Telebrás – Telecomunicações Brasileira

UDR – União Democrática Ruralista

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UNESP – Universidade Estadual Paulista

USP – Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

Lista de Imagens -------------------------------------------------------------------------------- 11

Lista de Tabelas ---------------------------------------------------------------------------------

Lista de Gráficos --------------------------------------------------------------------------------

Lista de Abreviaturas e Siglas -----------------------------------------------------------------

14

15

16

Introdução -------------------------------------------------------------------------------------- 21

Capítulo I

MST E JORNAL SEM TERRA: HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS---------------- 47

1.1. É preciso (in)formar e solidarizar: o Boletim Sem Terra e as tensões da luta pela

terra -----------------------------------------------------------------------------------------------

47

1.2. Produção das notícias, editores, participação da Direção Nacional e a

distribuição do Jornal Sem Terra -------------------------------------------------------------

65

1.3. Comunicação engajada e o Jornal Sem Terra na organização do MST ------------ 89

Capítulo II

PRESIDENTES BRASILEIROS: ALVOS PRIVILEGIADOS DAS

REPRESENTAÇÕES DO MST ------------------------------------------------------------

102

2.1. Considerações sobre os conceitos representação e ideologia e sobre suas

contribuições para a análise do Jornal Sem Terra ------------------------------------------

102

2.2. Representante dos Latifundiários e a continuidade da Ditadura: José Sarney ---- 126

2.3. Fernando Collor de Mello: descaso com a reforma agrária e repressão contra os

movimentos sociais -----------------------------------------------------------------------------

2.4. Omissão, enrolação e ausência de vontade política: Itamar Franco na

presidência ---------------------------------------------------------------------------------------

146

163

Capítulo III

“O PRESIDENTE DAS ELITES”: TENSÕES E LUTAS POR

REPRESENTAÇÕES NO GOVERNO FHC--------------------------------------------

177

3.1. FHC: neoliberalismo e submissão ao capital internacional -------------------------- 177

3.2. “FHCrise”: caos social e corrupção ----------------------------------------------------- 212

3.3. FHC: o negócio é “assentar o pau” e criminalizar o MST --------------------------- 234

3.4. “Nhén, Nhén, Nhén e Blá, Blá, Blá”: “tucanóquio” da reforma agrária -----------

248

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- 20 -

Capítulo IV

“O PRESIDENTE DO POVO”: ENTRE A ESPERANÇA DA REFORMA

AGRÁRIA E AS FRUSTRAÇÕES COM O GOVERNO LULA -------------------

274

4.1. “Uma vitória do povo”: Lula foi eleito o presidente do Brasil ---------------------- 274

4.2. Lula: entre a continuidade do modelo econômico e as possibilidades de

mudanças ----------------------------------------------------------------------------------------

307

4.3. Lula: entre a esperança da reforma agrária e a opção pelo agronegócio ----------- 352

Considerações Finais ------------------------------------------------------------------------- 398

Fontes e Referências Bibliográficas -------------------------------------------------------- 411

Anexos ------------------------------------------------------------------------------------------- 439

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INTRODUÇÃO

Os estudos sobre os movimentos sociais rurais e urbanos têm conquistado espaços

significativos na produção do conhecimento acadêmico. A abrangência de reflexões sobre tais

estudos se deve ao fato de os chamados novos movimentos sociais, nascidos, sobretudo, na

década de 1980, estarem contribuindo com novas formas de fazer política. O interesse em

pesquisar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou-se ainda no curso

de Graduação em História na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três

Lagoas (UFMS/CPTL), entre os anos de 2004 e 20071.

Na Graduação, a curiosidade em conhecer melhor o Movimento2 foi se aguçando.

Com o tempo, analisar os meandros que envolvem a história e as ações do MST transformou-

se em paixão. Isto é, a pesquisa que, na prática, se torna um trabalho árduo e, muitas vezes,

estressante, se transformou em prazer. Esse prazer está ligado ao aspecto do descobrir, ou

seja, do compreender e do produzir uma narrativa/texto. Nessa direção, o processo de

pesquisa tramita em uma dualidade, quase contradição: prazer e disciplina; gozo e trabalho

árduo. Movido por este sentimento, no ano de 2008, prosseguiu-se na pesquisa com o

ingresso no curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD).

No mestrado, teve-se a oportunidade de amadurecer e de ampliar reflexões teórico-

metodológicas que abrangem a área da História, assim como a de desenvolver o processo de

escrita, tão importante para os pesquisadores. Transformar ideias e investigações em texto

acadêmico, de qualquer natureza, não é tarefa simples. Na pesquisa de Mestrado, a

problemática central estava em torno da prática da mística no MST, que foi entendida como

uma prática cultural e política desenvolvida no MST. A mística era desenvolvida pelos

agentes religiosos que trabalhavam junto aos sujeitos sem-terra e tinha aceitação entre eles. O

MST se apropriou de tal prática e a ressignificou em suas lutas, investindo em uma mística

própria, de acordo com os interesses, objetivos e projetos de sua organização3.

1 Na época, como bolsista de Iniciação Científica, desenvolveu-se uma pesquisa sobre a mística no MST e no

acampamento Madre Cristina, localizado no município de Itapura/SP. Ver: COELHO, Fabiano. Práticas e

Representações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: acampamento Madre Cristina e Mística.

2007. 92f. Monografia (História) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas. 2 Quando escreve-se Movimento com letra maiúscula, refere-se ao MST. 3 Ver: COELHO, Fabiano. A Prática da Mística e a luta pela Terra no MST. 2010. 285 f. Dissertação (Mestrado

em História). Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados. A dissertação defendida foi publicada em

formato de livro pela editora da UFGD. Ver: COELHO, Fabiano. Ela é a Alma do MST? A prática da mística e a

luta pela terra. Dourados: EDUFGD, 2014

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Após a conclusão do Mestrado, em 2010, havia planos de se fazer o Doutorado. Essa

oportunidade foi mais latente quando, ao final do ano de 2010, o Projeto de Doutorado em

História do PPGH/UFGD foi aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES). Assim, a participação em processo seletivo permitiu o ingresso no

curso de Doutorado em História do PPGH/UFGD.

No Doutorado, efetuou-se pesquisa, objeto desta tese, que teve por principal objetivo

analisar as representações construídas pelo MST sobre os presidentes Fernando Henrique

Cardoso (FHC) e Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), por meio do Jornal Sem Terra, referentes

ao período de 1995 a 2010. A pesquisa demonstra como se delinearam as relações e tensões

que envolveram o MST e os governos mencionados, e como o Jornal Sem Terra se tornou

importante instrumento político do Movimento para a elaboração de representações sobre os

presidentes FHC e Lula. Para tanto, a tese do estudo é que o MST, ao longo de sua história,

construiu representações sobre os presidentes FHC e Lula, a partir de uma visão maniqueísta

da história, e os personificou como se fossem a representação do bem e mal, por vezes, não

considerou a complexidade do jogo político brasileiro.

Nessa perspectiva, a preocupação esteve focada na compreensão de como o

Movimento elaborou discursos e revelou suas posturas políticas e ideológicas, entrando,

quase sempre, em contraposição com os modelos políticos e econômicos adotados pelos

presidentes. Por mais que a ênfase se paute nos presidentes FHC e Lula, o MST, desde seu

nascimento, por meio do Jornal Sem Terra, tem elaborado representações sobre presidentes

do Brasil. Entre eles estão José Sarney, Fernando Collor de Mello e Itamar Franco. Desse

modo, questiona-se: essas representações foram distintas ou semelhantes face aos presidentes

FHC e Lula? Quais as permanências e rupturas nos discursos produzidos? Houve

aproximações entre as ações dos presidentes e as lutas do Movimento?

O interesse em investigar tal problemática advém do desenvolvimento da pesquisa de

Mestrado. O contato com o Jornal Sem Terra e a análise de algumas edições permitiram

perceber o quanto o MST fazia do periódico um lugar privilegiado para construir

representações sobre os presidentes do país. Os editoriais se constituíram em espaços do

periódico nos quais essa intenção ficava mais evidente. Grande parte dos editoriais era

reservada a representar os presidentes e as ações de seus governos, sobretudo, aquelas

voltadas ao campo, aos trabalhadores rurais e à reforma agrária.

O número de pesquisas relacionadas ao MST tem crescido consideravelmente,

especialmente, nas duas últimas décadas. Estudiosos dos mais variados campos do saber se

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debruçam para compreender as diversas relações que envolvem a consolidação do Movimento

no Brasil e chamam a atenção para os ideais políticos, econômicos, sociais e culturais desse

Movimento. Sandra Jatahy Pesavento, por exemplo, destaca a riqueza simbólica e a

capacidade de mobilização política construídas pelo MST em suas trajetórias de lutas. Em

relação aos movimentos sociais como campo de investigação histórica, diz que “estes

correspondem a uma espécie de laboratórios, ao vivo, de construção e aplicabilidade das

representações sociais que se apresentam aos olhos do historiador”4.

Na busca por bibliografia, constatou-se a quantidade significativa de pesquisas

relativas ao MST, principalmente, nos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu, nas mais

diversas áreas do conhecimento. A heterogeneidade das análises enriquece e auxilia o

entendimento da luta pela terra e o do Movimento, em seus diversos caminhos e descaminhos,

assim como as particularidades regionais de sua organização em algumas localidades.

Os diversos estudos sobre o MST também demonstram a riqueza e a quantidade de

fontes disponíveis aos pesquisadores para a investigação de suas problemáticas de pesquisa.

Pode-se dizer que, historicamente, as reflexões relacionadas ao MST têm sido erigidas sobre

tendências interdisciplinares. Citem-se, por exemplo, pesquisas voltadas à compreensão de

práticas internas do Movimento, à compreensão de seu ideal revolucionário, de suas bases

políticas e de sua militância. Há, também, uma infinidade de pesquisas direcionadas ao

entendimento de acampamentos e assentamentos vinculados ao MST, de práticas e dinâmicas

internas a esses lugares sociais. E pesquisas que visam à compreensão do Movimento a partir

de uma ótica nacional e de sua inserção no campo político mais amplo e estrutural. Enfim,

diversos estudos almejam entender a organização do MST nos processos sociopolíticos e

econômicos. Destaca-se que, em razão de procedimentos metodológicos utilizados, algumas

pesquisas, por vezes, focalizam aspectos parciais e não o todo de ações e de formas que

sinalizem para o como o MST se movimenta.

Não há intenção na tese de se esgotar as possibilidades de leitura e interpretação sobre

as representações do MST face aos presidentes FHC e Lula, pois seria uma ideia desprovida

de sentido; portanto, busca-se contribuir com estudos relacionados ao MST e à história por

meio da imprensa. No desenvolvimento desta “empreitada”, termo utilizado por Georges

Duby ao referir-se ao trabalho do historiador, dificuldades e indagações são recorrentes5.

Escolher aportes teórico-metodológicos, ir a arquivos, produzir e transcrever entrevistas,

selecionar fontes, digitalizar imagens, organizar tabelas e gráficos, realizar leituras que

4 PESAVENTO, S. J., História & História Cultural, p. 94. 5 DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

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ampliem possibilidade de compreensão das experiências históricas, até se chegar ao trabalho

final – a escrita do texto – não é, e não foi, tarefa simples.

Para a construção da tese, a fonte de investigação privilegiada foi o Jornal Sem Terra.

Todavia, na medida em se fez pertinente, foram utilizados outros materiais produzidos pelo

MST, como Cartilhas, Cadernos de Formação, Livros, Manuais de Organização. A

utilização dessas fontes, além do jornal, foi relevante no auxílio ao entendimento dos

discursos publicados no próprio periódico, haja vista que os discursos do jornal não estão

deslocados dos outros materiais elaborados pelo Movimento. No que se refere aos dados

sobre o número de áreas obtidas e sobre o número de famílias assentadas nos governos, desde

a redemocratização do país, foram usadas informações do Banco de Dados da Luta pela Terra

(DATALUTA), que serão apresentados e analisados ao longo da tese.

Trabalhar com materiais produzidos pelo MST exige cautela, cuidado do pesquisador,

para que não corra o risco de apenas reproduzir os discursos dos integrantes da organização

do Movimento. Se fosse para reproduzir o que está descrito nas referidas publicações, qual

seria a importância do trabalho do historiador? Por meio das fontes construídas pelo

Movimento, que são materiais de circulação interna, salvo o Jornal Sem Terra, tem-se a

possibilidade de analisar as ideias, os valores, as mudanças e permanências ideológicas do

Movimento ao longo do tempo. Os discursos contidos nesses materiais são reveladores de

significados sobre as posturas ideológicas, o ideário e as crenças do MST. Para tanto, é

preciso considerar o contexto em que tais fontes foram elaboradas, posto que há mudanças

significativas nessas publicações no transcorrer do tempo, tanto sob a perspectiva estética,

quanto sob a perspectiva de seus discursos.

Nesse sentido, refletir sobre a idade dos textos é pensar sobre os processos que

transformam as ações e as maneiras de pensar do MST no decorrer de sua história. Para a

análise dos materiais do Movimento, há que se contextualizar a fonte, considerando-se a

época em que ela foi produzida. O MST da década de 1980 não é o mesmo do ano de 2014.

Com essa interpretação há reconhecimento de permanências acerca de convicções políticas e

ideológicas que acompanharam o Movimento desde seu surgimento, assim como de

mudanças substanciais em torno de seus discursos e ações.

Na construção do estudo, realizaram-se entrevistas com editores/jornalistas

responsáveis pelas edições do Jornal Sem Terra, em especial, pelas do período delimitado

para investigação. Foram efetivadas seis entrevistas com os seguintes editores: Débora Lerrer,

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Sinara Sandri, Nilton Viana, Cristiane Gomes, Igor Felippe Santos e Joana Tavares6. As

entrevistas com Joana Tavares e Sinara Sandri foram realizadas via correio eletrônico. Após

contatos com essas editoras, elaborou-se um roteiro de perguntas e solicitou-se que elas

fossem respondidas. As entrevistas com Débora Lerrer, Nilton Viana, Cristiane Gomes e Igor

Felippe Santos foram efetivadas pessoalmente, nas cidades de São Paulo/SP e Rio de

Janeiro/RJ, em abril de 2012. Vale registrar que se analisou também uma entrevista, que havia

sido publicada, de Flademir Araújo7, primeiro editor responsável do jornal, concedida a

Miguel Stedile, no ano de 2001.

No que se relaciona, ainda, às entrevistas, observe-se que o contato pessoal com os

entrevistados foi importante, o que não desqualifica as entrevistas efetivadas via correio

eletrônico. Pelo contrário, todas as entrevistas foram relevantes; entretanto, o contato pessoal

possibilitou o atentar-se para determinados detalhes envolvidos nas narrativas dos

entrevistados – olhares, tom de voz, espontaneidade. Possibilitou o perceber, o compreender

os ditos, os não ditos, os esquecimentos advindos da singularidade de narrativas orais.

A realização das entrevistas teve como objetivo entender a produção do Jornal Sem

Terra – a dinâmica e as tensões que a envolviam – e o papel da Direção Nacional do MST

nessa produção. Como o Jornal Sem Terra foi fonte privilegiada da tese, tornou-se necessário

compreender sua produção e sua estrutura existencial. Nesse processo, marcado por diversas

trocas de e-mails e por encontros nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, destacam-se a

recepção, a gentileza e a colaboração dos entrevistados.

Quanto às fontes orais, sublinhe-se que há quantia considerável de textos e autores no

meio acadêmico que se dedicam ao seu estudo. Muitos deles apresentam visão semelhante à

apresentada nesta tese; outros, olhar distinto no que tange, por exemplo, à produção e ao

tratamento desse tipo de fonte. Autores e autoras como Verena Alberti8, Antonio Torres

Montenegro9, Janaína Amado10, Michael M. Hall11, Joan Del Alcàzar i Garrido12, Philippe

6 Estes editores estão apresentados com mais detalhes no primeiro capítulo da tese. 7 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min. 8 ALBERTI, V. Ouvir, Contar – Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 9 MONTENEGRO, A. T. História Oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol.

13, nº25/26, p. 55-65, set 92/ago 93. 10 AMADO, J. A Culpa Nossa de Cada Dia: Ética e História Oral. Projeto História: Revista do Programa de Estudos

Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, (15), p. 145-155, abril de 1997; e

AMADO, J; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação

Getúlio Vargas, 1996. 11 HALL, M. M. História Oral: os riscos da inocência. Secretaria Municipal de Cultura – DPH. O Direito à

Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 157-160.

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Joutard13, Michel Pollak14, Tereza Malatian15 e Alessandro Portelli16 construíram textos

significativos relacionados à reflexão acerca do trabalho com fontes orais, consequentemente,

com questões inerentes à memória. Tais estudos foram importantes para subsidiar a

perspectiva teórica e metodológica da pesquisa.

Na tese, analisam-se, especialmente, os editoriais das edições publicadas entre os anos

de 1995 e 2010. Portanto, a pesquisa envolve dezesseis anos do jornal e totaliza o número de

164 edições17. Essa escolha metodológica se refere ao período em que o Brasil foi governado

pelos presidentes FHC e Lula. Mas, como se pode observar ao longo da tese, também

analisaram-se edições anteriores do jornal, relativas aos presidentes José Sarney, Fernando

Collor de Mello e Itamar Franco.

A produção do Jornal Sem Terra começou antes mesmo do nascimento oficial do

MST. O periódico nasceu no ano de 1981, em formato de boletim, com o nome de Boletim

Sem Terra. Sua produção ocorria em Porto Alegre/RS e os responsáveis por sua organização

foram a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral Universitária de Porto Alegre/RS, e o

Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.

O Boletim Sem Terra, em seu início, foi organizado para divulgar a luta dos

trabalhadores no acampamento Encruzilhada Natalino, no município de Sarandi/RS, e para

angariar auxílio de grupos solidários à causa dos sem-terra. Com a oficialização do MST, em

1984, o Boletim Sem Terra é incorporado à organização do Movimento; e a produção do

periódico passa a ser de sua responsabilidade. Nesse mesmo ano, o boletim foi transformado

12 GARRIDO, J. del A. i. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Revista Brasileira de

História. São Paulo, v. 13, nº25/26, p. 33-54, set 92/ago 93. 13 JOUTARD, P. História Oral: balanço da metodologia de da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, J;

FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996. p. 43-62. 14 POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, p. 3-15, 1989;

e Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.5, n.10, p. 200-212, 1992. 15 MALATIAN, T. M. A Circularidade do Discurso: perspectivas metodológicas da história oral. In: Fontes

Históricas: abordagens e métodos. Programa de Pós-Graduação em História, Unesp, Assis, 1996. p. 47-56. 16 PORTELLI, A. Forma e significado na História Oral – a pesquisa como experimento em igualdade. Trad. Maria

Therezinha Janine Ribeiro. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do

Departamento de História da PUC - SP. São Paulo, (14), p. 7-24, fevereiro de 1997. 17 A captura das edições do jornal ocorreu ainda quando se desenvolvia a pesquisa de Mestrado. Destaca-se que

o Jornal Sem Terra, entre os anos de 1981 e 2012, se encontra disponível em versão digitalizada no núcleo de

documentação digital Armazém Memória: um resgate coletivo da história, no endereço eletrônico:

www.armazemmemoria.com.br. Este site foi construído por meio de iniciativa coletiva, com o intuito de

democratizar diversos tipos de fontes para facilitar a pesquisa e o conhecimento da memória histórica. Nele,

estão reunidos, de forma digital, além da coleção do jornal, diversos documentos relacionados ao MST. Em

relação aos diversos materiais produzidos pelo Movimento, ressalta-se que o Núcleo de Documentação Histórica

Honório de Souza Carneiro, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus Três Lagoas, e o

Centro de Documentação e Memória (CEDEM), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), na cidade de São

Paulo, e a própria Secretaria Nacional do MST, em São Paulo, possuem um acervo significativo e diverso de

materiais que estão acessíveis aos pesquisadores.

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em tabloide18, passando a receber o nome Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Em

1985, com a transferência da Secretaria Nacional do MST para a cidade de São Paulo, a

produção do jornal também foi deslocada para a capital paulista.

Compreende-se o Jornal Sem Terra como um tipo de imprensa19 distinta, uma

“imprensa alternativa”. A expressão “imprensa alternativa” fica conhecida no período do

Regime Civil-Militar por denominar os periódicos que, com atitudes ousadas, burlavam a

repressão e a censura do Estado, manifestando-se contra o Regime que vigorava. O termo

alternativo também faz referência ao fato de os periódicos circularem fora do âmbito da

chamada “grande imprensa”20. Eles são mais restritos e produzidos por grupos que seguiam

determinadas crenças e convicções políticas e ideológicas e que visualizavam nos impressos

um “instrumento de luta” e “espaço de ação” política21.

Entretanto, conforme Flávio Aguiar22, Tania Regina de Luca e Ana Luiza Martins23,

Karina Janz Woitowicz24, estudiosos da história da imprensa no Brasil, a chamada “imprensa

alternativa” sempre existiu na história da imprensa do país, desde o ano de 1808, quando da

chegada da Corte Portuguesa no território que hoje é compreendido como Brasil. Tais jornais

eram movidos e produzidos de acordo com as circunstâncias, contextos, e interesses do(s)

grupo(s) aos quais estavam ligados. Assim, “a comunicação alternativa sempre participou

18 O termo tablóide provém do inglês tabloid e, grosso modo, designa um formato de jornal surgido em meados

do século XX na Inglaterra. Originalmente significava um jornal de formato quadrado, para se distinguir de

outros periódicos. Cada página de um tablóide mede aproximadamente 33 x 28 cm. A estrutura do Jornal Sem

Terra foge aos padrões tradicionais dos periódicos e se assemelha a um tablóide. 19 O termo “imprensa” não se reduz ao jornal, mas sim a todos os tipos de meios de comunicação impressos, que

por si só são diversificados, cada um com suas peculiaridades. Ver: CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e

História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. 20 De acordo com Tania Regina de Luca, a expressão “grande imprensa”, apesar de consagrada, é bastante vaga e

imprecisa. “De forma genérica designa o conjunto de títulos que, num dado contexto, compõe a porção mais

significativa dos periódicos em termos de circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e

financeiro”. Ver: LUCA, T. R. de. A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX. In: LUCA, T. R. de;

MARTINS, A. L. (Orgs). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p. 149-175. 21 Uma obra clássica sobre a “imprensa alternativa” nos tempos da Ditadura Civil-Militar é a do autor Bernardo

Kucinski, intitulada Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. O autor fez uma

pesquisa extremamente densa sobre os “alternativos” que nasceram no período de 1964/1980. Dentre os diversos

periódicos estudados, deu maior ênfase aos famosos jornais O Pasquim, Opinião, Movimento e Em Tempo. Ver:

KUCINSKI, B. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora Página

Aberta Ltda, 1991. 22 AGUIAR, F. Imprensa Alternativa: Opinião, Movimento e Em Tempo. In: LUCA, T. R. de; MARTINS, A. L.

(Orgs). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p. 233-247. 23 LUCA, T. R. de; MARTINS, A. L. (Orgs). Imprensa e Cidade. São Paulo: Editora UNESP, 2006; _______.

História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. 24 WOITOWICZ, K. J. (Org.). Recortes da Mídia Alternativa: histórias e memórias da comunicação no Brasil.

Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2009.

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ativamente de diversas lutas e contribuiu para o fortalecimento dos espaços de resistência, em

meio ao processo de construção da história”25.

Na história da imprensa do Brasil, essa imprensa alternativa possui marca

característica – a efemeridade. Isto é, devido a diversos fatores, esses meios de comunicação

não têm um tempo de vida longo. O Jornal Sem Terra foge a essa característica, pois sua

produção tem continuidade desde 1981 e é visualizada pelo MST como fundamental e

estratégica para a organização do Movimento. O Jornal Sem Terra não está inserido nos

padrões da efemeridade:

[...] uma vez que este se atualiza fazendo frente à política vigente no país,

buscando o seu aperfeiçoamento enquanto meio de comunicação de classe

na tentativa de efetivar o seu comprometimento com as causas sociais do

MST e de outros movimentos sociais que compartilham dos seus ideais26.

Sobre a relevância dos estudos de periódicos que fogem e estão à margem da grande

imprensa, Maria Helena Capelato ressalta que eles se tornam importantes espaços para grupos

sociais marginalizados se expressarem e evidenciarem as contradições que permeiam a

sociedade. Por este viés, os periódicos se tornam fontes profícuas para a compreensão da

história e da dinâmica dos movimentos sociais.

A grande imprensa é e sempre foi porta-voz das elites. Mas há outros tipos

de imprensa que hoje, como no passado, expressam projetos e reivindicações

das classes trabalhadoras e grupos minoritários. Os periódicos, porta-vozes

desses setores da sociedade representam instrumentos de luta muito eficazes;

são também fonte documental valiosa para a reconstituição da história dos

movimentos sociais27.

Na luta pela redemocratização do país (décadas de 1970 e 1980), a imprensa

alternativa teve papel relevante na sociedade, sobretudo, pelo fato de, por meio de suas

páginas, os jornalistas denunciarem os abusos, a violência, a tortura. Essa imprensa se

caracterizava como oposição e resistência ao modelo político vigente. Destaca-se, ainda, que

ela não era homogênea. Havia uma diversidade de periódicos, com características distintas. O

ponto em comum entre eles era a crítica contra os discursos oficiais e as práticas políticas da

época. Nesse sentido, o Jornal Sem Terra é entendido como um jornal alternativo, que se

25 WOITOWICZ, K. J., Recortes da Mídia Alternativa: histórias e memórias da comunicação no Brasil, p. 13. 26 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 73. 27 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil, p. 10.

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configurou ao longo de sua existência como um espaço de resistência e oposição aos governos

brasileiros.

Sublinhe-se que a construção da tese se enveredou também pelos aportes teórico-

metodológicos da chamada história cultural, em especial, da que segue a perspectiva de

Roger Chartier. Para este historiador, a preocupação central da história cultural é “identificar

o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é

construída, pensada, dada a ler”28. Desse modo, o conceito representação se configurou como

basilar para se entender a elaboração dos discursos do MST, no Jornal Sem Terra, sobre os

presidentes brasileiros. O Jornal Sem Terra caracteriza-se como uma prática discursiva que,

na organização do Movimento, se revela um recurso privilegiado por meio do qual se

constroem representações sobre diversas e distintas experiências históricas.

Assim, os trabalhos de Chartier29, somados às reflexões de Pierre Bourdieu30, foram

significativos para a compreensão do conceito representação e para sua aplicabilidade nos

estudos históricos. De acordo com estes pesquisadores, as representações são construções

sociais da realidade em que os sujeitos fundamentam suas visões de mundo a partir de seus

interesses e dos de seu grupo31. Dessa forma, os sujeitos e o grupo ao qual pertencem criam

representações de si mesmos e de outros grupos e fundamentam suas visões de mundo sobre

as experiências históricas. As representações visam a construir o mundo social, sendo elas

matrizes dos discursos e das práticas dos grupos.

Outro conceito relevante, o de ideologia, auxiliou a pensar as representações efetuadas

pelo MST sobre os presidentes FHC e Lula. Essas representações, produzidas no Jornal Sem

Terra, estão ligadas às concepções ideológicas do MST. As reflexões de Terry Eagleton,

Andrew Vincent e Slavoj Zizek também contribuíram para o entendimento do conceito

ideologia e auxiliaram na avaliação de que os discursos produzidos pela Direção Nacional do

MST, através do Jornal Sem Terra, são ideológicos por essência e intentam construir

28 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 17. 29 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

1990; A Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002; A Nova

História Cultural existe? In: LOPES, Antonio Herculano; VELLOSO, Monica Pimenta; PESAVENTO, Sandra

Jatahy. História e Linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006;

Entrevista com Roger Chartier. Pós-História – Revista de Pós-Graduação em História, Assis, v. 7, p. 11-30,

1999; Defesa e Ilustração da Noção de Representação. Fronteiras, Dourados, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez.

2011. Disponível em:http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/issue/view/74 . Acesso em:

20 de março de 2012. 30 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996; A Economia das Trocas

Simbólicas. 7ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2011; O poder simbólico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 31 No segundo capítulo da tese, o conceito representação será abordado de maneira mais detalhada, na

perspectiva de ser um instrumento relevante par analisar os discursos produzidos no Jornal Sem Terra.

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30

representações sobre diversas e distintas questões que envolvem a organização do

Movimento, seus aliados e seus adversários na luta pela reforma agrária.

O Movimento expressa nas páginas do jornal as posições políticas e ideológicas que

sustentam e que dão sentido às suas práticas. Essa questão remete às reflexões de Tânia

Regina de Luca, em sua obra A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação, que é de

fundamental importância como subsídio teórico e metodológico para a pesquisa, sobretudo no

que diz respeito às leituras e aos tratamentos dos periódicos como fonte histórica. Luca

demonstra, através da análise do periódico A Revista do Brasil (1916-1925), que os

intelectuais do início do século XX expressavam suas ideias e construíam imagens e

representações sobre o ideal de sociedade que deveria ser construída. Por meio das páginas da

revista, eles intentavam fundar, ou criar um “projeto de nação”32.

O diálogo com a história política, ou nova história política foi de fundamental

relevância, uma vez que a relação MST, Jornal Sem Terra e presidentes/governos perpassa a

dimensão do político, do poder, como dissera Francisco Falcon33. Nessa perspectiva,

destacam-se as reflexões de René Rémond que contribuiu significativamente com a

historiografia, sobretudo, na maneira de repensar o político, isto é, nas diversas e distintas

formas em que o político se manifesta no meio social.

De acordo com Rémond, a definição de político é abstrata, tendo como referência mais

constante o poder. Assim, “a política é a atividade que se relaciona com a conquista, o

exercício, a prática do poder”. No entendimento de Rémond, o político não pode ser

considerado um campo, ou domínio isolado, tampouco se reduz à relação direta com o Estado.

Nessa direção, manifesta-se nos diversos grupos sociais e se comunica com outras atividades

humanas, ou melhor, está relacionado e imbricado com “outros níveis da realidade”34.

A história cultural trouxe para o centro de preocupações dos historiadores uma série

de temas até então desprezados ou abordados de maneira secundária. Somada a essa

ampliação de objetos consolidou-se a ampliação da noção de fontes histórias. Com isso, a

imprensa se tornou objeto de estudo e fonte significativa para a história. No Brasil, ainda que

esse processo seja tardio (se comparado a países europeus), existe um grupo considerável de

pesquisadores que se dedicam a estudar fenômenos históricos e que se utilizam da imprensa

como fonte.

32 LUCA, T. R. de., A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação, p. 18. 33 FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da

História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 34 RÉMOND, R., Por uma História Política, p. 444-449.

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A obra intitulada História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder,

organizada por Lúcia Maria B. P. Neves, Marco Morel e Tania Maria B. da C. Ferreira

propicia excelente panorama de como a imprensa tem sido estudada sob diversas perspectivas

e abordagens, sendo as representações culturais e políticas significativas no

redimensionamento da imprensa como fonte para o historiador. Superou-se a perspectiva

limitada de observar a imprensa como portadora dos fatos e das verdades, ou como não digna

de confiança para os estudos históricos. Também deixaram-se “para trás posturas

preconcebidas, que a interpretavam, desdenhosamente, como mero veículo de ideias ou forças

sociais, que, por sua vez, eram subordinados estritamente por uma infra-estrutura

socioeconômica”35.

A imprensa, por intermédio dos discursos publicados, elabora representações sobre

inúmeros fatos, pessoas e grupos. Carla Siqueira salienta que a imprensa é uma “instituição de

peso estratégico” para a definição de conteúdos e expectativas do exercício da cidadania e de

repercussões políticas dos grupos à qual é vinculada. Assim, a imprensa não se torna apenas

relevante para a conformação de idéias, mas “também na importância desse seu lugar como

revelador da tessitura complexa do pensamento coletivo”. Para tanto, “mais do que nos

lugares onde o pensamento aparece formalizado, no discurso jornalístico afloram a emoção, a

imaginação, o preconceito, os postulados implícitos, as representações coletivas e as

categorias cognitivas”. No que tange aos historiadores, a imprensa se configura como um

lugar de “aventura interpretativa dos indivíduos sobre seu próprio tempo”. Ao analisar os

discursos expressos na imprensa, Siqueira descreve que “a historicização dos atos de fala

realizados por meio dos jornais expõe não só as intenções fundadoras do discurso e seus

significados, mas também os efeitos imprevistos da realidade, que abrem fissuras na ordem

que os textos tentam construir”36.

Maria Helena Capelato auxilia de modo significativo os estudos sobre a história da

imprensa no Brasil e sobre a reflexão teórico-metodológica que envolve o trabalho com

impressos. Ao estudar a denominada grande imprensa em São Paulo, em especial, o jornal O

Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, aponta caminhos interessantes para o trabalho com a

mídia impressa. Destaca a riqueza dos periódicos na construção e reflexão dos fenômenos

35 NEVES, L. M. B. P; MOREL, M; FERREIRA, T. M. B. da C., História e Imprensa: representações culturais e

práticas de poder, p. 10. 36 SIQUEIRA, C., Sensacionalismo e Retórica Política em Última Hora, o Dia e Luta Democrática no Segundo

Governo Vargas (1951-1954), p. 423.

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históricos, bem como os cuidados e as precauções necessárias ao pesquisador no tratamento

desse tipo de fonte.

A autora segue a perspectiva de que os periódicos são fontes valiosas para se

compreender o passado e a dinâmica dos sujeitos e grupos ligados diretamente e

indiretamente com a produção do jornal. “A imprensa registra, comenta e participa da

história”. Ela é um dos mananciais mais férteis para o conhecimento do passado, “a imprensa

possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O

periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como

material de pesquisa valioso para o estudo de uma época”37. Nessa direção, em outra obra,

intitulada O Bravo Matutino, escrita em parceria com Maria Lígia Prado, Capelato e Prado

negam a perspectiva de que a imprensa é um “mero veículo de comunicação”, que transmite

os acontecimentos de forma neutra e imparcial, e que se constitui isoladamente da realidade

em que está inserida38.

Tânia Regina de Luca é outra historiadora que colabora no trabalho com periódicos.

Em suas reflexões sobre a “história dos, nos e por meio dos periódicos”, oferece subsídios

interessantes para o estudo com o Jornal Sem Terra39. Assim como todas as fontes, os

periódicos possuem tratamentos específicos. Eles são direcionados a um determinado público

alvo e podem proporcionar muitas armadilhas ao pesquisador, caso ele não esteja

minimamente preparado teoricamente para trabalhá-los. Por que a produção de tal notícia?

Quem produziu? Para quem? Como? Quando? Em que contexto? Quais são as pretensões e

intencionalidades dos discursos? A qual público é direcionado? Estas são indagações

fundamentais na análise dos periódicos.

Outra questão fundamental assinalada por Luca no trabalho com periódicos diz

respeito à “materialidade”, que não tem nada de natural. As preocupações dessa autora vão ao

encontro das perspectivas de Capelato, no sentido de que é necessário criar um método de

análise dos jornais, no qual o conhecimento teórico da natureza da fonte minimizará o risco de

o pesquisador reproduzir apenas os discursos contidos no periódico. Segundo Capelato,

“conhecer a história através da imprensa pressupõe um trabalho com método rigoroso,

37 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil, p. 13. 38 CAPELATO, M. H; PRADO, M. L. O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no jornal O Estado de São

Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. 39 LUCA, T. R. de., História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas.

São Paulo: Contexto, 2005. p. 111-153.

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tratamento adequado de fonte e reflexão teórica. Sem esses ingredientes corre-se o risco de

repetir para o leitor, aliás, sem o charme do jornal, a história que ele conta”40.

Torna-se necessário não apenas descobrir se as notícias são verdadeiras ou falsas, mas

também problematizar as circunstâncias que a envolvem, uma vez que as notícias não estão

isoladas de um contexto histórico. Maurice Mouillaud apresenta discussões significativas

acerca da produção de informações pelos jornais41. Ele parte do pressuposto de que os

periódicos devem ser lidos para além daquilo que está explícito, posto que as informações

podem ser apenas uma “parte da sombra”, e que, nos discursos, pode haver diversas relações

de interesses e tensões, tanto políticas, econômicas, sociais e ideológicas. Ao se preocupar

com a produção da notícia jornalística, Mouillaud debruça-se sobre meandros que envolvem a

construção, a distribuição e a recepção do jornal; destaca que este se fundamenta nos

acontecimentos e fatos do presente. Para tanto, os discursos produzidos têm intencionalidades,

criam sentidos para os acontecimentos, de forma coerente e ordenada, a fim de alcançar os

resultados desejados42. Por meio do jornal, muitas vezes, as experiências históricas passam a

ser domesticadas e os discursos dignos de serem publicados são resultados de acordos,

implícitos e explícitos social, econômica e politicamente.

Na tese, em vista de uma perspectiva metodológica, os editoriais do Jornal Sem Terra

são o cerne das análises. A escolha dos editoriais se justifica porque esse espaço é exclusivo

da Direção Nacional, que o utiliza para falar em nome do MST. Por meio dos editoriais, a

Direção Nacional do Movimento se posiciona e expressa representações, especialmente

relativas à figura de presidentes, sobre diversos assuntos, os quais, sua maioria, são

direcionadas às políticas e ações dos governos. Ressalta-se que, em outras seções do jornal, a

organização do Movimento também constrói representações sobre presidentes e governos.

Essa opção metodológica não anulou a possibilidade de se recorrer a notícias e artigos

publicados no interior do periódico. É importante salientar que a recepção das representações

construídas no Jornal Sem Terra não foi foco da pesquisa. Sobre isso, lembra-se a

importância desse tipo de estudo e a carência de trabalhos que apontam para a questão da

recepção relativamente aos discursos dos periódicos.

40 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil, p. 23. 41 MOUILLAUD, M. A informação ou a parte da sombra. In: PORTO, Sérgio D. (Org.). O Jornal: da forma ao

sentido. 2ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 37-47. 42 MOUILLAUD, M. A crítica do acontecimento ou fato em questão. In: PORTO, Sérgio D. (Org.). O Jornal: da

forma ao sentido. 2ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 49-83.

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Em entrevista, os editores do Jornal Sem Terra salientaram que os editoriais eram de

responsabilidade da Direção Nacional do MST. Débora Lerrer diz: “sempre foram”43. Em

cada edição, algum representante da Direção Nacional ficava responsável por escrever o

editorial. Sobre os editoriais, Igor narra que:

O editorial é a mensagem política do MST. É a mensagem que nós queremos

que a nossa militância receba e que isso vai contribuir na sua ação política.

Então, a responsabilidade do editorial é da Direção Nacional do MST. É

sempre um companheiro da Direção, varia bastante de quem escreve,

depende muito do tema, depende muito da discussão. Mas é sempre um

debate que nós queremos propor que a nossa militância faça e que é um

debate importante na constituição e consolidação e nos rumos do

Movimento44.

Os editoriais, conforme apontado, refletem as concepções políticas e ideológicas da

Direção Nacional do MST. Em relação ao estudo de editoriais, destaca-se o trabalho de Maria

Helena Capelato e Maria Lígia Prado. O livro das autoras, intitulado O Bravo Matutino, é a

fusão de suas dissertações de mestrado, defendidas na Universidade de São Paulo (USP), em

1974. Essa obra foi profícua como referência teórico-metodológica para a análise do Jornal

Sem Terra. As autoras examinaram editoriais do jornal O Estado de São Paulo, entendendo-

os como a expressão daquilo que o grupo que comandava o jornal queria dizer. Isto é, um

editorial nunca é escrito de forma deslocada de pensamentos e ideologias de seus produtores e

grupos a ele ligados.

Os editoriais foram entendidos pelas autoras como “formadores de opinião”. Os

representantes do jornal os produziam para atuar no cenário político da época e utilizavam o

periódico para fomentar um projeto idealizado de Brasil e São Paulo. No jornal, era erigido

um projeto político, ancorado nas concepções políticas e ideológicas de seus representantes e,

também nos editoriais, evidenciavam-se suas preferências políticas na época45. No jogo

político, os representantes do jornal se posicionavam de um lado da disputa. No caso, O

Estado de São Paulo era defensor do “liberalismo”, mas daquele que convinha aos interesses

da classe dominante, ou seja, o liberalismo defendido para o Brasil tinha suas especificidades

e ambigüidades: ao mesmo tempo em que era liberal, também era conservador e, por vezes,

autoritário. As autoras trabalharam com os editoriais ao longo do tempo e perceberam as

continuidades e as rupturas dos discursos. Assim, analisaram as ações, reformulações e

43 Débora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012. 44 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 45 CAPELATO, M. H; PRADO, M. L., O Bravo Matutino, p. 23; 30-31; 61-66.

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acomodações do pensamento dos representantes do periódico, indicaram suas permanências,

contradições, e em que medida as mudanças da conjuntura política e econômica (1927-1937)

alteraram a linha de reflexão do jornal.

Em relação ao estudo proposto na tese, a partir dos editoriais do Jornal Sem Terra, há

que mencionar que charges eram parte constitutiva importante desses editoriais; e que sobre

elas também são direcionados registros e análises. Compreende-se que as charges não estão

deslocadas das representações construídas pelos discursos escritos. Muito pelo contrário, elas

são portadoras de representações que vão ao encontro do que está escrito nos editoriais e, de

maneira geral, em notícias e artigos que fazem parte do jornal.

No caso do Jornal Sem Terra, as charges sempre acompanharam os seus editoriais,

exceto, a partir de julho de 2007. O que poderia ter gerado o desaparecimento das charges, em

especial, nos editoriais? Seria o estilo de editoração dos novos editores do jornal? A Direção

Nacional do MST resolveu aleatoriamente não publicar mais charges? Seria para a redução de

custos do periódico? As entrevistas efetuadas com Igor Felippe Santos e Joana Tavares,

editores do jornal a partir de 2007, sinalizam que “não houve uma definição política de parar

com a publicação das charges junto aos editoriais”46. Isto é, não houve discussão entre os

envolvidos na produção do jornal em torno da publicação ou não das charges. Interpreta-se

que a não publicação, a partir de 2007, estava associada, sobretudo, ao estilo e à avaliação dos

profissionais que passaram a compor a editoração.

A fala de Igor revela que, nesse período, havia uma tensão na produção do jornal, no

sentido de que este tinha que passar por transformações em relação a tempos pretéritos. As

mudanças eram pautadas no estilo de editoração a ser adotado. Nesse processo, como disse

Igor, as charges “caíram”. Conforme o entrevistado, “na verdade, acho que ninguém era

contra as charges, mas também ninguém fazia muita questão. E, elas caíram. É algo muito

natural”47. Igor não interpreta a retirada das charges como um motivo político, nem como

discordância no interior do MST, pois tenta evidenciar que o trabalho no jornal era

harmonioso, decidido coletivamente. Contudo, deixa pistas de que não gostava muito das

charges e, para quem editorava o jornal, isso tinha um peso significativo. Para Igor, as

fotografias, como recursos imagético, eram mais eficazes para os propósitos e objetivos do

MST. Mesmo reconhecendo a importância e o valor das charges, demonstra que era melhor a

46 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio eletrônico), 2012. 47 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012.

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utilização de fotografias no Jornal Sem Terra. Em determinado momento chega a dizer: “a

idéia é trabalhar com fotos”48.

Cumpre pontuar que, na tese, parte-se do pressuposto de que as charges, assim como

as imagens, configuram-se como “evidência histórica”49. Autores como Boris Kossoy50,

Gisèle Freund51, Ana Maria Mauad52, Maria Ciavatta53 e Alberto Manguel54, ao trabalhar com

fotografias (exceto Manguel que trabalhou com pinturas em quadros), foram relevantes para

compreender questões teórico-metodológicas que envolvem o estudo de imagens,

consequentemente, das charges.

De maneira geral, esses pesquisadores compreendem as imagens como um fragmento

do passado, ou como fração do real, e não como se elas fossem a própria experiência

histórica. As imagens, como uma construção efetuada por alguém, ou por algum grupo, visam

a representar o mundo, ou a criar representações sobre o mundo. Toda imagem é histórica,

assim, para o historiador, o estudo das imagens é o estudo da historicidade destas imagens.

Nesse sentido é que, em diversos trabalhos de história há críticas à utilização de imagens

apenas como ilustração, uma vez que as fontes imagéticas não estão isoladas do contexto

sócio-político e cultural em que foram produzidas, pensadas e investidas de sentidos.

Boris Kossoy entende a imagem como um micro-cenário do passado, em que sua

construção envolve uma gama de relações, intencionalidades e tensões. Ela não reúne em si só

o conhecimento do passado. O autor destaca que, na análise de imagem, se fazem necessárias

informações de outras naturezas para sua compreensão e interpretação55. Não basta coletar a

imagem e dizer que seu conteúdo já é a experiência histórica. Assim, necessita-se procurar

outras fontes que possam trazer informações sobre os registros em dado momento histórico.

Desse modo, outras pistas e formas de conhecimento são imprescindíveis para sua

compreensão crítica e contextualizada. As imagens, encaradas como

“documento/monumento”, necessitam passar por um processo de análise crítica. É preciso

fazer perguntas às imagens, pois elas foram criadas com intencionalidades, carregadas de

sentidos, aparentemente não visíveis.

48 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 49 BURKE, P., Testemunha Ocular: história e imagens, p. 11. 50 KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2ª Edição Revista. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 51 FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. Trad. Pedro Miguel Frade. 2ª Ed. Lisboa: Vega, 1995. 52 MAUAD, A. M., Através da Imagem: Fotografia e História Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, nº. 2, p.

1-15, 1996. 53 CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica (Rio de Janeiro,

1900 - 1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 54 MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 55 KOSSOY, B., Fotografia & História, p. 78.

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As imagens contidas nas diversas publicações do MST são utilizadas para afirmar

aquilo que os militantes e dirigentes visualizam para o grupo. Elas denotam suas visões de

mundo e práticas que o Movimento quer que seus integrantes desenvolvam. Sendo assim, as

imagens são utilizadas para reafirmar os discursos produzidos pelo Movimento. Nesse

sentido, acredita-se que “não haveria realidade fora dos discursos que a revelam”56.

Mas afinal, o que são charges? Entre os pesquisadores que estudam essa modalidade

discursiva, existem algumas definições técnicas. O termo charge deriva da palavra francesa

charger, que significa carregar, exagerar. Rosildo Raimundo de Brito chama a atenção para a

problemática de caracterização do que seria charge, haja vista que, no jornalismo, é

considerada uma modalidade caricatural, possibilitando interpretações distintas57. Por vezes,

as charges são interpretadas semelhantemente à caricatura e ao cartum. Não existe uma

interpretação unívoca do que seriam cada uma, nem o que seria a fronteira que separa uma de

outra. Há diversas interpretações sobre essa questão. Em seu trabalho sobre “charge

jornalística”, Carlos Edson Romualdo subsidia essa discussão. O autor considera o cartum

como uma representação genérica e atemporal; a charge como a representação crítica de

determinado fato, personagem ou acontecimento, geralmente político e com limitação

temporal; e a caricatura, uma representação exagerada, proposital, partindo das características

mais alusivas dos indivíduos ou fatos58.

De acordo com José Marques de Melo, no universo jornalístico, caricatura e charge

estão imbricadas, ou seja, as características de ambas estão nas representações chargísticas.

Para tanto, define o que seria uma e outra: a) caricatura – “retrato humano que exagera ou

simplifica traços, acentuando detalhes ou acentuando defeitos. Sua finalidade é suscitar risos,

ironia. Trata-se de um retrato isolado”; b) charge – “crítica humorística de um fato ou

acontecimento específico. Reprodução gráfica de uma notícia já conhecida do público,

segundo a ótica do desenhista e que, tanto pode se apresentar através de imagens, quanto

combinando imagem e textos (títulos, diálogos)”59. Cabe destacar que as charges não são

produzidas apenas sob a ótica do desenhista, conforme disse Melo, mas também sob a ótica

do grupo ligado ao periódico em que a charge é publicada. As charges podem ser

encomendadas. As charges produzidas no Jornal Sem Terra se caracterizam em sua essência

56 MAUAD, A. M., Através da Imagem: Fotografia e História Interfaces, p. 4. 57 BRITO, R. R. de. A Opinião no Riso: uma análise da intertextualidade na construção da significação de

charges na imprensa paraibana. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Ciências da Sociedade).

Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Campina Grande. 58 ROMUALDO, C. E., Charge Jornalística: intertextualidade e polifonia, p. 21. 59 MELO, J. M. de., Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro, p. 167-68.

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como elementos chargísticos e caricaturais, pois elas têm o humor, a política e a representação

exagerada dos fatos como dimensões preponderantes.

Na visão de Rozinaldo Miani, a charge é herdeira da caricatura e deve ser entendida

“enquanto uma representação humorística, caricatural e de caráter político, satirizando um

fato específico”60. O desenho, a linha, o espaço, o plano, o ponto de enfoque, o volume, a luz,

a sombra, o movimento, a narrativa, o balão, a onomatopéia e o texto verbal são elementos

constitutivos e que estruturam a charge. Por ora, esses elementos, necessariamente, não

precisam aparecer todos juntos na charge. Miani salienta outros elementos característicos da

charge: o “humor”, através da linguagem iconográfica; a “efemeridade”, isto é, a charge é

erigida para destacar determinado fato ou momento; e a “apresentação física”, em que o

artista recorre geralmente a um quadro para abordar o assunto (raramente o chargista recorre a

dois ou mais quadros na construção da charge), todavia, a charge não se restringe apenas a um

quadro61.

Outros aspectos fundamentais que acompanham as charges são o humor, a ironia e a

sátira. As charges, além de seu conteúdo político, objetivam causar risos nos leitores. O

discurso humorístico explorado pelo chargista, que se baseia na ironia e na sátira, por vezes,

se reveste de sentido contrário. Ou seja, diz uma coisa, quando, na verdade, o sentido

implícito é outro. Conforme Luís Fernando Lopes, a ironia é utilizada para produzir efeitos de

sentido. No seu entender, “a ironia se refere a uma figura de pensamento que nos leva a

sugerir, numa palavra, numa expressão ou numa frase, algo diferente do que elas literalmente

designam”62. Para Brito, a charge é a representação máxima da ilustração satírica, em que o

chargista trabalha com a dualidade do “sério” e do “ridículo”. Isto é, as representações

contidas nas charges têm as dimensões da crítica e do humor que, por vezes, ridicularizam

aquilo que está sendo representado63. As charges podem ser produzidas a partir de diversos

fatores: sociais, políticos, econômicos ou culturais. No Jornal Sem Terra, as charges que

acompanham os editoriais são, sobretudo, de cunho político e os presidentes são os alvos das

representações.

O estudo das charges no Jornal Sem Terra possibilitou avaliar que elas não foram

inseridas no periódico apenas como forma de distrair os leitores. Elas visam precipuamente a

60 MIANI, R. A., Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 3. 61 MIANI, R. A. Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 3-4. 62 LOPES, L. F., Charge Jornalística: estudo do discurso chargístico da Folha de São Paulo veiculado no

período da crise deflagrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), p. 59. 63 BRITO, R. R. de. A Opinião no Riso: uma análise da intertextualidade na construção da significação de

charges na imprensa paraibana, p. 29.

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alertar, denunciar, levar à reflexão. Não obstante, também se caracterizam, seguindo

concepção de Miani, como “instrumento de persuasão”, “intervindo no processo de definições

políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor, e criando um sentimento

de adesão que pode culminar com um processo de mobilização”64. Nas charges, o elemento

cômico é revestido de crítica analítica; carrega em si o humor, mas tem intenso conteúdo

discursivo crítico sobre aquilo que quer retratar.

Outro aspecto a acrescentar é que sua forma de expressão é eminentemente

“dissertativa”. As charges buscam expor idéias, narrar fatos, acontecimento, de acordo com o

autor e/ou grupo a que está vinculada. É possível dizer que a charge se configura como um

texto iconográfico, com objetividade, sentidos e intencionalidades perante os seus receptores.

Sua construção implica, entre outros objetivos, comunicar, levar à reflexão, construir

representações para os receptores. Por essa perspectiva, as charges não podem ser

visualizadas como simples diversão ou humor, pois são representações de experiências

históricas, elaboradas a partir de concepções e olhares de determinados grupos.

Para se compreenderem as charges torna-se necessário conhecer também o trabalho do

chargista. O chargista interage com a existência de significações não manifestas, mas

subtendidas, “de forma que isso nos obriga a recuperar toda uma série de informações para

melhor compreender a gama possível de significados”65. Sob essa perspectiva, a compreensão

das charges publicadas nos periódicos, sob análise, exige que se recorra ao entendimento de

determinadas questões que podem estar subtendidas. Em síntese, há que se conhecer o

contexto, o momento histórico em que as charges foram produzidas; identificar os receptores,

a quem eram direcionadas, e ainda as críticas implícitas na imagem. Desse modo, na análise

das charges, não é possível isolá-las de outras informações; é preciso entrecruzar o momento

histórico com a produção da imagem.

No caso do Jornal Sem Terra, verifica-se que, grande parte das charges eram

publicadas nos editoriais. De forma humorada, irônica, crítica e satírica, elas iam ao encontro

daquilo que a Direção Nacional do MST queria representar em cada editorial. Não apareciam

deslocadas do contexto e nem dos discursos produzidos.

Nesse sentido, para compreensão das charges como fonte histórica, tornou-se

relevante indagar: quem era o autor da charge? O chargista era do MST? As charges eram

encomendadas? Onde e em que contexto foram produzidas? Quais as relações do chargista

64 MIANI, R. A. Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 4. 65 LOPES, L. F., Charge Jornalística: estudo do discurso chargístico da Folha de São Paulo veiculado no

período da crise deflagrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), p.49.

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com o MST? Quais eram os conteúdos iconográficos e iconológicos revelados nas charges?

Como ocorria o processo de produção das charges publicadas no Jornal Sem Terra?

A produção das charges publicadas no Jornal Sem Terra era realizada por chargistas

considerados amigos do MST e simpatizantes das lutas do Movimento. Isto é, eram

profissionais que colaboravam com o Movimento por compartilharem de suas lutas e projetos.

Também, existiam algumas colaborações esporádicas de ilustradores que integravam o corpo

de militantes da organização66. Os nomes mais recorrentes nas charges, a partir do ano de

1984, eram os de Celso Schoreder (1984-1985), Corvo (1984-1985), Vilachã (1985), Bira

(1985-1987), Falkon (1987), Brito (1987-1989), Rubens (1987-1988), Elda Broilo (1989),

Hércules (1991-1993), Luiz Carlos dos Santos “Luscar” (1993-2002), José Alberto Lovreto

“JAL” (1993-1995), Gilberto Maringoni (2002) e Márcio Baraldi (1998-2007).

As charges de Luscar67 e Márcio Baraldi68, por estarem inseridas na temporalidade da

problemática da tese, foram relevantes para o entendimento das representações do MST sobre

os presidentes FHC e Lula. Foram analisadas setenta e nove imagens – dessas, sessenta e seis

são charges e treze são capas do jornal e fotografias. Destaca-se que as publicações das

charges tinham o aval dos editores e da Direção Nacional do MST. Nessa perspectiva, elas

estavam de acordo com aquilo que a organização do Movimento queria representar aos seus

integrantes. No periódico não havia um profissional especializado para criar as charges. O

editor Igor Felippe Santos salienta que “tinha um chargista que prestava serviço pra nós”69.

As charges eram produzidas e o MST pagava o trabalho dos profissionais com uma

contribuição simbólica. Conforme Cristiane, “a gente pagava uma coisa simbólica, não

lembro exatamente o valor. Ele não fazia de graça, mas também não cobrava o preço de

mercado”70. Por mais que não se cobrasse o preço de mercado, havia uma relação comercial

na produção dessas charges. Mas, essa relação era mediada pela proximidade entre chargistas

66 No Jornal Sem Terra, muitas charges não eram assinadas, o que dificultou um pouco o trabalho. 67 Luiz Carlos dos Santos, conhecido profissionalmente como Luscar. Iniciou sua carreira como cartunista em

fins da década de 1960 na imprensa paulista. Nas décadas seguintes, se consolidou como um profissional

talentoso e reconhecido nacionalmente no meio dos cartuns, sobretudo, por sua participação no Pasquim. Dentre

suas criações e trabalhos, destaca-se o livro Cornélius (1970) e a série Dr. Baixada (1980). 68 Marcio Baraldi é cartunista profissional desde 1983, quando iniciou sua carreira no Sindicato dos Químicos do

ABC. É chargista no Sindicato dos Bancários de São Paulo há 12 anos. Também colabora com o Metroviários,

Médicos, Psicólogos, Bancários do ABC, Sindsaúde, Apcef, Apeoesp, SEEL-SP, entre outros. Publica trabalhos

mensalmente nas revistas Rock Brigade, Roadie Crew, Metalhead, Tattoo, Dynamite, Sem Fronteiras, Viração,

Educação e Família, além do jornal Brasil de Fato. Foi premiado com o prêmio Vladimir Herzog de Direitos

Humanos no ano de 2002 e, com o prêmio Ângelo Agostini, em 2003. No site de Márcio Baraldi é possível

visualizar as charges que ele produziu ao longo de sua carreira, sendo que muitas delas foram publicadas no

Jornal Sem Terra, entre os anos de 1998 e 2007. Ver: www.marciobaraldi.com.br. 69 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 70 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012.

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e MST. O fato de não cobrarem o valor de mercado para o MST era pautado na simpatia dos

chargistas para com as lutas e ações do Movimento. A narrativa de Cristiane vai ao encontro

do que outros editores entrevistados disseram e permite compreender o processo e a dinâmica

de produção das charges nos editoriais do jornal:

Acho que era bem importante, tanto que o editorial era produzido, eu

mandava o texto pro Baraldi e aí ele pegava e fazia. Às vezes acontecia de

falar: “ah, Baraldi ficou meio assim, vamos fazer outra, será que não rola

uma outra coisa, eu pensei assim e assado”. A gente trocava umas ideias, ou

não, às vezes já era, porque às vezes a charge chegava 10 horas da noite, no

fechamento do jornal. Mas, acho que é bem importante a presença da

ilustração, da charge71.

Percebeu-se nas entrevistas com os editores que eles valorizavam o recurso imagético,

o uso das charges no jornal. Para Nilton, a charge era importante no jornal e auxiliava na

compreensão dos discursos escritos. A escrita e a imagem eram pensadas e publicadas com o

propósito de trazer mensagens para os leitores e criar representações a partir da visão de

mundo do MST. A imagem auxiliava no entendimento dos temas tratados. Segundo Nilton:

Nós procurávamos associar sempre o conteúdo com a charge. Normalmente

a gente pedia, os companheiros mandavam, e falava: “oh, vamos tratar de tal

tema”. Enfim, pra nos auxiliar no entendimento da mensagem que nós

queríamos passar para os companheiros, para a militância. Sempre foi muito

aceita, muito bacana, muito bem feita as ilustrações e nos ajudaram bastante

nesse contexto72.

Observou-se que, nos editoriais, as charges iam ao encontro daquilo que estava escrito.

Em um ou mais quadros, sintetizava-se o que o editorial queria expressar. Cristiane pontua

que as charges poderiam comunicar “diretamente”, sobretudo, em relação às pessoas que não

tinham muitos estudos e dificuldades em entender a linguagem escrita. A charge se

caracterizava como um componente pedagógico. Elas ajudavam “muito a entender”73, como

disse Nilton. Sobre as charges, Cristiane sublinha que “você olha, de repente, você nem

precisa ler muito o editorial para saber que mensagem se quer passar com aquilo”74.

Como se percebe, as charges possuem uma natureza que as caracteriza, e o

pesquisador precisa conhecer suas especificidades, no intuito de ampliar seus horizontes de

71 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 72 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 73 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 74 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012.

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interpretação. As charges se utilizam de recursos visuais e linguísticos. Desse modo, o seu

caráter artístico também se transforma numa prática política, ligada a determinado grupo,

expondo a crítica sobre determinadas questões. Nesse sentido, ela também tem caráter

ideológico. As charges sempre lidam com o fato de como um grupo vê o Outro, e suas ações.

No Jornal Sem Terra, acompanhando os editoriais, as charges representavam o como a

organização do MST compreendia determinadas ações dos grupos, sobretudo a dos

presidentes brasileiros, assim como as ações dos governos desses presidentes. Isso ratifica ser

a charge revestida de significação política e ideológica. O humor é latente nos traços, mas seu

potencial discursivo transcende esse aspecto. Para Laura Nery, as charges publicadas na

imprensa, a partir do seu conteúdo discursivo ideológico, possuem “poder de

personificação”75. Isto é, capacidade de combinar metáforas, representações e símbolos

através dos traços.

Rozinaldo Miani entende a charge como uma prática discursiva “reveladora de idéias

e expressão ideológica de uma determinada posição política que está no exercício do poder”76.

O autor entende que toda linguagem e discurso são ideológicos e construídos social e

historicamente, por meio das diversas relações sociais dos grupos. “Todo signo é ideológico,

caracterizado com uma realidade ideológica, que tem sua materialidade e que se constrói no

ambiente social da comunicação, pela interação verbal”77. Nessa direção, entende-se que as

representações do MST sobre os presidentes brasileiros são de caráter ideológico, a partir das

convicções políticas, sociais e culturais da Direção Nacional do Movimento.

Por ser um discurso ideológico, as charges se transformam também num discurso

persuasivo. Isto é, objetiva convencer os seus receptores, a partir das ideias e concepções do

grupo que as criou. Essa perspectiva de análise é pertinente, pois o MST, por meio de seu

jornal, intenta persuadir seus integrantes e simpatizantes, de maneira a fazê-los acreditar que

os discursos (escritos e imagéticos) produzidos no impresso são as experiências históricas

efetivamente vividas.

Mais que informar, os discursos visam a agir nas experiências históricas, e o MST faz

de seu discurso um ato persuasivo. Ao se tornar característica no interior dos periódicos, a

charge conquista espaço como material de opinião e revela “a sua potencialidade política e

75 NERY, L. Charge: cartilha do mundo imediato. Revista Semear. Rio de Janeiro/PUC, v. 12, nº 7, novembro de

2001. s/p. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/7Sem_10.html. Acesso em: 08 de

setembro de 2011, às 10h. 76 MIANI, R. A., Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 9. 77 MIANI, R. A. Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 6.

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ideológica enquanto manifestação de linguagem”78. A charge se torna fonte importante para

analisar experiências passadas, haja vista que sua produção é marcada por acontecimentos

históricos de determinada época, inserida nas relações sociais, políticas, econômicas ou

culturais de determinados grupos. Assim, toda charge é portadora de uma memória histórica.

Compreende-se a charge como construtora de representações, caracterizando-se como

elemento iconográfico e iconológico, revestida de linguagem verbal e não verbal. Para tanto, a

charge no Jornal Sem Terra, assim como o texto escrito, caracteriza-se como uma prática

discursiva carregada de significação política e ideológica. Muito mais que um recurso

humorístico e lúdico, a charge intenta personificar e persuadir. É necessário ressaltar que as

charges têm sido estudadas por diversos pesquisadores das mais variadas áreas do

conhecimento, a partir de perspectivas teórico-metodológicas distintas, por exemplo, os

estudiosos dos campos da Linguística e da Semiótica. Como fontes, as charges foram tratadas

a partir de seu contexto histórico e das condições em que foram pensadas e construídas.

Enfim, objetivou-se entender sua historicidade, intencionalidades e representações.

Acrescenta-se que o método de análise desenvolvido por Boris Kossoy foi relevante

para a compreensão das charges publicadas no Jornal Sem Terra e vai ao encontro das

considerações desenvolvidas na tese. O autor propõe um método interpretativo que consiste

na “análise iconográfica e interpretação iconológica”79. A primeira corresponde à leitura do

conteúdo, dos traços, daquilo que está visível, os detalhes. Na interpretação iconológica

exige-se uma leitura para além do conteúdo visível, permitindo a compreensão dos

significados, as intencionalidades, enfim, aquilo que não está explícito na imagem. Neste

processo, a análise iconográfica e a interpretação iconológica ocorrem simultaneamente.

É preciso observar nas charges os personagens, as cenas, os elementos surpresas, a

dramaticidade, a harmonia, enfim, todos os detalhes de sua composição. Os detalhes nas

charges são pistas para a interpretação dos sentidos que são sugeridos pela ilustração. Ao se

mencionar a importância dos detalhes nas imagens recorre-se às reflexões de Carlo Ginzburg,

que escreve sobre a emergência de um modelo epistemológico que cresceu silenciosamente

nas Ciências Humanas e se consolidou no final do século XIX. Trata-se do “paradigma

indiciário”, ou “método indiciário”, do italiano Giovani Morelli. Este método é interessante

para a pesquisa histórica, pois faz pensar nos pormenores, elementos geralmente

negligenciados ao primeiro olhar. Coisas “insignificantes”, detalhes, vestígios, muitas vezes

78 MIANI, R. A. Charge: uma prática discursiva e ideológica, p. 5. 79 KOSSOY, B., Fotografia & História, p. 97-121.

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são imprescindíveis para melhor entendimento das fontes. De acordo com Ginzburg “se a

realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinas, indícios – que permitem decifrá-la”80.

Assim, ler imagens é uma atividade desafiadora. Tal afirmativa faz lembrar Alberto

Manguel quando diz “somos essencialmente criaturas de imagens, de figuras”. O autor

considera as imagens fontes relevantes para informar sobre as experiências históricas. Nesse

sentido, qualquer imagem pode ser lida, interpretada. Ao comparar as imagens com as

palavras, destaca que estas fluem constantemente, diferentemente das imagens. Elas se

apresentariam à nossa consciência instantaneamente, encerradas em sua moldura81. Sobre

isso, o autor está pensando na parte física da imagem, pois os sentidos e os significados dos

traços transcendem suas molduras.

Não se vê uma pintura, uma imagem em seu estado fixo, aprisionada naquilo que a

moldura pretende limitar. O pesquisador necessita visualizar a imagem traduzida nos termos

de sua própria experiência. Para tanto, precisa ter conhecimento prévio acerca do que ela

busca expor, isto é, quais representações pretende construir. É necessário ir além dos traços,

ultrapassar a moldura, por vezes, seus sentidos e significados. “Misteriosamente, toda imagem

supõe que eu a veja”82. As imagens precisam ser encaradas como “narrativa” e lidas

criticamente.

Indo ao encontro das reflexões de Ginzburg, Manguel chama a atenção para os

detalhes expressos nas imagens. A cada olhar para uma imagem, é possível ser surpreendido

por detalhes reveladores, haja vista que nem todas elas oferecem formas tão nítidas e exatas,

cabendo ao pesquisador interpretar os significados contidos além da moldura. Visualizando a

imagem como uma “narrativa” e como um “enigma”, Manguel ressalta a imagem também

como “compreensão”, no sentido de que ela precisa ser lida e compreendida83. A imagem

pode ser misteriosa, contudo, necessita de um olhar atento, em todos os detalhes que levaram

à sua construção, assim, o intuito de ler uma imagem é compreendê-la.

A partir das reflexões dessa introdução, nota-se que o trabalho com as fontes não é

simples. Analisar as representações construídas pelo MST sobre os presidentes FHC e Lula,

por meio do Jornal Sem Terra, é uma oportunidade de contribuir para o entendimento dos

caminhos e descaminhos do Movimento no cenário nacional, assim como uma forma de

compreender como esse movimento social, que se tornou referência em toda a América

80 GINZBURG, C., Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história, p. 177. 81 MANGUEL, A., Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio, p. 21-25. 82 MANGUEL, A., Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio, p. 27-137. 83 MANGUEL, A., Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio, p. 27-137.

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Latina, se relacionou e se posicionou sobre as ações políticas, econômicas e sociais

empreendidas por tais governos. Entender as representações sobre os presidentes FHC e Lula

auxilia também a compreensão sobre como o MST produziu seus discursos e expôs suas

ideias e concepções políticas e ideológicas ao longo do tempo. O Movimento, que ainda é

atuante no Brasil, permanece como fruto e reflexo da sociedade brasileira em seu fazer-se

histórico.

Os capítulos...

A tese foi estruturada em quatro capítulos. A partir da problemática central do

trabalho, objetivou-se evidenciar as representações do MST sobre os presidentes brasileiros

ao longo do período histórico, em especial, face aos presidentes FHC e Lula. Nessa

perspectiva, por ser a fonte privilegiada da pesquisa e ser entendido como um instrumento

político do Movimento, o primeiro capítulo da tese, intitulado MST e Jornal Sem Terra:

histórias entrelaçadas, revela elementos que marcam a historicidade do Jornal Sem Terra e a

do MST, relacionando-os ao contexto histórico em que nasceram e destacando que suas

histórias estão entrelaçadas. Assim, reflete-se sobre a produção das notícias, distribuição,

editores, participação da Direção Nacional do MST na produção do periódico, e sobre como o

Movimento utiliza seus meios de comunicação, sobretudo, o Jornal Sem Terra como

instrumento político de luta pela terra.

Presidentes Brasileiros: alvos privilegiados das representações do MST é o título do

segundo capítulo. Num primeiro momento o capítulo aborda os conceitos representação e

ideologia, no intuito de elencar as contribuições desses conceitos para a análise do Jornal Sem

Terra, em especial, sobre a problemática central da tese, e no de introduzir as perspectivas de

análise face às representações sobre os presidentes FHC e Lula. Num segundo momento, o

capítulo se dedica a compreender as representações face aos presidentes José Sarney,

Fernando Collor de Mello e Itamar Franco, demonstrando como o Movimento estruturou suas

representações sobre esses presidentes e como se posicionou diante das ações de seus

respectivos governos.

No terceiro capítulo – “O Presidente das Elites”: tensões e lutas por representações

no governo FHC – analisam-se representações do MST sobre o presidente FHC ao longo dos

seus dois mandatos no Palácio do Planalto. O capítulo evidencia tensões e lutas por

representações que envolveram o Movimento e as ações do governo FHC. Põe em evidência

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também o modo de construção de personificação do presidente pela Direção Nacional do

MST – o inimigo da reforma agrária e representante das elites no posto máximo do Executivo

Federal. Para tanto, reflete sobre algumas características do governo e sobre a relação tensa e

conflituosa entre MST e FHC.

No quarto e último capítulo, denominado “O Presidente do Povo”: entre a esperança

da reforma agrária e as frustrações com o governo Lula, avalia-se, num primeiro momento, a

proximidade histórica entre Lula e MST, ainda quando o candidato petista era presidenciável.

Pondera-se sobre o resultado dessa proximidade, marcada pelo compartilhamento de idéias –

Lula é representado pelo Movimento como o “presidente do povo” e a esperança da reforma

agrária. Em seguida efetuam-se algumas questões. Por exemplo: Será que a referida

representação se estendeu até o final dos dois mandatos do governo Lula? O Movimento

apoiou Lula em seus dois mandatos? Como foram as representações do MST sobre Lula em

relação às ações do seu governo na área econômica e no processo de reforma agrária? Será

que o presidente superou as expectativas do MST no que tange à reforma agrária? Essas e

outras indagações foram o cerne das reflexões do capítulo.

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CAPÍTULO I

MST E JORNAL SEM TERRA: HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS

1.1 É preciso (in)formar e solidarizar: o Boletim Sem Terra e as tensões da luta

pela terra

Na história recente do Brasil, a década de 1980 foi significativa para delinear rumos

políticos, econômicos, sociais e culturais do país. No seu transcorrer, a sociedade presenciou a

denominada abertura política, o movimento Diretas Já, a posse do primeiro presidente civil

após o Golpe Militar de 1964, a emergência de diversos e distintos movimentos sociais no

campo e na cidade, greves de operários, criação de partidos políticos, disputas e tensões

envoltas da Assembleia Constituinte, entre outros acontecimentos que se destacaram em

âmbito nacional.

Dentre as novidades do período, os anos de 1980 registraram o nascimento e o

desenvolvimento de um dos maiores e mais representativos movimentos sociais do campo da

segunda metade do século XX – o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –

conhecido nacionalmente pela sigla MST. Anteriormente à sua criação oficial, em janeiro de

1984, no Sul do Brasil, mais especificamente no estado do Rio Grande do Sul, em meio ao

contexto das lutas pela terra, forjou-se um boletim chamado Boletim Informativo da

Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, o Boletim Sem Terra. Em 1984,

com a criação do MST, o boletim passou a ter o nome de Jornal dos Trabalhadores Sem

Terra, mais conhecido como Jornal Sem Terra.

Neste capítulo, o objetivo não é sistematizar a história do MST e a história do Boletim

Sem Terra / Jornal Sem Terra, mas elencar elementos de sua historicidade, relacionando-os à

conjuntura do período em que nasceram, e destacar que suas histórias estiveram entrelaçadas.

Isto é, ao longo do tempo o MST forjou o Jornal Sem Terra e este periódico se tornou, por

sua vez, um importante instrumento político na organização do MST. Por meio de suas

páginas, o Movimento registrou suas lutas, construiu representações sobre diversas questões

políticas, dialogou com seus integrantes e com simpatizantes da luta pela terra. A preocupação

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em recuperar aspectos da historicidade do Jornal Sem Terra está no fato de este impresso ser

a fonte privilegiada da pesquisa. Entender sua produção e papel na organização do

Movimento torna-se elementar para se compreenderem os discursos e as representações

contidas em suas páginas. O Jornal Sem Terra é uma das fontes mais fecundas para a

investigação e a reflexão sobre os meandros que envolvem a organização do MST e a luta

pela terra no Brasil.

Como objeto de estudo, há escassez de trabalhos sobre o Boletim Sem Terra / Jornal

Sem Terra. No que diz respeito ao jornal como fonte, há diversos pesquisadores que se

utilizam desse periódico, mas grande parte o utiliza de forma esporádica, não analisando sua

continuidade ou descontinuidade, assim como as mudanças e permanências dos seus

discursos. Dois autores que buscaram compreender a historicidade do Jornal Sem Terra e o

papel fundamental desse periódico na organização do MST foram Fernando Perli e Antonio

Alves Bezerra. As reflexões desses autores foram fundamentais, em especial, para a

compreensão do jornal analisado.

Em sua dissertação de mestrado, Perli estudou o Jornal dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra, enfocando sua transição de boletim a tabloide84. O autor analisou a condição do

periódico que se marca pelo processo de ter sido um informativo da campanha de

solidariedade aos movimentos regionais de luta pela terra nos estados do Sul do país até ter se

tornado um periódico da organização do MST. O recorte temporal do trabalho compreende os

anos de 1983 a 1987. No doutoramento, Perli investigou as estratégias de divulgação, as

representações e a construção de uma política de comunicação do MST. Analisou não só a

produção do Jornal Sem Terra, mas também a sistematização de outros meios de

comunicação no Movimento (internos e externos) como os Cadernos de Formação, Cadernos

do Educando, Revista Sem Terra, página na internet, dentre outros85. O autor reflete sobre a

constituição dos meios de comunicação no interior do Movimento, sobre como ocorreu a

participação de entidades solidárias na organização, na produção e manutenção destes meios

de comunicação.

Antonio Alves Bezerra, em sua tese, estudou o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra no período de 1981 a 2001 e analisou a trajetória histórica e política do MST, assim

84 PERLI, Fernando. Sem Terra: de boletim a tabloide. Um estudo do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra. Entre a solidariedade e a representação (1983 – 1987). 2002. 200 f. Dissertação (Mestrado em História) –

Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2002. 85 PERLI, Fernando. A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação – estratégias, representações e política

de comunicação do MST (1981-2001). 2007. 333 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual

Paulista – UNESP, Assis.

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como a de suas lideranças. Para tanto, os trabalhadores rurais sem-terra foram observados

enquanto sujeitos históricos na luta pela terra, e não enquanto vítimas dos processos de

exclusão aos quais foram submetidos historicamente. Nesse sentido, o autor reflete sobre as

principais temáticas abordadas pelo jornal ao longo do período analisado por meio dos

editoriais, artigos de opinião, entrevistas, notícias e imagens veiculadas no periódico86. Em

sua tese, Bezerra compreende o jornal não apenas como um objeto de comunicação no MST,

mas sim como um instrumento de luta do Movimento para seu projeto de reforma agrária e

justiça social para o campo e cidade.

O nascimento do Boletim Sem Terra ocorreu em maio de 1981 e sua produção,

inicialmente87, esteve associada à luta do acampamento Encruzilhada Natalino, na região de

Sarandi, no estado do Rio Grande do Sul. No mês de dezembro de 1980, um grupo de famílias

de trabalhadores rurais88, expropriadas de suas terras devido à “mecanização da agricultura,

ao consequente processo de concentração da propriedade e da política agrícola que se voltava

para a agroindústria de exportação”89, acampou em Sarandi, com o intuito de chamar a

atenção da sociedade e pressionar o Estado para que fizesse desapropriação de alguma área de

terra para assentá-las.

Sobre a história de luta e resistência deste Acampamento, Telmo Marcon explicita

que, de um pequeno núcleo embrionário de sujeitos90 sem-terra, o Encruzilhada Natalino

contava, no final de julho de 1980, com mais de 600 famílias91. A organização e a resistência

do Acampamento representavam, no contexto e no bojo dos embates da luta pela terra, uma

afronta ao Estado. É possível dizer que tal luta se configurava para além de um conflito local

86 BEZERRA, Antonio Alves. O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001. 2011.

312 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 87 Em seu início, o Boletim não tinha regularidade na sua produção. As edições eram publicadas de acordo com a

demanda e o acúmulo de materiais recebidos, conforme será tratado adiante. 88 Na tese, ao se fazer menção às ações dos sujeitos que lutaram pela terra, utiliza-se o termo trabalhadores

rurais, e não o termo camponês. Ao se optar por essa noção, não se nega a importância política que agrega o

conceito camponês, sistematizado principalmente por José de Souza Martins em: Os camponeses e a política no

Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo histórico. 2ª ed. Petrópolis: Vozes. 1983. No MST, em

vista da diversidade de sujeitos a compô-lo, a dimensão de trabalhadores rurais e camponeses é evocada

simultaneamente. A partir da década de 1990, a própria organização do Movimento vem retomando a dimensão

política do termo camponês. Em contrapartida, no seu nome é evocado o termo trabalhadores rurais. Também,

ao se utilizar o termo trabalhadores rurais, não se está dando ênfase apenas aos homens que lutaram e lutam no

MST. Entende-se que as lutas e conquistas do e no Movimento vêm sendo edificadas pela heterogeneidade de

sujeitos que o compõem – homens, mulheres, crianças, jovens, adultos. 89 IOKOI, Z. M. G., Os movimentos sociais e a luta pela terra, p. 247. 90 Quando se utiliza sujeito no trabalho, pensa-se, semelhantemente, às concepções de Eder Sader (1988, p. 51),

no sentido de se estar pesquisando um movimento social, que mantém a preocupação em construir uma

identidade coletiva. Assim, os sujeitos seriam homens e mulheres que, de diversas e distintas formas, procuraram

agir nos movimentos sociais no intuito de construírem sua própria história. Estes sujeitos são ativos e buscaram

construir projetos coletivos de mudança social, partindo das suas próprias experiências de luta. 91 MARCON, T., Acampamento Natalino: história de luta pela reforma agrária, p. 103.

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e viria contribuir com o anseio pela redemocratização do acesso à terra no país. No início da

década de 1980, “diversos movimentos sociais revelaram, por meio de suas reivindicações, os

limites e as contradições do modelo implantado no Brasil no período posterior ao golpe

militar de 1964”92. Na compreensão de Debora Franco Lerrer, a ação das famílias acampadas

no Encruzilhada Natalino acabou “sendo considerada uma arena da luta contra a ditadura,

tecendo um verdadeiro cordão de solidariedade em torno de si, que envolvia políticos da

oposição, a Igreja e a sociedade em geral, conseguindo furar o bloqueio que a ditadura, já no

seu ocaso, tentava lhe impor”93.

No que tange ao Acampamento, é interessante ressaltar que, de imediato, os sujeitos

não tinham o objetivo de ocupar uma área de terra definida, sua intenção era chamar a atenção

do governo do estado do Rio Grande do Sul para a necessidade de ele apresentar soluções

para os problemas sociais. A formação do acampamento Encruzilhada Natalino também não

foi resultado de combinações prévias entre os acampados. A sua organização desenvolveu-se,

a princípio, pela ausência de condições materiais e pela falta de perspectivas de famílias de

sem-terra e de minifundiários, ambas afetadas pela política que o Estado vinha

desenvolvendo. Nesse sentido, a organização e a resistência do acampamento Encruzilhada

Natalino marcaram a luta pela reforma agrária no país. Mais do que isso, demonstraram ao

Estado e à sociedade em geral o poder de organização e maturidade política de sujeitos que,

anteriormente, eram tidos como inertes por aqueles que dominavam e detinham o poder na

região.

Conforme Marcon, o acampamento Encruzilhada Natalino se constituiu em um marco

para a retomada da luta pela reforma agrária, pois recolocou em discussão a concentração

fundiária no estado do Rio Grande do Sul, bem como as políticas implementadas pela

Ditadura Civil-Militar94 “no sentido de eliminarem os focos de tensão social no campo pela

transferência dos agricultores sem-terra ou dos pequenos proprietários para as regiões de

fronteira agrária e agrícola”95.

92 MARCON, T., Acampamento Natalino: história de luta pela reforma agrária, p. 22. 93 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 63. 94 A utilização do termo Ditadura Civil-Militar baseia-se nos estudos que analisam o Regime Militar a partir do

apoio e participação de setores influentes da sociedade brasileira, o que sugere a ampla participação de

segmentos da população no golpe de Estado de 1964 e na trajetória da Aliança Renovadora Nacional (ARENA),

partido político criado em 1965 para apoiar os militares, que abrigou e articulou lideranças civis para dar

sustentação ao regime político. Ver: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política,

Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1981; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão

(Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 95 MARCON, T., Acampamento Natalino: história de luta pela reforma agrária, p. 26.

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Dom Tomás Balduíno, religioso e militante histórico na luta pela reforma agrária no

Brasil, em um trecho de seu discurso proferido no Acampamento, em 25 de julho de 1981,

elucida a importância da luta empreendida pelos sujeitos pertencentes ao Encruzilhada

Natalino, não só para o estado do Rio Grande do Sul, mas também para todo o cenário

nacional: “O que a mobilização do ABC representou em consciência no avanço na luta dos

trabalhadores urbanos, esta manifestação de Encruzilhada Natalino representará de agora em

diante para os trabalhadores rurais e sem-terra no Brasil”96. Com grande atuação nas causas

sociais, principalmente na luta pela terra junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), parecia

que Dom Tomás Balduíno97 previa o significado daquela ação para fortalecer a luta pela

reforma agrária no território brasileiro.

Se, por um lado, os operários da região do ABC Paulista, no transcorrer das décadas

de 1970 e 1980, tinham demonstrado a outros trabalhadores urbanos o poder da organização e

resistência dos trabalhadores, dando um passo significativo com suas manifestações para a

melhoria de salários e condições de trabalho; por outro, a luta pela terra e sua conquista pelos

sujeitos do Encruzilhada Natalino ecoaram e trouxeram a milhares de trabalhadores rurais a

esperança de que era possível, diante de muita luta e resistência, a conquista de um pedaço de

chão para nele trabalhar e permanecer.

Naquele contexto, um dos principais responsáveis pelo nascimento do Boletim Sem

Terra foi Flademir Araújo, jornalista gaúcho, que, na época, trabalhava na Assembleia

Legislativa do Estado. O envolvimento de Flademir com os trabalhadores rurais sem-terra

coincide com a retomada da luta pela terra no estado do Rio Grande do Sul, no qual o

acampamento Encruzilhada Natalino foi um marco. O jornalista esteve à frente da editoração

do boletim e, posteriormente, à frente do Jornal Sem Terra durante seis anos. Ao ser

entrevistado por Miguel Stedile enfatizou que “a idéia do jornal é diretamente ligada à

Encruzilhada Natalino” e o objetivo central, num primeiro momento, era “solicitar o apoio das

comunidades, das entidades, de outros setores ao acampamento”98. Em sua primeira edição,

na capa, é publicada a Carta dos Colonos Acampados em Ronda Alta, cujo intuito principal

era chamar a atenção da sociedade e angariar apoio, de todo e qualquer tipo.

96 Trecho da fala de Dom Tomás Balduíno no acampamento Encruzilhada Natalino, em 25/07/1981. In: Tempo e

presença – Cedi; jul. 1981. p. 27. 97 Dom Tomás Balduíno faleceu no dia 02 de maio de 2014, no município de Goiânia/GO, em decorrência de

uma trombo embolia pulmonar. 98 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min.

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Imagem 1 – Capa do Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de 1981.

Editor responsável: Flademir Araújo

Percebe-se, pela capa da primeira edição, que o boletim era datilografado e

mimeografado de forma artesanal. A primeira edição foi composta apenas por textos verbais

escritos, sem qualquer tipo de imagens e de publicidade. Em destaque, a Carta dos Colonos

Acampados em Ronda Alta, que apresentava os acampados em Ronda Alta para o conjunto da

sociedade, assim como o contexto difícil vivenciado pelas famílias, a posição do governo do

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Rio Grande do Sul e do Estado brasileiro99 perante a situação e o pedido de apoio manifestado

em um momento textual no final da carta: “Solicitamos seu apoio, do jeito que der, para esta

nossa luta. Ficamos muito contentes e agradecidos com esse seu apoio, pois queremos ficar

aqui acampados até conseguirmos nossa terra para trabalhar”100.

Cabe registrar que foram impressos 700 boletins com o título Sem Terra; que, no

primeiro ano, não havia um padrão de formatação definido; e que o número de páginas

variava entre 8 e 16 folhas. A produção do boletim era realizada no município de Porto

Alegre/RS e as entidades responsáveis por sua organização eram a Comissão Pastoral da

Terra (CPT), o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH/RS)

e a Pastoral Universitária de Porto Alegre. O MJDH cedeu espaço em sua sede localizada na

Rua dos Andradas, n. 1234, 22º andar, sala 2209, para que fossem confeccionados os

exemplares do periódico. Em relação à procedência profissional das pessoas que colaboravam

na editoração, a sua maioria era formada por estudantes de Jornalismo e/ou por profissionais

que possuíam cursos superiores em áreas como História, Educação, Sociologia e Ciência

Política.

O vínculo dessas pessoas com a luta pela reforma agrária foi criado nas Universidades

em que estudaram, na participação em grupos e partidos de oposição à Ditadura Civil-Militar

e na militância de sindicatos e de partidos políticos. A dedicação à produção do Boletim Sem

Terra nem sempre era integral, como é o caso de Flademir Araújo. Muitos jornalistas e

demais colaboradores do boletim tinham experiência política em sindicatos e em entidades

contrárias ao Regime Militar, com isso agregavam o trabalho de produção do periódico à

causa dos sem-terra e a ações que questionavam o regime político que se vigorava.

O Boletim Sem Terra, assim como o MST, nasceu em um período ímpar da história

recente do Brasil denominado transição democrática101. Os grupos políticos, as entidades e a

99 Em 1981, o governador do estado do Rio Grande do Sul era José Augusto Amaral de Sousa (Arena/PDS); e o

presidente do Brasil era João Baptista de Oliveira Figueiredo (Arena/PDS). 100 Carta dos Colonos Acampados em Ronda Alta. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de 1981, Ano I, nº 1. p. 1. 101 Há uma quantia significativa de autores que se dedicaram a entender o Regime Militar e o período de

transição democrática (1964-1985) no Brasil. Para uma visão mais aprofundada, ver: STEPAN, Alfred (Org.).

Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S; SORJ, B. e ALMEIDA, M.

H. T. (Orgs.). Sociedade e Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983; DINIZ, E. A transição

política no Brasil: uma reavaliação da dinâmica da abertura. Dados, n.3, 1985, p.329-46; KINZO, Maria D’Alva

G. A Democratização Brasileira: um balanço sobre o processo político desde a transição. São Paulo em

Perspectiva. 15(4), 2001. p. 3-12; MOISÉS, José Álvaro; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto (Orgs.).

Dilemas da Consolidação da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel

Arão (Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; MOTA, Carlos

Guilherme (Org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000; FERREIRA,

Jorge; DELGADO, Lucilia de A. Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. O Tempo da Ditadura: regime militar e

movimentos sociais em fins do século XX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; REIS, Daniel

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sociedade civil se organizavam em prol da redemocratização. Lutar pela reforma agrária no

período também era lutar pela redemocratização do país. Nessa perspectiva, a luta dos

trabalhadores rurais sem-terra ganhou visibilidade significativa e, de certa maneira, apoio da

sociedade civil e de organizações políticas e religiosas102.

Pode-se dizer que o Boletim Sem Terra se transformou em um periódico de resistência

da época, conjugando os interesses dos trabalhadores rurais sem-terra do acampamento

Encruzilhada Natalino e a luta pela democracia. A princípio, o seu nascimento estava mais

voltado ao objetivo de informar a população sobre o porquê as famílias estavam acampadas e

ao de aglutinar apoio da sociedade e entidades civis, religiosas, sindicais e políticas aos

trabalhadores, do que propriamente ser um instrumento na organização dos acampados. Esse

apoio estava muito relacionado também a atender a necessidades materiais das famílias, por

meio de arrecadação de alimentos, agasalhos, remédios, lonas para os barracos, dentre outras

coisas.

Igor Felippe Santos, militante do MST desde o ano de 2004, coordenador do Setor de

Comunicação103, que atuava e acompanhava os veículos de comunicação do Movimento,

inclusive a editoração do Jornal Sem Terra, sublinha que o Boletim Sem Terra nasceu com

três objetivos: propiciar a “equalização de informação das famílias que viviam no

acampamento Encruzilhada Natalino”, comunicar-se com “os amigos e apoiadores” do

acampamento e fazer o “diálogo com a sociedade” como um todo.

O Jornal Sem Terra nasce como um instrumento, em primeiro lugar pra

contribuir na equalização de informação das famílias que estavam

acampadas ali na Encruzilhada Natalino. O segundo objetivo do Jornal Sem

Terra era fazer essa comunicação com os amigos, apoiadores daquela

ocupação, daquele movimento, que também por que precisavam de

Arão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O Golpe a Ditadura Militar: quarenta anos

depois (1964-2004). Bauru/SP: EDUSC, 2004. 102 É significativo destacar também que, neste contexto, a luta pela terra se transformou em um dos maiores

focos de conflito e resistência no período. A partir dos conflitos e resistência dos trabalhadores rurais, o Estado

criou o Estatuto do Trabalhador Rural em 1963 e o Estatuto da Terra no ano de 1964. Na visão de Leonilde

Sérvolo de Medeiros, com a criação desses estatutos houve um reconhecimento legal de diferentes interesses no

campo, o direito à representação política e a necessidade do Estado agir em momentos de tensão social. Criaram-

se diversas organizações e entidades de representações tanto dos trabalhadores rurais como dos grandes

proprietários de terras. “Estava em jogo não só uma adequação legal, mas, sobretudo, a produção de uma

identificação, um conjunto de reivindicações e práticas políticas”. Salienta-se que, com essas ações do Estado, os

trabalhadores rurais não estavam imunes às suas práticas autoritárias. Neste processo, “as principais lideranças

camponesas foram presas, assassinadas ou forçadas à clandestinidade. Os sindicatos sofreram intervenção e

vários deles passaram a ser controlados por grupos estranhos às lutas desenvolvidas anteriormente” Ver:

MEDEIROS, L. S. de., Movimentos sociais no campo, lutas por direitos e reforma agrária na segunda metade

do século XX, p. 123-124. 103 No tópico 1.3 da tese, intitulado Comunicação engajada e o Jornal Sem Terra na organização do MST,

refletiu-se sobre o Setor de Comunicação do MST.

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informações sobre a situação. E, em terceiro lugar, pra fazer a comunicação

com a sociedade como um todo, com os municípios, com a capital Porto

Alegre (grifo meu)104.

No acampamento Encruzilhada Natalino criou-se uma equipe de trabalho / imprensa,

“constituída por agricultores sem-terra com instrução formal, que tinha a função de coletar

informações do acampamento para integrantes da CPT”105. Conforme Fernando Perli, os

produtores do boletim criaram também outras estratégias para conseguirem notícias sobre as

lutas enfrentadas e sobre a realidade vivida pelos acampados. Muitas notícias sistematizadas

no Acampamento eram repassadas aos responsáveis pelo boletim e selecionadas para

publicação.

Uma delas, era a atribuição a líderes camponeses para mapear os principais

acontecimentos e encaminhar, através de correspondência postal, por agentes

de apoio que se deslocavam para a capital gaúcha, ou até mesmo, por

telefone, os principais fatos vivenciados pelos acampados em semanas ou

quinzenas. Outra consistia na visita de estudantes da região, designados pela

comissão do boletim ou por ato solidário, para informarem-se da realidade

da Encruzilhada e encaminharem notícias para Porto Alegre (RS). Também

auxiliavam na coleta de informações padres de paróquias regionais que, ao

manterem contato com os produtores do boletim, conseguiam notícias por

participarem ativamente de reuniões de acampados e por terem maior

facilidade de descreverem fatos, o que contribuía para a redação do Sem

Terra106.

Com a Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada no ano de 1967 pelo ex-

presidente Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967)107, que tinha como objetivo

coibir e proibir os intelectuais e o conjunto da sociedade como um todo de criticarem o

governo, publicamente, os produtores e colaboradores do boletim não se expunham de forma

explícita, sendo o periódico divulgado como de responsabilidade da CPT e do MJDH do Rio

Grande do Sul. A responsabilidade não era centrada em uma pessoa, mas sim no coletivo.

Sobre a LSN, Edvaldo Vieira sublinha que ela “eliminou as liberdades públicas no Brasil,

104 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 105 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 77. 106 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 66. 107 Thomas Skidmore apresenta de forma minuciosa os presidentes do Brasil no período de 1964 a 1985 e suas

principais ações no cenário político. Ver: SKIDMORE, Thomas E. A lenta via brasileira para a

redemocratização: 1974-1985. In: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988. p. 27-81

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agredindo os direitos individuais, atacando os direitos de reunião, de associação e de

imprensa”108.

Na edição nº 30, de março de 1983, o Boletim Sem Terra divulgava e participava da

Campanha pela Revogação da Lei de Segurança Nacional, que contou com diversas

entidades e segmentos sociais e políticos nacionais. Na capa do boletim, dava-se destaque à

transferência de prisão do jornalista Juvêncio Mazzarollo, que foi condenado a um ano de

detenção pela LSN por defender, através da imprensa, os trabalhadores rurais do estado do

Paraná e denunciar a expulsão de milhares de trabalhadores rurais de suas terras em virtude da

construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu109. Em seu editorial, na página seguinte, a

Campanha também era destacada.

O boletim chamava a atenção dos leitores para a necessidade de revogação da Lei e do

rompimento com as práticas militares do Estado. A LSN era vista como “um dado revelador

do quanto é falsa a abertura política propalada pelo governo brasileiro”110. Mais que entrar na

Campanha pela Revogação da Lei de Segurança Nacional, haja vista que, os jornalistas e os

veículos de comunicação eram constantemente intimidados, o Boletim Sem Terra aderiu a ela

como uma forma de se opor ao Estado e a suas práticas ainda autoritárias, sobretudo, em

relação à liberdade de expressão e às lutas por direitos sociais e políticos. Devido à LSN, até

novembro de 1983 os produtores do boletim preferiam o anonimato.

De maneira geral, entre os anos de 1981 e 1983, as questões abordadas no periódico

giravam em torno dos embates políticos da luta pela terra no Rio Grande do Sul e em outros

estados111, em torno das medidas e posição do Estado diante do conflito e do problema

agrário112. Além disso, visava-se divulgar as cartas e manifestações de apoio da sociedade e

entidades em prol das famílias acampadas113; informar sobre a realidade e as ações

108 VIEIRA, E., Brasil: do Golpe de 1964 à Redemocratização, p. 198. 109 Campanha pela Revogação da Lei de Segurança Nacional; Mazzarollo Transferido. Boletim Sem Terra. Porto

Alegre, março de 1983, Ano III, nº 30. p. 1. 110 Lutar pelo fim da LSN. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, março de 1983, Ano III, nº 30. p. 2. 111 Terras existem. Só o presidente do INCRA não sabe. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, 28 de maio de 1981,

Ano I, nº 2. p. 2; A luta pela terra no país. Porto Alegre, 29 de junho de 1981, Ano I, nº 6. p. 13; Sem Terra do

país estão se organizando. Porto Alegre, setembro de 1982, Ano II, nº 27. p. 1. 112 Governo usa de má fé para fugir do problema. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, 11 de junho de 1981, Ano I,

nº 4. p. 4-5; Governo do Estado quer desunir agricultores. Porto Alegre, 19 de junho de 1981, Ano I, nº 5. p. 1;

Que Reforma Agrária está fazendo o INCRA? Porto Alegre, abril/maio de 1983, Ano III, nº 31. p. 7. 113 Trabalhadores da Bahia apóiam a luta dos agricultores sem-terra. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, maio de

1981, Ano I, nº 1. p. 5; Prefeitos apóiam a luta dos colonos sem-terra. Porto Alegre, 4 de junho de 1981, Ano I,

nº 3. p. 7.

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desenvolvidas no Encruzilhada Natalino114; organizar, informar sobre campanhas de

solidariedade115 e denunciar ações de repressão e violência sofridas pelos acampados ou por

pessoas a eles ligados116.

Ao ser indagado sobre a regularidade do boletim, em entrevista já citada, Flademir

Araújo enfatiza que “no começo não” havia. As edições eram publicadas de acordo com a

demanda e o acúmulo de materiais recebidos. Em suas palavras: “logo no começo, quando o

acampamento estava nesta fase de formação, o boletim era muito dinâmico, chegava a sair

três ou quatro edições por mês. Era semanal para poder dar conta do volume das coisas que

chegavam”. A intenção era que o boletim conseguisse repercutir os apoios e a solidariedade

vindos de diversas regiões do país, “tanto para os acampados, para verem que estavam sendo

apoiados, como para a própria sociedade e a imprensa”117.

Nesse processo, o Boletim Sem Terra exercia um papel relevante ao responder às

críticas e tentativas de desmobilizar a luta dos trabalhadores. A divulgação de lutas similares à

que estava ocorrendo no estado do Rio Grande do Sul foi muito significativa, pois agregava

forças e articulava apoio e troca de experiências entre as lideranças sem-terra e demais

pessoas envolvidas nas lutas. No entender de Bezerra, o boletim tornou-se um instrumento

para acompanhar, registrar e denunciar as tensões que envolviam o processo de luta pela terra.

O periódico cresceu e se fortaleceu “no intuito de tornar-se uma ferramenta de referência em

termos de comunicação, formação e informação de expressão política e social entre os

trabalhadores rurais sem-terra”118.

A proposta do boletim de ser um meio de comunicação voltado para a solidariedade

face às famílias acampadas no Encruzilhada Natalino teve êxito. O periódico recebeu cartas e

apoio de entidades civis de diversas regiões do país, que se sensibilizaram com a luta dos

trabalhadores, e inspiraram as publicações das edições seguintes. Destaca-se que as primeiras

edições do boletim foram destinadas não só aos leitores do Acampamento, mas também às

114 Preparação para o dia do colono na Encruzilhada Natalino é intensa. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, 13 de

julho de 1981, Ano I, nº 8. p. 1; Colonos acampados estiveram em Porto Alegre para conquistar a terra. Porto

Alegre, 9 de janeiro de 1982, Ano II, nº 17. p. 4-5. 115 Arquidiocese de Porto Alegre faz campanha. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, 13 de julho de 1981, Ano I, nº

8. p. 11; Coleta para Nova Ronda Alta será nos dias 15/16 no RS. Porto Alegre, 26 de abril de 1982, Ano II, nº

17. p. 1. 116 Preocupação do Governo: investigar a vida dos colonos. Porto Alegre, 11 de junho de 1981, Ano I, nº 4. p. 1;

Condenado por defender agricultores. Porto Alegre, outubro de 1982, Ano II, nº 28. p. 1; Em seis meses 24

lavradores assassinados. Porto Alegre, setembro de 1983, Ano III, nº 32. p. 10-11. 117 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min. 118 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 45.

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lideranças sindicais, religiosas, entidades civis, federações de trabalhadores e parlamentares

com o propósito de congregar pessoas e grupos que se solidarizassem com as famílias

acampadas. Registre-se que, na produção e organização de apoios aos acampados, a CPT teve

papel fundamental: “A Pastoral da Terra situava-se entre as equipes de trabalho dos

agricultores e as diversas entidades de apoio, respectivamente instâncias de organização

interna e de solidariedade aos acampados”119.

Desde a sua primeira edição, em maio de 1981, até a edição nº 27, de setembro de

1982, o boletim teve a seção Campanha de Solidariedade ou Solidariedade. Neste espaço

eram publicadas as cartas de apoio e ações de solidariedade em prol das famílias acampadas.

Muitas eram as manifestações de apoio e solidariedade, por exemplo, de sindicatos de

profissionais, sindicatos e federações de trabalhadores rurais, dioceses de diversos municípios

do país, de Câmaras Municipais com moções de apoio, de parlamentares, partidos políticos e

religiosos. No boletim, destacaram-se algumas cartas e ações e, de forma resumida, também

eram publicados os nomes das pessoas e entidades que manifestavam apoio durante a

produção de cada edição. O fato de se publicar as cartas de apoio e as campanhas de

solidariedade, além de animar as famílias acampadas, era uma forma de legitimar e fortalecer

as lutas, no sentido de que o grupo não estava sozinho e lutava por algo que lhe era de direito.

Com o tempo, conforme Perli, o boletim foi se transformando numa “rede de

sociabilidade” ou num “lugar de sociabilidade”, em que diversas entidades civis e

movimentos sociais passaram a se comunicar e a trocar experiências de lutas120. Com a

distribuição do Boletim Sem Terra para diversas entidades políticas e sociais do Rio Grande

do Sul e do país, iniciou-se uma inter-relação dos responsáveis pela produção do informativo

com outras instituições que solidarizavam com a causa. Por essas aproximações e

articulações, em que o boletim teve papel relevante por agregar valores e crenças,

sistematizava-se o MST no início da década de 1980.

Estudar o Boletim Sem Terra e posteriormente o Jornal Sem Terra, se torna relevante

para compreender os aspectos políticos, econômicos, religiosos e culturais que compuseram

as representações do Movimento em sua trajetória histórica. Nessa perspectiva, como

exemplo, citam-se os primeiros anos de organização do MST, em que este ainda tinha um

vínculo estreito com a Igreja Católica, especialmente com a CPT. Nas páginas do boletim e

nos primeiros anos, quando este se transforma em tablóide, essa questão é facilmente

119 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 67. 120 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 49-50; ________, Sem Terra: de boletim a

tabloide, p. 77-79.

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percebida, pois muitos discursos produzidos eram de religiosos que apoiavam os

trabalhadores. Ao participar da produção do boletim, a CPT organizava “seu conteúdo

valorizando o direito à terra, objeto sagrado e destinado à produção e sustentação do

homem”121. Para além de “lugar de sociabilidade”, Bezerra destaca também que as notícias

publicadas no Boletim Sem Terra serviam de ingredientes para a constituição de uma

“memória coletiva” dos trabalhadores rurais sem-terra122.

Em seu primeiro ano, de maio a dezembro de 1981, o boletim teve 16 edições

publicadas. No ano de 1982, foram publicadas 12 edições. Em 1983, 5 edições. Entre os anos

de 1982 e 1983 é nítido um avanço no que tange à materialidade, à estética na diagramação e

produção do periódico. Na edição nº 33, de novembro de 1983, na qual a manchete de capa

era A Porteira se Abre, em alusão à conquista da terra pelas famílias acampadas no

Encruzilhada Natalino123, o número de exemplares chegou a 5.000 e a produção já era feita

em fotocomposição. Essa edição, considerada histórica para os produtores do boletim, foi a

primeira que trouxe em seu expediente os nomes das pessoas responsáveis pela produção. O

nome de Flademir Araújo constava como o de jornalista responsável; os de Humberto

Monteiro, Laerte Meliga, Celso Schroder e Antonio Rocha estavam associados ao setor de

Arte; o de Marcelo Bonfler, ao de distribuição. Na relação de colaboradores da edição: Chico

Daniel, Rafael Guimarães e Antonio Carlos.

Apesar do avanço técnico, o boletim não tinha em suas páginas textos de publicidade e

propaganda, pois não fora criado com objetivos mercadológicos. Apenas, entre 1983 e 1984,

os produtores do boletim fizeram propagandas do Jornal Mundo Jovem, de Porto Alegre, em

algumas edições. A venda de propagandas no boletim era improvável, uma vez que poucas

seriam as empresas que divulgariam seus produtos em um jornal destinado à organização de

trabalhadores rurais sem-terra. E também não era de interesse do periódico propagar marcas e

produtos de empresas alheias às lutas dos trabalhadores.

A partir da edição de março de 1982, o boletim passa a ser de responsabilidade do

Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra. Esse Comitê tinha como objetivo angariar

fundos para os trabalhadores rurais envolvidos na luta pela terra e, em relação à produção do

Boletim Sem Terra, aumentar seu número de tiragens e expandir sua circulação. As

contribuições para o Comitê vieram de instituições religiosas, sindicatos, entidades de direitos

humanos e simpatizantes da luta pela terra. Até a edição nº 32, de setembro de 1983, quando o

121 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 81. 122 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 57. 123 A Porteira se Abre! Boletim Sem Terra. Porto Alegre, novembro de 1983, Ano III, nº 33. p. 1.

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boletim ainda era de sua responsabilidade, o Comitê contribuiu significativamente para o seu

desenvolvimento, tanto em número de tiragens (chegando a 3.000 exemplares) quanto na

qualidade do impresso. A linguagem do boletim passou a ser mais incisiva, assim como as

críticas ao Estado e as denúncias sobre a violência no campo.

Nesse momento, houve expansão de circulação do informativo para todos os estados

do Sul do país e para os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Na edição nº 25, de julho

de 1982, no editorial, publicado na capa do impresso, coloca-se em destaque que o Boletim

Sem Terra será Regional. Este editorial elucida, de modo breve, aspectos sobre o nascimento

do boletim, seus objetivos e importância na informação sobre a luta dos sem-terra e na

denúncia sobre as ações do Estado e grupos contrários à reforma agrária.

A decisão de tornar o boletim de caráter regional foi tomada no Encontro Regional de

Agricultores Sem Terra, realizado entre os dias 9 e 11 de julho de 1982, no município de

Medianeira/PR. Os produtores do boletim, no momento em que ele foi alçado como “órgão

informativo” dos estados mencionados, não esconderam no editorial que “os recursos

materiais disponíveis e as condições continuam precários”. Também salientaram aos leitores

que não haveria grandes mudanças no impresso. Elas viriam com o tempo e seriam “fruto da

semente regada com o esforço e o sacrifício de quem deseja melhorar cada vez mais esta

contribuição à luta dos trabalhadores rurais”124. O fato de se ter evidenciado a realidade e as

formas “precárias” de produção do impresso era um modo de se chamar a atenção dos leitores

para que auxiliassem financeiramente a produção. Apesar da apresentação das adversidades,

destacava-se que era necessário crescer em qualidade e aperfeiçoar o boletim. Esse não

deveria ser um privilégio dos meios de comunicação ligados às elites dominantes. Flademir

Araújo enfatiza esse redimensionamento e avanço em qualidade do boletim.

A partir de 82, ele é melhorado, ele deixa de ser mimeografado, passa a ter

um mínimo de edição. Antes a gente reproduzia as coisas, escrevia pouca

coisa. Eram reproduções de cartas, este tipo de manifestação de apoio,

reprodução de artigos da própria imprensa. E a partir daí, ele passa a ter uma

diagramação, melhora visualmente, ele começa a ser um informativo de

lutas, de sem-terras, de problemas dos pequenos agricultores, de barragens...

Ele é um boletim, duplo ofício, formatinho, mas já vai sendo melhor

trabalhado, aumentam o número de páginas125.

124 Boletim Sem Terra será Regional. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, julho de 1982, Ano II, nº 25. p. 1. 125 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min.

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Em fevereiro de 1983, edição nº 29, o nome do boletim é modificado. Não é mais

Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. Seu nome

passa a ser Boletim Sem Terra. A mudança de nome revela uma transformação gradual no

projeto do boletim, que almejava tomar corpo de tablóide, indo além de um panfleto. Além do

aumento de tiragem e da circulação regional, as notícias e manchetes passam a ser mais

valorizadas; os editoriais, a constituir um perfil, e evidencia-se, com mais intensidade,

entrevistas com lideranças e intelectuais aliados da luta pela terra.

A partir da edição de abril/maio desse ano, edição nº 31, o expediente revela que a

produção gráfica é de responsabilidade do Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP).

Conforme Perli, o CAMP era “um órgão atrelado ao sindicalismo combativo gaúcho e tinha a

finalidade de prestar serviços que incluíam a produção de folhetos, manuais informativos para

a sindicalização”126. As instalações do CAMP ficavam no Centro de Educação Popular de

Porto Alegre. A produção gráfica do boletim, sob responsabilidade do CAMP, ocorreu até a

edição nº 42, de fevereiro de 1985. Com o CAMP, o informativo teve uma “mudança de

orientação da luta dos sem-terra, cada vez mais direcionada para o sindicalismo combativo e o

Partido dos Trabalhadores”127. A produção do boletim voltava-se para além do regionalismo

gaúcho e o periódico ganhava força e representatividade entre as organizações dos sem-terra,

no sentido de que se transformava em um instrumento político e de articulação das lutas. No

final de 1983, o boletim alcançou a tiragem de 5.000 exemplares e sua qualidade técnica de

editoração avançou significativamente, como pode ser observado na capa da edição nº 32, de

setembro de 1983.

126 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 91. 127 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 80.

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Imagem 2 - Capa do Boletim Sem Terra. Porto Alegre, setembro de 1983.

Editor responsável: Flademir Araújo

As transformações em termos gráficos e editoriais são evidentes, quando se compara

essa edição com a primeira, mimeografada, de maio de 1981. Na capa há publicações de

imagens, valorização das notícias através das manchetes e distribuição mais atraente dos

textos para o leitor. No canto superior esquerdo há uma imagem que faz referência à

campanha sobre o Fim da Lei de Segurança Nacional; as chamadas das notícias e demais

imagens estão centradas e sugerem tom de denúncia face às ações contra os trabalhadores.

Algo significativo nessa capa é a ilustração de uma cruz de madeira no canto superior

direito, em que constam o ano e o número da edição. Essa cruz fazia referência às lutas das

famílias acampadas no Encruzilhada Natalino. Os acampados fincaram uma cruz de madeira

no centro do Acampamento e a transformaram em seu símbolo de luta e resistência. Nos

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diversos atos e manifestações de que participavam, levavam a cruz. Os panos amarrados na

cruz também tinham um tom simbólico. Quando uma criança nascia, era colocado, na cruz,

um pano branco; quando algum acampado falecia, era colocado um pano preto128. Nos

diversos acampamentos e manifestações dos sem-terra, nas décadas de 1970 e 1980, a cruz

simbolizava luta e resistência. Ela é um símbolo cristão e sua utilização e associação à luta

pela terra se deu pela forte influência e participação da CPT junto aos trabalhadores129. Os

discursos e símbolos religiosos eram canalizados em prol da luta política. O discurso sagrado

legitimava o político.

Entre os anos de 1982 e 1983, devido à importância do boletim no contexto das lutas

pela terra, os trabalhadores rurais começaram a refletir sobre esse impresso, suas edições e

formatações. Isto é, o boletim, que fora criado por grupos de apoio, agora teria que ter o perfil

e participação dos próprios trabalhadores na produção de suas páginas. Isso se relaciona ao

fato de o periódico ser visualizado por muitas lideranças como um instrumento relevante na

organização dos trabalhadores rurais. Nessa direção, havia tensões e disputas políticas na

produção do informativo. Na visão de Perli, o boletim era um espaço simbólico que agregava

grupos de apoio, profissionais da informação e trabalhadores rurais, em que os discursos

desses profissionais/trabalhadores e suas representações eram disputados130. Desse modo,

deram-se início discussões mais específicas sobre o boletim entre as lideranças dos

trabalhadores e entre os grupos de apoio. Além de produzir informações para e sobre os sem-

terra, articular as lutas e promover o intercâmbio dos trabalhadores de diversos estados do

país, o boletim necessitava de uma linguagem mais acessível aos trabalhadores.

Essa era uma tensão latente entre os envolvidos nesse processo. “O parecer técnico e a

melhor forma de expressão jornalística ainda mantinha-se sob autonomia dos elaboradores,

porém, a tarefa passava pelo crivo das Comissões que primavam pelas mensagens de fácil

assimilação pelos trabalhadores rurais sem-terra”131. Era preciso adequar a escrita/linguagem

a um público menos letrado, que compunha as manifestações e acampamentos. Se a

linguagem não era acessível, sua leitura era desestimulada e não produzia efeitos nas

experiências históricas dos sujeitos. Não só a linguagem deveria ser mais acessível, como

também a produção do boletim precisaria de seções melhor definidas e de imagens que

128 Sobre isso, ver: MARCON, Telmo. Acampamento Natalino: história de luta pela reforma agrária. Passo

Fundo: Ediupf, 1997. 129 COELHO, Fabiano. A Prática da Mística e a luta pela Terra no MST, p. 39-82; _______. Para Além do

Espiritual: reflexões sobre Igreja e trabalhadores rurais sem-terra (1970-1980), p. 137-152. 130 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 78. 131 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 97.

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auxiliassem no entendimento dos textos e daquilo que se almejava representar. Apesar de

alguns avanços nessas questões, Perli ressalta que era “deficiente a presença do boletim nos

locais de mobilização”132. Essa deficiência também era vinculada à dificuldade de

distribuição, ao alto índice de analfabetos e ao desestímulo dos trabalhadores que não

assimilavam a linguagem do impresso.

Outra tensão na produção do Boletim Sem Terra estava no fato de, em seus três

primeiros anos, até se transformar em tablóide e ser de responsabilidade do MST, ele não ter

uma definição precisa acerca dos leitores que pretendia atingir. Bezerra reflete sobre algo

relevante para se compreender o boletim – sua produção era sobretudo voltada a um público,

a um perfil de leitor estranho aos trabalhadores rurais. Os discursos eram elaborados no

sentido de atingir sujeitos que tinham níveis mais elevados de formação escolar do que os

sujeitos que estavam nos assentamentos e acampamentos133. Isso põe em evidência o público

ao qual, na época, o boletim era endereçado: sindicatos, igrejas, federações de trabalhadores

rurais, comunidades de base, partidos políticos, entidades civis e profissionais. Para tanto,

seus discursos se descortinavam entre o leitor externo e o interno. Sobre essa questão, Perli

observa:

Os produtores do boletim, além de apontarem falhas no direcionamento da

mensagem jornalística ao público-alvo idealizado, admitiam a deficiente

atuação do informativo na organização cotidiana dos trabalhadores rurais

sem-terra. Também alegavam ser o BST mais destinado aos leitores que não

eram do meio rural, do que propriamente àqueles que deveriam constituir o

público-alvo majoritário134.

Observa-se que, no boletim, havia uma idealização do seu leitor. As notícias eram

destinadas a um público que não era do meio rural, ou que não era protagonista no contexto

das lutas pela terra. Enfim, havia uma tensão na produção e na distribuição do impresso. A

linguagem era pouco acessível aos trabalhadores sem-terra, com níveis baixos de

escolaridade. A distribuição entre os trabalhadores também não era exitosa, devido às próprias

dificuldades do período, como falta de pessoal e recursos para este fim. Essas questões, por

vezes, faziam com que “os olhares se voltassem para os leitores sem-terra, num plano, em

grande parte, ainda idealizado”135. Contudo, as tensões e adversidades não minimizam a

132 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 83. 133 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 46. 134 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 82. 135 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, 81.

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relevância do Boletim Sem Terra para o registro de informações, de solidariedade em prol dos

acampados, e para a articulação das lutas e lideranças dos trabalhadores rurais sem-terra.

O periódico foi ousado e se constituiu em um espaço em que se aglutinaram diversos

interesses em prol da democratização da terra e do regime político no país. Em 1984,

simultaneamente, no contexto da luta pela terra, nascia o MST e o Jornal Sem Terra. Nessa

perspectiva, como era a participação da Direção Nacional do MST na produção do Jornal Sem

Terra? Como se dava a produção da notícia no jornal? Quem eram os editores? Como era a

distribuição do periódico? Estas são indagações que direcionarão as reflexões seguintes.

1.2 Produção das notícias, editores, participação da Direção Nacional e a

distribuição do Jornal Sem Terra

Assim que o MST foi criado, no início de 1984, os produtores do Boletim Sem Terra

anunciaram que estava chegando o Jornal Sem Terra, um projeto engajado, em formato de

tabloide, que redimensionava alguns dos seus objetivos e condições existenciais. Vem aí o

Jornal Sem Terra. Esta era a chamada para os leitores do boletim na edição nº 35, de abril de

1984. A decisão de transformar o boletim em tablóide foi tomada no I Encontro Nacional de

Trabalhadores Rurais, realizado no município de Cascavel – PR, em janeiro de 1984. Ao

enfatizar o lançamento do tabloide, os editores forneceram pistas de que o impresso

redimensionaria sua produção, na perspectiva de ser um periódico com um caráter mais

profissional. Assim, diziam que “uma equipe de 10 jornalistas trabalhará na edição do jornal

que vai contar com a colaboração dos próprios lavradores, pessoas ligadas ao trabalho

pastoral, sindicalistas e estudiosos da problemática agrária”136. O nascimento do Jornal Sem

Terra não significava a extinção do boletim, mas sua continuidade, com uma nova roupagem

e direcionamentos. Também, havia uma preocupação de não excluir os trabalhadores e

tradicionais colaboradores de sua produção. O jornal passou a ser pensado em uma

perspectiva mais ampla, abrangente, e estava ligado e sob a responsabilidade do recém-criado

MST.

Eram agregados novos desafios ao periódico e na edição seguinte, de julho de 1984, nº

36, o nome estampado já era Jornal dos Trabalhadores Sem Terra. O nome do jornal ainda

seria modificado em outubro de 1988, na edição nº 77, passando para Jornal dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra. As mudanças de nomenclatura revelam significados e

136 Vem aí o Jornal Sem Terra. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, abril de 1984, Ano III, nº 35. p. 2.

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redimensionamentos na produção do jornal. Segundo Bezerra, “revela os níveis de

abrangência social de sua atuação, tornando-se um indicativo de seu amadurecimento político,

enquanto ferramenta de comunicação e de luta representativa de um Movimento em acelerada

construção”137. A partir de 1984, ao ser apresentado como Jornal dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra, era evidenciado que o periódico, antes de qualquer coisa, seria um jornal da

organização do MST.

Na edição de julho de 1984, ao lado do editorial, são elencados os novos desafios que

o tabloide teria. No expediente, informa-se que a publicação é de responsabilidade do

Movimento dos Sem Terra da Regional Sul (RS, SC, PR, SP e MS). Verifica-se também que

há uma divisão mais delineada das funções e atribuições dos profissionais envolvidos na

produção do jornal. Nessa edição, faz-se uma retrospectiva histórica em relação à sua

existência e produção, chamando-se a atenção para fato de o jornal ampliar-se na medida em

que o Movimento Sem Terra crescia. Nota-se que o periódico era visualizado como um

instrumento político do movimento social que se formava e se desenvolvia nacionalmente.

Assim, era necessário fazer do jornal um “órgão de divulgação forte, amplo e que atingisse

todo o país”138. Para tanto, era preciso contar com um corpo maior de pessoal e de

profissionais jornalistas nos trabalhos de produção da notícia e editoração.

Sendo um jornal dos Sem Terra139, houve preocupação dos responsáveis em enfatizar

que os trabalhadores deveriam participar da produção e auxiliar na divulgação e distribuição

do impresso.

Mas o êxito do jornal depende fundamentalmente dos trabalhadores sem-

terra. Eles é que deverão sugerir matérias, discutir com seus companheiros,

sugerir assuntos e avaliar seu conteúdo. O jornal só será importante se

efetivamente contribuir para um avanço da organização dos sem-terra e para

o sucesso de suas lutas. Dos lavradores também depende que o jornal atinja

um maior número possível de leitores, nos locais mais difíceis e distantes do

país. O Movimento vai continuar crescendo na luta pela Reforma agrária e o

jornal deve acompanhar esse crescimento, com a participação de todos140.

Por mais que as lideranças do MST, envolvidas na produção do periódico, dissessem

que os trabalhadores precisavam participar da composição do jornal, enviando notícias e

sugerindo matérias, havia limites sobre isso. De acordo com Perli, “mesmo tendo os

137 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 39. 138 Depois de três anos, um novo desafio. Jornal Sem Terra. Porto Alegre, julho de 1984, Ano III, nº 36. p. 2. 139 O Sem Terra com letra maiúscula e sem hífen diz respeito aos sujeitos que integram e pertencem à

organização do MST. 140 Depois de três anos, um novo desafio. Jornal Sem Terra. Porto Alegre, julho de 1984, Ano III, nº 36. p. 2.

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acampamentos / assentamentos como ponto de referência para a elaboração de matérias do

jornal, as dificuldades de escrita e o alto índice de analfabetismo dos sem-terra tornavam a

tarefa restrita a poucos integrantes do movimento”141. Havia então um distanciamento entre o

leitor real e o leitor ideal, e o trabalhador ideal criado pelo Movimento.

Nesse momento, era atribuída ao jornal a responsabilidade de contribuir com o avanço

da organização do Movimento e com sucesso das lutas. Isto é, o periódico deveria ser um

instrumento do MST. Na medida em que sua organização fosse crescendo, o jornal deveria

acompanhar esse crescimento. Nessa perspectiva, o Jornal Sem Terra é uma fonte riquíssima

e imprescindível para se estudar momentos históricos e aspectos que marcaram a organização

do Movimento, haja vista que sua historicidade está intrinsecamente ligada à trajetória

histórica do MST. Na edição citada, observa-se que a tiragem de exemplares aumentou para

dez mil. A formatação do periódico se modificou consideravelmente, trazendo mais imagens,

manchetes de capa e notícias melhores elaboradas, como se pode observar na página nº 2 da

edição nº 36, de julho de 1984.

141 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 121.

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Imagem 3 - Jornal Sem Terra. Porto Alegre, julho de 1984, p. 2

Editor responsável: Flademir Araújo

No transcorrer do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,

realizado em janeiro de 1985, no município de Curitiba/PR, foi deliberada a transferência da

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Secretaria Nacional do MST de Porto Alegre para São Paulo, bem como a redação do Jornal

Sem Terra. Essa mudança foi vista pelas lideranças do MST como estratégica, pois a cidade

de São Paulo era considerada o centro político mais representativo em âmbito nacional e sua

localização geográfica era favorável para a articulação com outras lutas.

No que tange ao jornal, sua produção, divulgação e distribuição seriam facilitadas.

Também era a oportunidade de conquistar mais leitores e espalhar as edições para as mais

variadas regiões do país. A mudança foi explicada na edição nº 43, março/maio de 1985. Em

mensagem destinada aos leitores, os produtores do jornal diziam: “a transferência para São

Paulo, centro político mais importante do país, indiscutivelmente, é explicada pelas

facilidades que trará à organização dos sem-terra, tanto do ponto de vista político, como de

estrutura e de divulgação do seu Movimento”142. Nessa mesma mensagem, os editores

agradecem aos leitores e chamam a atenção para que assinem e divulguem o jornal,

contribuindo com a luta dos trabalhadores.

Em São Paulo, o Jornal Sem Terra passou a ser composto, montado e impresso na

empresa Cia Editora Joruês. A relação com essa editora não era apenas comercial, mas

também ideológica. Em 1985, o jornal já havia alcançado a tiragem de vinte mil exemplares, e

sua editoração passou a ser mensal, mesmo havendo pequenas oscilações entre os meses de

dezembro e janeiro, em que havia uma publicação bimestral. Neste período, até o ano de

1989, o Movimento se consolidava e se territorializava em todas as regiões do país. Sua

organização buscava autonomia em relação aos grupos de apoio e investia na formação dos

seus quadros de militantes. Nas palavras de Fernandes, entre 1985 e 1989, o MST “foi se

consolidando como movimento nacional, ao se fazer presente em todas as regiões do país.

Essa fase também foi um momento de definições importantes no estabelecimento de sua

estrutura organizativa e de sua identidade política”143.

O período entre 1985 e 1989, em que o Movimento privilegiou as mobilizações como

ocupações, acampamentos, passeatas e manifestações diversas foi relevante para a construção

de sua identidade política, também para a “expansão, consolidação e aprendizagem do

MST”144. Nesse período, o MST centrava forças na sua “terrritorialização”145, ou como Lerrer

142 Aos Leitores. Jornal Sem Terra. São Paulo, março/maio de 1985, Ano IV, nº 43. p. 2. 143 FERNANDES, B. M., Formação e Territorialização do MST no Brasil, p. 169. 144 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 142. 145 A territorialização da luta pela terra seria o processo de conquista da terra. Nesse sentido, cada assentamento é

uma fração do território conquistado. Quando o MST conquista uma área para assentamento, ele também se

territorializa. Fernandes estudou o processo de territorialização do MST, ou seja, como o Movimento foi se

constituindo no Brasil por meio das conquistas de assentamentos. Ver: FERNANDES, Bernardo M. A formação

do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000; MST: Formação e Territorialização. São Paulo: Hucitec, 1996.

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prefere, em seu processo de “nacionalização”146, isto é, ampliou sua organização e

estruturação em todas as regiões do país. Ao passo que o MST expandia sua organização em

âmbito nacional, o Jornal Sem Terra acompanhava e registrava as lutas, as mobilizações e

denunciava a problemática agrária, a inércia do Estado e os atos de violência contra os

trabalhadores rurais.

O jornal passava por um processo de profissionalização. Flademir Araújo, jornalista

responsável na época, sublinha que “muda o formato, muda a amplitude, a amplitude

editorial, os objetivos, dá um salto, passa para outro patamar completamente diferente daquilo

que a gente vinha fazendo até então”. Nesse processo, a demanda foi maior. O periódico

“passa a ser efetivamente um jornal com todas as características, com um grupo de

colaboradores importante; intelectuais, pensadores desta área agrária e dos problemas sociais,

com jornalistas”147. Chico Daniel, que era considerado um dos melhores repórteres de Porto

Alegre, Sérgio Canova, Rafael Guimarães, Caco Schimitt e Issac Akcelrud colaboravam com

o jornal. É interessante que, no rol de colaboradores do jornal, havia profissionais que

trabalhavam em outros periódicos, com perfil editorial distinto – por exemplo, Issac Akcelrud,

que trabalhava no jornal Folha de São Paulo.

Nessa direção, quem eram os editores dos jornais? Como eles chegaram a trabalhar no

Jornal Sem Terra? Como era a produção e escolha das notícias? Em suas visões, quais eram

as maiores dificuldades em todo o processo que envolvia a produção do periódico? Em

entrevista com alguns editores do Jornal Sem Terra, que trabalharam no periódico entre os

anos de 1992 e 2012, observou-se que a inserção deles no exercício de editoração foi

semelhante. Ainda no curso de jornalismo, movidos pela crença na luta dos sem-terra e por

acreditarem num jornalismo engajado em causas sociais, jovens jornalistas passaram a

participar de atividades do Movimento e foram envolvidos por meio do convite do MST a

contribuírem nas lutas através do trabalho na área de comunicação.

Como já foi salientado na introdução da tese, foram entrevistados seis editores para a

realização da pesquisa, e este momento torna-se oportuno para conhecê-los. Débora Lerrer,

146 Em sua tese, Lerrer estudou a trajetória de militantes sulistas que foram para o Nordeste em meados da

década de 1980 até a metade da década seguinte. Para tanto, reflete sobre os aspectos culturais, sociais e políticos

desta migração gaúcha desenvolvida pelo MST. Esse processo contribuiu para o que chama de “nacionalização”

do Movimento, fomentando sua metodologia de lutas, desenvolvendo sua identidade política e estilo de

militância. Ver: LERRER, Debora F. Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST.

2008. 197 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –

CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro. 147 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min.

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natural de Porto Alegre/RS editorou o jornal entre os anos de 1992 e 1997. Durante o curso de

Comunicação Social se interessou pelos problemas agrários e pela luta dos sem-terra. Sua

inserção inicial no MST ocorreu por meio de visitas a acampamentos e acompanhamento de

algumas de suas mobilizações na região de Porto Alegre. No final do curso de graduação, na

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi convidada a ir para São Paulo

editorar o Jornal Sem Terra.

A entrevistada comentou que existiam no Movimento poucas pessoas com curso

superior completo na época, em especial, de jornalismo. “Então, apareceu alguém formado

em jornalismo que se credenciou como militante de certa maneira, então eles logo me

convidaram para ir até São Paulo, pra editar o Jornal Sem Terra”148. Para Lerrer, trabalhar no

MST foi decisivo para sua formação e profissionalização. Ela não se identificava com a

denominada grande imprensa e, no MST, exerceria o jornalismo da forma que acreditava. É

notável a linguagem de Lerrer no transcorrer da entrevista, isso porque, quando ela se refere

ao MST, fala eles, não a gente, nós. Nesse sentido, não se considerava parte do MST.

Trabalhou e contribuiu na luta, mas não se sentia pertencente ao Movimento. Em sua

entrevista, demonstrou uma relação profissional com o MST; mesmo simpatizando com a luta

e com a causa do Movimento, não se referiu a si mesma como uma Sem Terra, uma militante.

Depois que parou de trabalhar no Setor de Comunicação do Movimento, Lerrer se dedicou à

vida acadêmica149.

Outra editora do jornal foi Sinara Sandri, natural de Cruz Alta/RS e, atualmente,

residente em Porto Alegre. Ela é formada em Jornalismo pela UFGRS, no ano de 1995, e

possui Mestrado em História pela mesma Instituição. Trabalhou nove meses na editoração do

Jornal, no ano de 1997. Sua relação com o MST começou na faculdade, se envolvendo em

projetos de extensão para desenvolvimento de ferramentas de comunicação para o

Movimento, como programas de rádio nos assentamentos. Sinara também foi convidada pelo

MST, através de sua Direção Nacional, para contribuir nos trabalhos de comunicação.

Conforme a entrevistada, ela “não tinha uma relação direta de militância com o Movimento”

durante o período em que trabalhou na edição do jornal e na assessoria de imprensa do

Movimento150. Sua relação com o MST, além da simpatia com a reforma agrária e a luta pela

terra, foi como profissional da área de comunicação. Em sua fala, disse que foi a São Paulo

148 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012. 149 Debora Franco Lerrer é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em

Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). 150 Sinara Sandri. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012.

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temporariamente para cobrir a ausência de Débora Lerrer e que não tinha pretensão de ficar

muito tempo trabalhando no Movimento.

Entre os anos de 1998 e 2003, Nilton Viana, natural de Três Marias/MG, assumiu a

editoração do jornal. Apesar de ser mineiro, Nilton foi viver em São Paulo, ainda quando era

adolescente, em fins da década de 1970. Sua formação é na área de Jornalismo, mas, antes de

se tornar jornalista, foi bancário na empresa Bradesco. Sua trajetória de vida sempre esteve

ligada à militância e à luta sindical. Ainda como bancário, identificava-se com o jornalismo,

escrevia textos para o sindicato dos bancários e contribuía para a produção de um jornal: “a

gente tinha um jornal que se chamava Bradejo, que era um jornal dos funcionários do

Bradesco, dos trabalhadores do Bradesco, a gente fazia um jornal basicamente das denúncias,

da exploração que o banco fazia com todos trabalhadores na ocasião”151. Nilton, por ser filho

de pequenos trabalhadores rurais e por exercer militância sindical, acompanhava de perto a

luta do MST, suas mobilizações e dialogava com suas lideranças. Sua inserção no trabalho de

comunicação e editoração do Jornal Sem Terra também foi mediante convite da Direção

Nacional do Movimento.

E, depois que eu me tornei um profissional mesmo da comunicação eu fui

convidado oficialmente pra integrar o Coletivo de Comunicação do MST

que, no momento, estava em processo de formação. Nós criamos um

coletivo nacional, ajudamos a desenvolver os formadores, os comunicadores

populares, que são os militantes que nos ajudam a fazer e produzir o Jornal

Sem Terra152.

No contexto atual, Nilton Viana é editor responsável pelo jornal Brasil de Fato. Aliás,

sua saída da editoração do Jornal Sem Terra esteve ligada à criação do Brasil de Fato, no ano

de 2003. Destaca-se que, este jornal é apoiado pelo MST e tem um perfil alternativo, distinto

dos grandes meios de comunicação, sobretudo pelo perfil de seus colaboradores, que são

intelectuais e militantes em movimentos sociais e, também pelo seu perfil contestador e

crítico em relação às políticas do Estado e às ações das elites conservadoras do país. A sede

do Brasil de Fato fica no mesmo local em que os profissionais do Jornal Sem Terra

trabalham. No dia da entrevista com Nilton Viana, percebeu-se que os profissionais desses

dois periódicos dialogam constantemente, trocam informações e se ajudam mutuamente. Ao

151 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 152 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012.

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se remeter ao MST e ao jornal, Nilton revela na entrevista que ainda faz parte do grupo. O uso

de nós e de a gente são recorrentes quando se refere ao jornal e ao Movimento.

Cristiane Gomes, nascida em Campinas/SP, editorou o jornal no período de dezembro

de 2003 e junho de 2007. Cristiane se formou no curso de Jornalismo na Universidade

Metodista de Piracicaba/SP, no ano de 2002. No mesmo ano se mudou para São Paulo com o

interesse de trabalhar em favor de alguma causa social. Em suas palavras:

[...] na faculdade mesmo já fui me interessando em fazer um jornalismo

engajado socialmente, colocar minha profissão a serviço de alguma causa,

enfim, de alguma coisa que eu acreditasse. Que eu pudesse, lógico, ganhar

dinheiro, ganhar dinheiro assim, me sustentar, pagar minhas contas etc., mas

não queria fazer um jornalismo que eu não acreditasse153.

Recém-formada em Jornalismo, Cristiane não teve muitas oportunidades de trabalho,

mas tinha uma certeza: a de que queria colocar seu serviço a favor de algo em que acreditasse.

A partir de um idealismo e/ou romantismo, a maior parte dos editores entrevistados tinha essa

visão antes de editorar o Jornal Sem Terra: colocar seu serviço a favor de algo em que

acreditasse e que fugisse do sonho da carreira tradicional de jornalista (trabalhar em um

grande meio de comunicação). E, o jornal do MST era a possibilidade de fazerem uma

comunicação em prol de alguma causa, de uma luta social e política. Antes de editorar o

jornal, Cristiane desenvolveu alguns trabalhos na área da comunicação em sindicatos como o

dos Químicos em Guarulhos/SP e o dos Metroviários. Cristiane narrou que teve contatos com

grupos do MST no período em que fazia faculdade, visitando e desenvolvendo trabalhos em

assentamentos no estado de São Paulo. Na faculdade, também conheceu militantes do

Movimento que estudavam na instituição e essas amizades foram um contato e uma ponte

para que ela ingressasse nos trabalhos de comunicação do MST.

A entrada de Cristiane na editoração do jornal é bem interessante, pois ela entra para

ser redatora e as circunstâncias do momento fizeram com que se tornasse editora do periódico.

Em 2003, a editora responsável, Daniela Stefano, teve de se ausentar devido a problema de

saúde de seu companheiro e Cristiane assumiu os trabalhos. Segundo ela: “fiquei super

insegura na época porque não tinha muito tempo no Movimento, tinha alguns meses, mas eu

gosto de desafios, topei e fui que fui. Foi dessa forma, foi uma conjuntura que fez com que eu

me tornasse editora do jornal”154. Cristiane ficou por quase quatro anos na editoração do

153 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 154 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012.

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jornal, e, ao sair da editoração, fez o Mestrado em Comunicação e Cultura na Universidade de

São Paulo (USP). No ano em que foi realizada a entrevista (2012), Cristiane trabalhava no

setor de Comunicação do Conselho Regional de Psicologia do município de São Paulo. Em

sua narrativa, notou-se que não se considerava mais como parte do MST, o que leva a pensar

que sua relação com o Movimento, além da simpatia pelo MST e da luta pela terra, foi

profissional – ela era uma trabalhadora da área de Comunicação. Cristiane fez parte do projeto

do MST, mas não militava no Movimento. Optou e seguiu outros caminhos.

Outra entrevista foi realizada com Igor Felippe Santos, que acompanhou a editoração

do Jornal Sem Terra desde fins do ano de 2004. O entrevistado é formado em Jornalismo pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no ano de 2004. Seu trabalho foi

além da editoração do jornal: coordenou o Setor de Comunicação do MST e acompanhou

todos os meios de comunicação da organização até meados do ano de 2013. Assim como

outros editores, Igor conheceu o MST no período em que cursava Jornalismo e adentrou nos

trabalhos de comunicação a partir de contatos com amigos e pessoas ligadas ao Movimento.

Eu entrei no Setor de Comunicação do MST a partir de um contato de uns

colegas da Universidade que trabalhavam no Movimento, no Setor de

Comunicação, e também porque na minha Universidade tinha um conjunto

de professores que eram muito próximos do MST, como o Arbex (José

Arbex Júnior), o Hamilton de Souza (Hamilton Octávio de Souza), que de

certa forma criaram essa ponte da Universidade com o Movimento. Nesse

período, tinha muita gente da minha Universidade que trabalhava no

Movimento155.

Igor ainda editorava o Jornal quando foi realizada a entrevista, em 2012. Salientou

constantemente que, muito mais que trabalhar na Comunicação do Movimento, militava no

MST. Não era apenas um profissional da comunicação, era um militante da organização.

Contemporânea a Igor foi Joana Tavares, natural de Belo Horizonte/MG. Joana também era

formada em Jornalismo, mas pela PUC de Minas Gerais, em 2004. No tempo da faculdade

desenvolveu pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso sobre as estratégias de

comunicação do MST para se inserir na esfera pública. Durante a pesquisa participou do

Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV), desenvolvido pelo movimento estudantil da

Universidade. Na ocasião, passou quinze dias em um acampamento do MST no norte de

155 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012.

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Minas Gerais e se “apaixonou”156 pelas famílias acampadas e pela história de luta do

Movimento. A partir de então começou a se envolver mais intensamente com os movimentos

sociais. No ano de 2007 foi para São Paulo e integrou os trabalhos do Setor de Comunicação

do MST. Em julho de 2009 foi-lhe atribuída a tarefa de editar o Jornal Sem Terra, tarefa que

se estendeu até abril de 2011. Até 2012, ano da entrevista, Joana era correspondente do jornal

Brasil de Fato no estado de Minas Gerais e cursava o Mestrado no Programa de Ciências da

Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

As narrativas de Débora, Sinara, Nilton, Cristiane, Igor e Joana corroboram para se

refletir sobre o fato de, em grande parte da editoração do Jornal Sem Terra, o MST incluir

jovens profissionais da comunicação para desenvolver atividades no Setor de Comunicação.

O envolvimento desses jovens em trabalhos do Movimento no período de faculdade, os

contatos com militantes da organização e o desejo de efetuarem uma comunicação engajada

(ligada a uma causa social e política) foram preponderantes para que houvesse o convite para

integrarem os trabalhos de Comunicação do MST.

No Movimento, os editores desenvolviam outras tarefas além da editoração do jornal,

como, por exemplo, faziam assessoria de imprensa da Direção Nacional. Vale lembrar que os

entrevistados eram jornalistas externos ao MST, isto é, não faziam parte de sua organização.

Eram simpatizantes que se identificavam e compartilham das lutas do Movimento, mas, acima

de tudo, eram profissionais e recebiam pelo seu trabalho. Esses jovens profissionais, movidos

pela paixão e desejo de contribuir com uma causa e fazer um jornalismo diferente, tiveram no

início de suas carreiras a tarefa de trabalhar em um jornal de um movimento social que, a

partir da década de 1980, se tornou o maior e, para muitos estudiosos, o mais significativo do

país. Cada um com sua trajetória de vida e anseios se assemelham nessa tarefa.

É importante destacar que, pensando no trabalho do jornalista na produção do Jornal

Sem Terra e em outras tarefas de comunicação no MST, existiam tensões e conflitos. A tensão

advinha da própria pressão exercida por se trabalhar no Setor de Comunicação do maior

movimento social de luta pela terra do país e que sempre estava em evidência no cenário

político brasileiro. Os conflitos, por vezes, eram normais, pois em uma equipe de trabalho há

pensamentos divergentes e relações que se desgastam com o tempo. Há também que

considerar o fato desses editores estarem sob a responsabilidade da Direção Nacional do

MST. Sendo assim, eram cobrados e exigidos no desenvolvimento dos trabalhos no jornal. De

156 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012.

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forma geral, os entrevistados não evidenciaram tanto os conflitos e as tensões na editoração

do jornal, a não ser a quantidade de trabalho, que era considerável.

A tensão e o conflito ficaram mais explícitos na narrativa de Lerrer. A entrevistada

disse que, em alguns momentos, não foi respeitada enquanto profissional. Em sua fala é

perceptível certo incômodo com as relações vivenciadas, não só na editoração do jornal, mas

também, numa perspectiva mais ampla, no Setor de Comunicação. Ao ser “convocada” para

fazer assessoria de imprensa, paralelamente às outras atividades, os trabalhos triplicavam157.

Na visão de Lerrer, não foi fácil trabalhar no jornal, não só por ela ser recém-formada,

mas também pelo contexto que estava sendo vivenciado pelo MST com o governo FHC e

com as mídias, que criminalizavam as ações do Movimento. Os motivos que contribuíram

para sua saída foram, além do desgaste com o trabalho, as tensões e os conflitos no cotidiano

(clima não muito harmonioso) e a perspectiva de poder se dedicar e desenvolver outros tipos

de atividades.

Em contrapartida, mesmo com as tensões, conflitos e dificuldades que envolviam a

editoração do jornal e outras atividades de comunicação no MST, os editores entrevistados

destacaram que as experiências dos trabalhos realizados foram essenciais para suas

respectivas formações enquanto profissionais. Foi um tempo, sobretudo, de aprendizado.

Cristiane Gomes ressaltou que o tempo de editoração do jornal foi o “período que me

formei mesmo, tecnicamente, eticamente. Aprendi muita coisa trabalhando lá”. Assim, disse

que tinha muito orgulho de ter feito “parte dessa história e poder colocar o meu

conhecimento, a minha técnica jornalística a serviço de uma causa que eu acreditava e

continuo acreditando, que é não só a reforma agrária, mas uma mudança real de visão e de

paradigma no Brasil”158. Para Igor, foi “uma honra muito grande editar um jornal que tenha

essa importância política na história do Brasil e na história do MST, e também uma

responsabilidade muito grande que esse jornal cumpra seus objetivos”159. Joana disse que foi

um orgulho ter passado e contribuído com a história do Jornal Sem Terra. Em sua visão, foi o

trabalho “mais prazeroso dentro da comunicação do movimento, foi muito importante e

interessante poder me relacionar com as pessoas que escreviam, com os temas, e conhecer

melhor a diversidade de experiências e desafios com que uma organização do porte do MST

se depara”160. Nilton revelou na entrevista que a experiência em trabalhar no jornal foi ímpar

157 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012. 158 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 159 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 160 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012.

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em sua vida profissional, pois foi um “momento muito rico”161. Além do aprendizado, estava

fazendo um tipo de mídia que tinha seu perfil profissional.

Sobre a escolha e produção das notícias, os editores salientaram que esse processo se

dava por meio de uma “reunião de pauta”, geralmente mensal, ou de acordo com as

necessidades. Antes de cada edição, os editores, os representantes da Direção Nacional do

MST e alguns coordenadores de setores da organização, reuniam-se para discutir a edição

anterior e a pauta para a próxima edição. Isto é, quais as matérias e os assuntos que seriam

abordados no jornal. Os nomes mais frequentes da Direção Nacional nas reuniões de pauta

eram os de João Pedro Stedile e Neuri Rosseto. Aliás, os nomes dos dois aparecem no

expediente de algumas edições na década de 1990.

Destaca-se também que, nos estados, havia militantes responsáveis por contribuir com

as reportagens. Esses colaboradores não eram jornalistas de formação, mas seus nomes eram

sempre evidenciados no expediente do jornal, geralmente, escreviam textos sobre os

acontecimentos significativos nos estados e enviavam para os editores. Posteriormente, os

responsáveis pela produção do jornal faziam uma triagem das notícias e, quando necessário,

as reescreviam e publicavam no periódico. Todavia, os conteúdos do jornal eram discutidos

na reunião de pauta.

A partir dos editores entrevistados, percebeu-se que essa reunião era “um debate

aberto”162 e coletivo, em que cada participante poderia expor suas posições e sugestões. Na

compreensão de Joana: “toda a pauta era discutida em conjunto, com o setor de comunicação

e representantes da direção. Se alguma pauta ‘caía’ discutíamos juntos como substituí-la”163.

Ao falar sobre a dinâmica da produção do jornal, Nilton ressaltou: “a gente sentava e fazia

uma reunião de pauta geral, dos temas, da conjuntura nacional, enfim, e das principais lutas

que iriam se desenvolver. E no decorrer do mês até a data de fechamento, produziríamos essas

pautas juntos com militantes etc.”164. O jornal era pensado durante todo o mês, e o seu

conteúdo escolhido rigorosamente. Por mais que houvesse um debate aberto, em que os

participantes pudessem expor suas opiniões, é interessante que a Direção Nacional tinha um

peso considerável nessas reuniões, sobretudo, no “tom político que aquelas matérias iriam

ter”165, como enfatizou Cristiane.

161 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 162 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 163 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012. 164 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 165 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012.

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A participação da Direção Nacional do MST na produção do jornal era importante e

fundamental. Sinara destacou que o jornal “era de responsabilidade direta de dois dirigentes

que tinham uma visão muito própria sobre o que deveria ser feito e tinham uma cultura de

“revisar” os textos já prontos”166. A entrevistada não revelou quem eram esses “dois

dirigentes”, mas possivelmente seriam João Pedro Stedile e Neuri Rosseto, uma vez que eles

acompanhavam a produção do jornal na época.

A fala de Nilton é muito elucidativa quanto à participação e quanto ao papel da

Direção Nacional do MST na produção do periódico: “a direção sempre teve um papel

importantíssimo, inclusive no acompanhamento. O MST sempre teve essa preocupação de ter

um dirigente nacional responsável pelo Setor de Comunicação”167. Nilton salienta que a

participação da Direção Nacional era importante para manter o que chama de “coesão” do

conteúdo político e ideológico do Movimento. Ou seja, os discursos produzidos no periódico

tinham de ser edificados de acordo com os interesses políticos e ideológicos do MST. O

Jornal Sem Terra deveria ser o instrumento de representação da Direção Nacional do MST.

Por parte dos dirigentes nacionais havia essa preocupação, por isso, o cuidado em acompanhar

a produção do jornal.

Mas sempre teve o acompanhamento e a pauta era sempre discutida com a

Direção Nacional, inclusive por ela ser esse instrumento político, de

formação, de unidade nacional. Então, o jornal precisava estar coeso com o

conjunto do Movimento, com o conjunto da direção, daí a necessidade

sempre de ter um dirigente acompanhando de perto o conteúdo político e

ideológico do Jornal Sem Terra168.

Ao falar da dinâmica interna da editoração do jornal, Lerrer observa que, quando

chegou, já existia uma “dinâmica pré-estabelecida”, com correspondentes nos estados e

pessoas responsáveis por enviar as notícias. A modificação foi em relação à proposição de um

novo projeto gráfico, porque na sua visão o anterior era um pouco confuso. Aliás, ao se

folhear o jornal, nota-se que cada editor modificava alguns elementos gráficos em sua

composição. Quanto ao processo de produção, até ao de fechamento do jornal, Lerrer

evidencia algumas tensões no trabalho:

166 Sinara Sandri. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012. 167 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 168 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012.

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Eu fechava, depois eles criticavam a edição e tal, entende? Eu vivia levando

pau, porque eu tinha feito isso errado e não sei o que. Aí depois de vários

tempos, assim... porque é horrível, tu vai lá finaliza o jornal sozinha e depois

vem um monte de gente te criticar. Bom, eu falei então: “apareçam na hora

do fechamento, porque tem coisas que se decide no fechamento”. Aí

começou a captar, no fechamento e tal169.

O eles a que Lerrer remete são as lideranças pertencentes à Direção Nacional do MST.

Ela compartilhava as críticas que recebia ao fechar o jornal, pois sempre havia alguém para

criticar alguma coisa. Em sua fala, Lerrer demonstra certa indignação com aquela prática, ela

finalizava o jornal sozinha, e depois recebia críticas. Percebe-se certa tensão e conflito no

discurso de Lerrer, quando ela se remete ao processo de finalização do jornal, o que não quer

dizer que as pessoas envolvidas não tinham bons relacionamentos e não compartilhavam das

mesmas ideias. A tensão, explicitada por Lerrer, estava ligada mais ao processo de produção

do periódico do que às relações interpessoais entre os envolvidos com o jornal.

No que diz respeito à participação da Direção Nacional do Movimento, Lerrer ressalta

que sempre havia “alguém da Direção Nacional que ficava responsável pelo jornal”170, tanto

na elaboração de pauta quanto no fechamento do periódico. Torna-se relevante destacar que

os editores gozavam de certo tipo de autonomia considerando que, por serem profissionais da

comunicação, também tinham suas concepções sobre o ofício do jornalista.

Em sua narrativa, a entrevistada Cristiane enfatiza sua autonomia ao editorar o jornal,

mas observa que, sempre que surgia alguma dúvida ou questão delicada, recorria a algum

membro da Direção Nacional. Sobre a produção do jornal, fez questão de destacar também

que a Direção Nacional não a controlava “ditatoriamente”. Havia certo cuidado com os

discursos e com aquilo que era publicado, mas isso não significava que a Direção ficasse

controlando a produção das matérias o tempo todo, ou que queria ver tudo que estivesse sendo

produzido. Nas reuniões, e antes de se publicar o jornal, a Direção Nacional analisava o que

era produzido, preocupando-se, com o que Cristiane chama de “tom político”, com o fato de

os discursos estarem ou não alinhados politicamente com as concepções do MST.

Questiona-se, assim, até que ponto ia a autonomia do profissional de comunicação

nesse caso? Pode-se dizer que ela era limitada ao “tom do MST”, posto que era necessário

seguir um discurso pautado no que pensava e no como agia o Movimento. Essa é uma questão

que Bernardo Kucisnski observa ao estudar a denominada imprensa alternativa. Ao refletir

sobre as diferenças entre os alternativos que se disseminaram no período da Ditadura Civil-

169 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012. 170 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012.

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Militar e os alternativos que continuaram e/ou nasceram na década de 1980, o autor ressalta

que os segundos foram incentivados por grupos e entidades civis e religiosas, como é o caso

do Jornal Sem Terra. Os alternativos que nasceram após a década de 1980, por vezes, se

tornaram institucionalizados, por estarem ligados a entidades, movimentos sociais e partidos

políticos. Na produção desses periódicos, denominados por Kucisnski de “basistas”, o

jornalista não seria mais o sujeito do processo e sua autonomia estaria comprometida. Nos

alternativos do tempo da ditadura Civil-Militar, o jornalista era o protagonista, já nos

alternativos ligados a instituições e movimentos sociais, ele passa a ser um assalariado e deve

defender as posições políticas e pragmáticas do grupo ligado ao jornal171.

Em sua tese de Doutorado, ao refletir sobre o jornal que editorou por mais de seis

anos, Lerrer sublinha que, a partir de 1986, o jornal foi “enquadrado” de acordo com as linhas

políticas do Movimento. Isto é, seus discursos eram construídos conforme o pensamento da

Direção Nacional. Nesse processo, como jornalista e editora do periódico, sua escrita é

tangida por certa tensão entre seu trabalho como jornalista e editora do periódico e aquilo que

a Direção Nacional do MST representava. Nessa dinâmica, a jornalista enfatiza que, “de

modo algum, eu me considerava ‘enquadrada’ pelas linhas políticas do MST, pois eu

simplesmente as compartilhava”172. É evidente a tensão na escrita de Lerrer, quando faz

questão de dizer que não se sentia “enquadrada” pelo MST. Na entrevista, destaca isso

também: o compartilhar das ideias do Movimento, mas não o se sentir “enquadrada”. O

interessante é que, ao mesmo tempo em que diz isso, relata que era um diálogo “que tinha um

peso”. Tinha o “peso político” da Direção Nacional, mas também havia o “peso técnico” do

jornalista173. Ou seja, ela era a profissional em jornalismo e em alguns momentos tal condição

tinha influência. Mas, no que tange aos discursos e matérias veiculadas, o “peso político” da

Direção Nacional era mais significativo que o da profissional de jornalismo. Considera-se que

Lerrer era uma funcionária do MST, que trabalhava em seu Setor de Comunicação, sendo

assim, algumas questões eram debatidas, outras acatadas.

No que diz respeito à produção e à qualidade do Jornal Sem Terra, há que sublinhar

que, em mais de 30 anos, com a colaboração de diversos jornalistas, o periódico avançou

consideravelmente nesses aspectos. Na edição de maio de 1986, nº 52, o jornal teve aumento

de sua tiragem para quarenta mil exemplares. Na visão de Bezerra, o aumento estava ligado

não só ao crescimento do número de assinantes, mas também ao fato de o periódico ser

171 KUCINSKI, B., Jornalistas e Revolucionários, p. XXVIII. 172 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 14. 173 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012.

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entendido cada vez mais como uma ferramenta de formação política e de aperfeiçoamento

daquilo que a organização do Movimento queria para seus integrantes. Assim, “o próprio

jornal demonstrava preocupação com relação à qualidade e teor da informação levada aos

trabalhadores e a repercussão que esta gerava em um público cada vez maior”174. O número

de páginas de cada edição variava entre 12 e 22 folhas, a quantidade estava associada às

tensões e aos enfrentamentos no campo, até o fechamento de cada edição.

No ano de 1986, o jornal conquistou o VIII Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e

Direitos Humanos na categoria Imprensa Sindical e Popular. Na época, Flademir Araújo era

o jornalista responsável por sua produção. Esse prêmio foi instituído em 1979 pelos seguintes

grupos: Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, Comissão Executiva

Nacional dos Movimentos de Anistia, Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ),

Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) e

Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Para o MST e para o Jornal Sem

Terra, que tinha seis anos de existência, foi motivo de conquista e satisfação175. O prêmio

significava que o jornal era relevante no contexto nacional da luta pela terra e estava sendo

reconhecido entre os profissionais da comunicação.

Ao longo de sua trajetória histórica, os editores do jornal criaram diversas seções176

em seu interior. A respeito do avanço técnico e de editoração do jornal, destacam-se como

exemplo as capas das edições de fevereiro/março de 1987, nº 60, e fevereiro de 2004, nº 237.

174 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 71 175 Sem Terra: prêmio Herzog 86. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro/dezembro de 1986, Ano V, Nº 58. p. 19. 176 Sobre a estruturação das seções e principais temáticas abordadas no Jornal Sem Terra, ver as pesquisas de

Fernando Perli (2002; 2007) e Antonio Alves Bezerra (2011), já enunciadas neste trabalho.

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Imagem 4 - Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro/março de 1987.

Editor responsável: Flademir Araújo

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Imagem 5 - Capa do Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2004.

Editora responsável: Cristiane Gomes

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É perceptível, por meio da materialidade dessas capas, o avanço técnico e a qualidade

do impresso, com a inclusão de mais imagens e cores às páginas. A diagramação se redefiniu

e os textos ficaram melhor distribuídos. Em seu interior, há diversidade de temáticas

publicadas, as mais recorrentes são as seguintes: reforma agrária, violência, política,

organização dos trabalhadores nos estados, lutas sociais tanto no país como em âmbito

internacional, orientações gerais para os seus militantes, dentre outras questões. E, quais eram

as maiores dificuldades no processo que envolvia a produção do periódico? Como era a

distribuição e o financiamento do jornal? Nas entrevistas com os editores, perceberam-se

alguns aspectos que envolvem essas indagações.

As dificuldades relacionadas ao processo de produção eram muitas. Cada editor, em

sua época, destacou o que concebia como dificuldade. Lerrer, por exemplo, salientou que no

tempo em que ficou como editora “tinha problemas de vários tipos”:

Às vezes, por exemplo, a informação, algumas pessoas de alguns estados

achavam que era bom inflar o número de famílias, isso nunca é bom. Tipo,

colocar que tinha 300 quando tinha 100. Às vezes o texto tinha que

reescrever, com frequência, geralmente eu reescrevia. E, às vezes eles não

davam importância pra mandar a notícia quando eu sabia que estava

acontecendo alguma coisa importante lá, então tinha que ir atrás. Isso era

mais, talvez assim, em termos de produção do jornal isso era mais

evidente177.

De acordo com sua fala, as dificuldades estavam relacionadas às notícias enviadas

pelos militantes nos estados, as quais chegavam com demora e tinham de ser reescritas. No

que se refere à ampliação dos números, isso era algo considerado, pela entrevistada, como

negativo; uma ação com a qual ela não concordava devido à sua ética profissional e ao fato

de, segundo ela, não ser adequada nem para o MST nem para o periódico. Sobre os textos mal

escritos, é possível pensar sobre a falta de experiência com a escrita jornalística desses

militantes, e também sobre a pouca escolaridade e dificuldade para colocarem no papel aquilo

que viam e vivenciavam. Nesse caso, havia, ainda, limites entre o ideal e o real, pois os

militantes colaboradores nos estados tinham dificuldades diversas para o envio dos textos, em

especial, dos textos com uma escrita jornalística apurada. O ideal era que enviassem notícias

bem redigidas que chegassem a tempo de serem publicadas, mas o real que configurava esse

processo era limitado e dependia das experiências históricas dos militantes colaboradores.

177 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012.

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A fala de Nilton vai ao encontro da narrativa de Lerrer – na época em que Nilton

editorou o Jornal Sem Terra, a maior dificuldade se encontrava na forma e no como as

notícias chegavam. Ele faz essa análise partindo das tecnologias disponíveis no contexto em

que se realizou a entrevista. Em sua visão, os textos chegavam sob a forma de cartas, muitas

vezes de difícil compreensão, via Correios178. E, transformar os textos que chegavam em

notícias, demandava muito trabalho na editoração. Ao ser indagado sobre outras dificuldades,

Nilton se esquivou um pouco em falar sobre elas, preferindo enfatizar sempre o quanto o

trabalho foi difícil, mas, ao mesmo tempo gratificante, sendo uma experiência profissional e

de vida muito significativa. Para Nilton, falar das dificuldades que envolviam a editoração do

jornal, talvez pudesse ofuscar o quanto esse tempo foi relevante em sua vida. Por isso,

esquivou-se de adentrar mais profundamente nas dificuldades vivenciadas.

Cristiane também destacou a dificuldade interna relacionada à chegada das

informações: muitos estados não tinham uma equipe organizada para enviar as notícias aos

editores. Ela cita que os estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro eram mais

organizados internamente em relação a isso e enviavam muitos textos. A editora salientou

dificuldades para compor o jornal, como a falta de imagens: “a gente tinha às vezes umas

questões práticas, de ter fotos legais pra poder ilustrar o jornal. A gente não podia comprar

foto porque a gente não tinha dinheiro pra ficar gastando assim. Às vezes eu sentia falta da

gente ter essas imagens”179. A falta de dinheiro foi apontada também por Joana. Para ela, o

mais complicado era a questão financeira. “A periodicidade mensal do jornal nem sempre se

cumpria devido as dificuldades financeiras”180. O jornal não tinha tanto poder aquisitivo, até

porque sua produção não visava o mercado e não reservava espaços para publicidade e

propaganda. Isso não quer dizer que o MST não incentivasse e fizesse campanhas para

angariar assinaturas. Nas edições do jornal, geralmente na última página, sempre havia algum

texto de incentivo aos leitores para que assinassem o periódico, evidenciando sobre como e

indicando os valores da assinatura.

A visão de Sinara, quanto às dificuldades, estava mais relacionada à estrutura do

jornal. Conforme a entrevistada, “o grande problema era o perfil da publicação que precisava

ser arejado, pois não conseguia romper com o formato de panfleto. Para ter uma ideia, a capa

178 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012. 179 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 180 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012.

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do jornal seguia sempre o mesmo padrão gráfico”181. Para ela, essa estrutura tornava a

publicação bastante monótona. Seu olhar sobre as dificuldades era sob o ponto de vista

técnico e estrutural e não sobre o como as notícias chegavam e eram produzidas. Sinara

ressaltou, ainda, que a estrutura era pequena e o quadro de profissionais reduzido. Essas

últimas questões têm a ver com o fato de o jornal não disponibilizar de muitos recursos

financeiros.

Nessa perspectiva, como o jornal era financiado? Ele se auto-sustentava? A produção

do Jornal Sem Terra, em todo o processo, era de responsabilidade do MST. Era tarefa da

organização do Movimento bancar sua produção – trabalhos técnicos, impressão – e

distribuição. As despesas que envolviam o jornal eram previstas e sistematizadas no

orçamento do MST. A esse respeito, a entrevistada Cristiane menciona que “o jornal estava

no orçamento do Movimento como um todo”182. Igor, por sua vez, ao ser indagado se o jornal

se auto-sustentava, chegou até a alterar o tom de voz para dizer: “não”. Segundo ele, “o

Jornal Sem Terra é um jornal do MST, então o MST tem a tarefa de garantir que esse jornal

seja rodado pra que a militância receba essas informações, ou seja, essa é uma tarefa da

organização”183. Nilton enfatizou consideravelmente que o jornal não era auto-sustentável do

ponto de vista das assinaturas e também não tinha caráter mercadológico.

O jornal do MST nunca se preocupou, ele sempre foi sustentado pela

militância, pelas cooperativas, pelas doações. Assim como o MST se

sustenta. Sustenta por doações, por contribuições, pela participação

voluntária, participação da militância. Então, ele nunca teve essa

preocupação de ser um veículo sustentado por assinantes. As assinaturas

sempre foram muito pequenas, do ponto de vista financeiro. Ele era

sustentado fundamentalmente pela própria organização, com os recursos da

própria organização, porque tem esse papel estratégico, sempre cumpriu esse

papel estratégico. Então, nunca foi uma preocupação do ponto de vista de ter

auto-sustentação do veículo, até porque ele não é algo independente, ele é

um instrumento da própria organização e voltado pra organização184.

A partir das palavras de Nilton, nota-se que não havia uma obsessão do Movimento

em relação à auto-sustentação do jornal. A sustentação era de responsabilidade do MST, uma

vez que ele era um instrumento político de sua organização, estratégico para seus objetivos.

Mesmo que o Movimento fizesse constantemente campanhas e estimulasse seus integrantes a

181 Sinara Sandri. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012. 182 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 183 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 184 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012.

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assinarem o jornal, no sentido de que as assinaturas dariam um suporte para sua produção, era

tarefa do MST garantir que ele fosse produzido e distribuído entre seus integrantes. Flademir

Araújo, primeiro editor responsável pelo periódico, entendia que, mesmo com dificuldades

financeiras, “manter o Jornal Sem Terra era uma questão de honra”185 para o MST. O

Movimento, ao longo de sua trajetória histórica, sabia da importância política do jornal para

sua organização. Por este prisma, nunca cogitou parar com sua produção, e o jornal se tornou

parte integrante e instrumento político da organização do MST.

De acordo com Igor, a linguagem – um dos aspectos relacionados à produção do jornal

– sempre foi preocupação e dificuldade permanentes. O jornal teria que ser atraente e

acessível, tanto para os trabalhadores rurais que apresentavam dificuldade de leitura e

entendimento, quanto para os militantes que tinham um grau de escolaridade maior. Assim,

para além da estética, “ser acessível e elevar o nível de conhecimento, de nível cultural da

nossa base e da nossa militância”186.

Sob esse aspecto, ao estudar o Jornal Sem Terra, Perli reflete que, talvez, os resultados

de leitura do periódico, por parte dos sujeitos sem-terra, dependessem da redação do jornal.

Os mecanismos de recepção dos trabalhadores rurais são distintos dos mecanismos dos

trabalhadores urbanos. Para Perli, o jornal conquistava mais leitores urbanos do que rurais187.

Por parte das lideranças do MST, havia essa preocupação com a linguagem do jornal e foram

realizados debates em face desta questão.

Quanto à distribuição do periódico, o entrevistado Igor destacou que essa era uma das

maiores dificuldades. Em suas palavras, a preocupação era: “Como é que chega na ponta.

Como é que chega no acampamento e assentamento. Como é que chega nos coordenadores

das brigadas188 dos assentamentos e acampamentos. Como é que vai organizar o coletivo, a

brigada para ler conjuntamente o jornal, pra discutir os textos”189. Portanto, como se dava a

185 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min. 186 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 187 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 155. 188 Para se referir à organização do Movimento, o termo brigada passou a ser utilizado no início do século XXI.

Sistematicamente, cada 500 famílias assentadas e/ou acampadas em municípios próximos compõem uma

brigada, onde se organizam os núcleos, setores, direção e coordenação estadual. “A brigada se organiza em

setores (frente de massas, produção, educação, formação, saúde, gênero, comunicação, cultura) e em equipes de

finanças, secretaria, disciplina e direitos humanos” (LERRER, 2008, p. 29). Essa organicidade foi construída

para tentar resolver problemas internos da organização, que, por vezes, estava muito ausente da realidade vivida

pelos sujeitos nos acampamentos e assentamentos. Enfim, aproximar os dirigentes das famílias. Em cada brigada

de 500 famílias, era escolhido de forma coletiva um homem e uma mulher para serem dirigentes e um/uma

coordenador responsável por todo o grupo. 189 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012.

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distribuição do jornal? Igor explicou que o periódico era distribuído de duas formas. A

primeira seria “a mais tradicional”. A partir da tiragem, a quantidade de exemplares era

dividida conforme a demanda dos estados, e eles eram enviados para as Secretarias

Estaduais. Chegando aos estados, os militantes faziam uma redistribuição do jornal para as

secretarias regionais e/ou lugares com maior concentração de integrantes do Movimento. A

outra forma de distribuição seria a partir das “assinaturas”. Os assinantes do jornal recebiam

os exemplares em sua residência ou no local de destino indicado190. Joana e os outros editores

também salientaram essa forma de distribuição do periódico:

O jornal é distribuído para todos os estados onde o MST está organizado, e a

partir das capitais se dá a distribuição para o interior. Os assinantes recebem

seus exemplares por correio. Como a tiragem é bem menor que a base social,

a secretaria nacional faz uma estimativa mensal de quantos exemplares vão

para cada estado (aqueles com maior base recebem uma quantidade

maior)191.

Ainda sobre sua distribuição, pode-se indagar: será que o jornal chegava aos

acampamentos e assentamentos localizados no interior dos estados? Bezerra enfatiza que o

Jornal Sem Terra se fazia presente no dia-a-dia dos trabalhadores rurais, levando “aos mais

longínquos rincões do país, denúncias das desigualdades sociais no campo, anúncios de

conforto, solidariedade, animação e empenho em promover a rearticulação dos trabalhadores

na luta pela reforma agrária”192. O jornal até podia chegar aos lugares mais longínquos e ser

um objeto de leitura dos acampados e assentados; contudo, nas entrevistas com os editores,

observou-se que nem sempre os exemplares chegavam aos acampamentos e assentamentos.

Igor chegou a dizer que o estímulo para que os integrantes fizessem a assinatura do jornal

poderia minimizar este problema, no sentido de que o exemplar iria direto para a residência

do assinante. Também, pensando na quantidade de exemplares, entre vinte a quarenta mil, o

jornal não chegaria a todos os integrantes do MST193. Há de se ressaltar que, nem todos os

integrantes do Movimento se interessavam em ler o jornal, por motivos diversos:

analfabetismo, ausência de hábito de leitura, desestímulo por não achar o jornal atrativo, etc.

190 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 191 Joana Tavares. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Realizada por meio de questionário (correio

eletrônico), 2012. 192 BEZERRA, A. A., O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus Temas: 1981-2001, p. 21. 193 Por parte da organização do MST existe orientação e estímulo para que se faça a leitura coletiva do jornal e

de outros materiais nos acampamentos, assentamentos e cursos realizados pelos integrantes do Movimento.

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Lerrer também fez comentários acerca de como era a dinâmica de distribuição do

jornal e apontou para a problemática de o jornal não chegar aos acampamentos e

assentamentos. Assim disse:

Ah, era uma coisa. Porque a gente até no período, tu imagina, que a gente se

reunia todo mundo da Secretaria Nacional para etiquetar o jornal e mandar

pelos Correios. Tinha uma tarde toda que todo mundo ficava etiquetando o

jornal. E, não chegava. E aí pros estados iam caixas de jornais. Tinha toda

uma dinâmica de distribuição. O problema é que chegavam as caixas lá e às

vezes ficavam acumuladas na Secretaria194.

Sublinhe-se que havia intento da Direção Nacional do MST para que o jornal chegasse

aos diversos acampamentos e assentamentos de sua organização em todo o país. Mas, na

prática, essa era uma questão complexa e não lograva muito êxito. De acordo com Perli,

apesar da periodicidade regular, o jornal “ainda era distribuído de maneira deficiente”195.

Mesmo chegando aos seus destinos (Secretarias Estaduais e entidades solidárias de apoio ao

Movimento), os exemplares não tomavam rumo até os acampamentos e assentamentos. Sendo

assim, a distribuição do jornal para os integrantes do MST ficava comprometida. Em meio a

esse processo, o que representa a comunicação no MST? E o Jornal Sem Terra na

organização do MST? E, para a Direção Nacional? Essas são perguntas centrais das próximas

reflexões.

1.3 Comunicação engajada e o Jornal Sem Terra na organização do MST

Ao longo de sua trajetória histórica, o Jornal Sem Terra pôs em evidência

preocupações com a formação de seus integrantes, com a organização interna do MST, assim

como com questões mais abrangentes de interesse nacional e internacional. O jornal foi

sofrendo transformações junto com o próprio MST, e a diversidade de seu público e objetivos

eram considerados um dilema. Entre os anos de 1986 e 1987, passou a ser mais direcionado

ao público interno, à organização e a militantes do MST. Sobre esse período de transição,

Perli destaca:

194 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012. 195 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 155.

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A transição do Sem Terra de boletim a tablóide foi caracterizada por uma

profunda organização gráfica. A administração a cargo de um jornalista

trouxe novas perspectivas para o BST que ao tornar-se Jornal dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra teve como instância de sua organização a

Comissão do Jornal. Até 1987 a Comissão traçou com a Executiva Nacional

uma estratégia jornalística voltada para a organização e consolidação do

MST em caráter nacional196.

Ao se apropriar do periódico, o MST, por meio de sua Direção Nacional, vislumbrou

outras perspectivas para o jornal. Flademir Araujo, que acompanhou esse processo, destaca

que havia dois caminhos a seguir: continuar a ser um jornal mais informativo e de divulgação

das lutas ou direcioná-lo para a organização interna do Movimento e para a formação dos seus

militantes. O MST decidiu seguir a segunda opção e, a partir de 1984, o Jornal Sem Terra

passou a ser um instrumento político e de formação da organização do Movimento.

Para tanto, o público alvo do Jornal Sem Terra seria sua própria militância. Nas

entrevistas, os editores destacaram o fato de o jornal ser produzido com o foco na base e na

militância do Movimento. Conforme Igor, “no decorrer da história do MST, o jornal foi se

constituindo como um veículo voltado para a militância do MST, pra militância e pra base do

Movimento”197. Mesmo sendo pensado e produzido para a base e militância do Movimento,

como já foi destacado, não quer dizer que ele chegava a todos os acampamentos e

assentamentos ligados ao MST.

Há que se pontuar que, ao longo da história, movimentos operários, partidos de

esquerda e organizações de trabalhadores rurais utilizaram meios impressos com vistas a que

eles contribuíssem para suas organizações. Nessa perspectiva, o MST não foi precursor. Mas,

sem dúvida, foi uma das organizações sociais que mais investiu na produção de um periódico

e em políticas de comunicação.

Maria Nazareth Ferreira ressalta que o uso de meios de comunicação na organização

de movimentos sociais no Brasil se tornou corrente, desde o início do século XX, e estava

ligado a grupos socialistas, comunistas e anarquistas. Ao analisar a imprensa operária no

Brasil, entre as décadas de 1880 e 1920, Ferreira elenca que houve a difusão de centenas de

periódicos, cuja função era divulgar as doutrinas partidárias dos grupos198. No que tange à

imprensa operária, houve um manancial de publicações, contudo, havia debilidade de

periódicos voltados aos movimentos no campo. Além do Jornal Sem Terra, destacam-se o

Jornal Terra Livre, de responsabilidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1949; e o

196 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 19. 197 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 198 FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil (1880 – 1920). Petrópolis: Vozes, 1978.

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Liga, em 1962, editado por intelectuais, estudantes e militantes que mantinham contatos199,

estimulavam e prestavam assessoria aos trabalhadores rurais.

O MST, ao longo de sua trajetória histórica, edificou uma estrutura organizativa

“múltipla, plural e híbrida”200. Essa estrutura se caracteriza como flexível e dinâmica,

envolvendo todas às suas instâncias de representação, setores e coletivos de trabalho. Para

além do Jornal Sem Terra, o Movimento tem investido em políticas de comunicação,

sobretudo, na década de 1990. Isso fica evidenciado na criação do Setor de Comunicação, no

ano de 1997. Vale ressaltar que as atividades de comunicação do MST não começaram com a

criação formal do Setor de Comunicação: tiveram início com a editoração do Jornal Sem

Terra e com a de outros materiais internos da organização do Movimento, como os Cadernos

de Formação, Cadernos do Educando, Manuais, Cartilhas, dentre outros201.

Anterior à criação do Setor de Comunicação, em 1991, no Caderno Vermelho, nº 9,

intitulado Documento Básico do MST, o Movimento demonstrava o investimento e a

preocupação com suas mídias e propaganda. Nesse material, até então considerado por sua

organização o “documento mais importante da vida interna do MST”, eram explicitadas

brevemente algumas “linhas políticas” para os meios de comunicação do Movimento. A

orientação da Direção Nacional era a de que o documento fosse “conhecido, discutido e

aprofundado em todas as instâncias do MST e por toda militância”202. Para além dos meios de

comunicação, esse documento traçava um perfil político para os diversos setores e instâncias

do MST: frente de massas, políticas de alianças, organização interna, finanças, formação,

educação, cooperação agrícola, produção e reforma agrária. O tópico nº 5 do documento

tinha como título Comunicação: jornal e propaganda. Nele eram tratadas questões

199 Ao pesquisar a imprensa partidária, Medeiros compreende que, em um período em que os trabalhadores rurais

construíam uma linguagem política própria, de caráter classista, os impressos tiveram um papel relevante nesse

processo. Para tanto, enfatiza o papel da imprensa comunista na década de 1950. O PCB editou diversos

impressos na época, destacando-se o Voz Operária, um jornal de âmbito nacional, editado regularmente na

década de 1950. Em relação à imprensa comunista, através dos jornais eram “divulgadas análises políticas do

que eram considerados os grandes temas nacionais, diretrizes do partido, matérias sobre o movimento comunista

internacional, ampla cobertura sobre as lutas ‘operárias’” (MEDEIROS, 1998, p. 43-44). Na imprensa comunista

também eram veiculadas diversas informações sobre a situação do campo. Sobre o Jornal Terra Livre, ver:

MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. Os Trabalhadores Rurais na Política: o papel da imprensa partidária na

constituição de uma linguagem de classe. In: COSTA, Luiz Flávio Carvalho; SANTOS, Raimundo (Orgs.).

Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 41-57. 200 FERNANDES, B. M., Formação e Territorialização do MST no Brasil, p. 182-184. Sobre as atribuições das

instâncias de representação, setores e coletivos de trabalho no MST, ver: FERNANDES, Bernardo Mançano. A

Formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. O organograma da estrutura organizativa do MST,

construído por Fernandes, está em anexo na tese. 201 Ver: PERLI, Fernando. A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação – estratégias, representações e

política de comunicação do MST (1981-2001). 2007. 333 f. Tese (Doutorado em História). Universidade

Estadual Paulista – UNESP, Assis. 202 MST – Cadernos Vermelhos Nº 9. Documento Básico do MST. São Paulo, março de 1991. p. 3-4.

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específicas sobre a produção e a divulgação do Jornal Sem Terra e sobre a

propaganda/divulgação do MST perante a sociedade. O fato de existir um tópico específico

acerca dos meios de comunicação nesse documento evidencia a importância que a Direção

Nacional atribuía às formas de se comunicar do/no Movimento, tanto interna quanto

externamente.

Na década de 1990 houve investimento significativo nas políticas de comunicação do

Movimento e, por intermédio delas, foram criados diversos meios de comunicação. Houve

também a ampliação de parcerias com outras entidades, como resultado tem-se, por exemplo,

a rádio Vozes da Terra, construída inicialmente com o apoio da Universidade de Santos e

depois com a participação da PUC-SP. O MST expandiu, ainda, suas estratégias de

comunicação com a utilização de recursos audiovisuais, páginas virtuais, produções musicais

(CD Arte em Movimento)203 e programas de rádios comunitárias. No entender de Perli,

expandiu-se a “rede de sociabilidade” do MST com entidades solidárias que projetaram o

MST internacionalmente204. Abaixo, uma tabela com os meios de comunicação do MST,

organizada por Miguel Carter e Horácio Martins de Carvalho205:

Tabela 1 – Meios de comunicação vinculados ao MST, até 2007

Veículos associados ao MST

Meio Ano de Criação Frequência Difusão

Jornal Sem Terra 1981 Mensal 20 mil exemplares impressos

Revista Sem Terra 1997 Bimestral 7 mil exemplares impressos

Página de Internet 1997 Diária 3 mil acessos em média

Rádios Comunitárias * 1997 Diária 30 rádios localizadas em

diversos pontos do país

Vozes da Terra 2000 Mensal Distribuído a

aproximadamente 1500

rádios comunitárias

Letraviva 2000 Mensal Distribuído a mais de 60 mil

correios eletrônicos

Veículos apoiados pelo MST **

Meio Ano de Criação Frequência Difusão

Editora Expressão Popular 1999 - 171 títulos publicados em

730 mil exemplares

203 Sobre a produção musical no MST, ver: PIANA, Marivone. “Arte em Movimento” no MST: a expressão

simbólica das transformações. In: Movimentos Sociais Rurais: Identidades, Símbolos e Ideais. Cadernos de

Pesquisa, nº 24, novembro de 2000. p. 18-30; ______. Música e Movimentos Sociais: perspectivas iniciais de

análise. In: Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia. 2007, UFSC,

Florianópolis. p. 502-513. 204 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 190 205 CARTER, M; CARVALHO, H. M. de., A Luta na Terra: fonte de crescimento, inovação e desafio constante

ao MST, p. 316.

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Brasil de Fato 2003 Semanal 50 mil exemplares impressos

Radioagência NP 2004 Diária Reportagens distribuídas a

100 rádios

Agência Chasque 2005 Diária Reportagens distribuídas a 20

rádios no Sul do país

Fonte: Setor de Comunicação do MST e Editora Expressão Popular

* As 30 rádios comunitárias do MST surgem a partir de 1997, logo depois da emissão de uma nova lei

de radiodifusão.

** Entidades auspiciadas e apoiadas pelo MST, mas com conselhos editoriais autônomos.

Apesar de o MST ter investido na criação dos seus meios de comunicação, estes não

foram frutos apenas de produção interna do Movimento. A construção dos diversos materiais

foi desenvolvida com a ajuda de Organizações não Governamentais (ONGs) e simpatizantes

das lutas empreendidas por sua organização. Nesse processo, as lideranças do Movimento

tiveram a sensibilidade de construir e de se apropriar das diversas formas de se comunicar, no

sentido de que essas seriam relevantes para a organização. Dessa maneira, Perli ressalta que

“esta ação política possibilitou contatos entre o MST, cineastas, artistas e ONGs, o que gerou

um efeito de produção de tecnologias de comunicação pelos próprios sem-terra”. É importante

salientar que, mesmo com o investimento do MST nos meios de comunicação impressos,

grande parte dos materiais, inclusive o Jornal Sem Terra, não era muito identificado com os

gestos e falas dos trabalhadores rurais. Isso evidencia certo distanciamento no uso dos

impressos que, embora ricos de uma simbologia formal, estavam distantes da “dinâmica

cotidiana dos acampamentos e assentamentos”206. As dificuldades de leitura por parte dos

trabalhadores colocavam em debate a abrangência e a recepção dos diversos materiais que,

para o MST, sempre foram “instrumentos de luta”.

Em relação aos meios de comunicação, Joel Felipe Guindani ressalta que eles “não são

apenas simples meios de passagem, os quais teriam um ofício produtivo ou engendrador de

novos problemas na realidade”. Os meios de comunicação podem pulsar “sentidos gerando

alterações, podendo ser desestabilizadores ou controladores de ambientes ou situações

diversas”. É de longa data que os movimentos sociais se apropriam do que se pode chamar de

“práticas midiáticas”. Elas “sempre estiveram em posição párea ou indissociável com os

movimentos, não somente em tempos recentes, devido às facilidades de uso e acesso à

internet, mas desde os tempos dos panfletos, jornais e folhetins, rádio-poste em diante”207.

Nas últimas décadas e no contexto atual, destaca-se o Exército Zapatista de Libertação

206 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 200-201. 207 GUINDANI, J. F., Políticas Comunicacionais e a Prática Radiofônica na Sociedade em Midiatização: um

estudo sobre os documentos de comunicação do Movimento Sem Terra e Rádio Terra Livre FM, p. 56-57.

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Nacional (EZLN), do estado de Chiapas, no México, que faz uso das tecnologias da

comunicação para dialogar com a sociedade e com grupos simpatizantes de suas causas208.

Os movimentos sociais se apropriam dos meios de comunicação, a princípio, devido às

suas próprias demandas ou problemas. Para Guindani, “essa aproximação entre movimentos

sociais e o campo da comunicação se deflagra a partir de demandas que eles próprios

delegavam ao campo midiático”. Contudo, além de suas lutas específicas, os movimentos

sociais buscam desenvolver “tecnologias de comunicação visando ao reconhecimento, à

visibilidade e à legitimidade social para além de suas fronteiras”209.

Desde sua formação, ao incorporar o Jornal Sem Terra à sua organização e fomentar

seus próprios materiais impressos para seus integrantes, o MST soube captar bem essa

dimensão. Fladimir Araujo, que acompanhou o início desse processo na organização do

Movimento, observou que seus dirigentes, em meados da década de 1980, “sempre tiveram

esta visão estratégica da comunicação e o jornal era o principal instrumento”. Como era o

meio de comunicação mais bem estruturado no período, “tudo passava pelo jornal”210.

Posteriormente, o MST foi criando outros meios de comunicação, como pode ser observado

na tabela 1, mas o investimento na comunicação e na sua visibilidade enquanto algo

estratégico para sua organização foi elementar no MST. Nesta perspectiva, Guindani sublinha:

Com o passar do tempo, os Movimentos Sociais foram reconhecendo que o

espaço midiático também assumia uma função estratégica e política, capaz

de contribuir com seus objetivos e lutas. Em tempos de midiatização social,

torna-se impossível, a qualquer movimento social, continuar indiferente aos

espaços midiáticos, resistindo na surdina ou nas trincheiras das

articulações211.

Os movimentos sociais passaram, entretanto, a se preocupar com o distanciamento

entre a realidade de suas ações e as informações produzidas pelos meios de comunicação.

Assim, investiram em canais próprios de comunicação, visando a se expressarem por meio de

seus integrantes, contrapondo discursos de outros meios de comunicação. Conforme Maria da

208 Sobre o EZLN, ver: VARGAS NETTO, Sebastião Leal Ferreira. A Mística da Resistência: culturas, histórias

e imaginários rebeldes nos movimentos sociais latino-americanos. 2007. Tese (Doutorado em História). USP,

São Paulo. 209 GUINDANI, J. F., Políticas Comunicacionais e a Prática Radiofônica na Sociedade em Midiatização: um

estudo sobre os documentos de comunicação do Movimento Sem Terra e Rádio Terra Livre FM, p. 57-58. 210 ARAÚJO, Flademir. O Jornal se Transformou com o próprio MST. Entrevista concedida a Miguel Stedile.

Agosto de 2001. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2001/agosto/cul_078.htm. Acesso em: 20/09/2011, às

22h14min. 211 GUINDANI, J. F., Políticas Comunicacionais e a Prática Radiofônica na Sociedade em Midiatização: um

estudo sobre os documentos de comunicação do Movimento Sem Terra e Rádio Terra Livre FM, p. 58.

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Glória Gohn, “as lutas sociais também entraram para o mundo da realidade virtual, e isso

potencializou suas ações porque passaram a atuar em redes que ultrapassam as fronteiras

locais e nacionais”212. No caso do MST, a necessidade de investimento em seus próprios

meios de comunicação advém também do fato de o Movimento não poder se inserir nos

espaços regulados pelos grandes meios de comunicação. Nesse sentido, investiu na criação de

políticas e alternativas de comunicação. Mas, como deve ser a comunicação no MST? Quais

são suas linhas e diretrizes gerais? O que é o Setor de Comunicação? Quais são as suas

atribuições?

Como já foi salientado, o Setor de Comunicação do MST foi criado oficialmente no

ano de 1997213. Além do já citado Documento Básico do MST (Caderno Vermelho nº 9), em

fins da década de 1990 e início do novo século, foram sistematizados outros materiais e

documentos que tratavam da comunicação no MST. Dentre eles, destacam-se os livros

Construindo o Caminho, publicado no ano de 2001 e o Documento Básico da Atuação do

Setor de Comunicação, em 2003214. Para o MST, Construindo Caminho não era um livro, mas

sim um esforço coletivo de sistematização de experiências ao longo do tempo. Esse material

buscou dar uma visão do todo acerca da luta do Movimento, com a intenção de mostrar aquilo

“o que de fato é o MST”215. O público alvo desse livro eram seus militantes: visava-se a

formação desses militantes a partir das concepções e linhas políticas do Movimento. O livro

abordava várias e distintas questões sob a ótica do MST: modelo econômico e a agricultura;

projeto popular para a agricultura; a luta pela reforma agrária e o MST; linhas políticas dos

setores do MST; valores, disciplina, mística. Um dos temas do livro é a Comunicação. O fato

de estar no rol de assuntos abordados, denota a relevância e o interesse do MST em pensar e

sistematizar uma política de comunicação para sua organização.

O Documento Básico da Atuação do Setor de Comunicação está estruturado em 25

páginas, e é erigido a partir da compilação de diversos textos. O documento é fruto de

diversas experiências e concepções de militantes que trabalhavam direta e indiretamente no

Setor de Comunicação. Nesta direção, não há uma uniformidade na escrita. Muitas das

questões abordadas no referido texto já tinham sido publicadas em Construindo o Caminho.

212 GOHN, M. da. G., Mídia, Terceiro Setor e o MST: impactos sobre o futuro das cidades e do campo, p. 25. 213 Anterior à criação do Setor de Comunicação, os trabalhos e atividades de comunicação no MST eram

realizados por sujeitos designados para essa função, geralmente, os responsáveis pela elaboração do Jornal Sem

Terra e por outros materiais impressos. No que tange à relação com a imprensa externa, os militantes mais

experientes desenvolviam esse trabalho. 214 Foram publicados outros documentos importantes que abordam a temática comunicação no MST: Agitação e

Propaganda no Processo de Transformação Social (2007) e As Rádios do MST (2005). 215 MST – Construindo o Caminho. São Paulo, 2001. p. 5

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De maneira geral, o documento visava a orientar e a sistematizar as diferentes atividades de

comunicação desenvolvidas pelo MST, abrangendo questões variadas como, por exemplo, a

postura dos militantes diante de uma entrevista ou diante da organização de eventos e ações

na área de comunicação. Temáticas como cinema, publicidade, propaganda, comunicação

popular, assessoria de imprensa também foram contempladas.

O documento também abordava a relação do Movimento com a grande imprensa,

denominada “imprensa burguesa”, vista pelo MST como contrária aos interesses dos

trabalhadores rurais sem-terra. Enfim, objetivava traçar orientações gerais para os

“comunicadores” do Movimento, em seus diversos níveis: local, regional, estadual e

nacional216. As intencionalidades contidas no documento são relacionadas ao fato de se buscar

certa homogeneidade nas ações e atuações dos seus integrantes que estavam à frente desse

setor. Este documento também se configura como uma evidência da preocupação e

investimento do MST face aos seus meios de comunicação.

Ao criar o Setor de Comunicação, a organização do MST objetivou construir uma

comunicação diferente, a qual fugia à lógica mercadológica dos grandes meios de

comunicação. O setor foi criado para orientar discussões e encaminhamentos dos meios de

comunicação do MST perante seus integrantes e sociedade. Enfim, devia pensar e fomentar as

discussões relativas à comunicação no Movimento. O Setor de Comunicação funcionava e

funciona através de Coletivos organizados em diferentes níveis, sendo eles:

a) Coletivo Nacional de Comunicação – formado por duas pessoas de cada

estado, responsáveis pela comunicação.

b) Coletivo Estadual de Comunicação – em cada estado formado por uma

pessoa da direção estadual mais dois responsáveis por regional (...).

c) Coletivo Regional de Comunicação – em cada regional do estado, as

pessoas que colaboram e participam das atividades do Setor.

d) Equipe de Comunicação na Secretaria Nacional – é responsável por

articular o trabalho com os estados e garantir a edição do Jornal, da Revista,

da rede de computadores, de programas de rádio e ainda assessoria de

imprensa217.

O MST faz questão de enfatizar as linhas políticas gerais de trabalho no Setor de

Comunicação. Dentre as linhas políticas, a comunicação deve se articular aos princípios e

objetivos do Movimento, de forma que desenvolva um sistema de comunicação “para o MST

216 MST – Documento Básico da Atuação do Setor de Comunicação, 2003. 217 MST – Construindo o Caminho. São Paulo, 2001. p. 141-142.

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e do MST para a sociedade”218. Esse setor necessita criar estratégias e contribuir para o

avanço organizativo do Movimento. Nesta direção, os militantes que trabalham na

comunicação devem dialogar e desenvolver trabalhos com outros setores e garantir a

formação política e técnica dos comunicadores da organização.

A partir da criação do Setor de Comunicação, o MST passou a investir na formação de

“comunicadores populares”, capacitando seus integrantes para manusear equipamentos e

produzir materiais. Houve forte investimento também na formação de militantes para se

relacionarem com assuntos que diziam respeito à imprensa. No Movimento existem pessoas

definidas que podem falar em nome do Movimento aos meios de comunicação externos a sua

organização. Esse cuidado está no fato de a grande imprensa, geralmente, manipular e

distorcer falas dos militantes. Neste caso, todo cuidado para o MST é fundamental.

Em entrevista a Guindani, o militante Miguel Stedile destaca que a comunicação no

MST é estratégica e que as discussões desse setor são tratadas mais internamente. “[...] a

comunicação é uma das nossas grandes estratégias, então não vamos ficar colocando para

download na internet esses documentos ou tudo que estamos pensando, ou elaborando

estrategicamente sobre comunicação”. De acordo com Miguel Stedile, as discussões e

elaboração documental sobre comunicação no MST visam a manter a homogeneidade política

entre os militantes que trabalham nos setores de comunicação, assim como a servir aos

objetivos e anseios do MST: “se os nossos veículos não estiverem a serviço da nossa

organização, então eles não têm razão para existir”219. O MST compreende a comunicação

enquanto um instrumento para organizar e mobilizar seus integrantes. Essa questão fica

evidente em todos os princípios ideológicos da comunicação do MST, redigidos no livro

Construindo o Caminho. Em linhas gerais, esses princípios ideológicos enfatizam que a

comunicação deve estar a serviço do MST nos mais diversos níveis:

a) Resgatar a história dos antepassados, reafirmando experiências e

extraindo lições que possam contribuir para a preparação do futuro; b)

Estabelecer referência para a criação de uma nova cultura, no sentido de

valorizar e desenvolver aspectos que compõem a vida humana, de melhorar

e ampliar as formas de convivência, de propiciar que o camponês se

enxergue enquanto sujeito da história; c) Contribuir para o “despertar” do

novo camponês que esteja atualizado no tempo e localizado no espaço,

atacando os vícios que escondem e impedem o avanço das relações na vida

218 MST – Construindo o Caminho. São Paulo, 2001. p. 142. 219 STEDILE, Miguel. In: GUINDANI, J. F., Políticas Comunicacionais e a Prática Radiofônica na Sociedade

em Midiatização: um estudo sobre os documentos de comunicação do Movimento Sem Terra e Rádio Terra

Livre FM, p. 103.

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familiar e social; d) Incentivar a prática de valores que ajudem a melhorar a

vida da sociedade urbana e rural; e) Alimentar a mística em torno do gosto e

da razão de fazer as coisas com perfeição, como obra individual e social, que

elevará sempre mais a dignidade humana; f) Elevar a qualidade da

consciência nos seus diferentes aspectos, no sentido de compreensão da

realidade local e mundial; g) Estabelecer perspectivas para o futuro nas suas

mais diferentes dimensões; h) Manter a unidade política e ideológica em

torno dos programas, planos, símbolos, idéias estratégicas, etc.; i)

Desenvolver a visão nacional e internacional de luta de classes, e despertar o

espírito de indignação e de solidariedade; j) Estimular as formas de

organização na base social; l) Estar a serviço da construção do Projeto

Popular para o Brasil; m) Na forma de comunicação com a base e com a

sociedade, desmistificar a visão de que o MST é violento; n) Manter uma

unidade no comportamento em relação à postura ética dos dirigentes (porta-

vozes do MST); o) Combater fortemente os valores burgueses e jamais

repetir em nossos meios de comunicação os conteúdos e os valores

burgueses; p) Democratizar de maneira mais ampla possível as informações

dentro do MST; q) Criar oportunidade para que o maior número possível de

militantes se envolvam, planejem e participem de tarefas relacionadas com a

comunicação, formando os comunicadores populares e os militantes

comunicadores220.

Esses princípios ideológicos também estão contidos no Documento Básico da Atuação

do Setor de Comunicação (2003). Observa-se que a missão do Setor de Comunicação não é

fácil. A comunicação associa-se a dimensões amplas e complexas, passando pela conquista da

terra, valores, vícios, unidade política e ideológica, criação do novo camponês, combate aos

valores burgueses, formação de comunicadores, dentre outras. Implícito a esses objetivos, o

Setor de Comunicação deveria estar a serviço do MST, considerando suas lutas e projetos.

Comunicar, para o Movimento, se torna uma tarefa revolucionária que tem como

propósito combater e contrapor os discursos produzidos pelos meios de comunicação

inseridos na denominada grande imprensa, que, por vezes, ou quase sempre, associa o MST à

violência e à criminalidade. Outrossim, a comunicação no Movimento passa a ter um status

de ser estratégica. Os meios de comunicação devem primar pela unidade ideológica e política

do MST. Os militantes e profissionais envolvidos nas atividades de comunicação precisam

estar alinhados político e ideologicamente ao Movimento. É preciso destacar que, no

cotidiano dos grupos e no desenvolvimento das atividades de comunicação, existem

problemas e limites. As orientações são bem claras, mas na prática há elementos que fogem à

formalidade e à oficialidade.

O Setor de Comunicação em nível nacional responsabiliza-se pela produção do Jornal

Sem Terra. A respeito do jornal, é interessante registrar que o documento Construindo o

220 MST – Construindo o Caminho. São Paulo, 2001. p. 140-141.

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Caminho enfatiza que ele foi um “instrumento de organização” do MST, haja vista que seu

nascimento é anterior ao do Movimento. No que tange ao Jornal Sem Terra, atribui-se a ele o

objetivo de estimular:

- A unidade ideológica.

- Uma visão global da luta, da sociedade, do mundo.

- A luta de massa.

- Os conhecimentos sobre a realidade brasileira.

- Alimentar a mística revolucionária.

- E reforçar outras organizações e movimentos sociais aliados221.

Os estímulos direcionados ao jornal começam de dentro para fora e a unidade

ideológica torna-se algo fundamental para o MST. Nas entrevistas com os editores do Jornal

Sem Terra, houve a preocupação de elucidar esse aspecto. Para eles, o jornal deveria, acima

de tudo, uniformizar as informações e manter a unidade política e ideológica dos militantes da

organização. Além disso, deveria informar sobre a realidade brasileira, as lutas pela terra, e a

conjuntura nacional e mundial. A partir da perspectiva do MST de construir alianças com a

classe trabalhadora, o jornal necessitava divulgar as lutas de outras organizações e

movimentos sociais afinados com sua organização.

No entender de Igor, o jornal era, ao mesmo tempo, um instrumento político de

informação, agitação, luta da militância e base do Movimento. E, somado a isso, um

instrumento que “ajuda na constituição da unidade política do MST”222. Nessa perspectiva, o

Jornal Sem Terra tinha sua característica formadora, ou seja, através de suas páginas o MST

sistematizava suas normas gerais, valores, disciplina, mística, concepções políticas e olhares

sobre determinadas questões que envolviam a luta pela reforma agrária no país. Os Editoriais

e as seções intituladas Formação e Estudos sempre traziam um conteúdo político de formação

para os integrantes do MST. Na ótica da Direção Nacional, o jornal deveria ser utilizado em

diversas atividades do Movimento: em cursos de formação, assembléias e grupos de estudos

nos acampamentos e assentamentos223. Em relação a isso, Perli observa:

A Executiva Nacional defendia a idéia de que ao chegar nestes pontos de

mobilização, o jornal deveria adquirir inúmeras funções na organicidade,

como o amparo na formação, atualização de lideranças e de professores

221 MST – Construindo o Caminho. São Paulo, 2001. p. 135. 222 Igor Felippe Santos. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Secretaria Nacional do MST. São Paulo/SP, 2012. 223 MST – Cadernos Vermelhos Nº 9. Documento Básico do MST. São Paulo, março de 1991. p. 41.

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locais, práticas de leitura em grupos de estudo que discutiam temas presentes

no jornal de maneira interativa com os trabalhadores rurais sem-terra224.

Provavelmente, na prática, essa orientação não se efetivava em todos os lugares. Mas o

jornal fora produzido com essa intencionalidade. Cristiane, em sua entrevista, salientou essa

questão:

Muitos lugares faziam atividades de formação através do conteúdo do jornal,

então, por exemplo, uma entrevista sobre conjuntura internacional com o

professor... Sei lá, conjuntura internacional com Paulo Arantes. A entrevista

era utilizada como subsídio para fazer um debate, dentro da organização dos

acampamentos e assentamentos, pra fazer conversas, debates. O Movimento

tem muito essa questão da formação, da formação política e tudo, que ela

não se dá, ela não brota do chão, então você precisa... Então o jornal tinha

esse caráter também, de ajudar nesse processo225.

Para Lerrer, o jornal tinha função fundamental no trabalho de base: “Quando você vai

congregar gente que é possível candidato a sem-terra, era importante levar o jornal, pro cara

dar uma olhada. Na verdade é importante e chave levar o jornal, pros caras verem que tinham

outros grupos que ocupavam, outros grupos que ganhavam terra”226. Ele era considerado por

Lerrer como “chave” nesse processo, sobretudo, para que os sujeitos visualizassem que não

estavam sozinhos nas lutas. Pelo contrário, outros grupos estavam ocupando e muitos tinham

conquistado a terra. O jornal era importante para que esses possíveis integrantes do

Movimento se sentissem parte de um movimento maior, de âmbito nacional, para que eles não

se sentissem sozinhos.

Na edição de março de 1988, nº 71, na seção Formação, foi publicado o artigo

intitulado Como Ler Jornal. De maneira geral, o texto visava a auxiliar os trabalhadores na

leitura do jornal, chamando a atenção para as formas de leitura individual e/ou coletiva. Para

o MST, os estímulos à leitura coletiva do jornal nos acampamentos, assentamentos ou cursos

tornava-se fundamental, posto que ele era visualizado como um instrumento de formação e

estudos. No texto, há explicação sobre as seções que compõem o jornal, assim como

estímulos para que os sujeitos lessem o jornal e divulgassem as ações da organização. Ao

dizer que o jornal era uma das ferramentas mais antigas para a divulgação da luta dos

224 PERLI, F., A Luta Divulgada: um Movimento em (in)formação, p. 155. 225 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012. 226 Debora Franco Lerrer. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. CPDA/UFRRJ. Rio de Janeiro/RJ, 2012.

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trabalhadores, o MST destacava que “o jornal também é um órgão para divulgar a proposta do

Movimento. O jornal é a voz do Movimento”227.

O Jornal Sem Terra foi visto pela organização do MST como objeto e espaço

significativos. Por meio de suas páginas, a organização poderia se expressar não só para seus

integrantes, mas também para leitores externos ao MST, que, de certa forma, simpatizavam

com as lutas do Movimento. Ainda para a organização, o periódico era visto como seu “porta-

voz”, como se pode perceber na edição nº. 71, de março de 1988. Nessa perspectiva, Judite

Strozake, militante do Movimento, em 1999 destaca que o jornal era um “patrimônio” e a

“cara do MST”228. O jornal se configurava, então, como um espaço e instrumento político de

suma importância para a organização, na medida em que era considerado sua “voz”, seu

“patrimônio” e sua “cara”.

Visto como um instrumento de luta pela Direção Nacional do MST, o jornal precisava

expressar as concepções políticas e ideológicas do Movimento. Nesse sentido, existem pistas

no Jornal Sem Terra sobre a trajetória histórica do MST, bem como fragmentos de suas

inúmeras lutas no território brasileiro. A história do jornal aparece entrelaçada à história do

MST. Por meio do jornal, o pesquisador tem a possibilidade de analisar os caminhos e

descaminhos do Movimento em suas diversas ações e frentes de luta. O jornal é um

instrumento político utilizado para construir representações sobre distintas questões que

permeiam os seus integrantes e a luta pela terra. Dentre as representações construídas pelo

MST, os presidentes do Brasil se tornaram alvos privilegiados.

]

227 Como ler o jornal. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1988, ano VIII, Nº 71. p. 16. 228 STROZAKE, Judite. História nos reservou o tempo de lutar e construir. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de

1999, ano XVII, n. 189. p. 3.

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CAPÍTULO II

PRESIDENTES BRASILEIROS: ALVOS PRIVILEGIADOS DAS

REPRESENTAÇÕES DO MST

2.1 Considerações sobre os conceitos representação e ideologia e sobre suas

contribuições para a análise do Jornal Sem Terra

O pesquisador, em seu ofício, necessita apropriar-se de conceitos que lhe auxiliem na

compreensão de seu objeto de estudo. Os conceitos se configuram como instrumentos

teórico-metodológicos que possibilitam a análise de problemáticas que envolvem a construção

dos trabalhos, e não podem ser visualizados como uma camisa de força, inflexíveis, pois a

realidade e os fenômenos históricos são mais dinâmicos e complexos do que se imagina.

Neste tópico, duas perguntas nortearão as reflexões: qual tem sido a compreensão

sobre representação e ideologia? Estes conceitos contribuem para a análise do Jornal Sem

Terra, em especial, sobre a problemática central da tese? Lembrando que a problemática da

tese é analisar as representações construídas pelo MST acerca dos presidentes Fernando

Henrique Cardoso (FHC) e Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), por meio do Jornal Sem Terra, e

demonstrar como se delinearam as relações e as tensões que envolveram o MST e os governos

de tais presidentes. A opção por refletir e destacar os conceitos representação e ideologia,

neste capítulo, justifica-se por eles se constituírem em ferramentas teóricas importantes para a

compreensão da fonte escolhida (Jornal Sem Terra) e para a introdução das perspectivas de

análise face às representações sobre os presidentes FHC e Lula.

2.1.1 Reflexões sobre representação

Nas últimas décadas, representação é um dos conceitos mais discutidos na

historiografia. De acordo com Carlo Ginzburg, de maneira geral, nas Ciências Humanas,

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“fala-se muito, e há muito tempo” de representação229. Na historiografia brasileira, diversos

historiadores se dedicaram a entender este conceito e suas possibilidades de aplicação nos

estudos históricos. Salienta-se que o conceito representação é utilizado em vários campos das

Ciências Humanas, por vezes, com perspectivas distintas. Na área da Psicologia Social, por

exemplo, os pesquisadores trabalham, sobretudo, com a ideia de representações sociais ligada

às concepções de Serge Moscovici230. Sob o ponto de vista interdisciplinar, uma obra

interessante que envolve o conceito representação é a organizada por Célia Toledo Lucena e

Maria Christina de Souza Campo, intitulada Práticas e Representações. Nos textos que

compõem esta obra, os autores, a partir das noções de “práticas e representações”, buscam

investigar como é pensado o “social” e como a realidade é tecida de “múltiplos sentidos”231.

No campo histórico, o conceito representação é notavelmente discutido em torno das

perspectivas do historiador Roger Chartier. Acrescentam-se também as contribuições do

sociólogo Pierre Bourdieu, que possui visão semelhante à de Chartier quanto ao conceito em

questão. Esses pesquisadores elaboraram o conceito retomando as ideias de “representações

coletivas” dos sociólogos Marcel Mauss e Emile Durkheim. Nesse sentido, o conceito

representação foi polido e trabalhado há bastante tempo, de forma interdisciplinar,

contribuindo para que os pesquisadores compreendam a dinâmica e a complexidade do

mundo social e das práticas culturais.

Na escrita da tese, o conceito representação é apreendido a partir das contribuições de

Chartier e Bourdieu. Ao escrever “o mundo como representação”, Chartier sublinha que a

palavra representação atesta para duas definições de sentidos aparentemente contraditórios.

Por um lado, “a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma

distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro, a

representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de

alguém”232. Assim:

Representar é, pois, fazer conhecer as coisas mediatamente ‘pela pintura de

um objeto’, ‘pelas palavras e gestos’, ‘por algumas figuras, por marcas’ –

229 GINZBURG, C., Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância, p. 85. 230 MOSCOVICI, Serge. Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Nessa obra,

a partir da realidade parisiense, em meados do século XX, Moscovici expõe que a representação social, cerne de

sua teoria, está constantemente no universo e nas relações dos sujeitos, sejam nas conversas, encontros, festas,

convenções etc. A partir das relações estabelecidas, as representações sociais da realidade são construídas,

definindo os grupos sociais e se tornando referência para seus membros. 231 LUCENA, Célia Toledo; CAMPOS, Maria Christina de S (Orgs.). Práticas e Representações. São Paulo:

Humanitas/Fapesp/CERU, 2008. 232 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p.20.

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como os enigmas, os emblemas, as fábulas, as alegorias. Representar no

sentido jurídico e político é também ‘manter o lugar de alguém, ter em

mãos sua autoridade’233.

O conceito representação se tornou a “pedra angular” de uma abordagem denominada

história cultural. Nessa direção, Chartier se dedicou a refletir sobre algumas “críticas” quanto

ao conceito. A primeira delas se refere ao fato de as representações afastarem os

pesquisadores da experiência histórica “pura e simples”, como dissera o historiador espanhol

Ricardo García Cárcel. Isto é, as representações manipulam, distorcem as experiências

humanas. Para tanto, os pesquisadores precisariam se “libertar” das representações para

desenvolverem uma análise interrogativa e problematizadora em seus estudos. A segunda

crítica está no âmbito metodológico, traçada pelo historiador italiano Angelo Torre. Pensar

nas representações, para ele, seria esquecer-se do mundo real, dos comportamentos concretos

e observados. O documento/fonte, neste caso, seria reduzido apenas a uma dimensão textual.

Sobre essas críticas, Chartier escreveu em “defesa” do conceito representação234. Na

concepção do autor, o conceito não ignora as experiências históricas dos sujeitos e grupos,

nem tão pouco exime o historiador de desenvolver uma análise problematizadora em suas

pesquisas. Desse modo, não existiria história sem a articulação das representações às práticas

e das práticas às representações. E, pensando nas fontes, “qualquer fonte documental que for

mobilizada para qualquer tipo de história nunca terá uma relação imediata e transparente com

as práticas que designa. Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades

e destinatários particulares”235. Identificar as razões, finalidades, códigos e destinatários das

fontes seria condição necessária para se entender as representações.

Chartier salienta que as representações visam a construir o mundo social dos sujeitos,

sendo elas as matrizes dos discursos e das práticas dos grupos.

O que leva seguidamente a considerar estas representações como as matrizes

de discursos e práticas diferenciadas – ‘mesmo as representações colectivas

mais elevadas só tem uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a

partir do momento em que comandam actos’ – que tem por objectivo a

233 CHARTIER, R., A Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes, p. 165. 234 CHARTIER, Roger. Defesa e Ilustração da Noção de Representação. In: Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n.

24, p. 15-29, jul./dez. 2011. Esse texto advém de uma palestra proferida pelo professor Roger Chartier em 07 de

maio de 2010 no Colloque Franco-Allemand “Représentation/Darstellung”, realizado pelo Institut Historique

Allemand de Paris. A palestra foi traduzida para a língua portuguesa pelos historiadores André Dioney Fonseca e

Eduardo de Melo Salgueiro. 235 CHARTIER, R., Defesa e Ilustração da Noção de Representação, p. 16.

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construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das

identidades – tanto a dos outros como a sua236.

Desse modo, o conceito representação se tornou um precioso apoio teórico para se

compreender, assinalar e articular as diversas relações dos indivíduos e grupos com o mundo

social. Destaca-se que o “mundo social” é constituído de relações políticas, econômicas,

culturais, enfim, das diversas relações e dimensões que compõem a vida dos sujeitos e seu/s

grupo/s. O conceito representação modificou profundamente a compreensão do mundo social,

no sentido de “obrigar” o repensar das relações entre os sujeitos e os grupos no meio social.

Isto é, o como os sujeitos e os grupos constroem seus mundos. Nesse sentido, a partir das

representações é possível “compreender de que maneira os enfrentamentos fundados na

violência bruta, na força pura, se transformam em lutas simbólicas, ou seja, em lutas que têm

as representações por armas e por apostas”237. Assim, as representações, se incorporadas pelos

sujeitos e grupos, teriam o poder de atestar e fazer acreditar em determinadas questões, como

se elas fossem naturais.

Na obra “O Poder Simbólico”, ao refletir sobre noções de região, identidade e

representação, Bourdieu identifica o “poder das representações” na construção das

experiências históricas e sua contribuição para a produção daquilo por elas descrito e

designado. Para explicar o conceito, Bourdieu parte da “realidade construída” e dos

“enunciados performativos” que visam a tornar reais os discursos produzidos pelos grupos.

Por ora, os discursos são socialmente construídos, objetivando agir nas experiências históricas

dos sujeitos e grupos238. Ressalta-se que, para Bourdieu, nos estudos das representações, não

cabe a separação do caráter “objetivo” e “subjetivo”, assim, as representações partem destas

duas esferas.

A partir de Chartier e Bourdieu entende-se que representações são construções sociais

da realidade, em que os sujeitos fundamentam suas visões de mundo tendo em vista seus

interesses e os de seu grupo. Dessa forma, os sujeitos e o grupo ao qual pertencem, criam

representações de si mesmos e de outros grupos, fundamentando suas visões de mundo sobre

as experiências históricas. Nessa perspectiva, o conceito representação “não está longe do real

nem do social”. Pelo contrário, compreender as representações dos grupos é entender como o

mundo dos mesmos foi construído, ordenado, hierarquizado. “As representações possuem

uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é

236 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 18. 237 CHARTIER, R., Defesa e Ilustração da Noção de Representação, p. 20. 238 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 107-132.

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exatamente o que elas dizem que é”239. Elas são determinadas pelos interesses dos grupos que

as forjam, exibindo uma maneira de estar e ver o mundo.

O MST, a partir de sua militância, de materiais publicados e de manifestações

públicas, constrói representações sobre diversas e distintas questões que envolvem a vida

cotidiana dos seus membros nos assentamentos e acampamentos; assim como sobre questões

conjunturais do país, como reforma agrária, produção de alimentos, disputas políticas,

eleições, dentre outras. Nesta tese, a reflexão volta-se sobre as representações dos presidentes

brasileiros, em especial, FHC e Lula.

Para Chartier e Bourdieu, há um “jogo” em que se produzem as representações e

existem crenças que as sustentam. No “campo social”, permeado de tensões e interesses

conflitantes dos grupos, existem as lutas de e por representações. Por este viés, “as lutas de

representações são assim entendidas como uma construção do mundo social por meio dos

processos de adesão ou rechaço que produzem”240. As representações “ligam-se estreitamente

à incorporação da estrutura social dentro dos indivíduos em forma de representações mentais,

e o exercício da dominação, qualquer que seja, graças à violência simbólica”241. As

representações estão colocadas “num campo de concorrências e de competições cujos desafios

se enunciam em termos de poder e dominação”242. Observa-se, então, que as representações

são construídas a partir do lugar, do tempo e do grupo aos quais os sujeitos pertencem. Como

ressalta Bourdieu:

[...] a representação que os indivíduos e os grupos exibem inevitavelmente

por meio de suas práticas e propriedades faz parte integrante de sua realidade

social. Uma classe é definida tanto por seu ser-percebido, quanto por seu

ser, por seu consumo – que não necessita ser ostentador para ser simbólico –

quanto por sua posição nas relações de produção (mesmo que seja verdade

que esta posição comanda aquele consumo)243.

No entendimento de Chartier, as lutas de representações “têm tanta importância como

as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta

impor, sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio”244. Nessas

lutas se classifica, ordena, delimita e hierarquiza a estrutura e as experiências históricas. Algo

239 CHARTIER, R., Defesa e Ilustração da Noção de Representação, p. 23. 240 CHARTIER, R., Defesa e Ilustração da Noção de Representação, p. 22. 241 CHARTIER, R., Defesa e Ilustração da Noção de Representação, p. 22. 242 LUCENA, C. T; CAMPOS, M. C. de S.; Práticas e Representações, p. 7. 243 BOURDIEU, P., A Distinção: crítica social do julgamento, p. 447. 244 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 17.

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a ser destacado é que as representações podem ser deturpadas, forjando a construção de uma

experiência histórica que não corresponde às relações dos sujeitos e dos grupos. Neste caso,

as representações são utilizadas para submeter e oprimir.

Conforme ainda Chartier, “assim deturpada, a representação transforma-se em

máquina de fabrico de respeito e de submissão, num instrumento que produz constrangimento

interiorizado, que é necessário onde quer que falte o possível recurso a uma violência

imediata”245. Nessa direção, as representações criam o que Michel de Certeau denomina de

“sociedade recitada”, ao se referir às aparências e manipulações no mundo social.

Um exemplo elucidativo sobre essa questão e que está presente em grande parte da

sociedade do estado de Mato Grosso do Sul (e acredita-se que se estenda para todo o país),

são as representações de que os indígenas são vagabundos e preguiçosos; por isso não

precisam de terras para trabalhar e viver. Essas representações são forjadas historicamente

visando a deturpar as experiências históricas e a submeter e oprimir os povos indígenas. Outro

exemplo a se destacar remete aos próprios sem-terra, no sentido de que eles querem terra, mas

não produzem alimentos em seus lotes. Ou seja, cria-se a representação de que os assentados

não trabalham e que a reforma agrária não é viável para a produção de alimentos.

Simultaneamente a essas representações dos sem-terra, legitimam-se as grandes propriedades

voltadas ao denominado agronegócio246 como produtoras de alimentos. Nesse sentido, as

representações podem ser utilizadas para os interesses de alguns grupos, mas compartilhadas

por grande parte da sociedade.

As representações estão localizadas no tempo e são social e historicamente construídas

pelos sujeitos e seus respectivos grupos. No que tange às representações do MST sobre os

presidentes brasileiros, sublinha-se que elas estão inseridas no que Bourdieu denomina como

“campo político”247. Na concepção desse autor, os agentes sociais, fora e dentro dos

“campos”, são envolvidos em lutas por representações. O “campo político” se configura num

lugar de concorrência e disputa pelo poder.

O campo político é pois o lugar de uma concorrência pelo poder que se faz

por intermédio de uma concorrência pelos profanos ou, melhor, pelo

monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da

totalidade dos profanos. O porta-voz apropria-se não só da palavra do grupo

245 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 22. 246 No terceiro e quarto capítulos discutir-se-á sobre o que se compreende por agronegócio. 247 Conforme Bourdieu, os “campos” (político, econômico, religioso, jurídico) têm suas próprias regras,

princípios e hierarquias. Seus limites e definições são efetivados a partir de negociações, tensões e conflitos

entre os atores sociais.

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dos profanos, quer dizer, na maioria dos casos, do seu silêncio, mas também

da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui ao prestar-lhe

uma palavra reconhecida como legítima no campo político248.

Destaca-se que, na pesquisa, as representações estão contidas nos discursos (escritos e

imagéticos) produzidos pelo Jornal Sem Terra. Assim, atenta-se para a relação intrínseca

entre “discurso” e “representação”. Sobre o discurso, em palestra proferida em aula inaugural

no Collège de France, em 1970, intitulada A Ordem do Discurso, Michel Foucault observa

que falar em discurso é falar de poder. De acordo com Foucault, o discurso “não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se

luta, o poder que queremos nos apoderar”249. Os discursos, ou o poder que os discursos

evocam, passam a se constituir em objetos de desejo dos sujeitos e grupos. No MST, essa

questão é bem latente, em especial, em relação àqueles que possuem cargos de liderança e

escrevem os materiais de sua organização. Parece que tais sujeitos são investidos de poder

pela palavra/discurso e o Jornal Sem Terra se tornou um instrumento político importante para

divulgação e propagação desses discursos.

Em Foucault, o discurso é tomado como uma prática social, a partir de possibilidades e

condições pré-estabelecidas. Desse modo, a produção do discurso “é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que

têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,

esquivar sua pesada e temível materialidade”250.

Nos grupos sociais, os discursos podem assumir funções estratégicas, o que ocorreu

com o Jornal Sem Terra concebido pelo MST. Dentro das organizações, os discursos

possuem a “vontade da verdade”, como disse Foucault. E, essa busca pela “verdade” tem

ligação com a construção de representações de si mesmo e dos outros grupos. No

entendimento do MST, e dos profissionais que produziram o Jornal Sem Terra, este periódico

era visto como o “registro e retrato fiel” das lutas do Movimento e das lutas pela reforma

agrária no Brasil251, como enfatizou Nilton Viana em sua entrevista.

Na compreensão de Chartier, as construções discursivas e as categorias que as fundam

– sistemas de classificação, critérios de recorte, modos de representações – estão ligadas aos

248 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 185. Para Bourdieu, as representações políticas dependem dos

interesses das classes e dos grupos, haja vista que as lutas políticas são estruturadas pelos determinantes

econômicos e sociais. 249 FOUCAULT, M., A Ordem do Discurso, p. 10. 250 FOUCAULT, M., A Ordem do Discurso, p. 8. 251 Nilton Viana. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. Sede do jornal Brasil de Fato. São Paulo/SP, 2012.

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interesses dos grupos sociais, ou das classes sociais e possuem lógica própria252. Nesse

sentido, “não existem interesses sociais fora dos discursos que os constroem”253. Os discursos

e as percepções do social, por esse entendimento, não são neutros: “produzem estratégias e

práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,

por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios

indivíduos, as suas escolhas e condutas”. Investigar as representações dos grupos “supõe-nas

como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos

desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”254. Ao longo da tese, percebe-se

que as representações sobre os presidentes FHC e Lula, por parte do MST, são legitimadoras

de visões e crenças, uma vez que esses presidentes são personificados e estereotipados pela

Direção Nacional do Movimento.

Bourdieu, quando reflete sobre “representação política”, salienta que os discursos

exercem poder na medida em que são reconhecidos e em que os grupos se apropriam deles.

Assim, a força de um discurso depende “menos das suas propriedades intrínsecas do que da

força mobilizadora que ele exerce, quer dizer, ao menos em parte, do grau em que ele é

reconhecido por um grupo numeroso e poderoso que se reconhece nele e de que ele exprime

os interesses (em forma mais ou menos transfigurada e irreconhecível)”255. Assim, os

discursos podem se tornar “verdadeiros” ou “falsos”, dependendo de quem os enuncia, e neles

o poder das representações está implícito. No Jornal Sem Terra, os discursos produzidos pelo

MST têm “intenção política” e estão inseridos em um jogo256.

A intenção política só se constitui na relação com um estado do jogo político

e, mais precisamente, do universo das técnicas de acção e de expressão que

ele oferece em dado momento. Neste caso, como em outros, a passagem do

implícito para o explícito, da impressão subjectiva à expressão objectiva, à

manifestação pública num discurso ou num acto público constitui por si só

um acto de instituição e representa por isso uma forma de oficialização, de

legitimação257.

252 CHARTIER, R., A Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes, p. 77-91. 253 CHARTIER, R., Entrevista com Roger Chartier, p. 29. 254 CHARTIER, R., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 17. 255 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 183. 256 Bourdieu visualiza a política como um “jogo”. Nesse jogo, existe o habitus político que exige uma preparação

especial: “É, em primeiro lugar, toda aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos

(teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados econômicos, etc.) produzidos e acumulados pelo

trabalho político dos profissionais do presente e do passado ou das capacidades mais gerais tais como o domínio

de uma certa linguagem e de uma certa retórica política, a do tribuno, indispensável nas relações com os

profanos, ou a do debater, necessária nas relações entre profissionais”. BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p.

169. 257 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 165.

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No jogo político, há lutas simbólicas pelo poder político. Desse modo, essas lutas

assumem uma forma de disputa “pelo poder propriamente simbólico de fazer ver e fazer crer,

de predizer e de prescrever, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, que é ao mesmo tempo

uma luta pelo poder sobre <<poderes públicos>> (as administrações do Estado)”258. A luta

simbólica pelo poder político, da qual diz Bourdieu, está presente nos discursos publicados no

Jornal Sem Terra, haja vista que ele é um instrumento político de quem o organiza, e as

representações sobre os presidentes brasileiros, por exemplo, visam a fazer ver e crer, a

predizer e a prescrever, a conhecer e a fazer reconhecer imagens, personificações e

estereótipos sobre tais presidentes.

Destaca-se a importância de analisar as condições de produção dos discursos e suas

intencionalidades. Isto é, o contexto das produções, a forma como foram erigidas, o público

alvo e suas intenções perante o leitor259. De acordo com Bourdieu, não existe discurso

considerado em si e por si mesmo; “as propriedades formais das obras desvelam seu sentido

somente quando referidas às condições sociais da produção – e, por outro lado, às

possibilidades ocupadas por seus autores no campo da produção – e ao mercado para o qual

foram produzidas”260. Dessa forma, para compreender os discursos políticos em um dado

momento, é preciso analisar o seu processo de produção ideológica. Ou seja, as condições

sociais, os autores envolvidos e o público a que é destinada a produção de tais discursos.

Por ora, entende-se que o MST, representado nos diversos acampamentos e

assentamentos, compõe-se de uma diversidade de sujeitos, de procedências, valores e visões

de mundo distintas, enfim, o Movimento é composto por um corpo social, cultural e político

heterogêneo. Todavia, o MST representado nas páginas do Jornal Sem Terra é, em grande

parte, o das lideranças e intelectuais que integram a organização, mais especificamente, o da

Direção Nacional. Como disse Cristiani Bereta da Silva, são as “vozes autorizadas”261, ou

seja, aqueles que escrevem, pensam e projetam o MST, a partir de suas experiências de lutas,

convicções políticas e ideológicas. Maria Celma Borges enfatiza que esses sujeitos são a

“vanguarda”262 do MST. Pensando na produção do jornal, são os seus ideólogos, isto é, as

pessoas responsáveis pelos discursos publicados nas edições, geralmente, que fazem parte da

258 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 174. 259 Na Introdução da tese, discutiram-se algumas questões teóricas e metodológicas sobre o trabalho com a

imprensa e formas de discursos produzidos pelos meios de comunicação. 260 BOURDIEU, P., A Economia das Trocas Linguísticas, p. 129. 261 SILVA, Cristiani B. da. Homens e Mulheres em Movimento - Relações de Gênero e Subjetividades no MST.

Florianópolis: Momento Atual, 2004. 262 BORGES, Maria C. De Pobres da Terra ao Movimento Sem Terra: práticas e representações camponesas do

Movimento Sem Terra no Pontal do Paranapanema – SP. 2004. 391f. Tese (Doutorado em História). Faculdades

de Letras e Ciências Humanas. Universidade Estadual Paulista, Assis.

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Direção Nacional do MST263. Desse modo, não se tem a pretensão de centrar as análises nos

“sujeitos comuns”264 (que também não serão desprezados), mas sim na organização do

Movimento que concebe o Jornal Sem Terra como porta-voz e o utiliza como espaço e

instrumento político relevante para expressar suas ideias, visões de mundo, valores e

convicções políticas.

A partir de reflexões de Marilena Chauí, entende-se também que a produção do Jornal

Sem Terra é mediada pelo que ela chama de “discurso competente”. Esse discurso é

legitimador, não sendo todas as pessoas do Movimento que podem evocá-lo. “O discurso

competente se instala e se conserva graças a uma regra que poderia ser assim resumida: não é

qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em

qualquer lugar”265. Os discursos produzidos nos editoriais e, no Jornal Sem Terra como um

todo, são discursos legitimadores, e trazem afirmações dos militantes e intelectuais que

pensam e projetam o MST. A Direção Nacional do Movimento é portadora do “discurso

competente”, sendo ele instituído pelas lideranças da organização. Ainda sobre o discurso

competente, Chauí enfatiza que ele “pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou

autorizado”. Também:

O discurso competente confunde-se, pois com a linguagem

institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual

os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de

falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados

para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma

já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria

competência266.

263 No primeiro capítulo analisou-se como se dava a produção da notícia, os editores e o papel da Direção

Nacional do MST na produção do Jornal Sem Terra. Ao se falar em ideólogos, na produção do Jornal Sem

Terra, observa-se que os meios de comunicação, sejam quais forem, possuem vínculos ideológicos, pois estão

ligados a interesses de algum grupo, ou grupos. Dois trabalhos elucidativos quanto a essa questão são os de

Christa Berger e das autoras Maria Helena Capelato e Maria Lígia Prado. Os dois são significativos para se

pensar a constituição ideológica de um jornal, a partir dos interesses dos grupos os quais são vinculados. As

autoras pesquisaram jornais da denominada grande imprensa, no caso o jornal Zero Hora e O Estado de São

Paulo, e perceberam como estes condensam em seus discursos crenças e concepções de determinados grupos.

Ver: BERGER, Christa. Campos em Confronto: a terra e o texto. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003;

CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino. Imprensa e Ideologia: o jornal O Estado

de São Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. 264 A expressão sujeitos comuns se refere àquelas pessoas que lutam no Movimento, mas que não possuem

cargos dentro de sua estrutura organizativa, pelo menos em nível regional, estadual ou nacional. 265 CHAUI, M., Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas, p. 14. 266 CHAUI, M., Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas, p. 19.

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Em relação ao Jornal Sem Terra, Perli observa que os intelectuais que atuavam no

periódico tinham uma “função organizativa”267 no Movimento, em razão de sua capacidade de

organização de diferentes dimensões da vida social. Historicamente, no MST, a organização

foi elegendo seus intelectuais, por exemplo, João Pedro Stedile, Gilmar Mauro, Ademar

Bogo, Neuri Rosseto, Roseli Salete Caldart. Nas páginas do periódico também foi possível

encontrar textos e entrevistas de intelectuais “amigos do MST” – Leonardo Boff, Frei Betto,

Florestan Fernandes, Bernando Mançano Fernandes, José Arbex Jr., Fábio Konder

Comparato, Antonio Candido, Sebastião Salgado, Leandro Konder, José Saramago, François

Houtart e Marilena Chauí. Em sua página na internet, o MST dedica um espaço intitulado “Eu

Apoio o MST”, no qual agrega manifestações de apoio (escrita e por vídeo) de diversas

personalidades, intelectuais, artistas, e entidades nacionais e internacionais268. O apoio de

intelectuais e personalidades torna-se interessante para o Movimento, pois legitima suas ações

e cria condições para que ele angarie o respaldo da sociedade civil.

Compreende-se o Jornal Sem Terra como um espaço de “representação do real”269 e

como uma “prática discursiva” no MST, em que sua organização produz representações sobre

si e sobre outros grupos em diferentes temporalidades. Para a organização do MST, o Jornal

Sem Terra se tornou um importante instrumento político nas lutas de e por representações.

Entender essas lutas é compreender como o Movimento pensa e fundamenta seu mundo.

Por meio das páginas do jornal, o Movimento, figurado nos militantes e intelectuais

que fazem parte de sua Direção Nacional, expressa suas posições políticas e ideológicas que

sustentam e dão sentido ao seu mundo. Por este prisma, o conceito de representação

sistematizado a partir das ideias de Pierre Bourdieu e Roger Chartier se configura como

significativo na análise dos discursos produzidos no Jornal Sem Terra, haja vista que o

mesmo auxilia a pensar como o mundo do MST é representado, “dado a ler”.

Os discursos produzidos no periódico possuem intencionalidades que visam a criar

representações para os leitores. À medida que essas representações são incorporadas pelos

sujeitos, elas são revestidas de “poder simbólico” que, conforme Bourdieu, é, com efeito, um

“poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem

saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”270. Não obstante, o conceito

267 PERLI, F., Sem Terra: de boletim a tabloide, p. 51. O autor se utiliza das concepções de Antonio Gramsci

para desenvolver essa reflexão. Ver: GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. 8 Ed.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 158-204. 268 Ver: http://www.mst.org.br/taxonomy/term/705 269 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil, p. 24-25. 270 BOURDIEU, P., O Poder Simbólico, p. 7.

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representação contribui significativamente para se refletir sobre os discursos produzidos no

Jornal Sem Terra. E, em uma perspectiva mais ampla, aos pesquisadores que se aventuram a

analisar os conflitos que surgem no interior das sociedades, também no entendimento das

múltiplas relações que os sujeitos e de determinados grupos mantêm com o mundo social.

2.1.2 Reflexões sobre ideologia e MST

Ao estudar as representações do MST sobre os presidentes brasileiros, salienta-se que

elas não partem do nada e não estão isoladas daquilo que a Direção Nacional do Movimento

intenta construir. Nessa perspectiva, as representações produzidas no Jornal Sem Terra estão

ligadas às concepções ideológicas do Movimento. Destaca-se, então, que representação e

ideologia são pensadas como categorias distintas; contudo, nos grupos sociais, elas estão

imbricadas. Isto é, as representações construídas no MST não estão deslocadas daquilo que as

lideranças do Movimento pensam. Logo, essas representações carregam em si uma carga

ideológica.

Sobre a ideia de pensar representação e ideologia enquanto conceitos distintos, mas

que podem ser utilizados juntos, é importante lembrar o debate travado entre Pierre Bourdieu

e o estudioso sobre ideologia, Terry Eagleton, realizado no Instituto de Artes Contemporâneas

de Londres, em 15 de maio de 1991. Ao ser indagado por Eagleton, se o conceito ideologia

poderia ser considerado semelhante aos conceitos mais utilizados em seus trabalhos, como,

por exemplo, violência simbólica, potência simbólica e capital linguístico, Bourdieu disse que

evitava utilizar a “palavra ideologia”, por esta ser mal empregada, com muita frequência, ou

ser utilizada de maneira muito vaga.

Para Bourdieu, ideologia parece transmitir uma espécie de descrédito. No seu

entender, “descrever uma afirmação como ideológica é, muitas vezes, um insulto, de modo

que essa própria designação torna-se um instrumento de dominação simbólica”. Assim, ele

substituiu o conceito ideologia por dominação simbólica, potência simbólica e violência

simbólica, “para tentar controlar alguns dos usos e abusos a que ele fica sujeito”. Também,

porque não acreditava no referido conceito e nem em sua funcionalidade e eficácia. Aliás,

Bourdieu defende que o conceito ideologia deveria ser reformulado, com vistas a se tornar

mais vivo.

Em resposta às considerações de Bourdieu, Eagleton concorda que havia circulação de

muitas noções diferentes sobre ideologia, e que o conceito era mal utilizado em alguns casos.

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Todavia, essa razão parecia ser muito frágil para “jogar fora” o conceito, por isso, insistiu em

utilizá-lo. Eagleton enfatiza também que ideologia e representação são conceitos distintos,

mas que podem ser pensados e utilizados juntos, no sentido de que um não anula o outro271.

Sobre o conceito ideologia, existe literatura considerável que o concebe de formas

distintas e reflete sobre sua historicidade272. Não se trata de fazer uma retrospectiva em torno

de tal conceito, mas explicitar sobre qual perspectiva ele é pensado na tese e enfatizar que as

representações do MST sobre os presidentes brasileiros são imbricadas às concepções

ideológicas daqueles que produzem os discursos no jornal, sobretudo, nos editoriais. Por este

viés, acredita-se que as ideologias não pertencem apenas aos chamados grupos dominantes,

mas também aos diversos grupos que pensam as experiências históricas e visam a agir sobre

elas. No caso do MST, seu aparato ideológico objetiva derrubar o poder dominante e

instaurar uma nova forma de ver e viver no mundo, por meio da utopia da construção de uma

sociedade com novos homens e novas mulheres.

No trabalho, compreende-se ideologia, em especial, a partir das ideias de Terry

Eagleton, Andrew Vincent e Slavoj Zizek. Em princípio, estes autores partem da concepção

de que falar em ideologia é pertinente no mundo contemporâneo e de que evitar falar sobre o

conceito pode ser algo premeditado e ideológico. Outra questão elencada pelos autores é a

relativa ao fato de as ideologias não deverem ser tomadas unicamente pelo prisma de que são

visões equivocadas e distorcidas da realidade social273, e nem tão pouco um privilégio do

Estado (que seria tido como primeira força ideológica). Para Vincent, ideologia “não é uma

imagem distorcida do mundo, mas é parte do mundo das palavras e da ação”274. Nessa

direção, Eagleton defende a ideia de que ideologia não se trata de uma mera “falsa

271 BOURDIEU, P; EAGLETON, T., A Doxa e a Vida Cotidiana: uma entrevista, p. 266. 272 Dentre a literatura existente, cita-se: EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora UNESP/Editora

Boitempo, 1997; ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia (Org.). Rio de Janeiro: Contraponto, 1996; VINCENT,

Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995; CHAUI, Marilena. Cultura

e Democracia: o discurso competente e outras falas. 13ª Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011; BAKHTIN,

Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª Ed. São Paulo: Hucitec, 2006; KONDER, Leandro. A

Questão da Ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura

Moderna. Petrópolis: Vozes, 1995. 273 O conceito clássico de ideologia é formulado a partir de Karl Marx, como falsa consciência, um ocultamento

da realidade social da qual o sujeito está inserido. Marx contribuiu para divulgar o conceito ideologia, sobretudo,

em sua obra A Ideologia Alemã. Grosso modo, em A Ideologia Alemã, o conceito denota-se ilusão e distorção da

realidade. Ou seja, o ocultamento dos fatos. Ver: ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia (Org.). Rio de Janeiro:

Contraponto, 1996; VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,

1995; EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora UNESP/Editora Boitempo, 1997. 274 VINCENT, A., Ideologias Políticas Modernas, p. 27.

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consciência” ou “ilusão”, mas uma “sólida realidade” que auxilia a organizar as práticas dos

sujeitos275.

Zizek, refletindo sobre o “espectro da ideologia”, sublinha que ideologia pode

designar “qualquer coisa”, “desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência

em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para ação”; ou “desde o

meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as

ideias falsas legitimadoras de um poder político dominante”276. Nessa perspectiva, Vincent

observa que

[...] as ideologias são corpos de conceitos, valores e símbolos que

incorporam concepções da natureza humana e, assim, apontam o que é

possível ou impossível aos homens realizar; as reflexões críticas sobre a

natureza da interação humana; os valores a que os homens devem aspirar ou

a que devem rejeitar; e as necessidades e interesses dos seres humanos.

Dessa forma, as ideologias reivindicam descrever e prescrever para os

homens. As duas tendências estão entremescladas. As ideologias também

podem legitimar certas atividades ou medidas e integrar os indivíduos,

capacitando-os a ficarem coesos em torno de determinados objetivos277.

Eagleton pontua que ideologia não é uma coisa que as pessoas saem e pegam, põem os

olhos ou compram uma quantia. “O termo ‘ideologia’ é apenas uma maneira conveniente de

classificar em uma única categoria uma porção de coisas diferentes que fazemos como

signos”278. Em sua concepção, é possível definir seis maneiras diferentes de se conceber

ideologia. A primeira se refere ao “processo material geral de produção de ideias, crenças e

valores na vida social”. Essa definição seria política e epistemologicamente neutra,

assemelhando-se a um significado mais amplo de “cultura”. Um segundo significado diz

respeito a “ideias e crenças (verdadeiras ou falsas) que simbolizam as condições e

experiências de vida de um grupo ou classe específico, socialmente significativo”. Nesta

segunda definição, ideologia se aproximaria da ideia de “visão de mundo”.

A terceira definição trata da “promoção e legitimação dos interesses” de grupos sociais

em face de interesses opostos, colidindo com a reprodução do poder social como um todo. O

quarto significado refere-se ao “poder social dominante”. A quinta definição tem ligação com

a quarta, de que a ideologia seria ideia e crenças que auxiliariam a manutenção do poder dos

grupos dominantes mediante a dissimulação e distorção da realidade. A sexta definição é

275 EAGLETON, T., Ideologia, p. 36. 276 ZIZEK, S., O Espectro da Ideologia, p. 9. 277 VINCENT, A., Ideologias Políticas Modernas, p. 28. 278 EAGLETON, T., Ideologia, p. 171.

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sobre a ênfase nas crenças “falsas ou ilusórias” decorrentes da “estrutura material do conjunto

da sociedade como um todo”279.

A partir desses autores, entende-se ideologia como um conjunto de ideias, crenças e

valores que estruturam a forma de pensar, os discursos e o agir dos grupos. Assim, as

ideologias orientam para a ação, descrevem e prescrevem discursos e práticas. Elas legitimam

teórica e praticamente determinados discursos e ações dos sujeitos e grupos. Os discursos, por

exemplo, produzidos pela Direção Nacional do MST, por meio do Jornal Sem Terra, são

ideológicos por essência, e objetivam construir representações sobre diversos âmbitos de sua

organização, também dos seus aliados e adversários/inimigos na luta pela terra.

No que tange à ideologia do MST, ou às ideologias de sua organização, entende-se que

não existe ideologia pura. As ideologias são dinâmicas, não cristalizadas. Sendo assim,

passam pelo conflito, pela negociação. Eagleton reflete que “ideologia é um campo de

contestação e negociação em que há um constante tráfego pesado: os sentidos e valores são

roubados, transformados e apropriados pelas fronteiras das diferentes classes e grupos,

cedidos, reapropriados e remodelados”280. Nesse sentido, ressalta-se também que os modos

como os sujeitos e grupos interagem com as ideologias também são dinâmicos e diversos.

Os sujeitos e grupos podem formar sua ideologia a partir de uma mescla de diferentes

inspirações: “Uma pessoa pode ser mãe, metodista, dona de casa e sindicalista ao mesmo

tempo, e não há razão alguma para presumir que essas várias formas de inserção na ideologia

sejam mutuamente harmoniosas”281. Com visão semelhante, Vincent reflete que “todas as

ideologias são internamente complexas, híbridas e sobrepostas. Não existe nenhuma visão

genuína, socialista ou liberal, do mundo. As reivindicações de pureza, assim como as de mais

verdade, são em geral falsas ou enganosas”282.

Assinale-se que o arcabouço ideológico do MST foi formado por diversas influências,

sobretudo, a partir do ideal cristão (influência das alas progressistas da Igreja Católica em sua

formação), dos escritos marxistas e do ideário democrático. Conforme Ilse Scherer-Warren, o

Movimento construiu o que ela nomeia de “meta-ideologia” através das três principais

correntes de pensamento mencionadas: a simbologia cristã (forte influência de 1979 a 1984),

a teoria marxista-lenista (fortalecida a partir de meados dos anos de 1980), o ideário

279 EAGLETON, T., Ideologia, p. 38-40. 280 EAGLETON, T., A Ideologia e suas Vicissitudes no Marxismo Ocidental, p. 187. 281 EAGLETON, T., A Ideologia e suas Vicissitudes no Marxismo Ocidental, p. 217. 282 VINCENT, A., Ideologias Políticas Modernas, p. 31.

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democrático (década de 1990)283. Atenta-se para o fato de as transformações no Movimento

não terem sido carregadas apenas de harmonia; por vezes, os redimensionamentos políticos e

ideológicos acabaram criando contradições e gerando conflitos, principalmente, no que diz

respeito às lideranças.

Scherer-Warren, ao explicitar o redimensionamento das concepções e pensamentos do

MST, cita como exemplo os lemas oficiais do Movimento e as falas dos seus principais

dirigentes nacionais. De forma resumida:

1979-1984 – “Terra para quem nela trabalha” – presença marcante da Igreja

Católica, em especial, através da CPT em sua organização neste período.

1984 – “Terra não se ganha, se conquista” – estímulo para o enfrentamento e

engajamento dos sujeitos em lutar pela terra. Se ficassem esperando alguma coisa

do governo, não iria resolver nada, a terra tinha que ser conquistada.

1985-1988 – “Sem Reforma Agrária, não há democracia” – mudança explícita de

perspectiva, a dimensão do ideário democrático, de uma luta que perpassa apenas o

interesse dos sem-terra, mas uma luta mais ampla, auxiliando na constituição da

democracia.

1986 – “Ocupação é a única solução” – ênfase ao ato de ocupar latifúndios como

meio de fazer pressão e agilizar medidas mais rápidas para o processo de

desapropriação da área. Quando diz que a “ocupação é a única solução”, já tem

uma conotação de que confiar na justiça não era o suficiente, é preciso que os

sujeitos se mobilizem à luta, ocupem.

1989-1994 – “Ocupar, Resistir e Produzir” – três características fundamentais que

o MST estimula: a ocupação como forma de fazer pressão; a questão da resistência

dos sujeitos em meio às dificuldades da luta pela terra; e a produção, cumprindo a

função social da terra.

1995-2000 – “Reforma Agrária: uma luta de todos” – o MST dimensiona o tema

da reforma agrária como sendo uma luta de toda a sociedade, não apenas uma luta

dos sem-terra. A reforma agrária era um dos aspectos fundamentais para a

democracia, logo toda a sociedade tinha que apoiar a causa dos trabalhadores sem-

terra284.

283 Ver: SCHERER-WARREN, Ilse. A atualidade dos movimentos sociais rurais na nova ordem mundial. In:

SCHERER-WARREN, Ilse; FERREIRA, José Maria Carvalho (Orgs.). Transformações Sociais e Dilemas da

Globalização: um diálogo. São Paulo: Cortez, 2002. p. 243-257. 284 SCHERER-WARREN, I., A atualidade dos movimentos sociais rurais na nova ordem mundial, p. 243-257.

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Os lemas do MST oferecem pistas simbólicas para a compreensão de suas

transformações de lutas e estratégias. No início de sua organização, a presença de agentes

religiosos285, em especial, da CPT, era intensa no Movimento, e a terra deveria ser para quem

nela trabalhava. Em fins da Ditadura Civil-Militar, o lema do MST dava ênfase ao

enfrentamento/ação, no sentido de que a terra não seria ganha, mas sim conquistada, a partir

das ações e lutas dos trabalhadores sem-terra. Em 1985, o lema associava a reforma agrária

com a democracia. Isto é, para existir democracia era preciso realizar a reforma agrária. Em

um contexto político adverso, de intensos conflitos, enfatizava-se, em 1986, que a “ocupação

era a única solução”.

Na década de 1990, os discursos se voltavam para a ocupação, a resistência e a

produção nos assentamentos. A reforma agrária na perspectiva do MST também se ampliou,

ela passou a ser “uma luta de todos”, não apenas dos trabalhadores rurais. Na primeira década

do século XXI, o Movimento lutava por “um Brasil sem latifúndio”, ou seja, por uma reforma

agrária que alterasse a estrutura fundiária do país. Associada a isso, a reforma agrária passaria

também a ser uma questão de “justiça social e soberania popular”. O lema atual, aprovado

para o 6º Congresso Nacional do MST, realizado em Brasília, em fevereiro de 2014, é o

seguinte: Lutar! Construir Reforma Agrária Popular! A partir desse lema, o Movimento

reafirma sua posição de lutar por uma reforma agrária popular, que desconcentre a estrutura

fundiária do país.

No Movimento, não é difícil perceber, por intermédio dos materiais produzidos, o

quanto sua organização se inspira em diferentes vertentes ou correntes de pensamentos. Para o

MST, as referências teóricas são importantes desde que contribuam para os interesses e

objetivos do Movimento. Stedile, por exemplo, salienta que todos os teóricos contribuem para

uma elaboração permanente da ciência e para a reinterpretação da realidade, assim “todos os

teóricos são importantes, não interessa qual a corrente ideológica dele, mas se ele puder nos

ensinar alguma coisa para interpretar e transformar a realidade, nós procuramos

aproveitar”286. É preciso destacar que essa perspectiva de Stedile é um tanto quanto limitada,

uma vez que, na prática, os dirigentes do MST não são tão abertos a todas as influências e

inspirações teóricas que, por exemplo, façam críticas às suas ações e maneiras de pensar as

285 Por agentes religiosos entendem-se os bispos, padres, freiras, pastores e indivíduos leigos que desenvolviam

trabalhos com os homens e mulheres marginalizados na cidade e no campo, sob a perspectiva da Teologia da

Libertação. 286 STEDILE, João P. A luta pela reforma agrária e por mudanças sociais no Brasil. Setor de Formação, 2005. p. 12.

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experiências históricas287. Existe sim uma mescla diversificada de inspirações que formaram o

arcabouço ideológico do MST, contudo, nesse processo, houve eleições e exclusões. Por parte

do Movimento, as influências teóricas são bem vindas, desde que adicionem à organização

perspectivas que lhe agradem, sem posições críticas perante seus quadros e ações.

Para se ter ideia da diversificação de referências e ícones que inspiram o MST, citam-

se alguns: Che Guevara, Roseli Nunes, Jesus Cristo, Madre Cristina, Florestan Fernandes,

Paulo Freire, José Martín, Lenin, José Saramago, Maringhella, Zumbi dos Palmares, Antônio

Conselheiro, Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Dorcelina Folador, dentre tantos

outros nomes que foram escolhidos e considerados pensadores e lutadores do povo. Nas

músicas, poesias, cartilhas, manuais de organização, cadernos de formação, acampamentos,

assentamentos, escolas, cooperativas, entre outros espaços que a organização do Movimento

se faz presente, esses são alguns nomes que recebem homenagens e reverências. Nota-se que

há uma mescla de referências (religiosos, revolucionários, intelectuais, militante do MST),

que, num primeiro olhar, parecem contraditórios; entretanto, no MST tomam uma dimensão

harmoniosa. Essa questão impressiona e chama a atenção, posto que demonstra a capacidade

do Movimento de articular referências que são aparentemente incongruentes e de canalizar

tais referências para o fortalecimento de sua memória histórica e de seu arcabouço ideológico.

Os valores do Movimento, expressos em diversos materiais de sua organização,

inclusive no Jornal Sem Terra, revelam as influências do cristianismo, marxismo e ideário

democrático do Movimento. Dentre os valores se encontram: solidariedade, beleza,

valorização da vida, gosto pelos símbolos, valorização do ser povo, trabalho, estudo,

disciplina, capacidade de indignar-se, enfrentamento de classes, dentre outros288. Para o MST,

esses valores necessitam ser desenvolvidos na prática cotidiana dos sujeitos, nos

acampamentos, assentamentos e em todas as manifestações em que seus integrantes estiverem

287 Cita-se, por exemplo, os pesquisadores Zander Navarro e José de Souza Martins. A Direção Nacional do

MST, representada, em especial, por João Pedro Stedile, em diversos materiais produzidos pelo Movimento na

década de 1990, faz questão de responder a críticas desses intelectuais sobre o MST, que os considera fora da

realidade, com suas aspirações e teorias alheias aos trabalhadores rurais. Cita-se um trecho do texto de Stedile,

intitulado A Luta pela Reforma Agrária e a Produção do Conhecimento, publicado no ano de 2007. Nele, Stedile

diz: “A maioria dos nossos intelectuais ou foram ganhar dinheiro ou ainda pior, alguns foram cooptados e

começaram a defender teses neoliberais. Alguns logo no início e outros tardiamente, como José de Souza

Martins, que foi um grande intelectual, sociólogo clássico da esquerda brasileira e ajudou muito a nós do MST e

à CPT. Mas é público e notório, durante o segundo mandato do Fernando Henrique ele foi assessor especial do

ministro Jungmann, pago a preço de ouro pelas verbas do NEAD. A inflexão que ele fez de adesão ao

‘establishiment’ eu acho que é emblemático do que aconteceu com boa parte dos nossos intelectuais que estavam

na universidade” (STEDILE, 2007, p. 23). 288 Sobre os valores enfatizados pelo MST, ver os seguintes materiais: MST – Caderno do Educando – Pra

Soletrar a Liberdade nº 1. Nossos Valores. Veranópolis – RS, junho de 2000; MST- Caderno de Formação nº 26.

A vez dos Valores. São Paulo, janeiro de 1998; MST – Construindo o Caminho. São Paulo, julho de 2001;

BOGO, Ademar. Lições da Luta pela Terra. Salvador: Memorial das Letras, 1999.

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presentes. A ideia de construção de uma sociedade socialista passaria essencialmente pela

vivência desses valores.

As três matrizes ideológicas do Movimento – cristã, marxista e democrática –

intercruzam-se. Isso sugere que o MST se desenvolveu a partir da interpenetração dessas

matrizes que ora se complementam, ora se contradizem e geram ambiguidades. Ressalta-se

que, dentre essas três correntes de pensamento, há o predomínio de uma visão marxista-

leninista, a partir da qual os trabalhadores têm uma missão histórica de romper com o

capitalismo e de instaurar um regime socialista. Por ora, esse predomínio acaba por ser

fechado e doutrinador, não considerando outras possibilidades e experiências políticas

históricas. Também, dificulta a valorização das experiências dos sujeitos sem-terra, que são

plurais e heterogêneas.

Em seu arcabouço ideológico, o MST, desde seus primeiros anos de existência, investe

e propaga a construção de uma sociedade socialista. Grosso modo, os três grandes objetivos

do MST são: terra para quem não possui e quer trabalhar e viver nela; concretização de uma

reforma agrária ampla, que modifique a estrutura fundiária do país; construção de uma

sociedade justa, que, no seu entender, é a sociedade socialista. Percebe-se que o MST não está

dimensionando seu projeto político ideológico apenas para os pobres da terra, mas também

para toda a sociedade.

Assim, é evidente que as ações e aspirações do MST se tornaram ambiciosas e amplas,

sobretudo, do ponto de vista político e econômico. No Jornal Sem Terra, em suas primeiras

edições, já se percebem esses três grandes objetivos muito latentes. Sobre a construção da

sociedade socialista, no editorial de abril de 1989, em um contexto de preparação para as

eleições nacionais – no qual o MST se posicionou em favor do presidenciável Lula e de seu

partido, o PT –, a Direção Nacional do Movimento destacava:

Nossa tarefa é acabar com o latifúndio, fazer as terras conquistadas produzir

e com isso contribuir para o avanço da luta geral dos trabalhadores.

Lutaremos para eleger um representante dos trabalhadores na presidência da

república. Entendemos que essas tarefas fazem parte de uma luta maior, em

vista da construção de uma sociedade socialista (sublinhado nosso)289.

289 Mobilizar as Massas. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1989, Ano IX, nº 82. p. 2.

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O ideal de construção de uma sociedade socialista290 sempre esteve presente na

organização do MST. Para além de oposição e resistência aos presidentes e seus governos, a

defesa do MST é por uma sociedade socialista, em que a lógica do capital não prevaleça e em

que novas relações sociais sejam erigidas. Isto é, a oposição não está relacionada apenas aos

presidentes e governos específicos, mas a um sistema político e econômico, no caso, ao

capitalismo. A utopia do Movimento é alicerçada na construção de uma sociedade socialista

em que a conquista da reforma agrária se torna imprescindível nesse processo.

Desse modo, é possível analisar o Movimento a partir de um caráter antissistêmico.

Carlos Antonio Aguirre Rojas, no texto intitulado O que são os Movimentos Antissistêmicos?,

reflete sobre o que se convencionou chamar de “movimentos sociais antissistêmicos”. Para

Rojas, inspirado em Immanuel Wallerstein, após a revolução cultural de 1968, houve a

emergência dos chamados “movimentos antissistêmicos” que expandiram as ações dos

“movimentos anticapitalistas”, alcançando pontos que iam além da luta contra a exploração

econômica, contra o Estado e a cultura capitalista.

Os movimentos antissistêmicos trouxeram para a pauta de reivindicações elementos

como a herança das sociedades de classe, o patriarcado e o machismo, a exploração irracional

da natureza, além da divisão entre o trabalho manual e o intelectual291. Os movimentos

antissistêmicos passaram não apenas a afrontar o sistema capitalista, mas igualmente

estenderam sua luta contra outros dois sistemas que o sustentavam, quais sejam: o sistema de

organização social dividido em classes sociais antagônicas; e o sistema do reino da “escassez

natural” ou do predomínio do “reino da necessidade”, segundo termo de Karl Marx.

No MST, o socialismo deve estar intrinsicamente ligado ao ideário democrático. Ou

seja, sem democracia, o socialismo estaria fadado a fracassar. Vale registrar, contudo, que,

apesar de haver vasta literatura que reflete sobre os diversos tipos e perspectivas de

democracia no mundo contemporâneo292, no MST não há sistematização do que seja

democracia ou clareza/evidência acerca de que tipo de democracia sua organização defende.

De maneira geral, no Movimento, democracia é avaliada sob o prisma da igualdade de

condições e participação popular nas decisões e escolhas fundamentais para os rumos do

290 Sobre as origens e interpretações sobre o socialismo, ver: VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas

Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995. O autor reflete sobre as várias “escolas do pensamento”,

ou, o que ele denomina de “ideologias políticas modernas”, como o “liberalismo”, “conservadorismo”,

“socialismo”, “anarquismo”, “fascismo”, “feminismo”, “ecologismo” e “nacionalismo”. 291 ROJAS, C. A., O que são os Movimentos Antissistêmicos?, p. 1-24. As lutas do MST vão para além da terra,

como: educação, saúde, créditos agrícolas, saneamento básico, infraestrutura, relações de gênero, meio ambiente,

dentre outros assuntos que sua organização entende como relevantes para a vida dos sujeitos. 292 Sobre os tipos de democracia no mundo contemporâneo, ver: BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,

Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

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país. Isto é, relaciona-se à garantia de participação do povo nas decisões políticas, no

desenvolvimento e na criação de leis.

Em sua tese, Plínio José Feix, analisa que a questão da democracia no MST não é

objeto de reflexão teórica ampla e aprofundada. O autor aponta que as fundamentações teórica

e empírica dos dirigentes do MST, em grande medida, não consideram a democracia como

um valor ou como um princípio político fundamental para o desenvolvimento da estrutura

organizativa do MST, para a promoção das lutas sociais e para o processo de construção

política do projeto socialista almejado por suas lideranças. Assim, democracia no Movimento

se torna algo “instrumental”, ou seja, para a ação sócio-política em espaços permitidos da

sociedade civil e das políticas institucionais do Estado293.

Nos discursos de seus dirigentes nacionais (publicados em diversos materiais),

encontram-se evidências de que o MST valoriza a democracia semidireta, que agrega

elementos dos tipos de democracia representativa e direta. Isto é, uma democracia que,

conforme Norberto Bobbio, permite equilíbrio operacional entre a representação política e a

soberania popular direta, com a possibilidade de o povo decidir sobre temas fundamentais da

sociedade, através de plebiscitos, referendos e projetos populares294. Na visão de Miguel

Carter, o MST, a partir de suas ações junto às instituições políticas do Brasil, tem se

configurado importante agente no avanço da reforma agrária e na consolidação e melhoria da

democracia no Brasil295.

Democracia seria sine qua non para o socialismo do MST. Os trabalhadores e as

trabalhadoras do campo e da cidade são primordiais nesse processo de construção da

sociedade socialista, e a conquista do poder do Estado por estes se tornaria fundamental para

desencadear essa construção. O Estado controlaria os meios de produção (inclusive a terra), e

estes seriam utilizados de maneira coletiva. A reforma agrária também passaria a ser condição

crucial para essa conquista.

Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Elaine Nunes Silva Fernandes se

preocupou em entender a “concepção do socialismo do MST”. A autora analisou as

publicações do MST, em especial, aquelas escritas por seus dirigentes nacionais e organizou

as principais correntes de pensamento que sustentam a ideia de socialismo no Movimento,

293 Sobre os “espaços da democracia” no projeto político do MST, ver: FEIX, Plínio José. O Espaço da

Democracia no Projeto Político dos Dirigentes do MST. 2010. 429 f. Tese (Doutorado em Ciência Política).

Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas. 294 BOBBIO, N., Estado, Governo, Sociedade, p. 459. 295 CARTER, M., O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Democracia no Brasil, p. 124-164.

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pelo menos para seus dirigentes, em âmbito nacional296. Os escritos marxistas e de seus

seguidores, inspirados na Revolução Russa297, foram centrais, de acordo com a autora, para a

formação de pensamentos e para o entendimento de como os dirigentes do Movimento

almejam a construção do socialismo. Fernandes compreendeu que, para o MST, a sociedade

socialista poderá ser construída ainda sob as bases do capitalismo, por meio da promoção de

novas relações sociais advindas de um modo de produção coletivo. Com as novas relações

sociais emergiriam os novos homens e as novas mulheres298, com uma nova consciência

política e dispostos a lutar por uma sociedade melhor.

Assim, no Movimento haveria uma ênfase maior na perspectiva da subjetividade, já

que o MST “entende que novas relações sociais provocariam o surgimento do homem

socialista ainda dentro desta ordem estatal”299. Para Fernandes, essa interpretação da obra

marxiana é equivocada por parte dos dirigentes do MST, haja vista que, em Marx,

subjetividade e objetividade seriam dois momentos de igual dimensão, sendo a objetividade

determinante em um processo revolucionário. Na compreensão da autora, o socialismo do

MST é reflexo de uma interpretação das experiências históricas, em que a subjetividade teria

primazia sob a objetividade. E, o Estado, conquistado pelos trabalhadores, poderia realizar as

mudanças estruturais que conduziriam a humanidade à sociedade socialista, emancipada,

liberta do julgo capitalista.

Outro que buscou entender o socialismo no MST foi Claudinei Coletti. Esse autor

enfatiza que a ideologia do MST é centrada na ideia do “anticapitalismo”, desde seus

primeiros anos de existência. Para ele, o ideário socialista pregado pelas lideranças do MST

estaria mais próximo da reivindicação por justiça social, por defesa dos valores humanistas e

por combate às misérias que estão imbricadas ao modo de produção capitalista, do que do

socialismo marxista. Essa interpretação foi erigida em vista das próprias declarações de

dirigentes do MST, como João Pedro Stedile, que, ao ser questionado por um jornalista do

Diário Popular se o MST era revolucionário, salientou que “toda a abordagem socialista está

296 Para uma reflexão mais densa, ver: FERNANDES, Elaine N. S. A Concepção de Socialismo do Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. 2008. 170 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social).

Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Maceió. 297 A Revolução Russa ocorreu em 1917, quando os bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin tomou o poder e

assumiu o Governo Russo. Na ocasião, Lenin implantou o Socialismo e a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas (URSS). Nas décadas seguintes a URSS se tornou uma grande potência econômica e militar. 298 Nota-se que o socialismo preconizado no MST, pelo que parece, é bem limitado, abarcando apenas a relação

homem/mulher. Nessa perspectiva, na nova sociedade a ser construída, não haveria espaços para outras

sexualidades. 299 FERNANDES, E. N. S., A Concepção de Socialismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –

MST, p. 160.

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relacionada com princípios da Igreja Católica, nossa principal base de formação”300. Desse

modo, para Coletti, o socialismo do MST estaria “mais próximo do ideal cristão de justiça

social do que do socialismo-marxista”301.

Em relação ao trabalho dos agentes religiosos na organização do MST, é inegável a

influência do cristianismo em seu arcabouço ideológico, principalmente, a partir de suas

lideranças mais antigas que compõem a Direção Nacional. Muitas das lideranças do MST

tiveram formação, ainda que parcial, em Seminários Católicos, como, por exemplo, Ademar

Bogo, João Pedro Stedile, Egídio Brunetto (falecido no ano de 2011). Entretanto, para além

dos valores humanistas, da defesa da justiça social e do combate às misérias que assolam

grande parte da sociedade, a utopia do MST é alicerçada também no rompimento com o modo

de produção capitalista e na construção de uma sociedade socialista, na qual o Estado teria

que ser de caráter popular302, com a participação direta dos trabalhadores nos temas e

direcionamentos fundamentais para o futuro do país.

Coletti entende que o socialismo pregado pelos dirigentes do MST, por vezes, é

contraditório. Isto é, eles lutam pelo fim do capitalismo, mas, ao mesmo tempo, defendem

através da reforma agrária o acesso à propriedade privada a todos os trabalhadores rurais, não

só às pessoas com poderio econômico. Essa percepção pode ser encontrada, por exemplo, no

Caderno de Formação nº 4, quando diz: “se existe um direito a propriedade, ele existe para

todos e não apenas para alguns. Uma reforma agrária vai garantir que todos os trabalhadores

rurais tenham propriedade e não só os latifundiários”303. Observa-se que, nessa fonte, não se

questiona o direito à propriedade304. Mas se considera que ele existe e deve ser um direito de

todos, não de alguns. Nesse sentido, a reforma agrária garantiria uma redistribuição da

propriedade da terra. Nesse sentido é que Coletti interpreta que os discursos em prol do

socialismo, propagados pelo MST, em muitos momentos, se tornam contraditórios.

300 RYDLE, Carlos. Cartilha diz que invasão prepara para o socialismo. Diário Popular, São Paulo, 05 de junho, 1994. 301 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 269. 302 O termo popular se encontra nos dois últimos lemas oficiais do MST. Em 2007 e 2014, após o V e VI

Congressos Nacionais do Movimento, foram lançados os seguintes lemas, respectivamente: Reforma Agrária:

por Justiça Social e Soberania Popular; Lutar! Construir Reforma Agrária Popular!. O lema oficial é a síntese

das tarefas, desafios e do papel do MST no período histórico que se abre após seu Congresso Nacional. O

popular evidenciado em seus lemas, grosso modo, evidencia a luta pela participação ativa e direta dos

trabalhadores nos direcionamentos do processo de reforma agrária no Brasil. 303 MST - Caderno de Formação nº 4. O Plano Nacional de Reforma Agrária e o Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra. São Paulo, junho de 1985. 304 O direito à propriedade é um direito constitucional, previsto na Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º.

Destaca-se que esse direito não é absoluto, assim a propriedade tem que atender a uma função social. Ver:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

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Ainda sobre a ideia de socialismo, vale destacar as reflexões de Paul Singer. O autor

entende que o projeto de socialismo não pode ser reduzido à economia, ou ao modo de

produção. Para além da economia, a proposta deve alcançar a “cultura, a sociabilidade, é um

projeto de reorganização de toda sociedade humana, da infra à superestrutura e, portanto, não

deve ser reduzida a uma proposta econômica, como ocorre muitas vezes”. Assim, nas

experiências históricas encontram-se pistas para servirem como indicadoras na realização de

“uma economia socialista inserida contraditoriamente na economia de mercado capitalista”.

Na visão de Singer, o poder nas mãos dos trabalhadores não significa a construção de uma

sociedade socialista305, como sugere o MST. Há exemplos históricos como os que

aconteceram na Rússia, Polônia, China, Coréia do Norte que atestam essa questão.

Singer chama a atenção sobre algo que conduz à reflexão em torno da proposta de

socialismo do MST, ou seja, a de que o socialismo deve ser diferente, no mínimo tolerante.

Por ora, socialismo não é “coerção”. Como construir o socialismo sem se respeitar a

diversidade dos grupos e sujeitos? Isso seria, no mínimo, um “socialismo autoritário”, como o

que já tiveram e têm alguns países. Nas palavras de Singer:

[...] não acredito no socialismo que começa com uma conquista de poder por

medidas de força política, tentando impor aos trabalhadores e aos cidadãos

uma nova forma de se relacionar. A essência da idéia socialista exige a sua

espontaneidade, exige adesão voluntária. E adesão só é voluntária se você

pode desfazê-la. Senão vira prisão: você adere, mas depois não pode desistir.

Assim como o capitalismo é capaz de sobreviver tolerando experiências

socialistas em seu seio, o socialismo tem de ter a mesma capacidade. No

mínimo ser tão liberal e tão robusto a ponto de agüentar a competição com

outros modos de produção. E não proibi-los! A autenticidade das

cooperativas, a autenticidade das experiências autogestionárias provêm dessa

absoluta liberdade de opção que todas elas usufruem306.

Singer acredita que o socialismo deve ser, por convicção, e não, por coação. Os

sujeitos, de forma voluntária, devem visualizar que o socialismo é uma alternativa para uma

vida melhor, justa e igual entre os seres humanos. O autor enfatiza também algo relevante no

que diz respeito ao fato de o socialismo ser tolerante com outros modos de produção (exceto o

da escravidão), sem perder o que chama de “essência libertadora”.

Dessa maneira, cabe indagar: será que essa perspectiva do MST, de derrubar o

capitalismo e construir um socialismo com novos homens e novas mulheres, não é limitada?

305 SINGER, P., Teses sobre autogestão e socialismo no Brasil de hoje, p. 354-358. 306 SINGER, P., Teses sobre autogestão e socialismo no Brasil de hoje, p. 359.

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Esse socialismo abrangeria um conjunto de grupos, com perspectivas e pensamentos

distintos? Existiria espaço para todas as sexualidades? Será que a concepção acerca desse

novo homem e essa nova mulher não seria uma tentativa de homogeneizar a sociedade? Como

essa ideia de socialismo chegaria às bases do MST, aos acampamentos e assentamentos? Será

que a vontade dos integrantes que compõem o MST é viver nessa sociedade socialista? Esse

discurso não ficaria mais no plano da retórica e entre os militantes que integram a direção do

Movimento em suas diversas instâncias?

Essas indagações são complexas, mas ao mesmo tempo servem para apontar que a

utopia socialista do MST para sua organização e para o conjunto da sociedade brasileira tem

seus limites, pois a realidade e a subjetividade dos sujeitos são heterogêneas. Os próprios Sem

Terra, integrantes do Movimento, não são homogêneos, mesmo que existam alguns objetivos

e lutas que os agregam para um caminho semelhante. Há uma diversidade de sujeitos, com

subjetividades, objetivos e interesses distintos dentro do Movimento.

Nessa direção, as ideologias também são entendidas como elementos discursivos. Elas

estão inseridas num conjunto de discursos que dão sentido às práticas dos grupos. No caso do

Jornal Sem Terra, as ideologias do MST estão presentes em seus discursos escritos e

imagéticos. Nesta tese, acredita-se que elas estão implícitas nas representações que o

Movimento constrói sobre diversos assuntos. Em relação aos presidentes brasileiros, por

exemplo, as representações do MST são ancoradas em sua forma de ver e analisar as relações

sociais, políticas e econômicas. Os presidentes são visualizados, ou personificados de acordo

com o seu governo, suas prioridades políticas e ações desenvolvidas, sobretudo, em relação às

políticas agrícolas e reforma agrária.

2.2 Representante dos Latifundiários e a continuidade da Ditadura: José Sarney

A opção por refletir, inicialmente, sobre o presidente José Sarney, e, em seguida, sobre

Fernando Collor de Mello e Itamar Franco dá-se no sentido de se demonstrar como o

Movimento estruturou suas representações sobre tais presidentes e como se posicionou diante

das ações de seus respectivos governos. Nesse sentido, busca-se evidenciar que, anteriormente

a FHC e a Lula, a Direção Nacional do MST, por meio do Jornal Sem Terra, mantinha uma

perspectiva continuísta em seu discurso, sobretudo, face às representações sobre os

presidentes referidos.

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Em momento anterior ao mandato de José Sarney, no período denominado transição

democrática307, especialmente entre os anos de 1983 e 1984, o país vivia expectativas quanto

aos rumos políticos que iria tomar. Nesse contexto, aconteceu um evento político e civil que

despertou clamor em grande parte da sociedade brasileira – o movimento Diretas Já. Surgiu,

inicialmente, a partir de partidos políticos e organizações sindicais como o Partido dos

Trabalhadores (PT), o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido

Democrático Trabalhista (PDT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Conferência

Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), dentre outras organizações, e se transformou em

um evento de repercussão nacional, conquistando milhões de adeptos nas manifestações.

Conforme Boris Fausto, o movimento Diretas Já expressava, “ao mesmo tempo, a

vitalidade da manifestação popular e a dificuldade dos partidos para exprimir

reinvindicações”308. As manifestações, por meio de comícios, passeatas e discussões na

sociedade sobre o direito da população escolher seu presidente e outros governantes, de

acordo com Fausto, gerou um “entusiasmo raramente visto no país”309. Lucilia de Almeida

Neves Delgado, acredita que o Diretas Já foi o maior movimento cívico-popular da história

republicana do Brasil. “O fervilhar das ruas traduziu uma forte simbiose entre bandeira

política democrática e aspiração coletiva, que transformou o ano de 1984 em marco da única

campanha popular brasileira”310. Em sua concepção, foi um movimento suprapartidário que

reuniu os partidos de oposição ao Regime Militar (que estava no poder há 20 anos), em torno

das eleições diretas para presidente. Nessa direção, o Diretas Já teve como características

principais a heterogeneidade e a despersonalização.

Nas manifestações, as palavras de ordem mais evocadas eram: “Presidente, quem

escolhe é a gente. Eleições Diretas Já”; “Eu quero votar pra presidente”; “Um, dois, três,

quatro, cinco, mil: queremos eleger o presidente do Brasil”; “Sem eleições diretas não haverá

democracia”. Com o decorrer dos acontecimentos, evidenciava-se que a essência do Diretas

307 Sobre o período de transição democrática no Brasil, ver: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VELASCO E CRUZ, S; SORJ, B; ALMEIDA, M. H. T. (Orgs.). Sociedade e

Política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983; KINZO, Maria D’Alva G. A Democratização Brasileira:

um balanço sobre o processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva. 15(4), 2001. p. 3-12;

MOISÉS, José Álvaro; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto (Orgs.). Dilemas da Consolidação da

Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e

Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem

Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000; FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia

de A. Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. O Tempo da Ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins

do século XX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 308 FAUSTO, B., História Concisa do Brasil, p. 282. 309 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 433. 310 DELGADO, L. de A. N., Diretas Já: vozes das cidades, p. 413.

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Já não estava só nas eleições diretas para presidente, mas também no retorno do estado

democrático no Brasil, com as liberdades civis e políticas. Enfim, as manifestações revelavam

um descontentamento geral em diversos âmbitos e setores da vida dos sujeitos.

No que tange ainda às Diretas Já, Vanderlei Elias Nery também tem interpretação

interessante. Ao analisar os textos de Lucilia de Almeida Neves Delgado311, de Alberto Tosi

Rodrigues312, e o de Domingos Leonelli e Dante de Oliveira313, o autor reconhece que as três

obras são significativas para o entendimento do Diretas Já. As três abordam o como esse

movimento ampliou os espaços democráticos no país na década de 1980. Todavia, Nery

destaca que essas obras foram escritas a partir de uma visão romântica da política. Isso é

revelado na interpretação de que o objetivo central era a conquista da democracia, que

“aparece como um valor em si mesmo, como um valor universal, sem que houvesse, portanto,

questionamento quanto às formas de organização da campanha, à participação das classes

sociais no processo, e os diferentes objetivos dos diferentes segmentos participantes”314.

Nery analisa esse momento tentando demonstrar que havia outros interesses,

sobretudo, partidários ligados às Diretas Já. Em sua visão, as classes dominantes e

governantes nos estados também participaram dessas manifestações devido às crises

econômicas e políticas da época. Nesse processo, de acordo com Nery,

[...] as classes dominantes brasileiras foram bastante eficientes, pois

conseguiram dirigir um movimento de massas, que teve a presença de

muitos milhões de pessoas nas ruas e praças, dentro de limites

suficientemente estreitos para preservarem inteiramente os dispositivos de

dominação capitalista na formação social brasileira. Mesmo um aparelho

ideológico notoriamente identificado com a ditadura militar, como o

principal grupo de comunicações do país, ficou incólume durante as

manifestações populares315.

O MST, que nascia no início de 1984, também apoiou o movimento Diretas Já; por

meio do Jornal Sem Terra, isso ficou evidente. Em abril de 1984, com a não aprovação pelo

311 DELGADO, Lúcilia de Almeida Neves. Diretas-Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel

Aarão (Orgs.). Revolução e Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 409-427. Publicado na

coletânea que versa sobres as esquerdas no Brasil pós 1964. 312 RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. Livro

elaborado a partir da Dissertação de Mestrado defendida pelo autor na Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp), no ano de 1993. 313 LEONELLI, Domingos; OLIVEIRA, Dante de. Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro:

Record, 2004. Os autores eram deputados federais pelo PMDB no período da Diretas Já, sendo o segundo o

propositor da Emenda Constitucional que previa eleições diretas para Presidente da República em 1984. 314 NERY, V. E., Diretas Já: em busca pela democracia e seus limites, p. 114. 315 NERY, V. E., Diretas Já: em busca pela democracia e seus limites, p. 118.

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Congresso da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que pretendia restabelecer as

eleições diretas para presidente da República, o MST destacava no editorial de seu jornal que

o “Brasil foi traído” e que “uma minoria de parlamentares covardes e submissos frustraram a

esperança de milhões de brasileiros que querem decidir o seu destino”316. A emenda recebeu

298 votos a favor, 65 contra, 2 abstenções. Estiveram ausentes 113 parlamentares, não sendo

aprovada pela diferença de 22 votos. Ao final do editorial, o Movimento fez questão de

publicar os nomes dos parlamentares e o de seus respectivos partidos que votaram contra as

eleições diretas, os dos que estivem ausentes e o dos que se abstiveram de votar.

Naquele contexto, havia distância entre as manifestações nas ruas e o Congresso que,

em sua maioria, era composto pelo Partido Democrático Social (PDS), antiga Arena317, ligada

aos militares. Isto é, o Congresso era conservador demais para aprovar uma eleição direta

naquele momento. O processo de distensão lenta, gradual e segura, proposto pelo militar e

presidente Ernesto Geisel (1974-1979), que visava a conduzir o país ao estado de direito,

excluindo, entretanto, os grupos radicais e movimentos populares de participarem do

processo, foi seguido pelos parlamentares que compunham o Congresso Nacional.

Após a derrota da emenda Dante de Oliveira, pairavam expectativas quanto ao

presidente a ser eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral. Entre negociações e interesses

políticos dos partidos políticos e parlamentares, elegeu-se Tancredo Neves como presidente

do Brasil, tendo como vice José Sarney. Na ocasião, Tancredo Neves e José Sarney venceram

Paulo Maluf e Flávio Portela Marcílio por 480 votos a 180. Entretanto, Tancredo não chegou

a tomar posse do cargo de presidente, haja vista que ficou doente e, em seguida, faleceu em

21 de abril de 1985.

Com esse fato, Sarney ocupou o cargo de presidente da República exercendo o

mandato até o ano de 1989, quando houve a primeira eleição direta para presidente, após o

Golpe Militar de 1964. Vale destacar que, em pleno ano de 2014, Sarney ainda continua no

cenário político nacional318. Em seus 60 anos de política, além de ter sido presidente do

316 O Brasil traído. Jornal Sem Terra. Porto Alegre, abril de 1984, ano III, n. 35. p. 2. 317 Aliança Renovadora Nacional – A Arena foi um partido político criado em 1965 com a finalidade sustentar a

política do Regime Militar, instituído a partir do Golpe de 1964. Seu perfil político era predominantemente

conservador. Após a restauração do multipartidarismo no Brasil, o partido Arena foi reconfigurado com o nome

Partido Democrático Social (PDS). 318 No ano de 2014, Sarney anunciou que não iria se candidatar para concorrer à reeleição ao Senado pelo estado

do Amapá. Na ocasião, justificou sua ausência nas eleições por causa da idade avançada e, principalmente, para

cuidar de sua esposa que passava por problemas de saúde. Em uma entrevista a rádio Diário FM de Macapá/AP,

Sarney disse que “desistiu da disputa pela reeleição”, mas que não estava “aposentado”, assim enfatizou:

“aposentadoria nada, eu não me aposento nunca”. Ver a seguinte matéria: “Aposentadoria nada, eu não me

aposento nunca”, diz Sarney. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1475776-

aposentadoria-nada-eu-nao-me-aposento-nunca-diz-sarney.shtml. Acesso em: 29/07/2014, às 17h35min.

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Brasil, exerceu três mandatos de Deputado Federal (1955 a 1966); governou o estado do

Maranhão (1966-1971), estado em que fora também senador por dois mandatos consecutivos

(1971-1979 / 1979-1985); e foi eleito senador pelo estado do Amapá por três mandados

consecutivos (1991-1998 / 1998-2006 / 2006-2015). A partir da sua longevidade na política

nacional, é possível pensar que Sarney foi e continua sendo a expressão singular da política

nacional: a continuidade dos mesmos rostos, famílias e projetos (quando há).

Quanto à constituição do governo da Nova República e o novo presidente do país, o

MST evidenciou que seria oposição e lutaria, organizadamente, visando à conquista da

reforma agrária e à transformação social. Sarney não representava credibilidade e confiança

para o Movimento. Por mais que o Brasil retomasse seu caminho democrático, a Nova

República era visualizada ainda como a face do arcaico, sobretudo, pelos parlamentares que

compunham o Congresso Nacional. Ou, como dissera Capelato, a Nova República que nascia

era “na mesma moeda, a outra face da ‘Velha República’”319.

Ao ponderar sobre os “novos ares em Brasília”, no editorial de maio de 1985, o MST

criticava a morosidade e a falta de vontade política dos parlamentares para com a reforma

agrária. Assim, enfatizava que o país precisava de “mudanças imediatas e profundas na

estrutura fundiária, para acabar de uma vez por todas com este mal que se reflete em toda

sociedade brasileira”320. No período em que Sarney foi presidente do Brasil, além das

denúncias de violência contra os trabalhadores sem-terra, das críticas ao governo e da

convocação dos integrantes do Movimento para se organizarem e lutarem pela reforma

agrária, dois grandes temas permearam os editoriais do Jornal Sem Terra. O primeiro se

referia à elaboração e aprovação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA); e o

segundo, à Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a nova Constituição do Brasil.

No início do governo Sarney, havia expectativas dos movimentos sociais do campo

quanto ao processo de reforma agrária no país. Isso ficou evidenciado no início de 1985,

quando foi elaborada proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) pelo

Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário e pelo Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (MIRAD/INCRA), sob a coordenação de José Gomes da Silva e supervisão

do ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro. Na elaboração desse Plano, houve o

envolvimento de 17 Comissões Temáticas, as quais envolveram 102 especialistas nos mais

variados assuntos que diziam respeito à reforma agrária. A primeira versão da proposta do

PNRA foi tornada pública no dia 26 de maio de 1985, no IV Congresso Nacional dos

319 CAPELATO, M. H., Imprensa e História do Brasil. p. 57. 320 Novos ares em Brasília. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1985, ano IV, n. 43. p. 2.

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Trabalhadores Rurais, promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na

Agricultura (Contag), em Brasília, o qual contou com a presença do presidente Sarney, de

Nelson Ribeiro e de José Gomes da Silva.

Assim que a proposta do PNRA foi lançada, em sua primeira versão, efetuada por José

Gomes da Silva, prevendo assentar 1 milhão e 400 mil famílias, via desapropriação por

interesse público, e restringindo a reforma agrária aos projetos de colonização321, o MST logo

a apoiou. Em junho de 1985, o Movimento tratou de explicar aos leitores do jornal os

benefícios que a reforma agrária proporcionaria ao Brasil e às famílias que lutavam por terra

para trabalhar. Porque Reforma Agrária?, era o título do editorial.

O interessante é que, ao mesmo tempo em que apoiava, o Movimento dava a entender

que estava cético quanto às intenções de Sarney. Assim, dizia: “Alguém consegue imaginar o

latifundiário José Sarney contra a propriedade privada da terra?”322. Nota-se que Sarney era

representado pelo MST como um latifundiário. Ou seja, como adversário, inimigo. E, sendo

um latifundiário, Sarney também representava o capitalismo no campo, a violência, a

expropriação e exploração dos trabalhadores rurais. Os valores e ideais de justiça social e a

concepção da reforma agrária enquanto ponto fundamental para transformação do país,

conforme as representações do Movimento, não estavam agregados ao presidente Sarney.

No editorial de julho de 1985, o Movimento trazia reflexões sobre o PNRA,

enfatizando que sua aprovação não seria fácil, devido às influências dos grandes proprietários

de terras no Congresso Nacional. Contudo, a aprovação do PNRA pelo Congresso era vista

como a esperança de fazer avançar a reforma agrária323. E essa conquista dependeria também

dos trabalhadores rurais sem-terra. Desse modo, o Movimento destacava: Nós apoiamos o

Plano do governo:

Porque desapropriar latifúndios é um primeiro passo para mostrar para toda a

sociedade, sobretudo na cidade, as injustiças que existem no campo.

Porque vamos utilizar essa pequena distribuição de terra como uma forma

dos companheiros se animarem, e melhor se organizarem para conquistar

mais terras.

Porque desapropriar alguma coisa já é melhor do que não querer

desapropriar nada324.

321 COCA, E. L. de F; FERNANDES, B. M., Uma Discussão Sobre o Conceito de Reforma Agrária: teoria,

instituições e políticas de governo, p. 47. 322 Porque Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1985, ano IV, n. 44, p. 2. 323 Depende de nós. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1985, ano IV, n. 45, p. 2. 324 Porque apoiamos o Plano do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1985, ano IV, n. 45, p. 2.

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Naquele momento, o MST expressava que as terras desapropriadas pelo PNRA seriam

um ânimo para os trabalhadores sem-terra, no sentido de eles se motivarem para se organizar.

Entretanto, o Plano era visualizado como uma “pequena distribuição de terra”. Isto é, a

reforma agrária pretendida pela organização do Movimento estava longe de ser aquilo que

havia sido proposto pelo PNRA. E, apoiar o PNRA não significava apoiar o governo,

tampouco o presidente Sarney. Como justificativa para não apoiar o governo, o MST

ressaltava: “Apoiar o Plano não significa apoiar o governo! Pois sabemos muito bem que o

governo da Aliança Democrática não é um governo dos trabalhadores, do povo. Mas um

governo dos ricos, que substituiu os militares, antes que a crise aumentasse mais ainda”325.

O discurso do Movimento era enfático quanto à sua organização ser oposição

declarada ao governo e propiciava indícios significativos para a reflexão em torno das

representações sobre o presidente Sarney. E quanto ao PNRA? O MST ficara satisfeito com a

versão final do Plano que apoiou?

Com o PNRA e com as manifestações dos movimentos sociais do campo, a reforma

agrária foi recolocada na ordem do dia. Houve reação das diversas entidades representativas

dos latifundiários, como, por exemplo, da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), da

Sociedade Rural Brasileira (SRC) e da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Para

além da oposição dessas entidades, os grandes proprietários de terras se organizaram e

criaram a União Democrática Ruralista (UDR) que, para Feliciano, se firmava como um

movimento contra a implantação do PNRA, além de se caracterizar “como uma força que

usava de métodos violentos para conter as manifestações dos movimentos sociais que

reivindicavam a democratização do acesso a terra”326. Os grupos citados tinham

representatividade política e eram contrários a qualquer mudança na estrutura agrária do país.

Nessa conjuntura, com a criação e expansão do MST de um lado, a criação da UDR de

outro e, no centro, o PNRA, Coletti destaca que politizou-se a luta pela terra no país, em

especial, por dois aspectos:

325 Porque apoiamos o Plano do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1985, ano IV, n. 45, p. 2. 326 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 41. A UDR, em meados

de 1980, nasceu, sobretudo, a partir da criação do PNRA e do surgimento do MST. A UDR era uma entidade

classista, voltada a defender os interesses dos grandes proprietários de terras. Isto é, a maior bandeira de luta da

UDR era a defesa intransigente do direito da propriedade absoluta da terra, e da livre iniciativa de mercado com

relação às terras. De acordo com Coletti, os principais inimigos a serem combatidos pela UDR eram “os sem-

terra e a Igreja Católica progressista, além de seus dirigentes tecerem, a cada oportunidade surgida, duras críticas

ao governo, ao Estado e às esquerdas em geral” (2005, p. 104). Nos discursos dos representantes da UDR, no

Brasil não existia o latifúndio improdutivo; a grilagem de terras; o privilégio de incentivos fiscais e créditos aos

grandes proprietários de terras pelo Estado; a violência frente aos trabalhadores rurais; dentre outras questões.

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1º) as várias instâncias do aparelho de Estado – executivo, legislativo e

judiciário – não poderiam mais ignorar a existência de uma questão agrária

no Brasil, geradora de conflitos e de violência no campo, efetivamente não-

resolvida até aquele momento; 2º) os proprietários de terra, de um lado, e os

sem-terra, de outro, apresentavam-se na cena política como verdadeiras

forças sociais, os primeiros constituindo-se em fração autônoma de classe, e

os segundos, como classe social distinta, à medida que extrapolavam as suas

existências econômicas e colocavam-se em confronto nos níveis político e

ideológico327.

Nesse contexto, é preciso considerar que os embates e discussões sobre o PNRA

travavam-se no Congresso Federal, espaço em que a bancada ruralista era amplamente

representada e tinha muito peso e poder político. Até a sua aprovação, em outubro de 1985, o

PNRA sofreu muitas alterações ao longo de suas 12 versões328. A última versão estava

radicalmente mudada em relação à proposta original, frustrando as expectativas e demandas

dos trabalhadores. Para Lerrer, o Plano aprovado foi “transfigurado”, tornando “insustentável

politicamente a permanência de José Gomes da Silva e seus colaboradores”329, que

elaboraram o PNRA original, no INCRA.

O PNRA aprovado continha um discurso nas entrelinhas de que o Estado não iria

realizar a reforma agrária desejada pelos movimentos sociais. A reforma agrária, a partir do

PNRA, passou a se constituir mais em “um ato voluntário dos proprietários rurais”330 do que

em uma ação política do Estado. Esse Plano não teve êxito e nem conseguiu apoio necessário

entre os parlamentares no Congresso Nacional331.

O MST que, a princípio, apoiou o Plano, em setembro de 1985, enfatizava que o

governo da Nova República não tinha vontade política para fazer a reforma agrária. Sarney e

os ruralistas no Congresso “enrolaram” os trabalhadores, dizia o MST. As modificações no

Plano original evidenciavam que a proposta de reforma agrária era para “atender aos pedidos

dos empresários e latifundiários”332. Com a assinatura do Decreto nº 91.766, de 10 de Outubro

de 1985, pelo presidente José Sarney, que aprovava o PNRA, o Movimento manifestou-se

dizendo que o decreto era, na verdade, “preparado pelos latifundiários, com o aval dos

militares”. Para o MST, o Plano “de tão ruim, tira o pouco de bom que havia no Estatuto da

327 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 79. 328 SILVA, J. G. da., Caindo por Terra: crises da reforma agrária na Nova República, p. 62. 329 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 66. 330 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 42. 331 José Gomes da Silva, em seu livro A Reforma Agrária na Virada do Milênio (1996), discutiu de forma

significativa as problemáticas que envolveram o PNRA no Governo Sarney. 332 O governo não faz, nós temos que fazer. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1985, ano IV, n. 47, p. 2.

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Terra”333. O Movimento chegou a dizer no editorial da edição de dezembro de 1985 que o

PNRA era um “falso Plano de Reforma Agrária”. Logo, as desapropriações de terra seriam

“na lei ou na marra”334.

Na charge abaixo, o MST indica que o PNRA foi uma caixinha de surpresa de Sarney

para os trabalhadores.

Imagem 6 - Os mesmos vícios do passado

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Out/Nov.de 1985, ano IV, n. 48, p. 2.

A charge foi produzida por Bira, mais conhecido como Bira Dantas335. Nela, de forma

bem humorada, o MST busca representar que o presidente Sarney e seu governo prepararam,

por meio do PNRA, uma surpresa de muito mau gosto para os trabalhadores. Na imagem,

Sarney, muito bem vestido em traje tradicional de parlamentar, com seu imponente bigode e

expressão facial tranquila, segura uma caixa de surpresa já aberta, a qual representa o PNRA.

333 Os mesmos vícios do passado. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro/novembro de 1985, ano IV, n. 48, p. 2.

O Estatuto da Terra foi criado em 1965, durante o governo Militar. Seu objetivo, pelo menos no papel, era de

resolver os problemas agrários no país. Entretanto, o Estatuto foi um fracasso devido à inércia do Estado e sua

má vontade em aplicar a Lei. Para José de Souza Martins, o fracasso do Estatuto foi ainda mais amplo pelo fato

de o próprio Estatuto proclamar a propriedade empresarial, fundamentalmente capitalista, e não criar nenhum

mecanismo que reconhecesse as formas de ocupação tradicional de terras por pequenos trabalhadores rurais,

terras essas que não eram aproveitadas. Conforme Martins, o Estatuto da Terra foi criado para que o governo

tivesse o controle e a administração dos conflitos pela terra. Ver: MARTINS, José de S. Expropriação e

Violência: a questão política no campo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1991. p. 41-60. 334 O que se fez e o que fazer. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro/novembro de 1985, ano IV, n. 48, p. 2. O

lema “reforma agrária na lei ou na marra” advém dos anos de 1960, e sua primeira utilização em eventos

organizados pelos trabalhadores rurais foi no Congresso Camponês de Belo Horizonte/MG, em 1961. 335 Ubiratan Libanio Dantas de Araújo, mais conhecido como Bira Dantas. Trabalha com quadrinhos, ilustrações e

charges desde 1979. Em sua trajetória profissional, foi desenhista do gibi Os Trapalhões (Bloch Editores) e colaborou

em revistas como Pântano, Tralha, Porrada, Megazine, O Pasquim 21 e diversos jornais.

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Verifica-se que, em vez de sair da caixa, algo relacionado à reforma agrária, sai,

surpreendentemente, uma figura sombria, assustadora, com cara de má. Na visão do MST, a

representação dos latifundiários. Ao abrir a caixa surpresa do PNRA, o trabalhador se depara

com a figura de um latifundiário de braços abertos indo ao seu encontro para agarrá-lo. A

reação imediata do trabalhador é o susto, que o faz quase cair para trás. É interessante

perceber que, na charge, Sarney assume posição de dono da caixa surpresa, ela está em suas

mãos. E o PNRA, que deveria representar a reforma agrária para os trabalhadores rurais sem-

terra, transforma-se na representação do latifúndio, tendo sido descaracterizado.

Nessa direção, o presidente Sarney representa os militares, e seu governo, os “vícios

da velha república”, que eram “muita demagogia e pouca prática”, “violência no campo”,

“incompetência” e cooptação pelo poder336. Sarney e seu governo são visualizados pelo MST

como a “face do velho”337. Um aspecto que sustenta as representações sobre o presidente

Sarney é o relativo ao fato ele ter ligações políticas estreitas com o Regime Militar. Aliás,

Sarney era um dos principais nomes do PDS, antiga Arena, ligado aos militares.

Politicamente, Sarney era a face do conservadorismo e não se identificava com um projeto de

sociedade diferente, socialista, com novos valores e novos sujeitos, projeto almejado pelo

MST.

Nos meandros políticos frente à eleição indireta para a presidência em 1984, o próprio

PMDB, que compôs a chamada Aliança Democrática com o Partido da Frente Liberal (PFL),

de Sarney, o via com restrições, devido à sua estreita relação com os militares. A figura de

Sarney tinha “pouco ou nada tinha a ver com a bandeira da democratização”338. Para

estudiosos do período, a Aliança Democrática (PMDB e PFL) representou a “exata expressão

da negociação entre as elites políticas da época”339. A própria transição democrática havia

sido “pactuada” ou “conciliada”340 entre as elites políticas e os nomes que agradavam o

Regime Militar. Fausto entende que a transição democrática foi “transada”, “cheia de limites e

incertezas”341. No geral, foi conservadora.

336 Os mesmos vícios do passado. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1985, ano IV, n. 49, p. 2. 337 O que se fez e o que fazer. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro/novembro de 1985, ano IV, n. 48, p. 2. 338 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 435. 339 ARAUJO, M. P. N., Lutas Democráticas contra a Ditadura, p. 349. 340 Sobre esse processo ver: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1988; MOISÉS, José Álvaro; GUILHON ALBUQUERQUE, José Augusto (Orgs.). Dilemas da Consolidação

da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 341 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 447.

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Maria do Carmo Campello de Souza analisa que a transição democrática teve caráter

de “continuísmo” e que a Nova República nasceu “sob a espada de Dâmocles”342. Assim, a

Nova República se instalou “sobre os alicerces institucionais do regime autoritário mais que

sobre seus escombros, permitindo que se mantivesse na condução dos rumos políticos a maior

parte da elite política e da administração do regime anterior”343. Sobre esse processo, Martins

salienta que pessoas e grupos se metamorfosearam para continuar no poder. Muitos políticos

do “partido da Ditadura”, a Arena, trafegaram pelo PMDB e pelo PFL, vestidos e travestidos

de democratas ou de liberais. Desse modo:

Eles mudaram de coloração e permaneceram. Ou nem mudaram tanto. Seu

partido não é de direita ou esquerda ou de centro. Eles são do partido do

poder. Se os comunistas tivessem chegado ao poder, eles teriam se tornado

comunistas. Se o Estado brasileiro se convertesse num estado teocrático, eles

passariam a ir à missa todos os dias e não só nos dias de gala e exibição

política na catedral de Brasília344.

O fato de Sarney ser presidente da Nova República e, ao mesmo tempo, ter um laço

estreito com o Regime Militar, fez com que as representações do MST sobre ele fossem

intensas, e quase sempre o colocassem como um presidente autoritário, reacionário, cínico,

mentiroso e situado ao lado dos latifundiários. O MST utilizou o Jornal Sem Terra para

destacar que a composição do governo Sarney privilegiava nomes de grandes proprietários de

terras para governar sobre assuntos ligados ao campo e à reforma agrária. No editorial de

junho de 1986, o MST indagava: “Latifundiário faz Reforma Agrária?”. Nesse editorial o

Movimento criticava Sarney por ele indicar grandes proprietários de terras para compor seu

governo, como Paulo Brossard (Ministro da Justiça), Iris Resende (Ministro da Agricultura) e

Marco Maciel (Chefe da Casa Civil)345. Para o MST, no jogo político de Sarney, havia cartas

marcadas e, em se tratando de reforma agrária, os jogadores eram sempre latifundiários, ou

ligados a eles.

O Movimento ressaltou, em setembro de 1986, que “o governo da ‘Nova República’ já

decidiu há muito tempo que não vai fazer a Reforma Agrária prometida aos trabalhadores”346.

Na concepção do MST, Sarney era um “tapeador” que enganava, inclusive, a “opinião

342 Espada de Dâmocles – algo ruim que pode acontecer a qualquer momento, cercada de perigos; perigo

iminente que paira sobre a vida de alguém. 343 CAMPELLO DE SOUZA, Maria do Carmo. A Nova República Brasileira: sob a espada de Dâmocles, p. 568. 344 MARTINS, J. de S., A Questão Agrária Brasileira e o Papel do MST, p. 32. 345 Latifundiário faz Reforma Agrária? Jornal Sem Terra. São Paulo, Junho de 1986, ano V, n. 53, p. 2. 346 Tapeação do governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, Setembro de 1986, ano V, n. 56, p. 2.

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pública”. No que diz respeito à reforma agrária, Sarney era um “jogador” que só andava para

trás, como evidencia a charge produzida por Bira:

Imagem 7 - Amarelinha de Sarney

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Maio de 1986, ano V, n. 52, p. 2.

Essa charge acompanhou o editorial de maio de 1986, cujo título é: A coisa tá preta. O

editorial faz referência aos caminhos que o governo Federal, personificado na figura de

Sarney, estava traçando para a reforma agrária. Para o MST, havia um “retrocesso” no que diz

respeito à reforma agrária no país. A situação dos trabalhadores sem-terra era comparada à de

um cenário “nebuloso”, escuro, cujo caminho futuro não dava para enxergar. De forma

humorada, a charge coloca a figura de Sarney como um jogador de amarelinha347. Nesse jogo

– cujo objetivo é caminhar para frente, até se chegar ao céu (na charge representado pela

“reforma agrária”) –, Sarney caminha para trás, rumo ao inferno (na charge representado pelo

latifúndio).

O modo como o presidente é representado evidencia sua esperteza e agilidade ao jogar

ao contrário, rompendo com as regras tradicionais do jogo de amarelinha. Nota-se que a

expressão de Sarney é tranquila, mesmo sabendo que está jogando ao contrário. As expressões

corporais das duas crianças na imagem mostram que elas não estão entendendo o modo com

que Sarney está realizando o jogo da amarelinha. Por isso indagam ao pai: “Ô pai! Que jogo é

esse que só pula para trás?”. Pela expressão facial do pai, um trabalhador rural, observa-se

347 Sobre a explicação do jogo Amarelinha, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Amarelinha.

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que ele também não está entendendo o jogo de Sarney. A charge evidencia que, também no

jogo político da reforma agrária, o presidente Sarney estava andando para trás, retrocedendo.

É interessante pensar ainda nos elementos que caracterizam as extremidades do jogo

da amarelinha, de acordo com a representação efetuada pelo MST. Verifica-se que a reforma

agrária é identificada como o céu; o latifúndio, como o inferno. Há, assim, no referido jogo,

uma sacralização da reforma agrária. Contudo, o jogador principal, insiste em não caminhar

rumo ao céu. A representação da reforma agrária como o céu (na amarelinha) passa também

pela idealização do Movimento em construir uma nova sociedade, com novos homens e novas

mulheres. A reforma agrária, na charge, faz alusão a uma perspectiva cristã, é visualizada

como se fosse o paraíso. Sendo assim, não haveria possibilidade de se chegar ao paraíso, sem

antes lutar e conquistar a reforma agrária. Enquanto houver concentração de terras, a

sociedade está propensa ao julgo e às mazelas inerentes ao inferno.

Sublinhe-se que, durante os debates sobre o processo de reforma agrária no país, o

MST focou suas representações sobre outro evento importante na década de 1980, que foi a

Assembleia Nacional Constituinte. Por mais que a Assembleia fosse composta por

parlamentares do Congresso Nacional, o Movimento canalizava as repercussões e decisões do

Congresso na figura do presidente Sarney. No que tange ao futuro da reforma agrária, as

decisões da Constituinte eram significativas, por isso o MST acompanhou atento os debates

travados pelos parlamentares.

A Assembleia Nacional Constituinte, composta por deputados federais e senadores

eleitos em novembro de 1986, iniciou os trabalhos no dia primeiro de fevereiro de 1987. Por

parte da sociedade, em especial, dos movimentos sociais, havia grande expectativa sobre a

Constituinte, posto que os direitos políticos e sociais de um conjunto de grupos sociais

estariam sendo discutidos e traçados. Havia também grande tensão face aos dispositivos

constitucionais que balizariam a reforma agrária no Brasil. Nesse processo, as representações

em relação a Sarney continuavam na mesma direção, como se ele fosse um representante dos

militares e latifundiários – um presidente cínico e mentiroso.

[...] ficaram cada vez mais claras as verdadeiras intenções do Senhor José

Sarney com a Reforma Agrária: não fazer nenhuma mudança no campo, mas

fazer muita demagogia e propaganda, como se o paraíso tivesse chegado a

terra. Na verdade, o governo José Sarney se revelou um dos mais cínicos e

mentirosos de todos os governos que já tivemos348.

348 O que esperar de 1987? Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1987, ano VI, n. 59, p. 2.

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No processo em que se iniciou a Constituinte, a figura de Sarney como presidente já se

encontrava desgastada frente aos analistas políticos da época. Isso se devia à sua política

econômica que não conseguia controlar os altos índices de inflação. Além disso, ela foi

marcada pelo fracasso do Plano Cruzado349. Leandro Fortes, ao refletir sobre a política interna

do Brasil, salienta que o governo Sarney é “lembrado como um dos grandes desastres

nacionais”350. Nem bem haviam sido iniciados os debates em torno da Constituinte, o MST

enfatizava que ela “nasceu com tantos vícios, que ninguém acredita que nasça maçã em pé de

pepino”351. Nota-se que, o MST, não acreditava que a Constituinte fosse favorável à reforma

agrária.

Nos editoriais das edições de abril, maio, junho, julho e agosto de 1987, observa-se

que o MST não esperava benefícios da Constituinte para a reforma agrária, sobretudo, porque

a maioria dos constituintes eram conservadores, ligados aos partidos PMDB e PFL. E, o

presidente Sarney só se preocupava “em ficar seis anos no poder”352. Nos trechos dos

editoriais, a seguir, o Movimento salientava:

Todo mundo sabe que, dos 559 constituintes, o número de deputados que

apoia a Reforma Agrária não chega a 60. E é bem provável que a Lei que

sair sobre Reforma Agrária dessa constituinte seja pior que o Estatuto da

Terra, que foi baixado pelo Marechal Castelo Branco, em pleno golpe militar

de 1964. Ou seja, pela lei não podemos esperar muita coisa353.

Não podemos ter a ilusão de que vamos conseguir fazer as nossas leis na

Constituinte. 80% dos deputados são exploradores e da classe dominante e

farão leis contra os lavradores. Também não podemos ter a ilusão de que,

mesmo conseguindo fazer passar algumas leis que queremos, de que isso vai

melhorar a vida dos trabalhadores e resolver nossos problemas. Mesmo

quando existe lei a favor do povo, o governo nunca a aplica354.

Nessas citações, o MST fazia duras críticas à Constituinte que estava sendo elaborada.

Para o Movimento, a maior parte do corpo dos parlamentares era tida como “exploradores” e

da “classe dominante”; logo, colocar-se-iam contra os trabalhadores rurais sem-terra. É

interessante perceber que o MST não tinha muitas esperanças quanto às leis voltadas à

reforma agrária, não só pelo teor do texto constitucional, mas também porque entendia que o

governo não as aplicaria como deviam. O governo era inserido como inimigo do povo: estava

349 Ver: FAUSTO, B., História do Brasil, p. 439-448. 350 FORTES, L., Política Interna, p. 63. 351 O que esperar de 1987? Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1987, ano VI, n. 59, p. 2. 352 Como enfrentar esta crise. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1987, ano VI, n. 61, p. 2. 353 Como enfrentar esta crise. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1987, ano VI, n. 61, p. 2. 354 Nossa mobilização. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1987, ano VI, n. 62, p. 2.

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ao lado dos dominantes e exploradores. Em particular, na Assembleia Nacional Constituinte, a

interpretação do MST era de que as elites “lavaram a égua”355. Isto é, foram as elites que se

deram bem na Constituinte.

Na visão do MST, acerca do processo que marcou a Constituinte, os trabalhadores

sem-terra, tal como na expressão popular, compraram “gato por lebre”. Ou seja, eles foram

enganados. A seguir, uma charge produzida por Bira que visualiza essa asserção.

Imagem 8 - A Constituinte está cada vez pior!

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1987, ano VI, n. 63, p. 2.

Na charge, a Constituinte é representada por um gato, em cuja coleira há grafado o

termo Constituinte. A imagem do felino expressa que ele está bem feliz, com a língua de fora,

rabo levantado, e tomando seu leite. As orelhas grandes, mas falsas, revelam que seu dono o

vendera como se ele (o felino) fosse uma lebre. Em relação a dois dos sujeitos presentes na

charge, observa-se que um olha atentamente para o gato e o outro, com uma cenoura na mão,

no intuito de alimentar a lebre, questiona, incisivamente, o fato de ter comprado um “gato por

lebre”.

Para além da representação de que a Constituinte era uma farsa, pois beneficiaria a

classe dominante, a charge traz um elemento significativo – a figura de Sarney como o dono

do gato vendido como se fosse lebre. Sarney é visto como a representação de um presidente

que havia vendido a Constituinte para a classe dominante, enganando os trabalhadores.

Sarney, tenta sair de mansinho pela tangente com um saco de dinheiro enorme nas costas,

355 Reforma Agrária: Governo não faz, nós vamos fazer. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1987, ano VI, n. 64, p. 2.

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fruto da venda do gato/Constituinte. O presidente é representado como um enganador, um

traidor do povo. O fato de vender a Constituinte tornava-o também um corrupto. Aliás, para o

MST, a corrupção está intrinsicamente ligada ao modo de produção capitalista, pois o desejo

de concentração econômica e de poder tornam os sujeitos corruptos. Vale lembrar que essas

representações foram construídas ainda quando estavam sendo debatidas as leis da

Constituição, e o MST dizia que a Constituinte estava “cada vez pior”356.

Todavia, mesmo diante desse cenário adverso, o MST enfatizava que a Constituinte

devia “ser apenas um meio a mais para mobilizarmos as bases e aumentarmos a consciência

de classe de nossos companheiros”. O Movimento interpretava que a Constituinte, no que

tange à reforma agrária, era um “jogo de cartas marcadas”357 – referência aos parlamentares

que participaram de sua elaboração. É significativo destacar que o MST, nos editoriais,

sempre fazia questão de passar uma mensagem positiva para seus integrantes, enfatizando

que, mesmo nas adversidades, os trabalhadores precisavam se organizar, pois a reforma

agrária dependia, sobretudo, de organização e muita luta.

O desfecho final dos dispositivos da Constituição relacionados à reforma agrária na

Constituinte sinalizou que as entidades representativas dos grandes proprietários de terras se

sobressaíram, como previa o MST. Há consenso entre pesquisadores que se dedicam a estudar

a questão agrária no Brasil de que o texto final da Constituinte representou um retrocesso face

à reforma agrária. Lerrer entende que as oligarquias rurais, na Constituinte, conseguiram

derrotar legalmente e institucionalmente a reforma agrária no Brasil358. Nas comissões em que

seriam discutidas questões sobre a reforma agrária, houve manobras políticas para beneficiar

as forças conservadoras, ou seja, os grandes proprietários de terras, também denominados no

período como Centrão (bloco conservador)359.

Para Coletti, a Constituição de 1988, no que se refere à reforma agrária, “retrocedeu se

comparada à legislação dos governos militares, anterior a ela”. Isto é, politicamente os grandes

proprietários de terras venceram, o que significou “uma expressiva derrota para os setores

progressistas defensores da reforma agrária e, mais ainda, para os trabalhadores rurais e para os

356 A Constituinte está cada vez pior. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1987, ano VI, n. 63, p. 2. 357 Na luta se conquista. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1988, ano VIII, n. 73, p. 2. 358 LERRER, D. F., Trajetórias de Militantes Sulistas: nacionalização e modernidade do MST, p. 67. 359 O Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte previa que as discussões sobre a questão agrária

ocorreriam primeiro na Subcomissão de Política Agrícola, Fundiária e da Reforma Agrária; depois, na

Comissão de Ordem Econômica; em seguida, na Comissão de Sistematização, até chegarem, finalmente, às

discussões e aprovação em plenário. Sobre as manobras políticas que foram realizadas sobre a reforma agrária na

Constituinte, ver: SILVA, José G. da. Buraco Negro: a reforma agrária na Constituinte. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1989.

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movimentos sociais populares do campo”360. Ao refletir sobre esse fato, Martins elenca que “os

precários avanços na legislação fundiária da ditadura militar foram praticamente anulados

pelos constituintes”361. No denominado Estado de Direito362, os grandes proprietários de terras e

as empresas rurais estavam bem representados e com o aparato legal ao seu favor.

Após a aprovação da Constituinte, o MST enfatizava que a Constituição era um

“retrocesso na questão da reforma agrária”. E também que os parlamentares “liquidaram com a

possibilidade de sua realização”. Sobre os dispositivos da Constituição que tratavam da reforma

agrária, o MST destacava que eles eram uma “lei morta”, “desmoralizada”, que tornaram a luta

dos movimentos sociais “ilegal”. Por isso, não deveria ser respeitada363. Para o MST, a

Constituição seria utilizada “contra as desapropriações e principalmente contra os trabalhadores”.

Nesse sentido, o governo Sarney “negava” a reforma agrária364.

O Artigo da Constituição que gerou mais debates e foi alvo de críticas do MST e de

estudiosos da reforma agrária foi o número 185, que estabelece:

Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu

proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva

e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função

social365.

Ao estabelecer que os latifúndios produtivos eram “insuscetíveis”, ou seja, não

poderiam ser desapropriados para fins de reforma agrária, a Constituição “introduziu uma

ampla ambiguidade na definição das propriedades sujeitas a desapropriação para reforma

agrária, praticamente anulando as concepções relativamente mais avançadas do Estatuto da

Terra”366. O uso dos termos “produtivo” e “improdutivo” permitiu que se abrissem

precedentes para que toda propriedade se tornasse produtiva. Silva relatou que, na prática,

isso “consolidou tamanhas dificuldades de ordem legal, agronômica e operacional, que

complica extraordinariamente qualquer tentativa séria de mudar nossa estrutura fundiária”.

360 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 126. 361 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 129. 362 Grosso modo, o Estado de Direito designa a situação em que o poder do Estado encontra-se enquadrado e

limitado pelo direito. No Estado de Direito, os diversos órgãos do Estado só teriam condições de agir a partir de

uma habilitação jurídica. 363 O caminho da Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1988, ano VIII, n. 76, p. 2. 364 Só ocupar não basta: é preciso resistir. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1988, ano VIII, n. 75, p. 2. 365 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. 366 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 129.

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Assim, a Constituição Federal de 1988 “transformou-se, para os trabalhadores rurais, na pior

Carta desde 1946”367. De acordo com Coca e Fernandes, no governo Sarney a reforma agrária

teve como características: “a submissão aos projetos dos ruralistas; a negociação com os

proprietários nos casos de desapropriação, o que em muitos casos “premiava” as propriedades

improdutivas e a não definição de áreas prioritárias para sua efetivação”368.

Na edição de maio de 1988, ao publicar uma matéria intitulada Governo de Mentiras,

o MST representou o Artigo 185 da Constituição.

Imagem 9 - Governo de mentiras

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Maio de 1988, ano VIII, n. 73, p. 3.

A charge, de autoria do chargista Brito, traz como figuras centrais o presidente Sarney,

um latifundiário e uma pequena planta, em meio à imensidão de uma grande propriedade

rural. Nota-se que, na propriedade, a pequena planta contrasta com a devastação do restante

da área. O latifundiário, com um olhar sarcástico, explica para Sarney que sua propriedade era

produtiva. Diz ele: “Veja, minhas terras são produtivas!” Sarney, agachado e olhando

fixamente para a planta, expressa uma aparente crença nas palavras do proprietário. Essa

charge representa as ambiguidades do conceito “propriedade produtiva”, expressa no Artigo

185, inciso II, da Constituição Federal. Também, as brechas que o dispositivo constitucional

deixava para que toda propriedade se tornasse “produtiva”. Com isso, a ideia de “latifúndio

produtivo” foi uma estratégia dos ruralistas, junto ao Poder Judiciário, para emperrar os

processos de desapropriações de terras.

367 SILVA, J. G. da., A Reforma Agrária no Brasil, p. 174-178. 368 COCA, E. L. de F; FERNANDES, B. M., Uma Discussão Sobre o Conceito de Reforma Agrária: teoria,

instituições e políticas de governo, p. 47.

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A representação de Sarney na imagem evidencia também sua complacência às

irregularidades nos processos de desapropriação de terras, pois, mesmo estando na

propriedade, o presidente parece concordar que ela era realmente produtiva. Não era a

ingenuidade de Sarney representada, mas sua complacência e participação ativa nas

irregularidades e corrupções. Para o MST, de ingênuo o presidente nada tinha. Pelo contrário,

ele possuía uma posição e lado definido: governava para as elites e grandes proprietários de

terras. Nas representações do MST, justiça e transformação social não eram associadas ao

então presidente.

Nessa direção, para o MST, Sarney dava o “golpe mortal na Reforma Agrária”, como

bem representa a charge abaixo:

Imagem 10 - Sarney dá golpe mortal na Reforma Agrária

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1987, ano VI, n. 68. p. 3.

A charge de Bira, publicada na edição de dezembro de 1987, é elucidativa quanto às

representações do MST sobre Sarney e seu governo. Na imagem, o presidente está na

companhia de dois latifundiários, representantes da UDR, como se pode observar na faixa em

um dos seus braços. A charge é a representação do enterro da reforma agrária, na qual Sarney

está na posição de coveiro, com uma colher de pedreiro na mão direita, terminando de

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concretar o túmulo, em que se vê uma lápide com a seguinte informação “Aqui Jaz Reforma

Agrária”. Constata-se que as expressões faciais dos latifundiários, ao participarem do enterro

da reforma agrária, sugerem felicidade. Sarney aparenta estar tranquilo e com uma expressão

misteriosa, como se estivesse fazendo algo prazeroso. A morte da reforma agrária para Sarney

e os latifundiários, na charge, não tinha nenhum clima de tristeza, pelo contrário, significava a

perpetuação do caráter concentracionista da terra no Brasil. Na visão do MST, o presidente

Sarney e seu governo, com os processos desencadeados no PNRA e na Constituinte, eram a

própria representação da morte da reforma agrária.

Entre o final de 1988 e o decorrer de 1989, as representações sobre Sarney e as ações

do seu governo continuaram. O presidente foi constantemente associado aos militares, à

ditadura, aos latifundiários, dentre outras questões que significavam obstáculos à luta dos

trabalhadores sem-terra. De maneira geral, seu governo era representado como

“incompetente” e “incapaz”, ligado aos interesses da denominada “burguesia” e aos grandes

proprietários de terras e demais poderes econômicos do país.

Por meio do Jornal Sem Terra, o MST buscou deslegitimar as ações de Sarney e seu

Governo, chamando a atenção dos seus integrantes para o fato de ser preciso organizar e lutar

para derrubar o latifúndio e o governo Sarney. A proposta do Movimento era “enterrar a Nova

República”, no sentido de que ela deveria nascer de novo, com novas caras e personagens369.

O interessante nas representações do MST é que a figura do presidente Sarney corporificava

tudo de ruim que existia na sociedade. Isto é, havia uma personificação do presidente Sarney

como se ele representasse todas as coisas negativas, na ótica do MST, para o desenvolvimento

do país. Sarney e seu governo eram representados como inimigo do povo, dos trabalhadores e

da reforma agrária.

Durante o mandato do presidente Sarney, entre os anos de 1985 e 1989, o MST se

consolidou como um movimento social de caráter nacional, e suas ações foram pautadas,

sobretudo, no enfrentamento e na resistência ao governo. A concepção ideológica marxista do

enfrentamento, da resistência e luta de classes estava implicitamente ligada às ações do

Movimento. As ocupações eram um dos instrumentos mais relevantes de expressão política

do Movimento. Por meio delas, sua organização denunciava os problemas agrários e se

configurava como um movimento de pressão permanente frente ao governo. Mesmo em um

contexto desfavorável, em que forças políticas conservadoras conseguiram se organizar para

emperrar o processo de reforma agrária no país, o Movimento recrutava milhares de sujeitos

369 Enterramos a Nova República. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1988, ano VIII, n. 78, p. 2.

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para compor sua base e organizar ocupações. Nesse período, o MST centrou suas forças em

sua nacionalização, ou seja, em se estruturar em diversos estados do país. Em 1990, o MST já

tinha se organizado em 18 estados do país: em todos os estados da região Sul e Nordeste; na

região Norte, Rondônia; na região Centro-Oeste, os estados de Goiás e Mato Grosso do Sul;

na região Sudeste, os estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.

Nos dois últimos anos de Sarney na presidência, em especial, nos editoriais, o

Movimento também investiu na construção de representações sobre os processos eleitorais do

país. A disputa presidencial, desde o início de 1989, ganhou destaque nos editoriais e demais

páginas do periódico. Somadas às representações sobre Sarney, o Movimento construiu

representações sobre os presidenciáveis, no caso, Leonel Brizola, Mário Covas, Paulo Maluf,

Ulysses Guimarães, Guilherme Afif Domingos, Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula

da Silva. Para o MST, era preciso romper com o continuísmo, elegendo um presidente do

povo, da classe trabalhadora. Não demorou muito para o MST externar abertamente em seu

jornal que o seu candidato a presidente era Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula. Assim, todos os

outros presidenciáveis não representavam um projeto para os trabalhadores. Em 1989, as

representações sobre o futuro presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, começaram

antes de sua vitória nas urnas.

2.3 Fernando Collor de Mello: descaso com a reforma agrária e repressão contra

os movimentos sociais

No início dos anos de 1990, Fernando Affonso Collor de Mello, então presidente

eleito, alçou voo para o Palácio da Alvorada, em Brasília. Para o MST, a vitória de Collor

significou um período muito tenso e conflituoso. Collor era visto pelo Movimento como se

fosse o representante da “burguesia”370 nacional, não comprometido com os trabalhadores.

Aliás, a eleição de 1989, em especial no segundo turno, com a disputa entre Collor e Lula, foi

entendida pelo MST como o enfrentamento entre “trabalhadores versus burguesia”.

No editorial da edição de novembro de 1989, em pleno fervor das eleições

presidenciais, o MST traçava o perfil de Collor: “é representante direto da burguesia, de

continuísmo desse governo, dos interesses dos grandes latifundiários e usineiros”. Sobre Lula,

dizia: “é representante da classe trabalhadora, foi o único candidato que assumiu o

370 No MST, o termo burguesia é utilizado costumeiramente entre os seus integrantes para se referir aos grupos

dominantes. Isto é, as elites brasileiras.

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compromisso de fazer uma verdadeira reforma agrária em nosso país”. Observa-se a visão

dicotômica do MST frente aos dois candidatos, como se eles fossem opostos, nada parecidos,

quase a representação do “joio e trigo” da política. Ainda sobre Collor, o MST elencava que

era um candidato “fabricado pela burguesia”, um “produto antigo” que trocaram a embalagem

e venderam como “novo”371. Enfim, um velho oportunista, disfarçado com uma nova

roupagem.

Os preceitos ideológicos marxistas de se pensar a sociedade a partir das classes, ou

mais especificamente, a partir da relação trabalhadores x burguesia, permeavam as

representações do MST face ao jogo político e a seus personagens no cenário brasileiro. Para

o MST, representar Collor e demais presidentes era se colocar enquanto distinto, ou seja, ao

lado dos trabalhadores e contra o que o Movimento chamava de burgueses. Nessa direção, ao

se distinguir, também representava o outro, a partir de sua forma de ver e conceber o mundo.

O enfrentamento e a luta organizada se tornavam cruciais para a conquista da reforma agrária

e para a transformação da sociedade almejada pelo Movimento.

Anteriormente à presidência da República, Collor havia sido prefeito de Maceió/AL

(1979-1982), deputado federal (1982-1986), e governador de Alagoas (1987-1989). Ele

pertencia a uma família que possuía vínculos estreitos com a política. Seu pai, Arnon Afonso

de Farias Melo, foi deputado federal (1950), governador de Alagoas (1951-1956), e senador

em 1962, 1970 e 1978. Lindolfo Collor, seu avô materno, havia sido deputado federal pelo

estado do Rio Grande do Sul nos anos de 1923 e 1927. Collor foi o presidente mais jovem da

história do Brasil, na época em que assumiu o cargo tinha 40 anos de idade. No que tange à

sua filiação em partidos, antes de ser presidente, sua trajetória esteve ligada a partidos

conservadores, como: Arena, PDS, PMDB, PRN (Partido da Reconstrução Nacional). No

estado de Alagoas, Collor e sua família tinham influências políticas significativas e

controlavam grande parte dos meios de comunicação.

Ao findar das eleições de 1989, com a derrota de Lula, através do Jornal Sem Terra, o

Movimento buscou animar seus integrantes, como se as eleições fossem um grande

aprendizado para sua organização. Considerou também que as lutas e a organização

continuariam, visando à “construção de um projeto socialista para o Brasil”. Apesar da

derrota de Lula, o MST via positivamente a expressiva votação que seu candidato recebera.

Sobre a reforma agrária, salientava que o novo presidente “assumiu o discurso dos

latifundiários” e que em seu governo, previa-se que o tratamento à questão agrária seria o da

371 Os trabalhadores enfrentam a burguesia. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1989, ano IX, n. 89, p. 3.

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“repressão”372. Para o MST, a denominada “burguesia” (banqueiros, empresas multinacionais,

industriais, latifundiários, e outras forças conservadoras) tinha planos com a eleição de Collor:

Será a aplicação das fórmulas do FMI. Teremos uma enorme recessão. Serão

privatizadas diversas empresas estatais. Continuaremos enviando os bilhões

de dólares em pagamento aos juros da dívida externa. Os salários serão

arrochados. As condições de vida da classe trabalhadora continuarão

piorando. E as forças de mercado, segundo eles é que devem regular a

economia, ou seja, salvem-se quem puder373.

Antes mesmo da posse de Collor, o Movimento orientou seus integrantes sobre a

necessidade de “combater os planos do governo Collor”, pois este iria governar para os “ricos

e exploradores”. No plano político, o MST previa que Collor iria manter uma tática de “pau e

prosa”374, isto é, repressora. Sua vitória foi considerada “imoral”, “corrupta” e

“antidemocrática” por ele utilizar a máquina pública dos estados no período de campanha

eleitoral e os meios de comunicação para se construir enquanto uma figura “defensora dos

pobres”375, representando Lula enquanto um elegível não confiável.

Sobre a eleição de Collor, algo peculiar marca esse processo, é o fato de ele ter se

lançado/apresentado como um “herói”, “salvador”, “combatente destemido da corrupção e

dos assim chamados ‘marajás’ – servidores públicos privilegiados com altos salários”376. A

esses predicados, foi acrescentado um toque de popular ao seu figurino. A construção de sua

imagem se pautava na representação de um presidente moderno, pronto para alçar o país a um

patamar mais elevado.

Conforme Tarcísio Costa, Collor fez da política um espetáculo, um teatro da vida

pública. “A estridência no ataque aos ‘marajás’ e o discurso de satanização dos políticos eram

indicativos claros do gosto do futuro presidente pela política-espetáculo, pela teatralização da

vida pública, que se acentuou nos dois primeiros anos de mandato”. Ao dramatizar a política,

Collor “diluiu as fronteiras entre o público e o privado”. “No topo da máquina do Estado

estaria um jovem executivo, soberano para dispor sobre os recursos públicos como se

inscritos em seu patrimônio pessoal”377. Ou seja, Collor fez do Estado o quintal da sua casa.

372 Só a luta trará conquistas. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 3. 373 Os planos da burguesia com Collor. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 4. 374 Os planos da burguesia com Collor. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 4. 375 Collor levou mas não ganhou. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 12-13. 376 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 473. 377 COSTA, T., Os Anos Noventa: o acaso do político e a sacralização do mercado, p. 260-261.

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Nesse processo, investiu na construção de sua imagem como um presidente novo, forte e

vigoroso.

Ao pensar a política nos anos de 1990, Renato Janine Ribeiro pondera que Collor

eminentemente transformou a política em “espetáculo”, ao “teatralizar o político”. Ao fazer

uso da publicidade para criar sua imagem de “superpresidente”, Collor incorporou sua

animalidade, em que o físico resolveria o político, o econômico e o social do país. No início

do mandato, quando a cada domingo se exibia em um esporte novo, buscava passar “uma

impressão de eficiência, força e juventude, dando à opinião pública a noção de que pela força

do corpo e da vontade o presidente venceria os problemas do Brasil, da inflação ao

subdesenvolvimento”378. Transformando a política em espetáculo, não se tinha

comprometimento com o bem comum. O que importava era a propagação de sua figura

política, enquanto a população se limitava a ser expectadora.

Na ascensão à Presidência da República, não se pode esquecer da estratégica

utilização da imagem de Collor pela mídia. Durante a campanha eleitoral, o MST atentou-se

para isso e publicou diversas matérias em seu jornal em tom de denúncia às práticas de Collor

nas mídias. Na concepção do MST, Collor se utilizou de muitas mentiras, em especial, na

televisão, para “influenciar o eleitorado ignorante”. Assim, a TV Globo teria “produzido

Collor”379. O “eleitorado ignorante”, para o Movimento, eram as pessoas que não analisavam

os discursos de Collor nas mídias, deixando-se enganar por sua retórica e imagem bem

elaborada.

Nesse sentido, nas eleições de 1989, as mídias, sobretudo, a TV, contribuíram

sobremaneira para direcionar o voto dos eleitores. O candidato Collor soube utilizar

eficazmente a sua imagem enquanto afirmação do exercício político. Esse recurso não foi

usado de forma casual, pois o presidenciável tinha afinidades com os aparelhos midiáticos. O

conglomerado de comunicação Organizações Arnon de Mello, em Alagoas, pertencia à sua

família, e a mídia de uma forma em geral recebeu sua candidatura com simpatia.

Oriundo do meio midiático, Collor era pontual e estratégico em suas ações. De acordo

com Stella Senra, Collor utilizava “um planejamento detalhado a ponto de abranger seus

gestos (o V da vitória), seu discurso (minha gente), as suas cores (da bandeira nacional) e a

música de seus comícios”. A campanha de Collor não foi baseada em um programa de

governo, mas sim em temas específicos de acordo com pesquisas de opinião e estudos de

marketing. Em relação aos eleitores, o discurso que Collor propagava era de fácil assimilação.

378 RIBEIRO, R. J., A política como espetáculo, p. 34. 379 Collor levou mas não ganhou. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 12-13.

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Na luta contra os marajás, “tinha que contar com a solidariedade dos ‘descamisados’, uma

categoria social tão imprecisamente indefinida a ponto de abranger (e não de excluir, como

fazia a figura marajá) o maior número possível de eleitores”. Contra os marajás, a maior parte

dos brasileiros elegeu Collor.

Senra também analisou a importância das imagens para a eleição de Collor – nelas, ele

se desprendia da política tradicional do estado de Alagoas e se lançava como um homem

moderno, jovem, atlético (amigo dos jet-skis, futebol, tênis, motos e supersônicos), em prol

dos descamisados. “Quando Collor se apresentava sozinho, um computador ao fundo

testemunhava novamente o aspecto ‘moderno’ e ‘dinâmico’ do candidato, familiarizado com

as tecnologias de ponta e com a velocidade”380. Já o candidato da oposição, Lula, era

construído sob a égide do arcaico.

Assim como Sarney, com Collor não foi diferente, o MST se tornou um opositor

ferrenho de seu governo. Essa questão é desvelada em todas as edições do Jornal Sem Terra,

até o momento em que houve o impedimento de Collor, em setembro de 1992. A figura do

presidente foi vista e associada a tudo que existia de “mais reacionário na sociedade

brasileira”. O interessante, logo no início de seu mandato, é que o Movimento também

associava Collor à Ditadura Civil-Militar. Logo, o presidente também representava o

continuísmo: “O regime mudou de cara, mas não mudou o seu conteúdo, nem os seus

objetivos”381. Os objetivos do continuísmo, representados também em Collor, perpassavam a

não efetivação da reforma agrária, a oposição aos trabalhadores e a manutenção do status quo

na sociedade.

Em entrevista ao jornal, na edição de janeiro/fevereiro de 1990, o membro da Direção

Nacional do MST, Francisco Dalchiavon (conhecido como Chicão), reforçou as

representações de que Collor era contra os trabalhadores e a reforma agrária. Salientou que

“Collor, nascido e criado nos braços da ditadura militar, assim como Sarney, representava a

manutenção do pagamento da dívida externa, principal elemento da crise da economia

brasileira”382. Observa-se que, com o presidente Collor, os discursos do jornal mantiveram a

mesma perspectiva dos construídos sobre o presidente anterior, como se Collor fosse também

a extensão do continuísmo, da Ditadura Civil-Militar. Sendo “filhote”, criado nos braços da

380 SENRA, S., Mídia, Política e Intimidade: permutas entre a esfera pública e a imagem na era Collor, p. 48-51.

Sobre os discursos e práticas de Collor no processo de sua eleição e governo, ver também: COUTINHO, Olga

Maria. Fernando Collor: o discurso messiânico – o clamor do sagrado. 1995. Dissertação (Mestrado em

Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP. 381 Todos ao II Congresso Nacional. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro/fevereiro de 1990, ano IX, n. 91, p. 3. 382 DALCHIAVON, Francisco. Mobilizar os trabalhadores para garantir a democracia. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, janeiro/fevereiro de 1990, ano IX, n. 91, p. 6.

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Ditadura Civil-Militar, o presidente deveria ser combatido. Deste modo, o lema Ocupar,

Resistir e Produzir, criado em 1990, era ecoado constantemente entre os integrantes do MST,

nas suas diversas ações.

Nos primeiros dezoito meses de mandato, além das representações que indicavam que

o presidente era a continuidade da Ditadura Civil-Militar, contrário à reforma agrária e aos

trabalhadores, o MST investiu em deslegitimar Collor e as ações de seu governo. Seu governo

era acusado de ser fisiológico, sem unidade e servindo aos interesses das elites: “A equipe do

governo montada por Collor não tem unidade política. Representa um ajuntamento de pessoas

para atender a interesses de setores da burguesia que apoiaram a sua campanha para

presidente”383 Assim, o MST visualizava as políticas de Collor como “demagogia e

arrocho”384. Por trás da imagem construída de superpresidente, havia um gestor de um

governo “fraco e confuso”385.

Na capa da edição de março de 1990, em destaque, com letras garrafais, era estampada

a manchete: Plano Collor: demagogia e arrocho. Logo abaixo, um breve texto: “O Governo

Collor não tem um programa de reforma agrária. A pretexto de recuperar a economia, edita

um plano que provocará desemprego e recessão. Distanciado da sociedade organizada, adota

uma postura autoritária. Essa situação acirrará o enfrentamento de classe”.

383 Organizar e Mobilizar pra Resistir. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1990, ano IX, n. 92, p. 3. 384 Plano Collor: demagogia e arrocho. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1990, ano IX, n. 92, p. 1. 385 ROSSETO, Neuri. Os 100 dias de governo. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1990, ano IX, n. 94, p. 4.

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Imagem 11 - Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1990, p. 1.

Editor responsável: Sérgio Canova

Observa-se pela capa que o jornal evidenciava avanços em sua

editoração/diagramação, com a inserção de imagem e utilização de outra cor na impressão, no

caso, a vermelha. Em 1990, o Jornal Sem Terra tinha nove anos de existência. No texto a

seguir da manchete, além de se destacar que o Governo Collor não tinha um “programa de

reforma agrária” e adotava uma “postura autoritária” face aos grupos organizados, o MST

evidencia sua concepção ideológica do “enfrentamento de classe”. Essa perspectiva estava

ancorada nas ideias marxistas de que as contradições sociais e a hegemonia de um grupo

sobre outro acirrariam disputas entre classes sociais. Na visão do MST, a partir das

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contradições sociais e econômicas geradas pelo capitalismo, o “enfrentamento de classes” se

tornaria inevitável. Os trabalhadores urbanos e rurais deveriam se organizar e lutar contra os

privilégios das elites.

A demagogia estava no fato de Collor estar mentindo para sociedade: falava uma

coisa, mas suas práticas eram outras. O arrocho era em relação ao desastroso Plano Collor,

que se caracterizava em um programa de estabilização monetária com uma medida drástica: o

bloqueio de todos os ativos financeiros existentes no país acima de 50 mil cruzeiros novos, o

chamado confisco, ou sequestro das poupanças. Essa medida de Collor foi conduzida pela

Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, e visava a conter a inflação que chegava a 80%

ao mês, com perspectivas de subir ainda mais. O confisco das poupanças durou dezoito meses

e, embora com os valores reajustados, os investimentos perderam valor nesse período.

Conforme Costa, o Plano Collor revelou o “desapreço”386 do presidente com a gestão

econômica. Ao ser lançado rapidamente, sem consulta e debate com lideranças empresariais,

sindicais e com a sociedade, o plano traumatizou a população brasileira e, de certa forma,

fracassou, pois ao final de 1990 a inflação retomava seu crescimento.

Registre-se que a cada edição, o MST acompanhava as medidas do presidente Collor,

quase sempre na perspectiva de que ele e seu governo eram “fracassados”387, “confusos,

ineficientes e prepotentes”388, “omisso”389, “cínicos”390, “incapazes”391, dentre outros

predicativos. Collor e seu “governo colorido”, conforme o Movimento enfatizava

ironicamente nas edições do Jornal Sem Terra, eram sinônimos de crise. Desta maneira,

deveria ser “combatido”392. Esse combate era mediado pela denúncia, enfrentamento,

resistência e avanço nas lutas. Isto é, os trabalhadores, mesmo isolados do cenário político,

deveriam avançar, organizando acampamentos e atos públicos, além de produzir nos

assentamentos, dando resposta à sociedade de que a reforma agrária era necessária, viável e

relevante para a sociedade brasileira.

Muitas representações do MST também atentavam para o fato de Collor ser

incompetente no que diz respeito às suas alianças políticas, uma vez que ele estava isolado

politicamente. Essa foi uma característica de Collor como presidente: o personalismo

prevaleceu em sua forma de governar. Na interpretação de Costa, Collor desenvolveu o que

386 COSTA, T., Os Anos Noventa: o acaso do político e a sacralização do mercado, p. 262. 387 Fazer uma ofensiva massiva e radical. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1990, ano IX, n. 94, p. 3. 388 ROSSETO, Neuri. Os 100 dias de governo. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1990, ano IX, n. 94, p. 4. 389 Continuar na ofensiva. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho/agosto de 1990, ano IX, n. 95, p. 2. 390 Muitos desafios para 1991. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1990, ano IX, n. 99, p. 2. 391 Governo incapaz. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1991, ano X, n. 106, p. 2. 392 Combater o governo Collor. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1990, ano IX, n. 97, p. 2.

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chama de “populismo de mercado”393. Neste, conservaria o interesse do governante em

personalizar o poder, legitimando seus atos numa relação direta com o povo. Mas, buscou

anular o papel do Estado, considerado intervencionista, cartorial e parasitário. Collor não

criou instâncias de interlocução com a sociedade, com os movimentos sociais e partidos

políticos.

Por esse viés, suas ações foram um “misto de aventuras políticas e rupturas

fundamentais com o modelo de desenvolvimento que, com modificações, se mantinha desde

os anos 1940-1950”. No cerne das rupturas, está a ênfase na abertura comercial e nas

privatizações de empresas estatais, o que foi muito criticado pelo MST. No editorial de

setembro de 1990, intitulado Situação Social Explosiva, o Movimento explicitava de forma

incisiva suas críticas quanto à abertura do mercado aos capitais internacionais e à política de

privatizações de empresas estatais.

O governo acha que é abrindo o mercado interno para os produtos

estrangeiros, vendendo as empresas estatais para o capital internacional e

sufocando as empresas nacionais que estaria modernizando o país.

A única intensão da política neoliberal é a de sucatear nossas empresas

estatais. Usando o pretexto de que elas dão prejuízo se faz campanha para

justificar sua venda, a preços insignificantes, aos grandes grupos

econômicos394.

Vale lembrar que, no governo Collor, iniciou-se com mais afinco a implantação do

modelo neoliberal no Brasil, esvaziando cada vez mais o Estado no processo de

desenvolvimento do país. Para o presidente Collor, modernizar o país estava pautado na

abertura do mercado ao capital estrangeiro. Segundo Gilberto Corazza:

A política econômica de Collor teve como questão central acelerar a

implantação do projeto neoliberal, dando início ao processo de privatizações

dos setores e empresas públicas estratégicas, na forma de processos suspeitos

e claramente beneficiando setores econômicos privados nacionais e

internacionais. As taxas alfandegárias foram reduzidas drasticamente com

objetivo de estimular as importações, sob o argumento de motivar a

competição e a qualidade das empresas nacionais. Obviamente que esta

abertura sem critérios e mecanismos de proteção à produção nacional,

produziu um forte processo de desnacionalização da economia brasileira,

fragilizando os instrumentos de política econômica do país395.

393 COSTA, T., Os Anos Noventa: o acaso do político e a sacralização do mercado, p. 261-262. 394 Situação social explosiva. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1990, ano IX, n. 96, p. 2. 395 CORAZZA, G., O MST e um Projeto Popular para o Brasil, p. 49.

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E a reforma agrária nesse contexto? Como ela foi tratada pelo presidente Collor? Na

visão do MST, como se deu esse processo? Em relação à reforma agrária, em suas campanhas

eleitorais, Collor fez promessa de que assentaria 500 mil famílias em todo o país. Quando

sofreu o impeachment, em seu terceiro ano na presidência, havia assentado 27.791 famílias.

Esses dados revelam que a reforma agrária não era visualizada por Collor como relevante para

o desenvolvimento do Brasil.

As lideranças do MST, por meio dos editoriais do Jornal Sem Terra, não esboçavam

nenhum discurso no sentido de que Collor levaria a reforma agrária como prioridade. Pelo

contrário, o presidente era representado como sinônimo de descaso e omissão com a reforma

agrária. Ao fazer uma análise de conjuntura política, Maria de Fátima Ribeiro, da Direção

Nacional do MST, elencou que os militantes do MST precisavam “desmascarar” Collor, pois

sua política de reforma agrária era “das piores possíveis”396. Assim, para o Movimento não

havia perspectiva de reforma agrária com Collor na presidência, pois na questão agrária o

presidente revelou “sua maior incompetência e falta de vontade política”397. O balanço geral

do MST sobre Collor e a reforma agrária foi muito negativo, ao ponto de desconsiderar os

assentamentos que seu governo havia criado.

Entre os estudiosos da reforma agrária, há certo consenso de que Collor deixou muito

a desejar. Ou melhor, suas ações face ao processo de reforma agrária foram pífias398. Para

Veiga, Collor foi tão “calamitoso”399 para a reforma agrária que se poderia retornar à década

de 1960. De acordo com Feliciano, as propostas de reforma agrária no governo Collor foram

“infames”, retrocedendo ainda mais a questão agrária no país. Neste governo, assim como nos

anteriores, a proposta foi de apenas “minimizar os conflitos agrários onde as disputas pela

terra eram mais acirradas e explosivas”400. As instituições ligadas à reforma agrária foram

desmanteladas e a administração pública do Governo Federal se tornou um caos.

Nas ações de Collor evidencia-se o seu descompromisso com a reforma agrária. São

nomeados políticos conservadores em cargos estratégicos que trabalham em prol da reforma

agrária, o que prejudicou as desapropriações de terras e o investimento nos assentamentos.

Um exemplo relevante: o de Antônio Cabrera Mano Filho, nomeado por Collor para assumir

o Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária, em 3 de abril de 1990, permanecendo até o

396 RIBEIRO, Maria de Fátima. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1990, ano IX, n. 97, p. 4. 397 Reforma Agrária vira caso de polícia. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1991, ano X, n. 105, p. 2. 398 Conforme os dados da CPT, em relação às desapropriações para fins de reforma agrária, o governo Collor,

praticamente, nada fez. Em 1990, o INCRA não tinha realizado nenhuma desapropriação. Em 1991, tinha realizado 8

desapropriações. Ver: Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no campo – Brasil, 1991, p. 56.

399 VEIGA, J. E. da., Reforma Agrária Hoje, p. 298-299. 400 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 46-47.

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final de seu governo. Antônio Cabrera era grande proprietário rural, filho e neto de

fazendeiros. Assim, a reforma agrária estava longe de ser visualizada com bons olhos pelo

novo ministro da agricultura e da reforma agrária.

Outra ação de Collor foi a criação de uma Secretaria Nacional de Reforma Agrária,

ficando o INCRA sem poder de iniciativa, apenas executando as diretrizes elaboradas por tal

Secretaria. Em menos de um ano, Collor extinguiu essa Secretaria e o INCRA passou a ser

novamente o único órgão a cuidar da reforma agrária no país, ficando, entretanto, diretamente

subordinado ao ministro Antônio Cabrera. Uma outra ação de Collor: a extinção da Empresa

Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER), a partir do Decreto n.

99.616. Essa empresa tinha função estratégica na prestação de serviços e assistência técnica

aos pequenos produtores rurais nos diversos cantos do país. O governo Federal diminuiu,

também, drasticamente sua participação financeira em programas de assistência técnica aos

pequenos produtores. Esses fatores geraram uma crise sem precedentes a milhares produtores,

sobretudo, nas regiões mais pobres do país.

Desse modo, a política de reforma agrária de Collor era subordinada aos ditames da

política agrícola, voltada para as grandes propriedades. Segundo Coletti, era uma política

agrícola de “modernização” da agricultura, em que se configurava uma “forma dissimulada de

postergá-la por tempo indefinido e, portanto, de não realizar política alguma de distribuição

de terras no Brasil”. No plano da retórica, o ministro Cabrera salientava que a impossibilidade

de fazer uma reforma agrária rápida dava-se em razão do contexto do governo Collor que fora

obrigado a receber a “herança” de Sarney. Ele acusava a ineficiência da administração de

Sarney e buscava associar as ocupações de terras à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e

ao PT, com intenção clara de desmoralizar e desmobilizar os sem-terra. Nessa perspectiva,

ignoravam-se os conflitos de terras no país. Também não havia desapropriação de terras em

áreas que os sem-terra ocupavam ou organizavam seus acampamentos. Isto é, Collor e seu

governo buscaram isolar os movimentos sociais de luta pela terra e “recusava-se a

desapropriar terras exatamente nos lugares em que as desapropriações mostravam-se mais

necessárias”401.

Nessa conjuntura, o que marcou o mandato do presidente Collor foram as ações de

isolamento e repressão sobre os movimentos sociais do campo. O presidente tratou os

movimentos sociais do campo como questão de polícia. Com isso, constantemente, o MST

utilizava o Jornal Sem Terra para denunciar as práticas repressivas do governo Collor. Na

401 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 183-184.

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visão do Movimento, com Collor reeditava-se “a política de tratar as mobilizações dos

trabalhadores como caso de polícia e não como uma questão social”402. A figura do presidente

era representada semelhantemente a um “ditador”, que desrespeitava a lei, o congresso e a

sociedade403 para agir de forma repressiva. No interior do jornal havia sempre chamadas de

matérias como: Reforma Agrária vira caso de polícia; Repressão desenfreada e Repressão e

impunidade.

Sobretudo, a partir de 1991, em diversos estados, as Secretarias do MST foram alvo

das ações da Polícia Federal, com apreensão de documentos e prisões preventivas de

lideranças dos trabalhadores rurais. Muito mais que intimidar as lideranças, essas ações

visaram desmobilizar as lutas do Movimento, bem como para criar imagens pejorativas do

MST perante a sociedade, como se fosse uma organização ilegal e associada à violência.

Desse modo, destaca-se que o Movimento estava envolto por uma luta de e por

representações. As ações e discursos de Collor e seu governo nas mídias buscavam incriminar

e tornar ilegais as lutas do MST e, por sua vez, simultaneamente o Movimento forjava

representações sobre o presidente e as ações de seu governo. Nesse jogo/luta, o Jornal Sem

Terra se tornava um espaço significativo para as pretensões do MST. No editorial de julho de

1991, a Direção Nacional do Movimento denunciava a repressão da Polícia Federal contra as

lideranças sem-terra:

Não bastasse a incompetência e má vontade política do governo Collor,

agora temos um fato novo: a Polícia Federal está agindo em todo o país,

perseguindo e prendendo lideranças da luta pela terra.

Estamos assistindo uma avalanche de repressão, que usa todos os seus

meios, fazendo escuta telefônica, abrindo correspondência, vigiando os

passos das lideranças, infiltrando agentes em acampamentos e

assentamentos. Tudo para impedir o avanço do MST e a organização dos

trabalhadores404.

Em diversos editoriais do Jornal Sem Terra, entre os anos de 1991 e 1992, revelava-se

a tensão face às perseguições sofridas por integrantes do MST nos estados. O Movimento

entusiasmava seus integrantes, por meio de mensagens de ânimo e força, enfatizando que a

terra prometida estaria por vir. Com Collor na presidência, “a hora era de dificuldades”, os

integrantes da organização precisavam “redobrar os esforços”405. Sobre esse período,

402 Continuar na ofensiva. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho/agosto de 1990, ano IX, n. 95, p. 2. 403 Um ano de mentiras e crise. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1991, ano X, n. 102, p. 2. 404 Reforma Agrária vira caso de polícia. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1991, ano X, n. 105, p. 2. 405 Governo Incapaz. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1991, ano X, n. 106, p. 2.

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Fernandes salienta: “correu uma escalada de repressão contra o Movimento, de modo que,

considerando a palavra de ordem ocupar, resistir, produzir, o resistir foi mais intensificado”.

As ocupações de terra “eram rechaçadas pela polícia, de modo que em 1990 diminuíram

significativamente os números de ocupações e de famílias na luta pela terra”406.

Na concepção de Émerson Neves da Silva, os anos vividos pela organização do MST,

com Collor na presidência, se caracterizam como “anos de fogo”407, nos quais o Movimento

teve muitas dificuldades para resistir. As próprias lideranças do MST consideram esse período

como o de maior dificuldade de sua organização. João Pedro Stedile, em entrevista408 a

Bernardo Mançano Fernandes, ressalta que no governo Collor o MST passou por um

“momento de crise”409. Na edição de outubro e novembro de 1991, ao dar destaque às notícias

do estado de Alagoas, chamando a atenção para as práticas de repressão e violência por parte

das forças militares, o MST publicou uma charge bem elucidativa quanto ao tratamento dado

por Collor à sua organização410.

Vale sublinhar que, no período em que Collor foi presidente, não foram publicadas

muitas charges nas edições do jornal e, especificamente, nos editoriais, nenhuma. Nesse

período, o jornalista responsável era Sergio Canova e a editoração ficava a cargo de Juan

Pezzutto. Acredita-se que a ausência de charges no Jornal Sem Terra estava mais ligada ao

estilo e às preferências dos responsáveis pela editoração do que a uma orientação da Direção

Nacional, ou a uma ação visando a reduzir custos na produção do periódico.

406 FERNANDES, B. M., A Formação do MST no Brasil, p. 200. 407 SILVA, É. N. da., Formação e Ideário do MST, p. 68. 408 A transcrição dessa entrevista com João Pedro Stedile (realizada em fevereiro de 1998), dirigida por

Bernanrdo Mançano Fernandes, foi transformada em livro. A essência da entrevista é recuperar alguns

momentos relevantes no processo de formação do MST, bem como verificar o como este foi se consolidando até

fins da década de 1990. Para além de uma bibliografia, esta entrevista também se configura como uma fonte.

Neste sentido, é preciso pensar que a história contada por João Pedro Stedile é uma história autorizada pelo

MST, na figura de um de seus principais dirigentes nacionais. Nas falas de Stedile, percebe-se que seu discurso é

similar aos edificados nos materiais produzidos pelo Movimento. Assim, o livro é uma referência interessante

para se compreender o que o Movimento pensa e evoca sobre sua própria história; também as visões políticas,

econômicas, sociais e culturais que sua organização construiu no transcorrer do tempo. 409 FERNANDES, B. M; STEDILE, J. P., Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, p. 54. 410 Apesar de a charge estar assinada, não foi possível reconhecer o nome completo do autor. O expediente do

jornal não dá o crédito ao autor da imagem.

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Imagem 12 - Pressão permanente

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Outubro/Novembro de 1991, ano X, n. 109. p. 4.

Apesar de a imagem propiciar um tom de humor, ela também representa a tensão

vivida pela organização do MST no início da década de 1990. A figura central é a de um

trabalhador Sem Terra correndo, de pés descalços, com a bandeira do Movimento levantada

por suas mãos, fugindo desesperadamente dos tiros (representados pelas balas de revolver) e

das possíveis agressões. Na imagem, há também um cassetete e uma algema, no lado direito,

acima do trabalhador. Nessa corrida desesperada, o trabalhador tem outro obstáculo pela

frente – uma cerca de arame farpado. Diante disso, ele salta por cima da cerca. Muito

provavelmente, para fugir das forças repressoras, representadas pela polícia militar (balas de

revolver, cassetete e algema), após alguma manifestação pública do MST. É interessante

observar que, apesar do bombardeio em sua direção, nada o atinge. A expressão do

trabalhador revela seriedade e convicção em relação ao que ele está fazendo. Diante das

adversidades, ele não deixa a bandeira do MST cair, pelo contrário, ela é mantida em uma

posição de destaque, no centro da imagem.

Para além dos traços, a charge representa não só as perseguições e a repressão sofridas

pelos integrantes do MST, mas também a necessidade de os sujeitos resistirem nas lutas.

Outra questão a salientar sobre a charge é a cerca de arame farpado que o trabalhador está

pulando. Além de evidenciar a tensão do momento vivida pelo trabalhador, a cerca tem uma

simbologia representativa para os Sem Terra. Ela representa o latifúndio, a concentração da

propriedade da terra. Nesse sentido, a forma capitalista de se apropriar da terra, ou seja, torná-

la individual (de um só dono ou grupo), concentrada e especulativa. O ato de pular a cerca

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sugere uma ação de transgressão, rompimento, que pode expressar as concepções ideológicas

do MST de derrubar o capitalismo e construir uma sociedade socialista, em que a terra seja

um bem comum, de todos aqueles que desejam trabalhar e nela viver. Transgredir a cerca

também representa a resistência e a desobediência aos status quo, no qual a concentração da

propriedade da terra predomina.

Diante de uma conjuntura desfavorável, a partir da repressão e isolamento por parte do

governo, o MST voltou suas forças para sua organização interna, sobretudo, no

desenvolvimento dos assentamentos. Uma das ações do MST foi articular a construção do

Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA)411, “do qual surgiu, em maio de 1992, a

Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (CONCRAB), organizada a

partir de sete cooperativas centrais estaduais e de cerca de 55 cooperativas de produção e de

comercialização”412.

A CONCRAB representava politicamente os assentamentos ligados ao MST, bem

como organizava a produção nesses espaços. Para o Movimento, articular e organizar

internamente os assentamentos naquele momento se fazia necessário, não só pelo contexto,

mas também para viabilizar a produção e mostrar à sociedade que os assentamentos eram

alternativas eficazes na produção de alimentos; também uma alternativa social para melhorar

a vida das pessoas e daqueles que se beneficiariam com os produtos dos assentamentos. O

MST percebeu que só a terra não bastava, era imprescindível viabilizar outras políticas dentro

dos assentamentos, visando ao êxito na produção e comercialização dos produtos, bem como

na qualidade de vida dos assentados. As cooperativas eram estratégicas para conseguir

recursos/créditos visando à melhoria técnica dos assentamentos e o aumento na produção.

No primeiro semestre de 1992, o MST e a sociedade brasileira foram surpreendidos

com denúncias de corrupção e improbidade administrativa no governo Collor, sendo o

presidente figura central. As denúncias mais emblemáticas foram feitas por seu próprio irmão,

Pedro Collor, em entrevista concedida à Revista Veja. Na ocasião, o Movimento divulgou as

manifestações da mídia e apoiou políticos e sociedade civil que almejavam o impedimento do

presidente Collor.

No Jornal Sem Terra, a primeira edição que deu destaque às denúncias contra Collor

foi a de maio/junho de 1992. O título do editorial era: A podridão do Governo. Nesse

editorial, dava-se ênfase às denúncias de Pedro Collor sobre o irmão. Todavia, o MST foi para

411 O SCA é um setor do MST e tem na cooperação agrícola a perspectiva do desenvolvimento econômico dos

assentados, garantindo a organicidade do Movimento. 412 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 187.

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além de Collor, afirmando também que a corrupção era algo que vinha de governos

anteriores, em especial, dos governos militares e de Sarney. Assim, salientava: “No tempo do

Sarney foi a mesma coisa!”. E no tempo dos militares? Pior ainda”. Adiante, chamava atenção

dos trabalhadores: “É preciso conscientizar a classe trabalhadora, que em todos os governos

da burguesia sempre houve e haverá corrupção, roubalheira e desvio de dinheiro público para

seus interesses particulares. Pois a burguesia pega o estado nas mãos justamente para isso”413.

A perspectiva do continuísmo face às representações sobre os presidentes brasileiros

era notória. Corrupção, roubalheira, favorecimento às elites, oportunismo eram atreladas às

figuras dos presidentes. Até àquele momento, todos os presidentes que passaram por Brasília

eram representantes das elites, sendo assim, corruptos e corruptores.

Após as denúncias contra Collor, o MST voltou o olhar para o processo de

impedimento do presidente e utilizou as edições seguintes do seu jornal para apoiar o

impeachment. Na edição de junho/julho de 1992, reforçava as denúncias: “É tanta sujeira,

tanta lama, que não passa dois dias seguidos sem que os meios de comunicação apresentem

novos fatos de roubos, desvios de dinheiro, ligações com o narcotráfico, envolvendo o

presidente”414. Em edições posteriores, havia notas no interior do periódico com a seguinte

chamada: Fora Collor. O editorial da edição de setembro de 1992 trazia o título: Fora Collor.

Reforma Agrária Já415. Nele, o Movimento publicava mais denúncias de corrupção e

improbidade administrativa do presidente, chamando a atenção de seus militantes para o fato

de o impedimento de Collor ser inevitável – a sociedade não tinha mais dúvidas quanto ao

envolvimento do presidente. O MST sugeria uma paralisação nacional de toda a sociedade

para que Collor fosse impedido de atuar como presidente do Brasil.

Do ponto de vista político, após os escândalos e denúncias, Janine evidenciou que

Collor se tornara um presidente “sem sustentação orgânica na classe cujos interesses

representava, efetuava assim um fuite em avant, uma compensação de sua falta de apoio

mediante gestos ensaiados e um imaginário reduzido”. A imagem do presidente mudara. Sua

teatralização e heroísmo cessaram. Entrava em cena o “presidente sério”. “A mudança de rota

parecia pôr fim àquela teatralidade planejada, em que a fala do presidente à nação passava

pelas camisetas de domingo e pelo destempero programado do porta-voz. Acabava o

heroísmo. Estava-se, decididamente, na prosa”416.

413 A podridão do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio/junho de 1992, ano XI, n. 116, p. 2. 414 O capital vive do roubo. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho/julho de 1992, ano XI, n. 117, p. 2. 415 Fora Collor. Reforma Agrária Já. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1992, ano XI, n. 119, p. 2. 416 RIBEIRO, R. J., A política como espetáculo, p. 36-38.

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Nessa perspectiva, Collor vivenciou dois tipos de publicidade. A primeira foi a que

construiu sua imagem na eleição, uma publicidade favorável que o levou à vitória. A segunda

foi menos indigesta, fatal. Iniciou-se quando seu irmão, Pedro Collor, veio a público e o

denunciou. A mesma publicidade que o elegera presidente do Brasil, o auxiliou para que fosse

impedido de continuar como presidente. Seu governo acabou em farsa, e não em tragédia.

Sobre o impeachment de Collor, Senra analisa que as mídias tiveram um papel

relevante nesse processo, tanto para “moldar” os acontecimentos que lhe deram origem,

quanto para indicar como tais acontecimentos deveriam ser “percebidos” pela sociedade. Mas,

enfatiza que as manifestações públicas foram decisivas nesse processo. Milhares de pessoas se

reuniram nas ruas e praças públicas das principais cidades do país, “protestando contra a

corrupção e pedindo o impeachment do presidente, numa reconquista do espaço público para

a expressão política que pode ser contraposta, pelo menos de início, ao recuo da televisão da

cena política”417. Os denominados cara-pintadas entraram em cena e seus corpos se

transformaram em signos de manifestação política.

Na edição de outubro de 1992, o MST destaca no editorial do jornal: Outubro

Histórico. Para sua organização, o acontecimento foi marcante, no qual se teve “pela primeira

vez no Brasil, um presidente derrubado pela força das massas na rua, em que os deputados por

estrondosa maioria acataram o pedido de impedimento e afastaram o Collor”418. O

impeachment de Collor, ocorrido em 29 de setembro, foi comemorado pelo MST como uma

vitória dos trabalhadores, dos jovens e da sociedade organizada que se mobilizou contra o

presidente. É interessante que o MST se sentiu parte do “outubro histórico”, pois desde o

início acompanhou as denúncias e apoiou o impedimento de Collor. Também, mais que se

sentir parte, sua organização pôde respirar diante das investidas e repressão sofridas no

governo Collor. O impedimento do presidente, para o MST, significava a perspectiva de um

quadro político diferente, ou, no mínimo, menos repressivo.

No dia 29 de dezembro de 1992, Collor renunciou à presidência da República e os

parlamentares, apesar da renúncia, votaram pela suspensão dos seus direitos políticos por oito

anos. O curioso e ao mesmo tempo falacioso na política brasileira é que, após os oito anos de

suspensão dos direitos políticos, Collor voltou à cena política. Os atos ilegais, a corrupção e a

improbidade administrativa do presidente foram esquecidos e perdoados em oito anos. Em

2007, filiado ao Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), Collor foi eleito senador

de Alagoas. No primeiro dia como senador, migrou para o Partido Trabalhista Brasileiro

417 SENRA, S., Mídia, Política e Intimidade: permutas entre a esfera pública e a imagem na era Collor, p. 55-56. 418 Outubro Histórico. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1992, ano XI, n. 120, p. 2.

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(PTB) e, assim, continua na política até os dias atuais. Em seu lugar na presidência, assumiu o

vice-presidente, Itamar Augusto Cautiero Franco, conhecido nacionalmente como Itamar

Franco.

2.4 Omissão, enrolação e ausência de vontade política: Itamar Franco na

presidência

Antes de se tornar presidente da República, Itamar Franco teve uma extensa carreira

política. Seu ingresso no campo político foi na década de 1950, quando se candidatou a

vereador pelo município de Juiz de Fora/MG, em 1958. Na ocasião, era filiado ao PTB e não

fora eleito. Na década de 1960, em pleno Regime Militar, filiou-se ao Movimento

Democrático Brasileiro (MDB), partido pelo qual foi prefeito de Juiz de Fora entre os anos de

1967 e 1971; e reeleito em 1972. No segundo mandato, renunciou ao cargo para assumir o

Senado Federal pelo estado de Minas Gerais, em 1975. Como senador, ainda foi reeleito em

1982 pelo mesmo estado, contudo, por outro partido, o PMDB.

Em 1989 compôs a chapa de Collor, no cargo de vice-presidente. Com o afastamento

de Collor, em fins de 1992, assumiu a presidência do país até final do ano de 1994. Depois da

presidência, Itamar se elegeu governador de Minas Gerais, entre os anos de 1999 e 2002.

Ainda, pelo estado de Minas Gerais, se elegeu novamente senador nas eleições de 2010.

Devido a um diagnóstico de leucemia, se licenciou das atividades do senado e faleceu no dia 2

de julho de 2011.

No período em que foi presidente, sob o ponto de vista do diálogo, Itamar Franco foi

bem mais receptível aos movimentos sociais do que Collor. Aliás, a característica de Collor

não era a de dialogar com os movimentos sociais. As próprias lideranças do MST

evidenciavam que a entrada de Itamar na Presidência da República foi interessante para a

organização. Na década de 1990, em meio ao contexto de isolamento e repressão por parte do

governo Collor, João Pedro Stedile destaca: “sentar, negociar e nos dar status de interlocutor

político, somente com o governo Itamar”419. É possível dizer que, com Itamar na presidência,

a organização do Movimento pôde respirar e se fortalecer para o enfrentamento das lutas que

viriam ao longo dos anos de 1990.

Mesmo com sua característica amistosa e de diálogo com os movimentos sociais, no

editorial de outubro de 1992, o MST explicitava que os trabalhadores, no caso do MST,

419 FERNANDES, B. M; STEDILE, J. P., Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, p. 71.

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certamente seriam oposição ao governo, o qual chamava de “capenga”. E sobre o novo

governo, destaca:

Itamar Franco montou um ministério baseado em critérios de amizade

pessoal e com representação política, visando consolidar o apoio dos

senadores para o afastamento definitivo de Collor. Sua composição se

revelou uma salada de frutas. Sem uma unidade política e sem uma

correlação com as forças que derrubaram Collor nas ruas. É um governo de

transição com forte marca conservadora.

Em termos de medidas administrativas e políticas, nenhuma novidade,

nenhuma posição, que deixasse claro a intenção de resolver os problemas

sociais que o país vive. Para o Ministério da Agricultura, nomeou novamente

um grande proprietário de terras, seu amigo, Lazaro Barbosa, deputado do

PMDB de Goiás, dono de sete fazendas que totalizam 24.300 hectares e 8

mil cabeças de gado. Coordenador da campanha Collor naquele estado420.

Na citação observa-se que, o MST, de modo geral, representava Itamar e seu governo

pelo prisma do continuísmo. Com Itamar não teria nada de novo, o conservadorismo iria

imperar. Os problemas sociais e, em especial, a reforma agrária não seriam resolvidos. Sobre

a “salada de frutas” (composição do governo Itamar), era um trocadilho para dizer que o

presidente não tinha “unidade política”, ou melhor, unidade de “correntes políticas” para

governar. Assim, era considerado um governo incerto e que não trazia muitas perspectivas

para os trabalhadores.

O governo Itamar foi marcado por sua heterogeneidade, em que diversos partidos

compuseram os cargos de primeiro e segundo escalão na administração federal. Com isso,

Itamar recebeu inúmeras críticas de políticos e analistas que ressaltavam que a

heterogeneidade não trazia coerência no modo de governar. Na visão de Itamar, pelo contexto

dos ocorridos, o país não poderia “discriminar” grupos com ideologias distintas. Conforme

Costa, “em lugar de uma equipe coesa em ideias, Itamar preferiu recrutar nomes com trânsito

no Congresso, que lhe ajudassem a viabilizar medidas capazes de distinguir sua gestão aos

olhos da opinião pública”421. Por mais que Itamar optasse por reunir vários partidos para

compor seu governo, o PMDB e o Partido da Social Democracia (PSDB) assumiram posições

de maior destaque, com ministérios e secretarias estratégicas. Na época, o PT se recusou em

apoiar o presidente Itamar, e chegou ao ponto de expulsar do partido a ex-prefeita de São

420 Outubro Histórico. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1992, ano XI, n. 120, p. 2-3. 421 COSTA, T., Os Anos Noventa: o acaso do político e a sacralização do mercado, p. 271.

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Paulo, Luiza Erundina422, por ela ter aceitado o convite para assumir o cargo de ministra-

chefe da Secretaria da Administração Federal.

Itamar era considerado uma “figura provinciana, de temperamento instável e

propensões nacionalistas”423. Quando assumiu a presidência, havia uma incógnita quanto ao

seu governo. O certo era que Itamar não deu continuidade ao estilo Collor de governar. Sobre

os estilos diferentes entre Collor e Itamar, Costa destaca:

Faltam a Itamar os dotes cênicos de Collor. Não lhe apetece a política-

espetáculo. É mais da prosa ao pé do ouvido. Tampouco sonha com o

ingresso no Primeiro Mundo. Parece satisfeito com Juiz de Fora. Não é

fascinado por tecnologia de ponta, muito menos se vier d’além-mar. Prefere

o fusquinha, que lhe evocava a indústria nascente424.

Ao se declarar oposição ao novo governo, passados dois meses de Itamar na

presidência, o MST dizia, por meio do seu jornal, que o governo era “surdo e mudo”, pois não

ouvia os trabalhadores. De forma irônica, enfatizava que Itamar não tinha dito a “que veio”,

ou seja, não tinha noção de sua responsabilidade enquanto presidente e não havia

sistematizado planos para o Brasil. No que tange à reforma agrária, o Movimento enfatizava

que o desinteresse para ouvir os trabalhadores e efetivar a reforma agrária era maior ainda.

Demonstrando descontentamento e frustração, relatava que, até àquele momento, Itamar

“sequer havia indicado o novo presidente do INCRA”425.

O Movimento cobrava atitudes de Itamar que, na visão das lideranças, estava

“perdido”, sem saber o que fazer na direção política do país. Enfim, afasta-se Collor. E agora

Itamar?, esse era o título do editorial do Jornal Sem Terra, em dezembro de 1992. Itamar era

representado como “inoperante”, por não propor mudanças para o país, nem melhorar os

projetos e políticas voltadas ao campo. O MST cobrava ações mais ágeis do recém-presidente,

422 Na edição de fevereiro/março de 1993, do Jornal Sem Terra, Lula, então presidente nacional do PT, concedeu

uma entrevista ao periódico e foi indagado sobre a expulsão de Luiza Erundina do partido. Na época, disse que o

partido não “tinha outra coisa a fazer”, pois Erundina “desrespeitou as normas elementares do partido”. Ao

assumir um cargo político sem autorização do PT, o partido teve que puni-la. A justificativa de Lula também era,

conforme suas palavras: “Ou nós fazemos isso, ou então nós não estaríamos mais criando um partido e sim um

amontoado de pessoas em torno de uma sigla para disputar cargo nas eleições”. O interessante dessas palavras de

Lula é pensar que dez anos depois o PT mudaria substancialmente seus discursos e princípios, pois se aliou a

partidos historicamente contrários à sua forma de ver e conceber a política, visando a agregar capital político

para eleger e ocupar alguns cargos nos diversos níveis de administração pública (federal, estadual e municipal).

Ver entrevista: Lula fala ao MST. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro/março de 1993, ano XII, n. 123, p. 12-

13. 423 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 476. 424 COSTA, T., Os Anos Noventa: o acaso do político e a sacralização do mercado, p. 268. 425 Governo Surdo e Mudo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1992, ano XI, n. 121, p. 2.

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mesmo com a situação de crise política por que o país estava passando. Sobre órgãos voltados

ao campo, exigia mudanças no Ministério da Agricultura e no INCRA. Para o Movimento,

esses cargos deveriam ser ocupados “por pessoas realmente comprometidas com a luta pela

reforma agrária”426 e com políticas que favorecessem o desenvolvimento do campo e o

aumento da produção nas pequenas propriedades.

As representações sobre Itamar, sobretudo, em seu primeiro ano no governo, giravam

em torno de sua “inércia” face aos problemas no campo. Na edição de fevereiro/março de

1993, o título do editorial era: Reforma Agrária, quando? Nesse editorial, o Movimento

reconhece um pequeno avanço com Itamar na presidência, em especial, a partir da aprovação

da Lei Agrária427 pela Câmara dos Deputados. Também, pelo fato de o governo ser transitório

e ter pouco “tempo, nem condições de realizar um programa massivo de reforma agrária”.

Todavia, suas lideranças cobravam do presidente dizer “para o que veio”428, fazendo alusão ao

fato de que era necessário tomar medidas e ações concretas nas desapropriações de terras para

fim de reforma agrária.

No editorial de fevereiro/março de 1993, a charge publicada, de autoria do chargista

Hércules Sanchez429, chama atenção para o aspecto de tranquilidade do presidente Itamar,

como se ele estivesse perdido, não sabendo o que acontecia na conjuntura do país.

426 Enfim, afasta-se Collor. E agora, Itamar? Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1993, ano XII, n. 122, p. 2. 427 Lei Agrária (Lei n. 8.629, de 25/02/1993). Essa lei dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos

constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal de

1998. Destaca-se que a Lei Agrária foi aprovada, mas os conflitos e lutas por terra não cessaram. 428 Reforma Agrária, quando? Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro/março de 1993, ano XII, n. 123, p. 2. 429 Hércules Sanchez trabalha a mais de 30 anos produzindo charges. Utilizando o traço, a ironia e o humor têm

abordado diferentes temas no campo sindical e político. Na primeira metade da década de 1990, colaborou

produzindo algumas charges para o Jornal Sem Terra. Milita no PT desde o seu nascimento em fins da década

de 1970, e atualmente é responsável pelas charges do Portal Linha Direta, do PT/SP.

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Imagem 13 – Reforma Agrária, quando?

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Fevereiro/Março de 1993, ano XII, n. 123, p. 2.

A primeira questão a ser evidenciada na imagem é a perspectiva do diálogo que Itamar

buscou com os movimentos sociais do campo. Observa-se que há um grupo de quatro adultos

e um bebê no colo de sua mãe que, pelas expressões faciais, está alegre, conversando com o

presidente. Essas pessoas são representantes de algumas regiões e estados brasileiros, como se

pode perceber por suas vestimentas e por suas expressões regionais: chê (gaúcho), ochente

(nordestino), sô (mineiro). Nessa conversa, em meio a gestos e sorrisos, a senhora, que tem o

bebê no colo, diz: “Reforma Agrária!”. Com certo tom de humor, a partir da exclamação da

senhora, Itamar, mineiro, responde interrogativamente: “Uai?”. A imagem de Itamar, de mãos

para trás e com uma face pensativa é a representação de um presidente passivo face aos

problemas que geravam interrogação, dúvidas. Isso sugere que o diálogo estava estabelecido,

contudo, o MST cobrava atitudes e ações do presidente. A aparente tranquilidade de Itamar e

a percepção de que ele não tinha um projeto político de reforma agrária gerava constantes

críticas ao presidente.

Sobre a abertura de diálogo entre o presidente Itamar e os movimentos sociais,

ressalta-se que ele foi o primeiro presidente da República que recebeu a Direção Nacional do

MST, em Brasília, após nove anos da existência do Movimento. Esse acontecimento foi

manchete e destaque no Jornal Sem Terra, na edição de fevereiro/março de 1993430. Na

ocasião, 24 dirigentes nacionais do Movimento, representando todos os estados em que o

MST estava organizado, participaram da audiência. Além do presidente, também estavam

430 Movimento Sem Terra é recebido pelo presidente da República. Jornal Sem Terra. São Paulo,

fevereiro/março de 1993, ano XII, n. 123, p. 8-9.

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presentes o Ministro do Trabalho, Walter Barelli; o presidente do Banco do Brasil, Alcir

Calliári; o Secretário Geral do Ministro da Agricultura, Benedito da Rosa; um diretor do

INCRA; e diversos assessores do Ministério do Trabalho e da Agricultura. O gesto do

presidente em receber o MST foi muito significativo, sobretudo, quanto à representatividade e

à força política do Movimento no país. Na época, o MST avaliou positivamente a audiência

com o presidente e reconheceu o interesse e respeito de Itamar para com sua organização e

suas reivindicações.

Mesmo com diálogos, a relação entre o presidente Itamar e o MST não deixou de ser

tensa. Obviamente também que as composições no governo, em especial, da Bancada

Ruralista431, não deixaram de legislar em favor dos seus interesses, ou melhor, dos grandes

proprietários de terras e dos setores a eles ligados. Após a audiência com o presidente, a

organização do MST não cessou de criticar e construir representações sobre Itamar. No

editorial de maio de 1993, o Movimento fez um balanço sobre a crise no Brasil que, na

concepção de suas lideranças, era a “pior crise que a história tinha registrado”, com salários

baixos para os trabalhadores, número alto de desempregados, inflação incontrolável, seca no

nordeste, epidemia de cólera e os péssimos serviços prestados no sistema de saúde.

O interessante era que a crise estava associada ao governo e personificada na figura do

presidente Itamar Franco. Assim, dizia o editorial: “Ora, o governo continua conversando com

os políticos. Apresentou um plano que não é um plano. É apenas a descrição de várias

medidas que já vem sendo aplicadas, e em sua maioria beneficiam os mesmos, isto é, os que

têm acesso ao banco”. Adiante, Itamar Franco era representado como “incompetente”432. Na

charge a seguir, do editorial analisado, nota-se que o governo, diante da crise, era

personificado na representação de Itamar.

431 A Bancada Ruralista se constitui em uma frente parlamentar que atua em defesa dos interesses dos grandes

proprietários rurais. Essa bancada é formada por parlamentares de diversos partidos políticos, em especial,

daqueles com tendências conservadoras. Muitos dos parlamentares que compõem essa bancada são grandes

proprietários de terras, ou possuem um vínculo estreito com setores e atividades do campo. Nesse sentido,

legislam em causa própria. A Bancada Ruralista, historicamente, tem sido uma opositora ferrenha da reforma

agrária e dos assuntos que dizem respeito às identificações e demarcações de terras indígenas no país. 432 A Crise e o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, Maio de 1993, ano XII, n. 125, p. 2.

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Imagem 14 – A crise e o governo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Maio de 1993, ano XII, n. 125, p. 2.

Em 1993, a editoração do jornal era de responsabilidade da jornalista Débora Lerrer433,

e no Expediente não há menção sobre o nome do ilustrador/chargista do periódico434. Por

meio de um tom humorado e irônico, a charge mostra o presidente Itamar conversando com

um trabalhador sem-terra, muito provavelmente da região Nordeste, em vista de sua

vestimenta e particularmente por seu chapéu de cangaceiro estilo Lampião435, típico da região.

O trabalhador está com uma aparência muito cansada, abatida. Essa aparência sofrida revela

os meandros da luta pela terra que, na maioria das vezes, é morosa e exige muita resistência

dos sujeitos envolvidos no processo. Na maior parte da imagem está Itamar, com seu

imponente topete, terno e gravata; próximo a duas vacas robustas.

O cenário geral é o de uma propriedade rural (a qual teoricamente seria área de

reforma agrária), que tem ao fundo um sol radiante. Com suposta lista nas mãos, o presidente

diz que ela é uma lista de beneficiados “pro assentamento” e pergunta o nome da família do

trabalhador. Sem pestanejar, o trabalhador diz: “Silva”. Então, Itamar responde: “Não, aqui

não tem. Só tem as famílias Nelóre, Zebus, Holoandesa...”. Essas famílias a que o presidente

faz referência são raças de bovinos, as quais estariam ocupando a terra no lugar do

433 É interessante destacar que, com Débora Lerrer como jornalista responsável, as charges, em especial, nos

editorais, voltaram a ser mais constantes no Jornal Sem Terra. 434 Mesmo não tendo uma assinatura, acredita-se que, pelo estilo dos traços da charge, sua autoria seja de

Hércules Sanchez. 435 Lampião, como ficou conhecido o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, é personagem histórico da região

Nordeste do Brasil. Em torno de sua figura existe várias polêmicas, para alguns Lampião foi um bandido

sanguinário, para outros é considerado rei do cangaço, símbolo maior do sertão nordestino. Lampião e sua

esposa Maria Déia, conhecida como Maria Bonita, são personagens fascinantes do imaginário nordestino, que se

estenderam ao território brasileiro. Lampião e Maria Bonita morreram em 28 de julho de 1938, após uma

emboscada de soldados da polícia de Alagoas.

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trabalhador. Interpreta-se que as vacas faziam alusão às políticas voltadas ao campo que

beneficiavam os grandes proprietários de terras, criadores de gado, em detrimento dos sujeitos

que almejavam conquistar terra para trabalhar e viver.

Ao qualificar as vacas (Nelóre, Zebus e Holoandesa), o MST expressa também sua

ideologia, pois essas raças de bovinos são a representação dos grandes proprietários de terras

e pecuaristas. Os pecuaristas criam esses bovinos a partir de uma lógica de mercado. Em

grande escala, essas raças de bovinos têm destinações econômicas para a produção de carne

(nelore e zebu), melhoramento genético (nelore) e produção de leite (holandesa). A relação

que os grandes pecuaristas possuem com seu gado é exclusivamente a de mercado, visando ao

lucro.

No caso dos pequenos proprietários (nos assentamentos), o seu gado e demais animais,

a princípio, estabelecem uma relação direta com a subsistência da família, mesmo que o

excedente da produção seja destinado à comercialização. Nos assentamentos, os bovinos são

chamados pelo nome dado a cada um pelos assentados (mimosa, pretinha, branquinha, rajada,

boneca, dentre outros), enquanto que entre os grandes pecuaristas o seu gado é identificado e

classificado pela raça e pelo número catalogado. Assim, as relações são distintas. Qualificar

as vacas representava para o MST definir sua posição ideológica anticapitalista. E o

presidente Itamar, personagem central da imagem, personificava seu Governo, que

privilegiava os grandes proprietários de terras, em detrimento dos trabalhadores sem-terra.

No Jornal Sem Terra, o presidente Itamar era indagado constantemente pelo MST.

Itamar, as promessas serão cumpridas agora?, era o título do editorial da edição de julho de

1993. Nesse editorial, destaca-se o fato de, até aquele momento, o presidente não ter realizado

nenhuma desapropriação de terra para fins de reforma agrária, alegando a falta de

instrumentos jurídicos para isso. Na concepção do MST, Itamar estava procurando

“desculpas” para não desapropriar terras, pois já vigorava a Lei Agrária e havia sido

sancionada a Lei do Rito Sumário, que orientava o poder judiciário e o INCRA sobre como

deveriam ser as desapropriações de terra por interesse social, para fins de reforma agrária436.

Assim, junto à Constituição, havia outros instrumentos legais para as desapropriações de

terras. Para o MST, Itamar procurava desculpas e retardava o máximo a questão das

desapropriações de terras.

436 Itamar, as promessas serão cumpridas agora? Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1993, ano XII, n. 127, p. 2.

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Na charge apresentada a seguir437, evidencia-se a morosidade de Itamar sobre os

assuntos relacionados à reforma agrária.

Imagem 15 – Itamar, as promessas serão cumpridas agora?

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Julho de 1993, ano XII, n. 122, p. 2.

O cenário, no texto/charge, é da Esplanada dos Ministérios. Verifica-se que, de forma

sorrateira, o presidente abre a porta do Ministério da Agricultura, coloca a cabeça para fora e

diz à secretária: “Preparem outra recepção. Aquela não valeu!”. A charge faz menção à

audiência que a Direção Nacional do MST teve com o presidente no mês de fevereiro de

1993. Na representação do Movimento, todas as conversas e reinvindicações feitas ao

presidente na reunião não valeram de nada. A representação de Itamar foi como estivesse

fugindo dos compromissos firmados. A expressão do seu rosto revela certo cinismo e má

vontade para realizar as ações, no caso, as desapropriações de terras. Observa-se também que

a secretária, prestando atenção na fala do presidente, parece não entender tal gesto e fala.

Em relação ao Governo Itamar, por mais que o presidente demonstrasse sensibilidade

às questões sociais e aos grupos organizados pela sociedade, manteve o modelo político e

econômico de Collor, como por exemplo, ao não interromper o programa de privatizações – a

Companhia Siderúrgica Nacional, símbolo da industrialização estatal, foi privatizada em

1993. Nesse sentido, havia grupos distintos e interesses conflitantes no seu Governo. A

reforma agrária, como um elemento estrutural do país, não seria e não foi algo prioritário no

Governo Itamar. Aliás, de nenhum Governo do Brasil. Nos anos em que governou, Itamar

437 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato de o Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador.

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priorizou ações assistencialistas, como o Plano de Combate à Fome e à Miséria, e não visou

reformas institucionais ou estruturais. Assim, Itamar era representado como continuísta,

governante do modelo econômico e político que marginaliza e exclui os trabalhadores.

As representações sobre Itamar continuaram ao longo do ano de 1993. O MST ressalta

que o presidente era enrolador: “Estamos cansados de conversa mole”. A expressão

“conversa mole” remete ao fato de, para o MST, o presidente Itamar ter um discurso evasivo,

marcado por desculpas fracas, as quais não justificavam a desapropriação de terras para fins

de reforma agrária. Nas palavras do Movimento:

Os trabalhadores rurais em geral e os sem-terra estão cansados de tanta

conversa mole. Esse governo precisa definir se realmente quer fazer alguma

coisa. Se é para ficar apenas na enrolação, é melhor que se demita e antecipe

as eleições gerais de 1994. Ninguém vai aguentar mais 18 meses dessa

incompetência generalizada438.

Itamar foi representado como a “incompetência generalizada”, um presidente de

“conversa mole”, que não agia face às problemáticas em torno da reforma agrária e dos

trabalhadores rurais. A Direção Nacional do MST entendia que, se fosse para continuar do

jeito que estava, era melhor que o presidente pedisse “demissão” para adiantar os processos

eleitorais do ano de 1994. Mais que isso, Itamar e seu Governo são comparados a Sarney e a

Collor: “Esse governo está cada vez mais parecido com o último ano de Sarney e os dois de

Collor. Muita enrolação e pouca ação”439. Novamente, percebe-se a perspectiva do

continuísmo nas representações do MST, como se Itamar fosse semelhante a Sarney e a

Collor, devido a sua inércia sobre as questões que envolvem o processo de reforma agrária.

Em uma conjuntura de crise, o Movimento defendia (e defende) que a reforma agrária seria

uma alternativa eficaz para solucionar a miséria, a fome, o desemprego, a moradia e demais

questões vivenciadas por grande parte da sociedade brasileira.

Na edição de setembro de 1993, publicou-se o editorial com o seguinte título: O caos

do ‘desgoverno’ Itamar. Diante da falta de atitude e “enrolação” do presidente, Itamar não era

digno nem de dizer que estava governando, pois, na avaliação do MST, “desgovernava” o

Brasil. O Movimento questionava a postura do presidente perante os acontecimentos, como o

fato de ele não ter consolidado uma equipe de ministros e o de que em alguns estados o

INCRA estava sem superintendente. Para o MST, o “caos” assolava o país.

438 Estamos cansados de conversa mole. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1993, ano XII, n. 128, p. 2. 439 Estamos cansados de conversa mole. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1993, ano XII, n. 128, p. 2.

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É preocupante o quadro de fome, analfabetismo, ignorância e doenças

generalizadas que assolam o país. Massacres de índios, presidiários,

camponeses, meninos de rua, moradores de favelas passaram a ocorrer com

frequência e total impunidade. Governantes envolvidos em maracutaias e

apropriação de bens públicos para fins sociais; empresários que promovem a

corrupção para receber benefícios do estado; autoridades policiais e

judiciárias coniventes e co-participantes de ações criminosas. O crime

organizado, que comanda o tráfico de drogas, os grupos de extermínio, o

mercado de armas e a prostituição440.

Na visão do MST o país vivenciava um caos generalizado, em todas as áreas. O

Movimento afirmava que esse cenário era composto pelas elites brasileiras, que se

enriqueciam “cada vez mais à custa da exploração e do dinheiro público”, e pelo

“desgoverno” do Brasil. O “caos” e “desgoverno” estavam personificados na figura do

presidente Itamar. Para o MST, se dependesse de Itamar e de seu Governo, não havia muitas

possibilidades e expectativas de mudanças no cenário apresentado. Assim, o Movimento

acreditava que “somente a persistência, a organização e a luta” poderiam “trazer a esperança

de mudança” para o país441.

Na charge do editorial de setembro de 1993442, percebem-se algumas representações

do MST sobre o presidente Itamar, refletidas até o momento da tese.

Imagem 16 – O caos do “desgoverno” Itamar

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, Setembro de 1993, ano XII, n. 129, p. 2.

440 O caos do “desgoverno” Itamar. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1993, ano XII, n. 129, p. 2. 441 O caos do “desgoverno” Itamar. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1993, ano XII, n. 129, p. 2. 442 A charge não está assinada e não foi possível reconhecer sua autoria. O Expediente do jornal não dá o crédito

ao autor, o que comprometeu sua identificação.

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O presidente Itamar aparece como figura central da charge, que representa duas

situações: 1) um presidente sorridente, feliz e muito tranquilo quanto aos rumos do país; 2)

tensão e conflito, representados pelo que está em volta do presidente (pessoas brigando,

matando umas às outras, tiros de revólveres disparados). As duas situações agregam um tom

de humor e ironia à charge, haja vista que são aparentemente contraditórias. Como pode

alguém, diante de uma situação de conflito e tensão, ficar indiferente, como se nada estivesse

acontecendo? E mais, olhar para o céu e dizer: “Dia lindo!”. A charge representa a inércia de

Itamar perante os problemas do país.

Ao representar as perspectivas do MST sobre o “desgoverno” de Itamar e o “caos” que

assolava o país, a charge se revestia de conteúdo político e ideológico. A representação

contida na imagem de Itamar sugere, também, um sentido contrário, isto é, diz uma coisa,

quando, na verdade, o sentido implícito aponta outra. O humor e a ironia buscavam causar

risos nos leitores do jornal, mas as representações da charge transcendiam essas dimensões,

pois as intenções da Direção Nacional do Movimento era personificar Itamar como um

presidente alheio à realidade da época e que não tomava atitudes face às questões

problemáticas da sociedade. A expressão engraçada de Itamar, como se tudo estivesse lindo,

passava também pelo fato de o MST acreditar que o presidente não tinha um projeto político

para o Brasil. Ao conceder uma entrevista ao Jornal Sem Terra, Luís Eduardo Greenhalg, na

época, vice-presidente do PT nacional, advogado e assessor jurídico do MST, destaca que

Itamar era a representação de um governo “sem eira nem beira”. Ou seja, um governo pobre,

sem projeto político, que se estabeleceu apenas para terminar o mandato do ex-presidente

Collor.

É um governo sem eira nem beira. É um governo sem eixo. Arruma atrito

com os partidos políticos e bajula o Congresso. Não tem consistência

ideológica, não tem projeto. Quer apenas sobreviver, boiando no mar de

problemas que o Brasil tem. É o governo do deixa ficar para, deixa passar,

até chegar a próxima eleição. É um governo tampão443.

A fala de Greenhalg vai ao encontro do que se vinha refletindo: o MST representava

Itamar como um presidente inerte, não sabendo “para o que veio”. A ausência de um projeto

político era o cerne da falta de atitude do presidente sobre os problemas do país. Na

concepção de Greenhalg, Itamar e seu governo estavam matando as esperanças do povo

443 GREENHALG, Luís Eduardo. Um governo sem eira nem beira. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de

1993, ano XII, n. 130, p. 3.

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brasileiro, porque nada faziam. “O barco está naufragando e ele (Itamar) deixa passar a

história para poder chegar a próxima eleição”444. Neste Governo “sem eira nem beira”, o

presidente Itamar era seu protagonista.

Em relação à reforma agrária, Itamar não havia traçado um plano abrangente. Desse

modo, pouco fez445. Entre 1993 e 1994, de acordo com os dados do Banco de Dados da Luta

pela Terra – DATALUTA, o número de áreas obtidas para fins de reforma agrária

(assentamentos) foi de 305446. Se comparado aos três anos de Collor na presidência (1990,

1991 e 1992), nos quais foram obtidas 167 áreas para assentamentos (conforme o

DATALUTA), esse número passa a ser considerável, mesmo que não fosse o ideal para os

movimentos sociais do campo. O mesmo ocorre com o número de ocupações de terras, que

aumentou nos dois anos do Governo Itamar. O número de ocupações de terras no período em

que Collor era presidente foi de 221. Nos dois anos de Itamar Franco na presidência foi de

277. Esses dados demonstram um cenário favorável e menos hostil aos movimentos sociais do

campo no período em que Itamar foi presidente da República (1993-1994)447.

O último ano de Itamar na presidência foi pautado, sobretudo, pela implementação do

Plano Real, que visava a estabilizar a economia e a controlar a inflação. Esse plano foi

conduzido pelo então senador Fernando Henrique Cardoso que, a partir de maio de 1994,

estava à frente do Ministério da Fazenda. Devido às experiências frustradas com planos

anteriores (Plano Cruzado, Plano Bresser e Plano Collor), pairava muito ceticismo entre

analistas econômicos, políticos e sociedade em geral sobre o Plano Real.

Havia pressão e desconfiança sobre o novo plano proposto. Contudo, nesse processo,

“com uma equipe respeitada dentro e fora do país, Cardoso desempenhou um papel central na

conquista do apoio político necessário à realização do Plano Real, não só no Congresso e na

sociedade, mas também dentro do próprio executivo”448. Para o MST, em um ano de eleições

nas esferas federal e estadual, o Plano Real era concebido como uma estratégia política e um

“pacto das elites”449 para eleger o presidente do país. O Movimento não apoiou a criação do

Plano Real, muito menos a figura central que estava associada a ele, Fernando Henrique

Cardoso, o FHC.

444 GREENHALG, Luís Eduardo. Um governo sem eira nem beira. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de

1993, ano XII, n. 130, p. 3. 445 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 46-49. 446 DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011, p. 22. Disponível em: www.fct.unesp.br/nera 447 Ver: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011, p. 15. Disponível em: www.fct.unesp.br/nera. 448 FAUSTO, B., História do Brasil, p. 477. 449 É hora de mudar o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1994, ano XIII, n. 139, p. 2.

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Nessa conjuntura, a partir de 1994, houve uma mudança significativa nos editoriais do

Jornal Sem Terra, pois o MST redimensionou seu olhar para as eleições que iriam se realizar

naquele ano, entretanto, o Movimento não cessou as críticas, as denúncias e as representações

sobre Itamar e sobre as ações de seu Governo em relação ao campo e à reforma agrária.

As disputas eleitorais passaram a ser centrais nos editoriais. O editorial da edição de

janeiro/fevereiro de 1994 foi o último a tecer representações sobre o presidente Itamar. Nesse

editorial, além de se enfatizar que “ninguém mais acreditava” em Itamar e que a política de

seu Governo andava de “mal a pior”, o Movimento ressaltava as eleições presidenciais. Na

ocasião, sem rodeios, a Direção Nacional do MST posicionou-se quanto ao candidato que a

organização iria apoiar: Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula. Assim, dizia: “Decidimos apoiar

abertamente e nos envolver na campanha do companheiro Lula, porque acreditamos ser a

única que, se vitoriosa, pode implantar um programa democrático-popular e realizar a reforma

agrária”450. É interessante notar que Lula era representado como “companheiro” de lutas do

MST, um homem da classe trabalhadora, que governaria em prol dos trabalhadores, por meio

de um projeto “democrático-popular”. Lula era visto pela Direção Nacional do MST como a

esperança de transformação e justiça social.

Nos outros dez editoriais de 1994, as eleições e os presidenciáveis foram destaques. A

Direção Nacional do MST utilizou seu periódico para apoiar a campanha de Lula451,

adversário direto de FHC. O desfecho das eleições foi a vitória de FHC para presidente da

República em primeiro turno, tendo como vice-presidente o senador Marco Maciel (PFL). No

plano político, a engenhosa criação do Plano Real foi fundamental para a popularidade de

FHC e lhe rendeu dividendos políticos. Na época, FHC ficou conhecido como o pai do Plano

Real, e, para muitos analistas políticos, esse plano decidiu a sucessão de Itamar na

presidência. No Jornal Sem Terra, as representações do MST sobre FHC se iniciaram antes

mesmo de sua eleição e continuaram durante seus dois mandatos como presidente. Analisar

essas representações será o desafio do próximo capítulo.

450 O que esperar de 1994? Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro/fevereiro de 1994, ano XIII, n. 133, p. 2. 451 No quarto capítulo, reflete-se sobre a relação histórica entre MST e Lula, chamando a atenção para o apoio e

envolvimento do Movimento nas campanhas eleitorais do ex-presidente.

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CAPÍTULO III

“O PRESIDENTE DAS ELITES”: TENSÕES E LUTAS POR

REPRESENTAÇÕES NO GOVERNO FHC

3.1 FHC: neoliberalismo e submissão ao capital internacional

Fernando Henrique Cardoso, conhecido como FHC, nasceu na cidade do Rio de

Janeiro, em 1931. Por ser filho e neto de generais das Forças Armadas do Brasil, tivera uma

vida economicamente favorável. Ou, como dissera José Carlos Reis, “integrado às elites

brasileiras”. Licenciou-se em Ciências Sociais no ano de 1952 e defendeu sua tese de

Doutorado em 1961, na Universidade de São Paulo (USP). Em seguida, tornou-se professor

auxiliar, assistente, livre docente e emérito do Departamento de Sociologia da USP. Na

academia, teve como orientador o sociólogo Florestan Fernandes.

Em sua trajetória acadêmica, FHC destaca-se por possuir um currículo reconhecido

nacional e internacionalmente. Sua obra é vasta e interdisciplinar: sociologia, história,

economia e ciência política452. Intelectualmente, FHC foi caracterizado como um sujeito “das

personalidades difíceis ou complexas”453. Sua personalidade também foi apontada como:

indefinida, imprecisa e imprevisível. Apesar de pertencer a uma família que tinha tradição na

política454, FHC sobressaiu-se, inicialmente, como sociólogo455, com uma capacidade de

escrita e análise sócio-histórica admirável.

452 Dentre suas obras, cita-se: CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário Industrial e Desenvolvimento

Econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1964; ______. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro

na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difel, 1962; ______; FALETTO, Enzo.

Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970; _____. Desenvolvimento

associado-dependente e teoria democrática. In: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 443-482. 453 REIS, J. C., Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso, p. 235-237. 454 O bisavô de FHC, capitão Felicíssimo do Espírito Santo, no Império foi deputado e senador pelo Partido

Conservador do estado de Goiás e presidente da província do mesmo estado. Seu pai, Leônidas Cardoso, foi

deputado federal pelo PTB, entre os anos de 1955 a 1959. 455 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, 479.

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Ingressou na vida política com quase cinquenta anos, em 1978, para disputar a eleição

do Senado, pelo MDB. Nesse período, se afastou da atividade de cientista social e foi para

ação, na atividade política. Na ocasião, foi eleito senador suplente, assumindo a titularidade

em 1983. Em 1986 elegeu-se senador pelo PMDB, partido pelo qual foi líder no Senado. FHC

contribuiu decisivamente para a fundação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)

e se tornou líder do partido no Senado.

Entre as décadas de 1960 e 1970, durante a Ditadura Civil-Militar, FHC não foi preso,

nem sofreu torturas como muitos ativistas políticos. Em 1964, preferiu o autoexílio no Chile.

Neste país, amigos e familiares estavam “junto dele, lá estava sua melhor oportunidade de

trabalho, pois o grande debate sobre a América Latina se dava no Ilpes, da Cepal”456. FHC

não vivenciou os primeiros anos do Regime Civil-Militar no país. Em1967 foi para Paris,

onde lecionou na Universidade de Nanterre. No ano de 1968 retornou ao Brasil e, na década

de 1970, se consolidou como um dos analistas “mais contundentes e sofisticados do regime

militar e milagre brasileiro”. Nesse contexto, não caracterizou o Regime Civil-Militar como

“fascista” ou “totalitário”, mas como um “regime autoritário”, que favorecia o

desenvolvimento e modernização do país457.

A figura do político e presidente FHC não agradava a Direção Nacional do MST. Essa

constatação ficava nítida antes mesmo do desfecho final das eleições de 1994. O

presidenciável FHC era representado como continuísmo de uma política que vinha sendo

implantada desde a Ditadura Civil-Militar. Por este viés, não há muita novidade nos discursos

produzidos pelo MST, via Jornal Sem Terra, em relação aos candidatos que enfrentavam Lula

nas disputas eleitorais. Ou seja, Lula era o candidato da classe trabalhadora e os outros

candidatos eram associados a grupos alheios e contrários aos anseios do “povo”. Sobre a

candidatura de FHC, em 1994, o editorial de agosto enfatizava: “Os grupos de sustentação

dessa candidatura é o mesmo que governa o Brasil há 30 anos. São os responsáveis diretos

pela concentração de renda, de terra, pelo crescimento da pobreza e pelo desemprego”458. Em

FHC e com FHC estavam contidos “resquícios da ditadura”.

456 O Ilpes (Instituto Latino-Americano e o Caribe de Planejamento Econômico e Social) é um organismo

permanente que integra a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal). Foi criado em 1962,

“com a finalidade de apoiar os governos da região no campo do planejamento e a gestão pública mediante a

apresentação dos serviços de capacitação, assessoria e investigação que permitirá contribuir com os esforços

nacionais e subnacionais orientados a melhorar a qualidade das políticas públicas e fortalecer as capacidades

institucionais”. Ver: http://www.eclac.org/ilpes/. 457 REIS, J. C., Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso, p. 237-238. 458 É hora de mudar o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1994, ano XIII, n. 139, p. 2.

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[...] ele (FHC) está de braços dados com os piores políticos brasileiros,

gerados justamente pela ditadura militar. Os mesmos políticos que apoiaram

o governo militar no fechamento do Congresso Nacional, nas prisões torturas

e assassinatos de estudantes e trabalhadores, que acobertam os crimes no

campo e as grilagens de terras, que foram contra as eleições diretas em 1984

e apoiaram o governo corrupto de Collor, hoje apoiam Fernando

Henrique459.

O continuísmo representado na eleição de FHC vinha com um ingrediente mais

efusivo, no sentido de que “Fernando Henrique é outro Collor”. Além de estar aliado a grupos

e políticos corruptos, advindos do Regime Civil-Militar, FHC representava a “burguesia, os

poderosos, os bancos, as multinacionais, os fazendeiros, a ‘Globo’, em suma, os que sempre

mandaram neste país”460. Ao resumir os que “sempre mandaram neste país”, o MST

evidenciava o continuísmo histórico de seu discurso, como se FHC fosse o prolongamento e a

representação dos grupos citados.

Assim, na eleição de 1994 estavam em jogo dois projetos distintos: o das elites (com

FHC) e o dos trabalhadores (com Lula). Após a vitória de FHC, o MST elencava que a

população fora manipulada pela imprensa nacional e que o presidente era uma “fabricação de

liderança nacional”461. Nesse sentido, o Movimento se declarava abertamente “oposição” ao

Governo e observava que FHC e sua equipe encontrariam, durante todo o seu mandato,

“resistência permanente contra as políticas neoliberais”462. Aliás, na década de 1990, em

especial com FHC no poder, o MST elegeu mais um inimigo para sua organização e para os

trabalhadores: o neoliberalismo.

Na tabela a seguir, organizou-se os editoriais que representavam diretamente a figura

de FHC durante seus oito anos como presidente da República.

Tabela 2 – Editoriais relacionados ao presidente FHC (1995-2002)

Título do Editorial Referência

Um governo velho e conservador SP, ano XIV, nº 144, jan-fev/1995, p. 2.

Um governo de nhe-nhe-nhém! SP, ano XIV, nº 144, março/1995, p. 2.

A propaganda e a realidade na Reforma Agrária SP, ano XIV, nº 146, abril/1995, p. 2.

Combater sem trégua o Neoliberalismo SP, ano XIV, nº 147, maio/1995, p. 2.

Um Governo cada vez mais antipopular SP, ano XIV, nº 148, jun/1995, p. 2.

459 É hora de mudar o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1994, ano XIII, n. 139, p. 2. 460 Uma eleição histórica. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1994, ano XIII, n. 140, p. 2. 461 Venceu a mentira. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1994, ano XIII, n. 141, p. 2. 462 Balanço de 1994. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1994, ano XIII, n. 143, p. 2.

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O rei FHC e a realidade... SP, ano XIV, nº 149, jul/1995, p. 2.

Vamos tirar a Reforma Agrária do papel SP, ano XIV, nº 152, out/1995, p. 2.

Reforma Agrária avança SP, ano XIV, nº 153, nov/1995, p. 2.

A reforma agrária precisa avançar SP, ano XIV, nº 154, nov/1995, p. 2.

Não podemos esperar pelo Governo SP, ano XV, nº 155, jan-fev/1996, p. 2.

Só mobilização mexe com esse Governo SP, ano XV, nº 156, março/1996, p. 2.

Carta ao Senhor Presidente da República SP, ano XV, nº 157, abril/1996, p. 2.

Vamos paralisar o Brasil contra os massacres SP, ano XV, nº 158, maio/1996, p. 2.

Aumenta a violência e continua a impunidade no campo SP, ano XV, nº 159, jun/1996, p. 2.

FHC: É hora de fazer e não prometer SP, ano XV, nº 160, jul/1996, p. 2.

Um governo tartaruga e enrolador SP, ano XV, nº 161, ago/1996, p. 2.

Governo deveria priorizar a solução dos problemas

agrários

SP, ano XV, nº 162, set/1996, p. 2.

Ministro papagaio SP, ano XV, nº 163, out- nov/1996, p. 2.

Os Governos do mundo não se importam com a fome e a

miséria!

SP, ano XV, nº 164, dez/1996, p. 2.

Balanço da agricultura e da reforma agrária em 1996 SP, Ano XVI, nº 165, jan/1997, p. 2.

Uma marcha histórica a Brasília SP, ano XVI, nº 166, fev/1997, p. 2.

A reação política de FHC SP, ano XVI, nº 167, março/1997, p. 2.

Continuamos em marcha contra o Neoliberalismo SP, ano XVI, nº 168, abr-mai/1997, p. 2.

A cara desse Governo SP, ano XVI, nº 169, jun/1997, p. 2

Reforma agrária, só propaganda SP, ano XVI, nº 170, jul/1997, p. 2.

A necessidade de um projeto popular SP, ano XVI, nº 171, ago/1997, p. 2.

A ordem é sufocar o MST SP, ano XVI, nº 172, set/1997, p. 2.

Pequenas vitórias, grandes conquistas SP, ano XVI, nº 173, out/1997, p. 2.

O Governo FHC e a farsa do Neoliberalismo SP, ano XVI, nº 174, nov/1997, p. 2.

Balanço da reforma agrária SP, ano XVI, nº 175, dez/1997 e jan/1998, p. 2.

O medo de FHC SP, ano XVII, nº 177, março/1998, p. 2.

Cresce o desgaste do Governo de FHC SP, ano XVII, nº 178, abril /1998, p. 2.

O desespero de FHC SP, ano XVII, nº 179, mai-jun/1998, p. 2.

O Governo FHC é o caos social SP, ano XVII, nº 180, jul/1998, p. 2.

A ordem é ninguém passar fome SP, ano XVII, nº 181, ago/1998, p. 2.

A crise tem nome: FHC SP, ano XVII, nº 182, set/1998, p. 2.

A ditadura moderna do Governo FHC SP, ano XVII, nº 183, out/1998, p. 2.

Um pacote anti-social e inútil SP, ano XVII, nº 184, nov/1998, p. 2.

Governo FHC: Quatro anos de enrolação SP, ano XVII, nº 185, dez/1998, p. 2.

FHC quebrou o país SP, ano XVII, nº 186, jan-fev/1999, p. 2.

O governo FHC acabou SP, ano XVII, nº 187, março/1999, p. 2.

FHC: Um Governo sem moral SP, ano XVII, nº 188, abril/1999, p. 2.

Governo FHC ataca o MST para não fazer reforma

agrária

SP, ano XVII, nº 189, maio/1999, p. 2.

Aumenta a crise no Governo SP, ano XVII, nº 190, jun/1999, p. 2.

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A cada dia piora o governo SP, ano XVII, nº 191, jul/1999, p. 2.

A ingovernabilidade de FHC SP, ano XVII, nº 192, ago/1999, p. 2.

Avança a crise no Brasil SP, ano XVII, nº 193, set/1999, p. 2.

Paralisação nacional SP, ano XVII, nº 194, out/1999, p. 2.

A decadência das elites brasileiras SP, ano XVIII, nº 195, nov/1999, p. 2.

Vamos comemorar os 500 anos com lutas SP, ano XVIII, nº 196, dez/1999 e jan/2000, p. 2.

A necessidade de um projeto popular para a agricultura SP, ano XVIII, nº 197, fev/2000, p. 2.

FHC: um governo dos ricos SP, ano XVIII, nº 198, março/2000 p. 2.

Na luta contra o modelo neoliberal SP, ano XVIII, nº 199, abril/2000, p. 2.

Reforma agrária não se faz com mentiras e prisões SP, ano XVIII, nº 200, maio/2000, p. 2.

É hora do povo mudar o rumo do país SP, ano XVIII, nº 201, jun/2000, p. 2.

Cresce a insatisfação popular contra o governo SP, ano XVIII, nº 202, jul/2000, p. 2.

Manifesto do MST ao povo brasileiro SP, ano XVIII, nº 203, ago/2000, p. 2.

Negociações: As mentiras do governo SP, ano XVIII, nº 204, set-out/2000, p. 2.

O mau cheiro que exala do Planalto SP, ano XVIII, nº 205, nov/2000, p. 2.

Por um programa de mudanças SP, ano XIX, nº 206, dez/2000 e jan/2001, p. 2.

FHC: Governo da vaca louca e dos gringos SP, ano XIX, nº 207, fev/2001, p. 2.

Por que FHC não quer CPI? SP, ano XIX, nº 208, março/2001, p. 2.

Governo FHCorrupção SP, ano XIX, nº 210, maio/2001, p. 2.

A gravidade da crive no Governo de FHC SP, ano XIX, nº 211, jun/2001, p. 2.

FHC: Governo de corrupção, mentira e apagão SP, ano XIX, nº 213, ago/2001, p. 2.

Um Governo vergonhoso SP, ano XIX, nº 214, set/2001, p. 2.

Nem terrorismo, nem Império SP, ano XIX, nº 215, out/2001, p. 2.

É preciso ter dignidade! SP, ano XIX, nº 216, Nov-dez/2001, p. 2.

A reforma agrária que não existe SP, ano XX, nº 217, jan/2002, p. 2.

Lutas e mudanças em 2002 SP, ano XX, nº 218, fev/2002, p. 2.

Governo FHC continua mentindo SP, ano XX, nº 219, mar-abr/2002, p. 2.

A farsa da reforma agrária SP, ano XX, nº 220, maio/2002, p. 2.

Para o capital, o patrimônio público. Para o povo... SP, ano XX, nº 221, jun/2002, p. 2.

FHC se submete ainda mais ao FMI SP, ano XX, nº 223, ago-set/2002, p. 2.

O povo vota contra o modelo das elites e FHC SP, ano XX, nº 224, out/2002, p. 2.

Constata-se que setenta e cinco editoriais buscaram construir representações sobre o

presidente, como se pode observar na tabela apresentada. Ressalta-se que, em outras seções

do jornal, também havia matérias dirigidas à figura de FHC e às ações de seu Governo463.

Sendo uma publicação mensal, com algumas edições bimestrais, nota-se pela quantidade de

editoriais o quanto foi intensa a construção de representações sobre FHC. Os editoriais citados

463 Algumas delas serão analisadas no desenvolvimento do capítulo.

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na tabela, assim como outras matérias do jornal que contemplam a problemática da tese serão

analisados de forma integrada, sem separar o primeiro e o segundo mandatos do presidente.

Com essa opção metodológica, filtraram-se as principais e recorrentes representações

elaboradas pelo Movimento, por meio do Jornal Sem Terra.

Como já foi explicitado, antes de sua eleição em 1994, o MST representava FHC

como continuísmo de uma política advinda da Ditadura Civil-Militar. No primeiro editorial do

jornal, após a vitória de FHC nas eleições, essa representação se repetiu: Um governo velho e

conservador. Assim, dizia: “mal o governo FCH assumiu e já temos a sensação de ser um

governo velho. Afinal, é a tradicional elite brasileira que continua no poder. Mandando com

os mesmos nomes, apenas fantasiados de social-democratas”464. Para ilustrar e dar um tom de

humor ao editorial, publicou-se uma charge465 que remete ao que foi salientado.

Imagem 17 – Um governo velho e conservador

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1995, ano XIV, n. 144, p. 2.

O homem, com as mãos na cintura, olhando para o mapa do Brasil à sua frente, e com

aparência de desconfiado diz: “dessa vez nem as moscas mudaram”. Por meio da charge, o

MST representava que, com a eleição de FHC e, a partir do cenário político consolidado em

1995, as mesmas “moscas” (políticos) que pairavam sobre a política brasileira, desde o início

da Nova República, continuavam estabelecendo morada no bolo chamado Brasil. O presidente

era a representação máxima do continuísmo político; e seu Governo, para o Movimento, tinha

464 Um governo velho e conservador. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan/fev de 1995, ano XIV, n. 144, p. 2. 465 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato do Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador.

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uma cara e missão: era a cara das elites e para as elites. Nessa direção, as representações

sobre o modelo e as medidas econômicas encampadas por FHC e sua equipe de governo

foram recorrentes nos editoriais do jornal.

No auge de sua carreira acadêmica, FHC analisou as experiências históricas da

América Latina, em especial, as do Brasil, e escreveu teses que auxiliaram a pensar a região e

a propor modelos de desenvolvimento econômico e social. Suas teses foram admiradas por

alguns estudiosos, mas também geraram muitas polêmicas e críticas de outros intelectuais,

sobretudo, dos ligados às esquerdas brasileiras466.

FHC e o chileno Enzo Falleto escreveram Dependência e Desenvolvimento na

América Latina, entre os anos de 1965 e 1967, no Chile. Na época, esta obra teve grande

repercussão nacional e internacional, pois ofereceria um olhar diferente e inovador para o

desenvolvimento do continente. A teoria de FHC e de Falleto escandalizou as esquerdas no

Brasil e no resto do continente, haja vista que ela defendia a tese de que era possível ser

dependente e desenvolvido na América Latina, nos moldes capitalistas.

Na tese do “desenvolvimento dependente-associado”, os investimentos estrangeiros

não eram obstáculos ao desenvolvimento do país, pelo contrário, se tornavam uma espécie de

mola propulsora, alavancando e dinamizando a economia dos países dependentes. Ou seja, a

mudança no Brasil era percebida como “modernização capitalista”, com associação e

dependência467. Não se tratava de mudanças estruturais, mas sim de possibilidades de

mudanças dentro do próprio modo de produção capitalista.

Para Reis, FHC “fez da dependência, que era o mal do Brasil, a base do seu

desenvolvimento capitalista, reabrindo o horizonte do Brasil”468. O intelectual e presidente

defendia a aliança entre as elites brasileiras e as elites internacionais, visava ao

desenvolvimento nos moldes capitalistas e não era contrário ao capital internacional. Essa tese

rompia com o modelo do nacional-desenvolvimentismo que defendia o fortalecimento do

mercado interno e da industrialização nacional, sem grandes interferências do capital

internacional. Ao analisar as ideias de FHC, Reis sublinha que ele era “um pensador burguês e

paulista”; e havia formulado um “projeto de desenvolvimento burguês” para o Brasil.

466 As teses e opções políticas de FHC causaram decepção em seu mestre, Florestan Fernandes. Para Fernandes,

FHC deixou-se dominar pelo seu maior desvio psicológico, a vaidade, que ocuparia o poder no velho estilo das

elites reacionárias (FERNANDES, 1994; 1995). 467 Ver: CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e Desenvolvimento na América

Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. 468 REIS, J. C., Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso, p. 244.

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Ele se tornou um formulador do projeto burguês para o Brasil quando

percebeu que a burguesia tinha dificuldades em dar forma à sua própria

consciência. Decidiu formulá-la para ela, oferecendo-lhe a sua própria

representação. E ofereceu-lhe uma representação de si mesmo simpática, não

autoritária, vinculada aos interesses nacionais no interior das pressões

internacionais. F. H. Cardoso percebeu que nos anos 1960-70, estando o

capitalismo estruturado como estava, só havia um sujeito que poderia levar o

Brasil ao desenvolvimento industrial, à acumulação de capitais: a burguesia

interna associada ao capital estrangeiro469.

Dentre as suas ações e concepções políticas, FHC defendia o que chamava de “utopia

viável”, ao considerar a justiça social como principal objetivo e valor a se perseguir. Nesse

processo, o desenvolvimento tecnológico e capitalista seria crucial. A justiça social poderia

ser alcançada nos moldes capitalistas, ou seja, pelo mercado. A partir das ideias e concepções

de FHC, ainda quando estava na academia, não é difícil entender o porquê de todas as críticas

e oposição do MST à sua figura.

As teses de FHC entravam em contraposição direta às concepções ideológicas do

Movimento, sobretudo, quando se pensa na possibilidade de desenvolvimento com justiça

social para toda a sociedade no modo de produção capitalista. A ideia de o Brasil ser

dependente para se desenvolver também entrava em choque com as perspectivas do MST,

pois sua organização sempre pregou o desenvolvimento nacional a partir do fortalecimento

interno, sem ou com poucas interferências externas, e tendo a reforma agrária papel elementar

nesse processo. Ser “dependente-associado”, para o MST, significava perder a soberania

nacional. Outra questão fundamental estava no fato de o MST lutar por uma sociedade

socialista, contra o capitalismo. FHC representava o capitalismo no Brasil, sendo assim, devia

ser combatido.

Ao se combater FHC e suas políticas de governo, passava-se, então, a lutar contra o

neoliberalismo. Na década de 1990, o neoliberalismo se tornou um dos inimigos da

organização do MST, assim como o latifúndio, os latifundiários, a grande imprensa, a polícia,

dentre outros. Para se conquistar uma sociedade socialista, o Movimento investia suas forças e

lutas contra o modelo político e econômico neoliberal. Isso ficou evidente logo no início do

mandato do presidente, quando o MST alertava que FHC queria “acelerar a implantação de

medidas neoliberais no país”. Com isso, o presidente almejava “acabar com a aposentadoria

por tempo de serviço, privatizar as empresas estatais, manter o salário arrochado e acabar com

469 REIS, J. C., Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso, p. 254.

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o monopólio nos setores estratégicos (petróleo, energia elétrica e telecomunicações”470. Mas,

o que é neoliberalismo? O que se pode atribuir a esse modelo político e econômico?

Existe uma literatura significativa sobre o que se denominou neoliberalismo471, e não

se pretende aqui fazer uma discussão extensa sobre a temática, mas sim ressaltar alguns

aspectos desse modelo para se pensar nas representações do MST sobre FHC. A Escola

Austríaca foi a principal porta-voz do pensamento neoliberal, sendo fundada por Ludwing

Von Mises (1881-1973)472, na década de 1930. O neoliberalismo, enquanto doutrina política,

teve grande repercussão também a partir dos escritos do austríaco Friedrich Hayek (discípulo

de Von Mises), em especial, com o livro O caminho da Servidão. Em sua obra, Hayek

defendia a tese de que o Estado, de forma alguma, deveria intervir nos mecanismos de

mercado, pois, ao promover certo igualitarismo social, destruía a liberdade dos cidadãos e a

vitalidade da concorrência e dificultava a prosperidade humana473. Sendo assim, retomava

alguns dos princípios clássicos do liberalismo econômico dos séculos XVIII e XIX, mas num

contexto distinto do desenvolvimento do capitalismo474.

Entre as décadas de 1930 e 1970, a produção teórica sobre o modelo neoliberal ficou

restrita às academias e instituições de pesquisa. O programa político neoliberal começou

efetivamente a ser implantado no final dos anos de 1970 e início da década de 1980: em 1979,

na Inglaterra, com o governo de Margaret Thatcher; em 1980, nos EUA, com Ronald Reagan.

Conforme Francisco Uribam Xavier de Holanda, a partir desses dois países o neoliberalismo

ganhou força no capitalismo mundial e iniciou-se uma “campanha em busca da hegemonia

ideológica no mundo”475. O pressuposto teórico neoliberal defende a ideia de que o

capitalismo deu ao mundo um melhor padrão de vida e a de que o único sistema de

organização social possível advém do capitalismo. Sobre isso, enfatiza-se que há uma enorme

distância entre os pressupostos teóricos e a realidade vivenciada pela sociedade nos países que

470 Um governo nhe-nhe-nhém! Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1995, ano XIV, n. 145, p. 2. 471 Sobre o neoliberalismo, ver: HOLANDA, Francisco Uribam X. de. Do liberalismo ao Neoliberalismo: o

itinerário de uma cosmovisão impenitente. 3ª Ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004; ANDERSON, Perry. Balanço

do neoliberalismo. In: Emir SADER; Pablo GENTILI (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado

democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9-23; MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem,

para onde vai? São Paulo: Editora SENAC, 2001. 472 Dentre as obras de Von Mises publicadas no Brasil, cita-se: Ação Humana: um tratado sobre economia. Rio

de Janeiro: Instituto Liberal, 1990 (obra publicada em 1949); Liberalismo. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,

1987. No país, existe o Instituto Ludwing Von Mises Brasil, cujo objetivo é a produção e a disseminação de

estudos econômicos e de ciências sociais que promovam os princípios de livre mercado e de uma sociedade

livre, a partir das ideias de Von Mises e seus predecessores. Ver página do Instituto: http://www.mises.org.br. 473 Ver: HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. 474 Em relação às concepções que envolvem o Liberalismo e Neoliberalismo, destaca-se o livro: HOLANDA,

Francisco Uribam X. de. Do liberalismo ao Neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente. 3ª Ed.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 475 HOLANDA, F. U. X. de., Do liberalismo ao Neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente, p. 51.

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têm o neoliberalismo como modelo de desenvolvimento. Também, destaca-se que o modo de

produção capitalista em sua essência é contraditório, pois, na acumulação, sempre haverá

desigualdades e injustiças sociais.

Outros modelos políticos e econômicos alternativos, em especial, o socialismo, seriam

inviáveis para organizar a sociedade e traria males ao mundo. No entendimento neoliberal, os

seres humanos não são naturalmente iguais, mesmo que isso seja reivindicado por lei. Isto é,

naturaliza-se a desigualdade social, haja vista que a sociedade “nada mais é do que divisão de

trabalho e combinação de esforços”. Por esse viés, na teoria neoliberal, o mercado coordena

as atividades econômicas e atribui sentido e significado ao sistema social: “o mercado é o

ponto para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos”476. A

propriedade privada dos meios de produção e a divisão do trabalho se tornam cruciais para o

livre mercado funcionar.

E o Estado no neoliberalismo, qual sua função? Grosso modo, o Estado garante a

ordem e a liberdade do mercado. Este deve ser coadjuvante, não interferindo na lógica do

mercado para funcionamento da sociedade. Segundo Holanda, “o Estado é um aparato social

de coerção que deve utilizar seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as

pessoas cometam ações lesivas à preservação e funcionamento da economia de mercado”.

Nesse sentido, “não cabe ao Estado interferir nas atividades dos indivíduos, estas são dirigidas

pelo mercado que lhes indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar”. Ou

seja, o Estado é minimizado na teoria neoliberal e apenas seria o regulador das políticas

encampadas pelo mercado. “A doutrina neoliberal rejeita qualquer intervenção do Estado na

economia por ser supérflua, inútil e prejudicial”477.

O interessante das teorias neoliberais é que elas minimizam o papel do Estado na

economia e na política; contudo, se há alguma crise interna ou uma crise em decorrência de

crises internacionais, em que as empresas privadas, bancos passam por dificuldades, o Estado

é procurado para tentar resolver a situação, a partir de iniciativas como créditos, redução de

impostos, amortização de dívidas, dentre outras ações. Ou seja, no neoliberalismo, o Estado se

torna protagonista somente quando o mercado está em crise, o que demostra a contradição do

próprio modelo.

Essas características apresentadas do modelo neoliberal são amplamente contrárias à

forma com que o MST concebe o desenvolvimento do país, sobretudo, quando visualiza no

Estado o papel de fomentador de políticas para o desenvolvimento econômico e social da

476 HOLANDA, F. U. X. de., Do liberalismo ao Neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente, p. 58. 477 HOLANDA, F. U. X. de., Do liberalismo ao Neoliberalismo: o itinerário de uma cosmovisão impenitente, p. 62-66.

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população. Na compreensão do MST, a luta e a organização dos trabalhadores são essenciais

para a transformação do país, mas o Estado também tem suas responsabilidades, como, por

exemplo, no processo de democratização da terra. Os pressupostos ideológicos do

neoliberalismo, com ênfase no desenvolvimento do capitalismo, chocam de frente com os

pressupostos ideológicos do MST. Por isso, na década de 1990, o Movimento elegeu o

neoliberalismo como um dos principais inimigos de sua organização.

Na compreensão do MST, quem impunha o modelo neoliberal no Brasil e na América

Latina eram os Estados Unidos da América (EUA). O presidente FHC, aliado aos EUA,

defendia e fomentava o neoliberalismo no país. Na seção Estudo do Jornal Sem Terra, da

edição de abril de 1995, há o seguinte título na matéria: Porque os EUA querem impor o

neoliberalismo na América Latina? O texto caracteriza-se por síntese de uma palestra do

professor James Petras, catedrático da Universidade de Nova York, proferida no Brasil.

Amparado nas ideias do professor, o MST enfatizava que os EUA, a partir do ideário

neoliberal, tinham como estratégia o domínio do país e da América Latina como um todo478.

Na charge que acompanha a matéria, do autor José Alberto Lovreto (JAL), observa-se a

representação do EUA como o devorador do Brasil.

Imagem 18 – Porque os EUA querem impor o neoliberalismo na América Latina?

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1995, ano XIV, n. 146, p. 3.

478 Porque os EUA querem impor o neoliberalismo na América Latina. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de

1995, ano XIV, n. 146, p. 3.

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Sentado em uma bonita e confortável poltrona, um senhor barbudo e de cabelos

brancos. Tal representação sinaliza para o Tio Sam479, personagem típico e símbolo nacional

do EUA, com sua tradicional cartola com listras vermelhas e brancas e estrelas brancas sobre

um fundo azul. O referido senhor tem à sua frente uma mesa e um prato em que a refeição é o

mapa do Brasil. Com aparência de muita felicidade, sorrindo, o senhor elegante e sutil, com

garfo e faca nas mãos começa a cortar o seu bife, chamado Brasil. A posição do Tio Sam,

cortando o Brasil é a representação sobre o que o EUA queria fazer com o Brasil. Ou seja,

devorar/engolir o país para aumentar o seu poderio econômico e político. A imagem do Brasil

sendo colocado dentro de um prato, pronto para ser devorado, é utilizada pelo MST para

mostrar a fragilidade e a subserviência do Brasil perante as políticas de cunho neoliberal do

EUA.

Era preciso “combater sem trégua o neoliberalismo”, dizia o editorial de maio de

1995. Nesse editorial, o MST fazia críticas a FHC e a seu governo, no sentido de que estes

eram defensores do neoliberalismo e estavam agindo com autoritarismo contra aqueles que se

posicionavam contrários às ações do governo. Assim:

[...] FHC tem arrotado uma prepotência e autossuficiência típica dos reis e

muito próxima dos ditadores. Talvez seja por isso que ele goste de ser

chamado “príncipe dos sociólogos”.

Aos que se manifestam contrários a sua política neoliberal, taxa-os de

derrotados, corporativos e impatrióticos. Age como se a participação política

da população devesse restringir ao período eleitoral e ao resultado das urnas.

Aos trabalhadores, técnicos e especialistas das empresas estatais, proibiu-os

de manifestar opiniões contrárias aos programas de privatizações. Os

desobedientes devem ser imediatamente demitidos. De forma autoritária o

governo impede que os trabalhadores exerçam o dever de lutar pela

preservação do patrimônio nacional. Uma perseguição política que seria

inimaginável para um presidente que propagandeia ter sido perseguido e

exilado por causa das suas ideias480.

A representação de FHC, “o príncipe dos sociólogos”, era a de um presidente que

tinha em suas práticas características semelhantes às de um “ditador”. A crítica central do

MST, além das relativas às práticas “autoritárias” do presidente, era perante as políticas

479 O nome Tio Sam foi utilizado, primeiramente, durante a Guerra Anglo-americana, em 1812, mas o

personagem só foi ilustrado no ano de 1852. Entre as hipóteses que giram em torno da face do Tio Sam, alguns

acreditam que há semelhanças com o rosto do presidente Andrew Jackson, outras creem na semelhança com o

presidente Abraham Lincoln. 480 Combater sem trégua o Neoliberalismo. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1995, ano XIV, n. 147, p. 2.

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neoliberais aplicadas em seu governo. A charge contida nesse editorial481 de certa forma

complementa a ideia da charge anterior, a de que os EUA impunham o neoliberalismo no

Brasil com o aval e apoio do presidente FHC.

Imagem 19 – Combater sem trégua o Neoliberalismo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1995, ano XIV, n. 147, p. 2.

À direita, na imagem, uma imponente águia com as asas abertas utiliza uma cartola

similar à do personagem nacional estadunidense Tio Sam. A águia segura um cigarro pelo

bico e faz uma pose de soberana, com aparência de felicidade. Percebe-se em suas asas listras

e estrelas. Registre-se que, na referida charge, tais símbolos – águia, cartola com a sigla EUA,

listras e estrelas – apontam para a representação do EUA482. Visualiza-se ainda no

texto/imagem outra ave, um filhote que parece ter acabado de nascer. Ainda no ninho e dentro

do ovo, a ave, um tucano483, mostra agitação e felicidade e diz para a águia: “ma-mãe!”. A

escolha do tucano, nascido no ninho do neoliberalismo, não foi aleatória, uma vez que ele é

uma ave típica do Brasil e também o símbolo do partido do presidente FHC, o PSDB. Na

representação do MST, o tucano/PSDB, que havia sido chocado no ninho do neoliberalismo,

tinha o EUA como sua mãe. Destaca-se que, na relação de forças entre o tucano/PSDB/FHC e

481 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato do Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador. 482 O emblema do EUA é a águia de cabeça branca, conhecida também como águia careca. Ela está presente no

brasão do país e em diversos símbolos referentes ao EUA. A águia careca apareceu pela primeira vez como

ícone norte americano no Carimbo Oficial (Great Seal), em 1782. Além de ser uma ave de força e coragem, foi

escolhida como símbolo nacional porque era encontrada somente na América do Norte. 483 Tucano: ave da família Ramphastidae, que vive nas florestas da América Central e América do Sul. Essa ave

é conhecida, em especial, por seu bico grande e oco.

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a águia/EUA, a águia era quem ditava as regras e imperava sobre seu filhote. Ou seja, o Brasil

estava submisso aos interesses do EUA que, na época, tinha como presidente Bill Clinton.

Na compreensão do MST, o neoliberalismo era uma farsa e FHC o cúmplice de toda

falsidade. À medida que o neoliberalismo se consolidava no país, causava “fragilidade e

dependência da economia brasileira ao capital financeiro”. Sendo assim, a economia

funcionava “apenas para garantir lucratividade aos bancos e não o bem estar para a

população”. Para o Movimento, o neoliberalismo gerava dependência das especulações

financeiras internacionais, sendo responsável por aumentar o desemprego e reduzir o poder

aquisitivo da população. A política de FHC era assim representada como “inimiga dos

interesses do povo brasileiro”484. A charge, em seguida, publicada no editorial de novembro

de 1997, sugeria aos leitores do jornal que FHC fazia malabarismo com o neoliberalismo no

Brasil.

Imagem 20 – O governo FHC e a farsa do neoliberalismo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1997, ano XVI, n. 174, p. 2.

Na charge, de autoria de Luscar, o presidente FHC está em cima de uma bola que

representa o planeta terra. Em uma posição séria e tensa, revelada pelas gotas de suor saindo

do seu rosto, o presidente faz malabarismo com seis cubos, cada um com as sílabas da palavra

neoliberalismo. Além de fazer o malabares com os cubos, FHC tem de se equilibrar sobre a

484 O governo FHC e a farsa do neoliberalismo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1997, ano XVI, n. 174, p. 2.

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bola, uma ação muito complicada. A representação efetuada pelo Movimento, a partir da

charge, gira em torno de que FHC, ao privilegiar o neoliberalismo, está praticando uma

modalidade/ação muito complicada e perigosa. A qualquer momento o presidente pode se

desequilibrar e cair da bola, derrubando consigo os cubos do malabares. Isto é, brincar com o

neoliberalismo era algo perigoso, e o maior prejudicado seria o povo brasileiro. Assim, em

diversas matérias e editoriais do Jornal Sem Terra, o Movimento sempre enfatizava que era

preciso lutar “contra o modelo neoliberal”485, pois este modelo beneficiava os ricos e tornava

pobre a maior parte da população.

Em outro editorial, de abril/maio de 1997, que destacava a repercussão da Marcha

Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça Social, era evidenciado que o MST

continuaria “em marcha contra o neoliberalismo”. A Marcha Nacional do MST486, conhecida

também como Marcha do Cem Mil, teve grande repercussão nacional e um significado

simbólico relevante, pois não era apenas a reforma agrária que estava apresentada. Ela

agregou, além dos movimentos sociais que lutavam pela terra, uma diversidade de

organizações políticas e sociais urbanas487. No editorial citado, o Movimento destacava que

um dos objetivos centrais da marcha foi conquistado: “mostramos à sociedade, que a política

neoliberal imposta por FHC está acabando com a agricultura familiar, com o emprego rural e

com a produção de alimentos”. Também, que essa política era “voltada para os interesses das

elites e dos grandes grupos econômicos internacionais”488. Enfim, os integrantes do MST

marchavam contra a política neoliberal de FHC. Na charge a seguir489 essa questão é

representada.

485 Na luta contra o modelo neoliberal. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2000, ano XVIII, n. 199, p. 2. 486 A Marcha Nacional do MST teve início em 17 de fevereiro de 1997 e foi composta por três colunas que

saíram de regiões diferentes do Brasil, sendo São Paulo (SP), Governador Valadares (MG) e Rondonópolis

(MT). A marcha durou dois meses de caminhada até chegar a Brasília, no dia 17 de abril, onde os Sem Terra

foram recebidos por aproximadamente cem mil manifestantes. Ela foi a primeira grande manifestação realizada

no e contra o Governo FHC. A marcha era uma prova concreta de que os sujeitos Sem Terra tinham capacidade e

poder para se organizar e mobilizar milhares de pessoas. Também, o MST exigia na marcha a punição para os

responsáveis pelo massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás. Na ocasião, participaram diversos artistas e

personalidades nacionais, dentre eles: Chico Buarque de Holanda. Sobre a marcha, ver: CHAVES, Christine de

Alencar. A Marcha Nacional dos Sem Terra: um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2000. 487 Cem mil na capital do Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril/maio de 1997, ano XVIII, n. 199, p. 11. 488 Continuamos em marcha contra o neoliberalismo. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril/maio de 1997, ano XVI, n. 168, p. 2. 489 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato do Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador.

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Imagem 21 – Continuamos em marcha contra o neoliberalismo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril/maio de 1997, ano XVI, n. 168, p. 2.

A charge evidencia a Marcha Nacional do MST. Mais de cem mil pessoas em Brasília

para reivindicar reforma agrária, emprego e justiça. Milhares de pessoas – trabalhadores do

campo e da cidade, jovens, crianças e adultos – formam na imagem o mapa do Brasil, em

movimento, marchando para frente. Os corpos das pessoas evidenciam que elas faziam muita

força e que o caminhar não estava fácil. Entre as pessoas há bandeiras do MST erguidas e

duas faixas com os seguintes dizeres: Reforma Agrária Já e Neoliberalismo: Basta! À frente

dessas pessoas há alguém parado, com o braço direito levantado e as mãos abertas,

gesticulando para que elas parem. Esse alguém é o presidente FHC. Diante de tantas pessoas

vindas em sua direção, FHC está tenso e assustado, com o rosto suando. Com a charge, o

MST procurava representar que o presidente era o defensor do neoliberalismo no Brasil e que

se tornava um obstáculo frente aos trabalhadores.

Mas, porque o Movimento representava FHC como neoliberal? Quais aspectos e ações

de seu governo que o caracterizavam com esse rótulo? De fato, as ações do presidente eram

de cunho neoliberal? Será que FHC se considerava neoliberal? Entre o primeiro e o segundo

mandatos do presidente, diversos estudiosos publicaram textos qualificando o governo FHC

como neoliberal. Entre esses está o livro organizado por Ivo Lesbaupin, intitulado O

Desmonte da Nação: balanço do Governo FHC490. Algumas revistas científicas como Tempo

Social491 e Praga492 também lançaram dossiês específicos com textos que buscavam traçar o

490 LESBAUPIN, Ivo. O Desmonte da Nação: balanço do Governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999. 491 Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo. V. 11, nº 2, fevereiro de 2000. 492 Praga – estudos marxistas. São Paulo. Editora Hucitec. nº 2, 1998.

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perfil do governo FHC. Após os seus dois mandatos, além dos textos citados, inúmeras teses,

dissertações, livros e artigos científicos se debruçaram a entender o governo FHC e suas

orientações políticas e econômicas493.

Talvez, o livro que tenha sido mais incisivo na classificação de FHC e seu governo

como neoliberais foi: O Desmonte da Nação: balanço do Governo FHC. A obra foi escrita

com um objetivo: deslegitimar e denunciar as ações políticas e econômicas do governo FHC,

em seu primeiro mandato. Com contribuição de diversos autores e reflexões sobre várias áreas

tais como: Constituição; política econômica; distribuição de riqueza e renda; seguridade

social; produção e emprego; educação; políticas públicas para o campo; mídia, dentre outras,

o livro enfatiza a visão de que FHC e seu governo quase desmontaram o país em prol dos

assuntos que interessavam às elites, mas iam contra os trabalhadores. Apesar de ter um

direcionamento quanto às reflexões, o livro se torna interessante para se compreender o

funcionamento e o perfil político e econômico do governo FHC. O desmonte ao qual se refere

o título se iniciou com o governo Collor na década de 1990 e se ampliou com FHC, a partir do

desenvolvimento do ideário neoliberal.

Na seção Estudo, da edição de maio de 1995 do jornal, o MST elenca as “propostas

neoliberais do governo FHC” para o Brasil. Essas “propostas” giravam em torno da ação do

presidente de enviar para o Congresso emendas visando mudanças na Constituição. As

emendas deveriam ser apreciadas e votadas, em separado, pelos deputados e senadores, tendo

como requisito para sua aprovação o voto favorável de 3/5 de todos os deputados e senadores.

As mudanças, até aquele momento, propunham alterações quanto à previdência social; quebra

do monopólio do petróleo; privatizações das telecomunicações e companhias mineradoras;

desnacionalização de transportes nos rios do país e introdução do Exame Nacional dos Cursos

Superiores. O MST era contrário às propostas citadas e criticava o governo por “apenas abrir

as portas de nossa economia aos interesses internacionais”494. Nas representações do MST,

FHC estava aliado às multinacionais e não queria resolver os problemas econômicos e sociais

do Brasil.

493 Dentre eles, destaca-se: FALEIROS, Vicente de Paula et al. A Era FHC e o Governo Lula: transição?

Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2004; FAUSTO, Sérgio. Modernização pela via Democrática.

In: FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Edusp, 2012. p. 467-566; NOBRE, Marcos.

Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013;

PAULINO, Luís Antonio. O Plano Real e os dois Governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 / 1999-

2002). In: PIRES, Marcos Cordeiro (Org.). Economia e Sociedade: da Colônia ao Governo Lula. São Paulo:

Saraiva, 2010. p. 281-309; SALLUM JR, Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo.

Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo. V. 11, nº 2, p. 23-47, fevereiro de 2000; _____. A

condição periférica: o Brasil nos quadros do capitalismo mundial (1945-2000). In: MOTA, Carlos Guilherme

(Org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000. p. 405-437. 494 As propostas neoliberais do governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1995, ano XIV, n. 147, p. 3.

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As mudanças de artigos da Constituição realizadas por FHC e seu governo foram

muito debatidas e criticadas pelo MST. No caso, a partir de suas alianças políticas, em

especial, com o PFL e parte substancial do PMDB, a maioria parlamentar estava garantida

para aprovar as emendas que fossem necessárias às pretensões do governo. Na visão de

Marcos Nobre, a composição e as alianças entre PSDB, PFL e PMDB se caracterizavam

como a “aliança do real”. Sendo assim:

[...] o Governo FHC pôde implantar uma estratégia de gerenciamento

político em que demarcou previamente os limites das negociações no

Legislativo, excluindo, de um lado, o cerne do plano de estabilização e, de

outro, concentrando no Congresso os procedimentos de sintonia fina, as

compensações, negociações ou recuos das iniciativas tomadas, incluindo-se

aí a barganha partidária e os movimentos dos diversos lobbies ali

representados495.

No que tange às mudanças constitucionais realizadas no governo FHC, Fábio Konder

Comparato compreende que a “alma” da Constituição estava morrendo. Além disso, faz

questão de nomear os “assassinos”: “É o conjunto dos poderes da República, sem exceção

alguma: o executivo como autor principal, eficazmente acolitado pelo Congresso Nacional; os

tribunais superiores, liderados pelo Supremo, com o acumpliciamento solícito do Procurador-

Geral da República”. Nessa direção, elenca que a Constituição, para o Congresso Nacional,

valia “menos que uma lei ordinária”. Para Comparato, o presidente FHC, além de ter o poder

absoluto, também foi legislador: “o volume de medidas provisórias editadas e reeditadas, a

maior parte delas sem a menor relevância ou urgência, já ultrapassa largamente o número de

leis votadas pelo Congresso Nacional, desde a promulgação da Constituição”. Ainda, segundo

o autor: “mais de 80% dos projetos de leis aprovadas pelo Congresso foram de iniciativa do

Presidente da República”496.

Argelina Figueiredo, Fernando Limongi e Ana Luiza Valente também analisam que,

no governo FHC, funcionou um sistema decisório que se caracterizava pela forte

concentração de poder nas mãos do presidente e dos líderes partidários no Congresso.

Considerando a governabilidade, os parlamentares faziam valer a agenda do legislativo e do

executivo. Assim, “o governo Fernando Henrique Cardoso foi dotado de alta capacidade

decisória. O sistema institucional em que se apoiava garantia a dominância do Executivo na

495 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p. 87. 496 COMPARATO, F. K., Réquiem para uma Constituição, p. 16-20.

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produção legal e um alto grau de sucesso na aprovação de sua agenda legislativa”497. As

decisões se restringiam aos parlamentares e ao executivo, não havendo diálogo com a

sociedade.

Ao propor mudanças na Constituição, FHC e sua equipe de governo encapavam algo

maior, uma reforma de Estado. Como programa de governo, essa reforma tinha como questão

central o desmonte do modelo nacional-desenvolvimentista. Ou, como disse Brasilio Sallum

Jr., o rompimento com a “era Vargas” e a ênfase ao “liberalismo econômico”. A Era Vargas –

expressão metafórica de um sistema enraizado na sociedade e na economia que se perpetuou

por mais de meio século na vida política brasileira –, teve início nos anos de 1930 e atingiu

seu ápice nas décadas de 1940 e 1950. O Estado possuía o papel de “organizador” da

sociedade brasileira e alavancava o capitalismo industrial no país. Isto é, o Estado era

desenvolvimentista, central para o desenvolvimento do país, não tendo grandes interferências

do capital internacional498. De forma resumida, Sallum Jr., destaca as principais ações do

governo FHC que visavam a “liquidar” a Era Vargas e dar ênfase ao liberalismo econômico.

[...] o Governo Cardoso buscou com perseverança cumprir o propósito de

liquidar os remanescentes da Era Vargas, pautando-se por um ideário

multifacetado, mas que tinha no liberalismo econômico sua característica

mais forte. Salvo engano, o núcleo dessa perspectiva pode ser resumido

neste pequeno conjunto de preposições: o Estado não cumpriria suas funções

empresariais, que seriam transferidas para iniciativa privada; suas finanças

deveriam ser equilibradas e os estímulos diretos dados às empresas privadas

seriam parcimoniosos; não poderia mais sustentar privilégios para categorias

de funcionários; em lugar das funções empresariais, deveria desenvolver

mais intensamente políticas sociais; e o país teria que ampliar sua integração

com o exterior, mas com prioridade para o aprofundamento e expansão do

Mercosul499.

Além de romper com o nacional-desenvolvimentismo, a reforma do Estado também

era uma opção macroeconômica. FHC tinha uma concepção explícita de que o Brasil devia se

abrir para o mundo. Nesse sentido, as reformas do Estado brasileiro atrelavam-se ao

capitalismo mundial. Com as ações políticas e econômicas do governo FHC, Octavio Ianni,

em entrevista a revista Caros Amigos, no final do segundo mandato do presidente, enfatiza

que FHC havia transformado o Brasil “numa província do capitalismo mundial” e que o

497 FIGUEIREDO, A. C; LIMONGI, F; VALENTE, A. L., Governabilidade e Concentração de Poder Institucional –

o Governo FHC, p. 50. 498 SALLUM JR, B., O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo, p. 25. 499 SALLUM JR, B., O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo, p. 31.

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“neoliberalismo estava administrando o mundo”500. As observações de Ianni são pautadas na

perspectiva de que FHC e seu governo romperam com um modelo de desenvolvimento

nacional e abriram a economia do país para as corporações transnacionais; e essa opção

deixaria a economia do país sob o jugo do mercado e do capital internacional. A concepção de

“província” atestava que as grandes potências econômicas mundiais tinham uma relação de

domínio sobre o Brasil.

A mudança de alguns artigos da Constituição visava à abertura da economia ao capital

internacional, como por exemplo, inferir tratamento igual às empresas de capital nacional e

estrangeiro (até então a Constituição dava tratamento diferenciado às empresas nacionais). De

acordo com Vicente de Paula Faleiros, abriu-se a economia para o capital estrangeiro a partir

do “marco legal constitucional”501. A abertura econômica se pautava, sobretudo, na

estabilidade econômica.

Aliás, devido às experiências traumáticas de hiperinflação dos governos anteriores, no

governo FHC, diversas ações e questões (tanto boas como ruins) eram explicadas e

legitimadas em nome da estabilidade econômica, ou do Plano Real502. A abertura econômica

foi sustentada basicamente pela alta dos juros e pela taxa de câmbio, no qual o valor do Real

foi semelhante e, em alguns momentos, até maior que o dólar. Para se ter uma noção, nos

primeiros seis meses do governo FHC, o Real chegou a valer mais que o dólar. Essa ação, de

início, foi útil para derrubar a inflação e colocá-la em trajetória de queda.

No que se refere ao cerne do Plano Real, conforme Paul Singer, ele alcançou pleno

êxito, pois seu grande efeito foi o “fim daquela inflação imensa, que destruía a memória dos

preços do consumidor, tornava todos os mercados monopólicos e impunha aos brasileiros

total insegurança quanto ao valor de seus rendimentos, despesas, créditos e débitos”503. O

sucesso do Plano Real fez com ele passasse a ser considerado uma espécie de “vaca sagrada”

da política econômica brasileira. “Sua preservação passou a razão de ser da política

macroeconômica de todos os governos seguintes”504. Ressalta-se que, ao priorizar a

estabilidade econômica e a abertura do país ao capital internacional, outras questões

500 IANNI, O., Esse governo fez do país uma província do capital mundial, p. 30-31. 501 FALEIROS, V. de P., A Reforma do Estado no período FHC e as propostas do Governo Lula, p. 40. 502 Sobre o Plano Real e o Governo FHC, ver: PAULINO, Luís Antonio. O Plano Real e os dois Governos de

Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 / 1999-2002). In: PIRES, Marcos Cordeiro (Org.). Economia e

Sociedade: da Colônia ao Governo Lula. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 281-309; SINGER, Paul. A Raiz do

Desastre Social: a política econômica de FHC. In: LESBAUPIN, Ivo (Org.). O Desmonte da Nação: balanço do

Governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 25-44. 503 SINGER, P., A Raiz do Desastre Social: a política econômica de FHC, p. 32-33. 504 PAULINO, L. A., O Plano Real e os dois Governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 / 1999-

2002), p. 286.

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relevantes para o desenvolvimento do país ficaram em segundo plano, por exemplo: emprego,

crescimento, distribuição de renda. Em algumas áreas, como a de geração de empregos, os

efeitos da política macroeconômica foram perversos, gerando muitas críticas ao governo. No

transcorrer desse capítulo serão abordados alguns desses efeitos.

Algo muito debatido e criticado pelo MST foi a política de privatizações do governo.

Na perspectiva do MST, as privatizações foram consequências do modelo neoliberal de FHC,

que entregou o patrimônio público para os grupos econômicos internacionais. Conforme o

Movimento, avaliando as ações do governo, “privatizar tornou-se uma palavra mágica para

resolver os problemas do país. Na verdade, todos estavam fazendo o jogo das multinacionais e

do governo, contra os interesses do povo”505. Ao longo dos mandatos do presidente, o

Movimento utilizava de forma recorrente o Jornal Sem Terra para lembrar os leitores que

FHC estava entregando o patrimônio público aos grandes grupos internacionais.

Na capa do jornal, da edição de agosto de 1998, estampava-se: FHC entrega a

Telebrás ao capital estrangeiro506.

Imagem 22 - Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1998, p. 1.

Editor responsável: Nilton Viana

505 Um Governo cada vez mais antipopular. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1995, ano XIV, n. 148, p. 2. 506 FHC entrega a Telebrás ao capital estrangeiro. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1998, ano XVII, n. 181, p. 1.

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Com a observação da capa exposta, nota-se, após 17 anos de existência, o

desenvolvimento considerável na editoração/diagramação do Jornal Sem Terra. Semelhante à

manchete na capa, frases como “os neoliberais querem destruir o patrimônio brasileiro” eram

recorrentes nos editoriais e matérias do periódico. Esse discurso sempre se repetia no jornal,

não trazendo novos elementos quanto ao tema. O presidente era visto como “entreguista” e

“irresponsável”, e que colocava em jogo a soberania nacional. Sobre a privatização da

Telebrás (Telecomunicações Brasileira), o Movimento salienta:

O Governo FHC, dando prosseguimento à sua política econômica de abrir o

mercado brasileiro e entregar as empresas estatais aos capitalistas

estrangeiros, privatizou a Telebrás – maior empresa estatal do país. O leilão

aconteceu em 29 de julho, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.

Sem ouvir o povo brasileiro, FHC bateu o martelo e revelou, mais uma vez,

a verdadeira cara do seu Governo totalmente comprometido com as elites

internacionais. Traiu mais uma vez os interesses populares e nacionais. Os

grupos estrangeiros, especialmente os espanhóis, portugueses e americanos

abocanharam a maior fatia na privatização507.

A política de privatizações de FHC, nas representações do MST, teria a ver com o

comprometimento do presidente “com as elites internacionais”. Ao abrir a economia para o

capital internacional e entregar o patrimônio público, FHC traía o povo e confirmava a face

do seu governo: elitista. A privatização, por exemplo, da empresa mineradora Companhia

Vale do Rio Doce (CVRD), no dia 06 de maio de 1997, gerou repercussão nacional, pois se

tratava de uma empresa histórica e considerada uma joia do patrimônio público brasileiro,

fundada em 1942, no governo de Getúlio Vargas. O MST e outros movimentos sociais

fizeram manifestações nas ruas contra a privatização da Companhia e, no dia de sua

privatização, cerca de cinco mil manifestantes contrários à privatização foram às imediações

da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro protestar. Na ocasião, houve momentos de tensões e

confrontos entre parte dos manifestantes com cerca de seiscentos policiais militares que

faziam a segurança do local.

O PT, o PDT e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) chegaram a mover ações judiciais

contra a privatização da empresa, alegando inconstitucionalidade no ato, pois se baseava em

uma Medida Provisória que autorizava a venda de até 100% do controle das empresas

privadas para estrangeiros. Os partidos contrários à privatização alegavam que a

regulamentação desse processo deveria ser feita por Emenda Constitucional e não por um

507 Governo privatiza a maior estatal do país. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1998, ano XVII, n. 181, p. 13.

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decreto do presidente da República. Mesmo diante de tantas manifestações contrárias, seja nas

ruas, seja por meio de ações judiciais, a CVRD foi vendida. No Jornal Sem Terra foram

constantes as denúncias e críticas em torno da privatização da CVRD508. Um mês após a

venda da Companhia, o título do editorial do periódico era: A cara desse governo.

Privatização caracterizava a face de FHC e seu governo.

Na propaganda escandalosamente enganosa, o governo afirmava que a venda

da Companhia Vale do Rio Doce traria maiores recursos para a área social.

Agora, depois de vender a Vale, os partidos que dão sustentação a FHC

dizem nos meios de comunicação que o país vai mal porque o governo gasta

mais do que arrecada e que os responsáveis por esses gastos são os

funcionários públicos. Daqui a pouco restará, como única alternativa, culpar

o povo brasileiro509.

O Movimento explicitava que as privatizações, de uma maneira geral, não traziam

benefícios para a área social, conforme divulgado pelo governo. Pelo contrário, estava

havendo uma verdadeira mutilação do patrimônio público em favor dos grupos econômicos

internacionais. Assim, a Direção Nacional do MST questionava: “Quem ganhou a Vale do

Rio Doce?”. O termo “ganhou” revela que a CVRD foi, de certa forma, dada ao Consórcio510

que adquiriu sua compra, pois o valor da venda foi abaixo do que os especialistas no ramo

previam511. Para o MST, esse processo revelava “a grande aliança que representa o governo

FHC, pois os compradores/ganhadores conformam um consórcio que junta o capital

financeiro brasileiro (Bradesco), os bancos estrangeiros e multinacionais e o grande capital

nacional”512. A expectativa da Direção Nacional do MST era que a privatização da Vale do

Rio Doce fosse revista e ela voltasse a ser patrimônio público, o que não aconteceu.

Outra ação do governo FHC que gerou muitas críticas do MST foi a aprovação da

flexibilização do monopólio do petróleo da União. Isto é, a possibilidade de empresas

508 Destacam-se as matérias: A Vale não se vende. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1996, ano XV, n.

164, p. 3; MST se mobilizará contra a privatização da Vale. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1997, ano

XV, n. 165, p. 13; Cresce a mobilização da sociedade. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 1997, ano XVI,

n. 166, p. 16; Privatização da Vale: a negociata do século. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 1997, ano

XVI, n. 166, p. 17; Crescem mobilizações contra privatização. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril/maio de 1997,

ano XVI, n. 168, p. 18. 509 Em defesa da Petrobrás. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1998, ano XVI, n. 177, p. 9. 510 A CVRD foi adquirida pelo Consórcio Brasil, liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional, do empresário

Benjamin Steinbruch. 511 O Consórcio que adquiriu a CVRD pagou o valor de R$ 3.338.178.240,00. De acordo com uma reportagem

do jornal Brasil de Fato, assinada por Maíra Kubík Mano, a estimativa era que a empresa valia perto de R$100

bilhões. Ver: MANO, Maíra Kubík. Justiça reconhece fraude na privatização da Companhia Vale do Rio Doce.

Brasil de Fato. 18 de setembro de 2006. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/13191. Acesso

em: 18/04/2014, às 11h14min. 512 Quem ganhou a Vale do Rio Doce? Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 13.

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internacionais gerirem e atuarem em plataformas e refinarias da Petrobrás (Petróleo Brasileiro

S. A.). Em março de 1998, na seção do jornal intitulada Projeto Popular para o Brasil, o

Movimento publicou um texto do engenheiro da Petrobrás, José Conrado de Souza, sobre essa

questão. O discurso do engenheiro vai ao encontro do que o MST queria representar aos seus

integrantes, por isso sua publicação foi de interesse da Direção Nacional. Nele, Souza

destacava: “o monopólio do petróleo sempre foi da União. É do Estado brasileiro. Ele é seu. É

do cidadão. É de 160 milhões de brasileiros. É nosso, de nossos filhos, de nossos netos.

Temos a obrigação de deixar para eles um país rico e não uma terra saqueada”513. Contudo,

FHC, com suas políticas de privatização, “destruía” as empresas nacionais. Acompanhando o

texto, a charge de autoria de Luscar representava a relação de FHC com as empresas

brasileiras.

Imagem 23 – Em defesa da Petrobrás

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1998, ano XVI, n. 177, p. 9.

A charge é bem elucidativa quanto às representações do MST sobre FHC e as

privatizações em seu governo. Na imagem, FHC, com a faixa de presidente, um sorriso

amarelo (meio acanhado), braços estendidos para frente, diz, diante de um homem, o

seguinte: “O petróleo é vosso!”. A posição dos braços estendidos para frente indica que FHC

está entregando o patrimônio nacional aos grupos estrangeiros. O homem à frente de FHC,

fumando um charuto e esboçando um sorriso sarcástico, de satisfação, representa uma

513 Em defesa da Petrobrás. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1998, ano XVI, n. 177, p. 9.

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multinacional do EUA, haja vista que usa uma cartola (símbolo do Tio Sam) e veste roupas

listradas (alusão à bandeira do país).

Algo implícito na charge e que se torna relevante para pensar nas concepções

ideológicas do MST é o fato de FHC estar dizendo ao capital internacional que o petróleo

(empresa nacional) é “vosso”, dele. Ou seja, não era “nosso”, do povo brasileiro. Para o MST,

as privatizações eram inconcebíveis, ou como disse Comparato, em entrevista à revista Caros

Amigos: FHC cometia um “crime de lesa-pátria” ao Brasil514. O presidente agia de forma

contrária aos interesses do país, privilegiando grupos econômicos internacionais. Na

perspectiva da Direção Nacional do Movimento, patrimônio nacional era do povo e sendo do

povo não deveria ser explorado por empresas estrangeiras. Nota-se, então, uma visão

nacionalista do MST – o capital internacional não devia interferir no gerenciamento e

desenvolvimento interno do país. Ainda sobre a charge, FHC é personificado como o

presidente que entregava o patrimônio público às elites econômicas internacionais. A ação era

do governo, mas é FHC quem aparece personificado na charge.

Enquanto o MST representava as privatizações como o ato de entregar o patrimônio

público ao capital internacional, o que era considerado um absurdo e um crime contra o país,

o presidente justificava as ações do seu governo como necessárias para o desenvolvimento do

Brasil. Em entrevista concedida a Álvaro Pereira, realizada no final do seu segundo

mandato515, FHC observava que as privatizações se deram porque “o Estado não tinha

recursos para ampliar os investimentos nos setores básicos” e o Brasil necessitava “expandir

sua infra-estrutura, modernizar-se, adquirir novas tecnologias. Ao mesmo tempo, era preciso

evitar que a dívida explodisse”. Nesse sentido, o presidente não tinha dúvida quanto aos

benefícios das privatizações e as encarava como se elas fossem a solução para alguns setores

no país.

À parte os ruídos de origem política, a privatização foi tranquila, limpa, feita

absolutamente dentro das regras do mercado. Tudo que se diz maldosamente

a respeito é exploração política, porque não tem nada a ver com a

privatização em si. Tem a ver com operações em setores privados, e não do

Estado, que só ganhou nesse processo. A Rede Ferroviária Federal, por

exemplo, que se considerava inviável, impraticável, impossível, não só foi

privatizada como está sendo revitalizada. Depois de anos, décadas de

desleixo, a Rede de Ferroviária hoje só funciona graças à privatização516.

514 COMPARATO, F. K. Uma aula de democracia, p. 33. 515 Nessa entrevista não foi abordado o tema reforma agrária e MST, o que demonstra por parte do entrevistador

e entrevistado uma fuga e negação sobre o tema, que, na época, teve grande repercussão nacional. 516 CARDOSO, F. H. Entrevista, p. 284.

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É sintomático, nas palavras de FHC, que as privatizações eram estratégicas em seu

programa de governo. Ao dizer que elas foram “tranquilas” e realizadas a partir das “regras de

mercado”, o presidente confirma sua crença na iniciativa privada, em especial, na atração de

capitais estrangeiros e na competição internacional. Ou seja, a abertura econômica centrava-se

nos moldes do capitalismo internacional, ideia que o presidente defendia ainda nos tempos em

que se dedicava à academia. FHC foi enfático ao dizer que o Estado “só ganhou nesse

processo”, e que algumas áreas e setores só funcionavam “graças à privatização”.

O programa de privatizações de FHC também foi estratégico para o rompimento do

modelo nacional-desenvolvimentista, as empresas nacionais deixaram de ser os pilares do

desenvolvimento nacional, como na Era Vargas. No governo FHC, o Estado deixava “de ser

fundamental, pois o fundamento é mesmo o mercado. Cabe-lhe apenas um papel

complementar”517. O Estado devia se “concentrar na preservação da concorrência, através da

regulação e fiscalização das atividades produtivas, principalmente dos serviços públicos (mas

não estatais)”518. Assim, criaram-se as Agências Reguladoras, como: Agência Nacional de

Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Águas (ANA), Agência Nacional de

Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT),

dentre outras.

Ao estimular o investimento do capital privado no país, o governo FHC diminuía o

papel do Estado na economia, transformando-o em um agente do mercado internacional.

Nessa perspectiva, a política econômica não favorecia os interesses nacionais, o que colocava

o conceito de soberania nacional em segundo plano, de acordo com Faleiros. “O conceito e a

implementação da soberania nacional, enquanto capacidade do Estado em definir seu próprio

destino de acordo com os interesses de seus cidadãos e através do processo de representação

por estes estabelecido, foi posto em segundo plano”519. Ainda sobre as privatizações, um dos

discursos do governo era o de que os recursos arrecadados seriam utilizados para lutar contra

o déficit, ou seja, para amortizar a dívida pública. Contudo, do ponto de vista

macroeconômico, nada mudou. Pelo contrário, o déficit público aumentou, tanto o da União,

quanto o dos estados e municípios520.

517 FALEIROS, V. de P., A Reforma do Estado no período FHC e as propostas do Governo Lula, p. 51. 518 SALLUM JR, B., O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo, p. 33. 519 FALEIROS, V. de P., A Reforma do Estado no período FHC e as propostas do Governo Lula, p. 42. 520 Sobre essa questão, ver: SINGER, Paul. A Raiz do Desastre Social: a política econômica de FHC. In:

LESBAUPIN, Ivo (Org.). O Desmonte da Nação: balanço do Governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 25-44;

FALEIROS, Vicente de Paula et al. A Era FHC e o Governo Lula: transição? Brasília: Instituto de Estudos

Socioeconômicos, 2004; FAUSTO, Sérgio. Modernização pela via Democrática. In: FAUSTO, Boris. História

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Por essas opções políticas e econômicas, o governo FHC foi considerado de caráter

neoliberal. Sallum Jr. visualiza que, no governo FHC, houve uma “adoração” ao

neoliberalismo como eixo de sua política macroeconômica521. Outros autores já citados como

Singer, Paulino, Faleiros, Nobre, dentre outros, também entenderam que FHC optou e

desenvolveu as políticas neoliberais no Brasil. Todavia, para outros estudiosos, o presidente

não privilegiou o neoliberalismo como política macroeconômica.

Sergio Fausto, por exemplo, entende que as medidas de FHC foram para “blindar” a

área econômica contra as pressões políticas. Em sua visão, o presidente adotou uma “agenda

liberal”, com uma orientação “socialdemocrata”. Esse liberalismo era brando e restrito às

formas de participação do Estado na economia, “não implicando a reorganização (e redução)

dos serviços sociais prestados pelo Estado, como tipicamente ocorreu na Inglaterra, sob os

governos de Margareth Thatcher”. Assim, para o governo, “tratava-se de reduzir o peso da

intervenção direta do Estado na economia para fortalecer a sua capacidade de atuação na área

social”. Nesse sentido, Fausto destaca que a “oposição” é que rotulava FHC como neoliberal

e que, na tradição política brasileira, pesava sobre o liberalismo a ideia de que este era

insensível às causas sociais e estava associado apenas aos interesses dos grandes grupos

estrangeiros. O autor observa que as oposições, em especial, o PT, exploravam esses

elementos para descaracterizar o governo FHC, como se fosse um governo neoliberal e

submisso aos interesses de empresas e bancos internacionais522. Enfim, na compreensão de

Fausto, FHC não vestiu o “figurino neoliberal” e nem foi submisso aos interesses

estrangeiros.

Alain Touraine, sociólogo francês mundialmente conhecido, também teve uma visão

distinta de tantos outros intelectuais brasileiros sobre FHC e seu governo. Em seu texto

publicado na revista Tempo Social, avisa prontamente aos leitores que suas concepções

poderiam surpreendê-los, pois eximiam FHC de muitas críticas pelas quais o presidente era

bombardeado, como o fato de ele “ter abandonado suas ideias” e ter “aceitado a ditadura do

mercado”. Para Touraine, era um erro criticar FHC por esse viés. O autor visualiza também o

governo FHC como positivo para o país, sobretudo, no que se refere à consolidação da

democracia.

do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Edusp, 2012. p. 467-566; NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da abertura

democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 521 SALLUM JR, B., O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo, p. 23. 522 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 481-482.

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Touraine entende como importante a reforma do Estado proposta por FHC, tocando

em questões amplas como reforma da previdência e do funcionalismo público de maneira

geral. Defende que FHC não era um neoliberal, posto que o Brasil voltava-se muito mais para

si do que para o estrangeiro. Nessa perspectiva, explica que, no contexto em que FHC

governou o país, foi “obrigado a levar uma política técnica que, de fato, deixava para mais

tarde o tratamento dos grandes problemas sociais”523. Ou seja, justifica o fato de o governo

FHC não ter dado tanta atenção à questão social do país, uma vez que o momento era técnico,

de estabilização da economia. Touraine visualiza FHC como o presidente que introduziu um

“novo Brasil” no cenário internacional.

E o presidente? Ele se considerava neoliberal? Na entrevista concedida a Álvaro

Pereira, FHC sublinha que as modificações constitucionais se fizeram necessárias para dar

“um sinal de contemporaneidade ao Brasil”. E, o programa de estabilização da economia de

seu governo foi indispensável para colocar o Brasil “em ordem”. Caso se analisem as ideias

do presidente sob o prisma do pesquisador acadêmico, tais questões não são surpresa, pois

FHC nunca escondeu seu apoio ao desenvolvimento do país nos moldes capitalistas,

caracterizados pela abertura da economia ao mundo globalizado e pelo incentivo à

competitividade. Sobre o rótulo de neoliberal, FHC o refuta, e elenca que seu governo não foi

neoliberal e nem destruiu o Estado. Assim, disse: “essa coisa que falavam de que o governo

era neoliberal, e nem falam mais porque não é verdadeiro. Eu dizia sempre: “Neobobismo”

porque? Porque nós nunca destruímos o Estado. Nós reconstruímos o Estado mais apto”524.

Esse “Estado mais apto” de que fala o presidente é o “Estado moderno”, integrado ao mundo

e mercado globalizados. FHC se considera moderno e contemporâneo, e não neoliberal.

Mudanças em artigos na Constituição, privatizações e abertura do país ao mercado

internacional são representadas pelo MST como uma estratégia dos grupos dominantes, com o

apoio de FHC, para fortalecer o neoliberalismo no Brasil. No transcorrer dos dois mandatos

do presidente, o MST teceu críticas ao neoliberalismo e o representava como um inimigo dos

trabalhadores, logo, um projeto das elites (nacionais e internacionais). O interessante nesse

projeto das elites, representado pelo MST, era que o Brasil ocupava um papel de submisso.

Isto é, não tinha o controle e autonomia sobre suas opções políticas e econômicas.

Em diversos textos do Jornal Sem Terra há escritos denunciando que FHC não tinha

controle sobre a política brasileira e que o país ficava à mercê dos grupos econômicos

523 TOURAINE, A., O Campo Político de FHC, p. 13-21. 524 CARDOSO, Fernando Henrique. Entrevista. In: PEREIRA, Álvaro. Depois de FHC. São Paulo: Geração

Editorial, 2002. p. 283-294.

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internacionais. No editorial de outubro de 1998, cujo título é: A ditadura moderna do governo

FHC, a Direção Nacional do Movimento relata que, com FHC, o Brasil “estava de joelhos,

submisso aos interesses do capital internacional e financeiro”. Por esse viés, o presidente

demonstrava “como perdemos nossa soberania nacional” que levava “a economia ao caos”525.

A charge desse editorial representa que essa “ditadura moderna do governo FHC” foi

construída pelos grupos econômicos internacionais, em especial, pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI).

Imagem 24 – A ditadura moderna do governo FHC

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 2.

A publicação desse editorial ocorreu após as eleições presidenciais de 1998, nas quais

FHC se reelegeu ainda no primeiro turno. Para o Movimento, FHC se reelegeu de forma

“roubada”, devido às falcatruas do presidente e sua equipe de governo. Assim, dizia: “A

forma com que o governo ganhou as eleições lhe tirou a credibilidade e legitimidade.

Ganharam a taça, mas com um pênalti roubado!”. A comparação com um jogo de futebol,

talvez, tenha sido pelo fato de em 1998 haver ocorrido a Copa do Mundo de Futebol,

realizada na França. Acrescente-se que a aprovação pelos parlamentares da Emenda

Constitucional nº 16, de 4 de junho de 1997, que autorizava a reeleição para cargos do

executivo foi representada pelo MST como “mais uma manobra imperialista”, é o que diz o

editorial de janeiro de 1997. Essa “manobra imperialista” era arquitetada pelos EUA e por

FHC; submisso, apenas seguia as orientações como um fantoche. Para o MST, o imperialismo

525 A ditadura moderna do Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 2.

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(EUA) ditava “as normas de funcionamento dos regimes políticos dos países do terceiro

mundo de acordo com as conveniências econômicas e políticas”526.

A charge mencionada, de autoria de Luscar, traz a representação do Brasil como um

país sem autonomia para traçar seus próprios caminhos. Nela, dois personagens comemoram

as eleições presidenciais de 1998: FHC (presidente eleito) e um representante do capital

internacional. Esse representante internacional é associado ao EUA, como se pode perceber

pela cartola, que lembra o Tio Sam, e por sua vestimenta, que faz alusão à bandeira do país.

Com seu cigarro na boca, braço esquerdo levantado e com os dedos simbolizando o “V” (de

vitória), o representante do capital internacional revela um olhar de muita felicidade. Ao

contrário, FHC, que também faz um gesto que simboliza o “V” da vitória, expressa uma

aparência de vergonha perante a situação. Em sua face há um sorriso amarelo (falso),

indicando certa tensão. O contraste de feição entre os dois personagens na imagem se refere

ao fato de eles estarem envoltos na mesma faixa de presidente em que se vê a sigla FMI. FHC

e o representante do capital internacional estão amarrados na mesma faixa, o que significa

que os dois governariam o país.

A sigla FMI na faixa presidencial era pelo fato de essa organização internacional,

criada em 1944 e com sede em Washington, nos Estados Unidos, ter tido grande influência

nas questões econômicas e financeiras do Brasil. O Governo FHC recorreu algumas vezes a

essa organização para solicitar empréstimos527. O FMI regulava e atuava diretamente no

funcionamento do sistema financeiro mundial, em especial, nos países tidos como periféricos.

Por mais que fosse uma organização internacional, o EUA tinha proeminência nas decisões

que envolviam as ações do FMI e, na representação do MST, integrado ao FMI, o Brasil se

tornava dependente e submisso. Ainda sobre a charge, no lado direito da imagem e ao fundo

dos personagens aparece um muro pichado com a seguinte frase: “O Brasil é nosso”. Logo

abaixo há a assinatura do autor da frase: “Bill Clinton”, presidente dos EUA. Isto é, o Brasil

526 Reeleição: mais uma manobra imperialista. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1997, ano XV, n. 165, p.

6. Em outros editoriais e matérias do Jornal Sem Terra havia textos criticando e denunciando FHC e seu governo

por propor a reeleição para cargos do executivo. Para o MST, a reeleição foi “comprada” pelo governo FHC. Ou

seja, a partir de negociações ilícitas, o governo comprou votos de parlamentares para aprovar a Emenda

Constitucional que autorizava a reeleição. Em matéria publicada na edição de junho de 1997 do Jornal Sem

Terra, o Movimento dizia que o “presidente pagou caro pela reeleição” (p. 10), e denuncia o suposto esquema da

compra de votos. O presidente FHC defendeu que o tema da reeleição foi decidido em 1997 e que todas as

pesquisas de opinião eram favoráveis. Em suas palavras: “a tese da reeleição era sustentada por todo mundo”

(CARDOSO, 2002, p. 289). O presidente negou veemente que a suposta compra de votos era invenção da

oposição e dos contrários a proposta. 527 Ver: NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo:

Companhia das Letras, 2013; PAULINO, Luís Antonio. O Plano Real e os dois Governos de Fernando Henrique

Cardoso (1995-1998 / 1999-2002). In: PIRES, Marcos Cordeiro (Org.). Economia e Sociedade: da Colônia ao

Governo Lula. São Paulo: Saraiva, 2010.

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era dos EUA, ou melhor, os EUA eram quem decidiam os caminhos e decisões

macroeconômicas do país.

Outra charge significativa sobre a submissão de FHC aos grupos econômicos

internacionais, em especial, ao FMI, foi publicada no editorial de abril de 1999.

Imagem 25 – FHC: um governo sem moral

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1999, ano XVII, n. 188, p. 2.

De início, destaca-se a carga intensa de humor e ironia que contém a charge, cujo

autor é Luscar. O editorial que ela ilustrava tinha o seguinte título: FHC: um governo sem

moral. Esse editorial faz análise crítica do Governo, apontando as privatizações, o arrocho

salarial do funcionalismo público, os cortes para área social e as restrições de direitos

trabalhistas como frutos do modelo neoliberal. A tal “modernidade” ou “utopia viável” que

FHC defendia, para o MST, era crise e caos social, pois estava alicerçada na submissão ao

FMI e ao capital internacional. O presidente é representado como líder de um “governo sem

moral”528.

O cenário da charge é Brasília, Capital Federal, como se pode observar ao fundo o

templo do Congresso Nacional. Em uma sala, provavelmente, no gabinete da presidência, um

homem sentado e fumando um cigarro, representando o FMI/EUA, dava instruções para o

office boy: “depois do BB você passa na caixa. E nada de fazer hora na rua”. A ironia na

charge estava na representação de que o office boy era o presidente FHC. Com uma

vestimenta descolada (jovem e informal), boné virado para trás, tênis e uma pasta debaixo do

528 FHC: um governo sem moral. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1999, ano XVII, n. 188, p. 2.

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braço direito, FHC escutava atentamente as orientações. A cena é típica de um jovem office

boy que escuta as orientações de seu patrão. No caso, o patrão de FHC era o FMI/EUA.

Explicitamente, o MST aponta que FHC não governava o país, pois quem ditava as ordens era

o FMI/EUA. FHC não passava de um empregado do capital internacional no Brasil.

Outro tema que gerou repercussão no período em que FHC governou o país foi à

adesão do Brasil à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O projeto da Alca foi

proposto para os países da América do Sul em 1994, pelo EUA. A ideia era unir os três blocos

das Américas e construir uma área de livre comércio entre elas. A partir de 1997 o projeto

ganhou força no Brasil, com simpatia de FHC e de sua equipe de governo. Na compreensão

do MST, a adesão do país à Alca tinha interesses bem evidentes: beneficiar a economia norte-

americana e consolidar o domínio dos EUA na América Latina. A partir de 2001, foram

publicados alguns editoriais e diversas matérias explicando as consequências para o Brasil,

caso o país assinasse o acordo da Alca.

Todo mundo sabe que a Alca interessa apenas para a economia norte-

americana e para as multinacionais que querem transformar o mercado latino

americano em um território livre para si, e proteger-se da concorrência da

Europa e da Ásia, onde os Estados Unidos perdem sempre529.

O governo do Estados Unidos fará de tudo para manter sua ofensiva militar,

política, ideológica e econômica, usando a guerra e inclusive o terrorismo de

Estado para manter a hegemonia de suas empresas no mundo. Para nós, da

América Latina, essa ofensiva vem através do Plano Alca530.

Todos sabem que a Alca é mais do que um acordo comercial. Ela é parte de

um plano estratégico das multinacionais e do governo norte-americano para

controlar nossas riquezas, nosso mercado, nossa economia, nossa moeda e

nossa agricultura. Nessa mesma estratégia estão as pretensões dos

americanos de tomarem conta da nossa Amazônia, começando pelo controle

da base de Alcântara. Isso teria consequências gravíssimas na militarização

da Amazônia e no controle da biodiversidade pelas empresas multinacionais

norte-americanas531.

Como se percebe, pelas citações apontadas, para o MST a Alca representava a

expansão das influências e domínios das empresas multinacionais e do governo norte-

americano na América do Sul. Não se tratava apenas de um “acordo comercial”, mas de uma

estratégia de domínio sobre os países latino-americanos. Dizer não à Alca era palavra de

529 Alca é uma ameaça a soberania nacional. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2001, ano XIX, n. 209, p. 2. 530 Lutas e mudanças em 2002. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2002, ano XX, n. 218, p. 2. 531 Arregaçar as mangas contra a Alca. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2002, ano XX, n. 222, p. 2.

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ordem na organização do MST. Em julho de 2002, através de uma charge532 publicada no

Jornal Sem Terra, junto à matéria Vamos derrotar a Alca533, a Direção Nacional do

Movimento sintetiza o que representava a Alca para o Brasil.

Imagem 26 – Vamos derrotar a Alca

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2002, ano XX, n. 222, p. 8.

Essa charge foi publicada em virtude da realização do Plebiscito Nacional da Alca,

realizado no ano de 2002, durante a Semana da Pátria (1 a 7 de setembro). O plebiscito foi

organizado pela Campanha Jubileu Sul/Brasil, que era coordenada por mais de cem entidades

nacionais, inclusive pelo MST. Na ocasião, 41.758 urnas recolheram os votos de 10.149.542

pessoas. O plebiscito contou com o trabalho voluntário de mais de 150 mil pessoas, em 3.894

municípios (de um total de 5.550)534. O resultado do plebiscito foi: 98,35% dos votantes

disseram não à Alca.

A charge mostra um homem com a boca aberta e aparentando estar muito faminto. Sua

face é medonha. Esse homem é a representação do EUA, como se pode perceber por sua

cartola listrada e com estrelas, o que faz alusão à bandeira norte-americana. Em suas mãos

está sua comida, um alimento que tem o formato da bandeira do Brasil. Essa charge remete à

532 Não há assinatura na charge. No Expediente do jornal são mencionados dois colaboradores: Maringoni e

Letícia Barqueta. Nessa edição do periódico há outras charges, algumas assinadas por Maringoni e outras sem

assinatura, todavia, não se pode afirmar que essa imagem seja deste autor. Também, que seja de Letícia

Barqueta. 533 Vamos derrotar a Alca. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2002, ano XX, n. 222, p. 8. 534 Ver: Plebiscito: mais de 10 milhões dizem não a ALCA. Disponível em: http://alainet.org/active/2564&lang=es.

Acesso em: 23/04/2014, às 10h05min.

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imagem 18 (Porque os EUA querem impor o neoliberalismo na América Latina?), analisada

anteriormente neste capítulo, cuja representação era que o EUA devoraria o Brasil. A charge

agora analisada vai ao encontro da representação contida na charge/imagem 18, de que o

EUA, a partir da Alca, devoraria o país. Ou seja, a Alca representava o mal para a América

Latina.

Assinar o acordo da Alca significaria para o Brasil, na visão do MST, submeter-se

ainda mais às empresas multinacionais e ao governo do EUA. Nesse sentido, tratava-se de

uma questão de soberania nacional. Ao avaliar a implementação da Alca na América do Sul,

Corazza mostra visão semelhante à do MST e entende que a Alca ameaçava os direitos

democráticos e a soberania do país, haja vista que sua autonomia em questões econômicas e

políticas poderiam ser questionadas. Sendo assim, colocava “em risco a condição de nação

soberana, apta a desenvolver suas próprias leis e fazer suas opções econômico-sociais”. Em

sua visão, se o acordo fosse assinado pelo Brasil, a Alca tornava “irreversíveis as políticas

neoliberais implementadas na última década nos países da América Latina, que produziram

perdas de direitos, aumento da miséria, desigualdades sociais, precarização do trabalho e do

emprego em todo o continente”535.

Uma das imagens mais elucidativas quanto à representação de que FHC era submisso

ao governo do EUA e aos interesses do capital internacional é a fotografia publicada na

edição de agosto/setembro do jornal, cujo destaque da capa era a seguinte manchete: “O

modelo econômico e o governo FHC estão falidos”536. Na seção Projeto Popular para o

Brasil, o título da matéria que trazia a foto mencionada era: Subserviência aos Estados

Unidos. A matéria elenca diversas questões negativas do Brasil desenvolvidas por FHC e seu

governo: desmatamento da Amazônia, mudanças nos direitos trabalhistas, privatizações,

empréstimos a empresas privadas, racionamento de energia, inflação, violência, desemprego,

concentração da propriedade privada da terra, entre outras537.

535 CORAZZA, G., O MST e um Projeto Popular para o Brasil, p. 105. 536 O modelo econômico e o Governo FHC estão falidos. Jornal Sem Terra. São Paulo, ago./set. de 2002, ano

XXI, n. 223, p. 1. 537 Subserviência aos Estados Unidos. Jornal Sem Terra. São Paulo, ago./set. de 2002, ano XXI, n. 223, p. 10.

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Imagem 27 – Subserviência aos Estados Unidos

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, ago./set. de 2002, ano XXI, n. 223, p. 10.

Essa fotografia, de autoria do repórter fotográfico Lula Marques538, foi produzida

durante o encontro anual do G-8 (grupo dos oito países autoproclamados democráticos, que

possuíam maiores níveis de industrialização e economias do mundo – Estados Unidos, Japão,

Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e Rússia), realizado entre os dias 18 e 20 de

junho de 1999, em Colônia, Alemanha. Nesse encontro, FHC estava na condição de chefe de

Estado convidado. Como se pode observar, a imagem foi recortada para dar maior destaque às

figuras de Bill Clinton e FHC (ao centro). Ao lado direito de Clinton estava o primeiro

ministro do Canadá (1993/2003), Jean Chrétien. Quando foi publicada, em 1999, essa

538 Devido a alguns desencontros de informações relacionadas à fotografia, entrou-se em contato direto com seu

autor, Lula Marques, via rede social facebook, no dia 23 de abril de 2014. Por mais que a imagem tivesse

ganhado repercussão nacional, sendo reproduzida em diversas mídias eletrônicas, as informações sobre ela eram

escassas. A princípio, o contato com Lula Marques foi para confirmar se a fotografia era mesmo de sua autoria e

em qual local fora produzida. De forma muito solícita e gentil, Lula Marques confirmou que a fotografia era

dele, mas trouxe uma novidade sobre ela: sua produção foi na cidade de Colônia, na Alemanha, durante uma

reunião do G-8, em 1999. Até então, as mídias eletrônicas que reproduziram a imagem diziam que a foto tinha

sido tirada em um encontro do G-7, em Florença, na Itália. A partir desse ocorrido na pesquisa, destaca-se que o

pesquisador necessita estar atento e problematizar as informações contidas nas mídias, se possível, entrecruzar a

mesma informação em diferentes fontes. Do contrário, corre o risco de reproduzir e propagar informações

distorcidas e que não correspondem às experiências históricas. Também, destaca-se que, no mundo

contemporâneo, as tecnologias têm contribuído de forma significativa com os pesquisadores, no sentido de

dinamizar suas práticas.

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fotografia causou grande repercussão entre os críticos de FHC, que a reproduziram em

diversas mídias eletrônicas/digitais539. O interessante é que essa foto não foi publicada nos

grandes meios de comunicação, com circulação nacional.

Com essa imagem, publicada no final do último ano do segundo mandato de FHC, o

MST reforça a representação de que o presidente era submisso ao governo dos EUA que, na

imagem, aparece figurado em Bill Clinton. Em frente ao local que aconteceu o encontro, os

chefes de Estado e demais participantes da reunião se descontraíam e se preparavam para

posar para os fotógrafos da imprensa. O que chama atenção na imagem é a posição de FHC e

a de Bill Clinton – o presidente brasileiro está dois degraus abaixo do norte-americano. As

mãos de Bill Clinton nos ombros de FHC e a expressão feliz do presidente brasileiro, quase

com a língua para fora da boca, representam para o MST a “subserviência” de FHC aos

interesses do EUA e do capital internacional. A expressão de boca aberta do presidente leva à

interpretação de que FHC estava domesticado pelo EUA, seguindo à risca suas ordens.

Por privilegiar o modelo político e econômico neoliberal e submeter-se aos interesses

dos EUA e das multinacionais, o presidente FHC foi considerado sinônimo de crise pelo

MST. As ações do presidente e de seu governo, conforme as representações do Movimento,

geraram caos social e corrupção. Analisar essas representações será o desafio do próximo

tópico.

3.2 “FHCrise”: caos social e corrupção

Ao privilegiar um projeto das elites, via ideário neoliberal, FHC também foi

representado pelo MST como “antipopular” e “hipócrita”. Essas duas personificações

permearam os editoriais e matérias relacionadas ao presidente durante seu governo. No

editorial de junho de 1995, seis meses após a posse de FHC, o Movimento destaca: Um

governo cada vez mais antipopular540. Para o MST, em nome do discurso da “modernidade”,

o presidente mostrava sua face contra o povo e dizia com muita hipocrisia na imprensa que

tudo estava indo bem541. O Movimento afirmava que FHC não conseguiria agir com

539 Dentre elas, citam-se: http://www.conversaafiada.com.br/politica; http://democraciapolitica.blogspot.com.br;

http://spingovernante.blogspot.com.br/. 540 Um governo cada vez mais antipopular. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1995, ano XIV, n. 148, p. 2. 541 O rei FHC e a realidade. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1995, ano XIV, n. 149, p. 2.

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hipocrisia por muito tempo, pois o “povo não fazia parte do seu projeto”542. Enfim, como

enfatiza o título do editorial de março de 2000: FHC: um governo dos ricos543. O

entendimento do Movimento também era compartilhado por José Luís Fiori que, em seu

texto, intitulado Um Governo contra o povo e a nação, traça o perfil de FHC como um

presidente antinacional e antipopular544. Ou seja, um presidente que governava para as elites.

Por ser “dos ricos”, o presidente foi representado como um governante que instaurou a

crise e o caos social no país. Essas representações sobre o presidente se concentraram mais no

último ano do primeiro mandato (1998) e durante todo o segundo (1999-2002). O MST

publicou nas edições diversas notas, editoriais e matérias enfatizando que FHC era sinônimo

de crise e caos social, no sentido de que o presidente estava destruindo o Brasil. No editorial

de setembro de 1998, o título é: A crise tem nome: FHC. E, acompanhando o editorial, há uma

charge elucidativa sobre essa questão.

Imagem 28 – A crise tem nome: FHC

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1998, ano XVII, n. 182, p. 2.

No editorial citado, o MST faz um balanço do governo ressaltando que, passados

quatro anos, FHC não havia olhado para as questões sociais que assolavam o país. Pelo

contrário, o presidente só favorecia os interesses das elites brasileiras e do capital financeiro

internacional. Assim elenca:

542 O povo não faz parte do projeto de FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1999 e janeiro de 2000,

ano XVIII, n. 196, p. 3. 543 FHC: um governo dos ricos. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 2000, ano XVIII, n. 198, p. 2. 544 FIORI, J. L., Um Governo contra o povo e nação, p. 117-122.

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Nesses quatro anos de governo, em nenhum momento, FHC favoreceu para

que as grandes massas tivessem acesso à propriedade da terra, à educação e a

empregos estáveis e com poder aquisitivo progressivo. Pelo contrário. Se

governo se caracterizou pela intransigente defesa dos interesses das elites

regionais, nacionais e do capital financeiro internacional545.

O MST enfatiza a situação complicada do país, com altos índices de desemprego,

políticas para o campo “devastadoras” e quebra de empresas nacionais. A charge apresentada,

de autoria de Luscar, representa bem isso. O contexto é o das eleições presidenciais de 1998;

acima de um muro há um outdoor enorme com a imagem de FHC todo sorridente, o que

indica uma posição de felicidade. Abaixo do outdoor, em uma calçada, há algumas pessoas,

provavelmente, moradores de rua. No lado direito da imagem, um homem se embriaga; à

esquerda, uma pessoa, com o braço estendido, num gesto de estar pedindo esmolas; e, no

centro, duas pessoas – uma deitada e outra sentada na calçada. Essas pessoas simbolizam a

miséria, o desemprego, o alcoolismo e a pobreza. A imagem do outdoor, na qual FHC está

sorridente, contrasta com a miséria e a pobreza dos moradores de rua. Além disso, há um

terceiro cenário na imagem – um homem em cima de uma escada pichando o outdoor da

campanha do presidente, escrevendo: “FHCRISE”. O gesto de pichar a face de FHC remete à

resistência e negação do MST sobre FHC, pois ele não representava credibilidade política

para o Movimento, ou seja, não era ele o representante dos trabalhadores, nem tão pouco

aquele que conduziria o país rumo ao seu projeto socialista e rumo à realização da reforma

agrária.

O MST elenca ainda que FHC eximia-se de sua responsabilidade enquanto presidente

ao dizer que “a crise era um fenômeno mundial e que ele (presidente) era a pessoa melhor

preparada para enfrentá-la”. O Movimento ia contra o discurso de FHC e sublinhava que ele

era responsável “pela gravidade da crise que se abatia sobre nossa economia”546. Entre 1998 e

2002 são diversas matérias, editoriais e manchetes publicadas no Jornal Sem Terra

ressaltando a crise e o caos social do Brasil, tendo FHC como responsável. Dentre elas, cita-

se: Avança a crise no Brasil547; O Governo FHC é o caos social548; FHC quebrou o país549; A

grave crise que se instala no Brasil550; A cada dia piora o Governo551; A gravidade da crise

545 A crise tem nome: FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1998, ano XVII, n. 182, p. 2. 546 A crise tem nome: FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1998, ano XVII, n. 182, p. 2. 547 Avança a crise no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1999, ano XVIII, n. 193, p. 2. 548 O Governo FHC é o caos social. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1998, ano XVI, n. 180, p. 2. 549 FHC quebrou o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 2. 550 A grave crise que se instala no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 9. 551 A cada dia piora o Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1999, ano XVII, n. 191, p. 2.

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no Governo FHC552; Governo FHC: oito anos destruindo o Brasil553; Governo FHC leva o

Brasil à falência554; A política de FHC está levando o país para uma crise total555; FHC é um

destruidor de Brasil556; Aumenta ainda mais a crise no Governo FHC557; Seca e fome no

Nordeste: descaso do Governo FHC558; FHC acaba com o ensino público559; O modelo

econômico e o Governo FHC estão falidos560. Outros textos também remetem ao assunto

abordado, e o objetivo de referenciar alguns foi para destacar que esse discurso permeou,

sobretudo, o segundo mandato do presidente. O objetivo do MST era deslegitimar o

presidente e as ações de seu governo. É interessante que os textos se referiam às ações do

governo, mas a personificação do governo dava-se por meio da figura de FHC.

Observa-se também que os discursos, ao longo do tempo, se repetiam com as mesmas

informações e sempre destacando FHC como o responsável pela crise e caos social. Isto é,

não havia muitas novidades em relação às representações elaboradas sobre o presidente. Na

sequência, alguns trechos de editoriais do jornal quanto a esse assunto:

É crescente a pobreza da população brasileira e o número de brasileiros que

são impedidos de ter acesso à escola, saúde e moradia. É cada vez maior o

contingente de trabalhadores desempregados ou que sobrevivem de sub-

empregos, sem nenhum direito trabalhista garantido. Cresce a população que

é obrigada a viver em favelas ou morar de baixo de pontes e viadutos. A

prostituição, as drogas e o crime organizado estão envolvendo um número

cada vez maior da nossa juventude. Cientistas, reconhecidos

internacionalmente, se veem obrigados a deixar nosso país por falta de

condições e apoio do governo. As empresas estatais, estratégicas para o

desenvolvimento e soberania da nação estão sendo sucateadas ou vendidas a

preços irrisórios. Esse é o Governo FHC. E é com esta política que ele diz

estar levando o Brasil para o 1º mundo561.

Fernando Henrique quebrou o país. Fernando Henrique é culpado pela crise

que só está começando. Fernando Henrique é refém dos especuladores. Para

proteger o capital financeiro Fernando Henrique não hesitará em cortar mais

despesas importantes para o povo. Fernando Henrique é o governo dos

bancos internacionais562.

552 A gravidade da crise no Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2001, ano XIX, n. 211, p. 2. 553 Governo FHC: oito anos destruindo o Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, ago./set. de 2002, ano XXI, n. 223, p. 9. 554 Governo FHC leva o Brasil à falência. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 1. 555 A política de FHC está levando o país para uma crise total. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano

XVII, n. 186, p. 3. 556 FHC é um destruidor do Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1999, ano XVII, n. 191, p. 3. 557 Aumenta ainda mais a crise no Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2001, ano XIX, n. 211, p. 1. 558 Seca e fome no Nordeste: descaso do Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2001, ano XIX, n. 212, p. 1. 559 FHC acaba com o ensino público. Jornal Sem Terra. São Paulo, nov./dez. de 2001, ano XX, n. 216, p. 3. 560 O modelo econômico e o Governo FHC estão falidos. Jornal Sem Terra. São Paulo, ago./set. de 2002, ano XXI, n.

223, p. 1. 561 A reação à política de FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1997, ano XVI, n. 167, p. 2. 562 Verdades e mentiras da atual conjuntura. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 12.

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Demorou apenas quatro anos para o governo FHC quebrar a 9ª economia

mundial. Foram quatro anos destruindo nossa base produtiva, tanto industrial

como agrícola. Foram quatro anos causando recessão, desemprego, arrocho

salarial – lembrando que o funcionalismo público não teve aumento nesse

período. Bastou um único mandato presidencial para que todas nossas

empresas estatais fossem entregues ao capital internacional. FHC vendeu, a

preços irrisórios, tanto as empresas estratégicas para o desenvolvimento do

país, como as de telecomunicações, energia elétrica e siderúrgica, como as

altamente desenvolvidas, com tecnologia de ponta e rentáveis, como a

Companhia Vale do Rio Doce. Vendeu tudo e o país está falido563

A crise é resultado desse modelo que abriu nosso mercado, que paga as mais

altas taxas de juro do mundo, que privatizou as principais empresas, que

desnacionalizou a economia. E que de concreto não melhorou as condições

de vida da população. O Governo gasta hoje quase a metade de tudo que

arrecada, apenas para pagamento dos juros da dívida interna e externa564.

Essas informações, mais do que mostrar o tamanho da enrascada em que a

equipe econômica do governo FHC meteu o Brasil, demostram a submissão

política do atual governo aos países ricos. Para atender esses interesses FHC

é atuante, ágil e eficiente. Os gastos sociais são cortados, os salários dos

servidores públicos congelados, a agricultura e as pequenas indústrias são

levadas à falência, o desemprego assume proporções assustadoras. Tudo

para, no final do ano, o governo se vangloriar que atendeu os compromissos

externos, enviando para os países ricos a quantia de 55 bilhões de dólares565.

Os resultados sociais dessa política econômica desastrosa e entreguista estão

visíveis nas ruas. O desemprego atinge quase todas as famílias. Há um

desânimo. O poder aquisitivo diminuiu. Na agricultura há um desânimo

completo dos pequenos agricultores que não veem mais futuro em sua

atividade. E a violência aumenta a cada dia nas cidades. [...]. É o retrato da

falência desse sistema566.

É este o Brasil que FHC se orgulha de ter modernizado após oito anos do seu

governo. Privatizou as melhores empresas. Cerca de 30% de toda economia

brasileira mudou de dono. Passou do Estado para meia dúzia de capitalistas

privilegiados que assaltam o patrimônio público. FHC prometeu que os

serviços públicos iriam melhorar. Nunca os brasileiros pagaram tão caro a

energia elétrica, o telefone, a água, esgoto, o pedágio, os transportes

coletivos. Porquê? Porque, ao privatizar esses serviços, as empresas privadas

passaram a adotar preços internacionais. Mas nosso salário continuou sendo

nacional, um dos mais baixos do mundo. [...] O Brasil está à beira do

abismo567.

Pontue-se que as citações dos editoriais do Jornal Sem Terra, apresentadas a partir de

uma perspectiva cronológica (anos de 1997 a 2002), evidenciam que os discursos do MST

563 FHC quebrou o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 2. 564 Avança a crise no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1999, ano XVIII, n. 193, p. 2. 565 É hora do povo mudar o rumo do país. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2000, ano XVIII, n. 201, p. 2. 566 A gravidade da crise no Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2001, ano XIX, n. 211, p. 2. 567 Para o capital, o patrimônio público. Para o povo... Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2002, ano XX, n. 221, p. 2.

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não se alteraram consideravelmente nesse período. Como já fora destacado, FHC era

representado como o responsável pelo caos e miséria no Brasil. Todavia, a causa de tudo isso

era resultado do modelo político e econômico de seu governo, priorizando o ideário neoliberal

e rompendo com o modelo de desenvolvimento nacional, conforme se refletiu no tópico

anterior.

Os discursos sobre o caos social giravam em torno da precarização da

escola/educação, saúde, moradia; do aumento da violência, prostituição, drogas e favelas no

contexto urbano; do desemprego; da falência das empresas nacionais; arrocho salarial e

congelamento do salário dos servidores públicos; aumento da dívida pública; e da não

valorização dos pequenos trabalhadores rurais. Enfim, para o MST, o Brasil estava quebrado,

como indica uma charge do editorial de janeiro/fevereiro de 1999, cujo título é: FHC quebrou

o país.

Imagem 29 – FHC quebrou o país

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 2.

A charge, de autoria de Luscar, representa que FHC colocou o país em crise. A

imagem faz referência, novamente, aos EUA, como se aquele país fosse responsável direto

pela situação do Brasil. O homem ao lado do presidente, com a cartola, calça listrada e terno

estrelado faz alusão à bandeira EUA. Com a mão esquerda no ombro de FHC e com a direita

apontando para o mapa do Brasil – em pedaços e com muitas rachaduras – pergunta ao

presidente: “Não ficou lindo?”. FHC, com a imponente faixa presidencial, olha atentamente o

mapa do Brasil e, com um semblante tranquilo, parece concordar. A ironia na charge é

expressa pela contradição que sugere: como considerar algo quebrado e com aparência

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desgastada uma coisa “linda”? Nesse sentido, O MST procurava representar que FHC não se

preocupava com o Brasil, posto que seu olhar e encaminhamentos políticos estavam pautados

no “modelo das elites”568 e nos interesses dos grupos econômicos internacionais.

Nas representações do Movimento, o país estava à “beira de um abismo”. Na seção

Projeto Popular para o Brasil, ilustrando um texto de autoria do historiador Denis Bernardes,

intitulado Herança Cultural: o que tem sido o Brasil para os brasileiros, o MST publica uma

charge na qual FHC levava o Brasil ao abismo.

Imagem 30 – Avança Brasil!

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 9.

O texto de Bernardes aborda as comemorações dos quinhentos anos do território

ocupado pelos portugueses e que foi denominado Brasil. Seu objetivo era demonstrar que, ao

longo de quinhentos anos, o país continuava a ser um país injusto569, com índices de

desigualdade social elevados, considerando que o Brasil estava entre as dez maiores

economias mundiais. O cenário da charge570 marca-se por um dia de sol brilhante, um

penhasco/abismo, no qual estão o presidente e determinado homem que representa o Brasil

(veste uma camiseta com a bandeira do país). O Brasil (o homem) está na ponta do penhasco

e FHC está atrás dele. Com um texto na mão (em que se lê: BRASIL 500 ANOS) e um

568 FHC quebrou o país. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 2. 569 BERNARDES, Denis. Herança Cultural: o que tem sido o Brasil para os brasileiros. In: Jornal Sem Terra.

São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 9. 570 Não há assinatura na charge. Na edição do jornal há algumas charges assinadas por Luscar, contudo, não se

pode afirmar que essa imagem seja de sua autoria. O Expediente do jornal não dá créditos aos autores das

charges.

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semblante sarcástico, sorrateiro, o presidente diz: “Avança Brasil!”. O homem, inclinado para

trás e com um olhar de desconfiança, parece não querer avançar rumo ao abismo.

O Brasil, na representação do MST, apesar de suas mazelas sociais e à beira do

abismo, estava resistindo às investidas do presidente. O interessante da charge é que o texto

reflete sobre as injustiças sociais do Brasil em seus quinhentos anos de existência, contudo, o

presidente está representado como se esse fosse o responsável por políticas e caminhos

trilhados pelo país em tempos pretéritos. Isto é, FHC era o estereótipo do caos, das injustiças

sociais.

Em outra charge, de autoria de Marcio Baraldi, publicada no editorial de julho de

1997, intitulado A colonização do governo FHC, o Movimento salienta que o presidente só

produzia pobreza.

Imagem 31 – A colonização do governo FHC

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 3.

De forma humorada, a Direção Nacional do MST enfatiza: “O incrível príncipe dos

cientistas FHC é um especialista em clonagem. Já criou milhões de clones do espécime ‘homo

pobris’, graças à sua técnica de multiplicação do DNA: Desemprego, Neoliberalismo e

Arrogância”571. O Movimento ironiza o fato de o presidente ser um acadêmico respeitado

nacional e internacionalmente, mas usar seus conhecimentos para produzir pobreza. Na

imagem, FHC, com um olhar misterioso, compenetrado, utilizando um tradicional jaleco de

571 A colonização do Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 3.

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cientista e capelo (chapéu de formatura), pilota uma máquina de clonagem. No canto superior

direito, vê-se registrada, na parede de um suposto laboratório, a fórmula aplicada pelo

“especialista em clonagem”: desemprego, neoliberalismo e arrogância. O que chama a

atenção é que a máquina de clonagem produz o espécime “homo pobris”. Saindo da máquina,

observa-se a reprodução de pessoas maltrapilhas, com um semblante de tristeza e sofrimento.

Na concepção do MST, os trabalhadores do campo e da cidade precisavam se unir

contra FHC e a multiplicação do “homo pobris”. Para tanto, seria necessária a construção de

“um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil”572, centrado no combate ao modelo

neoliberal. Assim, o Movimento desejava a construção de um “projeto popular para o país”,

via socialismo. Nesse “projeto popular” existiam questões fundamentais, como: controle do

capital financeiro, recuperação da soberania nacional, rompimento com a dívida externa,

distribuição de renda, democratização dos meios de comunicação e uma efetiva reforma

agrária que alterasse a estrutura fundiária do país573. Segundo o MST, com esse projeto, a

pobreza diminuiria e a multiplicação do “homo pobris” deixaria de existir.

No que tange à falência das empresas nacionais, ao aumento da dívida pública,

arrocho salarial, congelamento do salário dos servidores públicos e desemprego, as

representações do MST estavam associadas aos índices constatados no período. Nessa

direção, destaca-se, num primeiro momento, que o real teve uma desvalorização significativa

(cerca de 50%) em relação ao dólar no ano de 1999, causando impactos na economia

nacional. Conforme Faleiros, no governo FHC, ao mesmo tempo em que se aumentou a

dívida pública, houve a diminuição do Produto Interno Bruto (PIB) do país: “a dívida pública,

por sua vez, incrementou-se de 30% do PIB em 1995 para 63,9% em 2002, sendo o

crescimento do PIB dos mais pífios nos últimos anos, com média de 1,88% entre 1995 e

2002”574.

Em um contexto econômico desfavorável, no qual a dívida pública consumia mais de

60% do PIB, FHC e sua equipe de governo tiveram que recorrer a empréstimos do FMI, o que

gerou um “custo político” ao Brasil, pois “o organismo era sinônimo de imposição de

políticas recessivas e perda de autonomia na gestão da política econômica”575. Para o MST,

FHC era o responsável pelo endividamento do país, e os empréstimos feitos ao FMI

submetiam ainda mais o Brasil aos interesses dos capitais internacionais.

572 A necessidade de um projeto popular. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1997, ano XVI, n. 171, p. 2. 573 Avança a crise no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1999, ano XVIII, n. 193, p. 2. 574 FALEIROS, V. de P., A Reforma do Estado no período FHC e as propostas do Governo Lula, p. 38. 575 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 500.

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A falência de muitas empresas nacionais foi fruto das ações políticas e econômicas do

governo, pois ao se abrir o mercado, incentivar a entrada de capitais internacionais e tratar as

empresas estrangeiras de forma semelhante às nacionais há um enfraquecimento das

indústrias brasileiras e do mercado nacional. Consequentemente, aumento nas taxas de juros e

redução de créditos para fomento. No entendimento de Singer, a crise das empresas brasileiras

foi ocasionada, exclusivamente, pelos caminhos trilhados pelo governo FHC, começando-se

pela sobrevalorização do real. O fato de se fixar o valor do real em relação ao dólar faz com

que as mercadorias importadas fiquem mais baratas, competindo com os produtos nacionais.

Nas palavras de Singer:

A sobrevalorização do real sem dúvida acentuou a deflagração dos preços

industriais ao baratear ainda mais os produtos importados. O que fez a

alegria dos consumidores, mas agravou as dificuldades dos produtores

nacionais. Ao mesmo tempo, estimulou o aumento das importações e a

redução das exportações. Passamos a ter déficits crescentes na balança de

mercadorias, cobertos para ampliar, pouco depois, o déficit na balança de

serviços, onerada por crescentes remessas ao exterior de juros e

rendimentos576.

Singer observa que, apesar do êxito do Plano Real, especificamente em conter e baixar

a inflação, a política macroeconômica causou um choque na indústria nacional. A alteração da

Constituição e a extinção do monopólio das empresas estatais, abrindo o mercado brasileiro

para o capital internacional, fez com que “as indústrias nacionais [fossem] duplamente

castigadas pela redução das vendas e pelo encarecimento do crédito”577. Nesse contexto,

muitas empresas foram fechadas e milhões de trabalhadores perderam seu emprego.

Sem dúvida, o alto índice de desempregados, em especial, no segundo mandato de

FHC, foi o responsável direto por sua queda de popularidade. Em 1995, quando FHC assumiu

a presidência, o Brasil tinha um índice de desemprego de 4,3% da população economicamente

ativa. Em outubro de 2002, a taxa de desemprego alcançou 7,7%, conforme o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE)578.

Os índices de desempregos bateram recordes históricos. Na concepção de Coletti, para

explicar as principais razões do alto índice de desempregos no Brasil, na década de 1990, é

necessário recorrer aos seguintes fatores: abertura comercial da economia brasileira, que

576 SINGER, P., A Raiz do Desastre Social: a política econômica de FHC, p. 32. 577 SINGER, P., Um imenso equívoco, p. 57. 578 Ver: VIEIRA, Fabrício. Desemprego cresce; renda per capita sobe menos de 1% ao ano. In: Folha de São

Paulo. 19 de dezembro de 2002. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj1912200222.htm.

Acesso em: 02/05/2014, às 14h.

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facilitou a entrada de produtos estrangeiros no país, concorrendo com os produtos nacionais,

com vantagens em relação a preços, em especial, pela sobrevalorização do Real; as falências e

fusões de inúmeras empresas, que não conseguiram manter-se com a concorrência

internacional; a contenção do crescimento econômico, decorrentes das altas taxas de juros

visando a conter a inflação; as privatizações das empresas estatais, sempre acompanhadas das

dispensas de inúmeros funcionários; a diminuição de investimentos do Estado nas áreas

sociais, como saúde, habitação, educação, saneamento e infraestrutura; crise na previdência

social, que obrigou os aposentados a continuarem no mercado de trabalho, como forma de

complemento de renda, ocupando vagas de empregos que poderiam ser destinadas aos mais

jovens; e as novas formas de organização do processo de trabalho no interior das empresas,

que pouparam ao máximo o número de trabalhadores579.

Não é possível pontuar a contribuição desses fatores para os altos índices de

desemprego no país, mas, todos eles, na conjuntura da década de 1990, fazendo parte de um

projeto político e econômico, foram elementares para o desencadeamento do desemprego em

massa. Há que se ressaltar também o crescimento da informalidade nos anos de 1990 que,

para Coletti, foi “fruto da implementação do modelo econômico neoliberal no Brasil”580.

Diante do contexto caótico da década de 1990, sobretudo, de desempregos urbanos e rurais,

falências de milhares de pequenos produtores rurais, e péssimas condições de vida pela maior

parte da população, a tese de Coletti é a de que esse cenário contribuiu para “jogar grande

parte dessa população excluída e marginalizada nos braços do MST e de outros movimentos

de luta pela terra existentes no Brasil”581. Ou seja, o Movimento passou a ser a esperança de

milhares de trabalhadores que almejavam terras para trabalhar e viver.

Se, por um lado, o desemprego foi alvo de muitas críticas e denúncias do MST, por

outro, o presidente também foi representado como aquele que arrochou o salário mínimo dos

trabalhadores e congelou o salário dos servidores públicos. De fato, o salário mínimo não teve

ganhos consideráveis nos oito anos de FHC na presidência582 e suas ações, a partir do prisma

de que era preciso enxugar os gastos com o funcionalismo público, relegaram os vencimentos

dos servidores a um estado lastimável, como por exemplo, os relativos às Instituições

579 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 169-170. 580 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 169-173. Sobre o

aumento considerável dos trabalhos informais na década de 1990 e suas consequências para os trabalhadores,

ver: SINGER, Paul. O trabalho informal e a luta da classe operária. In: JAKOBSEN, Kjed; MARTINS, Renato;

DOMBROWSKI, Osmir (Orgs.). Mapa do trabalho informal: perfil socioeconômico dos trabalhadores informais

na cidade de São Paulo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. 581 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 181. 582 Nos oito anos que FHC foi presidente, o salário mínimo começou com o valor de R$ 70,00 (1995) e chegou a

R$ 200,00 (2002).

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Federais de Ensino Superior (IFES). Ao estudar FHC e suas teorias, Reis, em tom de

desabafo, por ser professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no período em

que FHC foi presidente, comenta essa situação dizendo que “as universidades públicas foram

abandonadas pelo seu ilustre ex-integrante, que paga aos seus ex-colegas um salário

vexatório”583.

E como foi gerida a questão social pelo governo FHC? O que dizem os estudiosos da

área? As desigualdades sociais diminuíram com as reformas de Estado propostas por FHC?

Nas representações do MST, o presidente só multiplicou a pobreza. Ou seja, pouco ou nada

fez para a área social. Entre os pesquisadores, havia um consenso de que as políticas e os

investimentos direcionados à área social não foram exitosos no que diz respeito à redução das

desigualdades sociais. A sociedade brasileira era tão heterogênea quanto desigual nas formas

de distribuição de bens e recursos. Telles salienta que houve um “jogo na tragédia social

brasileira” e critica o fato de o país pretender ser “moderno” sem antes resolver questões

inacabadas do passado584. Uma das questões inacabadas do passado, sem dúvida, era a da

desigualdade social que, historicamente, foi marginalizada e não tratada com a devida atenção

pelo Estado e governantes (inclusive por FHC).

Nessa perspectiva, o Brasil possui características eminentemente contraditórias, pois

tem uma das dez maiores economias do mundo e consegue ser um dos países com maiores

taxas de desigualdade social585. Eric J. Hobsbawm entende que essa característica se

configura na criação de “um monumento à negligência social”586. Assim, reflete que há uma

tendência brasileira de se “naturalizar a pobreza”, como se ela fosse externa à nossa realidade.

O próprio Estado reproduz esse discurso, quando enfatiza que não tem como dar conta de

todas as mazelas sociais. Não dando conta, exime-se das suas responsabilidades, e a pobreza,

a miséria e a desigualdade social se tornam naturais. Para alguns, até castigo ou vontade de

Deus. Dessa forma, a questão social passa a ser vista como privada, filantrópica, em que

almas bondosas e caridosas ajudariam o próximo. Entende-se que o Estado é quem deve

assumir a responsabilidade e criar mecanismos e alternativas para solucionar a questão social

brasileira.

583 REIS, J. C., Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso, p. 239. 584 TELLES, V. da S., Sociedade civil e a construção de espaços públicos, p. 98. 585 Ver: Apesar de avanço, Brasil continua entre os 12 países mais desiguais do mundo, segundo Ipea.

Disponível em: http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2012/09/25/apesar-de-avanco-brasil-

continua-entre-os-12-paises-mais-desiguais-segundo-ipea.jhtm. Acesso em: 26/07/2014, às 15h. 586 HOBSBAWM, E. J., A Era dos Extremos – o breve século XX (1914-1991), p. 555.

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As pesquisadoras Cohn e Telles observam que, historicamente, sempre existiu uma

velha e persistente maneira de tratar a questão social brasileira entre a tutela estatal e a gestão

filantrópica da pobreza. Na compreensão de Cohn, existe uma questão social brasileira mais

ampla do que pobreza e problemas sociais e sua solução se traduz em “programas e políticas

sociais”. Enfim, a questão social ainda é vista como objeto de “filantropia”, algo pertinente à

vida privada. Para Cohn, a questão social deve ser vista como responsabilidade pública,

associada ao trabalho e ao bem estar dos sujeitos. Nesta direção, destaca a diferenciação

básica entre problemas sociais e questões sociais:

[...] enquanto os primeiros (problemas sociais) dizem mais respeito a coisas

e fenômenos indesejáveis, porém aceitáveis de com eles se conviver; as

segundas (questões sociais) remetem à esfera do reconhecimento de alguns

dentre esses fenômenos como legítimos, e como tal devendo ser enfrentados

pela coletividade, constituindo-se e regulando-se assim determinados

padrões de solidariedade social. E mais que legítimas, as questões sociais

passam a ser concebidas e decifradas não mais como fenômenos

excepcionais e episódios, mas como regulares e permanentes, vale dizer,

assumida como algo estrutural587.

Para Cohn existiu no Brasil um caráter perverso das políticas sociais, em que os

direitos sociais eram traduzidos em “políticas e programas sociais que se dirigem a dois

públicos distintos: os cidadãos e os pobres”. Os cidadãos seriam aqueles que, por exemplo,

“estão cobertos por um sistema de proteção social ao qual têm direito porque contribuem para

com ele”. Os pobres seriam aqueles que não mostram capacidade contributiva, ou que não

apresentam “capacidade de formas autônomas de garantia de patamares mínimos de

sobrevivência, são alvos de políticas e programas sociais de caráter filantrópico e/ou

focalizado em determinados grupos reconhecidos como mais carentes e ‘socialmente mais

vulneráveis’”. Por parte do Estado, a questão social no Brasil sempre foi tratada com traços

paternalistas e clientelistas588, sendo fragmentada, fracionada, e nunca tratada como questão

estrutural. Por esse viés, as visões humanitária e filantrópica permaneceram, o que contribuiu,

conforme Telles, para despolitizar o campo social e retirar da área social o caráter de atuação

política, de superação da pobreza589. Os programas sociais, então, teriam caráter meramente

compensatórios.

587 COHN, A., A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania, p. 389. 588 COHN, A., A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania, p. 389-390. 589 TELLES, V. da S., A “Nova Questão Social” brasileira, p. 111-114.

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No que se refere ao governo FHC, Cohn analisa que houve avanços sociais, advindos

das próprias garantias constitucionais. Contudo, estes foram muito tímidos para equalizar a

pobreza e desigualdade social. Havia limites estreitos sobre a questão social que esbarravam

nos compromissos do governo com as agências internacionais de contenção da dívida pública.

Ou seja, a partir do ditame absoluto do econômico, o social ficava em segundo plano. A

autora tece críticas às políticas sociais do governo FHC, que se baseavam numa perspectiva

clientelista e imediatista, vistas pelo prisma emergencial, não estrutural. Em vez de buscar a

superação dos problemas sociais, a concepção oficial (de governo) era “aliviar a pobreza” dos

mais vulneráveis socioeconomicamente. Sendo assim, reduz-se “a questão social à questão da

pobreza, e as políticas sociais à questão da parca disponibilidade de recursos orçamentários

para o setor, no geral associada a uma concepção dos serviços públicos estatais como

perdulários, dada sua própria natureza”590.

À medida que se privilegiou o econômico em detrimento do social, restringiram-se

recursos orçamentários para a área social. No entendimento de Netto, houve uma verdadeira

“sabotagem” às políticas sociais, que não foram excluídas das pautas do governo FHC, mas

foram “inteiramente subordinadas à orientação macroeconômica que, por sua vez, é

estabelecida segundo os ditames do grande capital”591. O intento de FHC e de sua equipe foi

combater a pobreza, não superá-la. O resultado disso foi que, estruturalmente, as

desigualdades sociais permaneceram. É preciso ressaltar que, obviamente, nem todas as

mazelas sociais, assim como o quadro de um país desigual, foram construídos exclusivamente

no governo FHC. Essa realidade (ou situação) resulta de um longo processo histórico, do qual

as elites políticas nunca se interessaram em superar. Ou seja, a questão social sempre foi vista

como algo paliativo e filantrópico.

Para o MST, a área social foi relegada por FHC; e o Brasil estava prestes a explodir,

como se fosse uma bomba relógio. De forma irônica o Movimento representa essa questão,

expondo a figura de FHC e o ridicularizando.

590 COHN, A., As Políticas Sociais no Governo FHC, p. 186-187. 591 NETTO, J. P., FHC e a Política Social: um desastre para as massas trabalhadoras, p. 87.

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Imagem 32 – Verdades e mentiras da atual conjuntura

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 12.

Publicada na edição de outubro de 1998 do Jornal Sem Terra, a charge, de autoria de

Marcio Baraldi, representa a situação explosiva do país, na ótica do MST. Sobre uma bomba

relógio, que continha dez dinamites enormes, está FHC com uma aparência desanimada e até

certo ponto envergonhada, como se pode observar pelos seus olhos levemente abaixados. A

imagem carrega em si certa tensão, pois a bomba relógio está armada e o tempo se passa. A

visualização de um som típico de uma bomba relógio acionada (tic tac, tic tac, tic tac...) dá

dramaticidade ao momento; verifica-se, contudo, que, diante da situação, o presidente diz:

“Está tudo sob controle”. Na representação do MST, a bomba relógio é o Brasil; e FHC, um

mentiroso, revelado pelo seu nariz de Pinóquio. Ao dizer que a situação estava “sob

controle”, FHC queria esconder o caos social do país. Seus discursos fugiam da realidade e

demonstravam a inércia de seu governo. Nesse contexto, o Movimento entusiasmava seus

integrantes a lutar contra FHC e seu modelo de desenvolvimento, antes que a bomba relógio

explodisse. O desarme da bomba passava, sobretudo, por tirar FHC de cena e eleger um

representante dos trabalhadores, no caso, o presidenciável Lula.

Conforme as representações do Movimento, FHC perpetuou a pobreza no Brasil,

concentrando ainda mais as riquezas nas mãos de poucas pessoas592. No país, se erigia “um

povo pobre num país rico”593, em referência ao fato de o Brasil estar entre as dez maiores

592 Concentração da renda e da riqueza. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1998, ano XVI, n. 180, p. 9. 593 Um povo pobre num país rico. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2001, ano XIX, n. 212, p. 2.

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economias do mundo e com índices de desigualdades sociais alarmantes594. Todas as mazelas

sociais eram atribuídas às responsabilidades do presidente, como por exemplo, o problema

histórico das secas no Nordeste. A manchete de capa do Jornal Sem Terra em julho de 2001

era: Seca e fome no Nordeste: descaso do governo FHC. Nessa mesma edição do jornal foi

publicada uma matéria com o mesmo teor da manchete, intitulada: Seca: fome e miséria por

irresponsabilidade de FHC. Assim, dizia:

Tão antiga quanto à ocupação da região pelos sertanejos, a seca no Nordeste

brasileiro afeta milhões de pessoas. Só no século passado foram 18 secas.

Todas previstas, antecipadas por pesquisas e estudos sobre fenômenos

meteorológicos. Mas as elites brasileiras nunca fizeram nada.

Já estamos num novo século. No entanto, o velho problema da seca persiste

sem nenhuma perspectiva para as famílias atingidas. E apesar da seca ser

problema que há muito tempo faz parte da realidade do povo nordestino, as

autoridades nada fazem para solucioná-lo. Não existe uma política específica

para a região. Não são apresentadas soluções. O que se presencia é a ação de

políticos e coronéis utilizando a seca em benefício próprio. É a já conhecida

indústria da seca. Assim como em todos os períodos de seca, as medidas

governamentais são sempre paliativas, emergenciais e sem nenhum resultado

concreto595.

Em diversas edições do Jornal Sem Terra, sobretudo, entre os anos de 1998 e 2001,

havia notas e matérias sobre as secas que atingiam a região nordestina. Por mais que o MST

entendesse que o problema era histórico e que de tempos em tempos se intensificava,

causando grandes prejuízos aos sujeitos que viviam na região Nordeste, em especial, à

população desfavorecida economicamente, a fome e miséria advindas da seca eram creditadas

a FHC. Devido à sua “irresponsabilidade”, a seca causava tanta miséria. O Movimento

também ressaltava a chamada “indústria da seca”, isto é, a utilização da seca pelas elites

políticas e por “coronéis” para barganhar votos e favores da população. Enfim, faziam das

consequências da seca (fome e miséria) elementos a serem explorados em benefício próprio.

Essa prática foi (e ainda é) muito explorada pelas elites políticas dos interiores da região

Nordeste, como se fosse uma espécie de trunfo que os políticos possuem para negociar com a

população.

594 Sobre os índices econômicos e de desigualdades sociais no Brasil, ver o portal do Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (Ipea): http://www.ipea.gov.br/portal. 595 Seca: fome e miséria por irresponsabilidade de FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2001, ano XIX,

n. 212, p. 8.

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A intenção do MST era chamar a atenção dos seus integrantes sobre a ausência de

políticas públicas em torno do problema da seca que previssem ações concretas para

solucionar as mazelas do Nordeste. O Movimento era contrário às medidas paliativas e

emergenciais do governo, pois estas eram imediatistas e não buscavam solucionar o problema.

Conforme o MST, “mais do que discursos demagógicos, medidas paliativas e paternalistas

das autoridades estaduais e federais, os flagelados da seca exigem medidas imediatas e um

plano de desenvolvimento para o Nordeste que contemple os socialmente excluídos”596. Nessa

direção, FHC e seu governo eram cúmplices e mantinham “a indústria da seca”, sendo

responsáveis por “dez milhões de pessoas que passavam fome” no Nordeste597.

Entende-se que o governo deveria criar políticas específicas em relação às secas no

Nordeste, no sentido de solucionar os problemas advindos delas, e não apenas agir

pontualmente sobre determinadas questões, tal como observava o MST. Mas, atribuir ou focar

a responsabilidade apenas no presidente, como se ele governasse sozinho ou como se os

estados e municípios também não tivessem papéis fundamentais nesse processo, no mínimo,

se torna uma visão maniqueísta sobre o problema.

Diante do caos social que se instalava no Brasil, segundo a Direção Nacional do MST,

o presidente era sarcasticamente representado como inerte à situação, como se nada estivesse

acontecendo. A charge publicada na edição de janeiro/fevereiro de 1999, de autoria de Luscar,

ilustra essa questão.

Imagem 33 – A grave crise que se instala no Brasil

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 9.

596 Governo FHC mantém a indústria da seca. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio/junho de 1998, ano XVI, n. 179, p.11. 597 Governo FHC mantém a indústria da seca. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio/junho de 1998, ano XVI, n. 179, p. 10.

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Enquanto o Brasil estava numa situação de crise, o presidente se perguntava: “Crise?!

Mas que crise?”. Confortavelmente, deitado em uma rede, lendo um jornal e tomando uma

água de coco, FHC não entendia ou se fazia de desentendido quanto à situação do país. Na

charge, a contradição de idéias visualizadas no discurso escrito são desveladas pela imagem

de bombas que explodem à frente de FHC, sugerindo um cenário de guerra (caos). A charge

tinha por objetivo ilustrar uma matéria publicada no jornal, que explicitava a crise

generalizada do país e a inércia de FHC ao governar. O texto menciona o fato de o presidente

ter se retirado num sítio para descansar, em janeiro de 1999, enquanto o país passava por uma

grande crise econômica e política598. A representação de FHC deitado em uma rede e tomando

água de coco demonstra sua falta de compromisso e dedicação ao Brasil. Todavia, o

Movimento não compreendia que FHC, mesmo presidente, tinha o direito de gozar de férias,

enfim, de se retirar das suas atividades para descanso. Não se trata de justificar a retirada de

FHC para um sítio, mas sim de observar que o Movimento fez desse ato uma prerrogativa

para representar o presidente como irresponsável e inerte aos problemas do Brasil.

Foram várias também as referências de FHC associadas aos escândalos políticos e

corrupção. Aliás, a referida crise também decorria das práticas corruptas de FHC e de seu

governo. Durante os oito anos de FHC na presidência, houve críticas e supostos

envolvimentos de pessoas ligadas ao governo em escândalos e corrupção, mas entre os anos

de 1999 e 2002, a ênfase foi maior. Para o MST, havia uma “crise moral” no governo FHC,

fruto da própria natureza de seu modelo de desenvolvimento e das elites que governam ou que

tinham influências políticas. No editorial da edição de novembro de 1999, o Movimento

destacava: “Os fatos mais recentes que vêm acontecendo no país, como assassinatos,

corrupção, envolvimento de políticos, empresários, juízes etc. com o narcotráfico demonstram

a decadência a que chegaram as elites brasileiras”599. Nesse editorial, o MST salienta-se que

as falcatruas e a corrupção tinham a participação da classe política do país e que o presidente

tapava os olhos para as denúncias e escândalos.

A charge publicada no editorial de junho de 1999, de autoria de Luscar, ironiza o

envolvimento de dirigentes políticos em escândalos de corrupção.

598 A grave crise que se instala no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 9. 599 A decadência das elites brasileiras. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1999, ano XVIII, n. 195, p. 2.

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Imagem 34 – Aumenta a crise no governo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1999, ano XVII, n. 190, p. 2.

O cenário é típico de famílias brasileiras nas horas de descanso em casa. Na sala, em

frente à TV, pai e mãe sentados no sofá e seus dois filhos (uma menina e um menino)

brincando no chão são surpreendidos com mais uma notícia do apresentador da TV: “A

seguir, mais um escândalo do Governo...”. Com a notícia, o pai se espanta, arregala os olhos,

olha para a mulher e diz: “Mulher. É melhor tirar as crianças da sala”. A reação instantânea do

pai foi mediada pelo cuidado com os filhos, pois eram crianças e não podiam assistir a coisas

ruins e inapropriadas à sua idade. O inapropriado eram os “escândalos do governo” que, nesse

editorial, envolviam diretamente o presidente da República. Cumpre registrar que o MST

afirmava que havia provas (fitas gravadas) do envolvimento de FHC no favorecimento “a um

grupo empresarial no processo de privatização da Telebrás”. Assim, o acusava por

“improbidade administrativa”600. Nessa direção, o Movimento ressaltava: Isto é Governo

FHC – escândalos e corrupção601.

Um dos maiores escândalos midiáticos que aconteceram no governo FHC foi do ex-

juiz Nicolau dos Santos Neto (Lalau) e do ex-senador do Distrito Federal, Luiz Estêvão

(filiado ao PMDB, partido da base aliada do presidente na época), após os desvios de recursos

(169,5 milhões de reais), ocorridos entre os anos de 1994 e 1998, que seriam utilizados na

construção do Fórum Trabalhista do município de São Paulo. Lalau e Estêvão foram

condenados pelos crimes de formação de quadrilha, corrupção, peculato, lavagem de dinheiro

e uso de documento falso. Para o MST, esse escândalo estava associado a FHC. Ou melhor, o

600 Aumenta a crise no governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1999, ano XVII, n. 190, p. 2. 601 Isto é Governo FHC – escândalos e corrupção. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1999, ano XVII, n. 188, p. 2.

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presidente também havia se beneficiado dos recursos desviados em sua campanha eleitoral de

1998. No editorial de julho de 2000, a Direção Nacional do Movimento destaca:

Agora, acaba de vir a público as ligações do juiz Nicolau com o palácio do

Planalto. É óbvio que os 169 milhões desviados pelo juiz e pelo senador

Estevão tinham beneplácito do Palácio do Planalto. O que falta descobrir é

quanto desse dinheiro teria sido gasto na campanha de reeleição do

presidente FHC, já que o senador era coordenador da campanha em Brasília.

A podridão está em todas as partes do poder602.

O Movimento acreditava que o dinheiro utilizado na campanha de reeleição de FHC

era ilícito, vindo do escândalo envolvendo o ex-juiz Lalau e o ex-senador Estevão, pelo fato

de Estevão ser um dos coordenadores da campanha de reeleição de FHC em Brasília; logo, o

Movimento supunha que FHC se beneficiara com tal falcatrua. O editorial era acusatório e

não abria possibilidades para que o presidente fosse inocente. A dúvida estava apenas no valor

utilizado por FHC em sua campanha, mas a improbidade do presidente era fato, na visão do

MST. No editorial da edição seguinte (agosto de 2000), cujo texto trazia as experiências do IV

Congresso Nacional do MST, realizado em Brasília, o Movimento também enfatiza as

práticas e escândalos de corrupção envolvendo pessoas ligadas ao governo.

Na política, proliferam, todos os dias, notícias de corrupção e roubalheira

com o dinheiro e patrimônio do povo. Há um setor, das classes dominantes,

cada vez maior, que está enriquecendo apenas com o desvio do dinheiro

público, com o narcotráfico, com o contrabando. Esses setores são tão

poderosos e influentes que envolvem desembargadores, juízes, comandantes

da PM, deputados, senadores, donos de jornais, banqueiros, militares e

chegou até o ex-secretário do Planalto603.

Para o MST, a “corrupção e roubalheira” eram generalizadas no governo FHC,

abarcando diversos seguimentos do funcionalismo público e privado. A perspectiva da

corrupção, de acordo com o do Movimento, estava associada às “classes dominantes”, ou seja,

às elites políticas e econômicas. Enfim, a “podridão” em todas as áreas ligava-se ao “poder”.

O editorial de novembro do ano 2000, com o título: O mau cheiro que exala do Planalto,

602 Cresce a insatisfação popular contra o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000, ano XVIII, n. 202, p. 2. 603 Manifesto do MST ao povo brasileiro. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2000, ano XVIII, n. 203, p. 2.

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publicizava mais uma denúncia de corrupção de FHC. Dessa vez, o escândalo era o suposto

caixa dois604 utilizado nas campanhas eleitorais do presidente.

Mantendo uma impressionante regularidade em denúncias de corrupção, o governo

FHC se vê envolvido em mais um caso: a existência de caixa dois nas eleições de

1998, envolvendo mais de R$ 10 milhões. Legalmente o responsável pelas finanças

das campanhas eleitorais é o próprio candidato. Nesse caso, é o FHC. Ele, no

entanto, diz: “isso não é comigo”. Ora, quem diz que é com ele sim, é a lei! Ou ele

se julga acima desta?605.

Mais que denunciar o suposto esquema de “caixa dois” envolvendo a campanha

eleitoral de FHC no ano de 1998, o MST chama a atenção para o comportamento e discursos

do presidente quando indagado sobre os casos: “isso não é comigo”. Com esse discurso, para

o MST, FHC escondia os escândalos de corrupção e tentava se eximir de qualquer acusação.

Nas representações do Movimento, FHC era tão corrupto quanto outros dirigentes políticos e

grupos econômicos a eles ligados. Na lama da corrupção, FHC estava todo sujo, conforme

representava a charge de autoria de Luscar.

Imagem 35 – O mau cheiro que exala do Planalto

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2000, ano XIX, n. 205, p. 2.

A charge é bem incisiva ao representar que FHC não estava isento da corrupção

praticada em seu governo. Pelo contrário, estava totalmente sujo no lamaçal da corrupção. O

604 A expressão caixa dois refere-se a recursos financeiros não contabilizados e não declarados aos órgãos de

fiscalização competentes. 605 O mau cheiro que exala do Planalto. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2000, ano XIX, n. 205, p. 2.

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líquido de cor preta em que o presidente está parcialmente imerso sugere poluição, coisas

ruins, mau cheiro. Com um semblante apático e envergonhado pela situação, FHC diz: “Tô

limpo nessa história de caixa dois”. O discurso oral do presidente FHC se contrasta com o que

mostra a imagem da charge: um cenário de lama e sujeira.

Nessa direção, o título do editorial de maio de 2001 chama o governo de

“FHCorrupção”, e o texto vai ao encontro de matérias de edições anteriores do jornal, como:

Governo FHC: indignidade nacional606; FHC deve e teme607; Veja porque FHC não quer

CPI608; FHC: governo da corrupção, mentira e apagão609. Todas elas evidenciam escândalos

e corrupção no governo FHC, mas centralizam as representações no presidente, como se ele

fosse partícipe de todas as práticas corruptas. A partir dos escândalos políticos que apareciam

nas mídias, o MST resumia a composição do governo FHC como se fosse um “cesto de lixo”

que cheirava mal e causava danos gravíssimos ao Brasil. Assim, elenca:

Essa é a composição do governo FHC. Cheira mal. Mas desde que assumiu

não teve um único ano em que esse governo não esteve envolvido em

escândalos, casos de corrupção, negociatas com parlamentares, desvios de

recursos públicos. Ao se referir ao mar de lama que envolve seu governo,

FHC diz que ele é o “lixeiro, não o lixo”. Se ele fosse atuante, sobrariam

poucos em seu governo e as cadeias teriam uma população maior. Mas, ao se

auto-denominar “lixeiro” certamente ele não pensava no trabalhador que faz

limpeza. E sim em lixeiro como cesto de lixo. Onde se reúne o lixo610.

O governo FHC, na representação do MST, reunia todo o “lixo político” do Brasil, ou

seja, todos os políticos corruptos. Nesse “lixeiro”, o presidente não se diferenciava, mas sim,

se misturava aos seus correligionários. Na perspectiva do Movimento, a corrupção era

intrinsecamente ligada às elites, pois elas eram corruptas por natureza. Assim, existia uma

visão legalista por parte do MST, uma vez que se entende que era simplista e limitada a ideia

de que, se uma pessoa possui uma condição econômica favorável, ela será corrupta por

natureza. Infelizmente, as experiências históricas evidenciam que escândalos e corrupção têm

sido recorrentes no país, em diversos seguimentos e envolvendo pessoas dos mais diversos

perfis socioeconômicos.

Escândalos e casos de corrupção também seriam frutos da crise generalizada que se

instaurou no governo FHC, e o presidente, junto com os envolvidos, foi representado como

606 Governo FHC: indignidade nacional. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2001, ano XIX, n. 209, p. 8. 607 FHC deve e teme. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2001, ano XIX, n. 209, p. 8. 608 Veja porque FHC não quer CPI. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2001, ano XIX, n. 209, p. 9. 609 FHC: governo da corrupção, mentira e apagão. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2001, ano XIX, n. 213, p. 2. 610 Governo FHCorrupção. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2001, ano XIX, n. 210, p. 2.

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protagonista dos episódios. E, como o Movimento representou FHC em meio aos conflitos

por terra no país? E em relação ao MST, como eram as representações do presidente? Essas

perguntas contemplarão o tópico a seguir.

3.3 FHC: o negócio é “assentar o pau” e criminalizar o MST

Historicamente, os conflitos por terra no Brasil foram marcados por episódios de

violência, tanto física como simbólica. Desse modo, atos de violência contra trabalhadores

rurais sem-terra não são exclusividade do governo FHC. O Jornal Sem Terra, desde sua

criação em 1981, sempre dedicou espaços para se manifestar contra a violência sofrida pelos

trabalhadores rurais e denunciar os agressores. Ao longo do tempo, as representações do MST

sobre os agressores dos trabalhadores sem-terra giraram em torno dos latifundiários, dos

jagunços611, seguranças privadas, polícia, poder judiciário e os próprios governos, coniventes

com tais agressores.

Antes mesmo de FHC assumir a presidência, o MST previa que as dificuldades e a

violência contra os sem-terra continuariam. Salientava, por exemplo, no editorial de

novembro de 1994: “A vitória das forças conservadoras nas eleições, a inoperância do Incra e

o comportamento do Poder Judiciário, parece que serviram de senhas para que os fazendeiros

voltassem a utilizar com mais crueldade e impunidade sua tradicional violência”612. Junto a

esse editorial havia uma charge613 que dramatizava a situação vivenciada pelos sem-terra.

611 Por jagunços compreende-se pessoas contratadas de forma ilegal por proprietários de terras para defenderem

de forma armada suas propriedades. Os jagunços também por vezes são contratados para matarem lideranças de

trabalhadores rurais, objetivando intimidar os grupos que lutam pela terra. 612 E as dificuldades continuam. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1994, ano XIII, n. 142, p. 2. 613 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato do Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador.

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Imagem 36 – E as dificuldades continuam

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1994, ano XIII, n. 142, p. 2.

O editorial destaca a inoperância do governo para com os atos de violência contra os

sem-terra e traz aos leitores o que aconteceu nos municípios de Marabá (Pará) e Maringá

(Paraná), nos quais “diversos trabalhadores rurais foram presos e torturados pela Polícia

Militar”614; também noticia atos de violência contra sem-terra em outros estados do Brasil.

Nesse processo, considerava-se o Poder Judiciário parcial, trabalhando em favor do latifúndio

e daqueles que cometiam violência.

A charge mostra o diálogo entre um trabalhador rural e um homem que representa

grupos contrários à reforma agrária. Com um olhar ingênuo e demostrando não entender tal

situação, o trabalhador rural fala ao outro personagem: “Mas o senhor prometeu terra!”.

Sarcasticamente e transparecendo maldade em seu olhar, com uma arma apontada ao sem-

terra, o opositor da luta pela terra declara: “Esqueci de dizer que era 7 palmos para baixo!”. A

expressão “7 palmos para baixo” significa que a única terra a que o trabalhador rural teria

direito era aquela que ia enterrá-lo. Ou seja, ele teria terra só com a morte, enterrado. A

ingenuidade do sem-terra em acreditar nas promessas chama a atenção para o fato de as

promessas sempre terem feito parte dos programas dos governantes; contudo, sem a

organização e mobilização dos trabalhadores a situação não mudaria. Para o MST, os

conflitos e ações violentas contra os sem-terra estavam intrinsecamente ligados à falta de

vontade política e inoperância dos governos face à reforma agrária.

614 E as dificuldades continuam. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1994, ano XIII, n. 142, p. 2.

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Não se pretende discutir os diversos conflitos e ações de violência contra os sem-terra

no período em que FHC governou o país. Todavia, não há como deixar de mencionar os dois

massacres de sem-terra que tiveram grande repercussão nacional e internacional, sendo eles:

massacre de Corumbiara, ocorrido em agosto de 1995, no município de Corumbiara

(Rondônia); e o massacre de Eldorado dos Carajás, em abril de 1996, no município de

Eldorado dos Carajás (Pará). Certamente, ao se destacar esses dois massacres não está se

desconsiderando outros casos de violência contra os trabalhadores rurais sem-terra, pois

independente da repercussão, torna-se lamentável e repugnante toda ação de violência, seja

com quem e qual grupo for.

O massacre de Corumbiara aconteceu na Fazenda Santa Elina, área ocupada por

centenas de famílias de trabalhadores rurais sem-terra. Na madrugada do dia 9 de agosto de

1995, 194 policiais e dezenas de jagunços fortemente armados cercaram o acampamento dos

trabalhadores. Sem perspectiva de diálogo para a desocupação da área, policiais e jagunços

aterrorizaram o local com muita violência e o total de mortos no conflito foi de onze pessoas,

inclusive uma criança de apenas seis anos de idade615. Em seu primeiro ano como presidente,

FHC teve que enfrentar as repercussões do massacre, pois a reforma agrária era atribuída à

sua competência.

Em seu segundo ano de mandato, FHC lidou com outro massacre de trabalhadores

rurais sem-terra. O dia 17 de abril de 1996 protagonizou o massacre de Eldorado dos

Carajás, talvez, o conflito por terra mais emblemático do Brasil, a partir da década de

1980616. Nesse dia, 1.500 sem-terra, que estavam acampados na região de Eldorado dos

Carajás, organizaram uma marcha em protesto pela demora de desapropriações de terras no

estado do Pará, e obstruíram a rodovia PA-150, que liga Belém ao Sul do estado.

Aproximadamente 155 policiais foram ordenados pelo governador Almir Gabriel (PSDB) e

pelo secretário de segurança do estado, Paulo Sette Câmara, a retirarem os sem-terra da

rodovia. Chegando ao local os policiais partiram para o enfrentamento utilizando bombas de

gás lacrimogêneo e os sem-terra revidaram com paus e pedras. Em seguida, a PM abriu fogo

contra os sem-terra e a tragédia estava anunciada: 19 trabalhadores rurais mortos, centenas de

feridos e 69 trabalhadores mutilados.

615 Sobre o massacre de Corumbiara, ver a tese: MESQUITA, Helena Angélica de. Corumbiara: o Massacre dos

Camponeses. Rondônia, 1995. 2001. Tese (Doutorado em Geografia Humana) Universidade de São Paulo –

USP, São Paulo. 616 O Setor de Direitos Humanos do MST, junto com o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural

(NEAD), e a Comissão Pastoral da Terra (CPT- Marabá/PA), elaborou um material interessante sobre o

massacre do Eldorado dos Carajás, demonstrando como ocorreu o massacre e os desdobramentos judiciais sobre

o caso. Ver: MST – Massacre de Eldorado dos Carajás. s/d.

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Para os movimentos sociais do campo e entidades que apoiam a luta dos trabalhadores,

além dos mortos e feridos nos conflitos, o que marcou os massacres foi a impunidade dos

agressores e assassinos. Em ambos os massacres apresentados, os policiais e as autoridades

que autorizaram a ação estão em liberdade. No caso específico de Eldorado dos Carajás, dos

144 policiais levados ao banco dos réus, 142 foram absolvidos. Houve apenas duas

condenações, a do coronel Mário Colares Pantoja e a do major José Maria Pereira Oliveira,

apontados como comandantes da operação, contudo, ambos recorrem da sentença em

liberdade. Esse exemplo é fatídico de como a impunidade impera em relação aos atos de

violência e massacres contra trabalhadores rurais; também a impunidade estimula e garante a

naturalização da violência.

Em especial, por esses dois episódios, FHC ficou marcado pelo MST como o

presidente dos massacres de sem-terra. Nessa perspectiva, era representado como autoritário e

como alguém que tratava os sem-terra com truculência. Também, que FHC se utilizava de

suas influências nas mídias e de instrumentos legais para incriminar e isolar o Movimento.

Parte do título atribuído a esse tópico, extraído de uma charge, resume bem as representações

do MST sobre FHC no que diz respeito aos sem-terra. Em meio às tensões da luta pela terra, o

presidente, em vez de assentar famílias, “assentaria o pau” nos sem-terra.

Imagem 37 – O negócio é assentar o pau

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1998, ano XVII, n. 185, p. 2.

O editorial, em que foi publicada a charge, fazia um balanço das ações do governo

FHC, ao final do seu primeiro mandato. Eram questionados os dados do governo sobre

famílias assentadas e sobre sua visão da reforma agrária que, para o MST, não passava de

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uma “política de compensação social para evitar conflitos”. Outro assunto abordado também

foi a “violência no campo” e a “impunidade”617, sendo o governo FHC cúmplice e partícipe

da violência e dos massacres contra os sem-terra. O aspecto que chama atenção na charge618 é

o de que FHC está no centro das representações, mesmo que se fale do seu governo. No lado

esquerdo da imagem, FHC, com o braço esquerdo levantado, mãos fechadas e um sorriso

meio que forçado, discursa: “O negócio é assentar... o pau!”. Em outro plano, atrás do

presidente, um homem, fortemente armado e com uma expressão de felicidade, representando

os agressores dos sem-terra, diz: “Falou bonito”. O diálogo estabelecido na charge evidencia

que, para o MST, FHC e os agressores dos sem-terra eram próximos e falavam a mesma

língua, ou seja, entendiam que era preciso utilizar a violência para combater os movimentos

sociais do campo e frear a reforma agrária no país.

A representação de FHC como autoritário e violento seria um contraste com o perfil

do MST, que preza pela realização pacífica619 da reforma agrária, embora sua Direção

Nacional, na figura de Stedile, considere que, por vezes, se não houver os conflitos, não

haverá assentamento620. Em seu ideário, analisando os discursos do Jornal Sem Terra e

demais materiais internos produzidos pelo Movimento, o MST não incentivava o confronto

físico e armado em suas manifestações, pelo contrário, prezava pelo diálogo e negociação. A

organização e resistência pelo direito de se manifestar e denunciar a realidade sempre foram

bandeiras de luta do MST, mas com diálogo e caráter pacífico.

A violência era atribuída aos policiais, latifundiários, seguranças privadas, governantes

e grupos conservadores contrários às desapropriações de terras. O título do editorial de

setembro de 1995 é Para acabar com a violência no campo. O editorial destaca que a inércia

do governo para com a reforma agrária gera conflitos e mortes; também que “a polícia militar,

quando atua, só cria mais um problema e não resolve nenhum”621. Em maio de 1996, o MST

propunha “paralisar o Brasil contra os massacres” de sem-terra e ressaltava:

617 Governo FHC: quatro anos de enrolação. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1998, ano XVII, n. 185, p. 2. 618 Não há assinatura na charge. A identificação do autor/a se comprometeu também pelo fato do Expediente do

jornal não dar o crédito ao colaborador. 619 Em sua tese de doutorado, o pesquisador Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto analisou o MST e o Exército

Zapatista de Libertação Nacional (EZLN, México) e refletiu sobre as diferenças entre estes dois movimentos

sociais, sendo que o MST se revela pelo caráter pacífico e não armado, em contraste com a ação militarizada dos

Zapatistas. Ver: VARGAS NETTO, Sebastião Leal Ferreira. A Mística da Resistência: culturas, histórias e

imaginários rebeldes nos movimentos sociais latino-americanos. 2007. Tese (Doutorado em História). USP, São

Paulo. 620 FERNANDES, B. M; STEDILE, J. P., Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, p. 140. 621 Para acabar com a violência no campo. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1995, ano XIV, n. 151, p. 2.

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A ineficiência do governo em agilizar a implantação da Reforma Agrária em

nosso país criou pré-condições para que ocorresse mais um massacre de

trabalhadores rurais sem-terra. [...]. Mas também há responsabilidade do

governo federal e sua ineficiente, quando não existente, política de Reforma

Agrária. Um governo que coloca um latifundiário e um banqueiro para ser

seu Ministro da Agricultura e, em menos de 18 meses, troca 5 vezes o

presidente do INCRA, dá uma clara demonstração de ser contrário à reforma

agrária. As famílias vítimas do conflito de Eldorado estavam acampadas

desde o ano passado. O presidente FHC, em audiência com o MST, havia se

comprometido de, até dezembro de 1995, assentar todas as famílias que

estavam acampadas. Se tivesse cumprido a palavra, o massacre teria sido

evitado622.

O trecho do editorial refere-se aos massacres de Eldorado dos Carajás e denuncia o

governador do estado do Pará, Almir Gabriel, e a Polícia Militar pelo massacre ocorrido.

Nele, também ressalta-se a “ineficiência” do governo FHC para com a reforma agrária. Aliás,

o MST foi enfático ao dizer que o presidente e sua equipe de governo eram contrários à

reforma agrária. Também, há destaque para uma audiência623 que o Movimento teve com o

presidente em que ele havia firmado compromisso de assentar “todas as famílias que estavam

acampadas”. Como não houve o cumprimento da palavra de FHC, as famílias de Eldorado

dos Carajás foram vítimas dessa omissão do presidente. Ou seja, nas representações do

Movimento, a omissão e a ineficiência de FHC em realizar a reforma agrária eram

responsáveis diretamente pela violência e massacres contra os trabalhadores rurais sem-terra.

Aumenta a violência e continua a impunidade no campo e Governo deveria priorizar

a solução dos problemas agrários624 eram os nomes dados aos editoriais de junho e setembro

de 1996, respectivamente. Nesses editoriais são enfatizadas as “ondas de violência” e os

“responsáveis” pelas ações contra os sem-terra. No que diz respeito à violência no campo,

naquele contexto, o MST sublinha que: “no banco dos réus, há, portanto, um lugar reservado

para FHC”625. Nesse sentido, FHC era representado como um “déspota esclarecido”626, que

estava a serviço das elites. Ao recriminar as ações dos sem-terra e ser cúmplice de toda

violência no campo, FHC se tornava um inimigo dos movimentos sociais, em especial, do seu

mais expressivo opositor, o MST.

622 Vamos paralisar o Brasil contra os massacres. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1995, ano XIV, n. 151, p. 2. 623 Essa audiência foi realizada em julho de 1995, no transcorrer do 3º Congresso Nacional do MST, em Brasília.

Ver: Irreverência dos Sem Terra marca audiência com FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1995, ano

XIV, n. 150, p. 4. 624 Governo deveria priorizar a solução dos problemas agrários. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1996,

ano XV, n. 162, p. 2. 625 Aumenta a violência e continua a impunidade no campo. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1996, ano

XV, n. 159, p. 2. 626 A cara desse governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 2.

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Sobretudo, em seu segundo mandato, o presidente passou a isolar o Movimento a

partir de algumas ações de seu governo e com o apoio massivo dos grandes meios de

comunicação. Sobre isso, deu-se ênfase em diversos editoriais e matérias do Jornal Sem

Terra. No editorial de março de 1997, que tem o título A reação à política de FHC, publicou-

se uma charge representando que FHC pichava o MST.

Imagem 38 – Confusões de adolescente

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1997, ano XVI, n. 167, p. 2.

A primeira observação a ser feita sobre a charge, de autoria de Marcio Baraldi, é

relativa à sensibilidade do chargista em atribuir uma carga imensa de humor à imagem. O

editorial em que estava inserida tratava do caos social advindo do modelo econômico de

FHC, da enrolação do governo em realizar a reforma agrária, e dos desdobramentos da

Marcha Nacional do MST que então se realizava627. Nesse contexto, o Movimento enfatiza

também que FHC estava mais interessado em pichar o MST, isto é, em apagá-lo do cenário

político brasileiro. O título da charge Confusões de adolescente reforça a imagem/figura que

aparece de FHC, representado como um jovem na adolescência, cheio de confusões em sua

cabeça. Aparentemente com uma estrutura física maior, utilizando um tênis da moda, calça de

moletom, camiseta do Chicago Bulls (time de basquete do EUA) e boné virado para trás, o

jovem FHC faz estripulias ao pichar um muro. Atrás de FHC está um amigo, com uma bola

627 A reação à política de FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1997, ano XVI, n. 167, p. 2.

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de futebol embaixo do braço direito, que lhe diz: “Vem Fernandinho! Vamo jogar bola,

depois você picha o MST!”. Concentrado na pichação e com uma cara de mau, mas, ao

mesmo tempo sentindo prazer no que fazia, o “Fernandinho” continua a pichar um cartaz do

MST que está colado no muro. Na imagem, FHC é representado como um menino mimado,

pertencente a uma família abastada economicamente e que não gosta dos movimentos sociais,

em especial, do MST.

Conforme o MST, o presidente seguia disciplinadamente a cartilha neoliberal que

pregava o não diálogo com os movimentos sociais e negava-lhes os seus espaços políticos na

sociedade628. Assim, ele adota a estratégia de isolamento, criminalização e repressão ao MST.

Especialmente, em seu segundo mandato, cai a “máscara” de FHC e a de seu governo629, que

se travestiam de democratas, mas suas práticas eram autoritárias e antidemocráticas, segundo

o Movimento. Em outra charge de Marcio Baraldi, o MST diz que o “rei” estava “nu”. Ou

seja, não conseguia esconder o seu perfil conservador, antidemocrático e elitista, e que

almejava acabar com os movimentos sociais.

Imagem 39 – O Rei está nu

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 11.

628 FHC e os movimentos sociais. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1998, ano XVII, n. 183, p. 13. 629 Cai a máscara do governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 11.

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Ao associar a figura de FHC à de um rei, o Movimento representa o presidente com

característica de um déspota, que não dialoga com a sociedade. Na charge, FHC é

ridicularizado pelo Movimento, pois sua fisionomia é a de uma pessoa má e com aparência

muito distinta. Nu, apenas com sua capa, coroa e cedro de rei, o presidente demonstra-se

furioso e grita: “Chega de baderna!”. Em seu corpo, cheio de pelos, aparentemente mais

robusto do que o verdadeiro FHC, há uma nota de “200 mil” tampando seu órgão genital. O

valor da nota refere-se ao suposto suborno de FHC aos parlamentares para aprovação do

projeto de lei que previa a reeleição dos cargos do executivo (ver nota de rodapé nº 526).

Observa-se que, atrás do presidente, há uma multidão de trabalhadores e trabalhadoras

reivindicando reforma agrária, emprego, valorização do salário. A “baderna” à qual FHC se

referia eram as manifestações dos grupos sociais organizados; e, por sua característica de

déspota, ele se irava com os fatos ocorridos. O MST expressava o fato de que o país vivia

numa situação caótica e o presidente não queria dialogar com os movimentos sociais, pelo

contrário, se utilizava dos mecanismos legais para deslegitimar e incriminar as ações dos

trabalhadores.

De acordo com Feliciano, no governo FHC iniciou-se uma política de tentar suprimir a

força política dos movimentos sociais. A estratégia utilizada foi a que Feliciano chamou de

“processo de despolitização da luta camponesa”, construído a partir de três espaços: legal,

institucional e imaginário. O espaço legal situava-se nos meandros de quem criava e

mandava cumprir as leis. Sendo assim, transitava e vinculava-se a toda forma de punição,

extinção e repressão das ações dos movimentos sociais. Os agentes responsáveis por criar

estes espaços eram sustentados por uma estrutura de poder, nos mais diversos níveis,

envolvendo delegados, juízes, promotores, advogados, técnicos, dentre outros preocupados

com a manutenção da ordem.

Uma ação que reforçava o espaço legal, em contraposição à desapropriação de terras,

era a do Rito Sumário, em 1996. O Rito Sumário foi pensado para agilizar e reduzir o tempo

dos tramites nos processos de desapropriações de terras. Mas, a partir das brechas legais, os

proprietários que se sentiam injustiçados entravam com recurso contra a desapropriação, que

se arrastava durante anos no Poder Judiciário. Além disso, na maioria das vezes, o judiciário

atuava em favor dos proprietários e em prejuízo dos trabalhadores. Uma evidência disso foi

que as ordens de despejos das áreas ocupadas eram expedidas rapidamente pelo poder

judiciário, enquanto processos de desapropriação demoravam anos para serem avaliados e

julgados. Nesse sentido, o Rito Sumário, uma ação política do governo que legalmente “seria

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favorável ao processo de reforma agrária, tornou-se obsoleto devido a suas lacunas e

possibilidades interpretativas”630.

Outra estratégia legal que o governo FHC edificou para punir os movimentos sociais

que lutavam por terra e que utilizam da ocupação como instrumento de luta foi a da criação

da Medida Provisória 2.109-49, de 27 de fevereiro de 2001, pelo então ministro do

Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann. Essa Medida Provisória foi criada

estrategicamente para que os movimentos sociais do campo não fizessem ocupações, pois

haveria reações imediatas e punitivas ao processo de desapropriação e ao grupo que fazia as

ocupações, como sua exclusão dos ocupantes dos programas de reforma agrária. Para

Feliciano, essa medida era a evidência de uma posição autoritária, inconstitucional e

antidemocrática do governo FHC631, sendo chamada pelos estudiosos como a “judicialização

da reforma agrária”. A “judicialização” da reforma agrária fora explicitada na criminalização

das ocupações de terra e no descaso do governo em solucionar o problema das famílias

acampadas.

Em relação ao espaço institucional, foram criados mecanismos para sustentar as

perspectivas de reforma agrária do governo (via mercado) e legitimar suas ações nessa área.

Assim, criaram-se projetos e programas que tiravam o foco do problema agrário brasileiro e

ao mesmo tempo esvaziava a importância dos movimentos sociais como interlocutores e

fomentadores de políticas relacionadas ao campo. Dentre os projetos e programas, citam-se o

Programa Novo Mundo Rural, o Projeto Cédula da Terra, o Programa de Acesso Direto à

Terra e o Banco da Terra, que serão objetos de análise no próximo tópico deste capítulo.

O espaço imaginário foi construído pelo governo FHC, junto aos meios de

comunicação, mediante a elaboração, construção, uso e divulgação de informações

manipuladas e que não condiziam com as experiências históricas dos movimentos sociais. No

imaginário, os espaços legal e institucional ganhavam visibilidade e vitalidade. O uso dos

meios de comunicações era o principal instrumento para se construir o espaço imaginário. Por

ora, os movimentos sociais e suas ações, quase sempre foram representados de forma

pejorativa, arcaica e violenta, contra um projeto de desenvolvimento moderno do governo. A

construção do espaço imaginário visava deslegitimar e desarticular o alcance político das lutas

dos movimentos sociais632.

630 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 59. 631 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 62. 632 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 77.

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No governo FHC, houve deliberadamente uma tentativa, por meio de campanhas

publicitárias e grandes veículos de comunicação, para deslegitimar e criminalizar os

movimentos sociais no campo, em especial, o MST633. O Movimento também utilizava o

Jornal Sem Terra para fazer uma contraposição às representações sobre sua organização na

grande imprensa que, a seu ver, estava a serviço das elites e do governo FHC.

No que tange ao governo FHC e às mídias, Bernardo Kucinski sublinha que os

grandes meios de comunicação haviam “fechado” com o governo. “O sistema mídia como um

todo fechou com o sistema de poder e por tabela como o sistema governo”. Apenas alguns

poucos veículos isolados e de circulação restrita mantiveram-se críticos a FHC e fora do

sistema de apoio ao presidente. Kucinski revela também que o apoio dos grandes meios de

comunicação ao governo esteve ligado às privatizações nas telecomunicações e concessões de

novas frequências para transmissão de rádio, TV e áreas de exploração de TV a cabo. Com

isso, o governo poderia barganhar, através do Ministério das Comunicações, com os grandes

empresários das telecomunicações o apoio ao Governo. Para o autor, o discurso jornalístico

durante o governo FHC foi essencialmente político e não era para informar, mas sim para

persuadir a sociedade. Tratava-se de um “discurso único”, que “não considerava o homem

como protagonista das histórias e sim as empresas, os executivos, os fundos de pensão, enfim

as várias representações do capital e seu processo de acumulação”634. Nesse sentido, os meios

de comunicação foram utilizados para se criar um único entendimento: que a economia estava

bem, estabilizada, e que o país estava no rumo certo.

Ao falar sobre as táticas da “mídia de FHC”, Kucinski destaca que a mídia se tornou

uma espécie de instrumento do governo, com manobras diversionistas, de desinformação e da

633 Conforme Neves da Silva, as mídias foram estratégicas para representar negativamente o MST e suas ações.

Assim: “A mídia possuía um papel especial na tática do governo federal de derrotar o MST. A exposição do

movimento nos meios de comunicação, em especial os mais populares, tais como TVs abertas, tinha o objetivo

de criminalizá-lo. Ou seja, formar opinião pública contrária ao movimento, caracterizando-o como insensível ao

diálogo de efetivação da reforma agrária” (2004, p. 94). Sobre as relações e tensões envolvendo o MST nas

mídias, destacam-se as seguintes pesquisas: MENDONÇA, Maísa. O MST na mídia. Biblioteca mídia e

movimentos sociais. Disponível em: http://www.mst.org.br. Acesso em: 17/06/2012; GUARESCHI, Pedrinho A.

“Essa gentalha infeliz”: a representação social dos sem-terra segundo Mendeslki. In: GUARESCHI, Pedrinho A.

(Org.). Os Construtores da Informação: meios de comunicação, ideologia e ética. Petrópolis: Vozes, 2000.

p.199-231; FONTES, Solon S. O movimento social pela terra e a reforma agrária no Brasil: uma leitura da

revista Veja, ao final dos anos 90. Salvador: FFCH/UFBA, dezembro de 2001 (MIMEO); SOUZA, Eduardo F.

Do Silêncio à Satanização: o discurso de Veja e o MST. São Paulo: Annablume, 2004; SCHWENGBER, Isabela

de Fátima. Quando o MST é Notícia. Dourados: Editora UFGD, 2008; ALDÉ, Alessandra; LATTMAN-

WELTMAN, Fernando. O MST na TV: sublimação do político, moralismo e crônica cotidiana do nosso “estado

de natureza”. Disponível em: httpdoxa.iuperj.brartigosMST2.pdf. Acesso em: 17/10/2012; ARBEX JÚNIOR,

José. Jornalismo Canalha: a promíscua relação entre mídia e poder. São Paulo: Casa Amarela, 2006;

MARAMBAIA, Hudson P. A Dinâmica do MST na Grande Imprensa: uma arquitetura de significados. 2002.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal da Bahia – UFBA. 634 KUCINSKI, B., A Mídia de FHC e o fim da Razão, p. 183-186.

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reiteração das “verdades” autoproclamadas pelo discurso oficial. Assim, a mídia “agiu

coletivamente como um corpo de bombeiros do governo, acionada regularmente para apagar

incêndios provocados por jornalistas ou veículos que isoladamente não haviam entendido ou

aceito as regras do jogo”. Isto é, a mídia estava a serviço do governo FHC. Quando se davam

as crises, ela era “bombeira”, buscando “apagar” os discursos críticos, contrários ao governo,

e passar uma imagem positiva de que FHC e sua equipe estavam empenhados em resolver os

problemas, em nome da estabilidade econômica e da sociedade brasileira635.

A partir do espaço legal, institucional e imaginário, o MST, por sua vez, entendia que

o governo FHC organizava suas “artimanhas para destruir os movimentos sociais”. Além da

violência contra os sem-terra e o caráter autoritário do governo, ressalta-se a criminalização

do MST, em que centenas de lideranças foram perseguidas, presas e mortas. Era a

criminalização da luta pela terra, e o MST publicava diversos textos denunciando essa

questão.

Então, para garantir o sucesso do modelo econômico e agrícola, era preciso

calar, frear os que lutam contra o modelo e por uma reforma agrária

verdadeira. Passaram a implementar diversas medidas políticas, judiciais,

legislativas e operacionais que representaram um cerco ao MST e aos

movimentos sociais que lutam pela reforma agrária. Uma das medidas foi a

repressão mais inteligente e sofisticada, feita pela Polícia Federal, através do

Poder Judiciário, de inúmeros processos contra lideranças. Prisões, torturas

etc. Foi no governo FHC que houve o maior número de prisões e processos

contra lideranças de trabalhadores rurais636.

Conforme o MST, uma das “artimanhas” do governo era abrir processos contra os

sem-terra e efetuar prisões de lideranças. Nesse sentido, utilizou-se da inteligência e

sofisticação da Polícia Federal para espionar e incriminar dirigentes do Movimento. Em junho

de 1997, a Direção Nacional do MST denunciava as ações do governo federal e dos estaduais

por utilizarem seus serviços de inteligência para mapear e grampear os telefones das

secretarias do Movimento e de suas lideranças637. Para o MST, em vez de FHC se preocupar

com a reforma agrária, suas ações estavam mais focadas em “sufocar o MST”638, divulgar

mentiras sobre sua organização e realizar prisões dos seus dirigentes. No editorial de maio de

635 KUCINSKI, B., A Mídia de FHC e o fim da Razão, p. 191-192. 636 As artimanhas do governo para destruir os movimentos sociais. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2002, ano

XX, n. 217, p. 10. 637 Espionagem contra sem-terra. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1997, ano XVI, n. 169, p. 4. 638 A ordem é sufocar o MST. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1997, ano XVI, n. 172, p. 2.

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2000, o Movimento ressalta que reforma agrária não se fazia “com mentiras e prisões”639, mas

sim com vontade política e diálogo com os movimentos sociais. Ao refletir sobre a política

agrária no governo FHC, Carvalho Filho vai ao encontro dos discursos do MST, no sentido de

que o governo, com apoio dos meios de comunicação, “reforçou sua linha de desqualificação

dos movimentos sociais, procurando agora, mais claramente, criminaliza-los. Ou seja, voltar à

prática de tratar a questão social como caso de polícia – mandar prender, manter o controle

para que nada, de fato, mude”640. Nesse processo, a reforma agrária foi tratada como caso de

polícia.

Uma das prisões de lideranças do MST que teve ampla repercussão midiática foi a de

José Rainha Junior, que militava pelo Movimento na região do Pontal do Paranapanema,

estado de São Paulo. Essa liderança havia sido acusada de coautoria em duplo homicídio,

ocorrido em junho de 1989, no município de Pedro Canário, no estado de Espírito Santo, e foi

condenada a vinte e seis anos e seis meses de prisão, em primeiro julgamento realizado em

junho de 1997. Para o MST, a perseguição e a prisão de José Rainha foram injustas e o

militante foi alvo político, sobretudo porque era uma liderança ativa do Movimento na

época641. Em julho de 2007, o Jornal Sem Terra pontua em uma matéria que José Rainha teria

direito a um segundo julgamento e que o aguardaria em liberdade642. O interessante dessa

matéria e que auxilia nas reflexões é a charge na qual FHC parece demonstrar satisfação com

a provável prisão de José Rainha.

639 Reforma agrária não se faz com mentiras e prisões. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2000, ano XVIII, n.

200, p. 2. 640 CARVALHO FILHO, J. J. de., Política Agrária, p. 96. 641 José Rainha Júnior foi afastado do MST, em 2004, por divergir e negligenciar as posições políticas e

princípios organizativos do Movimento. Em 14 de maio de 2007, a Direção Nacional do MST lançou uma nota

de esclarecimento reafirmando que Rainha não fazia mais “parte de nenhuma instância nacional, estadual ou

local do MST [...]. E, portanto, em seus pronunciamentos públicos, audiências com autoridades e nos espaços

que a mídia tem lhe reservado ele fala unicamente em nome pessoal e não em nome do MST". Ver:

MACHADO, Cristiano. Em carta, MST reforça punição a José Rainha. Folha de São Paulo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u92773.shtml. Acesso em: 30/05/2014, às 11h17min. 642 No segundo julgamento, realizado em Vitória/ES, no dia 5 de abril de 2000, José Rainha foi inocentado do

suposto crime que havia cometido. A defesa conseguiu provar que Rainha estava longe do local no dia em que

havia ocorrido duplo homicídio.

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Imagem 40 – Mais um Zé no banco dos réus

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1997, ano XVI, n. 170, p. 9.

A referida charge, de autoria de Luscar, contém três cenas, e em todas elas o

presidente está sentado de pernas cruzadas em um sofá, na frente de uma TV. Provavelmente,

em sua casa, num momento de descanso, FHC liga a TV para se entreter um pouco. Na

primeira cena, o noticiário mostra a imagem de José Rainha em destaque e informa que ele

aguardará o segundo julgamento em liberdade. Na segunda cena, a reação do presidente é

imediata, seu semblante muda, o que evidencia que a notícia não lhe agrada. Assim, pega o

controle e troca de canal. No terceiro momento, aparece a imagem de José Rainha em uma

prisão, atrás das grades, o que provoca risadas sarcásticas de FHC: “rê, rê, rê...”. A face do

presidente se altera em relação à segunda cena, e o seu sorriso indica felicidade imensa ao ver

o militante do MST na prisão. Com um toque de humor, e para além da figura de José Rainha,

o Movimento representa que o presidente agia para colocar as lideranças do MST na cadeia.

Ao reprimir e criminalizar as ações dos sem-terra, o governo passa a imagem de que o

MST agia na ilegalidade e a de que suas manifestações não eram legítimas e, por vezes,

carregadas de violência e baderna. Nesse contexto, como forma de isolar politicamente o

MST, o governo descredenciou diversas cooperativas ligadas ao Movimento643. Ao refletir

sobre as ações de isolamento e repressão do governo FHC em relação ao MST, Maria

Conceição D’Incao sublinha que era uma “demonstração evidente de autoritarismo e da

discriminação dos setores populares constitutiva da sociedade brasileira”644, e o Brasil seria

democrático apenas no “plano formal”, pois nas práticas ainda havia muito a caminhar. E em

relação à reforma agrária, como as ações do presidente e as de seu governo foram

representadas pelo MST? Houve avanços no processo de reforma agrária nos oito anos em

643 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 240-241. 644 D’INCAO, M. C., O MST e a Verdadeira Democracia, p. 213.

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que FHC foi presidente? Essas são algumas indagações que permearão as reflexões do

próximo tópico.

3.4 “Nhén, Nhén, Nhén e Blá, Blá, Blá”: “tucanóquio” da reforma agrária

Reforma agrária e FHC nunca combinaram, conforme as representações do MST.

Antes mesmo de concretizar sua vitória nas urnas, FHC fora apresentado como aquele que

“enterraria” a reforma agrária645. Apoiado pelos “latifundiários”, estes não permitiriam

“mudanças na estrutura fundiária e muito menos uma ampla reforma agrária”646. O modelo de

desenvolvimento político e econômico do governo FHC, o neoliberalismo, era uma barreira

para a conquista da verdadeira reforma agrária, segundo a Direção Nacional do Movimento.

As ações de FHC e as de seu governo, em relação à reforma agrária, eram constantemente

repudiadas e motivo de muitas críticas do MST.

Para o Movimento, o presidente era um enrolador, só discursava e prometia, mas nada

de ação. Em diversos editoriais, o MST representou essa questão de forma humorada, por

meio das charges. A forma mais incisiva de elaborar essa representação foi expor

sarcasticamente o presidente nas charges, como se ele não falasse nada com nada. A

expressão utilizada foi: “nhén, nhén, nhén e blá, blá, blá”. No editorial de outubro de 1995, a

Direção Nacional destacava: Vamos tirar a reforma agrária do papel. O texto questionava o

fato de o presidente, mais novo “defensor da reforma agrária”, ter o discurso “incoerente” em

relação à sua prática647. Ao relatar que FHC era “defensor” da reforma agrária, obviamente, o

Movimento utilizava-se da ironia e explicitava a falta de ação do presidente nos processos que

diziam respeito à desapropriação de terras. Na charge, a seguir, observa-se de forma

humorada o cozinheiro FHC enrolando o rocambole.

645 Uma eleição histórica. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1994, ano XIII, n. 140, p. 2. 646 Venceu a Mentira. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1994, ano XIII, n. 141, p. 2. 647 Vamos tirar a reforma agrária do papel. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1995, ano XIV, n. 152, p. 2.

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Imagem 41 – Governo Rocambole

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1995, ano XIV, n. 152, p. 2.

Na charge, de autoria de Marcio Baraldi, FHC é o cozinheiro chefe do denominado

“Governo Rocambole”. A associação do governo ao rocambole648 é pelo fato de que este seria

todo enrolado, isto é, envolto em si mesmo. Com um avental sobre o terno e um chapéu de

chefe, o presidente ensina para um grupo de pessoas os truques de seu governo para se fazer

um rocambole, e assim explica: “primeiro aplique uma camada de promessas doces...”. Ao

dizer o primeiro passo, utilizando uma colher retira da panela os ingredientes: “nhén, nhén,

nhén e blá, blá, blá”. Atentamente, as pessoas, que representam trabalhadores rurais sem-terra,

ouvem o cozinheiro aplicar as “promessas doces”. O cômico é que o próximo passo da receita

é juntar as “promessas doces” aos trabalhadores e enrolá-los junto com a massa. Enquanto

enrolava a massa, o presidente demostrava satisfação e felicidade, dando muitas gargalhadas.

FHC é, então, personificado como um enrolador – só discursava e não tinha efetividade na

prática.

Um Governo tartaruga e enrolador era o título do editorial de agosto de 1996. Nele, o

Movimento define FHC e seu governo como “inertes”, pois falam “muito na imprensa, mas,

na prática, tem feito muito pouco”. Percebe-se que, ao qualificar o presidente e sua equipe

como “inertes”, o discurso do jornal prossegue numa perspectiva continuísta, pois em relação

aos presidentes e governos anteriores essa qualificação também se procedeu. Na concepção do

MST, faltava “vontade política” do presidente para encampar um programa de reforma agrária

648 Bolo fino em forma cilíndrica. Na sua produção, a cobertura é passada sobre o bolo, para que este seja então

enrolado sobre si mesmo.

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que alterasse a estrutura fundiária do país. É interessante que, nesse editorial, o Movimento

reconhece certo avanço nos trâmites que envolviam as desapropriações de terras; contudo,

mesmo sobre esses, entendia-se que havia alguma coisa errada por trás. Assim, elencava:

Também podemos computar como avanço a melhoria da Lei do Rito

Sumário, aprovada pela Câmara dos Deputados. É bem verdade que, por

baixo do pano, o governo fez um acordo com a bancada ruralista para

encaminhar outro projeto que vai alterar a Lei e prejudicar a reforma agrária

como um todo649.

A atitude de reconhecer o “avanço”, mas, ao mesmo tempo, negá-lo indica que o

governo era personificado sob uma única perspectiva, a ruim. Essa representação de FHC

partia de um prisma maniqueísta: bem ou mal. Para o MST, pelas representações analisadas,

não havia possibilidade de FHC fazer algo bom para a reforma agrária sem que não houvesse

interesses por trás (ou difusos). As representações de que FHC não passava de um “enrolador”

permaneceram durante seus mandatos e o MST ironizava o presidente ao falar muito e fazer

pouco em relação à reforma agrária. Em suas audiências com as entidades representativas dos

trabalhadores rurais, FHC era o mestre da “enrolência”650, ou seja, falava de tudo mas não

fazia de nada. Na última publicação do ano de 1997, ao fazer um balanço sobre a reforma

agrária no país, por meio de uma charge de autoria de Luscar, o MST expõe os “blá, blá, blás”

de FHC.

Imagem 42 – Balanço da Reforma Agrária

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 1997 e jan. de 1998, ano XVI, n. 175, p. 2.

649 Um governo tartaruga e enrolador. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1996, ano XV, n. 161, p. 2. 650 Audiência com o governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1999, ano XVII, n. 191, p. 14.

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Nesse editorial, o MST critica FHC e seu governo por beneficiarem somente os

grandes proprietários de terras e também ressalta que era improvável uma reforma agrária

com o modelo econômico implementado pelo presidente. FHC era um governante só de

discurso e enganava “a opinião pública através da propaganda de falsas saídas para a reforma

agrária”651. Na imagem, o presidente, com a faixa presidencial escrita “FHC 97”, em

referência ao ano de 1997, que se findava, discursa avidamente sobre os feitos de seu

governo. Com o braço direito levantado e demostrando confiança naquilo que fala, o

presidente diz: “blá, blá, blá, blá, blá...”. O MST ironiza os discursos do presidente, como se

eles fossem vazios e não condissessem com as experiências históricas vivenciadas pelos

trabalhadores. Em uma atitude ousada face àquilo que FHC discursava, um integrante do

MST risca, com um “X”, os “blá, blá, blá, blás” do presidente. Muito mais que riscar seu

discurso, no sentido de que não acreditava nele, o MST nega FHC, seu modelo de

desenvolvimento e o que ele projetava em termos de reforma agrária para o Brasil. Riscar seu

discurso se configurava também como um ato de resistência ao presidente e às suas ações.

FHC vivia apenas de “propagandas”652 e “encenações” para a imprensa, assim

salientava o MST: “O governo Fernando Henrique Cardoso começa a adotar um estilo muito

parecido com seus antecessores. Ou seja, muita propaganda. Encenações para a imprensa e

para a opinião pública. Na prática, quase nada faz”653. Por suas propagandas e encenações, o

presidente era considerado um mentiroso. Para o MST, FHC mentiu durante os seus dois

mandatos na presidência da República. A representação de mentiroso permeou a maioria das

edições publicadas entre os anos de 1995 e 2002. Nesse sentido, os discursos do jornal

chamavam a atenção dos integrantes do Movimento e demais leitores para que resistissem e

não acreditassem nos discursos do governo.

Na edição de janeiro/fevereiro de 1996, o MST destaca que “mesmo que o governo

FHC não queria e adote um discurso cada vez mais imperial, a luta pela reforma agrária não

depende de sua ‘licença’ ou aprovação”654. O Movimento acreditava que FHC não tinha

projeto de reforma agrária e referir-se ao seu discurso como se fosse “imperial” era a

evidencia de que, para sua organização, FHC pretendia unificar um discurso que servia aos

seus interesses. Os trabalhadores não poderiam “esperar pelo governo” e “só a mobilização”

mexeria com a situação vivenciada e com “um governo tão insensível”655. A ação de mentir

651 Balanço da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 1997 e jan. de 1998, ano XVI, n. 175, p. 14. 652 Reforma agrária, só propaganda. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1997, ano XVI, n. 170, p. 2. 653 Balanço da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 1997 e jan. de 1998, ano XVI, n. 175, p. 14. 654 Não podemos esperar pelo governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1996, ano XV, n. 155, p. 2. 655 Só mobilização mexe com esse governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1996, ano XV, n. 156, p. 2.

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para a sociedade fez com que FHC fosse considerado pelo MST como um “sem vergonha”. A

charge publicada no editorial de março de 1996, de autoria de Schroder, expressa tal

representação.

Imagem 43 – Só mobilização mexe com esse governo!

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1996, ano XV, n. 156, p. 2.

A charge traz três personagens em cena. Sem Terra e Pouca Terra representam os

trabalhadores rurais; e Nenhuma Vergonha, FHC. Com uma enxada no ombro, demonstrando

insatisfação e cara de poucos amigos, Sem Terra e Pouca Terra olham fixamente para

Nenhuma Vergonha. O presidente, estático e com um semblante envergonhado, nada diz. A

cena apresentada na charge é uma crítica ao governo FHC, pois, conforme o MST, o governo

mentia para a sociedade em relação ao que vinha sendo realizado face à reforma agrária e às

políticas voltadas aos pequenos proprietários rurais. Nesse contexto, uma das representações

mais enfatizadas pelo MST, sobre FHC, foi a da criação do personagem “tucanóquio” da

reforma agrária. A charge, publicada no editorial de julho de 1996, de autoria de Marcio

Baraldi, com o título FHC: é hora de fazer e não prometer, torna-se significativa para

reflexão.

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Imagem 44 – Tucanóquio

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1996, ano XV, n. 160, p. 2.

O personagem “tucanóquio” é uma metáfora para representar sarcasticamente FHC. O

nome se refere ao personagem infantil Pinóquio656 e ao pássaro que é o símbolo do PSDB,

partido do presidente. No primeiro quadro da imagem, dois trabalhadores rurais: um homem e

uma mulher, provavelmente, situados em uma área ocupada pelo MST, estabelecem diálogo.

O homem exclama para a mulher: “descobri porque os tucanos têm o bico tão comprido!...”; e

a mulher indaga: “por quê?”. No segundo quadro, o trabalhador, demonstrando estar muito

raivoso, diz: “Ele cresce toda vez que eles contam uma mentira!!!”. A trabalhadora também

evidencia, por meio de sua expressão facial, sua indignação com tal fato. Em cima de uma

cerca de arame farpado, a qual representa as amarras do latifúndio, está o personagem

principal: tucanóquio. Com seu bico imponente, tucanóquio diz: “Já assentei 60 mil

famílias!!! Róóó-róóó”. O interessante em tucanóquio é que seu olhar denuncia insegurança

em relação ao discurso proferido. Com suas “mentiras”, o seu bico cresce cada vez mais. No

editorial em que fora publicada a charge, a Direção Nacional do MST cobra diretamente o

presidente FHC, e não sua equipe de governo, a responsável pelos assuntos voltados à

656 Pinóquio é um personagem de ficção cuja primeira aparição foi em 1883, no romance “As aventuras de

Pinóquio”, escrito por Carlo Collodi; desde então, a obra teve inúmeras adaptações. Esculpido a partir do tronco

de uma árvore pelo entalhador chamado Geppetto, Pinóquio nasceu como um boneco de madeira, mas que

sonhava em ser um menino de verdade. Na ficção, toda vez que Pinóquio contava alguma mentira, o seu nariz

crescia.

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reforma agrária. Assim, sublinha que o presidente é “insensível” às causas sociais e que sua

política agrária era “ineficiente”657.

Nessa direção, percebe-se a dificuldade do MST, no que se refere à concepção de

Estado e de composições de Governo. Havia uma perspectiva ideológica no discurso do

Jornal Sem Terra que apresentava uma visão reducionista das experiências históricas.

Entende-se que os Governos não são forças isoladas da sociedade. Ou seja, eles e a sociedade

civil não estão separados. Marion Brepohl de Magalhães, quando pensa o Estado e a política

no Brasil, enfatiza que a ideia de que “Estado e sociedade civil são duas instâncias separadas”

não se sustenta historicamente, principalmente por dois aspectos: 1) no interior do Estado

(entendido como Executivo, Legislativo e Judiciário), existem diversas forças e interesses

representados; 2) as instituições que compõem os aparelhos do Estado são interpeladas

continuamente pela sociedade civil, através de instituições como “imprensa, as organizações

sociais (sindicatos, partidos, associações de interesses das mais diversificadas, Igreja e

outros), sem contar os movimentos sociais espontâneos não institucionalizados, que também

realizam pressão contra esta ou aquela deliberação de ordem política”. O Estado não é apenas

um locus de poder, mas sim uma “relação social por onde circulam diversos poderes”658.

Dessa forma, no interior do Estado e na composição dos Governos, existem diversos

grupos lutando por seus interesses. Ao atribuir responsabilidade sobre a não efetivação da

reforma agrária e sobre outras questões à pessoa do presidente, de forma isolada, o MST

evidencia sua fragilidade para analisar criticamente os problemas sociais e econômicos do

país, sem ao menos fazer uma leitura das políticas públicas e da reprodução das desigualdades

sociais, por exemplo. A visão do Movimento se fundamentava em uma análise simplista e

personalista, como se o presidente FHC fosse do lado do mal. Assim, nada de bom poderia vir

das suas ações.

Ao efetuar a representação de FHC como tucanóquio, o Movimento questiona as

promessas e os dados sobre o número de famílias assentadas no país. Vale pontuar que, no

final de todos os anos, o Jornal Sem Terra publicava um balanço sobre a reforma agrária,

contabilizando o número de famílias sem-terra assentadas. Nesses balanços, os dados

divulgados pelo governo sempre eram questionados pelo MST, no sentido de que os números

apresentados estavam mascarados e superfaturados659. A síntese desses dados era que FHC

657 FHC: é hora de fazer e não prometer. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1996, ano XV, n. 160, p. 2. 658 BREPOHL DE MAGALHÃES, M., Paraná: política e governo, p. 12-13. 659 Ver: As mentiras do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1996, ano XV, n. 155, p. 5; Balanço

da Agricultura e Reforma Agrária em 1996. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 1997, ano XV, n. 165, p. 2;

Balanço da Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 1997 e jan. de 1998, ano XVI, n. 175, p. 2;

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se caracterizava como um mentiroso. Em diversos editoriais e matérias do jornal o presidente

foi representado de forma jocosa e, até certo ponto, ridicularizado. Sua face sempre trazia um

nariz enorme, alusão ao personagem Pinóquio.

Nesta tese, não são analisados todos esses balanços e dados detalhadamente, mas

chamar-se-á atenção para as lutas de e por representações envoltas nos dados apresentados

pelo governo e nos questionamentos do MST. Havia um jogo, ou melhor, uma batalha de

dados entre governo e MST permeada de tensões e interesses conflitantes entre estes. O

governo FHC apresentava seu balanço anual e, logo em seguida, o MST questionava esse

balanço, taxando o presidente e sua equipe de mentirosos. Na sequência, outras charges que

representam FHC como o Pinóquio da reforma agrária no Brasil.

Imagem 45 – FHC Pinóquio

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1998, ano XVI, n. 178, p. 13

As mentiras do Governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 10; Governo

FHC mente e manipula dados. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2001, ano XIX, n. 207, p. 9; As

mentiras de FHC sobre a Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2001, ano XX, n. 215, p. 8;

Balanço da Reforma Agrária que não existe. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2002, ano XX, n. 217, p. 8

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Imagem 46 – Mais uma mentira do governo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de

1998, ano XVII, n. 185, p. 10.

Imagem 47 – As mentiras do governo FHC

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de

1999, ano XVII, n. 186, p. 10.

Imagem 48 – Um governo vergonhoso!

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de

2001, ano XX, n. 214, p. 2.

Imagem 49 – A Reforma Agrária que não

existe

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de

2002, ano XX, n. 217, p. 2.

Imagem 50 – A farsa da Reforma Agrária

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2002,

ano XX, n. 220, p. 2.

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As charges mencionadas sinalizam para uma representação comum: FHC com um

nariz enorme, o que expressa ser o presidente um mentiroso. Na imagem 45, de Marcio

Baraldi, o cenário é uma área ocupada por integrantes do MST – observam-se, no fundo do

segundo quadro, os barracos de lona em que viviam os sujeitos acampados. Um trabalhador,

ao tentar cortar um galho de madeira, desabafa a um companheiro: “Gozado! Quero cortar

esse galho para fazer uma fogueira mas ele não para de se mexer!” Com um olhar de espanto,

seu companheiro responde, prontamente: “Isso não é um galho... é o nariz do FHC

Pinóquio!!!”. O trabalhador que queria cortar o galho demonstra surpresa e espanto. FHC, por

sua vez, evidenciando estar descontente com a situação e apresentando uma postura curvada,

devido ao peso do seu nariz de Pinóquio, apenas olha para os trabalhadores, não diz nada. O

silêncio de FHC revela que ele não tinha justificativas para o que estava acontecendo em

relação à reforma agrária no país. Para o MST, FHC preferia “mentir” e “enganar” os

trabalhadores com o auxílio das mídias, em vez de fazer algo eficaz em prol dos processos de

desapropriação de terras e de assentamentos de famílias sem-terra.

Nas charges 46, 47, 48, 49 e 50, de autoria de Luscar, além do nariz de Pinóquio na

face do presidente, as imagens trazem outros elementos, como a representação de que, para

FHC, a reforma agrária “vai bem”, e a de que se estava fazendo a “maior reforma agrária do

mundo”. O “cara de pau” FHC utilizava-se dos meios de comunicação para discursar no

sentido de que estava realizando uma reforma agrária ampla, que atendia aos interesses dos

trabalhadores rurais sem-terra. As expressões faciais do presidente, nas charges, sugeriam

dúvida, não davam credibilidade a seus discursos. Mais que isso, as charges, além de

engraçadas e sarcásticas, ridicularizavam a imagem do presidente. O interessante também

eram os títulos dos textos que acompanhavam as imagens: Mais uma mentira do governo, As

mentiras do governo FHC, Um governo vergonhoso!, A Reforma Agrária que não existe, e A

farsa da Reforma Agrária. O teor dos textos girava em torno das “mentiras” de FHC sobre as

ações do governo face à reforma agrária.

A verdade é que a política do governo FHC para a agricultura familiar e para

a reforma agrária é vergonhosa, mentirosa e irresponsável. E, seguindo à

risca a cartilha dos banqueiros internacionais, no mês de julho o governo

recebeu mais uma visita de seus patrões: a missão do FMI. E o resultado foi

o corte de 56% de todos os recursos para o crédito rural para a reforma

agrária660.

660 Um governo vergonhoso. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2001, ano XX, n. 214, p. 2.

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Todo ano é a mesma história. O governo FHC reúne a imprensa e apresenta

números milagrosos, que mais e mais famílias foram assentadas. Contrata

empresas de publicidade e mais propaganda na televisão, na qual tudo parece

bonito. Infelizmente a realidade é bem diferente. Os acampamentos

aumentam a cada dia ao longo das estradas. A pobreza e o desespero

aumentam entre milhares de famílias de pobres do campo, que não tem mais

alternativas. Não há trabalho na cidade. Não há renda no campo e a reforma

agrária está parada661.

Há tempos, o MST e os vários movimentos de luta do campo vêm

denunciando que a reforma agrária do governo FHC é uma farsa. [...]. Tanta

mentira e tanta incompetência na construção de uma realidade fictícia não

teria se sustentado por muito tempo sem a complacência dos grandes meios

de comunicação do país. Durante todo o Governo FHC a mídia teve

comportamento chapa branca662.

Além de elencar as mentiras de FHC, o MST denunciava o fato de os grandes meios

de comunicação estarem articulados com o governo na divulgação dos dados sobre reforma

agrária e de auxiliarem o presidente a enganar a sociedade brasileira. Assim, pelo fato de

serem patrocinados pelo governo, os meios de comunicação se comportavam como “chapa

branca”, divulgando aquilo que era de interesse do presidente. Por este viés, o Movimento

ironizava que a reforma agrária de FHC existia só na televisão, conforme as charges 40 e 41.

Na edição de janeiro de 2002 do Jornal Sem Terra, em matéria intitulada Balanço de uma

Reforma Agrária que não existe (1995-2001), o Movimento faz um balanço dos sete anos em

que FHC estava na presidência. No teor dessa matéria não se foge dos balanços de anos

anteriores, pois seu objetivo principal é questionar os dados divulgados pelo governo. Nota-

se, então, certa continuidade nos discursos nos oito anos de mandato de FHC. Conforme o

MST, havia “manipulação dos dados”. Na contabilidade do governo, entre os anos de 1995 e

2001, haviam sido assentadas 545.683 famílias; enquanto para o MST, esse número era de

266.998 famílias663. Desse modo, a diferença entre o número de famílias assentadas segundo

governo e MST era de 278.685 famílias. De acordo com as representações do MST, no Brasil

não havia reforma agrária e o Governo mentia descaradamente.

A luta de e por representações entre MST e governo FHC em volta dos dados sobre as

famílias assentadas no Brasil, se estrutura no fato de haver diferença de concepção entre

ambos no que se refere à reforma agrária e famílias assentadas. Na concepção do MST, FHC

não tinha uma política de reforma agrária, e sim uma política de assentamentos rurais. Nesse

661 A reforma agrária que não existe. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2002, ano XX, n. 217, p. 2. 662 A farsa da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2002, ano XX, n. 220, p. 2. 663 Balanço de uma Reforma Agrária que não existe (1995-2001). Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2002,

ano XX, n. 217, p. 8.

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sentido, reforma agrária para o MST se baseava em uma massiva desapropriação da

propriedade da terra, de forma que alterasse a estrutura fundiária do país. Ou seja, que se

rompesse com o caráter concentracionista da terra. Essa massiva desapropriação de terras

constituía parte fundante da ideologia socialista do MST, do enfrentamento às elites

dominantes e da superação das desigualdades sociais.

Em texto escrito no início da década de 1990, Stedile ressalta que, para os grupos

dominantes, não era necessário se efetivar um processo amplo de reforma agrária, em

especial, porque o desenvolvimento do capitalismo no campo era exitoso. Em sua visão, o

capitalismo se evidenciava no campo por três aspectos básicos. O primeiro seria a

“acumulação”, aspecto básico do modo de produção capitalista. Os grandes proprietários

rurais e grupos econômicos “passaram a acumular cada vez mais, estimulados pelas políticas

econômicas do governo com créditos fáceis, com preços subsidiados para exportação, com

uma ideia de benefício que ajudou as grandes propriedades acumular de uma maneira mais

rápida”. O segundo era a “concentração”. Isto é, “o capitalista não fica mais satisfeito em

acumular dentro da sua própria empresa. Quando a acumulação é tão grande, ele passa em

seguida a comprar do vizinho, a comprar a terra dos pequenos proprietários”. O terceiro se

caracterizava na “centralização”, em que o capitalista atuava em vários setores, “não só na

agricultura, mas no comércio, na indústria, no capital financeiro”664.

A partir desses três aspectos, mudou-se a face dos grandes proprietários de terras no

país, até então centrada, sobretudo, na figura do coronel. Agora a propriedade estava sob o

poder dos grandes grupos econômicos, de diversos setores da economia665. Nesse processo,

havia a desvalorização da pequena propriedade e de sua importância no processo produtivo

brasileiro.

Ao associar reforma agrária com socialismo, Stedile acredita que ela tinha um caráter

anticapitalista. Assim, reforma agrária deveria “abranger a propriedade coletiva de todos os

meios de produção que afetem a agricultura. E, por isso, adquire um caráter anticapitalista.

Não é só a propriedade da terra que está em questão, mas está em questão a propriedade de

vários meios de produção”666. Nessa perspectiva, a reforma agrária, necessariamente, teria um

caráter socialista e entrava em choque com os interesses dos grupos dominantes. Para o MST,

664 STEDILE, J. P., A Questão Agrária e o Socialismo, p. 313-314. 665 De acordo com Stedile (1994), no início da década de 1990, quarenta e seis proprietários controlavam 60%

das terras no país. Enquanto que 5 milhões de pequenos agricultores, meeiros e arrendatários ficavam com o

restante das terras. 666 STEDILE, J. P., A Questão Agrária e o Socialismo, p. 319.

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a utopia socialista era impraticável sem a conquista de uma reforma agrária ampla, com a

desapropriação massiva da terra.

Na visão do MST, o governo FHC não realizava reforma agrária. Suas ações se

pautavam em políticas de assentamentos, que visavam a atuar na resolução pontual de

algumas áreas e conflitos gerados pelas tensões que envolviam a luta pela terra. Isto é, eram

ações localizadas objetivando o assentamento de famílias, sobretudo, em áreas de conflitos.

Essa compreensão também era a de Leite, que não qualificava as ações do governo FHC,

assim como as de governos anteriores, como “processo de reforma agrária”, e sim como ações

pontuais e setoriais que “têm forçado o governo a dar resposta às ações desencadeadas pelos

movimentos sociais, os mais diversos, num período de pelo menos quinze anos para cá,

agindo, de certa forma, diferencialmente ao longo deste percurso temporário”667. A crítica e

oposição do MST perante essa política era a de que ela não mexia na estrutura fundiária do

país e nem resolvia os problemas de todas as famílias sem-terra, na medida em que era

paliativa. A concentração de terras e o domínio dos grandes proprietários continuavam nessa

perspectiva.

Outra questão que gerava disputas por representações entre MST e governo FHC era a

que se estabelecia em torno do que se concebia como família assentada. O governo

computava em seus dados as famílias assentadas por meio de desapropriação de terras, de

regularização fundiária e de projetos de colonização, o que gerou inúmeras críticas do MST e

de pesquisadores da reforma agrária, dentre eles Bernardo Mançano Fernandes, Claudinei

Coletti, Ariovaldo Umbelino de Oliveira e Carlos Alberto Feliciano. Havia também a

proeminência do governo assentar famílias no que se denominou de Amazônia Legal668 e não

em áreas que há muito tempo vivenciava conflitos, fato esse que também gerou críticas e

debates em torno das ações de FHC e de sua equipe de governo. Na concepção do

Movimento, ao considerar tudo como famílias assentadas, FHC superfaturava os dados para

atingir suas metas.

Conforme Feliciano, o governo FHC dissimulava os dados a partir de uma

“matemágica”669, que atingia os números de acordo com suas estimativas. Outro pesquisador

que fez análises críticas sobre os números apresentados pelo governo FHC foi Coletti. Para

ele, em primeiro lugar, os dados buscavam esconder a “fragilidade” do governo em sua

667 LEITE, S., Políticas Públicas e Agricultura no Brasil: comentários sobre o cenário recente, p. 170. 668 A chamada Amazônia Legal é composta pelos seguintes estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia,

Roraima e Tocantins (região Norte), além de parte dos estados de Mato Grosso e Maranhão. 669 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 54.

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política de assentamentos, pois o assentamento de trabalhadores na Amazônia Legal, “longe

dos grandes centros distribuidores e consumidores, não é, de forma alguma, a melhor

estratégia para viabilizar economicamente os assentamentos”. Em seguida, os dados estavam

“inflados”, para efeito de propaganda oficial de seu governo. A estratégia de inflar os dados e

assentar trabalhadores na Região da Amazônia Legal tinha como objetivo desviar o olhar das

regiões em que aconteciam mais conflitos, ocupações e acampamentos. Sobre a propaganda

do governo FHC, Coletti ressalta:

A uma pressão efetiva dos movimentos sociais de luta pela terra, o governo

Fernando Henrique Cardoso respondeu de maneira enviesada, apresentando

números que demonstram a prevalência de “assentamentos” realizados na

Amazônia Legal, para sustentar a propaganda e os números oficiais, os quais

alardeiam que o governo FHC realizou, em oito anos, “a maior reforma

agrária do mundo contemporâneo”670.

Mas, o que é família assentada para o MST? No entendimento da Direção Nacional,

família assentada “precisa receber sua terra, ir morar nela e receber os recursos mínimos para

reiniciar sua vida”671. Desse modo, uma família para ser computada como assentada, para o

MST, devia “receber” uma área nova (fruto de desapropriação) e todos os créditos necessários

para o desenvolvimento produtivo da área. Por ora, famílias em áreas de regularização

fundiária e projetos de colonização não poderiam ser computadas (ou consideradas) nos

dados. As estratégias do governo para inflar os números eram vistas como “maracutaias” do

presidente e de seu ministro da Reforma Agrária, Raul Jungman. Com essa compreensão, a

reforma agrária do governo FHC era mais televisiva e no papel, do que na realidade.

Apesar de o entendimento do MST ser compartilhado por diversos pesquisadores da

reforma agrária, já citados na tese, Martins, sociólogo nacional e internacionalmente

conhecido por seus trabalhos face às questões que envolvem a reforma agrária no Brasil,

critica o MST e intelectuais que concebem a reforma agrária unicamente no seu sentido

clássico, mais restrito.

Qualquer ato do governo em relação à reforma agrária é questionado em

nome do fato de que não se trata de reforma agrária. Autores e militantes

dizem com frequência que a regularização fundiária da situação dos

posseiros na extensa e complicada região amazônica e no centro-oeste não é

reforma agrária e não deveria entrar nas estatísticas oficiais da reforma.

670 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 219-226. 671 As mentiras do governo FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1999, ano XVII, n. 186, p. 10.

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Estranhíssima interpretação. Todo o atual aparato institucional das oposições

para lutar pela reforma agrária nasceu, floresceu e se consolidou com as

sangrentas lutas dos posseiros, sobretudo, da Amazônia Legal, para terem

seu direito à terra de trabalho reconhecido e legalizado672.

Martins defende que a regularização fundiária é um ato legítimo de reforma agrária.

“Apenas quem não reconhece a realidade social do campo pode supor que a regularização é

mero ato administrativo sem maior alcance”. E mais: “a regularização da situação fundiária

dos posseiros de extensas regiões do país foi e é um legítimo ato de reforma agrária porque

impõem limites ao processo expropriatório que daria ao país uma estrutura fundiária muito

mais concentrada e latifundista que a atual”. Nessa direção, critica aqueles que consideravam

os atos do governo FHC como políticas de assentamentos e não reforma agrária. Também

destaca que reforma agrária é “todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra

quando esta representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado nos

interesses pactuados da sociedade”. Para Martins, em 2000, era inútil dizer que havia “4,5

milhões de famílias sem-terra em todo o Brasil, se apenas cerca de sessenta mil assumem essa

identidade”673. Ou seja, estavam acampadas. O autor defende que a reforma agrária, segundo

os moldes do MST, era historicamente impossível, se pensada no contexto brasileiro

contemporâneo.

Havia, então, diferenças de entendimento entre MST, governo FHC e intelectuais que

estudavam as problemáticas que envolviam os processos de reforma agrária no Brasil.

Diferenças à parte, a compreensão consensual é a de que a reforma agrária nunca foi

visualizada pelos governos e governantes como prioridade e parte de um projeto de

desenvolvimento nacional. Os movimentos sociais do campo tiveram muitas conquistas, em

especial, a partir da década de 1970. Mas, no jogo político, suas ações e projetos entraram

sempre em confronto com as elites agrárias e governantes ligados a elas. A concentração de

terras permaneceu intocada674 e, quando muito, questionada em relação ao cumprimento das

suas funções sociais.

Os assentamentos conquistados pelos sem-terra simbolizam a força, luta e resistência

dos movimentos sociais do campo, mas as conquistas, infelizmente, estão às margens dos

latifúndios. A concentração fundiária no Brasil foi e é uma realidade, e está sob a proteção do

672 MARTINS, J. de S., Reforma Agrária: o impossível diálogo sobre a História possível, p. 106-107. 673 MARTINS, J. de S., Reforma Agrária: o impossível diálogo sobre a História possível, p. 107-108. 674 Ver dados sobre o índice de concentração de terras no Brasil: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela

Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

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próprio Estado. Historicamente, a reforma agrária sempre foi uma demanda social ignorada

pelos governos, e a redemocratização do Brasil não garantiu a democratização pela terra.

Em relação aos dois mandatos do governo FHC, a reforma agrária, como em governos

anteriores, também não foi tratada como prioridade. Mas, devido às ações dos movimentos

sociais do campo e de alguns acontecimentos como a Marcha Nacional do MST, em 1997, os

massacres de Corumbiara, em Rondônia, em 1995, e o de Eldorado dos Carajás, no Pará, em

1996, a reforma agrária teve que ser, no mínimo, pauta do governo. Já em seu segundo ano na

presidência, FHC criou o Gabinete Extraordinário de Política Fundiária, mais tarde

transformado em Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Embora o tema reforma agrária estivesse nos programas políticos dos candidatos à

presidência, em especial, a partir da redemocratização do Brasil, não houve ações efetivas que

visaram a mudar o panorama da questão agrária. Para José Paulino de Carvalho Filho, o

governo FHC adotou um conceito de reforma agrária de caráter claramente “compensatório” e

“assistencialista”, agindo de forma pontual em algumas localidades e regiões”675. Conforme

Diego Pessoa Irineu França e Pablo Melquisedeque Souza e Silva, as políticas de reforma

agrária do governo FHC serviram “muito mais para conter as tensões sociais desencadeadas

no campo, resultantes do novo modelo adotado, do que para promover verdadeiras mudanças

estruturais referentes à questão agrária”676. Na visão de Jair Borin, a reforma agrária “não

caminhou”677 no governo FHC e as políticas voltadas ao campo valorizavam apenas as

atividades desenvolvidas pelos grandes proprietários de terras.

Aliás, a ênfase na abertura e estabilidade econômica do governo FHC favoreceu

significativamente o modelo de produção das grandes propriedades, voltadas à exportação,

que passou a ser chamado de agronegócio. Considera-se o agronegócio como um conjunto de

sistemas abrangente, que reúne, de forma diferenciada, os sistemas agrícolas, pecuário,

industrial, mercantil, financeiro, tecnológico, científico e ideológico. Esse modelo se

desenvolveu com intensidade na década de 1990, a partir das corporações nacionais e

transnacionais, e se tornou um “inimigo comum”678 dos movimentos sociais do campo.

675 CARVALHO FILHO, J. J. de., Política Agrária, p. 91. 676 FRANÇA, D. P. I; SOUZA E SILVA, P. M., A Política de Reforma Agrária nos Governos FHC e Lula e seus

Rebatimentos na Região do Brejo, p. 7. 677 BORIN, Jair. Reforma Agrária no Governo FHC, p. 23-27. 678 De acordo com Fernandes, “o inimigo comum dos movimentos camponeses em todo o mundo chamasse

agronegócio. Ser um movimento camponês na América Latina significa lutar pela reforma agrária e contra o

agronegócio. Os países da América Latina possuem as concentrações fundiárias mais altas do mundo e seus

territórios são intensamente controlados pelas corporações multinacionais” (2008, p. 77).

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Nessa perspectiva, muitas dívidas dos produtores rurais foram renegociadas e novos

créditos concedidos para que se modernizasse a produção. O mesmo não aconteceu com os

pequenos proprietários, pois os programas e créditos voltados para o desenvolvimento de suas

propriedades foram escassos. Como em tempos e governos pretéritos, no governo FHC os

estímulos aos pequenos produtores ficavam à margem das grandes propriedades. É

interessante que, entre 1995 e 2002, o MST não refletia sobre o conceito agronegócio no

Jornal Sem Terra. Isto é, referia-se a empresas nacionais e internacionais que investiam o seu

capital no campo, a partir de um modelo agroexportador. A palavra agronegócio apareceu no

jornal de forma intensa no governo Lula.

Na contramão dos autores citados, Fausto elenca que FHC obteve sucesso em seu

programa de reforma agrária, pois havia assentado “mais de 450 mil famílias”, número

superior a qualquer governo desde a redemocratização679. Nota-se que Fausto reflete de

maneira simplista sobre as problemáticas que envolveram a reforma agrária no governo FHC.

Aliás, ele não problematiza o processo de reforma agrária no país, na medida em que, por

exemplo, pensa em “esgotamento das propriedades improdutivas” em regiões de solo de

melhor qualidade, o que inviabiliza o assentamento de famílias em determinadas localidades.

Esse discurso se torna um tanto quanto falacioso, pois estudiosos680 da área apontam que

ainda existem muitas terras passíveis de desapropriação em diversas regiões do país.

Ao analisar os oito anos de FHC na presidência, Fernandes compreende que os dois

mandatos foram marcados por diferentes políticas de reforma agrária. No primeiro mandato, o

presidente acreditava que eliminaria os conflitos por terra realizando uma “ampla política de

assentamentos”681. Ou seja, assentando as famílias acampadas resolveria o problema.

Todavia, o problema não foi resolvido, sobretudo, porque estruturalmente a questão fundiária

não se alterou. A concentração de terras persistiu e a demanda por reforma agrária entre os

sem-terra aumentou. No segundo mandato, houve a ênfase no que se denominou “reforma

agrária de mercado”, o que gerou inúmeras críticas dos movimentos sociais e organizações do

campo, como: MST, CPT e Contag.

679 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 506-507. 680 Ver dados e textos sobre o assunto na página do Núcleo de Estudos da Reforma Agrária (NERA) da

UNESP/Presidente Prudente/SP - http://www2.fct.unesp.br/nera. 681 FERNANDES, B. M., O MST e as Reformas Agrárias do Brasil, p. 78-79; _____. Reforma agrária no

Governo Lula: a esperança; p. 2-3. No prefácio do livro “A Tragédia da Terra: o fracasso da reforma agrária no

Brasil”, publicado em 1991, FHC acreditava que não havia mais latifúndios no país e que não existiam muitas

famílias de trabalhadores rurais sem-terra para serem assentadas. Ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Prefácio.

In: GRAZIANO NETO, Francisco. A Tragédia da Terra: o fracasso da reforma agrária no Brasil. São Paulo:

IGLU/FUNEP/UNESP, 1991, p. 10.

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Mas o que vem a ser reforma agrária de mercado? Por que o MST foi um opositor

ferrenho dessa política do governo FHC? Quando se diz opositor ferrenho é porque nas

edições do Jornal Sem Terra, desde o ano de 1997, o Movimento publicou diversos textos

contrários a essa política, chamando FHC de “inimigo” da reforma agrária. Na concepção do

Movimento, a ênfase a esse tipo de reforma agrária foi uma estratégia do presidente para

atacar e isolar a organização do MST.

A denominada reforma agrária de mercado foi uma política de governo, a qual contou

com o apoio financeiro do Banco Mundial682. Com essa política desenvolveram-se alguns

projetos nos quais a ênfase estava na integração dos pequenos trabalhadores rurais e na

aquisição de terras via mercado, como, por exemplo: o Programa Cédula da Terra, o

Programa Novo Mundo Rural e o Programa de Acesso Direto à Terra. Nessa conjuntura,

criou-se também o Banco da Terra através da Lei Complementar nº 93, de 1998. A finalidade

do Banco da Terra era possibilitar o financiamento de imóveis rurais por “trabalhadores rurais

não proprietários, preferencialmente os assalariados, parceiros, posseiros e arrendatários, que

comprovem, no mínimo, cinco anos de experiência na atividade agropecuária”683. Nas

representações do MST, a criação do Banco da Terra era uma “fachada”, enganosa, e fazia

parte do modelo neoliberal, em que predominava o livre mercado. No editorial de maio de

1999, a Direção Nacional do MST destaca que o Banco da Terra e os programas a ele ligados

eram táticas do governo FHC para atacar o Movimento:

Nessa nova tática, trata-se de, utilizando-se de mecanismos econômicos,

levar a visão do neoliberalismo como falsa solução para os problemas

agrários. Essa proposta neoliberal, aplicada agora para os problemas

agrários, resume-se em: a) substituir a desapropriação dos latifúndios, que

representava a intervenção do Estado, pelo mecanismo do Banco da Terra.

Que na prática representa apenas transformar a distribuição de terras num

grande negócio. Com o agravante que o latifundiário tem o poder de decidir,

se quer vender, qual terra quer vender. Depois de decidir tudo isso, ele

recebe de prêmio o pagamento à vista, do Banco. E os pobres sem-terra,

iludidos ficarão devendo células da terra pelo resto da vida ao banco684.

682 O Banco Mundial é uma instituição financeira internacional, criada em 1945, logo após a Segunda Guerra

Mundial. Sua missão inicial era a de financiar a reconstrução dos países devastados pela guerra. Em seguida,

passou a conceder financiamento aos países em desenvolvimento. Tradicionalmente, o presidente do Banco

Mundial sempre foi um representante do EUA. 683 Lei Complementar nº 93, de 1998. Inciso I do artigo 1º. 684 Governo FHC ataca o MST para não fazer reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1999, ano

XVII, n. 189, p. 2.

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O MST entendia o Banco da Terra como a transformação da reforma agrária num

grande negócio, particularmente, para os grandes proprietários de terras interessados em

vendê-las. Nos discursos do governo, o Banco da Terra era um avanço e se caracterizava

como mais uma alternativa para que os trabalhadores adquirissem terra e recebessem

benefícios, pois, com o financiamento, podiam escolher a propriedade que desejassem,

negociando diretamente com o vendedor. Além disso, esse tipo de reforma agrária evitaria

conflitos, enfim, contribuiria com a paz no campo.

O Movimento não titubeava em criticar e se opor a esse modelo, justificando que a

política do Banco da Terra objetivava “substituir a desapropriação” e tirar a responsabilidade

do Estado para com a reforma agrária. Ou seja, os sujeitos é que deveriam se organizar e

financiar o seu pedaço de chão. Na charge que acompanha o editorial analisado, de Marcio

Baraldi, FHC é representado como aquele que, por meio do Banco da Terra, levaria os

trabalhadores ao abismo.

Imagem 51 – Só fachada: Banco da Terra

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1999, ano XVII, n. 189, p. 2.

Ao centro da charge está FHC. Olhando para dois trabalhadores rurais sem-terra, faz

um gesto com os braços sugerindo que eles caminhem para frente. Com um semblante não

confiável, também diz: “Querem ir pra terra, entra aqui!”. A entrada era por uma porta em

cuja fachada estava escrito: “Banco da Terra”. Os trabalhadores, estáticos, com a mão

esquerda na boca e com um olhar que demonstra preocupação e desconfiança, não sabem

muito bem o que fazer. Um clima de tensão é sugerido pela imagem, na medida em que se

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verifica que a porta a qual FHC fazia referência está localizada em cima de um penhasco.

Observa-se que, no penhasco e em seu redor, existem flores, pássaros voando, nuvens e um

sol radiante. Tais elementos indicam, num primeiro momento, que o Banco da Terra, está

associado à imagem de harmonia; contudo, o adentrar a porta revela uma surpresa: um

abismo. No canto inferior direito, vê-se uma enxada, parte de uma perna e botinas de uma

pessoa/trabalhador, o que parece indicar que o mesmo pode acontecer com o trabalhador que

resolver entrar no Banco da Terra para adquirir financiamento.

A charge faz ironia em relação ao que representa o financiamento do Banco da Terra

para os trabalhadores: endividamento e pobreza. Um abismo que levaria os sem-terra para

uma condição de vida ainda pior. Já para os grandes proprietários de terras, o Banco era uma

oportunidade de vender suas terras a um bom preço e com o pagamento à vista. Nessa

perspectiva, o MST concordava com as ideias de Horácio Martins de Carvalho, de que o

Banco da Terra era “o banco dos donos da terra”685, e do deputado federal pelo PT/RS Adão

Preto, que entendia que esse banco era um “cambalacho” e os sem-terra iam ficar “cada vez

mais sem-terra”686. O presidente foi personificado como mentor do banco, haja vista que, era

representado com um neoliberal, “inimigo” da reforma agrária e a favor dos interesses das

elites.

Há que registrar que, na lógica do mercado, um dos programas do governo FHC foi o

Novo Mundo Rural. Esse programa se caracterizou por uma política de “desenvolvimento

rural com base na agricultura familiar e sua inserção no mercado”687. Na visão governamental,

o programa fortaleceria os pequenos produtores rurais e levaria qualidade de vida aos

assentamentos688. O assentado era visto como um empreendedor, que devia se ajustar ao

mundo dos negócios e se mostrar competitivo. Nessa direção, os assentamentos ficavam

relegados apenas à sua dimensão produtiva e econômica, não sendo considerados também

como espaços sociais, lugares do viver.

Para além do econômico, há que se enfatizar a relevância dos assentamentos rurais na

produção de alimentos e também na vida dos sujeitos, contribuindo com a geração de

empregos, renda e, sobretudo, com a dignidade dos beneficiados689. Na concepção do MST, a

685 CARVALHO, H. M. de. Banco da Terra: o banco dos donos da terra. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, março de

1999, ano XVII, n. 187, p. 10. 686 PRETO, A. Chegou a hora de desmascarar FHC. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2000, ano XVIII, n.

197, p. 3. 687 LEITE, S; MEDEIROS, L., Marchas e Contra-marchas na Política Agrária, p. 365. 688 COLETTI, C., A Trajetória Política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, p. 232-233. 689 Sobre os caminhos e descaminhos que envolvem os assentamentos rurais, ver: FERREIRA, Vera L. S. Botta;

ALY JUNIOR, Osvaldo (Orgs.). Assentamentos Rurais: impasses e dilemas. Uma trajetória de 20 anos. São

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reforma agrária era “uma necessidade econômica e social”690 elementar para a construção de

uma sociedade justa. Os assentamentos possuíam uma dimensão social tão importante como a

dimensão econômica, e não eram espaços meramente produtivistas.

Outra ação do governo FHC foi o Programa de Acesso Direto à Terra, que ficou

conhecido nacionalmente como reforma agrária pelos Correios. Esse programa foi lançado

pelo MDA, em fins do ano 2000, com intensa propaganda midiática. O seu funcionamento

consistia no preenchimento de um formulário nas agências dos Correios de todo o país,

visando ao beneficiamento em algum projeto de reforma agrária. Na retórica do governo, em

quatro meses, os trabalhadores receberiam o título de posse. Isto é, o sujeito devia preencher o

formulário e esperar em casa. Não era preciso se mobilizar e integrar os movimentos sociais

de luta pela terra. A reforma agrária chegaria até os trabalhadores via Correios. A reação do

MST para com esse programa foi a de incentivar seus integrantes a irem às agências dos

Correios e preencher o formulário, conforme enfatizava uma matéria do jornal, em fevereiro

de 2001.

De acordo com o governo, com esse sistema não é necessário ocupar nem

manter-se acampado aguardando a imissão de posse. Basta apenas ir ao

Correios levando carteira de identidade e CPF que, em 4 meses o trabalhador

cadastrado recebe o título de posse. No papel e na televisão, muito simples.

Mas a realidade é outra. Os sem-terra de todo o país foram aos Correios para

comprovar a reforma agrária por correspondência. Falta de formulários e

despreparo dos funcionários foram alguns dos problemas encontrados691.

O fato de o MST incentivar seus integrantes a irem aos Correios para preencher o

formulário, não significava que o Movimento apoiasse o programa. Pelo contrário, o

Movimento pretendia mostrar as fragilidades e ineficácia do programa, como também

pressionar o governo com a grande quantidade de formulários preenchidos. No papel, o

Programa de Acesso Direto à Terra tinha seus méritos, porém, na prática seu desenvolvimento

foi complicado, tanto do ponto de vista operacional, com agências dos Correios e servidores

despreparados, quanto do da sua efetividade em assentar as famílias cadastradas. Grosso

modo, esse programa foi um fracasso e as famílias cadastradas ainda estão esperando em suas

Paulo: ABRA/UNIARA/INCRA, 2005; FARIAS, Marisa de F. Lomba de. Assentamento Sul Bonito: as

incertezas da travessia na luta pela terra. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual Paulista Júlio

de Mesquita Filho, Araraquara, 2002. 690 Reforma agrária é uma necessidade econômica e social. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 1998, ano

XVI, n. 177, p. 12. 691 Reforma Agrária pelos Correios: mais uma propaganda enganosa. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de

2001, ano XIX, n. 207, p. 10.

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casas a correspondência dos Correios. Para o MST, essa ação do governo FHC era mais uma

“propaganda enganosa” e tinha como objetivo esvaziar os movimentos sociais e tirar a

responsabilidade do Estado face à reforma agrária.

O Programa Cédula da Terra foi outra ação do governo FHC muito contestada pelo

MST, pois a sua essência evolvia os instrumentos de mercado para aquisição de terras. Esse

programa foi implantado no estado do Ceará, em 1996, e no ano seguinte desenvolveu-se nos

estados do Maranhão, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, com o apoio do Banco da Terra.

Os autores Leite e Medeiros, de forma sintética, explicaram como funcionava esse programa:

O ponto de partida para operacionalização do Programa Cédula da Terra era

a constituição de uma associação de pequenos produtores ou sem-terra, que

deveria procurar um agente financeiro ou órgão de terra do estado para

apresentar uma proposta de assentamento. Analisado o pedido, seria definido

o montante de recursos necessários para ir ao mercado e adquirir uma área.

Em seguida, o pedido retornaria aos órgãos governamentais para avaliação

sobre a qualidade da terra, a adequação do preço, em termos de mercado

regional, e, finalmente, a inquestionabilidade da cadeia dominal. Feito isso,

seria dado uma carta de crédito à associação para que, por intermédio de um

agente financeiro estatal, fosse adquirida a propriedade, em condições de

mercado692.

Como se observa, a perspectiva mercadológica era o cerne do Programa Cédula da

Terra. Instituiu-se um mecanismo de compra e venda da terra com um rótulo de reforma

agrária moderna. Para o Movimento, esse programa se caracterizava com uma forma

descarada de o governo transformar a reforma agrária num mercado especulativo. Assim, não

passava de mais uma “mentira” do governo FHC693 e a reforma agrária ficava à mercê dos

“próprios donos da terra”694. O MST ironizava esse programa, pois ele não tinha nada a ver

com reforma agrária, e se parecia mais com um “leilão de terras” em prol dos latifundiários.

Na compreensão de Coca e Fernandes, com esse programa os maiores beneficiados

foram os donos de grandes propriedades de terras, pois “o latifúndio deixava de ser punido

por não cumprir com sua função social, conforme exige a Constituição, tornando-se um ativo

financeiro”695. Esse entendimento também foi compartilhado por Corazza e Feliciano, ao

692 LEITE, S; MEDEIROS, L., Marchas e Contra-marchas na Política Agrária, p. 366-367. 693 Cédula da Terra: mais uma mentira do governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1998, ano XVII, n. 185, p. 10. 694 Entidades do Fórum de Reforma Agrária são contra o Cédula da Terra. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de

1998, ano XVII, n. 185, p. 11. 695 COCA, E. L. de F; FERNANDES, B. M., Uma Discussão Sobre o Conceito de Reforma Agrária: teoria,

instituições e políticas de governo, p. 48.

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enfatizarem que o programa era “contraditório” e “negava”696 a Constituição de 1998. Deste

modo:

A opção pela reforma agrária de mercado, além de afrontar os preceitos

constitucionais, no que diz respeito à função social da terra, beneficia

duplamente aos latifundiários para continuar utilizando especulativamente

suas propriedades. Primeiro, se ele deseja vender suas terras, o fará a preços

de mercado, sem nenhuma punição por tê-la mantida improdutiva; e em

geral não respeitar a legislação trabalhista e a questão ambiental. Em

segundo lugar, se não desejar vendê-las, permanecerá impune, pois não há

mais possibilidades de desapropriação por interesse social697.

Ao dar ênfase aos programas apresentados, o governo FHC criava mecanismos legais

para inserir a reforma agrária na perspectiva mercadológica e, em especial, tirar de cena os

movimentos sociais do campo como interlocutores e protagonistas do processo. Conforme

Feliciano, o governo erigiu um “espaço institucional” de sustentação política, científica e

ideológica, objetivando legitimar as ações do Estado e dos grupos dominantes, sobretudo, por

meio da negação das lutas dos movimentos sociais, tidos como arcaicos e sem sentido num

país que pretendia se modernizar. O “espaço institucional” esvaziava o caráter político da

reforma agrária, como se ela fosse uma política de “compensação social”698.

O fomento de programas como Novo Mundo Rural, Acesso Direto à Terra e Cédula da

Terra, a partir de um prisma mercadológico, negava a luta dos movimentos sociais e retirava o

caráter político da reforma agrária. De certa forma, esses programas mascaravam e tiravam o

foco dos conflitos gerados pela problemática agrária brasileira. Também, isolavam e

desmobilizavam os movimentos sociais e eximiam o Estado da responsabilidade de realizar a

reforma agrária. Em vez de mobilizações, construía-se a ilusão de que todos os trabalhadores

rurais interessados podiam comprar seu lote de terra ou se cadastrar pelo Correios, de forma

tranquila e sem dificuldades. Ao visualizar a terra como mercadoria, esses programas

contrapunham o sentido atribuído a ela pelos movimentos sociais, que era o de terra de

trabalho e do viver.

Entre as críticas e oposição do MST para com suas ações, ao final do seu segundo

mandato, FHC foi o presidente que mais criou assentamentos e assentou famílias no Brasil, se

comparado a governos anteriores. Conforme informações do Banco de Dados da Luta pela

Terra (DATALUTA), no governo Sarney (1985-1989) foram obtidas 825 áreas e assentadas

696 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 73. 697 CORAZZA, G., O MST e um Projeto Popular para o Brasil, p. 54. 698 FELICIANO, C. A., Movimento Camponês Rebelde: a reforma agrária no Brasil, p. 66.

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125.376 famílias; no governo Collor (1990-1992) foram obtidas 167 áreas e assentadas

28.119 famílias; e no governo Itamar (1993-1994) foram obtidas 305 áreas e 34.320 famílias

foram assentadas699.

O DATALUTA se configura como um dos bancos de dados mais abrangentes e

atualizados sobre reforma agrária do Brasil, e sua organização é produzida pelo Núcleo de

Estudos da Reforma Agrária (NERA) da Unesp/Presidente Prudente/SP. Esses números

foram computados a partir das seguintes fontes de informação: Comissão Pastoral da Terra

(CPT), Ouvidoria Agrária Nacional (OAN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA), Associação Nacional dos Órgãos Estaduais de Terras (ANOTER), e dados

levantados de diários nacionais e regionais de grupos de pesquisa. Os dados obtidos são

confrontados anualmente; a reunião, confrontação e sistematização desses dados formam o

Banco de Dados DATALUTA. Cabe ressaltar que o referido banco de dados tornou-se uma

referência nacional e internacional para os estudiosos da questão agrária brasileira. O próprio

MST se utiliza dos dados do DATALUTA para refletir sobre os caminhos e descaminhos da

reforma agrária no Brasil.

Observa-se, por meio dos gráficos a seguir, o número de assentamentos criados e o de

famílias assentadas no governo FHC (1995-2002).

Gráfico 1 – Brasil – Assentamentos Rurais (1995-2002) – Número de áreas obtidas

Fonte: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

699 Ver: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

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Gráfico 2 – Brasil – Assentamentos Rurais (1995-2002) – Número de famílias em áreas obtidas

Fonte: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

O gráfico nº 1 revela que entre 1995 e 2002 o governo FHC obteve 3.924 áreas para

assentamentos rurais no país, tendo o ano de 1998 o maior índice das áreas obtidas. Observa-

se que existe diferença considerável das áreas entre o primeiro (1995-1998) e o segundo

mandato (1999-2002). No primeiro houve maior ação do governo no sentido de efetuar

desapropriação de áreas por interesse social. No segundo mandato, FHC priorizou os

programas que compunham a denominada reforma agrária de mercado, e não as

desapropriações. Por ora, as áreas obtidas para assentamentos rurais diminuíram

consideravelmente. Mesmo assim, se comparado aos governos anteriores, o governo FHC

avançou significativamente.

Em relação ao número de famílias assentadas em áreas obtidas para assentamentos

rurais, o gráfico nº 2 evidencia que no governo FHC foram assentadas aproximadamente

393.842 famílias. Tal como no gráfico nº 1, existe diferença relevante no que diz respeito ao

número de famílias assentadas no primeiro e segundo mandatos. A diferença é de 97.196

famílias, o que revela uma queda significativa no número de famílias assentadas. Nessa

reflexão, é importante ressaltar que não se discute a estrutura e nem a qualidade dos

assentamentos criados700, mas sim a quantidade de áreas obtidas e famílias assentadas.

Embora haja críticas sobre as perspectivas de reforma agrária e programas criados pelo

700 Fernandes destacou que os assentamentos conquistados no Governo FHC foram muito precários, pois os

projetos eram incompletos, sem infraestrutura básica, e os assentados não receberam créditos agrícolas e nem

investimentos nas áreas. Ver: FERNANDES, Bernardo M. Reforma agrária no Governo Lula: a esperança.

2003. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/nera/publicacoes/LULA_RA.pdf.

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governo FHC, torna-se incoerente negar o salto numérico de assentamos rurais criados e de

famílias assentadas.

Até mesmo os estudiosos da reforma agrária reconhecem esse fato, apesar de não

atribuírem os méritos ao governo FHC, mas sim, exclusivamente, às lutas e pressões dos

trabalhadores rurais sem-terra. Um desses pesquisadores é Fernandes, que reconhece o fato de

FHC ter assentado mais famílias no país, considerando governos anteriores. Entretanto, a

criação dos assentamentos não foi fruto do seu governo, mas sim das lutas dos trabalhadores.

“A razão pela qual o governo assentou foi porque os sem-terra ocuparam. Não existiria o

número atual de assentamentos se dependesse única e exclusivamente de projetos do governo.

Essa realidade foi construída pelos sem-terra”701.

É inegável que os assentamentos criados no governo FHC foram fruto de um longo

processo de lutas dos sem-terra e, de fato, o MST contribuiu significativamente para a

organização dos trabalhadores. Contudo, mesmo com o caráter conservador e não priorizando

a reforma agrária como parte de um programa de desenvolvimento nacional, há que se

considerar o avanço significativo de famílias beneficiadas em assentamentos rurais no período

em que FHC foi presidente.

Ao longo do capítulo, analisou-se que a relação MST e FHC, em seus dois mandatos

consecutivos, foi tensa, conflituosa e que o Movimento utilizou constantemente o Jornal Sem

Terra para representar o presidente. As representações de FHC contidas nos discursos do

jornal seguiam uma lógica personalista. Isto é, de acordo com os eventos históricos e as ações

do governo, o presidente era o alvo e as representações o personificavam de forma jocosa, por

vezes, e até ridícula. Em diversos momentos, os editoriais e outras matérias do periódico

davam destaque às ações do governo como um todo, mas a personificação dessas ações era

atribuída ao presidente. Por esse viés, observa-se também a limitação do Movimento em

conceber o Estado e as relações de poderes no campo político. FHC foi representado a partir

de uma perspectiva maniqueísta, como se fosse o presidente do mal, inimigo dos sem-terra e,

de maneira geral, da classe trabalhadora. A esperança do MST em relação à efetivação da

reforma agrária era depositada na eleição do presidente Lula, que será objeto de reflexão no

quarto capítulo.

701 FERNANDES, B. M., O MST mudando a questão agrária, p. 241.

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CAPÍTULO IV

“O PRESIDENTE DO POVO”: ENTRE A ESPERANÇA DA

REFORMA AGRÁRIA E AS FRUSTRAÇÕES COM O GOVERNO

LULA

4.1 “Uma vitória do povo”: Lula foi eleito o presidente do Brasil

Em novembro do ano de 2002, o Jornal Sem Terra publicou como manchete central

de capa o seguinte: Povo vota em mudanças e elege Lula presidente. A imagem que a ilustra é

a do candidato eleito, discursando para seus eleitores após o anúncio de sua vitória.

Imagem 52 – Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, p. 1.

Editor responsável: Nilton Viana

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No que tange à materialidade do periódico, a capa citada evidencia avanço no aspecto

gráfico. Com vinte e um anos de existência, o Jornal Sem Terra já havia adquirido qualidade

profissional em sua editoração – nota-se o quanto a composição estética da capa é atrativa ao

leitor, com chamadas de notícias bem distribuídas e imagens coloridas. Mas, para além de sua

materialidade, essa capa, na história do MST e do jornal, torna-se um marco, posto que, pela

primeira vez, o Movimento representa, de forma entusiasmada e positiva, um presidente da

República.

A palavra “mudanças” na manchete acena para o fato de, naquele momento, o MST

não ser mais inimigo do governo e do presidente, pelo contrário, é um parceiro e precisa

apoiá-los na construção de um país melhor e na efetivação da tão sonhada reforma agrária. A

capa também traz outras duas chamadas de notícias: Um novo Brasil está nascendo, uma carta

assinada por Lula, após sua vitória; e Carta do MST ao povo e ao presidente Lula. Os dois

textos serão analisados a posteriori.

O editorial da referida edição tem como título: Uma vitória do povo. De fato, Luiz

Inácio Lula da Silva, o Lula, historicamente, fora representado pelo Movimento como “do

povo”, dos trabalhadores. Nesse editorial diz-se que o povo brasileiro estava “em festa” e

“pela primeira vez, em 500 anos, alguém, da senzala derrota a casa grande”702. Assim, o

Movimento se coloca ao lado de Lula para auxiliá-lo nas “mudanças” do país.

Agora precisamos ajudar a organizar o povo para contribuir e dar força para

o governo fazer as mudanças. Porque sabemos que, para conquistar as

mudanças sociais, o governo e o povo precisarão enfrentar enormes desafios

representados pela herança histórica de 500 anos de exploração, que nos

deixou o latifúndio, o analfabetismo, a concentração de riqueza e renda, a

desigualdade social. E ainda enfrentar a herança recente de oito anos de

neoliberalismo, que entregou as estatais, sucateou os serviços públicos,

submeteu o orçamento da União aos interesses dos banqueiros e colocou em

risco a soberania nacional703.

A posição do MST enquanto movimento social de luta pela reforma agrária é

“contribuir” e “dar forças” para que o novo governo possa fazer as mudanças almejadas.

Observa-se, num primeiro momento, que o MST tem a crença de que Lula representa o

rompimento com o que o Movimento chama de “herança histórica de 500 anos” e de “herança

recente de oito anos de neoliberalismo” (governo FHC). O MST alça Lula ao papel

protagonista de uma missão histórica, de romper com os modelos estruturantes da economia e

702 Uma vitória do povo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n. 225, p. 2. 703 Uma vitória do povo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n. 225, p. 2.

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da política brasileira. Sobre a reforma agrária, tem a crença de que o contexto era favorável

para “avançar” e “combater o latifúndio”704.

A imagem a seguir, que acompanha o editorial festivo do jornal, de autoria de Gilberto

Maringoni, indica que o povo, em sua diversidade, estaria representado com Lula em Brasília.

Imagem 53 – Uma vitória do povo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n. 225, p. 2.

Ao fundo, imensos prédios dão um ar citadino à imagem, cujo cenário é a Capital

Federal. Homens, mulheres e crianças andam livremente em várias direções. Trajando

vestimentas distintas, alguns em estilo mais formal (terno, gravata e sapato social); outros

mais despojados (tênis, bermuda, calça jeans, camiseta), demonstram, a partir do semblante

de seus rostos que estavam felizes com o “outubro de 2002”, mês e ano da eleição de Lula. O

que se torna elementar na imagem é que todos os personagens estão usando uma faixa

presidencial, o que enfatiza que, com Lula, o povo está representado. Em Brasília, para o

MST, Lula seria a extensão dos trabalhadores e trabalhadoras do país.

Na edição de novembro de 2002, do Jornal Sem Terra, várias páginas foram dedicadas

ao resultado das eleições, ao entusiasmo com a vitória de Lula e às perspectivas vislumbradas,

pelo Movimento, com o novo governo. Nesse sentido, publicou-se uma carta assinada por

Lula, em 28 de outubro de 2002, com o título: Um novo Brasil está nascendo: compromisso

com a mudança. Esse documento não foi endereçado exclusivamente ao MST, mas sim à

população brasileira de maneira geral; e nele o presidente se coloca como “um projeto

alternativo”, como “início de um novo ciclo histórico para o Brasil”. Ou seja: em favor “dos

704 Uma vitória do povo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n. 225, p. 2.

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excluídos e discriminados”, “dos desamparados, dos humilhados e ofendidos”. Grosso modo,

essa carta de Lula foi moderada e equilibrada – ao mesmo tempo em que defendia as

“mudanças”, tinha cautela para explicar o momento econômico do país e as reformas que

pretendia fazer. Em nenhum momento deu a entender que faria mudanças radicais e/ou

romperia com a política macroeconômica. Lula preferiu enfatizar a distribuição de renda, a

inclusão social e o combate à fome, salientando que não decepcionaria o povo brasileiro705.

Com a euforia e o entusiasmo gerados pela vitória de Lula, a Direção Nacional do

MST também publicou uma carta, endereçada ao “povo brasileiro” e ao “presidente Lula”.

Nela, o Movimento declara estar movido “pela esperança e pela confiança de que é possível

um outro Brasil, onde mulheres, homens, crianças, jovens e idosos tenham todos uma vida

digna e feliz”. Desse modo, elenca alguns pontos/reivindicações que deveriam ser

concretizados pelo governo Lula: rompimento com o modelo econômico e agrícola em vigor,

combate ao latifúndio e aceleração do processo de reforma agrária. E mais, o MST estava

disposto a contribuir “em tudo o que for possível com o novo governo para que haja a tão

sonhada reforma agrária”706. Observa-se que o discurso do MST havia se redefinido, se

transformado haja vista que, de oposição e resistência, passa a ser um aliado, parceiro de

Lula e de seu governo.

Até aqui tem se falado do entusiasmo e clima festivo do MST com a vitória de Lula no

ano de 2002; contudo, há que registrar que o apoio do Movimento ao presidente e a seu

partido – Partido dos Trabalhadores (PT) – é histórico. Ou seja, o presidenciável Lula, desde

1989, é apoiado abertamente pela Direção Nacional do MST e no Jornal Sem Terra esse

apoio histórico fica explícito e se justifica, sobretudo, pela história pessoal e de militância

política de Lula.

Nascido em Caetés (à época, distrito de Garanhuns), estado de Pernambuco, na região

Nordeste, no dia 27 de outubro de 1945, Lula vivenciou o contexto do pós-guerra, em que a

economia brasileira tinha no Estado seu principal agente de desenvolvimento. Aos sete anos

de idade migrou com sua mãe e seus irmãos para o Sudeste, estado de São Paulo. Ainda

jovem, viu, no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), uma possibilidade de

adquirir formação, arrumar um trabalho fixo e galgar dias melhores. No cotidiano, “gostava

705 SILVA, Luiz Inácio Lula. Um novo Brasil está nascendo: compromisso com a mudança. In: Jornal Sem

Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n. 225, p. 8-9. 706 Carta ao povo brasileiro e ao presidente Lula. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2002, ano XXI, n.

225, p. 8-9.

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de futebol, da brincadeira com os amigos, das namoradas e do emprego na fábrica. A política

passava ao largo e não fazia parte de suas preocupações cotidianas”707.

Francisco Carlos Palomanes Martinho destaca que Lula, mesmo quando já era um

líder sindicalista, “custou a aceitar a participação em partidos políticos”, e o “acaso” tinha

levado Lula ao sindicato. Ao ser convidado por seu irmão, frei Chico, militante do Partido

Comunista Brasileiro (PCB), no final da década de 1960, a participar do Sindicato dos

Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Lula hesitou em aceitar com a

justificativa de que “sindicato era coisa perigosa”. A fábrica em que trabalhava, a Villares,

não tinha representante na chapa que iria concorrer às eleições do sindicato, em 1969.

“Embora não gostasse de política, gozava de uma liderança natural junto aos companheiros,

razão pela qual foi convidado”708. Assim, com resistência, ingressou na diretoria como

suplente, mais para angariar os votos dos seus companheiros de fábrica. Em 1975, Lula já

havia chegado à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e

Diadema; de lá saiu para contribuir com a fundação do PT, em 1980709.

Em plena Ditadura Civil-Militar, Lula ascendeu rapidamente enquanto líder sindical.

As greves dos metalúrgicos da região do Grande ABCD (Santo André, São Bernardo do

Campo, São Caetano do Sul e Diadema), em São Paulo, nos anos de 1978, 1979 e 1980710

consolidaram definitivamente o ex-metalúrgico Lula como uma das lideranças sindicais e

políticas mais importantes da América Latina, reconhecido e legitimado por seus

companheiros trabalhadores.

Martinho enfatiza que o personagem Lula, caracteristicamente do “universo da

esquerda”, vivenciou diversos momentos de sua vida pública, ora desdenhou as tradições da

esquerda ocidental, ora compartilhou delas. “Fazem parte da formação política de Lula

grandes tensões entre a construção de um projeto político caracteristicamente de esquerda e

707 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou diferente, p.

546. 708 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou

diferente, p. 546. 709 Sobre a trajetória de vida e política de Lula, ver: BETTO, Frei. Lula, biografia política de um operário. São

Paulo: Estação da Liberdade, 1989; MOREL, Mario. Lula o Metalúrgico: anatomia de uma liderança. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1981; PARANÁ, Denise. O Filho do Brasil: de Luiz Inácio a Lula. São Paulo: Xamã,

1996; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma

esquerda que se imaginou diferente. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e Democracia

(1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 541-562. 710 Sobre as greves da região da Grande ABCD, ver: SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entram em

Cena: experiências, falhas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 80. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988;

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um relativo desprezo por conceitos e princípios desse campo ideológico”711. Ou seja, mesmo

se identificando com a esquerda, Lula não se apegava ou fazia das tradições e convicções

desse campo sua doutrina.

Em fins da década de 1970, Lula se construía enquanto personagem político com a

marca da “diferença”; e, ao mesmo tempo, se tornava conhecido e reconhecido enquanto

liderança política que causava incômodo tanto aos grupos denominados de “direita”, quanto

aos grupos denominados de “esquerda”.

À direita, pois não se tinha certeza de qual seria seu comportamento no

futuro, podendo mesmo vir a encarnar atitudes tão ou mais radicais que as

daquelas esquerdas derrubadas com o movimento de 1964, ou daquelas

outras, também derrotadas, que se radicalizaram na segunda metade dos anos

de 1960. À esquerda, pois sua real representatividade junto aos trabalhadores

do centro mais dinâmico do capitalismo brasileiro era cobiçada por todos

aqueles que retornavam ao país e, muitas vezes, desdenhavam o jovem líder.

Na impossibilidade de cooptá-lo, palavras de desprezo foram constantemente

verbalizadas, procurando destacar sua “despolitização” e “inexperiência”712.

Nesse contexto de ascensão de Lula, em fins da década de 1970 e começo dos anos

1980, destaca-se a criação do PT, uma vez que a história política de Lula está intrinsecamente

ligada a esse partido – o início da construção do PT se desenvolve a partir das greves dos

metalúrgicos no estado de São Paulo, greves em que Lula exerce papel de protagonista entre

as lideranças. A fundação do PT ocorreu em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em

São Paulo, contando com a participação de grupos distintos713.

Construído em um contexto de declínio das ditaduras na América Latina, as principais

lideranças sindicalistas que contribuíram para sua formação foram: Luiz Inácio Lula da Silva,

José Cicote, Henos Amorina, respectivamente, presidentes dos Sindicatos dos Metalúrgicos

de São Bernardo, Santo André e Osasco; Paulo Skromov, do Sindicato dos Coureiros; Jacó

Bitar, dos Petroleiros de Campinas; e Olívio Dutra, dos Bancários de Porto Alegre; dentre

711 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou diferente, p.

543. 712 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou diferente, p.

545. 713 Sobre a formação do PT, ver: BERBEL, Marcia Regina. Partido dos Trabalhadores: tradição e rupturas na

esquerda brasileira (1978-1980). 1991. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo, São

Paulo; GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Pra que PT – origem, projeto e consolidação do Partido dos

Trabalhadores. São Paulo: Cortez, 1991; MENEGUELLO, Rachel. PT: a formação de um partido (1979-1982).

São Paulo: Paz e Terra, 1989; REIS, Daniel Arão. O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses,

perspectivas. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão (Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 503-540; RIBEIRO, Pedro José Floriano. Um Partido em Mutação: a

transformação do PT e seus reflexos sobre as campanhas presidenciais (1989, 2002). 2004. Dissertação

(Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.

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outros. Com marca dos sindicalistas, o PT nascia para “ser distinto e específico, de

trabalhadores, para se opor à tradição de partidos que pretendiam falar em nome dos

trabalhadores e por eles”714. Isto é, o PT se lançava como um partido diferente, em que as

bandeiras da ética na política e da seriedade e zelo com bem público eram propagadas como

valores ímpares.

No início de sua fundação, as lideranças sindicalistas, até pelo seu protagonismo nas

greves e lutas sociais tiveram proeminência na constituição da direção do partido, ocupando a

maioria dos cargos e a presidência. Além dos sindicalistas, houve a participação da militância

católica ligada à Teologia da Libertação, de grupos revolucionários trotskistas, de acadêmicos

e intelectuais de esquerda e de lideranças de movimentos sociais715. De acordo com Reis,

desde o seu nascimento, havia forças distintas no PT, diferentes “famílias” de esquerda. O PT

fez disso sua virtude, e não algo que o corroesse:

Quanto às diferenças, visíveis, foram caracterizadas como pluralidade de

veios, fontes de vida e de força. Como acontece nessas circunstâncias, fez-se

da necessidade, virtude. O PT não se deixaria emaranhar na tradição

deletéria das esquerdas brasileiras, dividindo-se em torno de abstrações, ou

de questões políticas gerais. As diferenças seriam equilibradas na prática; as

respostas às grandes questões viriam da luta e da alma716.

Em seus primeiros anos, o PT foi movido por uma retórica revolucionária, que

impregnou os seus textos e as ações dos seus militantes. O partido, por exemplo, a partir de

concepções radicais, expulsou parlamentares petistas que votaram na chapa de José Sarney e

Tancredo Neves, por eles “não haver cumprido o papel de braço parlamentar do partido e dos

movimentos sociais”717 no Congresso. Cabe ressaltar que, com o passar dos anos, o PT foi se

transformando e modificando suas concepções e formas de conceber a política, o que será

refletido mais adiante.

Lula foi eleito Deputado Federal pelo estado de São Paulo em 1986, com uma votação

expressiva de aproximadamente 650 mil votos. Resultado que se relaciona com o apoio

histórico do MST ao presidenciável Lula; apoio que se justifica, por sua vez, pelo fato de o

714 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 506. 715 Sobre esses grupos constitutivos da formação do PT e suas concepções políticas, ver: REIS, Daniel Arão. O

Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Arão

(Orgs.). Revolução e Democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 503-540; RIBEIRO,

Pedro José Floriano. Um Partido em Mutação: a transformação do PT e seus reflexos sobre as campanhas

presidenciais (1989, 2002). 2004. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de São

Carlos, São Carlos. 716 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 510. 717 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 513.

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ex-metalúrgico ser identificado e reconhecido como da classe trabalhadora. Nesse sentido,

havia uma perspectiva ideológica de classe (trabalhadora) que os aproximavam.

Historicamente, a Direção Nacional do MST apresentou Lula como uma figura política do

povo e que governaria para o povo. Há que se considerar também que Lula, em seus

discursos, fazia referências prospectivas em prol da reforma agrária e às lutas do Movimento,

o que legitimava o apoio e a crença do MST no candidato petista. Aliás, o próprio PT, em sua

primeira década de existência, defendia a reforma agrária como uma das prioridades

elementares para o desenvolvimento nacional, sobretudo, para a produção de alimentos,

geração de emprego e renda para as famílias beneficiadas.

São vários e distintos os momentos em que o MST, por meio do Jornal Sem Terra,

publicizou seu apoio a Lula nas eleições e divulgou suas ações no periódico. Assim, torna-se

relevante sublinhar alguns desses momentos, chamando a atenção para a relação histórica

entre MST e Lula/PT. É interessante ressaltar que Lula participou com frequência de

atividades importantes do MST, como encontros e congressos; nessas atividades sempre era

convidado a discursar.

No início da década de 1980, ainda quando o jornal tinha formato de boletim

informativo, noticiou-se que o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva apoiava a luta dos sem-

terra no acampamento Encruzilhada Natalino e que a luta pela reforma agrária, para Lula, não

era “só dos agricultores sem-terra, mas de todos os trabalhadores”718 e se configurava como a

luta mais importante no Brasil naquele momento. A publicação das palavras de apoio

recebidas do sindicalista Lula sinaliza para a aproximação entre o sindicalista e os

trabalhadores do campo. Para os sujeitos sem-terra era importante ter o apoio de uma

liderança política dos trabalhadores que se despontava no cenário nacional.

Na edição do periódico relativa a dezembro de 1984 e janeiro de 1985, na seção

Entrevista, o entrevistado foi Lula. Anterior ao texto da entrevista, a Direção Nacional do

MST publicou um texto sobre aspectos da vida de Lula, enfatizando que ele era um

representante dos trabalhadores e conhecia “muito bem as aspirações dos trabalhadores rurais

brasileiros”, apesar de ser do meio operário. Nessa entrevista, as perguntas giraram em torno

das concepções de Lula sobre a reforma agrária. Lula defendia a luta pela reforma agrária,

observando que ela era vital para o desenvolvimento do país.

718 Notícias. Boletim Sem Terra. Porto Alegre, novembro de 1981, Ano I, nº 14. p. 2.

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Em primeiro lugar, a sociedade deve compreender a luta dos trabalhadores

sem-terra e acabar com esta visão de que uma ocupação de terra é um ato de

banditismo ou de violência. Violência é uma pessoa ter uma grande

propriedade sem produzir e que não permite que outros ocupem para

produzir. Em segundo lugar, eu acho que os companheiros do campo devem

ter uma política de resistência e não se deixar levar para outras regiões719.

Lula tinha uma retórica de enfrentamento ao latifúndio (grande propriedade)

improdutivo, ao latifúndio que não correspondesse à sua função social; e considerava as ações

dos sem-terra legítimas, enfatizando que elas não se tratavam de “banditismo” ou de atos de

“violência”. Tocava, também, na questão de que os sem-terra deveriam resistir e exigir a

efetivação de assentamentos em seus próprios estados, haja vista que muitas famílias eram

deslocadas para assentamentos nas regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil, incentivadas pelo

governo brasileiro. Ao se posicionar ao lado dos trabalhadores sem-terra e apoiar suas lutas,

Lula conquistava o respeito e a admiração desses trabalhadores e da Direção Nacional do

MST.

É interessante notar que, no transcorrer da década de 1980, o MST, por meio do Jornal

Sem Terra, estendia seu apoio também ao partido que Lula havia ajudado a fundar, o PT. Em

novembro e dezembro de 1986, Lula fora entrevistado mais uma vez, agora, como o deputado

federal “mais votado do país”. A entrevista teve como ponto principal ressaltar a expressiva

votação obtida por Lula nas eleições de 1986 e demonstrar o crescimento considerável de seu

partido em âmbito nacional: “do ponto de vista do resultado eleitoral, o partido cresceu a nível

nacional. Nós tínhamos seis deputados federais e vamos ter 18. O PT vai sair dessas eleições

com 35 a 40 deputados federais”720. Nessa entrevista Lula mostra entusiasmo com o

crescimento eleitoral do PT e enfatiza que o mais importante é a inserção do partido no

“movimento social, sua participação cotidiana nas lutas dos trabalhadores”. Nesse sentido,

valoriza as lutas do MST e defende a reforma agrária. A referida edição do jornal destacou

ainda os candidatos eleitos pelo PT, o partido “de quem trabalha”, conforme o Movimento.

No editorial de maio de 1988, o MST apoia de forma explícita o PT. Nas eleições que

viriam, era preciso “fortalecer o partido”:

Devemos entrar de sola na luta política e fortalecer a construção do Partido

dos Trabalhadores, elegermos rurais para as prefeituras, conquistar o maior

719 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Luta pela reforma agrária interessa toda sociedade. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, dez.de 1984 e jan. de 1985, ano III, n. 41, p. 14-15. 720 SILVA, Luiz Inácio Lula da. A palavra do deputado mais votado do país. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

nov./dez. de 1986, ano V, n. 58, p. 4-5.

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número de vereadores, enfim ganhar espaço para construirmos nosso projeto

político. O partido é nossa maior ferramenta e através dele podemos

manifestar o desejo de uma mudança social721.

A Direção Nacional do MST visualizava o PT como uma “ferramenta” disponível aos

trabalhadores desejosos para fazerem a “mudança social”. Fortalecer o PT era fortalecer a luta

política dos trabalhadores, tanto do campo quanto da cidade. Nas eleições municipais de

1988, o MST orientava seus integrantes para participarem “ativamente” e contribuírem na

eleição de “trabalhadores”, “divulgando as propostas do Partido dos Trabalhadores”722. Cabe

ressaltar que, mesmo com o envolvimento nas eleições e com o apoio explícito aos candidatos

petistas, o MST não perdia sua autonomia. Era evidente a preferência de membros do

Movimento pelo PT; e muitos se envolviam em campanhas de candidatos, todavia, isso não

significava que o MST estava subordinado ao partido.

Ressalte-se também que Lula se envolvia em muitas atividades do MST e se

demonstrava um parceiro nas lutas do Movimento. Em janeiro de 1987, Lula participou do III

Encontro Nacional do MST, realizado no município de Piracicaba/SP, que reuniu

aproximadamente duzentas lideranças Sem Terra para discutir as lutas e os caminhos do

Movimento no ano que se adentrava. Na oportunidade, Lula discursou dizendo que “O Sem

Terra é, sem dúvida, um dos movimentos de trabalhadores mais sérios que temos nesse

país”723. Outro momento em que Lula participou das atividades organizadas pelo MST foi em

seu II Congresso Nacional, realizado em Brasília, no ano de 1990. No Congresso, além de

manifestar seu apoio às lutas em prol da reforma agrária e tecer críticas ao governo Collor,

Lula exaltava a organização do MST: “No dia em que no Brasil a gente tiver alguns milhões

de trabalhadores com consciência política e a garra que vocês têm, as coisas serão muito mais

fáceis e a reforma agrária inevitavelmente será feita nesse país”724. E acrescentou:

O Brasil continua sendo o único país da América Latina em que os poucos

exemplos de reforma agrária que teve foram conquistados com a luta e o

sacrifício dos trabalhadores rurais. Por isso a luta dos camponeses brasileiros

merece todos os elogios. Mas acho que a maneira como vocês têm lutado

nos últimos 10 anos é de fazer inveja a qualquer organização, pela

combatividade das ações do MST, um movimento que tem apoio de todos os

democratas deste país. Vocês já demonstraram na prática, como se conquista

721 Na luta se conquista. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1988, ano VIII, n. 73, p. 2. 722 Eleger trabalhadores. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 1988, ano VIII, n. 74, p. 2. 723 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua fala no 3º Encontro Nacional do MST. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

fev./mar. de 1987, ano VI, n. 60, p. 3. 724 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua fala no II Congresso Nacional do MST. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

abril/maio de 1990, ano X, n. 93, p. 8.

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a terra. Basta lembrar o exemplo do assentamento da Gleba do Holandês na

Fazenda Annoni no Rio Grande do Sul ou do assentamento da Fazenda

Pirituba em São Paulo. É assim que a classe trabalhadora vai fazer reforma

agrária no Brasil725.

A fala de Lula vai ao encontro do lema do Congresso: Ocupar, Resistir e Produzir.

Para Lula, as ocupações de terra eram uma forma legítima de denúncia ao latifúndio

improdutivo, tal como um modo de se acelerar o processo de reforma agrária. Observa-se que

havia entre o MST e Lula um compartilhar de ideias no que se refere à luta dos trabalhadores

no país – acreditavam que apenas com organização e mobilização as experiências históricas

poderiam ser transformadas. Com a participação nos Encontros e Congressos do MST, Lula

demonstrava respeito e apoio aos Sem Terra; e da parte dos Sem Terra havia a crença e a

legitimação de que aquela figura política era do povo e governaria para o povo. Na sequência,

uma fotografia de Lula no referido Congresso. A fotografia é de autoria de Douglas

Mansur726:

Imagem 54 – Lula no II Congresso Nacional do MST

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril/maio de 1990, ano X, n. 93, p. 8.

725 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua fala no II Congresso Nacional do MST. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

abril/maio de 1990, ano X, n. 93, p. 8. 726 O repórter fotográfico Douglas Mansur, nos últimos vinte e cinco anos, tem acompanhado e fotografado

momentos importantes da história do MST, como Encontros, Congressos, marchas, ocupações, dentre outros.

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Verifica-se, na fotografia, que a visualização de alguns detalhes é dificultada, pois a

qualidade de impressão da imagem no jornal ficou comprometida, o que evidencia que o

periódico, nesse momento, ainda estava se aprimorando tecnicamente. Identifica-se, à frente

da enorme bandeira do Movimento, com o lema Ocupar, Resistir e Produzir, a militante e

integrante da Direção Nacional do MST, Fátima Ribeiro, a qual presenteou Lula com um dos

símbolos de maior expressão da luta pela terra, a foice727. Muito aplaudido por seu discurso

efusivo em prol da reforma agrária e das lutas desempenhadas pelo MST, Lula entra no clima

do Congresso e, com gesto marcante, levanta a foice em sinal de respeito, ratificando que

compartilhava da causa dos Sem Terra. Na imagem mencionada, Fátima Ribeiro também

levanta seu braço e, com o punho cerrado728, saúda Lula. Os semblantes de Fátima e de Lula

são de alegria e satisfação com as atividades desenvolvidas no Congresso. A ação do MST em

presentear Lula com um símbolo importante da organização, assim como o gesto de Lula para

com esse símbolo demonstram cumplicidade e o partilhar de ideias entre o movimento social

e o parlamentar.

Em março de 1992, Lula participou de outro momento significativo nas atividades do

MST, uma cerimônia festiva realizada no Instituto Cajamar, município de Jordanesia/SP. Na

ocasião, o Movimento comemorava a conquista do Prêmio Nobel Alternativo729, recebido em

dezembro de 1991, em Estocolmo, Suécia; e também compartilhava réplicas dessa conquista

com entidades e personalidades que contribuíram com a luta pela reforma agrária. Dentre

essas personalidades estavam Dom Pedro Casaldaliga, Dom José Gomes, Frei Betto e Lula.

Na imagem a seguir, do repórter fotográfico Douglas Mansur, visualiza-se Lula recebendo o

prêmio das mãos de Fátima Ribeiro.

727 A foice, o facão, a enxada, o rastelo são instrumentos comuns na labuta dos trabalhadores rurais. As

ferramentas de trabalho, para os sujeitos sem-terra, são partes constitutivas de sua relação com a terra e com a

produção. É através delas que se prepara a terra, se planta e se colhe os alimentos. No Movimento, as

ferramentas de trabalho também se configuram como símbolo de sua luta e resistência. Para aqueles que não

simpatizam com as causas e ideais do Movimento, esses instrumentos de trabalho podem ser interpretados como

uma imagem violenta e truculenta do MST, o que é um equívoco. 728 O punho cerrado é gesto que simboliza solidariedade, apoio, unidade, força e resistência. Sua utilização é

mais comum entre grupos e pessoas identificadas com a denominada esquerda. 729 O Prêmio Nobel Alternativo ou Right Livelihood Award (em inglês), foi criado em 1980 pelo escritor e

filatelista Jakob von Uexkull, ex-membro do Parlamento Sueco. A cerimônia de entrega dos prêmios Nobel

Alternativo acontece no Parlamento Sueco, em dezembro de cada ano. O nome “Nobel” não tem qualquer

ligação com o tradicional Prêmio Nobel, mas remete-se a ele como uma reflexão e crítica.

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Imagem 55 – Lula recebe réplica do prêmio Nobel Alternativo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1992, ano XI, n. 114, p. 8.

Observa-se que a foto/imagem carrega uma representação de cumplicidade e respeito

entre o MST, representado por Fátima Ribeiro, e Lula. Ao convidar e homenagear o político

em cerimônia tão importante, o Movimento legitima a figura de Lula como representante dos

trabalhadores sem-terra e como apoio relevante na luta pela reforma agrária. No início da

década de 1990, Lula já havia se consolidado como um político de expressão no cenário

nacional, sobretudo para os grupos de esquerda.

No Jornal Sem Terra, eram noticiadas além das participações de Lula nos Encontros e

Congressos, as suas andanças pelo país e as suas passagens pelos assentamentos. Em março

de 1994, na seção do estado do Rio Grande do Sul, destaca-se: Lula prega Cidadania com

Reforma Agrária. A matéria faz referência à denominada Caravana da Cidadania730,

realizada por Lula nos três estados da região Sul do país. Na época, Lula era pré-candidato à

presidência da República e mantinha discurso otimista face à reforma agrária. Em um dos

seus discursos, no município de Uruguaiana/RS, Lula enfatiza: “Nós vamos pôr a mão em

730 As Caravanas da Cidadania foram organizadas pelo Instituto Cidadania, que, após 2011, passou a ser

chamado Instituto Lula. As Caravanas foram uma experiência inédita na política brasileira, em que uma equipe

de lideranças políticas e sindicais, técnicos e especialistas acompanharam Lula em cinco Caravanas que

percorreram 359 cidades, em 26 estados. Tais Caravanas tiveram o objetivo de aprofundar o conhecimento

sobre as experiências históricas dos brasileiros, dialogando com as comunidades, e articulando propostas para o

desenvolvimento das regiões brasileiras. Conforme Martinho, ao percorrer centenas de cidades, através das

Caravanas da Cidadania, Lula e o PT cresciam a “olhos vistos” no cenário político (2007, p. 552). Sobre as

Caravanas e o Instituto Lula, ver: http://www.institutolula.org/historia#ancora_02.

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todo o latifúndio que não esteja cumprindo a função social”731. Por esses e outros discursos

Lula era exaltado pelos trabalhadores sem-terra e pela Direção Nacional do MST, que viam

nele a esperança de uma reforma agrária ampla, que desconcentrasse a estrutura fundiária do

país.

Nessa Caravana ao Sul do país, Lula também visitou o assentamento 30 de Outubro,

em Campos Novos, Santa Catarina. Na oportunidade, o político percorreu o assentamento e

discursou para aproximadamente 1.200 trabalhadores rurais. Conforme a matéria do jornal,

Lula havia dito que a reforma agrária era uma “prioridade”732 para ele, desde a fundação do

PT. Sobre essa questão, em uma entrevista concedida ao Jornal Sem Terra, publicada na

edição de fevereiro/março de 1993, Lula compreendia que era preciso transformar a “reforma

agrária numa coisa chamada prioridade”, “necessária para o desenvolvimento do país”.

Segundo ele:

Eu acho que a reforma agrária precisava ser descaracterizada como uma

medida de um governo de esquerda. A reforma agrária deveria ser vista

como uma necessidade nacional. No mundo inteiro, uma das formas mais

eficazes de produzir alimento, de gerar emprego, de diminuir a diferença

entre as pessoas é a partilha justa da terra. Nós não podemos ficar esperando,

precisamos convencer a sociedade urbana, a sociedade rural, os empresários

de que a reforma agrária é uma necessidade nacional. Aliás, tal como a

comida, a reforma agrária é uma questão de segurança nacional. Um país

que tem, segundo dados oficiais, 33 milhões de pessoas em condições de

indigência, ou seja, pessoas que não têm acesso à comida mínima necessária,

ou um país que tem 65 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de

pobreza não pode prescindir da reforma agrária733.

Nessa entrevista, Lula foi questionado sobre a reforma agrária e sobre outros assuntos

tais como: violência no campo, poder judiciário, criminalização do MST, sistema de governo,

PT. Sobre o trecho citado, para Lula, na primeira metade da década de 1990, a reforma agrária

não deveria ser pensada apenas por grupos denominados ou intitulados de “esquerda”. Como

uma questão estruturante e fundamental para o desenvolvimento do Brasil, deveria ser algo de

consenso nacional. A reforma agrária também não era coisa só do mundo rural, mas também

das cidades, haja vista que contribuiria para a produção de alimentos, geração de empregos e

diminuição das desigualdades sociais. O discurso de Lula era enfático: reforma agrária é uma

731 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de seu discurso em Uruguaiana/RS. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

março de 1994, ano XIII, n. 134, p. 5. 732 Lula realiza Ato pela reforma agrária no assentamento 30 de outubro. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de

1994, ano XIII, n. 134, p. 6. 733 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua entrevista ao Jornal Sem Terra – Lula fala ao MST. In: Jornal

Sem Terra. São Paulo, fev./mar. de 1993, ano XIII, n. 134, p. 5.

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questão nacional, “condição ‘sine qua non’ para tirar qualquer país da América Latina da

situação de miséria que se encontra”. Por esse entendimento, Lula também declarava que,

“com erros e acertos, eu acho que o Movimento Sem Terra é o movimento mais sério que nós

temos no Brasil hoje. É o movimento mais combativo que nós temos no país”734. Percebe-se

que o respeito e a admiração entre MST e Lula eram recíprocos, e ambos visualizavam na

reforma agrária um fator importante para os trabalhadores e para o desenvolvimento nacional.

Em visita ao assentamento Santa Clara, na região do Pontal do Paranapanema/SP, no

dia 17 de junho de 1994, Lula foi recebido de forma festiva por aproximadamente 3.000

assentados e acampados da região. Como de praxe, Lula se colocava ao lado dos

trabalhadores sem-terra e das lutas do MST em prol da reforma agrária. Num discurso

acalorado, segundo a matéria do jornal, Lula havia dito que faria “reforma agrária com uma

canetada”735, desapropriando todo latifúndio improdutivo. Esse tipo de discurso pregado por

Lula acerca do enfrentamento aos status quo e das terras improdutivas ia ao encontro dos

anseios e do arcabouço ideológico do MST. Fazendo a reforma agrária com “uma canetada”

Lula enfrentaria as estruturas do sistema político e econômico e as elites rurais, o que para o

Movimento era vital na luta de classes.

Durante suas andanças por assentamentos e acampamentos do MST, Lula esteve no

estado de Mato Grosso do Sul, município de Rio Brilhante, em outubro de 1993. Um

momento importante recuperado na matéria escrita por M. Marques, no Jornal Sem Terra,

intitulada: Lula se emociona no acampamento de Rio Brilhante. Ao visitar esse acampamento

e constatando as condições de existência em que os sem-terra estavam vivenciando, Lula se

solidariza e homenageia os acampados por sua resistência e organização. Na ocasião, segundo

a matéria, ele também se emociona:

Quando Cristiane, criança de apenas dez anos, o homenageou com uma

música sertaneja que cantava a injustiça e a tristeza da miséria, Lula se

emocionou, e lágrimas começaram a correr pelo seu rosto, assim como

brotavam nos olhos de todos que estavam presentes naquele momento. Foi

um pranto coletivo pelo sofrimento e pela tristeza de todas as crianças

brasileiras que estão sem direito de brincar, mas que, junto de seus pais,

sonham e lutam pela reforma agrária736.

734 Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua entrevista ao Jornal Sem Terra – Lula fala ao MST. In: Jornal Sem Terra.

São Paulo, fev./mar. de 1993, ano XIII, n. 134, p. 6. 735 Lula visita assentamento no Pontal. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1994, ano XIII, n. 138, p. 7. 736 Lula se emociona no Acampamento de Rio Brilhante. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1993, ano

XII, n. 130, p. 11.

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Uma característica pessoal de Lula em sua trajetória como figura pública foi a de não

esconder muito suas emoções737. O fato de ter chorado, ao verificar o contexto vivenciado

pelos acampados e ao ser homenageado por uma criança de dez anos, fez com que Lula

reafirmasse sua representação de sensível às causas sociais. Com a publicação dessa notícia, o

MST queria expressar que Lula era gente, sujeito trabalhador que também havia vivenciado

dificuldades e que compreendia o sofrimento dos acampados.

Cumpre sublinhar que Lula participou de inúmeras atividades organizadas pelo MST,

assim como de visitas a acampamentos e assentamentos que foram registradas pelo Jornal

Sem Terra, não cabendo, aqui, discriminá-las uma a uma. A menção a alguns desses

momentos, dá-se no sentido de se enfatizar que Lula teve uma relação próxima ao MST, em

especial, antes de ser presidente da República; e que o apoio do MST ao presidenciável Lula

não veio do nada – essa aproximação é histórica, na medida em que ambos partilhavam ideias

e consideravam a reforma agrária importante para o desenvolvimento do país. Nessa

perspectiva, as representações construídas sobre Lula, como representante dos trabalhadores e

como a esperança da reforma agrária, se justificam por experiências históricas e por um

partilhar de ideias e concepções políticas e ideológicas entre o petista e o MST. As

representações são construídas a partir do lugar, tempo e grupo aos quais os sujeitos

pertencem e vivenciam suas experiências históricas.

E quanto às eleições, ocorria o apoio a Lula nas campanhas? Quais eram as

representações sobre Lula nas eleições presidenciais de 1989, 1994, 1998 e 2002, antes de ele

ser presidente? Não se pretende fazer uma reflexão detalhada acerca dos processos eleitorais,

mas chamar a atenção para o apoio e para as representações de Lula pelo MST no jornal. O

apoio e o entusiasmo com o político advêm, sobretudo, pelo fato de Lula ser do operariado

(trabalhador) e ter aproximação histórica com o Movimento.

Em um primeiro momento, discorda-se, por exemplo, da pesquisadora Sue Branford,

quando ela diz que “as relações entre o PT e o MST não foram muito fluídas durante a maior

parte da década de 1980, época em que ambas organizações estavam lutando para se

estabelecer no nível regional”738. Sobre esse tópico, reflete-se que o MST visualizava o PT

737 Sobre alguns episódios públicos em que Lula se emocionou e chorou, ver: Lula chora ao fazer avaliação de governo

em entrevista exclusiva ao Jornal da Record. In: R7 Notícias. 21 de julho de 2010. Disponível em:

http://noticias.r7.com/brasil/noticias/lula-chora-ao-fazer-avaliacao-de-governo-em-entrevista-exclusiva-ao-jornal-da-

record-20100721.html. Acesso em: 09/10/2014, às 8h17min; Lula chora ao ligar para mãe de Eduardo Campos. In: ZH

Eleições 2014. 14 de agosto de 2014. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/eleicoes-

2014/noticia/2014/08/lula-chora-ao-ligar-para-mae-de-eduardo-campos-4574926.html. Acesso em: 09/10/2014, às

8h22min. 738 BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 416.

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como uma “ferramenta” por meio da qual os trabalhadores do campo e da cidade poderiam

vislumbrar “mudanças sociais”; e que o Movimento, por meio do jornal, publicava matérias

relacionadas ao partido devido à necessidade de fortalecê-lo nacionalmente. Desse modo, a

relação entre MST e PT foi fluída até a eleição de Lula, em 2002; e o apoio ao candidato,

endossado abertamente durante o período de campanha das eleições, como se verificará nas a

seguir.

Na eleição presidencial de 1989, o MST demonstrou entusiasmo e confiança na vitória

de Lula. Muito antes do início das campanhas, no editorial de abril de 1989, a Direção

Nacional do Movimento destacava que naquele ano lutaria “para eleger um representante dos

trabalhadores na presidência da República”739. O nome de Lula não consta no editorial, até

porque o período de campanha política ainda não estava autorizado pela Justiça Eleitoral,

mas, considerando a aproximação histórica entre Lula e MST, esse “representante dos

trabalhadores” seria o próprio Lula, do PT. Em outubro de 1988, um ano antes das eleições

presidenciais, o MST traça o perfil do PT e de Lula, como um provável candidato às eleições

presidenciais do próximo ano.

A alternativa de um governo popular estaria representada na candidatura de

Luiz Inácio Lula da Silva, deputado constituinte eleito pelo PT com a maior

votação da história da Câmara dos Deputados. Foi o dirigente sindical que

liderou as lutas operárias, que aceleraram a derrubada do regime militar. Foi

um dos idealizadores e fundadores do Partido dos Trabalhadores, presidente

do PT desde sua fundação até ano passado. O que vai representar seu

governo? A proposta do PT é a implantação de um programa de governo

popular, criar formas para que os trabalhadores dirijam de acordo com os

interesses das grandes massas. O programa agrário do PT, define a

necessidade de desapropriar todos os latifúndios, e as terras de empresas

multinacionais740.

Lula e PT eram representados pelo MST como distintos dos políticos e partidos

tradicionais da política brasileira. Lula e PT carregavam a marca do “popular” – o político e o

partido dos trabalhadores para os trabalhadores. Essa crença do MST integrava Lula e PT ao

imaginário ideológico da organização do Movimento, em especial, no sentido de que seriam

os trabalhadores quem comandariam as ações do governo, de acordo “com os interesses das

grandes massas”. Lula conduziria o Brasil a um governo do povo e dos trabalhadores. E o

programa agrário do PT desapropriaria “todos os latifúndios” e as “terras de empresas

739 Mobilizar as massas! Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 1989, ano IX, n. 82, p. 2. 740 Para que servem as eleições municipais? Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1988, ano VIII, n. 77, p. 11.

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multinacionais”. Nota-se que, o MST, nas décadas de 1980 e 1990, tinha uma visão romântica

e idealizada de Lula e do PT, a partir de suas crenças e convicções políticas e ideológicas.

Essa visão ainda se estenderia até a eleição presidencial de 2002, conforme se reflete ao longo

da tese.

À medida que a eleição de 1989 se aproximava, o Movimento orientava seus

integrantes sobre os presidenciáveis, com vistas a que avaliassem e escolhessem quem

estivesse ao lado dos trabalhadores. Nesse sentido, também destacava os possíveis

presidenciáveis que não deveriam receber votos dos integrantes do MST, por não serem a

favor dos sem-terra e da reforma agrária: Mario Covas, Ronaldo Caiado, Collor e Miguel

Arraes741. No editorial de agosto de 1989, o MST dava a entender mais explicitamente seu

apoio ao candidato Lula e assinalava que as ocupações não deveriam cessar, pois isso não

prejudicaria a candidatura do petista.

As mobilizações que acontecerão em torno das eleições devem ser um

espaço para denunciar todas as arbitrariedades que são praticadas contra os

trabalhadores, e de fortalecimento da aliança entre operários e camponeses.

Aos movimentos, sindicatos, mantendo autonomia em relação ao partido,

cabem avançar na luta social pelas reinvindicações básicas dos

trabalhadores. O movimento, dentro desta perspectiva, não pode deixar de

realizar a sua tarefa principal que é a luta pela reforma agrária, utilizando a

principal forma de luta dos trabalhadores sem-terra que é a ocupação742.

O MST compreendia a importância de se mobilizar no período das eleições e de se

continuar com as ocupações de terras. Destacava que era preciso entender que sua

organização era autônoma em relação aos partidos. Ou seja, o envolvimento nas eleições era

salutar, desde que mantivesse sua autonomia e avançasse na luta social e no fortalecimento da

aliança entre os trabalhadores do campo e da cidade. Na edição de outubro de 1989, pela

primeira vez, o Movimento apoia abertamente o presidenciável Lula. Na capa do jornal há a

seguinte chamada: Lula: uma candidatura em defesa da reforma agrária743. No editorial

dessa mesma edição enfatiza-se o porquê apoiar Lula:

[...] a candidatura Lula representa a possibilidade de pela primeira vez a

classe trabalhadora assumir o comando do governo do Brasil. Isto com um

projeto político e um programa de governo que, com a efetiva participação

741 A luta mostra quem é quem. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1989, ano IX, n. 85, p. 3. 742 Não esquecer os objetivos. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 1989, ano IX, n. 86, p. 3. 743 Lula: uma candidatura em defesa da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1989, ano IX, n. 88, p. 1.

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dos trabalhadores, pode fazer avançar as lutas sociais, e o processo de

transformação da sociedade744.

O apoio ao presidenciável petista era embalado por ele ser considerado um legítimo

representante da “classe trabalhadora”, e nele era depositada a expectativa da “transformação

da sociedade”. É interessante registrar que Lula não era representado como fazendo parte de

um projeto socialista para o Brasil. Como já fora salientado no segundo capítulo da tese, a

utopia do MST fundamenta-se na luta contra o capitalismo, em favor da construção de uma

sociedade socialista. No jornal, o candidato apoiado era considerado o representante de um

projeto “democrático popular”745, o qual abria espaços de participação ativa dos trabalhadores

nas decisões do governo, cujas ações estariam pautadas na transformação social, inclusive, em

um amplo programa de reforma agrária.

Na análise do jornal, não se percebeu que Lula era visto como um candidato

socialista, mas sim como um operário, representante dos trabalhadores. A figura de Lula,

apresentada pelo Movimento é a de um líder sindical, operário, trabalhador e representante

do povo. Essa caracterização aproxima-se daquela que o Lula fazia de si próprio – ele não

gostava de ser rotulado e não se apresentava publicamente como um candidato socialista,

mas sim como trabalhador, líder sindical. Entretanto, Lula era o político que mais perto

chegava do projeto socialista do MST: eliminar o latifúndio e construir uma sociedade em

que a justiça social e o desenvolvimento econômico para todos os brasileiros fossem

primordiais. Para o MST, Lula era democrático e popular, diferente de outros políticos.

Na eleição de 1989, a partir de sua concepção ideológica, marxista-leninista, o

Movimento passa a representar a disputa trabalhadores versus burguesia de forma mais nítida

no segundo turno, quando permaneceram Lula e Collor. Lula era a expressão latente dos

“trabalhadores”; Collor, da “burguesia” (elites), do continuísmo e do conservadorismo746.

Assim, eram apreciados dois projetos de política opostos: Lula era “autêntico”, trabalhador, e

Collor “fabricado” pelas elites. Nessa perspectiva, para o MST, as eleições significavam uma

luta de classes, a partir dos preceitos marxistas entre trabalhadores versus burguesia.

Em relação às eleições de 1989, Reis observa que Lula foi lançado pelo PT como uma

espécie de “anticandidatura; muito mais para marcar posições do que para disputar o posto

máximo da República”747. Além disso, a candidatura do petista era ancorada em ideias

744 Unidade entre os trabalhadores. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1989, ano IX, n. 88, p. 3. 745 Candidatura democrático-popular. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1989, ano IX, n. 87, p. 23. 746 Os trabalhadores enfrentam a burguesia. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1989, ano IX, n. 89, p. 3. 747 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 515-516.

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“reformista-revolucionárias” como: anulação da dívida externa, reforma agrária radical e

questionamento profundo das bases do modelo econômico. Nessa direção, Sader destaca que

as propostas petistas eram muito limitadas, centrando-se em apenas dois eixos: justiça social e

ética na política. Não se tinha uma “proposta específica sobre o regime econômico, a crise

fiscal do Estado ou o modelo político da nova democracia. [...]. Esperava-se que a

redemocratização resolvesse os problemas do país por meio de políticas sociais e estilos

políticos transparentes”748. As características radicais e de enfrentamento às questões

estruturantes do modelo político e econômico brasileiro agradavam à Direção Nacional do

MST e aos grupos políticos de esquerda.

Para o MST, considerando a essência de suas lutas, que consistiam na realização da

reforma agrária, Lula era o único candidato que defendia e iria fazer a reforma agrária

desejada pelo Movimento. As entrevistas e os trechos de discursos de Lula publicados no

jornal durante e antes da campanha eleitoral contribuíram para reafirmar essa crença do MST.

Em entrevista concedida ao Jornal Sem Terra, em setembro de 1989, Lula fala sobre política

agrícola, dívida externa, salário, inflação e reforma agrária. Sobre esse último assunto, diz:

Nós achamos que a Reforma Agrária não é apenas uma questão legal,

depende da pressão do povo. Na nossa opinião a realização de Reforma

agrária é fundamental para o desenvolvimento do país. Ela possibilita uma

melhor distribuição de renda, aumento da produção e possibilidade de

diminuir o analfabetismo, evita o crescimento das favelas e infinidades de

problemas advindos do êxodo rural. Então a reforma agrária é uma condição

política obrigatória nesse país. E como fazer? É só utilizar as terras devolutas

do Estado, as improdutivas dos grandes latifúndios. Temos a ideia de fazer

uma proposta dizendo até quantos hectares ou alqueires nós não iríamos

mexer749.

O fato de Lula compreender que a reforma agrária era “fundamental para o

desenvolvimento do país” fazia com que o MST se envolvesse amplamente na campanha do

candidato. No entendimento do Movimento, Lula ia “desapropriar os latifúndios

improdutivos; legalizar as terras ocupadas pelos trabalhadores; limitar a propriedade rural” e

“incentivar a produção de alimentos básicos, em oposição às monoculturas para

exportação”750. Enfim, com Lula os trabalhadores rurais sem-terra teriam a oportunidade de

trabalhar e viver em seu pedaço de chão.

748 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 75. 749SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua entrevista ao Jornal Sem Terra – Candidatura democrático-

popular. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1989, ano IX, n. 87, p. 23. 750 Os presidenciáveis e os trabalhadores. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1989, ano IX, n. 88, p. 12-13.

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Todavia, como se sabe, Collor derrotou Lula e as expectativas do Movimento foram

frustradas. Mesmo assim, após o resultado eleitoral, o MST publicou no jornal uma matéria

que dizia: Collor levou mas não ganhou, em referência ao fato de o presidente eleito ter feito

uma margem de 41% dos votos contra 37% de Lula, o que significava que 59% dos eleitores

“não votaram em Collor, não querem ele”. Destacava-se, ainda, que com esse resultado “não

houve festa. Houve um verdadeiro funeral. Os únicos que fizeram festa foram novamente a

burguesia nacional, seus aliados multinacionais, os coronéis, os fazendeiros, a UDR e os

políticos do Centrão”751. Para o MST, a vitória de Collor foi “imoral”, devido ao apoio

deliberado dos grandes meios de comunicação ao candidato eleito e à manipulação de

informações sobre o candidato petista. Acompanhando essa matéria foi publicada uma

imagem752 interessante que contribui para se analisar a relação histórica entre Lula e MST.

Imagem 56 – Collor levou mas não ganhou

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 12.

Apesar da derrota no pleito eleitoral, o MST publicou essa imagem que mostra Lula

sorrindo, com semblante de felicidade. Aliás, Lula surpreendeu e assustou as elites políticas e

sociais com o resultado de sua votação no segundo turno, que superou os 31 milhões de votos

válidos. Nota-se que, na imagem, abaixo do rosto de Lula, como se fosse extensão de seu

corpo, há uma multidão de homens e mulheres. No meio dessa multidão, bandeiras do MST,

751 Collor levou mas não ganhou. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 1989, ano IX, n. 90, p. 12. 752 A imagem não está assinada, contudo, pelo expediente do jornal, muito provavelmente ela seja de autoria de Elda

Broilo, que estava responsável pelas “ilustrações” do periódico.

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PT e uma do PCdoB tremulam e dão o tom de alegria e festa ao momento. Lula é

representado como a extensão dos trabalhadores na política; e a votação conquistada em seu

primeiro pleito para presidente da República devia ser comemorada. Lula havia se

consolidado como o principal líder de oposição no Brasil e a eleição de 1989 popularizou,

além de Lula, o próprio PT.

Cinco anos depois, no início do ano de 1994, o MST se colocava abertamente em

favor de Lula na eleição que viria e elencava: “Decidimos apoiar abertamente e nos envolver

na campanha do companheiro Lula, porque acreditamos ser a única que, se vitoriosa, pode

implantar um programa democrático-popular e realizar a reforma agrária”753. Dessa vez, o

principal adversário para a presidência era FHC, visto pelo Movimento como o “presidente

das elites”. Novamente, a candidatura de Lula era visualizada como um projeto “democrático-

popular”, em que os trabalhadores poderiam participar ativamente dos rumos escolhidos para

o país. O Movimento se orgulhava de estar mais uma vez com Lula nas eleições.

Alguém precisa dizer para essa burguesia estúpida e ignorante que a

candidatura de Lula é justamente o resultado de mais de 15 anos de luta da

classe trabalhadora, tanto na cidade como no campo.

Se não houvesse greves do ABC, as ocupações de terra, os sindicatos

combativos, a CUT, o MST, o Movimento das Mulheres, dos Negros, a

Central dos Movimentos Populares, não existiria nem PT, nem candidatura

Lula.

Lula é fruto das lutas do povo brasileiro.

Achar que as lutas do povo tiram voto do Lula é ignorância e uma armadilha

que só engana a eles mesmos.

Nós do MST nos orgulhamos de apoiarmos Lula. E acreditamos em sua

vitória. Temos certeza de que a vitória do Lula estará mais forte, quanto mais

o povo brasileiro se mobilizar754.

Esse texto foi publicado no editorial de julho de 1994 e ressaltava o fato de os

candidatos incluírem o tema reforma agrária em seus programas de governo. Contudo, o

editorial menciona que apenas o presidenciável petista entendia a luta dos sem-terra e

realizaria a reforma agrária. O Movimento chamava a atenção para o fato de a candidatura de

Lula ser a soma das lutas dos últimos quinze anos no país, sejam as do campo, sejam as da

cidade. Também orientava seus integrantes a continuarem lutando e se mobilizando, pois isso

não tiraria votos de Lula, pelo contrário, fortaleceria o candidato “fruto das lutas do povo

brasileiro”.

753 O que esperar de 1994? Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 1994, ano XIII, n. 133, p. 2. 754 A luta pela terra sobe aos palanques. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1994, ano XIII, n. 138, p. 2.

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Mais uma vez, o MST tinha crença na vitória de Lula e visualizava a eleição como um

embate de classes: trabalhadores (Lula) versus burguesia (FHC755); um projeto “democrático-

popular” versus um projeto das “elites”756. No período de campanha, o Movimento publicou,

mais uma vez, em seu jornal frases e textos demonstrando a proximidade histórica entre o

candidato petista e a luta dos sem-terra. Na seção Frase do Mês, em abril de 1994, um trecho

da fala de Lula (sem periodização) é exposta:

[...] Talvez eu seja mais próximo dos Sem-Terra que muitos companheiros

do PT. Uma coisa é eu estar em São Bernardo comendo pizza e analisando o

problema deles. Outra coisa é eles estarem no meio daquelas terras se

matando que nem cavalo. Eles têm de ser radicais. Para eles é vencer ou

morrer. Se há alguma coisa que eu compreendo é o radicalismo da base. Eu

não posso compreender o radicalismo do professor da USP, mas o do peão

eu entendo. Se ele não for radical ele não existe757.

Nesse trecho Lula procura demonstrar proximidade e entendimento sobre as lutas dos

sem-terra, apoiando o “radicalismo” da organização do MST. A sua fala é coloquial e

expressa que o político entendia das lutas e adversidades vivenciadas pelos trabalhadores

(peões). Ao enfatizar que a luta dos sem-terra era “vencer ou morrer”, Lula traz a luta de

classes para o seu discurso, como se ela fosse inevitável para que os trabalhadores

conquistassem uma vida melhor. Esse radicalismo expresso na fala de Lula era apropriado

pelo MST, de forma positiva – o petista enfrentaria o modelo político e econômico e

transformaria a estrutura fundiária do Brasil.

A capa da edição do Jornal Sem Terra, de setembro de 1994, traz a seguinte

manchete: É hora de mudar o Brasil ... com Lula na presidência. Ilustrando a manchete há

uma fotografia de Lula, em suas andanças com a Caravana da Cidadania.

755 Além de FHC e Lula, participaram da eleição presidencial de 1994 os candidatos: Orestes Quércia, Espiridião

Amim, Enéas Carneiro, Leonel Brizola, Carlos Antônio Gomes e Hernani Fortuna. 756 O grito dos trabalhadores. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 1994, ano XIII, n. 136, p. 2. 757 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua fala – Frase do mês. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de

1994, ano XIII, n. 135, p. 2.

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Imagem 57 – Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1994, p. 1.

Editora responsável: Débora Lerrer

Pelo exposto, Lula era a “mudança”, isto é, o rompimento com o modelo político e

econômico em vigor e a realização da reforma agrária. Na foto de capa, de autoria de Clóvis

Ferreira, Lula aparece de mãos dadas e braço esquerdo erguido ao lado de Manuel Nardi,

conhecido como Manuelzão758, durante a passagem da Caravana da Cidadania pela bacia do

rio São Francisco, em 1994. O político caminha ao lado de sua esposa, Marisa Letícia Lula da

Silva, e de assessores pela rua em meio ao povo. Tal atitude demonstra sua simplicidade e

cumplicidade com os seus eleitores, bem como evidencia satisfação e confiança no pleito

eleitoral.

758 Manuelzão foi um personagem literário criado por João Guimarães Rosa, inspirado no vaqueiro Manuel Nard

(1904-1997), que conviveu com o escritor. Manuelzão era conhecido por sua simplicidade, sabedoria e respeito à

natureza e se tornou figura conhecida no interior de Minas Gerais, mesmo depois de aposentado da profissão de

vaqueiro. Manuelzão morreu em 1997, aos 92 anos, vítima de uma embolia cerebral, no povoado de Andrequicé,

município de Presidente Olegário/MG.

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Nesse sentido, Lula é considerado a “única alternativa de mudança para o Brasil”. Para

o MST, o único candidato que tinha um compromisso e faria a reforma agrária. E, de certa

forma, Lula sinalizava para isso em seus discursos. Em entrevista concedida ao Jornal Sem

Terra, em setembro de 1994, o candidato petista enfatiza:

Reforma agrária é o principal instrumento para acabar com a fome neste

país, porque distribui renda e estimula a produção de alimento básico, as

pessoas da cidade terão acesso à alimentação abundante, de boa qualidade e

a preços baixos. Quem quiser deixar de ser assalariado rural poderá ser

beneficiado pela reforma agrária759.

Ao dizer que a reforma agrária seria o “principal instrumento” para “acabar” com a

fome no Brasil, Lula sugere que esta seria prioridade em seu governo, uma alternativa central

para eliminar a fome e produzir alimentos com baixo custo à população. Contudo, Lula teria

que esperar mais tempo para conquistar a presidência da República, pois FHC o derrotou,

ainda no primeiro turno, com 54,3% dos votos. Nas representações do MST, a eleição de

1994, assim como a de 1989, foi deliberadamente controlada pelos grandes meios de

comunicação que manipulavam informações e ações de Lula. Assim, a “mentira” teria

vencido a eleição760, mas os trabalhadores Sem Terra estariam atentos e mobilizados contra o

governo FHC. Observa-se, nesse caso, uma luta por representações, pois o Movimento não

creditava as vitórias de Collor e FHC como legítimas e sim como frutos de manipulação das

mídias conservadoras. Isto é, o jornal era utilizado para contradizer e construir representações

que processavam outras visões sobre as vitórias de Collor e FHC, como se as vitórias fossem

falsas e frutos das “mentiras” propagadas.

Passados mais quatro anos, na eleição presidencial de 1998, o Movimento acenou

novamente para a candidatura de Lula. Era o terceiro pleito em que o candidato petista

disputava a presidência do país, e a sua candidatura representava, assim como nas eleições

anteriores, “uma campanha do povo brasileiro contra as elites”761. No caso, FHC buscava a

reeleição e o MST via em Lula a possibilidade de romper com o modelo político e econômico

neoliberal implementado no Brasil.

No Jornal Sem Terra, a eleição de 1998 não foi tão propagada como as anteriores,

levando-se em conta a quantidade de referências ao processo eleitoral e à candidatura de Lula.

759 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua entrevista – Candidato da Frente Brasil Popular responde ao

MST. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 1994, ano XIII, n. 140, p. 8-9. 760 Venceu a mentira. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 1994, ano XIII, n. 141, p. 2. 761 O Governo FHC e a farsa do neoliberalismo. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 1997, ano XVI, n. 174, p. 2.

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Isso não quer dizer que o Movimento se abstivesse de participar e se posicionar diante das

eleições e dos candidatos. A proximidade entre o petista e o MST ainda continuava. Na edição

de agosto de 1998, a frase do mês foi de Lula: “A diferença entre um pobre e um sem-terra do

MST é o brilho nos olhos, que o pessoal do MST tem”762. Com essa afirmação, o Movimento

expressava que Lula estava junto aos sem-terra e visualizava que a organização do MST era

um importante espaço para propiciar dignidade aos trabalhadores.

Em fins do ano de 1997 e início de 1998, Lula participou de Encontros organizados

pelo MST e já se apresentava como pré-candidato à presidência do Brasil. Um dos encontros

foi o XIII Encontro Estadual do Paraná, no município de Santa Cruz do Monte Castelo, no

assentamento São Sebastião, entre os dias 20 e 23 de janeiro de 1998. No último dia do

evento, Lula participou e conversou com os Sem Terra sobre as expectativas com a eleição

que viria763. No IX Encontro Nacional do MST, realizado em fevereiro de 1998, em

Vitória/ES, onde estavam presentes aproximadamente 1.200 delegados de todos os estados

em que o Movimento tinha representação, Lula também participou. O petista e Brizola (que

foi candidato a vice-presidente de Lula na eleição de 1998) eram convidados ilustres do

Encontro. No editorial de fevereiro de 1998, ao falar sobre esse Encontro, o Movimento

destacou um “grande desafio” para o ano de 1998:

Participar ativamente da campanha eleitoral, procurando engajamento à

candidatura de Lula-Brizola. Vamos transformar a campanha eleitoral num

grande movimento político que consiga politizar nossa base e a sociedade.

Que transforme a eleição, sobretudo, numa derrota do modelo neoliberal764.

A orientação do MST para seus integrantes era que se “engajassem” na campanha

eleitoral do candidato Lula, pois estava em jogo a “derrota do modelo neoliberal”. Desse

modo, para o MST, Lula representava o rompimento do modelo que estava sendo gestado.

Para o Movimento, em 1998, Lula seria o antídoto para o “caos social” vivenciado pelo

governo FHC. A imagem a seguir765 evidencia os “efeitos” de Lula e de FHC na presidência

da República.

762 SILVA, Luiz Inácio Lula da. Trecho de sua fala – Frase do mês. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de

1998, ano XVII, n. 181, p. 2. 763 A luta pela terra. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 1997 e jan. de 1998, ano XVI, n. 175, p. 8. 764 1998: grandes desafios pela frente. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 1998, ano XVI, n. 176, p. 2. 765 Não se conseguiu identificar de quem era a assinatura na imagem. O expediente do jornal também não faz

menção à ilustração.

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Imagem 58 – Efeitos FHC e Lula

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1998, ano XVI, n. 180, p. 2.

Essa imagem foi publicada junto ao editorial, cujo título era: O Governo FHC é o caos

social. Nesse editorial, o Movimento dizia que o governo FHC era “caos” e sinônimo de

“exclusão social”766, e que Lula seria a solução para os problemas. O cenário era uma “bolsa

de valores”, com muitos operadores de pregões trabalhando, todos exprimidos, com

expressões tensas e falando ao telefone. Nota-se se que as duas cenas são similares,

apresentando os mesmos personagens, mas diferentes “efeitos” em cada uma delas. Do lado

esquerdo, os seguintes “efeitos” de FHC são anunciados pelos operadores: “Petrobrás, 3500;

Usiminas, 430; Telebrás, 700 mil; Eletropaulo, 250; Vale do Rio Doce; Banco do Brasil;

Transbrasil; Banespa”. Do lado direito, os “efeitos” de Lula são caracterizados pelos

operadores como: “Salário; Saúde; Férias; Reforma Agrária; Estabilidade; Aposentadoria;

Empregos; Escolas”.

Os “efeitos” de FHC referem-se às privatizações de empresas estatais ocorridas em seu

governo, medidas criticadas e condenadas pelo MST. Os “efeitos” de Lula, caso ele fosse

eleito, giravam em torno de questões centrais para o desenvolvimento do país: educação,

saúde, emprego. Havia dualidade na representação dos candidatos, ou seja, FHC agregava

apenas questões negativas e Lula traria aspectos positivos, conforme o MST.

766 O Governo FHC é o caos social. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1998, ano XVI, n. 180, p. 2.

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Sobre a eleição de 1998, vale pontuar, ao se analisar o jornal, que o MST não a

visualizava com o mesmo entusiasmo com que visualizava as eleições anteriores, apesar de

haver declarado apoio aberto ao petista. As notícias eram mais no sentido de que FHC estava

caindo nos índices de votos nas pesquisas e no de que Lula estava subindo767. Todavia, FHC

foi reeleito ainda no primeiro turno com 53,06% dos votos válidos.

A esperança se lançaria novamente na eleição do ano de 2002. Nesse contexto, Lula e

o PT haviam se transformado, consideravelmente, por meio de um processo desenvolvido ao

longo da década de 1990. Isto é, as posições políticas de Lula e do PT em 2002 não eram mais

as mesmas da década de 1980.

Em 1991, o PT realizou seu primeiro Congresso Nacional em São Bernardo do

Campo/SP. Nesse evento o partido indicava que se afastaria do “socialismo” e do

“radicalismo político”768, tão ambíguos e indefinidos em suas retóricas. De acordo com Reis,

no desenrolar da década de 1990, o PT foi se caracterizando como “conciliador”, “moderado”

e “reformista”. Assim, se concentrava cada vez mais na “busca do próprio fortalecimento

institucional, polarizado pelas disputas eleitorais que se sucediam em todas as instâncias da

sociedade, via-se sugado por essa dinâmica, que ele não havia previsto, e parecia não

controlar”769.

O entendimento de Sader vai ao encontro do de Reis, no sentido de que, nos anos de

1990, o PT começa um período de adequações lentas, fruto do processo histórico que o

conduziria ao perfil em que o governo Lula se estruturou770. Por exemplo, em seu início, o

partido era contrário ao pagamento da dívida externa, justificando que esses recursos

deveriam ser investidos no social. Já em 2002, Lula e PT mudam completamente o discurso,

garantindo o compromisso com as dívidas, com os contratos. Ainda, ao incorporar o consenso

do governo FHC de “priorizar o combate à inflação” e a “estabilidade econômica” a qualquer

custo, o PT se transforma ideologicamente.

De força antissistêmica, o PT se transforma em força reformista, de caráter

socialdemocrata771, conforme Sader. De “revolucionários” a “eleitoreiros”, gestor de

767 Cai FHC, sobe Lula. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio/junho de 1998, ano XVI, n. 179, p. 18. 768 Reis reflete que o grupo denominado “Articulação”, encabeçado por Lula, fazia frente aos “revolucionários”

do PT. Esse grupo era “politicamente moderado” e logo se impôs como “centro dirigente” do partido. “Por ela

(Articulação), e desde então, teriam que passar as grandes decisões que orientariam a vida partidária e a ação do

PT na sociedade” (REIS, 2007, p. 518). 769 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 518. 770 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 76. 771 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 81.

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“administrações públicas e do sistema capitalista”772. Na década de 1990, o PT cresce

consideravelmente. Apesar de duas derrotas presidenciais, elege diversos parlamentares e

conquista governos de estados e de prefeituras de cidades importantes no país. Enfim, o

partido cresce e se transforma em uma máquina partidária eleitoral, em que conquistar o

poder, mediante diversas alianças e barganhas políticas, torna-se algo frequente. Conforme

Fausto, o PT eleito para a Presidência da República em 2002 tornou-se “um partido

pragmático e reformista, que apostava mais na força das urnas que na mobilização das

ruas”773.

E o petista Lula, como se apresentou diante das circunstâncias históricas? As

mudanças de concepções políticas do ex-metalúrgico foram notórias, considerando-se as

décadas de 1980 e 2002. Um exemplo simples, mas que expressa uma característica

importante de suas mudanças, foram seus próprios discursos perante os eleitores, em especial,

nos meios de comunicação. Sobretudo, a partir de 1998, Lula se porta mais moderado, sereno

e passa a chamar os eleitores e eleitoras de amigos e amigas, não mais companheiros e

companheiras. Ele se afasta do radicalismo e se aproxima de uma linha mais moderada.

Apesar de ainda se utilizar de discursos fortes e efusivos, não rompe com as estruturas. De

acordo com Martinho, Lula havia se transformado em mais “intuitivo” do que “pragmático” e

se apresentava de acordo com as circunstâncias. Nessa perspectiva, “foi alterando seu

discurso e suas alianças de acordo com as possibilidades. Fruto, portanto, de uma esquerda

mais intuitiva que pragmática, o personagem Lula apresentou-se diante da opinião pública sob

diversas faces”774.

Lula transforma-se consideravelmente da década de 1980 para o ano de 2002. Suaviza

seus discursos e sua imagem. A partir de então, entra em cena o Lulinha paz e amor. Segundo

Fausto:

Ficara para trás o líder sindical carrancudo que liderou as greves

metalúrgicas de 1978 a 1980, enfrentando a ditadura e a Lei de Segurança

Nacional. Ficara para trás também o candidato que, em 1982, concorrera em

raia própria ao governo do estado de São Paulo e o que havia sido derrotado

nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Nesses anos, suavizou seu

discurso. Foi o próprio Lula quem, na eleição seguinte, a de 2002, para ser

novamente candidato, exigiu de seu partido liberdade para compor alianças

fora do campo das esquerdas775.

772 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 518-519. 773 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 523. 774 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou diferente, p.

559. 775 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 524.

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Diante de contextos históricos distintos e de mudanças políticas e ideológicas notórias,

algo característico chama a atenção em relação a Lula, o seu carisma. Esse traço lhe é

peculiar, espontâneo e estritamente pessoal. No que diz respeito a “carisma” e a “dominação

carismática”, uma leitura clássica de Max Weber permite uma reflexão. O autor compreende o

“carisma” como uma “qualidade pessoal considerada extracotidiana”, que, na origem, pode

ser condicionada a um poder “quase mágico”, atribuído a pessoas, poderes ou qualidades

“sobrenaturais”, “sobre-humanos” ou, no mínimo, “extracotidiano”. Essa qualidade pessoal

constitui líderes de forma natural. Logo, esses líderes, carismaticamente conquistam seus

“adeptos”776. Em outras palavras, é a capacidade de a pessoa exercer, de forma natural,

liderança sobre aquilo que se propõe a desenvolver; essa pessoa passa a ser reconhecida entre

seus pares espontaneamente. Lula exerce isso em sua trajetória política, em pouco tempo se

torna líder sindical, protagonista na fundação do PT e referência para seu partido.

Ao também refletir sobre “carisma”, Norberto Bobbio enfatiza que o “poder

carismático” advém de uma capacidade “extraordinária” de quem o possui, por isso, não

depende dos meios legais, da racionalidade ou tradição. É peculiar da pessoa, quase que um

“dom”777. Nessa direção, Weber destaca que o carisma é fruto de “livre reconhecimento”

pelos “adeptos” da liderança. O “reconhecimento” “é uma entrega crente e inteiramente

pessoal nascida do entusiasmo ou pela miséria e esperança”. Ou seja, o carisma não depende

das questões “cotidianas”, normais, pois é algo ligado à pessoa/líder. Para a “dominação

carismática”, não existe receita ou orientações778. A liderança é nata e se desenvolve de forma

natural e espontânea.

Sublinhe-se que, em sua trajetória política, Lula se construiu como uma liderança de

forma espontânea e rápida, conquistando o reconhecimento de políticos e pessoas que

acreditavam em suas convicções políticas e ideológicas. É possível dizer que Lula se tornou

uma liderança carismática por essência, não como algo programado ou forçado por forças e

decisões exteriores a ele. Um elemento importante também de seu carisma é o bom humor.

Cavalcanti, referindo-se a Lula na presidência, observa que “o presidente é homem que sorri,

testemunhando a alegria de presidir. Ele diverge da tradição republicana de presidente de cara

fechada, como Castelo, Geisel e Figueiredo; de cara raivosa, como Collor; de cara enigmática

como Itamar; de cara nostálgica, como Fernando Henrique Cardoso”779.

776 WEBER, M., Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, p. 158-159. 777 BOBBIO, N., Dicionário de Política, p. 149-151. 778 WEBER, M., Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, p. 159-160. 779 CAVALCANTI, L. O., O que é o Governo Lula?, p. 54.

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Esse carisma peculiar de Lula, assim como suas posições políticas, em especial nas

décadas de 1970 e 1980, fizeram com que o MST o reconhecesse como uma liderança

expressiva na política brasileira e entre os trabalhadores do campo e da cidade. Todavia, no

processo histórico, o MST não se preocupou em avaliar as transformações de Lula e do PT,

posto que o interesse estava na figura do ex-metalúrgico, nordestino, trabalhador que seria a

extensão dos trabalhadores e trabalhadoras na presidência da República. Desse modo, havia

um certo romantismo por parte do MST, pois muitas das representações de Lula presentes nas

eleições do ano de 2002 estavam alicerçadas no petista da década de 1980.

Para o MST, a maior virtude de Lula estava no fato de ele ser um trabalhador e trazer

em sua memória vivências das adversidades que a maior parte da população brasileira

vivenciou (e vivencia). Essa interpretação também advém do fato de o Movimento possuir

uma prática de se apoiar em heróis, mártires. Ou seja, de personificar figuras significativas

para sua organização e sua memória histórica780. De certa forma, a figura de Lula foi

personificada pelo MST, haja vista que o petista, representado no início do século XXI, era

aquele das décadas de 1970 e 1980.

No que tange às eleições de 2002, por meio do editorial do jornal de fevereiro, o MST

já chamava a atenção para o processo eleitoral e salientava: “Esperamos que os candidatos da

oposição se elejam e que realmente estejam comprometidos verdadeiramente com a mudança

do modelo econômico”781. Não eram mencionados nomes e partidos, apenas “candidatos da

oposição”, mas essa “oposição” relacionava-se, em especial, aos candidatos petistas. O

Movimento fazia questão de abordar que a “oposição” deveria estar comprometida com a

“mudança de modelo econômico”. Esse comprometimento seria fundamental para a

efetivação de mudanças vislumbradas pelo MST.

Em junho de 2002, é publicada no Jornal Sem Terra uma entrevista com Plínio de

Arruda Sampaio, na qual o entrevistado sinaliza para as opções de votos para presidente e

destaca a figura de Lula. Por mais que fossem de Plínio os comentários sobre a eleição e os

presidenciáveis, havia certa intencionalidade na entrevista que era a de propagar o nome de

Lula como o único candidato que poderia modificar a política econômica e realizar uma

reforma agrária ampla e massiva, nos moldes pretendidos pela Direção Nacional do MST.

780 Ver: COELHO, Fabiano. Ela é a Alma do MST? A prática da mística e a luta pela terra. Dourados: Editora da

UFGD, 2014. 781 Lutas e mudanças em 2002. Jornal Sem Terra. São Paulo, fevereiro de 2002, ano XX, n. 218, p. 2.

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Daí a importância da proposta alternativa consistente no Programa do Lula.

Esta proposta consiste em mudar o eixo da política econômica, colocando a

prioridade na oferta de emprego, no crescimento do mercado interno e no

pagamento da dívida social. Tudo o mais, inclusive a questão da dívida

externa (cujo pagamento ou não vai depender de um plebiscito) e a

modernização dos padrões de consumo das classes ricas, se subordinará às

três grandes prioridades acima referidas. Para atendê-las, será necessário

realizar uma verdadeira Reforma Agrária, uma reforma urbana e uma

política decidida de retomada da industrialização. Terra, Teto e Trabalho”

sintetizam os objetivos deste Programa. O único dos candidatos que tem

condições de implantar esse modelo alternativo é o Lula, pois as prioridades

mencionadas constituem programa do PT, desde sua fundação782.

Lula era indicado como “única” alternativa para mudanças na política econômica e

suas prioridades seriam questões ligadas ao “social”. Plínio citava que as “prioridades” e os

objetivos de Lula (Terra, Teto e Trabalho) estavam no programa do PT, “desde sua

fundação”, como se o partido não tivesse passado por mutações. Isto é, Plínio, naquele

momento, tinha uma visão prístina do PT e daquilo que Lula iria fazer, caso fosse eleito. E,

embalado pelo entusiasmo e esperança em mais uma eleição, o Movimento orientava seus

integrantes no editorial de julho de 2002:

Precisamos, urgentemente, participar da campanha para discutir o modelo

econômico. Discutir um projeto popular para o Brasil.

E no mês de outubro votar contra a candidatura de Serra. A maioria da nossa

base vai votar no Lula.

É importante que tenhamos uma vitória da oposição. Pois uma vitória contra

o atual modelo pode reanimar o povo a retomar as lutas de massa. Sabemos

que somente a luta social pode conseguir mudanças em nosso país, e as

eleições podem ajudar a retomada da luta de massas.

Nossa tarefa é, acima de tudo, organizar o povo, animar o povo e se preparar

para a retomada das lutas de massa, que serão de fundamental importância,

com o agravamento da crise, que virá muito em breve.

Nosso país está se encaminhando para grandes encruzilhadas e o povo vai

precisar lutar muito, para conseguirmos mudanças.

À luta companheiros e companheiras783!

O editorial era específico para o desenvolvimento de reflexão sobre a Alca e seus

efeitos “danosos” para o Brasil e a América Latina; entretanto, como as eleições se

aproximavam, a Direção Nacional do Movimento dedicou espaço para tratar sobre elas. Nota-

se que o MST demonstra “urgência” em seu envolvimento na campanha eleitoral; seria

782 SAMPAIO, Plínio de Arruda. Participação popular na eleição presidencial. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

junho de 2002, ano XX, n. 221, p. 3. 783 Arregaçar as mangas contra a Alca. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2002, ano XX, n. 222, p. 2.

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fundamental a discussão de um novo “modelo econômico” e de um “projeto popular para o

Brasil”. A dimensão de um “governo popular” e a transformação do “modelo econômico”

eram questões históricas que acompanhavam o Movimento desde a eleição em 1989. Nesse

editorial, havia uma orientação enfática: não votar no candidato José Serra (PSDB), pois sua

candidatura se constituía em uma continuidade do modelo de governo de FHC. Lula

representava a possibilidade de mudança e transformação.

No editorial de outubro, ao final do primeiro turno da eleição de 2002, fez-se um

balanço positivo da votação, considerada pelo MST uma “vitória da esquerda”, pois haviam

sido eleitos muitos parlamentares do PT. Nesse mesmo editorial, convocavam-se os

integrantes do Movimento a “continuar mobilizados para garantir a vitória de Lula no

segundo turno”784. E, de fato, essa vitória ocorreu. Lula venceu o candidato José Serra com

margem de 61,2% dos votos válidos. O clima festivo, de entusiasmo e esperança contagiou a

Direção Nacional do Movimento – pela primeira vez, a maior parte do povo votou em

“mudanças” e em um representante dos trabalhadores para a presidência da República.

Sobre a campanha eleitoral de 2002 e o triunfo de Lula, observa-se que o contexto era

favorável ao petista, sobretudo, pelo desgaste dos dois mandatos de FHC e pela não simpatia

do candidato José Serra. E, para essa campanha, o PT havia se preparado

profissionalmente785, arrecadando finanças consideráveis. Também, o discurso de Lula

tornou-se ainda mais moderado, num processo que já vinha se delineando desde 1994.

Somado a esses fatores, articulou-se uma assessoria de marketing que viabilizaria as propostas

do candidato nos meios de comunicação e o lançaria Lula com um novo visual, despido de

qualquer aparência radical e arcaica, daí surgiu o lema Lulinha paz e amor. Vale ressaltar que,

conforme Luiz Otávio Cavalcanti, por mais que Lula houvesse se “transfigurado”

politicamente, ele continuava com as mesmas práticas, não se afastando da figura de líder

metalúrgico e da classe trabalhadora. O que mudou foi sua aparência e sua forma de fazer

marketing. “A transfiguração política do presidente, portanto, faz com que ele mude, mas

permaneça quem é”786.

784 O povo vota contra o modelo das elites e FHC. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2002, ano XXI, n. 224, p. 2. 785 Na campanha eleitoral de 2002, o PT contratou Duda Mendonça para conduzir a campanha de Lula. Esse

publicitário se configura como um dos melhores e mais conhecidos marqueteiros do país. Sobre os meandros e

bastidores da campanha eleitoral de Lula em 2002, ver o documentário “Entreatos”, dirigido pelo cineasta

brasileiro João Moreira Salles. Esse documentário é instigante e revela o quanto Lula estava cercado de

profissionais da comunicação e marketing na campanha. Também, evidencia conversas privadas, reuniões

estratégicas, telefonemas, traslados, gravações de pronunciamentos e programas eleitorais durante o processo

eleitoral. 786 CAVALCANTI, L. O., O que é o Governo Lula?, p. 55.

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Nesse tópico, foi possível analisar que as expectativas e esperanças depositadas na

eleição de Lula não partiram do nada, como se fosse algo esporádico ou momentâneo, mas de

representações construídas ao longo dos anos e alimentadas por discursos, imagens e

ideologias que se convergiam. Isto é, o candidato petista, desde a década de 1980, teve relação

próxima com a organização do MST e, por vezes, compartilhava das mesmas aspirações e

ideias do Movimento (pelo menos em seus discursos).

A proximidade e o apoio a Lula nas eleições por parte da Direção Nacional do MST

eram históricos – o petista fora personificado como um legítimo representante dos

trabalhadores. Nas eleições de 1989, 1994, 1998 e 2002, Lula era representado pelo

Movimento como a extensão dos trabalhadores, do campo e da cidade, na presidência da

República. Mas, após a vitória de Lula, as mudanças ocorreram? O modelo político

econômico foi alterado? Lula e seu governo priorizaram as questões sociais? Estruturou-se

um “governo popular” no país, em que os trabalhadores tiveram participação ativa nas

decisões e nos rumos a serem trilhados pelo Brasil? Como foram elaboradas as representações

sobre o presidente Lula no Jornal Sem Terra? Essas questões serão analisadas no próximo

tópico.

4.2 Lula: entre a continuidade do modelo econômico e as possibilidades de

mudanças

No dia 1 de janeiro de 2003, Lula tomava posse da Presidência do Brasil e marcava

historicamente a política nacional – nunca um ex-operário e líder sindical havia assumido tal

posto. Esse evento histórico criava expectativas, tanto entre os grupos identificados com a

esquerda política, quanto entre os identificados com a direita. Para os grupos de esquerda, o

petista representava a possibilidade de mudanças estruturais, poderia alterar o modelo

econômico e provocar discussão mais ampla sobre os rumos que o país traçaria. Para os de

direita, caracterizados por um viés político mais conservador, Lula representava preocupação

em vista de suas ações e as de seu partido, temiam-se mudanças radicas na política e na

economia.

O MST também estava envolto de expectativas acerca de Lula na Presidência e o

Jornal Sem Terra oferecia pistas para se refletir sobre algumas delas. Assim como se fez no

capítulo anterior, organizou-se uma tabela de editoriais que representavam diretamente a

figura de Lula durante os oito anos em que ele foi presidente da República.

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Tabela 3 – Editoriais relacionados ao presidente Lula (2003-2010)

Título do Editorial Referência

Uma vitória do povo SP, ano XXI, nº 225, nov/2002, p. 2.

Hora de arregaçar as mangas SP, ano XXI, nº 226, dez/2002 e jan/2003, p. 2.

Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para a

luta!

SP, ano XXI, nº 227, fev-março/2003, p. 2.

É preciso quebrar a resistência das elites SP, ano XXI, nº 228, abril/2003, p. 2.

Nossa tarefa de lutar SP, ano XXI, nº 229, maio/2003, p. 2.

Por um plano nacional de reforma agrária SP, ano XXI, nº 230, junho/2003, p. 2.

É hora de fortalecer nossa organização SP, ano XXI, nº 230, julho /2003, p. 2.

É preciso agilizar a Reforma Agrária SP, ano XXII, nº 233, set/2003, p. 2.

Governo assume compromisso de acelerar a reforma

agrária em 2004

SP, ano XXII, nº 235, nov/2003, p. 2.

É preciso mudanças já, mas elas só virão com a

mobilização

SP, ano XXII, nº 238, março/2004, p. 2.

A luta por mudanças na política econômica SP, ano XXIII, nº 243, ago/2004, p. 2.

2005: um ano de mudanças SP, ano XXIII, nº 247, dez/2004 e jan/2005, p. 2.

Contra o modelo neoliberal e a política econômica SP, ano XXIII, nº 253, julho/2005, p. 2.

A crise política e a nossa luta SP, ano XXIV, nº 254, ago/2005, p. 2.

Compromissos precisam ser honrados SP, ano XXIV, nº 255, set/2005, p. 2.

A empresa territorial chamada Brasil SP, ano XXIV, nº 256, out/2005, p. 2.

Lutar sempre SP, ano XXIV, nº 257, nov/2005, p. 2.

Reforma agrária do Lula ou do Jungmann? SP, ano XXIV, nº 258, dez/2005 e jan/2006, p. 2.

A Reforma Agrária e a disputa de modelos SP, ano XXIV, nº 260, março/2006, p. 2.

Debater alternativas reais para o Brasil SP, ano XXIV, nº 263, junho/2006, p. 2.

As eleições no processo de mudança do Brasil SP, ano XXV, nº 266, set-out/2006, p. 2.

A hora é de unidade popular e luta SP, ano XXV, nº 267, nov/2006, p. 2.

Futuro SP, ano XXV, nº 268, dez/2006, p. 2.

Os entraves da reforma agrária SP, ano XXV, nº 269, jan/2007, p. 2.

Os ricos estão mais ricos no governo Lula SP, ano XXV, nº 274, julho/2007, p. 2.

Bancos continuam lucrando SP, ano XXV, nº 275, ago/2007, p. 2.

Nada é impossível de mudar SP, ano XXV, nº 276, set/2007, p. 2.

Tempo de resistência e organização SP, ano XXVI, Nº 278, nov-dez/2007, p. 2.

Um atestado de ignorância do Governo SP, ano XXVI, nº 279, jan/2008, p. 2.

Governo abandona reforma agrária SP, ano XXVI, nº 285, ago/2008, p. 2.

O petróleo tem que ser nosso! SP, ano XXVI, nº 286, set/2008, p. 2.

Menos recursos para a reforma agrária SP, ano XXVII, nº 292, maio/2009, p. 2.

Vamos cobrar a reforma agrária prometida SP, ano XXVII, nº 294, julho/2009, p. 2.

Voltar às ruas pela reforma agrária e por um Brasil

sem latifúndios

SP, ano XXVII, nº 295, ago/2009, p. 2.

Balanço e desafios para um novo ano SP, ano XXVII, nº 299, dez/2009, p. 2.

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Afinando a viola para 2010 SP, ano XXVIII, nº 300, jan-fev/2010, p. 2.

O momento exige unidade SP, ano XXVIII, nº 301, março/2010, p. 2

Em outras seções do jornal também havia matérias sobre o presidente Lula e sobre as

ações de seu governo787. Tal como efetuado no capítulo anterior, os editoriais citados na

tabela, assim como outras matérias do jornal que contemplam a problemática da tese serão

analisados de forma integrada, sem se separar o primeiro e o segundo mandatos do presidente.

A primeira questão a ser observada na tabela de editoriais que se referem diretamente a Lula,

diz respeito à quantidade – um total de trinta e sete. Em relação a FHC, foram setenta e cinco

editoriais, mais que o dobro. Nota-se, num primeiro momento, que o presidente Lula não era o

alvo privilegiado dos editoriais, como foram os presidentes anteriores.

Muitos editoriais não se remetiam diretamente ao governo Lula ou ao presidente Lula,

como acontecia nos tempos dos presidentes Sarney, Collor, Itamar e FHC. A partir de 2004,

para se referirem ao governo Lula, os editoriais passaram a utilizar a nomenclatura Governo

Federal, de forma genérica788. Nesse sentido, com o passar dos anos, havia uma evidente

intenção, por parte da Direção Nacional do MST, de ocultar o nome do presidente Lula diante

das críticas feitas a seu governo. Isto é, o governo deixava a desejar em muitos aspectos, mas

Lula era preservado/ocultado das críticas. A opção de mencionar “governo Federal” e não

governo Lula foi estratégica por parte do Movimento, para não expor o presidente Lula.

Nessa direção, ressalta-se que, com Lula na presidência, também houve um processo

de mudança e harmonização dos discursos face ao governo e à figura do presidente. A

harmonização do discurso refere-se à forma com que o MST, intencionalmente, suavizou o

modo de representar o presidente e de inseri-lo na escrita dos textos. Diferente dos mandatos

anteriores, Lula e o governo não eram “das elites”789. O MST, historicamente, havia

contribuído para as campanhas e para a eleição de Lula, assim, não poderia continuar com o

mesmo discurso efusivo, contestador e ridicularizador acerca do governante. No

desenvolvimento desse tópico e no do seguinte, observa-se que, mesmo sendo críticas, as

representações se tornam mais brandas e o presidente não é ridicularizado.

Por ora, entende-se que as representações construídas por grupos e indivíduos são

selecionáveis, considerando seus interesses e necessidades. No caso do MST, por

787 Algumas delas serão analisadas no desenvolvimento do capítulo. 788 Na tabela, foram considerados os editoriais que falavam diretamente do presidente Lula, não “governo

Federal”, de maneira genérica. 789 Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para a luta. Jornal Sem Terra. São Paulo, fev./mar. de 2003,

ano XXI, n. 227, p. 2.

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compartilhar de alguns princípios ideológicos de Lula e de seu partido e por apoiá-los nas

eleições, não era mais cabível continuar com a mesma linha de discurso e construção de

representações. Era preciso abrandar os textos e não expor, de forma pejorativa, o presidente

representante dos trabalhadores. Assim, as representações, necessariamente, não seguiam uma

coerência e se tornavam selecionáveis; e, dependendo de quem se queria representar,

legitimavam-se ou ocultavam-se as experiências históricas.

Sobre essa reflexão, torna-se interessante recorrer à entrevista de Cristiane Gomes, que

editorou o Jornal Sem Terra no período em que Lula foi eleito presidente do Brasil. A

entrevistada destaca que houve tensão na produção do periódico, porque ele seguia uma linha

crítica e ridicularizadora dos presidentes e, com Lula na presidência, os textos não poderiam

seguir a mesma lógica de críticas e exposição do governante. Cristiane pondera que, ao se

analisar edições passadas, constata-se que é inegável uma mudança brusca nos textos do

Jornal Sem Terra, especialmente, naqueles que fazem referência ao Governo Federal e ao

presidente. Em suas palavras:

No começo também, em alguns dados momentos, nas questões mais

políticas, porque quando eu comecei a editar o jornal, foi no começo do

primeiro mandato do Lula. Então tinha uma preocupação: “pô será que a

gente não está muito...”, “e agora?”. Eu não peguei essa fase na verdade, eu

só via nas edições passadas do jornal que tinha uma coisa muito assim com o

Fernando Henrique, de bater e tudo. E aí com a eleição do Lula teve aquele

momento: “nossa, agora vai”. E a gente tem que estar junto nesse “agora

vai”, a gente, o Movimento ajudou a eleger o Lula também. Então, isso sei

lá, na metade do segundo ano a agente já falou: “e mais, cadê?”. Aí essas

questões também de conjuntura, conjuntura internacional, então tinha às

vezes uma vontade de ser mais crítico, será que a gente pode fazer isso? Não

dependia de mim Cristiane editora. Não podia colocar lá “eu acho que tem

que ser assim”, porque a gente tinha ligação com a Direção Nacional, que

por sua vez, discutia isso em reuniões, a coordenação, acredito que você já

sabe essa estrutura do Movimento assim, de organização.

E foi ficando delicado justamente por conta disso. Bater num Governo tão

duramente como era feito com Fernando Henrique, mas que está de certa

forma alinhado politicamente a gente, que a gente ajudou a eleger. Então,

isso foi um impasse que era bem presente, bem presente ali. Eu como editora

tinha uma preocupação de não fazer uma coisa muito “chapa branca”. Então,

buscava sempre esse equilíbrio. Até brincava, falava: “ah, ia ser mais fácil se

fosse o Governo Fernando Henrique, porque você vai e pau, bate, fala mal,

faz charge dele com cara de demônio, e aí fica tudo certo”790.

790 Cristiane Gomes. Entrevista concedida a Fabiano Coelho. São Paulo/SP, 2012.

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A entrevista de Cristiane revela questões importantes para se compreenderem os textos

do jornal no final do governo FHC e no início do governo Lula. Ela enfatiza essa dificuldade

política para se produzir o discurso direcionado a Lula. O clima de tensão no jornal

relacionava-se também ao fato de a Direção Nacional do MST ter apoiado Lula em sua

eleição; por isso era preciso cautela para se falar do presidente e de seu governo. Como

“bater” em um presidente que o MST ajudou a eleger? Como editora, de forma descontraída,

ressalta que era necessário buscar o “equilíbrio”. Isto é, fazer a crítica, mas não expor

pejorativamente o novo presidente.

Na época de FHC, conforme a entrevistada, havia uma sistemática no jornal de sempre

“bater” e expor negativamente o presidente. Em tom de brincadeira e dando risada, Cristiane

salienta que trabalhar no jornal na época do FHC deveria ser mais fácil, pois o presidente era

o “inimigo”, desse modo, era apenas ir, “meter o pau”, “bater”, “falar mal”, fazer charge com

“cara de demônio”, e estava “tudo certo”. No caso de Lula, os discursos eram mais

cuidadosos, pois não se podia expor pejorativamente o presidente que o Movimento ajudara a

eleger.

Ela comenta que, no segundo ano de mandato, o MST se perguntava: “e mais, cadê? -,

em referência ao fato de o governo Lula não dar sinais de mudanças profundas no modelo

macroeconômico e não realizar uma reforma agrária ampla. Como ficaria o MST e os

discursos produzidos no jornal? Será que deveria criticar, “bater” como na gestão de FHC?

Era interessante essa tensão na produção do jornal; e o relato de Cristiane corrobora com a

reflexão efetuada no primeiro capítulo desta tese sobre as limitações do editor na produção do

Jornal Sem Terra, haja vista que nele não se podia escrever o que se pensava, nem se podia

fazer críticas sem que antes elas passassem pelo crivo da Direção Nacional do MST.

Prosseguindo com a análise, verifica-se, no início do primeiro ano do mandato de

Lula, que a euforia do MST era explícita. No editorial de dezembro de 2002 e janeiro de

2003, intitulado Hora de arregaçar as mangas, há referência ao fato de estar na hora de se dar

início aos trabalhos do governo. Nesse sentido, o Movimento publica charge, de autoria de

Marcio Baraldi, sinalizando ser o presidente Lula o piloto do “Governo Popular”.

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Imagem 59 – Lula: piloto do Governo Popular

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2002 e jan. de 2003, ano XXI, n. 226, p. 2.

A imagem aponta para um local onde se abastecem aviões. O abastecedor de aeronave

é representado por um homem do campo, que tem um chapéu na cabeça e demonstra estar

muito feliz. O avião a ser abastecido, com o desenho de uma estrela em seu bico e na asa

direita (em referência ao símbolo do PT) tem o nome de “Governo Popular”; o piloto é o

presidente Lula. Seu semblante retrata confiança e segurança naquilo que vai executar, ele

ergue o braço esquerdo e dá um sinal de positivo para o abastecedor do avião.

O interessante é que o combustível que sai da bomba de abastecimento se chama

“movimentos sociais” e que o sublinhado pelo abastecedor é o seguinte: “sem a nossa

gasolina ele não voa!”. Implicitamente, a charge representa que os movimentos sociais do

campo e da cidade deveriam ser o combustível para que o governo (avião) pilotado por Lula

decolasse e chegasse onde os trabalhadores quisessem. O adjetivo “popular” agregado ao

Governo é algo que ia ao encontro da ideologia histórica do MST, ou seja, o Governo

precisava ter a participação popular e ser voltado aos trabalhadores. Nesse sentido, agregava-

se também nessa charge a representação de que Lula romperia com o modelo neoliberal

vigente, conforme o Movimento.

No processo difícil e complicado de transformar o país, o MST chamava a atenção

para a necessidade de se acreditar no governo Lula, pois ele não era “igual ao medíocre e

servil governo anterior”791 (FHC). Desse modo, no editorial de fevereiro e março de 2003,

791 Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para a luta! Jornal Sem Terra. São Paulo, fev./mar. de 2003,

ano XXI, n. 227, p. 2.

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enfatiza-se que havia interesses conflitantes no jogo político e que não bastava “apenas a

vontade do presidente”. Isto é, “os movimentos sociais, populares têm a tarefa de auxiliar esse

governo através da organização e mobilização da população brasileira em defesa dos

interesses do país e na construção de uma sociedade justa e igualitária”792. O Movimento se

colocava na função de “auxiliar” Lula e seu governo em defesa dos interesses do Brasil. Na

charge que acompanha esse editorial, de autoria de Baraldi, Lula está com os trabalhadores e

se esforça para tirar o país da “crise”.

Imagem 60 – Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para luta!

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, fev./mar. de 2003, ano XXI, n. 227, p. 2.

No lado direito da charge, está o Brasil (representado por seu mapa), com diversos

machucados, com expressão de muito cansaço e imergindo em um lamaçal chamado “crise”.

No lado esquerdo, há uma multidão de pessoas, trabalhadores do campo e da cidade,

indígenas, dentre outros. Essa multidão porta cartazes representando “partidos”, “sindicatos”,

“movimentos populares” e “empresas” e tem à sua frente nada mais que o presidente da

República. Com uma corda, Lula e as demais pessoas fazem uma força tremenda, visando a

tirar o Brasil do lamaçal, da “crise” que é fruto, sobretudo, das políticas econômicas

implementadas pelo governo FHC.

O semblante do presidente Lula e dos demais demonstra tensão, posto que aquele seria

um trabalho duro e cansativo, mas todos estavam imbuídos dessa missão. Lula diz aos

792 Lula precisa ser firme: vamos organizar o povo para a luta! Jornal Sem Terra. São Paulo, fev./mar. de 2003,

ano XXI, n. 227, p. 2.

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demais: “Se puxar todo mundo junto, ele sai”. O interessante nessa charge é que, naquele

momento, os trabalhadores tinham a seu lado, a seu favor, o presidente e seu governo, coisa

que nunca tiveram, segundo o MST. O fato de Lula estar à frente desses trabalhadores,

auxiliando-os na tarefa de tirar o Brasil da crise demonstra que o presidente é um deles

(trabalhadores) e entendia suas reais necessidades. Nas representações sobre FHC, por

exemplo, ele nunca estava ao lado dos trabalhadores e sempre era vinculado aos banqueiros,

latifundiários e políticos corruptos.

Será que Lula e sua equipe de governo transformariam o modelo político e econômico,

conforme o Movimento defendia e acreditava? No editorial de abril de 2003, momento em

que se faz um balanço sobre os primeiros 100 dias de Lula no governo, já se percebe certa

tensão e impaciência do MST em relação aos caminhos que a política econômica estava

trilhando:

A primeira constatação é que a elite brasileira não quer perder as rédeas do

comando da economia do país. Os ministros da área econômica,

identificados com os interesses da burguesia, fazem a política do FMI,

mantém os juros altos, defendem a autonomia do Banco Central, promovem

o arrocho salarial e cortes nos gastos sociais. Repetem os mesmos discursos

do Governo FHC: “é o que é possível fazer no momento”. Aqui a esperança

ainda não venceu o medo. E o tempo está correndo contra o governo. A alta

popularidade que o governo ainda tem tende a se esvair quando o povo

percebe que não houve melhoras nas condições de vida. Afinal, o povo

votou por mudanças793.

Observa-se, no texto, um tom de insatisfação latente com a equipe econômica de Lula.

Para o MST, seguiam-se as mesmas práticas do governo anterior, mantinham-se os mesmos

discursos, e “os ministros” da área econômica estavam identificados com os “interesses da

burguesia” (elites). O lema de campanha de Lula, “A esperança venceu o medo”, não estava

estendido à área econômica, pois estavam sendo seguidos caminhos semelhantes aos que já

vinham sendo traçados.

Na época, o Ministro da Fazenda do Brasil era Antonio Palocci, e o Movimento

acreditava que ele não se identificava com os interesses dos trabalhadores. Nota-se, assim,

que num primeiro momento, a composição do governo Lula não era homogênea, ou seja, não

se estrutura apenas com políticos identificados com os trabalhadores. Mesmo assim, havia

centelhas de esperança de que Lula poderia intervir e mudar os rumos da política econômica.

793 É preciso quebrar a resistência das elites. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2003, ano XXI, n. 228, p. 2.

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Na charge publicada nesse editorial, de autoria de Baraldi, a representação caminhava nesse

sentido.

Imagem 61 – É preciso quebrar a resistência das elites

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2003, ano XXI, n. 228, p. 2.

A “elite”, ou como se refere o MST costumeiramente, a “burguesia”, é representada

por um homem robusto, com bochechas enormes, cigarro na boca e olhar que sinaliza

incompreensão sobre o que estava acontecendo. O homem (elite) tem, ainda, a parte superior

da cabeça aberta, vazia. Demonstrando atitude e não concordando com o que o homem, a

“elite”, pensava, o presidente Lula pega uma escada e sobe degraus até a cabeça aberta do

homem e diz: “Abre essa cabeça e colabora, pô!!!”. O presidente não é associado à “elite”,

pelo contrário, é representado como aquele que queria abrir a cabeça da elite. Ou seja, um

presidente de atitude, cabeça aberta, em prol da mudança de pensamento e rumos da política

econômica do Brasil. Por esse viés, por mais que a política econômica seguisse os mesmos

caminhos de tempos passados, Lula era preservado, como se não quisesse isso.

Em outra charge, na edição de abril de 2003, que acompanha um texto de Plínio de

Arruda Sampaio Júnior, intitulado A dança imóvel e os impasses da transição, o MST

evidencia certa impaciência com os rumos que o governo Lula estava seguindo na política

econômica. O texto de Sampaio Júnior tece reflexões e critica os limites e impasses do

governo recém-empossado em relação à área econômica. Assim, elenca que não havia

novidades, a área econômica seguia o “mesmo padrão da era FHC”, e o governo Lula

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necessitava de “criatividade e coragem” para mudar os rumos e romper com o

“neoliberalismo”794.

Imagem 62 – Dançar outra música

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2003, ano XXI, n. 228, p. 5.

A princípio, chama-se a atenção para a sensibilidade do chargista, Baraldi, de captar o

momento político vivenciado pelo MST e pelo governo Lula e transformá-los em humor. O

cenário é uma festa, denominada “Balada Neoliberal”, em que se toca no aparelho de som

somente o disco da “Orquestra FMI”. Nessa “balada”, dançando juntos, de mãos dadas, estão

o presidente Lula e o Brasil (simbolizado pelo mapa do país). Enquanto a música é tocada, há

um clima tenso entre os dois personagens. Lula, com semblante preocupado e com a língua

para fora, olha atentamente para seu parceiro de dança. O Brasil também fixa seu olhar em

Lula. Evidencia-se, por esse olhar que ele não está feliz com a situação. O que é ratificado por

sua fala: “Não aguento mais essa dança! Vamos virar o disco?”.

De forma humorada, a charge expressa que o Movimento não está contente com os

caminhos econômicos escolhidos pela equipe de Lula: opções “neoliberais”, já vivenciadas no

governo FHC. Ao indagar se poderia “virar o disco”, o Movimento entende que é preciso

romper com o modelo gestado e criar outro, que se baseasse em seus princípios ideológicos.

Um modelo econômico que rompesse com os grandes grupos econômicos nacionais e

794 SAMPAIO JÚNIOR, P. A., A dança imóvel e os impasses da transição. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

abril de 2003, ano XXI, n. 228, p. 4-5.

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internacionais, sobretudo, com os ligados aos EUA, FMI e Banco Mundial. Isto é, um modelo

econômico pautado no desenvolvimento nacional, a partir do estímulo do mercado interno. Na

concepção do MST, a política econômica do governo Lula ainda estava ancorada nos grandes

grupos econômicos. Vale ressaltar que a representação de Lula não era pejorativa e nem o

ridicularizava, uma vez que ele ainda estava de “mãos dadas com o Brasil” e seu semblante

engraçado sinaliza para seu carisma, mediante os trabalhadores.

O MST, nas edições seguintes do Jornal Sem Terra, não escondia, contudo, sua

frustração com a política econômica do governo Lula. A partir de meados de 2003, diversos

editorias e matérias atestavam para essa interpretação. No editorial de maio de 2003,

salientava-se o seguinte:

É crescente o sentimento de decepção dos setores organizados com o

governo Lula. Não restam dúvidas que a composição do governo –

privilegiando banqueiros e industriais em cargos estratégicos da política

econômica – e a continuidade da política de FHC (juros altos, incentivos às

exportações, cortes nos gastos sociais, fiel cumprimento às exigências do

FMI, etc) estão na raiz dessa decepção795.

Após cinco meses de governo Lula, o discurso do Movimento, por meio do Jornal

Sem Terra, já era mais incisivo e a novidade estava no fato de o presidente não mais ser

exposto como a representação personificada do seu governo. Criticava-se a postura do

governo Lula de “privilegiar banqueiros e industriais” em cargos estratégicos, mas a

representação não recaia sobre Lula. Pelo contrário, o MST destaca que o cenário era fruto

das “atrapalhadas pallocianas”796, em referência ao Ministro da Fazenda. Adiante, o

Movimento fazia também autocrítica, dizendo que o presidente não seria o “Salvador da

Pátria”. Para o MST, havia grandes oportunidades de “mudanças estruturais em nosso país”,

mas era necessário os movimentos sociais e entidades representativas dos trabalhadores

auxiliarem “o governo a fazer as transformações que sepultem, de vez, a era FHC e as

políticas neoliberais”797.

Nesse editorial, Lula não era o “Salvador da Pátria”, mas ainda o MST representava-o

como figura política central no processo de transformação brasileira. Por mais que a equipe

econômica não estivesse compromissada com os trabalhadores, existiam proximidade e

respeito histórico do Movimento em relação a Lula, o que fazia com que a crença na figura do

795 Nossa tarefa de lutar. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2003, ano XXI, n. 229, p. 2. 796 Nossa tarefa de lutar. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2003, ano XXI, n. 229, p. 2. 797 Nossa tarefa de lutar. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2003, ano XXI, n. 229, p. 2.

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presidente dos trabalhadores continuasse. No editorial analisado, publicou-se uma charge798

que corrobora com essa interpretação.

Imagem 63 – Atravessando a escuridão

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2003, ano XXI, n. 229, p. 2.

Na imagem vê-se um barco chamado “Brasil” que – no meio do mar, à noite, apesar

do céu estrelado e da lua reluzente – parece estar perdido, sem perspectivas sobre que rumo

tomar. O seu comandante é o presidente Lula. Visualiza-se, ainda, um homem em um farol,

denominado “Movimentos Sociais”, manuseando um aparelho ótico com potentes lâmpadas e

espelhos refletores produzindo uma luz fortíssima. O homem fala: “Por aqui” Por aqui”. E, o

presidente Lula, evidenciando alívio e satisfação com o auxílio, olha atentamente para o

homem e direciona o barco para o caminho indicado. A charge é uma alusão ao governo Lula

que estava trilhando o caminho da “escuridão”, representado por sua política econômica que,

na concepção do Movimento, surgia semelhante à do governo FHC. A única direção segura e

saída para essa “escuridão” estava na constituição de um “Governo Popular”, voltado para o

desenvolvimento e o mercado internos, para o rompimento com as políticas neoliberais. Nesse

processo, Lula era o piloto do Brasil, auxiliado pelos movimentos sociais.

Em outra charge, publicada junto a um texto de Odilon Guedes, intitulado Os desafios

da atual política econômica, o MST entende que Lula estava com receio de enfrentar os

interesses do grande capital no país. No texto, de setembro de 2003, Guedes reflete sobre os

798 A charge não está assinada e no “Expediente” do jornal não há menção sobre o chargista da edição. Todavia,

pelas publicações constantes e pelos traços do desenho, acredita-se que o autor da charge seja Marcio Baraldi.

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desafios e limites da política econômica do governo Lula, chamando atenção para o fato de

ser preciso coragem, por parte do governo, para enfrentar os grupos econômicos externos e se

voltar aos interesses internos799.

Imagem 64 – Os desafios da atual política econômica

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2003, ano XXII, n. 233, p. 3.

Na charge, o jogo político envolto às decisões econômicas é representado como se

fosse uma luta em um ringue. Nessa luta econômica do Brasil, enfrentam-se o presidente da

República e o representante dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, cujo

nome é “Bancos”. O adversário de Lula é enorme, tem mais que o dobro de seu tamanho, o

que evidencia que a luta não será fácil. Com luvas enormes, da marca “juros” (em referência à

alta taxa de juros cobrada pelos bancos), cigarro na boca e com uma cara de mau, o lutador

“Bancos” espera alguma ação do seu oponente. Lula, por sua vez, ao olhar o adversário,

demonstra medo e tensão. Transpira pelo rosto, titubeia, fica prestes a abandonar o ringue.

Contudo, o árbitro da luta empurra Lula pelas costas e diz imperativamente: “Vai lá, Lula!

Peita ele!!!”.

O árbitro é a metáfora/personificação dos movimentos sociais e dos trabalhadores de

maneira geral. Eles estavam com Lula e o incentivavam a “peitar” os grupos econômicos, em

especial, os banqueiros. A charge evidencia que havia vontade por parte de Lula, mas o

adversário era muito complicado e forte, causando temor no presidente. A representação de

799 GUEDES, Odilon. Os desafios da atual política econômica. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de

2003, ano XXII, n. 233, p. 3.

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Lula não é pejorativa, nem o ridiculariza; expõe apenas seu medo e receio, algo natural do ser

humano. O fato de Lula não “peitar” os grupos econômicos é uma crítica ao governo Lula,

mas essa questão, para o MST, está mais ligada à equipe econômica do presidente, tendo

como principal figura o ministro Antonio Palocci, do que à concepção política de Lula.

Passados os dois mandatos de Lula, qual o balanço sobre a política econômica e os

caminhos trilhados pelo Governo? Será que foi uma política idêntica à do governo FHC? O

que pensam alguns pesquisadores sobre o assunto? A priori, ressalta-se que foram elaborados

inúmeros textos, livros, dissertações, teses sobre aspectos que envolviam a política econômica

e as ações do governo Lula. Muitos dos textos foram erigidos a partir de decepções com o

governo e de concepções políticas dos autores800; outros, procuraram enfatizar os feitos e as

melhorias no desenvolvimento do país801. Em contrapartida, haviam também aqueles que

objetivavam fazer uma análise mais moderada, apontando os limites e avanços do governo802.

Não se trata aqui de se fazer um debate extenso sobre a natureza do governo Lula. O que se

pretende é efetuar breve exposição acerca das ideias de alguns autores. Em seguida, as

reflexões sobre as representações do Movimento serão retomadas.

A leitura dos textos sobre o governo Lula, referentes aos dois mandatos, permite

constatar que Lula pode ser visto por diversos ângulos: gestor neoliberal para alguns;

populista e estadista para outros; até como o governo que fortaleceu o papel do Estado nas

decisões e prioridades cruciais para o desenvolvimento do país. Entende-se ainda que as

diversas leituras sobre o governo Lula também foram frutos das diversas expectativas criadas

sobre ele. Um dos exemplos mais evidente é o próprio MST, que esperava uma mudança

radical no modelo político econômico logo nos primeiros meses do governo. Contudo, ao

longo do primeiro ano, já se percebia que não seria tão simples uma mudança estrutural do

modelo gestado.

800 BORGES NETO, João Machado. Governo Lula – uma opção neoliberal. In: PAULA. João Antônio de. Adeus

ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 69-91; DIAS, Edmundo

Fernandes. Reformas ou Contra-Revolução: o Governo Lula. In: ____. Política Brasileira: embate de projetos

hegemônicos. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2006. p. 199-219; SICSÚ, João;

MARINGONI, Gilberto. Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu? Quem ganhou? In:

PAULA. João Antônio de. Adeus ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica,

2005. p. 105-122. 801 SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração Editorial, 2013; ARAÚJO,

José Prata. Um Retrato do Brasil: balanço do Governo Lula. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. 802 NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo:

Companhia das Letras, 2013; FAUSTO, Sérgio. Modernização pela via Democrática. In: FAUSTO, Boris.

História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Edusp, 2012. p. 467-566; SADER, Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de

governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013; SADER, Emir.

A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo, 2009; PIRES, Marcos

Cordeiro (Org.). Economia e Sociedade: da Colônia ao Governo Lula. São Paulo: Saraiva, 2010;

CAVALCANTI, Luiz Otávio. O que é o Governo Lula? São Paulo: Editora Landy, 2003.

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Um dos ataques mais recorrentes da denominada “esquerda radical” brasileira e de

grupos internacionais é o relativo ao fato de Lula não ter rompido com o modelo econômico

herdado de FHC; por isso foi considerado um traidor que deveria ser combatido junto com o

modelo que governava803. Em relação à “esquerda radical”, Sader analisa que, por suas

convicções inflexíveis e críticas ao governo Lula, muitas vezes ela se aliava (indiretamente)

aos grupos de direita só para manter a linha de críticas e confronto às ações do governo804.

Isto é, de tão radical acabava se aliando em algumas questões aos grupos conservadores.

No que diz respeito ao descontentamento com as opções do governo Lula, cita-se o

livro organizado por João Antônio de Paula, intitulado Adeus ao Desenvolvimento: a opção

do Governo Lula. Esse livro, escrito com quase três anos do primeiro mandato de Lula, é uma

coletânea com diversos capítulos escritos por vários autores que, em sua maioria, criticavam

as opções políticas do governo805. Um dos autores mais enfáticos foi João Machado Borges

Neto, em seu texto Governo Lula – uma opção neoliberal. Por sua linguagem, o autor se

identifica com a esquerda mais radical que se frustrou com as tendências e opções do governo

Lula.

Após três anos de governo Lula, Borges Neto afirmava que não tinha mais dúvidas

“quanto a natureza” do governo. Em sua visão, a política macroeconômica era

“explicitamente neoliberal”, as reformas tinham conteúdos neoliberais e as políticas sociais

“compensatórias”. Para o autor, Lula foi apoiado pelos setores economicamente dominantes e

teve “vínculos preferenciais com o grande capital”. Ou seja, prevaleceram as forças

neoliberais, “mesmo as políticas mais progressistas do governo Lula nunca foram além do que

seria aceitável em um governo de forças políticas burguesas”806. Em vista de o referido

governo ter uma base aliada heterogênea e conservadora (PL, PTB, PP, PMDB, PSB,

PCdoB), Borges Neto o classificava como um “governo burguês”: “Na linguagem clássica da

esquerda, ele é um governo de colaboração de classes. Ou seja, ele é um governo cuja

natureza de classe (definida com base em seus vínculos fundamentais e em sua orientação

política geral) é burguesa. Em uma palavra, é um governo burguês” (sublinhado do autor)807.

Ao entender que Lula deu continuidade à política econômica do governo FHC, Borges

Neto resume o que chama “natureza” do governo Lula.

803 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 69-70. 804 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 70-71. 805 PAULA, João Antônio de. Adeus ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 806 BORGES NETO, J. M., Governo Lula – uma opção neoliberal, p. 69-72. 807 BORGES NETO, J. M., Governo Lula – uma opção neoliberal, p. 76.

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O governo Lula é um governo no qual as políticas neoliberais predominam

amplamente, condicionam o conjunto das suas ações, marcam toda sua

atuação. Este governo constituiu uma base política conservadora, utilizando

para isto os métodos que a política brasileira chama de fisiológicos;

estabeleceu e vem mantendo vínculos mais fortes sociais com representantes

do grande capital, e em especial do mercado financeiro. Os vínculos do

governo com setores populares são fortes, mas não são canais de influência

desses setores sobre o governo; ao contrário, funcionam na direção oposta –

sobretudo, para desmobilizá-los808.

Outros autores, como João Sicsú e Gilberto Maringoni escreveram nessa direção. Para

eles, segundo o texto Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu?

Quem ganhou?, o governo Lula foi eleito pela esquerda, mas governava como de direita:

“Eleito pela esquerda, governa como direita: conservador na política, e liberal na economia. A

prática política e os objetivos econômicos, excetuando-se detalhes secundários, são

exatamente os mesmos da direita que governou o país durante os últimos anos”809. Assim,

destacam a opção do governo Lula pela “moderação”, avaliando as possibilidades sem ousar

para transformar as experiências históricas. Apenas “governou” o país, com mais

“sensibilidade social” que o governo FHC e não mudou a lógica das políticas sociais

assistencialistas e focadas.

Para esses autores, o modelo econômico de Lula se estruturava no mesmo tripé do

governo FHC: “câmbio flutuante com plena mobilidade de capitais (isto é, liberalização

financeira); regime de metas de inflação com um Banco Central autônomo; e regime de metas

para os superávits fiscais primários”. Esse tripé teria o seguinte objetivo: fazer com que o

governo ganhasse “credibilidade para acumular uma grande reputação perante os mercados

financeiros doméstico e internacional”810. Desse modo, o governo Lula também apoiava os

interesses dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais.

Sicsú e Maringoni defendiam a existência de uma derrota qualitativa e desmoralização

da esquerda com o governo Lula. “Deu-se, primeiramente, com a aderência às políticas a aos

discursos econômicos dos seus adversários. Posteriormente, pela revelação de práticas de

corrupção, mau uso dos recursos públicos, formação de grupos com interesses suspeitos, etc.

etc.”. Assim, Lula e o PT contribuíram para “naufragar” um projeto de esquerda no Brasil: “É

ilusório achar que as ruínas do PT e do governo Lula possam ser superadas por vertentes mais

808 BORGES NETO, J. M., Governo Lula – uma opção neoliberal, p. 90. 809 SICSÚ, J; MARINGONI, G., Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu? Quem ganhou?, p. 107. 810 SICSÚ, J; MARINGONI, G., Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu? Quem ganhou?, p. 115.

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à esquerda num curto prazo. É uma crise que contamina toda a esquerda brasileira: radicais e

moderados”811.

Nessa mesma perspectiva de “continuísmo” conservador do governo Lula, havia

frustração de grupos que acreditavam em mudanças estruturais; Sampaio Júnior, por exemplo,

acrescentava que o governo Lula não teve coragem para enfrentar o modelo econômico,

optando “pela continuidade do ajuste ortodoxo, aceitando docilmente a tutela do mercado

financeiro e dos organismos financeiros internacionais sobre a política econômica”. Nesse

sentido, o governo teria “aprofundado” as reformas neoliberais, “transformando o Brasil num

verdadeiro paraíso dos grandes negócios”812.

Outro autor que construiu entendimento radical sobre o governo Lula foi Edmundo

Fernandes Dias. Em sua visão, havia em curso uma “contra-revolução” no Brasil, e o governo

Lula se caracterizava como de “conciliação”, se subordinando aos interesses do capital

internacional. Dias destaca que no “modo petista de governar” não havia “nada de novo” e

que Lula tinha abandonado “qualquer pretensão de projeto nacional autônomo”, não alterou a

política econômica e se subordinou aos interesses dos grandes grupos econômicos. Nesse

sentido, Lula havia construído um “centrão modernizado e ampliado com a construção do

mais amplo arco de alianças já conhecido na política brasileira”813. Como ex-operário, Lula

representava uma contradição ao governar, levando o país para o atraso e subordinação.

Um ex-operário ocupa a Presidência da República e desempenha o papel de

articulador, nos marcos do espaço territorial brasileiro, do bloco de poder

comandado pela burguesia financeira internacional, o que não exclui

eventuais contradições com esta. O conjunto de modificações na ordem é de

tal monta que a própria burguesia reconheceu a necessidade desse aparente

paradoxo: um ex-operário comandando um país capitalista central no

processo de acumulação capitalista em escala mundial. Era necessário

alguém com prestígio popular, aura de combatividade para garantir a

transição... para o atraso e a subordinação814.

O texto dos autores citados destaca, sobretudo, as frustrações iniciais com o governo

Lula, diante de uma perspectiva de rompimento pleno com o modelo que estava sendo

gestado. O próprio João Sicsú, em 2013, com a publicação do livro Dez Anos que Abalaram o

Brasil. E o Futuro?, teve um discurso totalmente diferente a esse texto, de 2005, exaltando os

811 SICSÚ, J; MARINGONI, G., Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu? Quem ganhou?, p. 106;

111. 812 SAMPAIO JR. P. de A., Desafio do momento histórico e lições do Governo Lula, p. 303. 813 DIAS, E. F., Política Brasileira: embate de projetos hegemônicos, p. 201. 814 DIAS, E. F., Política Brasileira: embate de projetos hegemônicos, p. 200.

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feitos do governo Lula que segundo ele, “abalaram” o país815. Também, obviamente, essas

reflexões foram erigidas a partir das convicções políticas e ideológicas dos seus autores.

Há que assinalar que, de certa forma, no governo Lula, houve a continuidade de

algumas linhas políticas do governo FHC, sobretudo, na política econômica. Contudo, a

afirmação de que o governo era idêntico, submisso, de natureza neoliberal constitui, no

mínimo, uma análise simplista, tendo em vista os meandros da dinâmica e a complexa relação

que envolve o jogo político no Estado brasileiro.

Como qualificar, de forma taxativa, um governo de neoliberal, se em seu interior

havia uma Secretaria de Economia Solidária vinculada ao Ministério do Trabalho, dirigida

pelo pesquisador e professor Paul Singer? Como taxar um governo de neoliberal se ele havia

bloqueado o acordo da Alca e priorizado manter relações com os países latino-americanos e

em desenvolvimento? Como afirmar que um governo é neoliberal, se ele havia freado as

privatizações, interferido nos processos que minimizavam a capacidade de participação do

Estado na economia, aumentando sistematicamente o emprego formal e elevando

continuamente o salário mínimo816? Nessa perspectiva, qualquer caracterização rígida e

inflexível sobre o perfil/natureza de um governo corre o risco de ser simplista e unilateral. Ou

melhor, corre o risco de pautar-se por análise marcada pelo prisma maniqueísta, típico na

política brasileira. Ou seja, tal candidato é do bem ou do mal; ele presta ou não presta.

Em relação ao governo Lula, tal como analisaram Sader, Cavalcanti, Paulino, Nobre,

Fausto e Nelson Barbosa, sua composição era heterogênea e congregava diversos

interesses817. Desse modo, ele não era um governo prístino ou homogêneo, em que os

direcionamentos e as opções políticas e econômicas caminhassem de forma harmoniosa e no

mesmo rumo. Registra-se que, no processo eleitoral de 2002, a partir das alianças petistas818 e

das próprias manifestações públicas de Lula, havia evidências consideráveis de que a

composição do governo Lula abrangeria diversas forças políticas e interesses distintos. O

815 SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração Editorial, 2013. Nesse livro,

Sicsú não explica sua mudança de pensamento face ao Governo Lula, mas ela foi muito significativa, radical. 816 Sobre essas questões, ver: SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração

Editorial, 2013; SADER, Emir. A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo:

Boitempo, 2009. 817 Sobre a composição e a “elite dirigente” do Governo Lula, ver: D’ ARAUJO, Maria Celina. A Elite Dirigente

do Governo Lula. Rio de Janeiro: CPDOC / Fundação Getúlio Vargas, 2009. 818 Em seu primeiro mandato, o Governo Lula contou com as alianças dos seus aliados históricos – PSB, PDT e

PCdoB –, juntamente com o PL, partido do vice-presidente José Alencar (considerado de direita). Durante o

mandato, o PT incorporou em seus ministérios partidos que, inicialmente, não o haviam acompanhado na disputa

eleitoral, como o PP e parte substancial do PMDB. No segundo mandato, o PMDB se tornou o parceiro

preferencial do PT e de Lula. Nota-se que a base aliada se caracterizava como heterogênea e com traços políticos

conservadores. Ver: NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma.

São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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governo Lula havia optado por abrigar a contradição, nomeando ministros de diversas

tendências e segmentos. Como exemplo, cita-se a nomeação de Roberto Rodrigues para o

Ministério da Agricultura, um líder e defensor do agronegócio; para o Ministério do

Desenvolvimento Agrário, alguém ligado ao PT e à reforma agrária, Miguel Soldatelli

Rossetto.

Um fato emblemático apontava para a perspectiva conciliadora e moderada do

governo, antes mesmo da confirmação da vitória eleitoral de Lula, quando foi publicada a

Carta ao Povo Brasileiro, em junho de 2002. Em síntese, esse documento indicava um

compromisso do governo petista, caso ganhasse – o de respeitar os contratos, manter a

inflação sob controle e o equilíbrio fiscal819. O documento foi uma estratégia para conter as

expectativas do mercado, que mantinha a economia brasileira frente ao ataque especulativo, a

pretexto de inconfiabilidade no candidato Lula. Com a Carta, o PT e Lula estavam

sinalizando que não iriam mudar a política macroeconômica e que o capital internacional não

seria atacado. Contudo, mesmo com evidências de continuidade da política econômica, o

MST não refletiu criticamente no Jornal Sem Terra sobre a perspectiva moderada e

conciliadora do possível governo; pelo contrário, criou-se expectativa de que Lula alteraria de

forma significativa o modelo de desenvolvimento econômico.

Mesmo com a Carta ao Povo Brasileiro, Lula assumiu o governo sob forte pressão,

pois havia a expectativa de continuidade do ataque especulativo e da fuga de capitais iniciada

nas eleições. Também, o risco da instabilidade econômica, atrelada à suposta falta de

confiança do grande capital nacional e internacional eram motivos de atenção por parte do

governo. Nesse contexto, o governo, de início, foi pragmático e a centralidade de sua política

se pautou em combinar estabilidade econômica, retomar o desenvolvimento econômico e a

implementação de políticas de distribuição de renda. Conforme Sader, essa combinação seria

a “chave” para se entender o “enigma Lula”820.

No âmbito da política macroeconômica, com uma equipe conservadora, Lula manteve,

em linhas gerais, a política macroeconômica do governo FHC e apresentou a “estabilidade

econômica”821 como prioridade. Aliás, em entrevista concedida a Álvaro Pereira, em 2002,

meses antes do período que antecedia as eleições presidenciais, Lula dizia que a estabilidade

econômica era “uma conquista que tem que ser preservada”822, e apontava pistas da

819 SILVA, L. I. L. da. Carta ao Povo Brasileiro. São Paulo, 22 de junho de 2002. 820 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 69-91. 821 PAULINO, L. A., O Governo Lula (2003-2006 / 2007-2008), p. 315-319. 822 SILVA, L. I. L., Entrevista, p. p. 75.

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manutenção do modelo econômico de FHC, em especial, a tão propalada “estabilidade

econômica”. Nessa mesma entrevista, com um discurso moderado, Lula enfatizou que o

mandato de FHC representou um avanço para o país: “O Fernando Henrique Cardoso, quer

você goste ou não, tem história: tem passado, tem presente. Ele representou um avanço para o

Brasil”823. Percebe-se que, em 2002, Lula não queria se indispor, entrar em polêmicas que o

remetessem a seus discursos radicais de tempos pretéritos.

A estabilidade econômica, a partir da ideia de manutenção do câmbio flutuante; de

controle incessante da inflação; de sobrevalorização da moeda; elevação da taxa de juros;

autonomia do Banco Central; manutenção do superávit primário; e do papel preponderante da

exportação, com destaque para os produtos primários, sobretudo, a soja transgênica, foram

aspectos cruciais que marcam a continuidade da política macroeconômica do governo FHC824.

Essas medidas do governo Lula foram estratégicas para lidar com os grandes grupos de

capital nacional e internacional e se caracterizaram como as marcas “conservadoras”825 de

suas ações.

Para o MST, esses aspectos da política macroeconômica do governo Lula o deixam

preso às políticas econômicas neoliberais do governo anterior. Em charge de autoria de

Baraldi, publicada na edição de dezembro de 2003 e janeiro de 2004, o Movimento elenca

essa questão.

Imagem 65 – Lula preso na poça de cola do neoliberalismo

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2003 e jan. de 2004, ano XXII, n. 236, p. 3.

823 SILVA, L. I. L., Entrevista, p. p. 66. 824 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p. 104-105; SADER, E.,

A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 69-91; SADER, E., A Construção da

Hegemonia Pós-Neoliberal, p. 140-141. 825 CAVALCANTI, L. O., O que é o Governo Lula?, p. 18-20.

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A charge acompanha o texto publicado na seção Estudo do Jornal Sem Terra,

intitulado Em seu primeiro ano, Governo aprofunda políticas neoliberais, de Emir Sader.

Esse texto discute os caminhos da política econômica trilhados pelo governo Lula que, na

visão de Sader, “mantinha” e “aprofundava” o neoliberalismo no país826. É interessante

enfatizar que o texto fora escrito após um ano de governo Lula. As reflexões tratavam muito

mais do descontentamento com as opções da equipe econômica do governo do que de uma

análise aprofundada sobre as decisões da cúpula governista. E a opinião de Sader era

interessante para o Movimento, pois legitimava suas percepções sobre o governo recém-

iniciado.

Na imagem, o presidente, com sua elegante vestimenta (terno, gravata e sapato social),

parece estar numa enrascada: preso a uma poça de cola pegajosa chamada “neoliberalismo”.

Algo chama atenção na representação de Lula nas charges, sobretudo, nas produzidas por

Baraldi. Lula sempre aparece com a língua de fora, no canto da boca. Esse detalhe não só

demonstra estado de tensão do presidente, mas também lhe dá uma aura engraçada no sentido

genuíno, não ridicularizado. Na charge em referência, nota-se que a expressão facial de Lula

é de tensão por ele não saber como se desvencilhar da cola que prendia seus braços e pernas.

Observa-se vontade e ação por parte do presidente, entretanto, a cola pegajosa parece ser tão

resistente que ele não consegue rompê-la para caminhar. Nessa perspectiva, necessitaria do

auxílio dos movimentos sociais para romper com as amarras do neoliberalismo. O presidente

não aparece ridicularizado e sua representação dava a entender que ele não partilhava do

neoliberalismo, pelo contrário, queria se livrar dele. Mas, pelas ações de sua equipe

econômica ele também acabava preso aos interesses do modelo neoliberal. No jogo político

em que se construíam as representações pelo MST, havia o interesse do Movimento em

atestar e fazer acreditar que Lula queria se livrar das amarras do “neoliberalismo”, mas sua

equipe econômica era resistente, dificultando seu trabalho.

Em outra charge, também de Baraldi, que acompanha o artigo de Reinaldo Gonçalves

A Macroeconomia de Lula, publicado na seção Estudo em abril de 2005, o MST tece críticas

ao modelo econômico gestado pelo governo Lula.

826 SADER. Emir. Em seu primeiro ano, governo aprofunda políticas neoliberais. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, dez de 2003 e jan. de 2004, ano XXII, n. 236, p. 3.

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Imagem 66 – A macroeconomia de Lula

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano XXIII, n. 250, p. 3.

A primeira observação a se fazer é quanto à materialidade do jornal no que se

relaciona ao avanço técnico. A partir de março de 2005, as imagens no interior do jornal

começaram a ser impressas de forma colorida, o que facilita sua leitura, a percepção dos

detalhes ilustrados. No artigo mencionado, Gonçalves sublinha que o modelo econômico

vigente é “fútil e frágil”, pois mantinha laços estreitos com os grandes grupos econômicos

nacionais e internacionais e prejudicava a maior parte da população, com elevada carga

tributária e elevação da concentração da riqueza e renda827.

Por parte do governo, com dois anos de ação, propagavam-se discursos quanto a

economia estar bem, crescendo e forte. Mas, na contramão disso, o Movimento ressalta que a

ideia de economia forte era uma ilusão e dependia do ângulo de quem a visualizasse. Havia

uma luta por representações entre o MST e governo sobre como a economia se desenvolvia.

Na charge, composta de dois cenários, pode-se ver, no primeiro cenário, que o fotógrafo Lula,

registra, com sua máquina, a imagem frontal de uma mulher enorme, com músculos grandes e

definidos que segura um supino acima da cabeça com as duas mãos. No cenário seguinte,

verifica-se que a tal mulher (forte e robusta) – a representação da “economia” na ótica do

827 GONÇALVES, Reinaldo. A Macroeconomia de Lula. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano

XXIII, n. 250, p. 3.

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governo – era, na verdade, uma pintura feita em um painel de madeira que apresentava um

vão no local do rosto, e era utilizado para as pessoas se fotografarem.

Observa-se que, por trás do painel onde se localiza a imagem/pintura, está de pé, sobre

um banquinho de madeira, uma garotinha com fisionomia bem magra. Ela coloca o seu rosto

no vão do painel para ser fotografada. O contraste entre os dois cenários revela as

representações do MST sobre a política econômica do governo. Se, por um lado, os

governistas propagavam uma economia forte e robusta, por outro, o Movimento elencava que

a economia do país era fraca e frágil, servindo a interesses de banqueiros e empresários.

Por mais que o governo Lula tenha conservado ou optado pela continuidade de

algumas políticas econômicas desenvolvidas pelo governo FHC, tratava-se de uma postura

limitadora compreender os dois governos como iguais, em sua essência. Se Lula deu

continuidade à política macroeconômica de FHC, isso não é aspecto crucial para se definir

semelhança entre os dois governos. A política de FHC rompeu com o nacional-

desenvolvimentismo da Era Vargas e consolidou o modelo neoliberal no país, abrindo a

economia ao capital internacional. Nesse sentido, Paulino reconhece que o governo Lula

manteve algumas políticas do governo anterior, mas destaca que não se pode acusá-lo de “ter

abraçado o neoliberalismo como política de governo”828. Uma evidência seria o fato de Lula

não ter desprezado o papel do Estado em questões estruturais do país e ter investido no

serviço público (em especial, nas Universidades e Institutos Federais) e nas empresas estatais

que não foram privatizadas.

Nessa direção, também Sader destaca que, mesmo dando prosseguimento a algumas

políticas econômicas de FHC, não se pode dizer que Lula governou de forma semelhante à do

tucano829. Não foram governos de farinha do mesmo saco, conforme a expressão popular.

Sader tece três críticas significativas ao governo Lula: a primeira se refere ao fato de o

governo não ter rompido “com a hegemonia do capital financeiro em sua modalidade

especulativa”, pelo contrário, continuou e consolidou o modelo, dando-lhe autonomia, como

foi o caso do Banco Central830.

A segunda crítica relaciona-se à questão de o governo ter feito aliança com o “grande

capital exportador”, em especial, o agronegócio, “seja pelo modo como explora a terra, por

seu caráter monopólico, pela utilização de transgênicos, pela predominância da exportação ou

de um produto como a soja, com todas suas implicações negativas”. Essa aliança não

828 PAULINO, L. A., O Governo Lula (2003-2006 / 2007-2008), p. 316. 829 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 84. 830 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 71.

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promovia a agricultura familiar e a soberania alimentar, nem dava prerrogativas para se

realizar um processo amplo de reforma agrária (o que deveria ser opção central em um

governo que se dizia de esquerda). A terceira crítica pautava-se no fato de o governo Lula não

ter caracterizado os EUA como cabeça do “imperialismo mundial”, “apesar de todos os danos

que causavam à humanidade, a começar por sua política de ‘guerras infinitas’”. Para Sader, o

Brasil não podia se relacionar com os EUA como se fosse “apenas um país rico”831, mas

deveria assumir uma postura crítica às suas políticas “imperialistas”, que causavam a

concentração de renda, monopólios de comércio, miséria, degradação ambiental, guerras,

especulação financeira, consumismo.

Apesar dos traços conservadores em sua política macroeconômica, grosso modo, em

seus dois mandatos832, o governo Lula obteve balanços econômicos positivos. De acordo com

Nelson Barbosa, quando Lula assumiu o governo “o quadro geral do Brasil no final de 2002

era de descontrole macroeconômico” e, oito anos depois, a economia do país havia mudado

para melhor. Ao entender o saldo econômico considerável do governo Lula, Paulino destaca

que essa gestão, além de suas decisões precisas, fora beneficiada pela conjuntura econômica

internacional, sobretudo, pelo bom desempenho das economias norte-americana e chinesa833.

Para o autor, a “sorte sorriu” para Lula, a conjuntura internacional que, no segundo mandato

de FHC foi muito desfavorável, mudou completamente. “Favorecida por essa conjuntura

externa positiva, a economia passou a crescer, ainda que a taxas pouco expressivas, mas de

forma sustentada, sem que mudanças expressivas tivessem sido introduzidas na política

macroeconômica”834.

Sobre a política macroeconômica do governo Lula, registra-se que algumas ações

foram significativas para o seu bom desempenho, como o encerramento da dívida com o FMI,

no final de 2005, mediante o pagamento único de 23 bilhões de dólares. Essa ação “teve

grande importância política e econômica, pois marcou o início de uma nova fase do governo

Lula, durante a qual o Brasil teria mais autonomia na condução de sua política econômica”835.

Em entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, no ano de 2013, Lula destaca sua

831 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 71-72. 832 Para Barbosa, a gestão do Governo Lula foi caracterizada em três períodos, sendo eles: a) 2003 a 2005:

“adotou uma política macroeconômica focada na redução da inflação e na redução do endividamento do setor

público”; b) 2006 a 2008: “adotou uma política macroeconômica mais expansionista, com foco na aceleração do

crescimento e no aumento do emprego e investimento”; c) 2009 a 2010: “adotou uma série de medidas para

combater os impactos negativos da crise financeira internacional iniciada em 2008” (2013, p. 70). 833 PAULINO, L. A., O Governo Lula (2003-2006 / 2007-2008), p. 324; FAUSTO, S., Modernização pela via

Democrática, p. 528-529. 834 PAULINO, L. A., O Plano Real e os dois Governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 / 1999-2002), p. 309. 835 BARBOSA, N., Dez Anos de Política Econômica, p. 73.

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“obsessão” em pagar a dívida com o FMI: “Eu não queria dever ao FMI”836. A fala de Lula

era no sentido de “honrar as dívidas” e colocava esse compromisso como uma prioridade.

Mais uma vez, as mudanças políticas e ideológicas de Lula eram visíveis, posto que,

na década de 1980, ele era contrário ao pagamento da dívida externa e entendia que os

recursos públicos deveriam ser investidos na área social, não para pagar dívidas de tempos

pretéritos. Essa ação do governo gerou críticas por parte do MST, suas lideranças

compreendiam que o pagamento das dívidas ao FMI submeteria a economia do país, com

mais intensidade, ao “modelo neoliberal”. A decisão pelo pagamento era destaque no editorial

de agosto de 2004. Para o Movimento tal decisão restringia os investimentos do “dinheiro

para a área social, saúde, educação, cidades e para as cestas básicas dos acampados”837. Nessa

perspectiva, era preciso lutar por mudanças na política econômica. Interessante também que,

nesse editorial, Lula não era o centro das considerações, mas sim o “Governo Federal”, de

forma genérica. O presidente era resguardado das críticas, pois o MST acreditava em Lula,

com ele ainda seria possível romper com algumas políticas de cunho neoliberal.

Outras ações significativas do governo face à política econômica ocorreram diante da

denominada “crise internacional” iniciada em 2008 com extensão pelo ano de 2009. O marco

dessa crise foi a quebra do Banco Lehman Brothers nos EUA, que gerou restrição de créditos

na economia mundial. No Brasil, os efeitos da crise se manifestaram de duas formas: a

primeira foi “uma contratação abrupta e substancial da oferta de crédito e uma grande

incerteza sobre a solvência de alguns grupos empresariais exportadores”; e a segunda

“ocorreu pelo canal de comércio exterior, devido à queda no volume de comércio

internacional e à redução abrupta dos preços das commodities geradas pela recessão dos

países avançados”838.

A crise financeira internacional causou recessão no Brasil, impactou na queda do PIB

em 5% em apenas 6 meses (último trimestre de 2008 e primeiro trimestre de 2009). Todavia,

as ações do governo Lula diante da crise financeira internacional surpreenderam diversos

analistas econômicos e críticos políticos. Para combater os efeitos da crise efetivaram-se

836 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo

Gentili, p. 22-23. Essa entrevista foi publicada em um livro organizado por Emir Sader, que tinha como objetivo

refletir sobre os 10 anos de Governo PT no Brasil, tendo como seu protagonista principal o ex-presidente Lula. A

entrevista foi realizada na sede do Instituto Lula, em São Paulo, em 14 de fevereiro de 2013. Ver: SADER, Emir

(org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro:

FLACSO Brasil, 2013. 837 A luta por mudanças na política econômica In: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2004, ano XXIII, n. 243, p. 2. 838 BARBOSA, N., Dez Anos de Política Econômica, p. 80.

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medidas expansionistas nas áreas fiscal, monetária e de crédito839. Foi nesse quadro político e

econômico que o governo reduziu impostos sobre os produtos (veículos automotores e

eletrodomésticos) e lançou linhas de créditos com taxas atrativas (abaixo das taxas cobradas

pelo mercado), por meio do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)840. Além disso, estimulou o consumo e o

crédito para dinamizar a economia. Essa medida foi ousada por parte do governo, pois, em

geral, nos tempos de crise há orientações para se poupar e economizar recursos.

Ao longo do governo Lula, em seus dois mandatos, o MST publicou diversos textos e

entrevistas de autores com reflexões sobre a política econômica do governo Lula nas seções

Estudos e Entrevista do jornal841. Em geral, esses textos e entrevistas eram tentativa de

legitimar o discurso do Movimento, no sentido de que as críticas ao governo estavam

adequadas. Por entender necessárias a transformação radical no modelo político econômico,

a criação de um “novo projeto de desenvolvimento”, o MST, até os três primeiros anos do

primeiro mandato de Lula, acreditava ainda em uma possível mudança nos rumos da política

econômica. Essa crença estava ancorada, particularmente, na figura de Lula, o ex-operário e a

extensão dos trabalhadores na Presidência da República.

No editorial de março de 2004, o Movimento expressa a “transitoriedade” da política

econômica implementada pelo governo. Contudo, demonstra impaciência com as ações do

839 BARBOSA, N., Dez Anos de Política Econômica, p. 80-81. 840 Uma reflexão mais detalhada e profunda sobre essa questão, ver: BARBOSA, Nelson. Dez Anos de Política

Econômica. In: SADER, Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo:

Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013. p. 69-102; PAULINO, Luís Antonio. O Governo Lula (2003-

2006 / 2007-2008). In: PIRES, Marcos Cordeiro (Org.). Economia e Sociedade: da Colônia ao Governo Lula.

São Paulo: Saraiva, 2010. p. 311-332; SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo:

Geração Editorial, 2013. 841 Dentre eles, citam-se: SAMPAIO JR., Plinio de Arruda. A dança imóvel e os impasses da transição. In:

Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2003, ano XXI, n. 228, p. 4-5; GUEDES, Odilon. Os desafios da atual

política econômica. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2003, ano XXII, n. 233, p. 3; ARAÚJO, Artur.

O medo da esperança. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2003, ano XXII, n. 235, p. 3; SADER,

Emir. Em seu primeiro ano, governo aprofunda políticas neoliberais. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de

2003 e jan. de 2004, ano XXII, n. 236, p. 3; MALDOS, Paulo. O desafio da construção de um autêntico projeto

nacional. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2004, ano XXII, n. 240, p. 3; GONÇALVES, Reinaldo. A

macroeconomia de Lula. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano XXIII, n. 250, p. 3; ARAÚJO,

Artur. O concerto sem conserto. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2005, ano XXIV, n. 254, p. 3;

SAMPAIO JR., Plinio de Arruda. PAC: nem crescimento nem igualdade. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

fev./mar. de 2007, ano XXV, n. 270, p. 3; LINCE, Léo. Entrevista – Atual modelo econômico pode levar país

para o fundo do poço. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 4-5; ARRUDA,

Marcos. Entrevista – Povo brasileiro precisa ser agente ativo do seu desenvolvimento. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, março de 2004, ano XXII, n. 238, p. 4-5; ARAÚJO, Artur. Entrevista – Boa vontade não basta para mudar

a política do Brasil. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n. 242, p. 3; ARANTES, Paulo

Eduardo. Entrevista - Fim de linha ou marco zero? In: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2005, ano

XXIV, n. 257, p. 4-5; OURIQUES, Nildo. O mito do crescimento econômico no Brasil. In: Jornal Sem Terra.

São Paulo, dezembro de 2006, ano XXV, n. 268, p. 3.

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governo, com a manutenção do “conservadorismo”. Na charge desse editorial, de autoria de

Baraldi, percebe-se essa posição.

Imagem 67 – Mudanças

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 2004, ano XXII, n. 238, p. 2.

O cenário da charge é o Palácio do Planalto, em Brasília. Em um dia aparentemente

tranquilo, o presidente Lula, com sua imponente faixa presidencial e vestimenta oficial (terno,

gravata e sapato social), vai até o lado externo do Planalto, à frente da rampa presidencial. No

seu horizonte há um belo gramado, flores e a bandeira do Brasil em um mastro. Na bandeira,

o desenho personificado de um rosto e de dois braços com mãos estendidas. Com olhar e

semblante raivoso, de impaciência, a bandeira esbraveja com Lula: “mudanças!!!”. Ao

escutar a bandeira, o presidente se assusta, pula para trás, e parece que vai cair sentado. A

bandeira representa os movimentos sociais e a população, de maneira geral, que haviam

acreditado que o governo Lula iria romper com as políticas conservadoras estabelecidas no

governo anterior. O MST, por exemplo, acreditava que o presidente mudaria a política

econômica e efetuaria a tão almejada reforma agrária.

A impaciência do Movimento refere-se ao não posicionamento político e ideológico

de Lula a favor dos trabalhadores ou dos grupos econômicos nacionais e internacionais. Para

o MST, o presidente não escolhia uma posição, “um lado” e esta postura era inconcebível;

seria impossível governar para todos os grupos, pois os grupos economicamente dominantes

sairiam favorecidos. Na construção de um “autêntico projeto nacional”, a partir de um

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“governo Popular”, o presidente deveria escolher “um lado”, o dos trabalhadores. A charge a

seguir, de Baraldi, figura-se como interessante para se pensar sobre isso.

Imagem 68 – Lula: entre movimentos populares e elite

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2004, ano XXII, n. 240, p. 3.

A charge acompanha a publicação de um artigo de Paulo Maldos, em maio de 2004,

intitulado: O desafio da construção de um autêntico projeto nacional. A escrita desse artigo

gira em torno da pergunta: “para onde vai o Governo Lula?”. Questionam-se as ações na área

econômica e as alianças do governo842. Com esse texto, o MST também se pergunta: para

onde vai o governo Lula? Aquela crença de se instaurar um “governo Popular”, voltado para

as reais necessidades dos trabalhadores do campo e da cidade era duvidosa. Mesmo assim, a

figura de Lula conquistara respaldo e credibilidade perante a Direção Nacional do

Movimento.

No centro da charge, Lula está com os braços estendidos, demonstrando sentimentos

de dor e desorientação. Ele é puxado pelos braços por pessoas representantes de dois grupos:

à esquerda, pelos “movimentos populares”; à direita, pela “elite”. No grupo dos movimentos

populares, observa-se que os sujeitos estão com as expressões faciais muito sérias e

compenetradas naquilo que estão executando. No da “elite”, representado pelos EUA/FMI,

Rede Globo e suposto empresário, verificam-se olhares e expressões que evidenciam

sagacidade e oportunismo.

842 MALDOS, Paulo. O desafio da construção de um autêntico projeto nacional. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, maio de 2004, ano XXII, n. 240, p. 3.

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Um detalhe importante na charge: Lula parece tornar-se interessante para ambos os

lados. Se Lula era o representante dos trabalhadores, por que passou a ser disputado pelas

elites? Essa representação do MST se baseia nos caminhos percorridos, pelo governo Lula, na

área econômica que traziam benefícios explícitos às elites, assim, elas também disputavam a

atenção do presidente. Do ponto de vista político, a charge se configura como fonte

significativa para se refletir acerca do posicionamento de Lula: estático, sem saber por qual

lado optar. Isso sinaliza para a representação de sua escolha pela denominada

“governabilidade”. Ou seja, o governo não queria se indispor com os movimentos populares e

nem com as elites. A preocupação com a “governabilidade” é salientada por Lula em

entrevista concedida aos pesquisadores Emir Sader e Pablo Gentili.

Nós, obviamente, tínhamos uma preocupação com a governabilidade. Por

mais puros que quiséssemos ser, tínhamos a clareza de que, para aprovar

alguma coisa no Congresso, tínhamos que ter pelo menos 50% mais um dos

votos, tanto na Câmara quanto no Senado. Era preciso construir essa

maioria, senão você não governa.

Nós tínhamos aprendido a fazer política e que, quando você faz política de

coalizão, os aliados têm que participar do governo. É assim em qualquer

democracia do mundo. E vai continuar a ser assim. Enquanto não tiver uma

reforma política no Brasil, vai ser assim: quem ganhar, quem quiser

governar, vai ter que conversar com o Congresso, vai ter que conversar com

a Câmara, vai ter que conversar com o Senado, vai ter que conversar com o

movimento sindical, vai ter que conversar com os empresários. É assim que

se governa843.

A narrativa de Lula é explícita: se não tiver coalizão, ninguém governa. Essa visão era

semelhante à de FHC, quando dissera em entrevista a Álvaro Pereira, no final do seu segundo

mandato, que ninguém governa sozinho. Para FHC, “Na democracia, quem não tem a maioria

não governa”. E mais, o presidente da República não faz “o que quer, ele faz o que consegue.

Não é sua vontade que prevalece sempre. Essa é uma visão superficial e voluntarista. Se fosse

assim, eu decretava o salário mínimo alto, diminuía a taxa de juros, aumentava o gasto

público”844. Lula também compreendia que para manter a “governabilidade”, deveria evitar

indisposição com a base aliada do PT, ou como dissera: não “afrontar o Congresso Nacional”

e fazer as “alianças necessárias”845, caso contrário, não se governa.

843 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, p. 19. 844 CARDOSO, F. H., Entrevista, p. 306. 845 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, p. 20.

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O MST não compreendia, ou não aceitava as alianças efetuadas pelo PT e Lula, muitas

dessas com partidos e grupos abertamente conservadores. A “governabilidade” defendida pelo

governo era inaceitável para o Movimento, por exemplo, o aliar-se a grupos denominados

pelo Movimento como “elites” (banqueiros, grandes empresários, ruralistas) ou a partidos

políticos que tinham pastas conservadoras. O Movimento partia do pressuposto de que um

“governo Popular” deveria ser puro e livre de influências “burguesas”.

Nessa perspectiva, a concepção política ideológica do MST se caracterizava como

idealizada e até certo ponto romântica, mediada por uma visão maniqueísta da política e da

história. Com tantas evidências de que o presidente Lula, eleito em 2002, havia mudado

significativamente seus pensamentos e posições políticas em relação aos da década de 1980, o

Movimento, em suas representações, insistia em personificá-lo como o ex-operário e

representante do povo na Presidência da República. Novamente, uma concepção política

ideológica romântica e idealizada sobre o político.

Em outra charge, publicada em agosto de 2005, junto ao texto de Artur Araújo,

intitulado O Concerto sem Conserto, na seção Estudo, o MST demonstra sua insatisfação com

as escolhas do presidente e com as da sua equipe de governo.

Imagem 69 – O concerto sem conserto

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2005, ano XXIV, n. 254, p. 3.

A carga intensa de humor na charge, produzida por Baraldi, é digna de nota. Em

pequenos detalhes o chargista consegue provocar o riso e, ao mesmo tempo, proporcionar

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reflexão política sobre o governo Lula. O texto de Araújo, ilustrado pela charge, apresenta

análise sobre os caminhos percorridos pelo PT e por Lula no cenário político, chamando

atenção para algumas denúncias de escândalos e corrupção no governo846. Pontue-se que, por

mais que o texto tenha tom de denúncia, Lula não é exposto ou associado às especulações

sobre ilegalidades.

Na charge, ele aparece com sua vestimenta oficial de presidente e com um instrumento

musical chamado baixo tuba (utilizado, sobretudo, em Bandas Marciais e Fanfarras). Lula

toca o instrumento, mas mostra um olhar triste e envergonhado. À sua frente está um pedestal

com as partituras das respectivas músicas. Em atitude ousada, um trabalhador rural, que está

ouvindo Lula tocar, retira uma partitura com as notas da música “FMI” e a joga para trás.

Logo depois, diz para o presidente: “toca algo mais popular!!!”, referindo-se à música dos

“movimentos sociais”. Esse gesto do trabalhador representa a impaciência e frustração do

MST com o governo Lula, pois ele estava mais propenso a tocar a música do “FMI” (de

banqueiros e grandes grupos econômicos) do que a dos movimentos sociais. Nesse sentido,

por suas convicções políticas e ideológicas, o Movimento negava ouvir e dançar a música do

“FMI”, mesmo que o seu músico principal fosse Lula.

Mas, o MST não ridiculariza Lula, apenas o critica por insistir em tocar as músicas das

elites, e não as dos movimentos populares. O “popular”, enfatizado pelo Movimento,

relaciona-se ao ideal de “governo Popular”, prezado e defendido pela Direção Nacional do

MST, compartilhado em um período, (década de 1980), com Lula e o PT. Mas, o cenário

havia mudado e Lula precisava constituir “alianças necessárias” para governar, mesmo tendo

que enfrentar a resistência de movimentos sociais, marcados por visões políticas rígidas e

fechadas como as do MST.

Ao analisar os editoriais do Jornal Sem Terra e algumas matérias sobre o governo

Lula, observou-se que representações sobre o caos social e autoritarismo, tão recorrentes nos

governos dos presidentes anteriores, quase não eram publicadas. E, quando existiam essas

representações, o Movimento canalizava a culpa no modelo político econômico, nas alianças

conservadoras e nos gestores governamentais identificados com as “elites”. A partir de 2006,

o nome de Lula foi desaparecendo sistematicamente dos editoriais do jornal, e as referências

ao seu governo eram genéricas, como “governo Federal”. Esse processo constituiu-se na tese

de harmonização do discurso e ocultação do nome do presidente. Uma clara intenção de não

expor Lula perante os leitores do jornal e os militantes do Movimento.

846 ARAÚJO, Artur. O Concerto sem Conserto. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2005, ano XXIV, n. 254, p. 3.

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O processo de ocultação do nome de Lula ficou explícito no caso, denominado

Mensalão, no ano de 2005. O escândalo do Mensalão surgiu de maneira inusitada. O líder do

PTB na Câmara dos Deputados, Roberto Jefferson, que tinha sido líder do governo FHC,

solicitou ao governo Lula a interrupção de uma investigação contra um dos diretores da

Companhia dos Correios, indicado pelo partido Jefferson que supostamente havia recebido

propina. Com a negativa de seu pedido, Jefferson, no início de junho de 2005, em entrevista

ao jornal Folha de São Paulo, denuncia vasto e complexo sistema de arrecadação ilegal de

fundos, o qual seria liderado por José Dirceu e seus aliados no interior da máquina partidária.

Conforme o deputado, os pagamentos mensais, com dinheiro público e privado, tinham como

finalidade garantir a aprovação de projetos de interesses do governo. Vale ressaltar que, nesse

escândalo, não estavam envolvidos apenas os partidos aliados ao governo Lula, mas também

partidos de oposição, que tinham formado a base do governo FHC. Nesse episódio, além do

esquema de corrupção, evidenciava-se o quanto o PT estava altamente fragmentado, dividido

em múltiplas correntes847.

O escândalo do Mensalão revelou, então, uma crise sistêmica, com diversos e distintos

personagens envolvidos. Esse escândalo (infelizmente) é reflexo de algumas práticas

institucionais e eleitorais. Cita-se como exemplo, o popular Caixa 2. Será que essa prática é

uma benesse apenas da direita? Por mais popular e sistemático que seja, é uma prática ilegal e

corrupta do uso dos recursos financeiros. Sicsú e Maringoni refletem sobre como o episódio

do Mensalão revela uma crise sistêmica nos meandros da política nacional:

O que era inicialmente uma denúncia contra um funcionário da Companhia

dos Correios, logo alcançou importantes líderes do PT, membros do governo

federal e destacados parlamentares dos partidos da base aliada, como o PP, o

PTB, o PMDB e o PL. Logo que tiveram início as primeiras investigações,

apareceram como coadjuvantes empresários, secretárias, ex-mulheres,

assessores, dirigentes políticos e burocratas variados. Revelaram-se

depósitos sem origem, e saques sem clara identificação de destino, feitos por

partidos da base governista e também da oposição, o PFL e o PSDB848.

A repercussão midiática tida pelo Mensalão, obviamente, abriu precedentes para a

oposição (PSDB e DEM) interpretar e divulgar que todos os políticos do PT e seus aliados

847 Após o escândalo em 2005, diversos militantes do PT deixaram o partido e o Partido Socialismo e Liberdade

(PSOL). Vale ressaltar que os conflitos sempre existiram no interior do PT, pois este era composto por grupos

heterogêneos, que divergiam em alguns momentos. Os partidos, assim como os movimentos sociais não podem

ser considerados uno e homogêneos. 848 SICSÚ, João; MARINGONI, Gilberto. Avaliando o Desempenho do PT e do Governo Lula. Quem perdeu?

Quem ganhou?, p. 111.

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eram cúmplices dessa corrupção. Em todo o processo, PT e Lula se defenderam dizendo que

não sabiam de nada e que, se as acusações fossem verdadeiras, eles tinham sido traídos.

Muitos petistas disseram que o Mensalão havia sido uma invenção e golpe das elites, com a

pretensão de derrubar o presidente do povo, dos trabalhadores. Em entrevista concedida a

Emir Sader e Pablo Gentili, Lula disse que o escândalo do Mensalão foi um “tropeço”849 e que

o ano de 2005 transcorreu complicado após a denúncia, pois a imprensa pautava as discussões

do governo somente a partir do escândalo. É interessante que nessa entrevista não se enfatizou

o caso do Mensalão, como se ele não tivesse sido um episódio significativo vivenciado no

governo Lula. Ao evidenciar que foi um “tropeço”, o próprio Lula não demonstra convicção

na inocência de seus companheiros ou no fato de que eles eram vítimas da oposição. Pelo

contrário, Lula reconhece o fato e lamenta o ocorrido.

Esse episódio fora enfatizado no Jornal Sem Terra por meio de um discurso mais

ameno e harmonioso, se comparado às representações construídas sobre escândalos polêmicos

no governo FHC. O MST se furtou a dizer a palavra Mensalão nos editoriais. Em três

editoriais que avaliavam a questão, chamava-se o episódio de “crise política”. Fato que se

caracteriza como uma pista de que o Movimento reconhecia o escândalo de corrupção, mas

tinha muita cautela nas representações, para não expor o presidente Lula.

No editorial de junho de 2005, intitulado As práticas da burguesia, o Movimento

enfatiza que “violência” e corrupção” eram tipicamente práticas “burguesas”, das elites.

Contudo, essa prática também estava implícita no governo Lula, cujo presidente era a

extensão dos trabalhadores na presidência. Mais uma vez, nota-se limitação nas concepções

ideológicas da Direção Nacional do MST, como se a corrupção fosse uma dádiva apenas dos

grupos economicamente favorecidos. Pelo contrário, infelizmente, práticas corruptas estão

implícitas nas mais variadas instituições e nos mais diversos setores da sociedade. Acredita-se

que não é a condição econômica que faz um sujeito ou grupo corruptos. Nesse editorial, o

Movimento creditava a Lula mais uma “oportunidade histórica” de agir e punir os corruptos

envolvidos no escândalo referido.

Agora, que seu governo recebe acusações de ser corrupto, Lula deve

investigar e puni todas as práticas ilegais. Tudo deve ser apurado, desde o

começo dos dois mandatos do governo FHC (1995-2002), quando aconteceu

a maior transferência de patrimônio público para setores privados, por meio

849 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, p. 14.

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do programa de privatizações que vendeu grande parte do patrimônio

nacional850.

Ao falar sobre o escândalo político, o MST não é enfático, nem taxativo, não cita

nomes, detalhes sobre o ocorrido, tal como fazia nos editoriais relacionados ao presidente

FHC. As referências às acusações de corrupção são genéricas e apontam para o óbvio: os

responsáveis deveriam ser investigados e punidos. O Movimento se aproveita da oportunidade

para referir-se às práticas corruptas do governo FHC, em especial, às relativas às

privatizações. A diferença está no fato de FHC ser personificado como a representação da

corrupção, como se analisou no terceiro capítulo, e no de Lula não ser associado ou exposto

aos escândalos.

No editorial de agosto de 2005, o MST critica parte “da esquerda que dirigia o PT”,

chamando atenção para o fato de ela ter adotado os “métodos da direita de fazer política”,

colaborando com as “elites conservadoras”. A “crise política” (Mensalão), para o Movimento,

era fruto das opções do “governo Federal” que adotava “métodos burgueses de fazer política

para garantir a maioria no Parlamento a qualquer custo”. Esses “métodos burgueses” estavam

arraigados no próprio modelo econômico (com características neoliberais); e faziam com que

Lula andasse em “más companhias”851. A charge publicada junto a esse editorial, de Baraldi,

auxilia nessa reflexão.

Imagem 70 – Lula em más companhias

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2005, ano XXIV, n. 254, p. 2.

850 As práticas da burguesia. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2005, ano XXIII, n. 252, p. 2. 851 A crise política e a nossa luta. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2005, ano XXIV, n. 254, p. 2.

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Na charge há cinco personagens: um trabalhador rural, Lula, um latifundiário, um

banqueiro e um empresário picareta852. Os três últimos representam as referidas “más

companhias” de Lula na condução do governo e na efetivação das políticas. Observa-se que as

expressões do latifundiário e do banqueiro são de muita felicidade; a do empresário picareta

também demonstra satisfação – com sua mala abarrotada de dinheiro. A expressão do

trabalhador é, contudo, de insatisfação. Por isso, ele repreende Lula: “eu avisei: cuidado com

as más companhias!!!”. Diante da situação constrangedora, entre as “más companhias” e o

trabalhador rural, o presidente restringe-se a ficar calado, mostrando expressão tensa e

envergonhada.

O MST, ao dizer que havia avisado Lula sobre as “más companhias”, retoma as

reflexões no sentido de que o presidente mantinha a raiz dos problemas e da corrupção: a

política macroeconômica conservadora e as alianças com grupos e partidos de elites. No

editorial de abril de 2006, ano eleitoral, com a continuidade da propagação do escândalo do

Mensalão, em especial, nas grandes mídias, o MST volta a destacar que era preciso “prender

os corruptos”, mas também superar o “modelo neoliberal” que, conforme o Movimento, ainda

estava impregnado no “governo Federal”. As práticas corruptas foram expostas e deviam ser

investigadas, mas o corruptor, o “modelo neoliberal”, não era colocado em cheque e nem

refletia-se sobre seus efeitos na sociedade. Sendo assim, seria preciso “mudar o modelo

econômico do país”853. Em nenhum momento, nesse editorial, o nome de Lula ou do PT foi

mencionado. O texto tratava dos escândalos de corrupção no governo, mas os personagens

diretos e indiretos de tal acontecimento não eram expostos, o que diferencia, de forma radical,

o modo de construção de representações sobre a corrupção, quando comparado a governos

anteriores, em especial, ao de FHC, o que contribui para o entendimento de que as

representações são determinadas pelos interesses dos grupos que as elaboram, exibindo uma

maneira de estar e ver o mundo.

O PT foi duramente atingido com as repercussões do escândalo do Mensalão,

principalmente por sua defesa histórica de fazer uma política distinta, pautada na ética e no

zelo para com o bem público. De acordo com Reis, historicamente o PT era conhecido e

legitimado como um partido que carregava a bandeira da moralidade e ética na política, no

trato com o bem público e, de repente, se viu “envolvido num mar de lama de negociatas,

compras e vendas de votos, uma mixórdia inimaginável”. Talvez, politicamente, e para a

852 A expressão picareta, quando atribuída a pessoas, se refere a alguém desonesto, de má índole. 853 Prender os corruptos, mas também mudar o modelo neoliberal. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2006,

ano XXIV, n. 261, p. 2.

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sociedade, essa foi a maior perda do PT, que passou a ser visto como mais um partido

político, com as mesmas práticas de outros e com os mesmos vícios que sempre criticou.

Nesse processo, as mídias brasileiras, em sua maioria conservadoras, tiveram papel relevante

para difundir os vícios que o PT havia adquirido historicamente, como se a corrupção tivesse

sido inventada pelo partido. É possível dizer que o PT, em muitos momentos, foi demonizado

pelas mídias, enquanto outros partidos, conservadores, tradicionalmente reconhecidos por

suas práticas antiéticas e corruptas, foram ocultados pelos meios de comunicação.

No contexto em que se investigava o Mensalão854, partidos conservadores, notórios

por suas práticas lesivas ao bem público, se travestiram de defensores da moralidade e da

ética, coisa que não se associava às suas ações pretéritas. “Tradicionais políticos, envolvidos

em todos os tráficos, apareceram como se fossem honrados e impolutos homens públicos,

como se fossem, travestidos de Catões”855. Nesse cenário, o PT, além de perder o monopólio

do partido ético e zeloso com o público, perdeu também alguns de seus mais importantes

quadros, pois, a partir desse episódio, diversos militantes e filiados se afastaram do partido. O

presidente Lula buscou ao máximo se afastar das questões que envolviam o escândalo do

Mensalão, e se colocou na posição de presidente traído, que não sabia de nada.

A crise política de 2005, para Lula e o PT, foi decisiva também para a consolidação do

que Nobre denomina como o “pemedebismo” na política brasileira. O autor defende a tese de

que, a partir da década de 1980, no Brasil, se estabeleceu uma “cultura política” que se

estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação. Ou seja,

havia apenas perspectivas reformistas, regradas por grupos que compunham e negociavam o

poder. O “pemedebismo” é pensado como uma “cultura política”, não se restringe a um

partido. A referência ao PMDB é por esse partido ter gestado, primeiramente, na Constituinte

de 1988, posição de dominância entre os parlamentares nos anos de 1980. A partir de 1990, o

“pemedebismo” foi aderido pelo sistema político de maneira mais ampla856.

Nobre enfatiza que o fenômeno do “pemedebismo” nasceu na Constituinte e foi a

primeira blindagem do sistema político atual contra a sociedade. O nome “pemedebismo”, em

lembrança ao PMDB, se refere ao fato de esse partido ter capitaneado a transição democrática

854 Após o julgamento dos envolvidos no escândalo do Mensalão, vinte e cinco pessoas, dentre elas políticos,

empresários e funcionários públicos foram condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ver: Saiba quem

são os 25 réus do mensalão que foram condenados pelo STF. UOL Notícias – Política. Disponível em:

http://noticias.uol.com.br/politica/listas/saiba-quais-reus-do-mensalao-ja-foram-condenados-pelo-stf.htm. Acesso

em: 09/10/2014, às 11h02min. 855 REIS, D. A., O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas, p. 524-525. Catão –

homens que aparentam austeridade, virtuosos. 856 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p.10-13.

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com maior expressão. O “pemedebismo” funcionava (e funciona) como uma proteção do

sistema político, e sua característica central era a denominada “governabilidade”, amparado

pelas maiorias suprapartidárias857. A partir da Constituinte, os governos se preservaram, não

mudaram, fortaleceram a lógica de se impedir transformações das estruturas, como a

concentração fundiária. Construiu-se um acordo sobre a governabilidade; sem ela, ficaria

impossível governar.

A política pemedebista impôs a “supermaioria” parlamentar antes de dar início às

disputas por espaços no interior do governo. E essas disputas se deram dentro dos partidos e

fora deles, muitas vezes com barganhas e chantagens. De acordo com Nobre, os governos

FHC e de Lula foram fundamentais para a consolidação e o fortalecimento do

“pemedebismo”. Lula e PT, que antes eram “antipemedebistas”, resistiram até o momento do

escândalo do Mensalão, em 2005. Após o Mensalão, o governo se fortaleceu com uma aliança

formal com o PMDB e garantiu a maioria parlamentar e sua governabilidade. Nesse caso,

integrou-se ao “pemedebismo” e, conforme Nobre, o administra no Congresso Nacional858,

funcionando como uma espécie de síndico.

Ao analisar o escândalo do Mensalão, assim como as alianças políticas do governo

Lula, Martinho destaca que Lula caiu na “armadilha do novo” para se parecer cada vez mais

com o velho. Ou seja, caiu na forma tradicional de fazer política, com acordos e alianças

mediados pelo “toma lá dá cá”. “Lula procuroua cada vez mais transformar-se em um político

que prescinde não só dos partidos como também da própria política. Entretanto, na mesma

medida em que despreza a tradição da qual faz parte, cai na armadilha do novo. Parecendo

velho, cada vez mais velho”859.

Nesse processo, observa-se que o MST, nos editoriais do Jornal Sem Terra, não se

preocupava em refletir sobre essas mudanças do ex-operário e presidente. Discutiam-se as

opções conservadoras e continuístas do governo, em especial, sobre economia e alianças

partidárias, mas as transformações relativas ao presidente não eram focalizadas. Lula ainda

era personificado como aquele líder sindical da década de 1980 e, por mais que seu governo

mostrasse traços conservadores, ele, Lula, não podia ser exposto ou ridicularizado como os

presidentes anteriores.

857 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p.11. 858 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p.15. 859 MARTINHO, F. C. P., A Armadilha do Novo: Luiz Inácio Lula da Silva e uma esquerda que se imaginou

diferente, p. 560.

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Ressalte-se que, apesar dos escândalos, a popularidade de Lula cresceu sem

precedentes, e isso foi legitimado na sua reeleição em 2006, quando venceu no segundo turno

o candidato Geraldo Alckmin (PSDB), com quase 61% dos votos válidos. Blindado

politicamente pelo “pemedebismo”, Lula não só venceu o escândalo do Mensalão, como se

fortaleceu enquanto figura política. Após o Mensalão e, partir da eleição de 2006, alguns

pesquisadores como André Singer e Rudá Ricci efetuaram ponderações observando que havia

se desenvolvido no país um fenômeno político denominado “Lulismo”860. Criou-se a sensação

de que Lula teria se tornado maior que o PT. Ou seja, o PT dependia muito mais de Lula do

que Lula do PT.

Na eleição presidencial de 2006, o MST não se dedicou tão intensamente na campanha

de Lula e do PT, conforme havia acontecido nas eleições. Todavia, não deixou de se

posicionar em apoio ao representante do povo, Lula. Esse apoio foi mais especificamente no

segundo turno. No primeiro, o Movimento criticava veementemente o PT, que não havia

apresentado “projeto político para o país” e que não debatia “os problemas estruturais que

realmente afetavam a vida do povo”861, segundo o editorial da edição de junho de 2006. Nota-

se que as críticas eram ao PT, não ao Lula. Já, no segundo turno, com a iminência de uma

possível vitória de Geraldo Alckmin, apoiado por FHC e integrante de seu partido, o

Movimento não hesitou em se posicionar a favor da candidatura do candidato petista.

O MST, na eleição de 2006, novamente, punha “esperança” de rompimento com o

modelo econômico (neoliberal, na visão da Direção Nacional) na figura de Lula. O editorial

de setembro/outubro de 2006 enfatiza: “Esperamos que o governo Lula se reeleja no segundo

turno, mas com compromissos e propostas mais claras de mudanças e enfrentamento ao

neoliberalismo”862. A Direção Nacional do Movimento ainda pautava seu discurso na

“esperança”, como se Lula estivesse disposto a romper com o modelo de desenvolvimento

econômico. Travava-se de uma ideia romântica e, até certo ponto, ingênua por parte do MST.

O ideal de enfrentamento ao sistema, fruto de sua concepção política ideológica, naquelas

circunstâncias do jogo político, não seria concretizado pelo governo.

As críticas face ao continuísmo do modelo de desenvolvimento econômico que,

conforme o MST, tinham traços neoliberais, estenderam-se até o final do segundo mandato do

governo. A diferença era que, nos editoriais, o nome de Lula quase não aparecia nas

860 Sobre o “Lulismo”, ver: SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São

Paulo: Companhia das Letras, 2012; RICCI, Rudá. Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da Nova

Classe Média Brasileira. 2ª Ed. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira / Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 861 Debater alternativas reais para o Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2006, ano XXIV, n. 263, p. 2. 862 As eleições no processo de mudança no Brasil. Jornal Sem Terra. São Paulo, set./out. de 2006, ano XXV, n. 266, p. 2.

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publicações. Nas entrelinhas dos editorais, o MST sugeria que o governo Lula continuava a

priorizar as “elites”, mas não expunha o presidente nas suas representações sobre o

conservadorismo da política e do modelo econômico brasileiro. No editorial de julho de 2007,

o Movimento destaca: Os ricos estão cada vez mais ricos no governo Lula. Esse fator,

conforme o MST, era fruto da política econômica, que enriquecia uma pequena parcela da

população e proporcionava “assistencialismo” à maioria. Ao criticar o governo, sublinha:

O governo é pequeno e insensato quando se propõe a enfrentar essa

realidade apenas com uma política assistencialista e distribuição de cestas

básicas. As políticas assistencialistas são necessárias e urgentes para socorrer

as famílias em situação de pobreza, mas precisam vir acompanhadas de

ações políticas que promovam o ascenso econômico e social. Caso contrário,

perpetua a condição de dependência ao assistencialismo do Estado863.

Esse é um dos poucos editoriais em que o nome de Lula aparece; contudo, tal aparição

surge somente no título, no corpo do texto utiliza-se o termo “governo Federal”. Algo a ser

ressaltado nessa edição do jornal é que, a partir dela, há mudança substancial na editoração

em vista, sobretudo, da saída da editora Cristiane Gomes. Dessa edição em diante, as charges

não passam mais a compor os editoriais. Com relação ao texto do editorial mencionado, faz

crítica ao fato de o governo Lula ter favorecido ainda mais o enriquecimento dos ricos, das

“elites e burguesia”, como preferia dizer o Movimento; e isso era fruto do modelo econômico

desenvolvido. O MST elenca o governo como “pequeno” e “insensato”, posto que não tinha

coragem de realizar mudanças estruturais na área econômica, e optava pelas “políticas

assistencialistas”864.

Em outros editoriais, no segundo mandato de Lula, o Movimento reafirma o seu

descontentamento com os caminhos seguidos pelo governo, enfatizando que o Brasil era “um

verdadeiro paraíso para os banqueiros”, em que a “orgia bancária” ditava a “especulação

financeira”, a “cobrança abusiva de taxas e a brutal exploração dos trabalhadores”865. Em uma

conjuntura desfavorável, na qual o governo criava condições para que os ricos ficassem mais

ricos, os bancos continuassem lucrando e explorando financeiramente os trabalhadores, e a

população se satisfazendo com “políticas assistencialistas”, o MST orientava seus integrantes,

863 Os ricos estão mais ricos no governo Lula. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2007, ano XXV, n. 274, p. 2. 864 Os ricos estão mais ricos no governo Lula. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2007, ano XXV, n. 274, p. 2. 865 Bancos continuam lucrando. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2007, ano XXVI, n. 275, p. 2.

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por meio dos editoriais do Jornal Sem Terra, no sentido de “lutar”866 e não se “intimidar”867.

Ancorado em seus ideais marxistas, de enfrentamento ao modo de produção capitalista, no

editorial de maio de 2008, o Movimento clama: “Trabalhadores e trabalhadoras de todo o

mundo: uni-vos!”. Por mais que o governo Lula houvesse feito alianças com as elites, era

preciso se unir e lutar contra o conservadorismo.

Grosso modo, as políticas sociais do governo Lula não foram objeto de reflexão do

MST nos editoriais do Jornal Sem Terra, a não ser em alguns momentos isolados, como foi o

caso da edição de julho de 2007, na qual as políticas sociais eram definidas como

“assistencialistas”868. Nesse sentido, torna-se relevante ressaltar que, mesmo no marco do

“pemedebismo”, conforme Nobre, o governo Lula efetivou avanços sociais aguardados há

muito tempo869, o que não foi reconhecido e avaliado profundamente pelo MST, pelo menos

nos editoriais do Jornal Sem Terra.

Sader entende que o governo Lula teve caráter progressista “predominante”, mesmo

mantendo aspectos da política econômica do governo FHC. Isto é, manteve aspectos

conservadores, sobretudo, na economia, mas também avanços, especialmente, nas área

relacionadas à questão social. Em sua análise em torno do governo Lula, após a saída deste da

Presidência da República, Sader constrói a ideia de que o referido governo pode ser

caracterizado como “pós-neoliberal”, por ter desenvolvido elementos centrais de “ruptura”

com o modelo neoliberal implementado pelos governos Collor, Itamar e FHC; e por ter

apresentado aspectos comuns com governos da região sul-americana. Por exemplo, com o dos

Kirchners na Argentina, com o da Frente Ampla no Uruguai, com o de Hugo Chaves na

Venezuela, o de Evo Morales na Bolívia e o de Rafael Correa no Equador. Em sua visão,

esses governos representavam uma reação “antineoliberal” no marco das grandes crises que

marcaram o continente, e possuíam os seguintes traços comuns, o que permite agrupá-los

como “pós-neoliberais”:

a) priorizam as políticas sociais e não o ajuste fiscal;

b) priorizam os processos de integração regional e os intercâmbios Sul-Sul e

não só tratados de livre comércio com os Estados Unidos;

866 Nossa luta contra as transnacionais. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2007, ano XXVI, n. 277, p. 2; Rumo

às mobilizações e lutas sociais. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2009, ano XXVII, n. 293, p. 2. 867 Não nos intimidaremos. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2009, ano XXVII, n. 291, p. 2. 868 Os ricos estão mais ricos no governo Lula. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2007, ano XXV, n. 274, p. 2. 869 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p.18.

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c) priorizam o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e da

distribuição de renda, em vez do Estado mínimo e da centralidade de

mercado870.

Conforme Sader, as políticas sociais de distribuição de renda e a inviabilização da

Alca871 foram os principais elementos que marcaram a “ruptura” com o modelo neoliberal

(Collor, Itamar e FHC) e se tornaram estratégicos para a alternativa “pós-neoliberal”872. Nessa

direção, o autor também parte do pressuposto de que o governo Lula se caracterizou como

“híbrido e contraditório”. Tal afirmação tem respaldo em discursos do presidente Lula, por

exemplo, nos efetuados durante as campanhas da eleição de 2006 em que Lula dizia: “nunca

os ricos ganharam tanto, e nunca os pobres melhoraram tanto seu nível de vida”873. Nota-se

que a política de Lula tinha uma tática visível que apontava para os dois extremos sociais:

“mantendo uma política ortodoxa que favorecia os mais ricos, ao mesmo tempo que

introduzia importantes mudanças em favor dos mais pobres”874. Essa característica se tornou o

cerne do que Sader chama de “enigma Lula”875, um fenômeno que escapava ao entendimento

tanto dos setores da chamada direita, quanto dos da esquerda. Nas palavras de Sader:

Não se pode perder de vista, porém, que esse é um governo híbrido,

contraditório, no qual, de um lado, o capital financeiro desempenha um

papel essencial e, de outro, é cada vez maior o fomento ao desenvolvimento

e às políticas sociais de distribuição de renda, assim como a regulação do

Estado e a contenção dos processos de informalização das relações de

trabalho876.

Cumpre ressaltar que o MST, por suas convicções ideológicas, não entendia ou não

aceitava o fato de o governo fazer política entre os dois extremos, agindo em prol das elites e

fomentando políticas sociais relevantes. Para o Movimento, o governo deveria ser “popular”,

dos trabalhadores e para os trabalhadores; dos pobres e para os pobres. Assim, era

inconcebível que Lula e seu governo criassem políticas que beneficiassem também as

chamadas elites. Nota-se que, por parte do Movimento, havia uma visão inflexível e

870 SADER, E., A Construção da Hegemonia Pós-Neoliberal, p. 138. 871 No Governo Lula, o acordo em relação à Alca não se efetivou. Lembra-se que a Alca foi um assunto muito

debatido no Jornal Sem Terra, em especial, nos mandatos do governo FHC. Nota-se que algo tão debatido e

inviabilizado no governo Lula não foi objeto de reflexão por parte do MST, que não reconheceu oficialmente

essa ação do governo. 872 SADER, E., A Construção da Hegemonia Pós-Neoliberal, p. 139-140. 873 SILVA, L. I. L. da. Trecho da fala de Lula. Eleições 2006. 874 NOBRE, M., Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma, p.107. 875 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 81. 876 SADER, E., A Nova Toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana, p. 89.

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engessada do jogo político, como se os meandros da política tivessem que caminhar entre a

escolha do bem ou do mal. Acrescente-se que, por mais que houvesse identificação do PT e de

Lula com o MST e com os movimentos sociais de maneira geral, o governo Lula foi

composto, desde 2002, a partir de alianças e de grupos heterogêneos, em que interesses

distintos estavam em jogo.

No que se refere à questão social, o governo Lula buscou o crescimento econômico

associado à distribuição de renda. João Sicsú877, José Prata Araújo878, Marcio Pochmann879,

Jorge Mattoso880, Rosa Maria Marques e Áquilas Mendes881, Paul Singer882 são autores que

auxiliam a compreender aspectos das políticas sociais do governo Lula. De maneira geral,

esses autores consideram relevantes essas políticas, na medida em que contribuíram para a

minimização da desigualdade social e para a distribuição de renda no país.

Ao comentar sobre o social no governo Lula, Mattoso enfatiza que as políticas do

governo foram “inovadoras e caracterizam um novo período de ampliação da democracia e de

massiva inserção de vários milhões de brasileiros na sociedade e no consumo”883. Tais

políticas contribuíram significativamente para a redução da pobreza e para o aumento da

distribuição de renda. Como exemplo, cita-se o fato de o índice de Gini884 do país ter

diminuído quanto ao fator distribuição de renda. Este índice mede a distribuição de renda e

varia de 0 a 1. Quanto maior for o índice, ou seja, quanto mais perto de 1, a renda é mais

concentrada, e quanto mais se distanciar de 1, menor a desigualdade. Ele é calculado com

base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE. O Gini brasileiro caiu

de 0,585, em 1995, para 0,501 em 2011885.

Obviamente, esse declínio no índice do Gini não significa que as desigualdades sociais

e a concentração da renda no país tivessem desaparecido. Houve um processo significativo de

distribuição de renda que deve ser valorizado, pois melhorou a vida de milhões de famílias no

877 SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração Editorial, 2013. 878 ARAÚJO, José Prata. Um Retrato do Brasil: balanço do Governo Lula. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2006. 879 POCHMANN, Marcio. Políticas Públicas e Situação Social na Primeira Década do Século XXI. In: SADER,

Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro:

FLACSO Brasil, 2013. p. 145-156. 880 MATTOSO, Jorge. Dez Anos Depois... In: SADER, Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-

neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013. p. 111-121. 881 MARQUES, Rosa Maria; MENDES, Áquilas. Desvendando o Social no Governo Lula: a construção de uma

nova base de apoio. In: PAULA. João Antônio de. Adeus ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo

Horizonte: Autêntica, 2005. p. 143-170. 882 SINGER, Paul. Políticas Sociais e Econômicas do Governo Lula. In: PAULA. João Antônio de. Adeus ao

Desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 171-178. 883 MATTOSO, J., Dez Anos Depois..., p. 115. 884 O nome Gini é uma referência ao autor do índice/coeficiente, o matemático italiano Conrado Gini. 885 Ver gráfico detalhado sobre esses dados em: SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro?, p. 61.

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Brasil. Contudo, apesar dos avanços, entende-se que as políticas sociais do governo Lula

tiveram um viés compensatório. O social ainda foi inserido em segundo plano diante da

economia e a renda no país continuou muito concentrada, quiçá na mesma proporção que a

estrutura fundiária. Em análise crítica acerca das políticas sociais do governo Lula, Sampaio

Jr. observa que, por elas terem um perfil “compensatório”, atuam sobre os efeitos dos

problemas e não sobre suas causas, “contentando-se em minorar o sofrimento do povo,

dentro, evidentemente, das limitadíssimas possibilidades orçamentárias geradas pelo ajuste

fiscal permanente”886.

Cabe acrescentar que os Programas Fome Zero e Bolsa Família foram o “carro-chefe”

da política social do governo Lula. O Programa Fome Zero era considerado uma “proposta de

segurança alimentar para o Brasil”, em que a população com renda abaixo da linha de

pobreza887 teria atenção prioritária. Estimava-se que o programa atingisse 44.043 milhões de

pessoas, envolvendo 9.32 milhões de famílias888. Passados alguns meses, o Fome Zero

concentrou-se no chamado Bolsa Família.

O Bolsa Família, conforme os órgãos oficiais do governo, foi criado para “combater a

miséria” e a “exclusão social”. Um programa derivado da unificação de programas antes

constituídos, como o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Cartão Alimentação e o Auxílio

Gás. Nesse sentido, alguns pesquisadores, como é o caso de Fausto, entendem que o

Programa Bolsa Família foi simples “continuidade” de programas anteriormente criados no

governo FHC que foram “unificados” pelo governo Lula889. Acredita-se que o Bolsa Família

não se tratava apenas de uma “unificação” de programas antes constituídos, como defendem

alguns autores e críticos do governo Lula, mas sim de um programa mais consistente, focado

e ampliado, com objetivos definidos e que teve um impacto real na vida de milhões de

famílias890, inclusive, de trabalhadores rurais sem-terra nos acampamentos e assentamentos de

886 SAMPAIO JR. P. de A., Desafio do momento histórico e lições do Governo Lula, p. 304. 887 Sobre o critério de “linha de pobreza”, a equipe do Governo Lula utilizou-se do cálculo do Banco Mundial,

cujo valor era de U$ 1,08 (dólar) por dia, ajustando-se as especificidades regionais de custo de vida. 888 MARQUES, R. M; MENDES, Á., Desvendando o Social no Governo Lula: a construção de uma nova base de

apoio, p. 158. 889 FAUSTO, S., Modernização pela via Democrática, p. 533-534. Para Fausto, o Bolsa família produziu

resultados vantajosos para o Governo. Primeiro porque desempenhou um papel importante na redução da

pobreza, em especial, no Nordeste; e segundo porque gerou dividendos eleitorais para Lula, sobretudo, na região

nordestina (2012, p. 534). Para os partidos de oposição e alguns analistas políticos, o Bolsa Família se

transformou em um instrumento de “clientelismo político”, visão essa que minimiza a relevância de tal

programa. 890 De acordo com Paul Singer, o Bolsa Família não só contribuiu com a redistribuição de renda e auxílio para as

famílias que precisam, mas teve um impacto significativo no desenvolvimento dos mercados locais. Ou seja,

focou no combate à pobreza através do desenvolvimento local (2005, p. 177). Ver a pesquisa da professora Rosa

Maria Marques, que calculou o impacto econômico do gasto acrescido pelo Bolsa Família sobre comunidades

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todo o Brasil. Enfim, entende-se que houve sistematização apurada em volta do programa,

não apenas uma mera “continuidade”.

O Bolsa Família não se estabelece como um “direito constituído”, mas sim como um

“programa”, “fruto de decisão do Executivo Federal”. Isso quer dizer que as perspectivas para

se pensar as políticas sociais no governo Lula não se alteraram em comparação àquelas

pensadas anteriormente, com foco “compensatório” e “focalizado”, sem priorizar tais políticas

como “direito universal”, independente de governos ou das vontades de parlamentares891. Ao

se destacar o perfil compensatório e focalizado do programa, não se está negando sua

relevância para o país, a intenção é ressaltar a urgência em romper com o paradigma do

compensatório das políticas sociais e transformá-las em política de Estado, e não de governo.

A crítica à política social do governo Lula se concentra em sua característica

compensatória, uma vez que não recebeu prioridade de Estado e não alterou a concentração

de renda e de patrimônio. Distribuiu-se renda e milhões de famílias conquistaram melhores

condições de vida, alterações extremamente louváveis, mas as relações de poder e as

estruturas mantenedoras da pobreza e miséria não foram combatidas amplamente com força

política e econômica para gerar transformações no modelo econômico gestado. Volta-se ao

discurso de Lula na campanha presidencial de 2006 e constata-se uma contradição: nunca se

distribuiu tanta renda para as famílias no Brasil, mas, ao mesmo tempo, nunca os grupos

econômicos ganharam e acumularam tanta renda e patrimônio. Essa afirmação demonstra a

continuidade da lógica de acumulação de renda e patrimônio, logo, conservação de

desigualdades sociais.

De acordo com Marques e Mendes, a acumulação brasileira de renda e patrimônio

possui uma face “perversa”: “A história da acumulação brasileira indica que ela estabelece

uma lógica perversa, de forma que se aprofundam as desigualdades e aumenta a pobreza,

mesmo quando a economia cresce”. Os autores compreendem que “pobreza” e “concentração

de renda” estão intrinsecamente ligadas; e, para superar esse quadro, é necessário romper com

a lógica assistencialista das políticas sociais, transformando-as em direitos básicos e

fundamentais de qualquer pessoa. Nesse sentido, “essa mudança de status, além de garantir a

continuidade dos programas, retira do assistencialismo seu caráter de moeda política, que

reforça a força dos poderosos entre os seguimentos mais carentes da população”. Para tanto,

muito pobres, onde se concentram muitos beneficiários do programa. Nessa pesquisa, constatou-se que o Bolsa

Família expandiu e dinamizou os mercados locais. MARQUES, Rosa Maria. A importância do Bolsa Família

nos municípios brasileiros. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, n. 1. MDS, 2005. 891 MARQUES, R. M; MENDES, Á., Desvendando o Social no Governo Lula: a construção de uma nova base

de apoio, p. 160.

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Marques e Mendes acreditam que, para superar a pobreza, é preciso mudar as questões

relativas à ordem econômica e à política do país, isto é, torna-se necessário enfrentar “os

interesses dos beneficiários do processo que historicamente cria e recria a pobreza e a

desigualdade”892.

Além dos programas de transferência de renda, em especial, do Bolsa Família, outras

ações do governo Lula contribuíram sistematicamente para a melhoria social de milhões de

famílias – aumento sistemático do salário mínimo, reformas microeconômicas em relação ao

acesso a crédito e ao sistema bancário de maneira geral, programas de habitação, energia

elétrica, dentre outros893. Nessa perspectiva, ressalta-se o caráter social do governo Lula,

mesmo com suas limitações, fragilidades e vícios. Ao se evidenciar sua característica híbrida

e contraditória, há que se ressaltar o avanço social considerável do mencionado governo.

Os avanços sociais e os programas sociais do governo Lula não foram focos de

debates e reflexões nos editoriais do Jornal Sem Terra. Raras eram as edições em que esses

assuntos eram tidos como fruto de políticas “assistencialistas” do governo, que insistia em não

romper com o modelo político econômico que gerava e reproduzia as desigualdades sociais e

a concentração de riquezas entre uma minoria de privilegiados. Todavia, as representações

sobre o presidente Lula eram harmonizadas, não o expunham de modo pejorativo e nem o

ridicularizavam, como acontecia com o presidente FHC.

No governo Lula, o MST edificou as representações acerca do presidente a partir do

prisma do bem e mal. Desse modo, relacionava-o a seus antecessores, sem estabelecer as

diferenças, as similitudes, os avanços e os recuos. Isto é, por meio de uma visão unilateral e,

por vezes, ingênua e romântica do jogo político. Entende-se que o MST, precisa superar sua

concepção maniqueísta da história e dos governos e considerar as aproximações e os

distanciamentos para, a partir disso, fazer uma análise crítica e também reconhecer os

avanços. A visão do Movimento sobre os presidentes brasileiros tem sido pautada pelo

maniqueísmo, na crença de um candidato prístino, puro. As representações sobre os

presidentes FHC e Lula evidenciam significativamente essa visão.

892 MARQUES, R. M; MENDES, Á., Desvendando o Social no Governo Lula: a construção de uma nova base

de apoio, p. 163-165. 893 Ver: SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração Editorial, 2013;

ARAÚJO, José Prata. Um Retrato do Brasil: balanço do Governo Lula. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2006; BARBOSA, Nelson. Dez Anos de Política Econômica. In: SADER, Emir (org.). Lula e Dilma:

10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013. p.

69-102; NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo:

Companhia das Letras, 2013.

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E como foram as representações do MST sobre o presidente Lula no que diz respeito à

reforma agrária? Será que o “representante do povo” legitimou o apoio do MST e de demais

movimentos sociais sem-terra? Criou assentamentos para famílias e contribuiu para minimizar

a concentração fundiária do país? Quais foram as características da política de reforma agrária

do governo Lula? O Movimento apoiou essa política? Essas indagações serão pontos de

reflexão do próximo tópico.

4.3 Lula: entre a esperança da reforma agrária e a opção pelo agronegócio

Com a eleição de Lula para presidente do Brasil, o sentimento vivenciado por aqueles

que o apoiavam e lutavam por reforma agrária, sem dúvida, foi de esperança. O MST, por

exemplo, foi tomado por esse sentimento e pelos compromissos históricos de Lula com o

tema reforma agrária. No primeiro tópico desse capítulo, analisou-se a proximidade histórica

entre Lula e o MST, os quais, em contextos específicos, compartilhavam ideias semelhantes

quanto aos benefícios que a reforma agrária agregaria ao país: geração de renda, produção de

alimentos, criação de empregos e ascensão social de milhões de famílias.

Em um parágrafo, Sue Branford resume o clima de esperança e expectativas dos

trabalhadores rurais sem-terra em virtude da eleição de Lula:

Os trabalhadores rurais sem-terra acreditaram que finalmente sua hora havia

chegado. Milhares de famílias espontaneamente se mudaram para

acampamentos provisórios que o MST e outras organizações de sem-terra

montaram às pressas à beira de estradas por todo o país. Essas famílias

esperavam ser uma das primeiras a se beneficiar quando o amplo programa

de reforma agrária, prometido há tanto tempo por Lula, fosse

implementado894.

A esperança e as expectativas se alicerçavam na figura de Lula e em seus discursos de

tempos pretéritos, relativos ao enfrentamento ao latifúndio e à sistematização de um amplo

programa de reforma agrária. Com a vitória de Lula e do PT, a Direção Nacional do MST

também não se contém e manifesta sua crença de que a tão sonhada reforma agrária estava

prestes a se consolidar. No editorial de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, do Jornal Sem

Terra, enfatiza:

894 BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 418.

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Agora, com o governo Federal disposto a fazer Reforma Agrária, certamente

o latifúndio buscará preservar seus interesses fazendo articulações com os

governos estaduais conservadores e com setores do Poder Judiciário que

sempre se identificaram com os que monopolizam as terras em nosso país.

Por isso, nosso desafio nesta conjuntura que nos é favorável é ainda maior.

Precisamos redobrar esforços para aproveitar o entusiasmo da vitória

eleitoral, aproveitar as energias do povo que acredita que estamos vivendo

uma oportunidade histórica em nosso país, para realmente promover as

mudanças tão esperadas895.

O MST analisava que a conjuntura política era “favorável” para fazer a reforma

agrária, sobretudo, pelo fato de o “governo Federal” demonstrar “disposição” para tal. Era a

“oportunidade histórica” almejada pelo Movimento e o presidente conhecia as lutas e

demandas dos sem-terra. Porém, mesmo com o entusiasmo da vitória de Lula, o MST alertava

que os representantes do “latifúndio” buscariam “preservar” seus privilégios, a partir das

articulações com governos estaduais conservadores e o Poder Judiciário. Mesmo

evidenciando um pouco de cautela, o clima de entusiasmo e esperança contagia membros da

Direção Nacional do MST.

Em agosto de 2003, Stedile destaca, por meio de um discurso entusiasmado, que a

eleição de Lula representava o início da “reforma agrária pra valer”: “Eles (os proprietários

rurais) perderam as eleições, mas acharam que fosse só um joguinho, que poderiam continuar

fazendo o que quiserem para protegerem seus privilégios. E agora eles estão percebendo que a

reforma agrária é pra valer”896. Nessa direção, meses antes, em entrevista à Revista PUC

VIVA, Stedile também havia salientado:

Certamente, o que houve agora é uma mudança da correlação de forças. No

governo anterior, o governo era aliado do latifúndio, e as forças por reforma

agrária, o MST e demais movimentos sociais lutávamos contra o governo e o

latifúndio. Agora, num governo eleito para mudar, certamente o latifúndio

será combatido também pelo governo897.

Na continuidade da entrevista, Stedile enfatiza o papel central dos movimentos sociais

para mobilizar os trabalhadores e apresentar suas demandas ao governo eleito. A fala da

liderança do MST revela um certo romantismo quanto ao governo Lula, como se ele fosse

“combater” o latifúndio e seus representantes, fazendo com que a reforma agrária,

895 Hora de arregaçar as mangas. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2002 e jan. de 2003, ano XXI, n. 226, p. 2. 896 STEDILE, João Pedro. Entrevista. In: Brazil Network Newsletter, Londres, agosto de 2003 apud

BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 418. 897 STEDILE, João Pedro. O Governo precisa ter coragem de enfrentar o latifúndio. Revista PUC Viva. São

Paulo, Ano 5, n. 19, fevereiro a abril de 2003, p. 28.

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definitivamente, fosse “pra valer”. Nota-se também que, com Lula, o governo seria de

“mudança” e o Movimento o seu aliado. Um gesto importante ocorrido no primeiro ano do

governo Lula e que reforçou positivamente a crença de que o presidente desenvolveria um

amplo programa de reforma agrária foi o relativo ao fato de Lula ter recebido representantes

do MST, em audiência realizada no dia 2 de julho de 2003.

Na capa do Jornal Sem Terra, da edição de julho de 2003, dá-se destaque a esse

encontro com a seguinte manchete: Lula diz que Reforma Agrária é prioridade, logo abaixo

da manchete, uma foto do presidente com o boné do MST e segurando uma bola de futebol

com logotipos da bandeira do Movimento impressos.

Imagem 71 – Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, p. 1.

Editora responsável: Daniela Stefano

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No que diz respeito à referida capa, evidencia-se o salto de qualidade na diagramação

e na impressão do periódico, as chamadas de notícias são bem melhor distribuídas e atrativas

aos leitores. Ao comentar sobre a audiência nesta capa, o MST observa que o governo Lula

prometia “agilizar assentamento de famílias no próximo semestre”898. O editorial do jornal foi

um dos espaços escolhidos para o comentário sobre o encontro com Lula, no Palácio do

Planalto. Na ocasião, Lula recepcionou os vinte e sete membros da Direção Nacional do MST,

acompanhado por ministros e líderes do Congresso Nacional. O MST avaliou “positivamente”

a reunião, “pois serviu para o Movimento debater com o governo nossa visão da situação e a

necessidade de realmente priorizar a reforma agrária”899.

Diferentemente das audiências ocorridas quando FHC era presidente, a reunião não foi

organizada com “pautas com reivindicações”, haja vista que o momento era para apresentar

“pontos de vista, reflexões, resultados de nossa experiência de luta e do acúmulo dos demais

movimentos sociais pastorais em nosso país”900. Nessa perspectiva, a audiência não teve um

tom de cobrança; foi marcada pela proposição de se ampliar os diálogos. Laura Muradi, ao

registrar e escrever sobre a audiência no jornal, sublinha que o Movimento visualizava o

momento como uma “reunião entre velhos companheiros”: “O clima, como era de se esperar,

entre velhos companheiros, foi amigável e descontraído”901. Ao tratar o presidente como

“velho companheiro”, o MST evidencia um laço histórico de companheirismo, de ideais

comuns e de respeito à figura do Lula.

Na audiência, os representantes da Direção Nacional do MST conversaram com Lula e

sua equipe sobre diversos assuntos, dentre eles: crédito agrícola, educação e estratégias para

melhorar a vida dos assentados. Conforme Muradi, Lula fez discurso envolvente e deixou os

integrantes do MST esperançosos: “Nosso compromisso é histórico, é ideológico, é

programático. A relação será 100% de confiança. Não há tabu. Tem coisa que demora dez

dias, um mês ou dois anos, mas nós vamos fazer a reforma agrária nesse país”902, dizia Lula.

Por enfatizar que a reforma agrária era um compromisso “histórico”, “ideológico” e

“programático”, Lula se colocava como um parceiro do MST e como quem compartilhava

das mesmas aspirações da organização do Movimento.

898 Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, p. 1. 899 É hora de fortalecer nossa organização. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 2. 900 É hora de fortalecer nossa organização. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 2. 901 MURADI, Laura. Lula pega a bola da Reforma Agrária. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, ano XXI,

n. 231, p. 8-9. 902 SILVA, L. I. L. da. Trecho de sua fala. In: MURADI, Laura. Lula pega a bola da Reforma Agrária. In: Jornal Sem Terra.

São Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 8.

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Para o MST, ouvir isso de Lula foi crucial, tanto que integrantes da Direção Nacional,

após a audiência, se manifestaram com muito entusiasmo e confiança. Gilmar Mauro assinala:

“Não temos dúvidas que Lula é um alento e com sua história e com o que prometeu na

campanha, vai fazer a reforma agrária”903. Stedile também fala sobre a audiência: “Este

encontro serviu para termos certeza de que o governo vai realmente priorizar a reforma

agrária no segundo semestre, mobilizando vários ministérios e seus principais assessores.

Acho que ele se convenceu de que a reforma agrária será o principal programa para combater

a pobreza e enfrentar o desemprego”904. Diante das palavras dessas lideranças do MST,

percebe-se a crença de que Lula iria “priorizar” a reforma agrária em seu programa de

governo e a de que honraria seu compromisso histórico com os trabalhadores sem-terra, a

partir do segundo semestre de 2003.

Um gesto que causou muita polêmica e repercutiu em diversas mídias905 acerca dessa

audiência de Lula com o MST, foi o de o presidente ter colocado em sua cabeça o boné do

Movimento, como pode ser observado na imagem 71, capa da edição de julho de 2003. Diante

desse gesto de Lula, a oposição do governo Lula no Congresso ficou incomodada, supondo

que Lula era “insensato”, estava beneficiando o MST e corroborando com as ações de um

movimento “sem lei”, como se referiu, Jorge Bornhausen, liderança do PFL na época906.

O espanto ou perplexidade dos opositores do governo não fazia sentido, pois em

outras oportunidades, em tempos pretéritos, Lula havia colocado o boné do MST, em especial,

nos encontros, congressos, acampamentos e assentamentos visitados por ele, ainda como

candidato a presidente907. Diante da polêmica criada pelo aludido gesto, Lula se pronuncia e

903 MAURO, G. Trecho de sua fala. In: MURADI, Laura. Lula pega a bola da Reforma Agrária. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 8. 904 STEDILE, J. P. Trecho de sua fala. In: MURADI, Laura. Lula pega a bola da Reforma Agrária. In: Jornal Sem Terra. São

Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 8. 905 A imagem de Lula com o boné do MST foi estampada em diversas mídias impressas e eletrônicas de todo o

país, dentre elas, cita-se: Boné do MST abre polêmica entre Lula e oposição. Folha Online. São Paulo, 03 jul.

2003. Acessado em: 06 jul. 2004, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u50812.shtml;

BORNHAUSEN, Jorge. O Boné da Insensatez. Folha de São Paulo. 3 de julho de 2003; BORNHAUSEN,

Jorge. Lula coloca boné de movimento sem lei. Terra. Disponível em: www.tv.terra.com.br/jornaldoterra.

Acesso em: 18/10/2014, às 9h20min; BRAGON, R. Líder de oposição na Câmara diz que quer derrubar Lula por

meio de CPI. Folha Online. São Paulo, 03 jul. 2003. Acessado em: 06 jul. 2004, disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ ult96u50795.shtml; SECCO, A. 2003. O boné é apenas um detalhe.

Veja, 1810:54-55; MASCHIO, J. 2003. Para presidente da CNA, Lula teve atitude “servil” ao MST. Folha

Online. São Paulo, 02 jul. 2003. Acessado em: 06 jul. 2004, disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u50792.html. 906 BORNHAUSEN, Jorge. O Boné da Insensatez. Folha de São Paulo. 3 de julho de 2003; BORNHAUSEN,

Jorge. Lula coloca boné de movimento sem lei. Terra. Disponível em: www.tv.terra.com.br/jornaldoterra.

Acesso em: 18/10/2014, às 9h20min. 907 Sobre o episódio de Lula colocar o boné do MST e as polêmicas geradas por esse ato, cita-se a contribuição

valiosa de dois textos que analisam criticamente as repercussões: MELO, Paula Reis. O boné do MST na cabeça

presidencial: uma leitura semiótica. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. São Leopoldo/RS, vol. VI, n. 2, p.

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enfatiza: “Já devo ter tirado mais de 200 fotos com o chapéu do MST na cabeça: vou

continuar pondo908”. A resposta de Lula às críticas e polêmicas criadas pela oposição,

sobretudo, por parlamentares ligados ao PSDB e PFL, reforçava sua proximidade histórica

com o Movimento e o reconhecimento da legitimidade de suas lutas por reforma agrária. O

presidente não fugiu do embate e nem quis abafar o caso, pelo contrário, posicionou-se diante

da situação e reforçou seus laços históricos com o MST.

As polêmicas e críticas geradas pelo caso do boné fizeram com que o MST se

posicionasse e defendesse o presidente por meio do Jornal Sem Terra. No periódico deu-se

ênfase à reação de parlamentares e grupos conservadores, caracterizando-as como típicas de

“burgueses” que transformaram “o boné do MST na cabeça do presidente no fim do

mundo”909. Frei Betto, amigo pessoal de Lula e assessor especial do presidente no período,

também comenta o caso:

Não é o boné do MST na cabeça do presidente da República que deveria

causar tanto ruído, mas a existência do latifúndio num país de dimensões

continentais como o Brasil, onde mais de 4 milhões de famílias foram

expulsas de suas terras nos últimos 30 anos. Hoje, 1% dos proprietários

rurais detém 44% das terras cultiváveis no país. Assim como fomos o último

país das três Américas a abolir a escravidão, passaremos à história com o

débito de ser o último a realizar a Reforma Agrária910.

A narrativa de Frei Betto minimiza o tema e chama a atenção para algo mais

significativo: a permanência do latifúndio no Brasil. O ato de Lula ou o de qualquer outra

pessoa colocar na cabeça um boné de um determinado movimento não deveria causar tanta

polêmica, haja vista que, no país, existia (e ainda existe) a expropriação de milhões de

famílias de suas propriedades e uma alta concentração da propriedade da terra nas mãos de

poucas famílias. Para Betto, tal constatação deveria ser objeto de polêmica, reflexões críticas

e indignação de parlamentares e sociedade como um todo. Registre-se que as discussões e

críticas geradas foram motivadas muito mais em razão de um ranço político e ideológico

87-100, jul./dez. de 2004. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/6593.

Acesso em: 18 de outubro de 2014; ROMÃO, Lucília Maria Sousa; PACÍFICO, Soraya Maria Romano. O

presidente e o boné do MST. Observatório da Imprensa. Disponível em:

http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o-presidente-e-o-bone-do-mst. Acesso em: 18/10/2014, às

10h38min. 908 SILVA, L. I. L. da. Voltarei a usar o boné do MST”. Folha de São Paulo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1207200319.htm. Acesso em: 18/10/14, às 9h44min. 909 É hora de fortalecer nossa organização. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2003, ano XXI, n. 231, p. 2. 910 BETTO, Frei. Trecho de sua fala. In: Sociedade exige a reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto

de 2003, ano XXII, n. 232, p. 8.

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(tanto em relação ao presidente quanto em relação ao MST) do que em razão de estarem

associadas a algo relevante, que colocaria em risco a credibilidade e os rumos do país.

De toda forma, a mencionada audiência e o gesto do presidente alimentavam a

esperança do MST no sentido de criarem expectativa de se realizar um “amplo” e “massivo”

processo de reforma agrária no Brasil. E Lula, em seus primeiros meses na Presidência da

República, contribuía para isso, conforme se pode verificar em sua declaração no Fórum

Social Mundial, realizado entre os dias 23 e 28 de janeiro de 2003, em Porto Alegre/RS: “Eu

continuo com o meu sonho de fazer a reforma agrária neste país”911. Ao afirmar que

“continuava” com o “sonho” de realizar a reforma agrária no Brasil, Lula mantém a esperança

daqueles que acreditaram nele como o único presidente que poderia fazer tal feito; a Direção

Nacional do Movimento tinha a mesma convicção, como se demonstrou anteriormente nas

considerações de Mauro e Stedile, após audiência do MST com o presidente Lula.

Em outro momento, Mauro também reafirma a crença, a esperança que se erigiu com a

eleição de Lula: “Estou convencido de que podemos avançar, no governo Lula, com a reforma

agrária, mas uma reforma agrária e um modelo agrícola que apontem para um outro

paradigma de produção de alimentos”912. Para os integrantes do MST, a esperança estava

pautada muito mais na figura do presidente do que numa reflexão mais densa sobre o jogo

político e sobre os grupos que compunham o Congresso Nacional. Assim, havia, de certa

forma, a personificação de Lula como um salvador da pátria, ou melhor, um herói para os

sem-terra, pois ele era o único político com condições para fazer a reforma agrária ampla,

massiva e para alterar o modelo agrícola brasileiro, fundamentado na monocultura para

exportação.

É significativa a visão de pesquisadores no momento em que Lula toma posse da

Presidência. Seus textos acenam também para o clima de esperança, em que dias melhores

viriam para a reforma agrária. Fernandes foi um desses autores, com seu texto Reforma

agrária no Governo Lula: a esperança. Conforme ele, era preciso ter “otimismo” e

“esperança”, pois Lula e sua equipe superariam alguns desafios para efetivamente realizarem

a reforma agrária. A primeira superação era pensar a reforma agrária como uma “política de

desenvolvimento territorial”, que implicava “desconcentrar a estrutura fundiária, o que nunca

aconteceu em mais de quinhentos anos de história do Brasil”. No seu entendimento, os

911 SILVA, L. I. L. da. Trecho de sua fala. In: Zero Hora, Porto Alegre/RS, 23/01/2003, p. 8. 912 MAURO, G., O significado da Reforma Agrária para os movimentos sociais, p. 361-362.

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governos anteriores conceberam a reforma agrária como uma “política compensatória”913,

com atuações pontuais e atendendo a pressões dos trabalhadores.

Embora com “esperança”, Fernandes reflete sobre as mudanças ocorridas no programa

político de Lula em torno da reforma agrária, no período de 1989 a 2002. As mais notáveis

são as seguintes: não prever a quantidade de famílias assentadas; não mencionar a estrutura

fundiária concentrada e nem fazer críticas ao sistema latifundista. Quando eleito, o discurso

do presidente era ameno e conciliador e visava a um projeto desenvolvimentista, pautado em

dois objetivos principais: “a recuperação dos assentamentos implantados e a implantação de

novos assentamentos, acompanhados das políticas básicas: crédito, infra-estrutura, educação,

capacitação técnica e comercialização”914.

A esperança e otimismo de muitos estudiosos da área, de movimentos sociais e de

simpatizantes da luta pela terra se justificavam, em grande parte, pelo compromisso histórico

não só de Lula com a reforma agrária, mas também do PT. Contudo, como já apontado nesse

capítulo, Lula e PT haviam alterado algumas de suas concepções políticas e ideológicas.

Como exemplo, cita-se a essência dos Programas Agrários do PT em 1989, 1994 e 2002. Em

1989, estabelecia-se que a reforma agrária era “indispensável para a construção de uma

sociedade mais justa e democrática”, e objetivava-se “romper o monopólio da terra e lançar as

bases de um padrão de desenvolvimento para a agricultura e toda a economia brasileira915”.

Isto é, o foco estava na desapropriação de terras e na desconcentração da estrutura fundiária.

Wilson Cano, professor do curso de Economia da Unicamp e coordenador do Grupo

de Compatibilização do Programa do PT, no ano de 1994, em texto da Revista da Associação

Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, torna público alguns pontos centrais do programa

agrário do PT. Segundo Cano, a reforma agrária para o partido não era “peça isolada”, pois

estava inserida num tripé, junto com a política agrícola e com a segurança alimentar. Nesse

sentido, era elemento importante no programa de desenvolvimento econômico. A reforma

agrária era uma “meta básica” do programa de governo do PT, como uma espécie de “viga

mestra”, e não apenas um meio de produzir alimentos a custos baratos. Era um “dos pilares

básicos da geração de empregos, sem o qual não daremos passos avantajados na direção do

resgate da nossa dívida social e do nosso compromisso de nação soberana, na retomada do

processo de desenvolvimento econômico”. Em 1994, o programa do PT para reforma agrária

913 FERNANDES, B. M., Reforma agrária no Governo Lula: a esperança, p. 5. 914 FERNANDES, B. M., Reforma agrária no Governo Lula: a esperança, p. 5. 915 Programa Agrário do PT, 1989, apud STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil: programas de reforma

agrária (1946-2003), p.181.

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baseava-se na tentativa de “homogeneizar a estrutura fundiária”, ou seja, modificar o

panorama da concentração de terras916. Assim, esperava-se assentar 800.000 famílias em

quatro anos de governo.

Em 2002, o programa de reforma agrária do PT mostrou-se bem mais “conciliador”,

não apresentou a concentração da estrutura fundiária e nem criticou o sistema monocultor no

país917. De acordo com Solange I. Engelmann e Aldo Duran Gil, o programa agrário petista,

em 2002, passou a considerar a reforma agrária como uma “política para o desenvolvimento

rural, baseada em desapropriação de terras improdutivas; conciliada a produção de alimentos

para combate à pobreza e a recuperação dos assentamentos, com infra-estrutura social,

econômica, assistência técnica e créditos agrícolas”918. No início do século XXI, observam-se

mudanças significativas na forma de o PT e de Lula conceberem a reforma agrária, sobretudo,

no que se relaciona ao fato de não assumirem o compromisso de enfrentamento ao latifúndio.

Meses antes da eleição presidencial de 2002, ao ser entrevistado por Álvaro Pereira,

Lula dava indícios de que seu programa de reforma agrária não enfrentaria o sistema

latifundista. Nessa entrevista, o então candidato à presidência foi muito cauteloso ao falar em

reforma agrária e em política agrícola. Ele não queria se indispor nem causar problemas com

movimentos ou grupos específicos. Seu discurso seguiu o caminho de que a agricultura

familiar ou agricultura camponesa poderia se “complementar” com a agricultura empresarial.

Isto é, os dois seguimentos eram importantes para o país. Assim, pondera:

Eu sou provavelmente a única pessoa neste país em condições de promover

uma reforma agrária sem mortes e sem a ocupação ilegal de terras no campo.

Porque a reforma agrária tem que ser feita em torno de uma mesa, a partir da

ampla negociação entre trabalhadores, fazendeiros e governos. Temos 90

milhões de hectares de terras improdutivas, ociosas, que poderiam ser

ocupadas tranquilamente, sem bagunça, por parte daqueles que querem

trabalhar e produzir919.

É perceptível na fala de Lula sua posição no sentido de evitar o enfrentamento e de

demonstrar um discurso conciliador. Para ele, era possível efetivar uma reforma agrária

negociada, em gabinete. Ao se colocar como único candidato capaz de fazer a reforma agrária

916 CANO, Wilson. PT – Partido dos Trabalhadores. Reforma Agrária: programas partidários, p. 16-17. 917 Ver o programa agrário do PT da eleição de 2002 em: Programa Agrário da Campanha Presidencial do PT

2002 – Programa Vida Digna no Campo. In: STEDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil:

Programas de reforma agrária (1946-2003). São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 211-232. 918 ENGELMANN, S. I.; GIL, A. D., A questão agrária no Brasil: a política agrária do governo Lula e a relação

com o MST, p. 5. 919 SILVA, L. I. L. da., Entrevista, p. 78.

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no Brasil, Lula evidencia que não queria “bagunça”, ou seja, ocupações de terras,

manifestações. Essa fala remete à fase do “Lula paz e amor”, fase muito distinta daquela em

que ele havia dito que faria a reforma agrária com “uma canetada”920. Na entrevista, Lula não

menciona que as ocupações de terras eram visualizadas pelos movimentos sociais como uma

única forma de fazer pressão e de chamar a atenção do governo e da sociedade para o

problema agrário. Não se trata de “bagunça”, mas sim de uma ação política. E mais, grande

parte de desapropriações de terras e de construção de assentamentos foi realizada a partir de

ações e denúncias dos sem-terra. Caso contrário, elas não se efetivariam.

O não enfrentamento ao latifúndio e o tom conciliador revelado por Lula e pelo PT se

chocavam com as concepções ideológicas do MST. Para o Movimento, o ideal marxista-

leninista de enfrentamento ao sistema capitalista era algo preponderante, haja vista que, para

se chegar à sociedade socialista, seria necessário combater e romper com as cercas do

latifúndio. Não havia possibilidade de conciliação entre o sistema monocultor e a pequena

agricultura. Todavia, as mudanças nos programas agrários de Lula e do PT não eram objetos

de reflexão do MST, a importância estava na defesa de Lula à reforma agrária, mesmo de uma

forma genérica e imprecisa. Havia, então, a personificação da reforma agrária no nome de

Lula, em sua figura política idealizada da década de 1980.

Nessa perspectiva, até meados do segundo mandato de Lula, mesmo com críticas face

às políticas para o campo, adotadas pelo governo, o Movimento construía representações que

sinalizavam que o presidente poderia mudar o cenário alusivo à reforma agrária. No editorial

de setembro de 2003, o MST destaca: É preciso agilizar a reforma agrária. Chamava-se a

atenção dos movimentos sociais sobre a necessidade de se “pressionar” o governo para que

ele apresentasse “um plano de reforma agrária que realmente promova a democratização da

terra em nosso país, potencializando-a como um dos principais instrumentos para criação de

empregos, distribuição de renda e promoção da justiça social”921. Essa “pressão” também foi

representada na charge que acompanha o editorial, de autoria de Baraldi.

920 Lula visita assentamento no Pontal. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 1994, ano XIII, n. 138, p. 7. 921 É preciso agilizar a reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2003, ano XXII, n. 233, p. 2.

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Imagem 72 – É preciso agilizar a reforma agrária

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2003, ano XXII, n. 233, p. 2.

O cenário de fundo na charge é bonito, com destaque para o sol radiante e em formato

de flor, nuvens, pássaros voando e uma propriedade rural com ramos de matos e flores922. Por

meio desse cenário, é possível imaginar a representação de um assentamento idealizado pelo

MST que, além de ser o lugar de se produzir e viver, necessita ser belo923, florido e

aconchegante, em contraposição à frieza e ao vazio das grandes propriedades monocultoras. O

trator no centro da imagem retrata a sua relevância no contexto rural para o preparo da terra e

plantio. O nome estampado no trator é “Reforma Agrária” e o seu condutor, o presidente

Lula. A imagem de Lula, conduzindo o trator da reforma agrária, indicia tensão: a máquina

que ele dirige é muito lenta. O clima de tensão é enfatizado pela presença, atrás do trator, de

trabalhadores rurais sem-terra que empurram o veículo e dizem: “mais rápido, cumpadre!”

A fala dos trabalhadores referindo-se a Lula como “cumpadre”, uma forma coloquial,

expressa a proximidade existente entre o MST e o presidente, como se ele fosse uma pessoa

íntima e familiar à organização. Contudo, as expressões faciais sugerindo a insatisfação dos

trabalhadores sem-terra contrastam com essa proximidade e intimidade. A charge representa

que a realização da reforma agrária precisava andar no governo Lula e que a criação dos

assentamentos rurais dependia da aceleração do presidente. Isto é, Lula era personificado

como figura central para a agilizar o processo de reforma agrária no país, como se suas ações

922 Pelo fato de a imagem ter sido impressa em preto e branco, a visualização de alguns detalhes ficou

prejudicada 923 Sobre os aspectos e valores que um assentamento deve criar, segundo a visão do MST, ver: MST – Caderno

do Educando – Pra Soletrar a Liberdade Nº 1. Nossos Valores. Veranópolis – RS, junho de 2000; MST- Caderno

de Formação Nº 26. A vez dos Valores. São Paulo, janeiro de 1998; MST - Caderno do Educando – Pra Soletrar

a Liberdade Nº 2. 2ª Ed. Somos Sem Terra. São Paulo, julho de 2003.

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não tivessem limites no jogo político que envolvia as alianças de seu governo e o próprio

Congresso Nacional.

Uma das ações apoiadas e divulgadas pelo MST, visando à aceleração da reforma

agrária no Brasil relacionava-se à elaboração e à execução de um Plano Nacional de Reforma

Agrária (PNRA), por parte do governo Lula. No editorial de junho de 2003, o Movimento

aponta que esse Plano seria fundamental para se “avançar rumo a um processo de reforma

agrária verdadeiro”. E mais:

Todos os movimentos sociais do campo já se manifestaram ao governo Lula

que é fundamental que se elabore um Plano Nacional de Reforma Agrária.

Um plano que expresse claramente os compromissos e as características das

mudanças na propriedade da terra e na reorganização da agricultura

brasileira, que fixe as metas de assentamento, estabeleça as necessidades de

recursos públicos e que norteie as ações de todos órgãos públicos

relacionados com a reforma agrária. Pois é urgente que se inicie logo a

elaboração desse plano. Quanto mais esperar para elaborar este Plano, mais

insatisfação e insegurança se criará no campo924.

O MST visualizava, a partir da elaboração do PNRA do governo Lula, pontos

ambiciosos: “mudanças na propriedade da terra” e “reorganização da agricultura brasileira”.

O Movimento imaginava um plano com potencial para diminuir a concentração de terras e

alterar o predomínio das grandes monoculturas voltadas para a exportação, a partir da

produção diversificada das pequenas e médias propriedades, responsáveis diretas pelo

abastecimento do mercado interno. Mais que isso, o Plano também se caracterizava como

fundamental para acabar com as tensões e lutas no campo.

No primeiro ano da gestão do governo Lula, por meio do MDA, uma equipe técnica

coordenada por Plínio de Arruda Sampaio foi convidada a elaborar o PNRA e apresentá-lo ao

governo. Essa equipe foi composta por relevantes pesquisadores na área da questão agrária

brasileira. São eles: Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançano Fernandes,

Fernando Gaiger da Silveira, Guilherme da Costa Delgado, José Juliano de Carvalho Filho,

Leonilde Sérvolo de Medeiros, Pedro Ramos e Sérgio Pereira Leite. Contou-se também com a

participação de funcionários do INCRA e de movimentos sociais.

O Plano elaborado pela equipe de Sampaio estabelecia a aquisição de terras por meio

de desapropriação, regularização, permuta, compra e venda, e tinha como meta assentar um

924 Por um Plano Nacional de Reforma Agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2003, ano XXI, n. 230, p. 2.

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milhão de famílias entre os anos de 2004 e 2007925. Durante sua elaboração, o MST se

manifestou amplamente favorável ao Plano, pois se esse não “resolvesse” a questão da

reforma agrária, ao menos “avançaria” na desapropriação de terras e na construção de

assentamentos926. De acordo com Sampaio e José Juliano de Carvalho Filho, o trabalho de

elaboração do PNRA teve como objetivo deflagrar “o tão necessário processo de

transformação no latifúndio e ao avanço do agronegócio”, visando à redução do “grau de

concentração da terra, incorporando à sociedade parcela significativa da população excluída

ou em vias de exclusão”927.

Para Plínio e sua equipe, os gastos para executar o Plano eram “perfeitamente

viáveis”928. Ao ser entrevistado por Sue Brandford, em julho de 2004, Sampaio entendia que

o plano era “razoável”: “Eu achava que o nosso programa era bastante razoável, mas ele

assustava muita gente”929. Destaque-se que o PNRA, mesmo não prevendo abalar a estrutura

fundiária do país, foi rejeitado pelo governo Lula. A proposta aceita foi a do II Plano

Nacional de Reforma Agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio rural, elaborado

pela equipe do então ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário, Miguel Soldatelli

Rosseto. Esse plano objetivava assentar 400 mil famílias, entre os anos de 2003 e 2006;

financiar a aquisição de terras para 130 mil famílias e regularizar as terras de 500 mil

famílias930. Pelas metas, como se pode observar, o plano dava prioridade à “regularização

fundiária”, que era, para o governo, considerada um ato de reforma agrária, mas não para o

MST.

Na visão de Sampaio, articulador da proposta original do “II PNRA”, faltou “vontade

política” de Lula e de sua cúpula para implementar o Plano proposto: “O presidente poderia

ter implementado o plano com decretos presidenciais. O processo poderia ser facilitado com

mudanças de uma ou duas leis, mas isso não era necessário”931. Nessa direção, Sampaio

compreendia que a reforma agrária era (e é) uma questão fundamentalmente política.

“Reforma agrária não é um problema técnico, não é um problema agronômico, não se trata de

uma busca produtivista”. Lula tinha apoio popular para colocar a reforma agrária na ordem do

925 Ver proposta original do PNRA apresentada pela equipe de Sampaio ao Governo Lula em: Proposta de Plano

Nacional de Reforma Agrária. In: Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA. São Paulo, v.

32, nº 1, p. 108-186, ago./dez. de 2005. 926 MAURO, G., O significado da Reforma Agrária para os movimentos sociais, p. 357. 927 SAMPAIO, P. A; CARVALHO FILHO, J. J., Editorial, p. 7. 928 SAMPAIO, P. A; CARVALHO FILHO, J. J., Editorial, p. 7. 929 SAMPAIO, Plinio de Arruda. Entrevista concedida a Sue Branford, em São Paulo, 16 de julho de 2004 apud

BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 421. 930 Ver: Ministério do Desenvolvimento Agrário. II Plano Nacional de Reforma Agrária. Brasília, s\d. 931 SAMPAIO, Plinio de Arruda. Entrevista concedida a Sue Branford, em São Paulo, 16 de julho de 2004 apud

BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 421.

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dia e angariar apoio urbano e, segundo Sampaio, não fez essa opção porque a reforma agrária

não era mais assunto prioritário em seu programa de governo932.

Para Sampaio e Carvalho Filho, o II PNRA original foi “mutilado” pelo governo,

transformado em um mero plano de assentamentos rurais. Deixou de ser “estrutural” para ser

“compensatório”933, e, mesmo assim, não foi executado em sua plenitude de metas e não

obteve sucesso934. A reprovação do II PNRA, elaborado por Sampaio e sua equipe, já

evidenciava as tensões e os caminhos que o governo Lula iria trilhar face à reforma agrária.

Porém, essa ação/rejeição do governo não era esperada pelo MST e por outros movimentos

sociais do campo, que apoiavam o Plano e tinham esperanças no avanço da reforma agrária.

Outra ação do governo Lula que sinalizava para o não enfrentamento ao latifúndio e

aos ruralistas, também ocorrida em seu primeiro ano de governo, é a relativa à substituição do

representante de movimentos sociais no INCRA. Com a vitória de Lula, os movimentos

sociais do campo participaram da indicação de nomes para cargos do “segundo escalão” do

governo. O MST e a CPT tiveram forte influência na indicação de nomes para o INCRA,

inclusive na do nome de Marcelo Resende para presidente, que, na época, trabalhava no

Instituto de Terras do estado de Minas Gerais, na gestão do governador Itamar Franco.

Durante os oito primeiros meses do governo Lula, concomitante com a elaboração do

II PNRA, Marcelo Resende, à frente do INCRA, desenvolveu um conjunto de políticas para

atender os assentados que viviam em condições precárias sem, por exemplo, assistência

técnica e educação. Resende também tratou os conflitos agrários como um problema a ser

resolvido com uma política de reforma agrária, assim, buscou solucionar os conflitos por meio

do diálogo e traçou alternativas políticas para assentar famílias e melhorar as condições das

que já tinham seu pedaço de chão. A postura de Resende incomodou grupos ruralistas e “o

alto escalão do PT pressionou Lula para que o presidente do INCRA fosse substituído”935.

A substituição de Marcelo Resende, com o aval de Lula, também foi uma pista de que

o governo não iria encarar a reforma agrária como uma prioridade para o desenvolvimento

nacional. Todavia, o Movimento havia estabelecido uma relação de confiança com o

“presidente do povo” e acreditava que ele cumpriria seu compromisso histórico de fazer a

reforma agrária no Brasil. O título do editorial de novembro de 2003 é Governo assume

compromisso de acelerar a reforma agrária em 2004. Nesse editorial, o Movimento faz

932 SAMPAIO, P. de A., A Reforma Agrária que nós esperamos do Governo Lula, p. 332. 933 SAMPAIO, P. A; CARVALHO FILHO, J. J., Editorial, p. 8. 934 Conforme Fernandes, em seus dois mandatos, Lula conseguiu alcançar em 37% a meta que o próprio governo

estabeleceu (2013, p. 195). 935 FERNANDES, B. M., Vinte anos do MST e a perspectiva da Reforma Agrária no Governo Lula, p. 287-288.

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críticas às ações do governo, considera-o “moroso” e sem “efetividade”936, mas o fato de Lula

e sua equipe terem participado de uma Conferência organizada pelo MST e pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em Brasília, no dia 21

de novembro de 2003, fez com que a chama da esperança se acendesse novamente na

organização do Movimento:

A simbologia da visita do Presidente da República representou o

compromisso formal do governo em realmente priorizar a Reforma Agrária

para 2004, reafirmando que é uma questão de honra e que não faltarão

recursos para sua implementação. Colocou-se como um verdadeiro militante

da causa937.

A representação do presidente, pelo MST, pautava-se pelo quesito “honra” e pelo

“compromisso histórico” de Lula com a reforma agrária, desde a década de 1980. Nesse

editorial, o presidente é representado como “um verdadeiro militante da causa” dos sem-terra.

Obviamente que, em um evento dos sem-terra, Lula não iria se colocar contrário às suas lutas,

ele tinha uma extraordinária retórica para cativar os sem-terra e nunca disse que não faria a

reforma agrária. O seu discurso era sempre positivo, pedia calma aos trabalhadores, pois faria

uma reforma agrária cautelosa e cuidadosa. No início de seu primeiro mandato, o governo

Lula era “evasivo” quanto à reforma agrária, com o argumento de que era preciso “colocar a

casa em ordem antes de poder implementá-la”938.

Em 2004, Branford entrevista Miguel Rosseto, ministro do MDA, que afirmou: “O

presidente Lula está totalmente comprometido com a causa dos sem-terra” [...] “Ele vai

encontrar de algum modo os recursos necessários. O programa precisou ser modificado não

por ser custoso demais, mas não por ser realista, considerando a atual correlação de forças

sociais, econômicas e políticas”939. A fala de Rosseto é típica de alguém que estava no

governo e precisava passar uma imagem de comprometimento acerca dos governantes. Ao

dizer que Lula estava “totalmente comprometido com os sem-terra”, mostra-se um pouco

exagerado, pois, passados um ano e meio de governo, havia poucas evidências de que a

reforma agrária seria tratada como questão prioritária. O Ministro ainda cita que o PNRA,

936 Governo assume compromisso de acelerar a reforma agrária em 2004. Jornal Sem Terra. São Paulo,

novembro de 2003, ano XXII, n. 235, p. 2. 937 Governo assume compromisso de acelerar a reforma agrária em 2004. Jornal Sem Terra. São Paulo,

novembro de 2003, ano XXII, n. 235, p. 2. 938 BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 418. 939 ROSSETO, Miguel. Entrevista concedida a Sue Branford, Brasília, 14 de julho de 2014 apud BRANFORD,

S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 423.

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elaborado por Sampaio e sua equipe, não era “realista”, considerando a correlação de forças.

Entende-se que esse argumento não tinha sentido, posto que havia um contexto em que a

correlação de forças era favorável com a eleição de Lula. O presidente conquistou amplo

apoio popular, e suas medidas seriam respaldadas por isso. Acredita-se que o PNRA poderia

não ser “realista” para algumas alianças petistas; e para os interesses da bancada ruralista no

governo.

Diante da não aprovação do PNRA original, o MST jogava o jogo do governo, no

sentido de exigir o cumprimento das metas que o próprio governo estabeleceu. E suas

esperanças ainda continuavam fixadas na figura de Lula e do PT, como pode ser observado no

editorial de março de 2004 do Jornal Sem Terra: “Mas isso tudo não deve nos desanimar. Nós

temos o compromisso histórico do PT e do governo Lula de que a reforma agrária seria

prioritária. Agora temos o compromisso por escrito de assentar 400 mil famílias nestes três

anos que restam”. A crença no governo Lula era latente, o Movimento entendia que ele

deveria ter “consciência de que, sem uma reforma agrária ampla e prioritária, não poderia

atacar o maior dos problemas do Brasil: o desemprego e a miséria no meio rural”940. O

Movimento, ao efetuar a representação do PT e de Lula, continuava se amparando nos

discursos e apoios de Lula advindos da década de 1980. Assim, não refletia criticamente sobre

as forças que compunham o jogo político. Havia críticas a algumas ações do governo, mas

elas eram genéricas e não expunham pejorativamente o presidente Lula.

Ao final de cada ano, costumeiramente, o Jornal Sem Terra fazia os balanços das suas

ações e das do governo. Nos editoriais, em relação à reforma agrária, permeavam cobranças

relativas aos compromissos do governo Lula para com os trabalhadores rurais sem-terra. Nas

concepções do MST, a reforma agrária no país caminhava lentamente, a passos de tartaruga,

como está representado na charge do editorial de dezembro de 2004 e janeiro de 2005.

940 É preciso mudanças já, mas elas só virão com mobilização. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 2004, ano

XXII, n. 238, p. 2.

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Imagem 73 – Reforma Agrária tartaruga

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2004 e jan. de 2005, ano XXIII, n. 247, p. 2.

A charge é de autoria de Baraldi, e foi publicada no editorial intitulado 2005: um ano

de mudanças. O próprio título do editorial se refere às expectativas do MST de que o ano de

2005 seria de mudanças; e, no mínimo, diferente dos dois primeiros anos de governo Lula que

haviam se passado no. O cenário da charge é uma estrada, semelhante a uma pista de corridas

de automóveis, como se pode perceber pela indicação linha de chegada e pela faixa

estampada com o número “2005”. No fundo, uma paisagem bonita, com montanhas, flores,

pássaros voando, nuvens e um sol radiante no canto superior esquerdo. O “carro de corridas”

é representado, de forma inusitada e bem humorada, por uma tartaruga que traz em seu casco

a seguinte expressão: “reforma agrária”. Atrás da tartaruga, há três trabalhadores rurais sem-

terra empurrando-a e dizendo: “mais rápido, mais rápido!”. Essa charge é semelhante à da

imagem 72, em que os trabalhadores empurram o trator da reforma agrária conduzido por

Lula e solicitam que ele ande “mais rápido. Na imagem agora analisada, os trabalhadores

empurram a tartaruga da reforma agrária, sugerindo que ela se apresse.

Fator interessante para reflexão na charge é o semblante da tartaruga: ela parece

bastante feliz. Outro dado que chama a atenção é o relativo à ação, efetuada pela tartaruga, de

colocar a língua para fora. Essa ação é semelhante à de Lula nas representações em charges

produzidas por Baraldi. A língua para fora contribui para o tom de humor e suaviza a imagem.

Além disso, as charges fazem crítica política pelo fato de o governo Lula estar

devagar em relação à reforma agrária, aos processos de desapropriação de terras e construção

de assentamentos. Na charge referente à imagem 73, a reforma agrária caminha a passos de

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tartaruga. Observa-se que nessa imagem não se registra Lula no rosto da tartaruga, um fator

importante por evidenciar o respeito e a não exposição da figura do presidente ao ridículo.

Sublinhe-se que, se a referência fosse ao presidente FHC, talvez, houvesse, no rosto da

tartaruga, imagem sinalizando para a representação de FHC, no sentido de ridicularizá-lo,

como se percebeu, ao se analisar o período referente aos seus governos. Chamam também

atenção, na charge do editorial de dezembro de 2004 e janeiro de 2005, as rodas no lugar dos

pés da tartaruga, o que demonstra que seria possível à tartaruga reforma agrária agir com

mais desenvoltura e caminhar mais rápido.

Analisa-se que, no editorial, o MST destaca que a reforma agrária estava lenta devido

a três principais razões:

Primeiro: o Estado brasileiro está organizado para ajudar os ricos e o poder

econômico. Mesmo quando o Governo toma decisão de ajudar os pobres, o

Estado não consegue chegar até eles. Em segundo lugar, a ofensiva

ideológica que os setores conservadores do agronegócio fizeram contra a

reforma agrária. O agronegócio quer expandir economicamente sobre o

latifúndio improdutivo e, para isso, precisa impedir a reforma agrária.

Felizmente, a verdade começa a aparecer e o fôlego do agronegócio diminui.

Para completar, a política econômica do governo prioriza e estimula apenas

o superávit primário, as altas taxas de juros e as exportações. Com isso,

concentra renda, estimula apenas o mercado externo e não gera emprego941.

Na concepção do Movimento, a reforma agrária estava a passos de tartaruga devido à

estrutura do próprio Estado brasileiro e às opções da política macroeconômica do governo

Lula. Assim, prevaleciam os interesses dos “ricos” e, no campo do “agronegócio”. O MST

considerava o governo conservador, entretanto, não o combatia por meio do discurso, tal

como fazia com governos anteriores. Pelo contrário, o Movimento, nesse mesmo editorial,

exime Lula e sua equipe do conservadorismo e da lentidão da reforma agrária: “Temos

consciência de que não se trata de falta de vontade política do presidente e de sua equipe942”.

Desse modo, havia evidente tentativa de não expor Lula e não associá-lo como responsável

direto pelo fato de a reforma agrária não caminhar de forma acelerada. Aliás, sentimentos de

esperança e otimismo no “presidente do povo” permaneciam e era preciso auxiliá-lo na

missão histórica de fazer a reforma agrária andar a passos rápidos.

A análise de diversos editoriais do Jornal Sem Terra permitiu observar que, até o ano

de 2007, o MST tecia críticas ao “governo Federal”, sobretudo, em relação às ações relativas

941 2005: um ano de mudanças. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2004 e jan. de 2005, ano XXIII, n. 247, p. 2. 942 2005: um ano de mudanças. Jornal Sem Terra. São Paulo, dez. de 2004 e jan. de 2005, ano XXIII, n. 247, p. 2.

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à reforma agrária e à política econômica do país. Todavia, os discursos eram brandos e as

representações sobre Lula não o expunham pejorativamente. As representações levavam à

compreensão, por parte do MST, de que havia compromissos históricos entre Lula, os sem-

terra e reforma agrária, assim, elas definiam que cobrar o presidente era necessário e legítimo.

No transcorrer da Marcha Nacional do MST, em Brasília, no dia 17 de maio de 2005,

o MST teve mais uma audiência com o presidente Lula. Nessa audiência participaram os

integrantes da Direção Nacional do Movimento, representantes de entidades (UNE, CUT,

Conselho de Religiosos do Brasil, Movimento dos Direitos Humanos) e representantes do

governo, dentre eles: Miguel Rosseto, ministro do Desenvolvimento Agrário, e o presidente

do INCRA, Rolf Hackbart. Nessa ocasião, novamente, Lula coloca o boné do MST. Contudo,

isso não gera a mesma polêmica como da primeira vez, em 2003. E, mais uma vez, o

Movimento demonstra confiança no governo Lula, em especial, porque Lula e seu governo

haviam “acordado” com a organização do Movimento sete pontos a serem desenvolvidos e

priorizados, sendo eles: “cumprimento das metas do Plano Nacional de Reforma Agrária

(PNRA) em 2005”; “revisão dos índices de produtividade”; “reestruturação e fortalecimento

do Incra”; “priorizar, na seleção para os assentamentos, observadas as demais condições

legais, os trabalhadores em acampamentos mais antigos”; “assegurar uma cesta básica mensal

para todas as famílias acampadas”; “descontingenciar os recursos do Programa Nacional de

Educação na Reforma Agrária – PRONERA”; “mais qualidade para os assentamentos –

acesso ao crédito pelos assentados”943.

Após essa audiência, o Movimento passa a cobrar o “acordado” com o governo, e os

editoriais refletem a impaciência com o tratamento dado à reforma agrária. No editorial de

julho de 2005, o MST enfatiza:

[...] estamos esperando que o Governo faça a sua parte e cumpra os setes

compromissos que assinou conosco na chegada da Marcha a Brasília. Das

responsabilidades assumidas, houve avanços na distribuição de cesta básica

às famílias acampadas, nas novas linhas de crédito para assentados e

assentadas e na contratação de servidores do Incra. Entretanto, no

fundamental, a reforma agrária continua parada. O Governo não cumpriu sua

meta de assentamento. O Governo não liberou os recursos contingenciados e

não editou a nova portaria dos índices de produtividade para efeito de

desapropriação944.

943 A reforma agrária na pauta do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2005, ano XXIII, n. 251, p. 11. 944 Contra o modelo neoliberal e a política econômica. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2005, ano XXIII, n. 253, p. 2.

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O tom do editorial é de cobrança ao governo Lula, contudo, o Movimento reconhece

alguns “avanços” nas ações do governo. O “fundamental” estava na paralisação da “reforma

agrária”. O editorial analisado indica que a reforma agrária estava parada devido ao “modelo

neoliberal” vigente no país e à “política econômica” desenvolvida pelo governo. Nesse

sentido, a orientação era lutar contra esse modelo e contra a política econômica, mas não

contra o governo do presidente Lula. A charge que acompanha o editorial, de autoria de

Baraldi, representa a impaciência e a insatisfação do Movimento com relação à lentidão do

governo Lula em construir assentamentos.

Imagem 74 – Enche o “tanque” da reforma agrária945

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2005, ano XXIII, n. 253, p. 2.

Um caminhão de porte pequeno está estacionado para abastecimento. Nele, estão

quatro trabalhadores rurais sem-terra: um conduzindo o veículo (um homem) e três na

carroceria (um homem, uma mulher e um jovem). Na carroceria do caminhão, o seguinte

dizer: “Reforma Agrária”. O frentista, responsável pelo abastecimento, é o presidente Lula.

Com a bomba de abastecimento na mão, Lula apresenta-se tenso e envergonhado – na bomba

do “superávit primário” parece não haver combustível para o caminhão da reforma agrária.

As expressões faciais dos quatro trabalhares rurais evidenciam descontentamento com a

situação. Eles cobram ação do presidente: “Enche o tanque ou esse troço não anda”, diz o

condutor do caminhão a Lula.

945 A imagem está um pouco fosca, o que prejudica sua visualização. Todavia, ela foi impressa no Jornal Sem

Terra desta forma.

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A charge apresenta o contexto vivenciado pelo MST. O Movimento apoiou Lula

durante toda a trajetória política e sempre enfatizou que o petista era o “único” presidente com

perspectivas para realizar uma reforma agrária “ampla” e “massiva”; entretanto, na gestão do

presidente, não se visualizavam muitos resultados quanto à desapropriação de terras e à

edificação de assentamentos. Nesse editorial, o Movimento salienta que o governo Lula

estava “em dívida com o MST, com as famílias acampadas e com a sociedade brasileira, que

espera que ele realize, verdadeiramente, a reforma agrária”946.

O editorial de setembro de 2005 estampa em seu título: Compromissos precisam ser

honrados. O título faz alusão aos sete pontos “acordados” entre MST e o governo Lula, em

audiência, no final da Marcha Nacional. A charge desse editorial também tem um tom de

cobrança. Para o MST, Lula estava “em dívida”947 com os sem-terra.

Imagem 75 – Compromissos precisam ser honrados

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2005, ano XIV, n. 255, p. 2.

A charge, de autoria de Baraldi, carrega em seus traços uma carga humorística digna

de nota. Três trabalhadores rurais sem-terra, um sobre o ombro do outro formando uma

escada, desenrolam um papel enorme contendo os sete compromissos “acordados” com o

MST. À frente do papel desenrolado, está Lula, pensativo, língua de fora, com uma caneta na

946 Contra o modelo neoliberal e a política econômica. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2005, ano XXIII, n. 253, p. 2. 947 Compromissos precisam ser honrados. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2005, ano XIV, n. 255, p. 2.

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mão e assinando o papel. As expressões faciais dos trabalhadores sinalizam sarcasmo, no

sentido de provocarem o presidente. O trabalhador que está no topo, segurando o papel fala:

“Palavra é dívida, Lulão”. A representação do MST, via charge, é de cobrança e insatisfação

com relação às ações ou à falta delas no governo Lula no que diz respeito à reforma agrária.

Todavia, paralelamente, na charge, parece evidenciar-se certa cumplicidade e proximidade

entre Movimento e Lula, na medida em que um dos trabalhadores refere-se ao presidente

como “Lulão”, de forma coloquial. Desse modo, o MST dá a entender que eles são

companheiros e compartilham de concepções ideológicas há bastante tempo. Nesta charge,

não há representações que ridicularizem o presidente, pelo contrário, sua imagem é engraçada

e genuína.

Os dados sobre a reforma agrária no governo Lula também foram salientados em

diversas edições do Jornal Sem Terra, todavia, de forma menos ostensiva em comparação a

governos anteriores. E, nos discursos produzidos, não há representações de Lula como

mentiroso, com nariz de Pinóquio, como aconteceu com FHC. Os discursos, durante o

governo Lula, não são desrespeitosos, mas há um tom de cobrança ao governo, visando a que

ele acelere o processo de reforma agrária no país. O nome e a imagem de Lula quase não

aparecem nos editoriais que fazem os balanços anuais sobre a reforma agrária no país, outro

aspecto relevante. As representações desses balanços estão associadas à figura do ministro do

Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto.

Vale lembrar, porém, que, ao final do primeiro mandato de Lula, as frustrações do

MST para com o governo são evidentes, e as críticas e cobranças continuam latentes nas

páginas do Jornal Sem Terra. Apesar disso, há certa crença na vontade e nos compromissos

históricos de Lula e do PT relativos à reforma agrária.

Após o resultado da eleição presidencial de 2006, o Movimento não esconde sua

decepção com o governo, em especial, por ele não “romper com a política neoliberal

implementada pelos governos anteriores; e pela forma com que alguns setores da esquerda

copiaram a prática burguesa de fazer política”948. No editorial de novembro de 2006, em que

se refletia sobre o resultado da eleição presidencial, o MST orienta sobre o momento “de

unidade popular e luta”; e na charge, de autoria de Baraldi, há representações de

companheirismo histórico entre o MST e Lula na luta pela reforma agrária.

948 A hora é de unidade popular e luta. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2006, ano XXV, n. 267, p. 2.

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Imagem 76 – A hora é de unidade popular e luta

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2006, ano XXV, n. 267, p. 2.

O cenário da charge é muito bonito e a impressão em cores do jornal contribui para

destacar os diversos elementos que compõem a imagem. Visualiza-se um lugar no campo, dia

de sol, com flores, montanhas, nuvens e pássaros voando, o que dá harmonia ao ambiente. A

cena de fundo da charge é muito semelhante à da imagem 73 (também de autoria de Baraldi),

com elementos semelhantes; a diferença é que aquela está em preto e branco. Com relação

ainda aos elementos que participam da charge ora analisada, verificam-se algumas pessoas

que se destacam: dois homens, uma mulher, uma criança e o presidente Lula. Elas olhavam

para Lula e expressavam felicidade pela vitória do petista para seu segundo mandato. Um dos

homens e a mulher seguram enxadas, instrumento típico dos trabalhadores do campo. No

centro da imagem: um dos trabalhadores aperta a mão do presidente Lula e, com olhar sério,

diz: “Não basta só vestir o boné, tem que fazer a reforma agrária pra valer, heim!”. Lula,

vestindo terno e gravata e usando o boné do MST na cabeça, olha para o trabalhador. Seu

olhar sugere que ele se sente envergonhado e constrangido com a situação.

A charge representa um ambiente harmonioso, mas, ao mesmo tempo marcado pela

cobrança do MST para com Lula e seus compromissos de governo. O gesto de apertar a mão

do presidente é significativo, pois, mesmo decepcionado com alguns caminhos trilhados pelo

governo, o Movimento está com Lula. O laço histórico entre MST e Lula continua

estabelecido e, por parte da Direção Nacional do Movimento, há a esperança de que a

“reforma agrária pra valer” ainda poderia ser realizada pelo presidente do povo.

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No início do segundo mandato do presidente Lula, em janeiro de 2007, o MST publica

o editorial com o título: Os entraves da Reforma Agrária. A partir das alianças políticas do

governo petista e considerando a continuidade da política econômica, o MST entende

vivenciar “um cenário sombrio” para a reforma agrária949. Para o Movimento, havia três

fatores que emperravam a reforma agrária no país, sendo eles: orçamento financeiro reduzido;

proteção ao latifúndio pela própria máquina do Estado; e a concentração de terras. O MST,

em tom de insatisfação com as políticas do governo para o campo, enfatiza que o governo

Lula, assim como os anteriores, se mostrava “inoperante”, “ineficaz” e “conivente”950 com o

latifúndio. As ações do governo Lula iam de encontro às concepções ideológicas do MST, na

medida em que não se fundamentavam no enfrentamento ao latifúndio e na desconcentração

fundiária. A charge publicada nesse editorial, de autoria de Baraldi, representa a insatisfação

do MST e a cobrança de ações efetivas por parte de Lula.

Imagem 77 – Os entraves da reforma agrária

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2007, ano XXV, n. 269, p. 2.

Irônica, a charge carrega um tom político significativo. Dois personagens

protagonizavam um diálogo: do lado direto, o “Brasil”, representado pelo mapa do país; do

lado esquerdo, Lula. Com semblante de insatisfeito, bravo, com os braços abertos e a mão

direita segurando um impresso, cujo título é “Reforma Agrária urgente” , o Brasil exclama

para o presidente: “Lulão, sem isso eu não vou pra frente”. Com sua vestimenta presidencial e

949 Os entraves da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2007, ano XXV, n. 269, p. 2. 950 Os entraves da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2007, ano XXV, n. 269, p. 2.

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o corpo levemente encolhido, Lula estende a mão esquerda para pegar o impresso. Há, na face

de Lula, evidente tensão e todo seu corpo demonstra apreensão e vergonha diante da situação,

não sabe bem o que fazer. Em contrapartida, o Brasil demonstra convicção frente ao contexto

vivenciado e sinaliza que, daquela forma não podia continuar, pois o país “não iria pra

frente”.

Na charge, sugestivamente, registra-se o Brasil (o MST) chamando o presidente de

“Lulão”, uma referência informal, indicativa de proximidade e intimidade, situação inusitada

entre grupos sociais e um presidente. No caso, o Brasil falava com a boca da Direção

Nacional do MST, que considerava o presidente como um companheiro de lutas e amigo do

Movimento. Apesar de insatisfeito e bravo com as ações do governo Lula face à reforma

agrária, a dimensão do respeito e da proximidade histórica entre Lula e MST mantinham-se.

O presidente não é ridicularizado ou mostrado de modo estereotipado por meio de

representações que possam identificá-lo como mentiroso e inimigo da reforma agrária,

embora as políticas de seu governo, no que diz respeito à reforma agrária, deixassem a

desejar.

O MST cobra do governo Lula que era a “hora” de “promover as mudanças estruturais

exigidas pelo povo brasileiro e que se espalham pelo continente latino-americano”951. Nota-se

essa cobrança por parte do Movimento no início do segundo mandato de Lula, isso porque,

até aquele momento, a Direção Nacional tinha resquícios de esperança quanto às ações do

governo Lula perante a reforma agrária e outras “mudanças estruturais” exigidas, sendo a

transformação da política macroeconômica a mais desejada. Nesse sentido, as representações

sobre Lula e sobre as possíveis ações de seu governo ainda eram tratadas com certo

romantismo, em vista de ideias compartilhadas entre ambos em tempos pretéritos.

Analisa-se, a partir do Jornal Sem Terra, que, durante o segundo mandato de Lula, os

editoriais começaram, paulatinamente, a ser mais objetivos e menos românticos quanto à

realização de uma reforma agrária ampla e massiva, opção cada vez mais distante no governo

Lula. Apesar disso, o Movimento encorajava seus integrantes a continuarem a lutar, a

“avançar com a luta”952, pois nada era “impossível de mudar”953. Embora o contexto e as

ações do governo não privilegiassem a reforma agrária, o MST batia na tecla de que era um

“tempo de resistência e organização”954. Para o Movimento, o governo Lula passou a se

951 Os entraves da reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2007, ano XXV, n. 269, p. 2. 952 Avançar com a luta. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2007, ano XXV, n. 272, p. 2. 953 Nada é impossível de mudar. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2007, ano XXVI, n. 276, p. 2. 954 Tempo de resistência e organização. Jornal Sem Terra. São Paulo, nov./dez. de 2007, ano XXVI, n. 278, p. 2.

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preocupar mais com a “governabilidade”955 do que com questões essenciais para o

desenvolvimento do país, como a reforma agrária. É significativo mencionar que, nesses

editoriais, o MST não expunha o nome de Lula, como se ele fosse o inimigo da reforma

agrária. Pelo contrário, havia clara intenção de ocultamento do nome Lula dos editoriais, e,

quanto às referências ao governo, utilizava-se a nomenclatura “governo Federal”.

No transcorrer do ano de 2008, o MST publica no Jornal Sem Terra dois editoriais

incisivos sobre as ações do governo Lula para o campo e para a reforma agrária. Nesses

editoriais, a Direção Nacional evidencia descrença acerca de que a questão agrária no país

haveria de mudar estruturalmente com as políticas gestadas. Na edição de janeiro, estampa-se

no editorial: Um atestado de ignorância do Governo956. Ressalta-se que, a partir de julho de

2007, as charges deixaram de ser elementos constitutivos dos editoriais, como se refletiu na

introdução da tese. Um primeiro ponto a considerar neste editorial é o seu título o qual aponta

para governo e não governo Lula. Essa opção remete ao fato de não se expor o nome de Lula

como se ele fosse “ignorante”; as críticas sobre o “governo” eram legítimas, todavia, seria

prudente manter cautela em relação às representações do presidente, não o expondo como

inimigo da reforma agrária e dos sem-terra.

Assim, a Direção Nacional do MST enfatizava que a reforma agrária não se constituía

em uma “prioridade” no governo Lula, se é que tinha sido algum dia. E, o governo perdia para

“ele mesmo”, pois não conseguia atingir as metas criadas por sua própria gestão, em alusão ao

II PNRA. O tom de descrença no governo era enorme e sua “inoperância” face à reforma

agrária gerava, no Movimento, um entendimento de que ele, o governo, estava “frustrando a

expectativa histórica de fazer a reforma agrária”957.

Em agosto de 2008, o título do editorial do Jornal Sem Terra é o seguinte: Governo

abandona Reforma Agrária. Nesse editorial o nome de Lula não foi citado uma única vez e as

críticas e os questionamentos se referiam ao “governo Federal”. Tentativa de resguardar,

mais uma vez, o presidente e de não associá-lo às representações de abandono da reforma

agrária. Na concepção do Movimento, o governo criava justificativas ineficazes para explicar

o porquê a reforma agrária não avançava, sendo uma delas a de que se estava “qualificando”

os assentamentos anteriormente criados958. Ou seja, era preciso, primeiramente, dar suporte

técnico aos assentamentos criados, para depois desapropriar mais áreas e criar outros

955 Nada é impossível de mudar. Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2007, ano XXVI, n. 276, p. 2. 956 Um atestado de ignorância do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2008, ano XXVI, n. 279, p. 2. 957 Um atestado de ignorância do Governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, janeiro de 2008, ano XXVI, n. 279, p. 2. 958 Governo abandona reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2008, ano XXVI, n. 285, p. 2.

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assentamentos. No entendimento do MST, a reforma agrária havia sido “abandonada” pelo

governo Lula pelo fato de ter priorizado o agronegócio como modelo de desenvolvimento

para o campo.

Mas, será que o governo Lula optou pelo agronegócio, priorizando-o em seus dois

mandatos? Lula, após seus governos, entendia que havia cumprido suas metas para reforma

agrária? Como os pesquisadores avaliaram a política de reforma agrária do governo Lula?

Será que Lula desapropriou mais terras e beneficiou mais famílias em assentamentos rurais?

A princípio, considera-se significativo compartilhar o balanço de governo realizado pelo

próprio Lula, no ano de 2013, em entrevista a Emir Sader e Pablo Gentili:

Esses anos se não forem os melhores, fazem parte do melhor período que

este país viveu em muitos e muitos anos. Se formos analisar as carências que

ainda existem, as necessidades vitais de um povo na maioria das vezes

esquecido pelos governantes, vamos perceber que ainda falta muito a fazer

para garantir a esse povo a total conquista da cidadania. Mas, se analisarmos

o que foi feito, vamos perceber que outros países não conseguiram, em trinta

anos, fazer o que nós conseguimos fazer em dez anos. Quebramos tabus e

conceitos preestabelecidos por alguns economistas, por alguns sociólogos,

por alguns historiadores. Algumas verdades foram por água abaixo959.

Na compreensão de Lula, grande parte do povo brasileiro ainda carecia de muitas

necessidades, porém, a partir de seu governo o país passou vivenciar dias melhores, em

especial, a população vulnerável socioeconomicamente. As considerações de Lula também

sinalizam para os caminhos favoráveis do Brasil em relação ao crescimento econômico e à

geração de empregos. Nessa entrevista, perguntou-se à Lula se ele considerava ter

correspondido às promessas de campanha. Ele não titubeou e disse que cumpriu além das

promessas: “No fim do primeiro mandato, pedi à Clara Ant960 para fazer um levantamento do

governo. Queria saber se o tínhamos cumprido. Nós mais do que cumprimos! E, no segundo

mandato, nós mais do que cumprimos aquilo que já tínhamos cumprido no primeiro

mandato”961.

Diante dessa afirmação de Lula, imagina-se que o seu governo havia cumprido

também as metas governamentais para a reforma agrária. Se a reforma foi uma promessa de

campanha e/ou de governo, conforme enfatizado pelo MST, a afirmação de Lula é limitada,

959 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, p. 10. 960 Na época, Clara Ant era assessora especial da Presidência da República. 961 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, p. 11.

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pois, de acordo com pesquisadores da área, como Leite962 e Fernandes963, em seu Governo as

metas do II PNRA não foram cumpridas e as políticas de reforma agrária deixaram a desejar.

Na entrevista citada, não se tocou ao menos uma vez nos temas reforma agrária e

MST, o que evidencia a clara seleção dos assuntos abordados. Há que registrar que, nas

edições do Jornal Sem Terra, sobretudo, no segundo mandato do governo Lula, as críticas do

MST ao governo ficam mais incisivas, especialmente, por ele ter priorizado o agronegócio e

não ter feito avançar a reforma agrária no país. Como se enfatizou no capítulo anterior, o

agronegócio se caracteriza por um conjunto de sistemas abrangentes e reúne, de forma

diferenciada, os sistemas agrícolas, pecuário, industrial, financeiro, tecnológico, científico e

ideológico.

O agronegócio deriva do modelo estadunidense chamado agribusiness. O conceito foi

elaborado por John Davis e Ray Goldberg, que tomaram como referência o agrupamento dos

sistemas agrícola, pecuário, industrial e mercantil formados na primeira metade do século

XX964. No contexto contemporâneo, o agronegócio também incorporou os sistemas financeiro

e tecnológico, além de um aparato ideológico que o lança como um modelo moderno e eficaz

de produção de alimentos, fibras e agroenergia. De acordo com Fernandes:

O agronegócio é a expressão capitalista da modernização da agricultura, que

tem se apropriado dos latifúndios e das terras do campesinato para se

territorializar. Por meio da produção de commodities, nos últimos duzentos

anos, o capitalismo uniu diversos setores de produção e criou um império

global que domina a produção agroindustrial, o mercado e as tecnologias. O

agronegócio agora compreendido pelas corporações nacionais e

transnacionais é o império que, com o apoio dos governos, se apropria de

terras em diversos países da América Latina, África e Ásia mediante um

processo recente denominado de estrangeirização da terra, land grabbing ou

acaparamiento965.

Na concepção de Fernandes, o agronegócio passou a ser, estrategicamente, a nova

denominação do “latifúndio”. Seu modelo em si não é novo e sua origem está no “sistema

plantation”, em que grandes propriedades são utilizadas na produção para exportação. Ao se

criar um aparato ideológico sobre o termo “agronegócio” e ao se suprimir a palavra

962 Ver: LEITE, Sergio. Brasil. La reforma agraria. Disponível em: http://www.agter.org/bdf/es/corpus_chemin/fiche-

chemin-167.html. Acesso em: 03/11/2014, às 15h25min. 963 Ver: FERNANDES, Bernardo Mançano. A Reforma Agrária que o Governo Lula fez e a que pode ser feita.

In: SADER, Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo;

Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013. p. 191-205. 964 Ver: DAVIS, John; GOLDBERG, Ray. A Concepto of Agribusiness. Boston: Harvard University Press, 1957. 965 FERNANDES, B. M., A Reforma Agrária que o Governo Lula fez e a que pode ser feita, p. 191-192.

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“latifúndio”, encontra-se uma maneira de se “modernizar” um modelo de produção antigo,

baseado na concentração de terras e na monocultura para exportação. Para Fernandes, o

agronegócio:

[...] procura representar a imagem da produtividade, da geração de riquezas.

Torna-se o espaço por excelência, cuja supremacia não pode ser ameaçada

pela ocupação da terra. Ele é um novo tipo de latifúndio e ainda mais amplo;

agora não concentra e domina apenas a terra, mas também a tecnologia de

produção e as políticas de desenvolvimento966.

Sob a face do moderno e do produtivo, o agronegócio teve proeminência também no

governo Lula. Conforme Guilherme Costa Delgado, este governo desenvolveu a estratégia de

se apoiar nos grandes empreendimentos agroindustriais a partir da extensa propriedade

fundiária, visando à “geração de saldos comerciais externos”. O autor destaca que, na acepção

brasileira, o agronegócio se caracterizou pela associação do grande capital agroindustrial com

a grande propriedade da terra, a partir de monocultivos. “Essa associação realiza uma aliança

estratégica com o capital financeiro, perseguindo lucro e a renda da terra, sob patrocínio de

políticas de Estado”967. Esse processo se iniciou nos governos FHC e se consolidou e se

fortaleceu nos governos Lula.

O MST criticava e combatia insistentemente o agronegócio no Jornal Sem Terra e

ressaltava que sua existência e seu fortalecimento estavam ligados às opções pelo modelo

macroeconômico desenvolvido pelo governo Lula. Nas representações do MST, o

agronegócio é visualizado como a face do atraso e da morte, o que contradiz a ideologia

capitalista de que o agronegócio é a representação da modernidade no campo. Para o

Movimento, a partir de suas concepções ideológicas, era necessário “destruir o latifúndio

improdutivo” e ao mesmo tempo “combater” o agronegócio, que “iludia” a sociedade, uma

vez que era a “recriação do modelo agrícola colonial”968. A superação e o combate ao

agronegócio previam o fortalecimento da “agricultura camponesa”, voltada ao mercado

interno e pautada na produção de alimentos saudáveis e acessíveis à população.

Para se fazer uma síntese das representações do MST sobre o agronegócio, foram

selecionadas duas charges, as quais são bem elucidativas e sugerem reflexão.

966 FERNANDES, B. M., Agronegócio: a nova denominação do latifúndio. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

agosto de 2004, ano XXIII, n. 243, p. 3. 967 DELGADO, G. C., A Questão Agrária e o Agronegócio no Brasil, p. 81; 94. 968 Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n.

241, p. 2.

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Imagem 78 – Agronegócio: o pior negócio para os brasileiros

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano XXIII, n. 250, p. 2.

Imagem 79 – Consequências do agronegócio

Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2004, ano XXIII, n. 245, p. 3.

As duas charges são de autoria de Baraldi. Uma primeira observação a ser elencada é a

relativa ao fato de o presidente Lula não aparecer nas imagens, assim não se expõe sua figura.

A primeira charge (imagem 78) foi publicada no editorial da edição de abril de 2005 do

Jornal Sem Terra e acompanhava o texto: Agronegócio: o pior negócio para os brasileiros.

Esse editorial enfatiza veemente a opção do governo Lula por continuar priorizando o

agronegócio, um modelo lesivo à grande maioria dos brasileiros; beneficia apenas alguns

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grupos de empresários e empresas nacionais e internacionais969. Na charge analisada verifica-

se um contraste um contraste visual: na parte superior há uma fachada bonita e colorida com a

escrita: “Agronegócio”; logo abaixo, um homem com cara de mau, cuja representação é a de

um típico coronel latifundiário, armado com sua espingarda de alto calibre. Esse homem diz:

“No meu tempo chamava ‘coronelismo’ mesmo... mas admito que é um nome muito mais

charmoso, sô!”, em alusão ao termo “agronegócio”, que soava e era propagado como a face

da modernidade no campo.

Nessa charge, o chão, na cor vermelha, simboliza sangue, o que se evidencia pelos

crânios e ossos humanos espalhados nesse chão. Para o MST, “a modernidade do agronegócio

é manchada de sangue e sua teoria, fundamentada na desigualdade social”970. Na charge, o

agronegócio indica a representação da morte e do atraso travestidos em “modernidade”. Essa

representação contrasta com os assentamentos idealizados pelo MST: um lugar que deve ser

bonito, florido, harmonioso, com plantios de alimentos e criação de animais diversificados.

Enfim, um lugar agradável para se viver e trabalhar. O assentamento, na concepção do

Movimento, representa a vida e a perspectiva de futuro, já o agronegócio representa a morte e

o atraso.

Nessa perspectiva, destacam-se as reflexões de Delgado, as quais sinalizam para as

consequências do agronegócio no Brasil. A primeira delas seria a “limitação das

oportunidades de emprego”, pois os “níveis de ocupação da força de trabalho envolvida na

produção de commodities são fortemente restringidos em face do padrão tecnológico

alcançado pelo sistema do agronegócio”. A outra seria a “manutenção de amplas áreas de

terras improdutivas”971, haja vista que o agronegócio busca o “controle da terra” e sua

disponibilidade para servir à “lógica rentista”972. Nessas consequências acrescentam-se os

danos ao meio ambiente, a utilização intensiva de agrotóxicos, as condições precárias dos

trabalhadores, a concentração de poder e influência política de poucas pessoas e grupos no

governo, dentre outras.

A outra charge (imagem 79) acompanha um texto da seção Estudos. O texto tem como

título As reais consequências do agronegócio. Dentre as consequências elucidadas, estão as

mencionadas no parágrafo anterior. Sublinhe-se que a representação do agronegócio e do

poder do latifúndio chama a atenção na charge. O cenário é o campo. Do lado esquerdo há um

969 Agronegócio: o pior negócio para os brasileiros. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano XXIII, n. 250, p. 2. 970 Agronegócio: o pior negócio para os brasileiros. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2005, ano XXIII, n. 250, p. 2. 971 DELGADO, G. C., A Questão Agrária e o Agronegócio no Brasil, p. 81; 94. 972 FERNANDES, B. M., Agronegócio: a nova denominação do latifúndio. In: Jornal Sem Terra. São Paulo,

agosto de 2004, ano XXIII, n. 245, p. 3.

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trabalhador rural, com seu tradicional chapéu de palha. De mãos na cintura, demonstra

desconfiança diante do que vê à sua frente: um personagem com características estranhas,

feio, tronco descoberto, e segurando na mão direita um tridente com pontas afiadas,

conhecido no imaginário popular como o garfo do diabo.

Com um olhar sarcástico, a figura diz ao trabalhador rural: “Bem-vindo ao

agronegócio! Rá, Rá, Rá...”. Atrás dela há uma fachada escrita “Agronegócio” e chamas de

fogo que parecem sair de um fundo negro. Na charge, sugere-se que o MST representa o

agronegócio como se ele fosse o próprio inferno. Essa representação é constituída pelo prisma

ideológico cristão, em que o bem e o mal estão associados, respectivamente, ao céu e ao

inferno. Desse modo, o agronegócio é associado ao mal, ao inferno. Nessa perspectiva, a

imagem explicita uma visão maniqueísta, na qual o agronegócio é demonizado pelo

Movimento. Na compreensão do MST, era impossível conviver com o agronegócio, pois

pautado numa visão prístina e cristã do processo histórico, o mal deveria ser combatido e

aniquilado.

A demonização e personificação do agronegócio como morte justificava-se, por parte

do MST, pelo fato de historicamente as grandes propriedades terem sufocado e, muitas vezes,

incorporado as pequenas propriedades aos seus domínios. Lutar contra o

agronegócio/latifúndio era, para o Movimento, enfrentar e resistir aos domínios dos senhores

do regresso. Além disso, fundamentalmente, a concepção ideológica do agronegócio colocava

em cheque a importância do campesinato (agricultura familiar) no mundo contemporâneo,

gerava conflitos e inviabilizava qualquer tentativa de democratização da terra. De acordo com

Delgado, com a forma de estruturação do agronegócio no Brasil, cria-se um obstáculo para o

desenvolvimento das pequenas propriedades, pois a tendência do agronegócio é “expelir a

agricultura familiar brasileira”973 por sua estratégia de expansão e controle de terras.

Historicamente, infelizmente, os pequenos produtores viveram às margens da grande

propriedade, em condições precárias, contudo, vivos, resistindo e produzindo.

O agronegócio, à moda brasileira, visa ao crescimento e ao desenvolvimento

econômico sem equidade, ou seja, gera desenvolvimento particular, sem perspectiva de

contribuir com a promoção social e se fundamenta em interesses particulares de poucos

grupos. Desse modo, as críticas do MST ao governo repousam fortemente no fato de Lula e

sua equipe não terem enfrentado o agronegócio/latifúndio, consequentemente, a terra

continuou concentrada e os pequenos produtores permaneceram às margens das políticas

973 DELGADO, G. C., A Questão Agrária e o Agronegócio no Brasil, p. 98.

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voltadas para o campo. Segundo Fernandes, Lula não rompeu com a “hegemonia do

agronegócio”, pelo contrário, fortaleceu-a.

Nessa direção, o Brasil continua como uma das estruturas fundiárias mais

concentradas do mundo974, e os grupos do agronegócio orientam e planejam o modelo da

agricultura e os fomentos para o campo. Para Delgado, a concentração de terras no país

“manteve-se visceralmente arbitrada pelo poder do Estado”975. Através das opções e

prioridades políticas de governos e governantes, a concentração de terras continua uma

realidade e é intocada, sob proteção do próprio Estado976. Aliás, muitos governantes e

parlamentares que compõem os poderes no Estado são ligados ao agronegócio, seja como

proprietários de grandes extensões de terras, seja como empreendedores a eles vinculados.

A concentração de terras é revelada por meio da concentração de riquezas e do

patrimônio, e por meio do controle dos bens de produção. A lógica que compõe a estrutura

fundiária brasileira se fortalece na renda e na produção das desigualdades sociais. Para

Delgado, o caráter da política fundiária brasileira é a “frouxidão”977, não há fiscalização, as

leis são ultrapassadas e com muitas brechas. Frente a essa “frouxidão”, as possibilidades de

alteração do quadro da estrutura fundiária do país se tornam ainda mais complexas e distantes.

Um exemplo elucidativo é o Índice de Produtividade da Terra brasileiro978, o qual está

defasado e não corresponde ao contexto atual. Esse índice foi criado no ano de 1975, e,

quando se cogitou a possibilidade de ele ser atualizado, em 2003, pelo governo Lula, a reação

dos grandes proprietários de terras e de suas entidades representativas foi imediata. Em

síntese, devido à pressão da bancada ruralista e dos senhores e senhoras do agronegócio, a

proposta de alteração do Índice de Produtividade foi esquecida e engavetada pelo governo

Lula.

Entre os estudiosos da questão agrária brasileira, há o entendimento de que o governo

Lula poderia ter avançado em algumas questões atinentes à reforma agrária. Contudo, a partir

de suas alianças e opções políticas, não avançou. Alguns autores como Sampaio Júnior,

Oliveira, Marcelo Resende e Maria Luisa Mendonça analisam a reforma agrária de forma

974 Ver: FERNANDES, Bernardo Mançano; WELCH, Clifford Andrews; GONÇALVES, Eliane Constantino.

Políticas Fundiárias no Brasil: uma análise geo-histórica da governança da terra no Brasil. Land Governance in

Brazil. Framing the Debate Series, n. 2. ILC, Roma, 2012. Disponível em:

http://www.landcoalition.org/sites/default/files/publication/1372/FramingtheDebateBrazil_Portuguese.pdf.

Acesso em: 06/09/2014, às 22h. 975 DELGADO, G. C., A Questão Agrária e o Agronegócio no Brasil, p. 98. 976 Ver dados sobre a concentração fundiária no Brasil em: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra,

2011. www.fct.unesp.br/nera. 977 DELGADO, G. C., A Questão Agrária e o Agronegócio no Brasil, p. 101. 978 Grosso modo, o Índice de Produtividade da Terra se caracteriza em parâmetros fixados pelo Governo Federal

para classificar uma propriedade como produtiva ou improdutiva.

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crítica e contundente durante o governo Lula. Na concepção de Sampaio Jr., a reforma

agrária, “bandeira histórica” do PT, foi “esquecida” no governo Lula. Ainda, conforme o

autor, questões como a “escassez de recursos” destinados ao MDA e ao INCRA; a “ostensiva

ausência do Estado em regiões sabidamente marcadas por violentos conflitos de terra”; e a

“renitente relutância do executivo federal em promover simples mudanças administrativas e

institucionais que poderiam facilmente desobstruir o processo de expropriação de terras e

agilizar os assentamentos”979 corroboram para o referido esquecimento.

Segundo Oliveira, Resende e Mendonça, no governo Lula houve uma

“contrarreforma” agrária980, sobretudo, porque o governo fortaleceu a “hegemonia do

agronegócio” destacada por Fernandes. Além disso, não visou à desconcentração fundiária e

implementou programas para o campo semelhantes aos desenvolvidos pelo governo FHC. De

acordo com Oliveira, a aplicação de um programa de reforma agrária significa a mudança na

estrutura pré-existente da sociedade, isto é, uma reforma na estrutura fundiária do país981.

Nesse sentido, para o autor, os dois mandatos do governo Lula “enterraram” a reforma

agrária, “desenvolvendo uma política compensatória de assentamentos, diante da intensidade

dos conflitos no campo e a pressão dos movimentos sociais de luta pela terra”982.

Na compreensão de Resende e Mendonça, se o governo Lula estivesse disposto a

realizar um amplo processo de reforma agrária, teria colocado a questão “no centro da agenda

política, como forma importante de geração de empregos, de garantia da soberania alimentar e

como base de um novo modelo de desenvolvimento”. Essa era a expectativa do MST e

daqueles que lutavam pela terra. De acordo com os autores, no governo Lula houve a

“continuidade das políticas do Banco Mundial para o meio rural”, incentivadas pelo programa

“Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural”. Assim, essa política “enfraquecia o Estado

nas suas atribuições” e concorria “com os instrumentos e recursos públicos da reforma agrária

baseada na função social da terra e legitima as oligarquias rurais”983.

No governo Lula, criou-se o Programa Nacional de Crédito Fundiário, dividido em

três linhas de financiamento: Combate à Pobreza Rural, Nossa Primeira Terra, e

979 SAMPAIO JR. P. de A., Desafio do momento histórico e lições do Governo Lula, p. 305. 980 Ver: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A Questão Agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária

no Governo Lula. In: Os Anos Lula: contribuições para um balanço crítico (2003-2010). Rio de Janeiro:

Garamond, 2010; RESENDE, Marcelo; MENDONÇA, Maria Luisa. A Contra-Reforma Agrária no Brasil. In:

MARTINS, Mônica Dias (Org.). O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e

Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004. p. 75-79. 981 OLIVEIRA, A. U., A “Não reforma agrária” do MDA/INCRA no governo Lula. Conferência Internacional

sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural - CIRADR-FAO, Porto Alegre/RS, 2006. 982 OLIVEIRA, A. U., A política de reforma agrária no Brasil, p. 6. 983 RESENDE, M; MENDONÇA, M. L., A Contra-Reforma Agrária no Brasil, p. 76.

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Consolidação da Agricultura Familiar. Os programas Combate à Pobreza Rural e Nossa

Primeira Terra eram, conforme Resende e Mendonça, “idênticos” ao Cédula da Terra e

Crédito Fundiário de Combate à Pobreza do governo FHC (analisados no terceiro capítulo).

E o Programa Consolidação da Agricultura Familiar tinha a mesma “característica” do Banco

da Terra, portanto, a “concepção central da mercantilização da reforma agrária” permanecia

“igual”. Nesse sentido, o Estado abria “mão da sua obrigação de promover a desconcentração

fundiária, mediante a distribuição de terra, para que as grandes empresas possam assumir o

controle do território agrário”984.

Brancolina Ferreira também compreende que o Programa Nacional de Crédito

Fundiário era uma “versão atualizada do Cédula da Terra e Banco da Terra”. A autora ressalta

que esse programa visava à promoção do acesso à terra “por meio do financiamento de

imóveis rurais que não se enquadrem nos preceitos da desapropriação por interesse social,

atendeu 9.186 famílias, com o financiamento para obtenção de mais de 183 mil hectares de

terras”985. Para Coca e Fernandes, no governo Lula, as ações de mercantilização da reforma

agrária foram mantidas, apenas com uma “nova roupagem”.

No Governo Lula forma mantidas as ações de mercantilização da terra

através de incentivos do Banco Mundial, as linhas de financiamento

adotadas no mandato FHC ganham nova roupagem, mas mantém a mesma

concepção de democratizar o acesso à terra através do mercado diminuindo a

participação do Estado986.

Há que sublinhar que, durante o governo Lula, o MST teceu críticas no período de

implantação dos programas citados pelo Jornal Sem Terra. Nos editoriais, as críticas eram,

de maneira geral, direcionadas, sobretudo, às políticas do campo. Por esse prisma, o

Movimento não foi incisivo ao questionar os referidos programas, como fez com os criados

durante o governo FHC. Na essência, esses programas tinham o mesmo perfil (tratados como

“reforma agrária de mercado”), mas foram vistos pelo Movimento de forma distinta, ou pelo

menos, não foram tão atacados no governo Lula. Esse fato corrobora para as reflexões

discorridas nesta tese sobre a harmonização do discurso e sobre a ocultação da figura de Lula

diante de algumas questões polêmicas.

984 RESENDE, M; MENDONÇA, M. L., A Contra-Reforma Agrária no Brasil, p. 77. 985 FERREIRA, B., A Reforma Agrária no Governo Lula – balanço: 2003 a 2005, p. 31. 986 COCA, E. L. de F; FERNANDES, B. M., Uma Discussão Sobre o Conceito de Reforma Agrária: teoria,

instituições e políticas de governo, p. 49.

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Ao analisar a reforma agrária nos dois mandatos do governo Lula, Fernandes ressalta

que esse governo Lula enfrentou “em partes” os ruralistas, pois a “maior fatia das terras

destinadas para reforma agrária em seu governo não tem origem na desapropriação, mas sim

na regularização fundiária de terras da União”987. O autor ainda destaca que houve uma

“reforma agrária parcial” no governo Lula, predominantemente fruto das pressões dos

trabalhadores rurais e dos movimentos organizados em prol da reforma agrária. Outra ação do

governo Lula que se parece com uma das ocorridas em governo anterior ao seu, é a que dá

prioridade em assentar famílias nas áreas de fronteira agrícola, tal opção não resolvia o

problema das famílias acampadas, uma vez que a maior parte delas não se encontrava nessas

áreas. Aliás, essa tinha sido uma das “promessas” do presidente Lula em audiências com o

MST. Nessa perspectiva, conforme Ferreira, “o descumprimento da promessa do governo em

priorizar o assentamento de famílias acampadas, que funcionou como incentivo a este tipo de

ação, eleva o potencial de conflito, pelas tensões acumuladas pelas longas estadias de

privação nos acampamentos”988. É possível dizer que os conflitos por terra evidenciam a

baixa efetividade, ou a ausência de políticas agrárias no contexto brasileiro.

Grosso modo, compreende-se a política de reforma agrária no governo Lula como

muito tímida, posto que as ações desenvolvidas não consideraram a reforma agrária como

prioridade para o desenvolvimento nacional e não visaram a alteração, mesmo que mínima,

da concentração de terras no país. Pelo contrário, houve o fortalecimento considerável do

agronegócio nos dois mandatos do governo Lula. Outra questão a ser ressaltada é que,

infelizmente, não houve o rompimento com a visão simplista de que a reforma agrária era

uma política de “compensação social”, pensada a partir do viés assistencialista da mera

redistribuição de terras. Essa política não foi tratada como fundamental para o

“desenvolvimento territorial”, conforme Fernandes, em que a desconcentração da estrutura

fundiária e a inserção dos assentamentos no planejamento regional dos estados são centrais.

Na visão de Branford, o governo Lula “fracassou” na implementação de uma “reforma

agrária ampla”, defendida pelos movimentos sociais e seus parceiros de lutas; as ações do

governo não “levaram a uma ruptura do velho sistema fundiário, que continuou tão

concentrado como nunca”989. Acredita-se que, junto às suas políticas sociais, de distribuição

de renda, o PT e o governo Lula perderam a oportunidade histórica de caminhar rumo à

democratização da terra e da ampliação da participação dos trabalhadores rurais na economia

987 FERNANDES, B. M., A Reforma Agrária que o Governo Lula fez e a que pode ser feita, p.192. 988 FERREIRA, B., A Reforma Agrária no Governo Lula – balanço: 2003 a 2005, p. 15-16. 989 BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 427.

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e no desenvolvimento da agricultura. E, a reforma agrária continua como um desafio no

Brasil, pois as bases e a mentalidade latifundista estão vivas e fortes como nunca.

Essa discussão remete à reflexão desenvolvida por Martins, ele afirma que a sociedade

brasileira tem uma “história lenta”, com poucas mudanças no âmbito político, social e

econômico, em que o “moderno” paga propina ao “arcaico”. “É o Brasil moderno pagando

propina ao Brasil arcaico para se viabilizar e na mediação dessa promiscuidade definindo-se

na singularidade que lhe é própria, a singularidade de um país que não fez propriamente

revoluções históricas, senão pela metade e inconclusas”990. No país, o latifúndio e a tendência

latifundista da propriedade da terra continuam a reger os fundamentos da política brasileira,

inclusive nas ações de quem não é latifundiário. O latifúndio e suas tendências estão

impregnados nas instituições e nas políticas brasileiras.

No seu livro A Política do Brasil: lúmpen e místico, Martins tece considerações sobre

as características peculiares da história política do país. O Brasil avança economicamente,

atenua socialmente e recua politicamente. “Do atraso social persistente à corrupção política

insistente, tudo se repete em proclamações e ações que anunciam o fingimento do contrário e

o imobilismo do inautêntico”991. Em outra obra, A Chegada do Estranho, o autor efetua

análise sobre a sociedade brasileira “de fachada barroca”, avaliada pelos adornos da aparência

e pela dialética das inversões. Por fora, uma fachada espetacular, bonita, acalentadora, mas,

por dentro, uma estrutura precária e frágil, que não se sustenta. Enfim, um país embriagado de

contradições sociais, políticas e econômicas, em que há uma persistência disfarçada das

práticas arcaicas992. E, quando as rupturas ocorrem, “são rupturas sem projeto, no encalço das

quais se engalfinham os que se supõem, e, indevidamente, se proclamam dotados do mandato

da história”993.

Na visão de Martins, a história brasileira é uma “história do inacabado”, e a questão

agrária no país é um exemplo dessa condição inacabada, independente dos governos e

governantes que administraram o país. Nessa direção, a sociedade brasileira é “anômala”, cujo

futuro é definido entre os “trancos e barrancos”. E, a propriedade latifundista se caracteriza

como “marco regulador” e “sentinela” dos arcaísmos presentes na sociedade e na política

brasileira. “Ela se propõe como sólida base de orientação social e política que freia,

firmemente, as possibilidades de transformação social profunda e de democratização do

990 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 8. 991 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 13. 992 MARTINS, J. de S., A Chegada do Estranho, p. 122. 993 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 15.

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país”994. Ao visualizar a propriedade da terra como centro histórico de um sistema político

persistente, Martins enfatiza o poder da questão agrária para engolir a todos e tudo, mesmo

sem que as pessoas saibam, vejam ou queiram.

O conjunto da trama social de algum modo passa por ela, por sua mediação:

das deformações da representação política no Congresso Nacional e suas

insistentes práticas fundadas na dominação patrimonial à disseminada

cultura do favor e às nossas ingenuidades políticas cotidianas. A questão

agrária, entre nós, desdobrou-se numa visão de mundo, num tipo de

mentalidade, presente e dominante até mesmo no querer cotidiano de quem

se imagina imune a ela ou com ela descomprometido995.

A sociedade brasileira ainda vive com a marca do latifúndio; contudo, não se negam

os avanços sociais e políticos conquistados nas últimas décadas, no entanto, há muito a

superar, e a reforma agrária se coloca enquanto um desafio. Ao se refletir sobre algumas

questões que envolveram o governo Lula relativas à reforma agrária, há que se ressaltar

também virtudes e avanços de suas ações. Uma questão fundamental diz respeito ao diálogo

estabelecido entre o governo e os movimentos sociais, que não foram tratados como caso de

polícia e/ou recriminados. Conforme Branford,

Mesmo com todas suas contrariedades, o governo PT, sem dúvida, trouxe

alguns benefícios para o MST: ele não reprimiu o Movimento e melhorou o

apoio do Estado para os pequenos agricultores. Durante a administração

Lula, setores do agronegócio e a mídia conservadora insistiram de forma

continuada que o governo reprimisse o Movimento, o que Lula, com a

mesma persistência, recusou-se a fazer996.

A não criminalização dos movimentos sociais por parte do Governo Federal e a

postura de diálogo foram elementos significativos de Lula na presidência. Seria muita ironia

do destino se Lula, companheiro histórico do MST e tendo compartilhado por diversos

momentos as mesmas ideias e sonhos do Movimento, o reprimisse enquanto estivesse no

Palácio do Planalto. O PT e Lula passaram por transformações no que se refere a algumas de

suas concepções políticas e ideológicas, entretanto, sua identidade e sua pertença ao mundo

dos trabalhadores permanecem vivas.

994 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 16-18. 995 MARTINS, J. de S., A Política do Brasil: lúmpen e místico, p. 18. 996 BRANFORD, S., Lidando com os Governos: o MST e as administrações de Cardoso e Lula, p. 428.

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Cumpre assinalar que, mesmo existindo uma relação de diálogo entre o governo e os

movimentos sociais, os assassinatos de trabalhadores rurais e a violência contra eles não

cessaram no governo Lula. Pelo contrário, Resende e Mendonça, por exemplo, observaram a

continuidade expressiva no panorama de assassinatos e violência contra os trabalhadores. Para

os autores, a violência no campo era fruto da concentração histórica da terra e da impunidade

diante dos casos ocorridos997.

Um exemplo de massacre bastante conhecido durante o governo Lula foi o de

Felisburgo/MG, no dia 20 de novembro de 2004. Nesse massacre, aproximadamente dezoito

jagunços liderados pelo fazendeiro Adriano Chafik Luedy invadiram o acampamento Terra

Prometida e assassinaram cinco trabalhadores sem-terra com tiros a queima roupa; feriram

outras vinte pessoas, inclusive uma criança de doze anos que levou um tiro no rosto. Na

ocasião, também atearam fogo nos barracos. Conforme Resende e Mendonça, esses

trabalhadores recebiam ameaças constantes há mais de dois anos, com o registro de inúmeros

boletins de ocorrência na delegacia local. A CPT do estado de Minas Gerais fez uma

representação junto à Secretaria de Segurança Pública e alertou para os riscos iminentes, mas

“as autoridades não tomaram medidas para evitar a tragédia”998. Outro caso com repercussão

nacional e internacional envolvendo a luta pela terra durante o governo Lula foi o da irmã

Dorothy Stang, em Anapu, Oeste do Pará. Apesar das denúncias de ameaça de morte contra a

ela, nada foi feito, e o seu assassinato revela, mais uma vez, a gravidade das ações de

violência e assassinatos contra sem-terra no Brasil.

No Jornal Sem Terra, durante o governo Lula, o Movimento fazia denúncias contra os

casos de violência e assassinatos de trabalhadores nos diversos estados do Brasil. Tais

denúncias eram efetuadas, em especial, nas seções Estados, Direitos Humanos, Estudo e

Artigos. No que se relaciona aos editoriais, verificou-se que não há registro de muitos textos

específicos que tratem da violência e da criminalização dos sem-terra, diferentemente do que

ocorreu em governos anteriores, sobretudo, no de FHC. No editorial de março de 2005, o

MST reconhecia o “esforço” do governo Lula “em não deixar impune os crimes cometidos

contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais”999. No ano de 2005, esse reconhecimento

passava pelo viés de esperança do MST, por considerar o presidente Lula como seu

companheiro na luta pela reforma agrária. Em outro editorial, já no segundo mandato de Lula

997 RESENDE, M; MENDONÇA, M. L., Violência no Campo, p. 46. 998 RESENDE, M; MENDONÇA, M. L., Violência no Campo, p. 46. 999 A ofensiva das elites. Jornal Sem Terra. São Paulo, março de 2005, ano XXIII, n. 249, p. 2.

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(2008), destacava-se: A repressão não nos cala1000. Isso em virtude dos diversos casos de

violência contra trabalhadores no Brasil.

Acrescente-se que o MST não personificava a figura de Lula como se ele fizesse parte

ou fosse culpado pelos casos de repressão e violência contra os sem-terra no transcorrer do

seu governo; o mesmo não aconteceu com o presidente FHC. Para referência citam-se dois

editoriais do Jornal Sem Terra, ambos do ano de 2010. No editorial da edição de abril,

intitulado Lutar não é crime1001 e no da edição de maio, cujo título era CNA, a nova cara da

UDR1002, o Movimento qualificava o Poder Judiciário, o Congresso Nacional, as mídias

conservadoras, as empresas transnacionais como Bunge, Cargill, Monsanto e Syngenta, a

CNA e os governos estaduais pela insistência em reprimir os trabalhadores sem-terra e

criminalizar suas ações, mas o presidente Lula não era mencionado ou personificado como

alguém que contribuía para tal situação.

O MST, ao listar alguns grupos e ao não expor Lula, como fazia costumeiramente em

relação aos presidentes anteriores, põe em evidência sua estratégia: ocultar o nome do petista,

tendo em vista que ele é um companheiro histórico na luta pela terra e que havia recebido

apoio do Movimento nos pleitos eleitorais. Entretanto, observa-se que, nos editoriais, o MST

efetua críticas ao “governo Federal” relativas à reforma agrária – que para a Direção Nacional

do MST estava “parada” – ao apoio do Estado ao agronegócio e às empresas multinacionais

que mantiveram seus negócios no campo.

No que diz respeito aos avanços do governo Lula face à reforma agrária, sublinha-se a

efetivação de algumas políticas importantes que propiciaram o desenvolvimento de muitos

assentamentos. Por exemplo, o fortalecimento do Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária (PRONERA)1003 e a criação do Programa Aquisição de Alimentos

(PAA)1004, em julho de 2003. Conforme Ferreira, no Governo Lula houve maior investimento

em assentamentos criados, como assistência técnica: “[...] a contratação de serviços de

Assistência Técnica superou em 60% a meta prevista, o que é fundamental para o

desenvolvimento dos projetos de assentamentos contemplados, se de fato for tiver, qualidade,

1000 A repressão não nos cala. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2008, ano XXVI, n. 283, p. 2. 1001 Lutar não é crime. Jornal Sem Terra. São Paulo, abril de 2010, ano XXVIII, n. 302, p. 2. 1002 CNA, a nova cara da UDR. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2010, ano XXVIII, n. 303, p. 2. 1003 Sobre o PRONERA, ver: SANTOS, Clarice Aparecida dos; MOLINA, Monica Castagna; JESUS, Sonia

Meire dos Santos Azevedo de. (Orgs.). Memória e História do Pronera: contribuições para a educação do campo

no Brasil. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2010. 1004 Sobre o PAA, ver: GRISA, Catia et al. Contribuições do Programa de Aquisição de Alimentos à segurança

alimentar e nutricional e à criação de mercados para a agricultura familiar. In: Revista Agriculturas, v. 8, n. 3, p.

34-41, setembro de 2011; e o site: http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/aquisicao-e-comercializacao-da-

agricultura-familiar.

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tempestividade e continuidade”1005. Há que se ressaltar que no governo Lula algumas políticas

foram voltadas para a recuperação de assentamentos criados até o ano de 2002, haja vista que

eles, desde sua criação, não atendiam de forma satisfatória a necessidades estruturais básicas

de modo que as famílias pudessem trabalhar e produzir.

A leitura dos editoriais do Jornal Sem Terra, dos anos de 2008 e 2010, permitiu

observar que houve diminuição considerável de textos que faziam referência ao presidente

Lula. Os editoriais efetuavam balanços sobre a política econômica brasileira e mundial, com

críticas severas ao modo de produção capitalista e às opções políticas do “governo Federal”,

principalmente, sobre o fortalecimento do agronegócio. Voltavam-se para a organização

interna, refletiam sobre os desafios vislumbrados pela frente, especialmente, sobre os

objetivos de conquistar uma reforma agrária ampla e massiva e construir uma sociedade

socialista, em que novos homens e mulheres vivessem com dignidade e justiça social1006.

Se, por um lado, Lula e PT não deram tanta atenção à reforma agrária, o MST não

deixou de lutar por ela, apesar de, em muitos momentos, ter sido romântico e acreditar que o

presidente petista conseguiria desenvolver um processo de reforma agrária amplo no país.

Nessa direção, o Movimento explicitava, em alguns editoriais do Jornal Sem Terra, o

contexto político, caracterizado por frequentes e contínuos cortes orçamentários para a

reforma agrária; entretanto continuava defendendo-a como uma das alternativas eficazes para

minimizar as desigualdades sociais, gerar renda às famílias beneficiadas, contribuir para a

produção de alimentos e dinamizar as economias regionais1007. Quando fazia referências ao

governo Lula ou diretamente à figura do presidente, o tom dos discursos era harmonioso. Era

crítico, sem, contudo, ridicularizar o presidente dos trabalhadores.

E quanto ao programa de reforma agrária, será que o governo Lula assentou mais

famílias e desapropriou mais áreas para assentamentos rurais do que o governo FHC? Sobre

1005 FERREIRA, B., A Reforma Agrária no Governo Lula – balanço: 2003 a 2005, p. 31. 1006 Recursos para os bancos, fome para nós. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2008, ano XXVI, n. 287,

p. 2; Vinte cinco anos de luta. Jornal Sem Terra. São Paulo, nov./dez. de 2008, ano XXVI, n. 288, p. 2; Só a luta

pode desmascarar as injustiças. Jornal Sem Terra. São Paulo, outubro de 2009, ano XXVII, n. 297, p. 2; A CPMI

nos convoca a novas lutas. Jornal Sem Terra. São Paulo, novembro de 2009, ano XXVII, n. 298, p. 2; Balanços

e desafios para um novo ano. Jornal Sem Terra. São Paulo, dezembro de 2009, ano XXVII, n. 299, p. 2;

Afinando a viola para 2010. Jornal Sem Terra. São Paulo, jan./fev. de 2010, ano XXVII, n. 300, p. 2; Por um

desenvolvimento popular dos assentamentos. Jornal Sem Terra. São Paulo, nov./dez. de 2010, ano XXVIII, n.

308, p. 2. 1007 Menos recursos para a reforma agrária. Jornal Sem Terra. São Paulo, maio de 2009, ano XXVII, n. 292, p. 2;

Voltar às ruas pela reforma agrária e por um Brasil sem latifúndio. Jornal Sem Terra. São Paulo, agosto de 2009,

ano XXVII, n. 295, p. 2; Contra crise, reforma agrária já! Jornal Sem Terra. São Paulo, setembro de 2009, ano

XXVII, n. 296, p. 2

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essa indagação, a análise dos gráficos a seguir, construídos a partir dos dados do

DATALUTA, poderá apontar para possíveis respostas.

Gráfico 3 – Brasil – Assentamentos Rurais (2003-2010) – Número de áreas obtidas

301

458

757

572

186118 125

41

0

100

200

300

400

500

600

700

800

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Governo Lula

Fonte: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

Gráfico 4 – Brasil – Assentamentos Rurais (2003-2010) – Número de famílias em áreas obtidas

23851

35167

89738

64682

145327496 10959

3904

0

20000

40000

60000

80000

100000

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Governo Lula

Fonte: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011. www.fct.unesp.br/nera.

Assim como no capítulo anterior, ressalta-se que não se discute na tese a estrutura e

nem a qualidade dos assentamentos criados nos governos sob análise, mas sim a quantidade

de áreas obtidas e de famílias assentadas nesses espaços. A luta pela terra e, posteriormente, a

luta para permanecer nela envolve vários e distintos fatores, todavia, as áreas obtidas e a

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394

criação de assentamentos, num primeiro momento, tornam-se basilares para legitimar e

fortalecer as políticas de reforma agrária.

Em relação ao número de áreas obtidas, representadas no gráfico 3, constata-se que o

governo Lula, no período de 2003 a 2010, obteve 2.558 áreas. Os números do período

chamam a atenção diante da significativa diferença de áreas obtidas entre o primeiro e o

segundo mandatos – no primeiro foram obtidas 2.088; no segundo, 470 áreas. O expressivo

declínio pode ser percebido, quando se avalia que os anos de 2005 e 2006, sozinhos, revelam

números mais significativos do que os relativos a todo o segundo mandato de Lula. O último

ano do segundo mandato desse governo teve um número baixíssimo na obtenção de áreas para

assentamentos rurais, totalizando apenas 3.904. Os números relacionados ao governo Lula

sobre áreas obtidas para a reforma agrária foram menores se comparados aos relacionados ao

governo FHC, que obteve 3.924 áreas. A diferença entre os dois governos foi de 1.618 áreas.

No que tange ao gráfico 2, que trata do número de famílias assentadas no governo

Lula, entre os anos de 2003 e 2010, notam-se dados semelhantes aos números de áreas

obtidas. No governo Lula, conforme os dados do DATALUTA, foram assentadas

aproximadamente 250.329 famílias no Brasil. A diferença entre o número de famílias

assentadas no primeiro e no segundo mandatos de Lula foi exponencial. No primeiro mandato

foram assentadas 213.438 famílias; no segundo, 36.891 famílias, uma diferença de 176.547

famílias entre os dois mandatos. Os números relativos aos anos 2005 e 2006, sozinhos, tal

como os das áreas obtidas, são maiores que o do total de famílias assentadas durante todo o

segundo mandato de Lula. Nessa perspectiva, em relação às famílias assentadas, o governo

FHC também assentou mais famílias que o governo Lula, com um número de 393.842

famílias. A diferença entre o governo FHC e o governo Lula em relação ao número de

famílias assentadas foi de 143.513 famílias.

Vale destacar que, talvez, o número de áreas obtidas, assim como o de famílias

assentadas no segundo mandato tenham sido reduzidos em razão da conjuntura econômica

complicada por que enfrentou o governo Lula, reflexo da crise econômica internacional

desencadeada a partir do ano de 2008. De qualquer modo, observa-se que os números

diminuíram drasticamente logo no primeiro ano do segundo mandato, em 2007, e se

prolongaram no decorrer de todo o mandato. A reforma agrária perdeu força no segundo

mandato do presidente Lula, com a queda acentuada na criação de assentamentos. Para

Fernandes as ocupações de terras também acompanharam esse movimento, despencando de

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“110 mil famílias em 2004 para menos de 17 mil famílias em 2010”1008. Diante disso,

questiona-se: será que os movimentos sociais, sobretudo o MST, não contribuíram para a

perda de força da reforma agrária, haja vista que visualizava o governo como amigo e, assim,

não tenha pressionado o bastante com ocupações e manifestações públicas para tentar alterar o

cenário? Em relação a essa indagação, é necessário fazer uma análise mais apurada, o que não

cabe aqui. Todavia, um dos fatores preponderantes para a reforma agrária ter perdido força no

segundo mandato do governo Lula foi o apoio cabal recebido por grandes ruralistas e

empresas a ele ligados, o que fortaleceu a “hegemonia do agronegócio” e a mentalidade

latifundista.

Tem-se a percepção de que o PT e a base governista do presidente Lula

compreenderam que suas ações sobre a reforma agrária foram tímidas e insuficientes. Até

mesmo os autores que escreveram sobre os feitos do governo Lula, em seus dois mandatos,

evitavam falar de reforma agrária. Sicsú, por exemplo, ao escrever sobre os “dez anos que

abalaram o Brasil”1009 não tocou uma única vez na palavra reforma agrária, como se nesse

período ela não fosse considerada um fator relevante para um projeto de desenvolvimento

nacional. Nessa direção, Araújo desenvolve uma visão simplista e parcial sobre os temas

reforma agrária e política agrícola no governo Lula. Ele não reflete criticamente sobre os

temas, apenas menciona que os números da reforma agrária geravam muitas polêmicas1010.

No texto de Araújo há intenção explícita de não polemizar as políticas, assim como os

números da reforma agrária no governo Lula.

O governo do presidente Lula avançou em algumas políticas – reassentamento de

atingidos por obras públicas, assistência técnica, créditos agrícolas, infraestrutura nos

assentamentos e diálogo com os movimentos sociais. Mas, no que tange ao número de áreas

obtidas e aos de famílias assentadas, o presidente FHC tem números mais consideráveis. Não

se questionam os avanços alcançados na gestão Lula, pelo contrário, são dignos de nota;

contudo, quando se considera que a obtenção de terras e a criação dos assentamentos são

fundamentais para outras conquistas, o governo Lula deixa a desejar, sobretudo, porque

historicamente Lula foi um entusiasta e companheiro na luta pela terra.

Compreende-se que a reforma agrária não foi encarada como uma política prioritária

no governo Lula. Infelizmente, Lula e sua equipe de governo não tiveram a mesma

1008 FERNANDES, B. M., A Reforma Agrária que o Governo Lula fez e a que pode ser feita, p.197. 1009 SICSÚ, João. Dez Anos que Abalaram o Brasil. E o Futuro? São Paulo: Geração Editorial, 2013. 1010 ARAÚJO, José Prata. Um Retrato do Brasil: balanço do Governo Lula. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2006.

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“obsessão” em acelerar o processo de reforma agrária como tiveram em quitar a dívida com o

FMI1011. Aliás, entende-se que, para além do número de áreas obtidas e de famílias assentadas

no governo Lula, ocorreu um esvaziamento político e um consequente fortalecimento do

agronegócio, fatores desfavoráveis à reforma agrária. Esse tema foi silenciado

paulatinamente, tanto que nos programas de governos posteriores quase não se falou em

reforma agrária. O esvaziamento político e o silenciamento em torno da temática reforma

agrária se caracterizam como uma barreira a mais para os trabalhadores rurais que lutam por

terra.

A princípio, os números apresentados nos gráficos 3 e 4 soam como ironia, pois o

presidente FHC, a quem o MST representou e personificou de forma ridicularizada como

inimigo da reforma agrária e das elites geriu o governo que mais obteve terras e que mais

assentou famílias. E o presidente representante dos trabalhadores no Palácio do Planalto, com

uma relação histórica muito próxima ao MST e a outros movimentos sociais de luta pela terra,

não superou os números do governo anterior e não priorizou a reforma agrária na pauta da

agenda política. Nessa perspectiva, o Movimento ficou refém de seus próprios discursos e

representações, pois a forma maniqueísta com que representou os presidentes limitava sua

visão sobre o jogo político brasileiro.

Essa postura maniqueísta do MST, pautada sob as bases de um pensamento inflexível

e cristalizado, uma luta do bem contra o mal, confrontou-se ideologicamente com os governos

e governantes e não colaborou para que se pensassem as experiências históricas do campo e

da luta pela reforma agrária. Pelo contrário, o maniqueísmo implícito e explícito nas

representações construídas sobre os presidentes FHC e Lula, no Jornal Sem Terra, gerou

dificuldades aos próprios discursos do Movimento. Acredita-se que o prisma maniqueísta é

simplista para se compreender a complexidade da atuação dos governos, governantes e da

política brasileira, conservadora por essência.

As representações do MST em relação ao presidente Lula também foram maniqueístas

e o personificaram como uma extensão dos trabalhadores na Presidência da República, sem

dar credibilidade às múltiplas e às distintas forças que compunham o Estado e o jogo político.

Por este viés, houve certo romantismo da Direção Nacional do MST, ao acreditar na conquista

da reforma agrária ampla e massiva com Lula na presidência do país. Esse romantismo advém

também da própria dificuldade do Movimento em fazer uma leitura da correlação de forças do

Estado durante o governo Lula. Por mais que Lula fosse do povo, identificado com a luta dos

1011 SILVA, L. I. L. da., O necessário, o possível e o impossível. Entrevista concedida a Emir Sader e Pablo

Gentili, p. 22-23.

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sem-terra, o Estado continuava conservador, e qualquer medida estrutural por parte do

governo, por meio de um plano que alterasse a estrutura fundiária (como desejava e deseja o

MST), teria resistência de partidos e parlamentares. Entretanto, medidas de ruptura nas

estruturas não são impraticáveis ou impossíveis, mas precisam do governo para que as

coloque em pauta na agenda política. E somente a partir de alianças político-partidárias torna-

se possível lutar por elas como algo prioritário e fundamental para o desenvolvimento

nacional. O MST tinha a crença de que Lula e o PT comprariam essa briga; contudo, após os

seus oito anos no governo, a reforma agrária, na gestão Lula, provou não ser uma exceção

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciam-se estas considerações finais, ressaltando a importância do MST para o

cenário político brasileiro e para a conquista e fortalecimento da luta pela reforma agrária no

Brasil. O Movimento luta e resiste há mais de 30 anos e se faz presente em quase todos os

estados do país – não atua apenas no Acre, na Amazônia, no Amapá. Em sua trajetória de

lutas, o MST desenvolveu uma sólida organização como movimento de caráter coletivo. Suas

ações estão registradas em inúmeras ocupações de terras, em organização de acampamentos e

assentamentos, na criação de cooperativas, de escolas. A análise crítica efetuada em relação às

representações do MST sobre os presidentes FHC e Lula não pretendeu minimizar a

importância desse Movimento para os contextos brasileiro e latino-americano.

Em suas três décadas de existência, a capacidade de enfrentar os desafios configurou-

se como a maior aliada para seu fortalecimento e fez com que o Movimento se construísse dia

após dia. Pelo fato de o MST ainda existir, a sua história está em construção e, portanto,

estudá-lo significa olhar o seu devir, ou melhor, compreender que os seus discursos e práticas,

assim como sua história, não são estáticos – estão em contínuo movimento. Certamente, a

ideia de história em construção não se limita aos estudos relacionados ao MST ou a outros

grupos existentes. A edificação do conhecimento histórico em sua essência é dinâmica, de

modo que as histórias vão sendo construídas e reconstruídas a todo o momento.

Nesse sentido, avalia-se que o estudo em torno do MST se configura como algo

sedutor; contudo, ratifica-se que não pode ser efetuado sob o prisma de que o MST é um

Movimento pronto e acabado. O MST é composto por milhares de mulheres e homens

heterogêneos e, em movimento, que imprimem um caráter dinâmico às práticas do grupo.

Assim, o Movimento vive porque existem sujeitos que o formam; sujeitos que canalizam suas

forças políticas e sociais para a resolução de conflitos tanto em acampamentos quanto em

assentamentos espalhados por todo país. Estudar o MST passa a ser também um desafio,

considerando-se a complexidade que envolve as relações tanto entre seus integrantes quanto

entre seus integrantes e pessoas que representam interesses divergentes dos do Movimento.

O objetivo da tese, como exposto na introdução, foi o de analisar as representações do

MST sobre os presidentes FHC e Lula, por meio do Jornal Sem Terra, entre os anos de 1995

e 2010. Nesse sentido, a pesquisa evidenciou as tensões em torno da relação do MST com

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esses presidentes e seus respectivos governos, chamou atenção para os discursos e as posições

políticas e ideológicas do Movimento.

Como fonte principal da pesquisa, o Jornal Sem Terra foi objeto de discussão. Esse

jornal foi criado antes da oficialização do MST no ano de 1984, e sua sistematização ocorreu

no estado do Rio Grande do Sul. O periódico nasce em forma de boletim, nomeado Boletim

Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, o Boletim Sem

Terra. A princípio sua criação tinha em vista angariar apoios (políticos e materiais) à luta dos

sem-terra no acampamento Encruzilhada Natalino, região de Sarandi/RS.

Tanto o Boletim Sem Terra como o MST surgiram em um período político tenso da

história brasileira, conhecido como transição democrática, no início da década de 1980.

Nesse contexto, o boletim se tornou um periódico de resistência e agregou a luta dos

trabalhadores rurais sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino a outras lutas e

movimentos sociais e sindicais. Naquele momento, a luta pela terra também se juntava à luta

pela redemocratização do Brasil.

Entre os anos de 1981 e 1984 o Boletim Sem Terra cresceu e se fortaleceu como

ferramenta de comunicação, formação e informação entre os trabalhadores rurais; e sua

distribuição se expandiu para além do estado do Rio Grande do Sul. Com o surgimento do

MST, em 1984, a produção do boletim passou a ser de responsabilidade do Movimento. A

partir daí, o periódico passa a ser produzido em formato tabloide, na cidade de São Paulo, e a

ter o nome de Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Jornal Sem Terra).

O MST, ao se apropriar do boletim e transformá-lo em tabloide, faz do periódico um

instrumento político de luta. Nessa perspectiva, investe na profissionalização, buscando

avanços técnicos nos trabalhos de produção da notícia e editoração. Com mais de 30 anos de

existência, o Jornal Sem Terra ampliou consideravelmente a sua produção. Nesse processo,

houve tensões e conflitos envolvendo os editores, a produção das notícias e a distribuição dos

exemplares. As diversas relações que compunham a produção do Jornal Sem Terra não foram

de todo harmoniosas, mas marcadas por tensões, como se pode percebe nas narrativas dos

editores entrevistados na pesquisa.

No processo de produção do jornal, os representantes da Direção Nacional do MST

tinham participação ativa e influência significativa nas decisões do conteúdo que deveria ser

publicado. Os discursos (textuais e imagéticos) produzidos no periódico deveriam ser

edificados conforme os interesses políticos e ideológicos do Movimento, haja vista que ele era

concebido como um instrumento político, de formação e informação dos seus integrantes. O

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público alvo do Jornal Sem Terra era formado, sobretudo, por militantes do MST; todavia,

sua distribuição também se dava para público externo à organização do Movimento.

O trabalho de comunicação do MST, para além do Jornal Sem Terra, se transformou

em uma tarefa revolucionária, em que suas mídias deveriam contrapor os discursos, em

especial, da chamada grande imprensa. Nesse sentido, a comunicação no MST transformou-

se em estratégica, e a orientação, por parte do Movimento, baseava-se no princípio de que

suas mídias deveriam primar por sua unidade política e ideológica. A partir desse

entendimento, o jornal se torna estratégico, visto pela Direção Nacional do MST como um

instrumento político para expressar as concepções políticas e ideológicas de sua organização.

Historicamente, a trajetória do Jornal Sem Terra esteve articulada à própria história do

MST, por isso ele se tornou uma fonte relevante para se analisar as heterogêneas e complexas

relações do Movimento em seu devir. Compreende-se que as histórias do Jornal Sem Terra e

as do MST estão entrelaçadas; e que o periódico se configurou como importante instrumento

político para que o Movimento construísse representações sobre as diversas relações que o

envolviam. Dentre elas, as representações sobre os presidentes brasileiros, sobretudo, FHC e

Lula, personalidades objeto de análise na tese.

As representações no Movimento foram entendidas como construções sociais das

experiências históricas, em que a Direção Nacional do MST fundamentava suas visões de

mundo a partir dos interesses do grupo. No interior da organização do MST, a partir de seus

dirigentes, havia um jogo político no qual se (re)produziam as representações, visando a

fundamentar e legitimar as concepções políticas e ideológicas do Movimento sobre os

presidentes. Nessa direção, essas representações, por meio do Jornal Sem Terra, ligavam-se

às concepções ideológicas do MST, figurado em sua Direção Nacional. Ou seja, as

representações do MST carregavam uma carga ideológica, que, por sua vez, objetivavam

direcionar a leitura política e as visões de mundo sobre os presidentes brasileiros.

Na tese há ênfase aos presidentes FHC e Lula, entretanto o MST, por meio do Jornal

Sem Terra, elaborou representações sobre os presidentes anteriores, sendo eles José Sarney,

Fernando Collor de Mello e Itamar Franco. O Movimento se declarava oposição aos três

presidentes citados e a seus respectivos governos. Em relação ao presidente Sarney, as

representações se pautavam no entendimento de que ele era representante dos latifundiários e

da continuidade da Ditadura. Assim, para o MST, na Nova República que se constituía, não

havia nada de novo.

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Por expressar os interesses dos latifundiários, Sarney também favorecia o capitalismo

no campo, a violência e a expropriação dos trabalhadores rurais. Em síntese, esse presidente

era considerado um adversário, inimigo da reforma agrária, e os discursos do Movimento

orientavam o combate ao governo Sarney. Ao representá-lo como a continuidade da Ditadura,

Sarney também significava a face do conservadorismo, um presidente autoritário, reacionário,

cínico, mentiroso e defensor dos latifundiários. Para o MST, Sarney tinha posição e lado

definidos: servir aos latifundiários e favorecer outros grupos econômicos dominantes –

reforma agrária e justiça social não estavam em sua agenda política.

A relação do MST com o presidente Collor, assim como com Sarney, foi tensa e

conflituosa. Esse presidente foi representado como alguém que estava do lado da “burguesia”,

ou seja, contra os trabalhadores. Desse modo, também era a continuidade das práticas e

modos antigos de governar, apenas vestia uma nova roupagem. A Direção Nacional do MST

não sinalizou em nenhum momento que Collor poderia fazer algo em prol da reforma agrária,

pelo contrário, sua ação era de descaso e omissão em relação à reforma agrária. E, de fato,

Collor significou um retrocesso no que diz respeito à reforma agrária, sucateou e desmantelou

as instituições que geriam e cuidavam dos processos nessa área.

Collor não representava qualquer possibilidade de mudanças, e o Jornal Sem Terra

enfatiza suas práticas de não diálogo e repressão aos movimentos sociais. O presidente e sua

equipe de governo tratavam os movimentos sociais, em especial, as ações do MST como caso

de polícia. Nesse sentido, as representações de Collor pelo Movimento associavam-no a um

“ditador”, não respeitava as leis, o Congresso e a sociedade. O presidente expressava a

manutenção do status quo combinada com repressão e truculência para com os movimentos

sociais.

Após o impeachment de Collor, ao final do ano de 1992, Itamar Franco assumiu a

presidência do Brasil. O novo presidente manteve relação de diálogo com os movimentos

sociais e chegou a receber o MST para uma audiência em Brasília, em fevereiro de 1993.

Entretanto, por suas convicções políticas e ideológicas, o MST se colocava como oposição ao

governo, que, no entender do Movimento, era “capenga”. Havia tensões entre o MST e o

presidente Itamar, uma vez que eles não apresentavam (Itamar e seu governo), segundo o

MST, nada de novo – eram conservadores e não fariam a reforma agrária almejada pela

organização do Movimento.

Omissão, enrolação e ausência de vontade política foram representações constantes

sobre a figura do presidente Itamar. Seu governo era “surdo e mudo”, não escutava os

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trabalhadores. Nos editoriais do Jornal Sem Terra, o Movimento cobrava ação do presidente

Itamar que, nas representações acerca de sua figura, era visualizado como um sujeito que

estava “perdido”, sem saber o que fazer na direção do posto máximo do Executivo Federal.

Itamar era representado como inerte, buscava desculpas e retardava questões relevantes para

os encaminhamentos nos processos de desapropriação de terras e criação de assentamentos. A

“enrolação” do presidente era tanta, na ótica do MST, que a Direção Nacional propôs que ele

pedisse “demissão”, para não emperrar o desenvolvimento do país.

Nos discursos do Jornal Sem Terra, as representações sobre os presidentes Sarney,

Collor, Itamar e seus respectivos governos sinalizavam para ações continuístas. Para

conservadorismo, favorecimento à “burguesia” e aos latifundiários, oportunismo, descaso,

omissão em relação à reforma agrária e corrupção. Nessa direção, as representações do MST

pautavam-se por uma determinada forma de ver e analisar as relações sociais, políticas e

econômicas. Os presidentes foram personificados de acordo com as ações de seu governo.

A relação entre MST e o presidente FHC foi permeada de tensões e lutas de e por

representações. No período em que foi presidente, FHC foi bombardeado por críticas pelo

MST, por meio do Jornal Sem Terra, e os acontecimentos em seu governo eram

personificados em sua figura. Em momento anterior à sua vitória eleitoral, ele não agradava à

Direção Nacional do Movimento e era considerado a continuidade do conservadorismo, a face

das elites e seu representante.

As ações do presidente FHC e seu governo foram entendidas pelo MST como

estratégicas para o fortalecimento do neoliberalismo e da submissão aos grupos econômicos

nacionais e internacionais, em especial, aos EUA e ao FMI. A resistência e oposição do

Movimento a FHC também se justificava por ele ser identificado com o modo de produção

capitalista, inclusive, em sua atuação como intelectual. Investido desse papel, FHC havia

sugerido a possibilidade de se realizar um “desenvolvimento-associado” ao Brasil e países

latino-americanos, em que os investimentos estrangeiros não seriam maléficos ao país, pelo

contrário, seriam uma mola propulsora, desenvolveriam e dinamizariam a economia dos

países dependentes. Em outras palavras, seria uma modernização do capitalismo, na qual as

mudanças sociais, políticas e econômicas, tal como a justiça social seriam alcançadas dentro

do próprio modelo. A tese de FHC se chocava com as concepções políticas e ideológicas do

Movimento, pois ele lutava (e ainda luta) por uma sociedade socialista, contra o capitalismo.

Assim, FHC e seu governo representavam o capitalismo e deviam ser combatidos.

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FHC representava o neoliberalismo no Brasil; para o MST, o presidente era um aliado

dos EUA, país que era visto como devorador do Brasil. Isto é, uma potência econômica e

militar que tinha pretensões de explorar economicamente o país e se apropriar das suas

riquezas. Nessa relação, FHC submetia o país a um papel de submissão aos EUA, ao FMI e

aos grupos econômicos internacionais, pois não tinha o controle e autonomia sobre suas

opções políticas e econômicas. Ao privilegiar um modelo de desenvolvimento econômico e

social pautado no neoliberalismo, um projeto das elites, FHC se tornava inimigo dos

trabalhadores rurais e urbanos.

A política de privações no governo FHC foi intensamente criticada pelo MST, através

do Jornal Sem Terra. Na visão do Movimento, as privatizações eram fruto do processo de

desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, e FHC entregou o patrimônio público aos

grandes grupos internacionais. O presidente, personificado nas ações de seu governo, traía o

povo e ratificava sua face elitista e submissa aos interesses das grandes potências econômicas

e instituições financeiras internacionais, em especial, aos EUA e ao FMI.

Diante da priorização de um projeto das elites para o Brasil, as representações do MST

sobre FHC se concentraram na personificação do caos social e corrupção. FHC era sinônimo

de “FHCrise”, em alusão ao fato de atribuir-se a ele a intenção de destruir o Brasil com suas

ações. A questão social deixava a desejar e o presidente, dos ricos, favorecia os interesses das

elites brasileiras e do capital financeiro internacional. O caos social referenciava-se em

diversas áreas como saúde, educação, violência, moradia, falência das empresas nacionais,

desemprego, drogas, sucateamento do serviço público, arrocho salarial, dentre outros. Para o

Movimento, o presidente foi o responsável pela multiplicação da pobreza no Brasil e pela

concentração de renda ainda mais intensa.

Em um governo permeado de crise, FHC era associado às práticas de corrupção.

Aliás, escândalos e corrupção, para o MST, eram decorrentes da natureza do neoliberalismo e

das elites. Nas representações do Movimento – por mais que os atos dissessem respeito a

pessoas ligadas ao governo de FHC e não a ele – Fernando Henrique também era

personificado nos textos e considerado tão corrupto quanto aqueles que supostamente teriam

cometido tal prática. O governo FHC envolvia-se em um lamaçal de corrupção, e o

presidente, nas representações do MST, estava todo sujo.

Outro assunto abordado nos editoriais do Jornal Sem Terra refere-se aos episódios de

violência, repressão e criminalização dos movimentos sociais, sobretudo, do MST. Aliás, a

prática do Movimento de denunciar atos de violência e de repressão sofridos pelos

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trabalhadores rurais no país, tal como a de anunciar os agressores, fortaleceu o jornal, no

sentido de ele ser enfatizado como um significativo instrumento político de luta para os

trabalhadores rurais sem-terra.

Ressalte-se que, durante os dois mandatos no governo, FHC foi representado no

Jornal Sem Terra como autoritário, uma pessoa que criminalizava os movimentos sociais. De

fato, no seu segundo mandato, FHC se utilizou de instrumentos legais e de influências

midiáticas para isolar e criminalizar o Movimento. O seu governo, além de recriminar as

ações do MST, em especial, as ocupações de áreas improdutivas e de prédios públicos, criou

um discurso de que não precisava do MST para fazer a reforma agrária, haja vista que sua

organização era violenta. Assim, passou a excluir o Movimento dos debates políticos sobre o

tema e a incriminá-lo perante a sociedade.

Em contrapartida, o MST travava uma luta por representações no jornal, pois

publicava que o presidente era autoritário e contrário às lutas legítimas dos movimentos

sociais por terra. Em vez de assentar famílias, na representação do Movimento, FHC

“assentaria o pau” nos sem-terra, ou seja, reprimiria e violentaria os trabalhadores. E mais, o

presidente, por sua omissão e descaso com a reforma agrária, era cúmplice dos assassinatos e

da violência contra os trabalhadores no campo. Conforme o MST, o perfil autoritário e

repressor de FHC evidenciava sua linha fiel aos preceitos do neoliberalismo.

Por priorizar um projeto das elites, de acordo com as representações do MST, reforma

agrária e FHC eram incongruentes. O Movimento, em nenhum momento do Jornal Sem

Terra, acenou para a possibilidade de FHC intensificar o processo de reforma agrária no país.

A opção pelo neoliberalismo como modelo de desenvolvimento fazia com que o MST

entendesse o presidente FHC e sua equipe de governo como obstáculos para a feitura da

reforma agrária. Desse modo, as ações e os programas do governo FHC, voltados para o

campo, foram alvo de críticas e repúdio por parte da Direção Nacional.

FHC era um enrolador, o presidente do “nhén, nhén, nhén e blá, blá, blá”, em

referência ao fato de dizer muita coisa, mas com palavras que não tinham sentido e nem

correspondiam a suas práticas. Nessa direção, FHC beneficiava somente os grandes

proprietários de terras e empresas ligadas às monoculturas. Outra representação acerca de

FHC, considerando a reforma agrária, era sua identificação com o personagem Pinóquio.

Assim como Pinóquio, o presidente era representado como uma pessoa de nariz enorme, em

decorrência de suas inúmeras mentiras sobre os dados e ações referentes à reforma agrária no

Brasil.

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Observa-se que, conforme o MST, o presidente FHC – visualizado, nas

representações, como mentiroso – não encarou com rigor e como prioridade a reforma

agrária. Não desenvolveu ações efetivas que objetivassem alterar a desconcentração da terra

no país. Todavia, a gestão FHC foi a que mais obteve áreas para assentamentos rurais e

beneficiou o maior número de famílias nesses espaços. Em contrapartida, o MST concentrava

suas representações nas mentiras e na manipulação de dados efetuados pelo presidente e por

sua equipe de governo. Como um mentiroso e como um presidente que “não falava nada com

nada”, FHC foi representado pelo Movimento de forma ridicularizada e as ações de seu

governo foram personificadas em sua figura.

No entendimento do MST, a tão sonhada e desejada reforma agrária ampla e massiva,

que desconcentraria a propriedade da terra viria com Lula, com sua eleição para presidente da

República em fins do ano de 2002. Pela primeira vez em sua história o MST se colocou como

parceiro de um presidente e o apoiou em seu governo. De oposição e resistência, o MST

passou a ser um aliado do novo governo e de seu comandante. A vitória de Lula foi

considerada como a “vitória do povo”; Lula foi alçado pelo Movimento com uma missão

histórica: romper com as estruturas econômica e política, combater o latifúndio, desapropriar

terras e acelerar a reforma agrária.

Lula foi visualizado pelo MST como a extensão dos trabalhadores e trabalhadoras na

Capital Federal. Nesse sentido, o seu discurso, por meio do Jornal Sem Terra, ao se referir ao

presidente se transforma significativamente. Antes da eleição de 2002, a relação MST e Lula

foi de muita proximidade, proximidade que vinha desde a década de 1980. Historicamente, o

Movimento apoiou o candidato petista em seus pleitos eleitorais nos anos de 1989, 1994,

1998, 2002 e 2006. A Direção Nacional do MST explicitava apoio a Lula abertamente nas

páginas do Jornal Sem Terra e enfatizava que o petista era um legítimo representante dos

trabalhadores e carregava em sua trajetória de vida a marca da distinção, que implementaria

um governo “popular” com a participação decisiva dos trabalhadores e movimentos sociais.

A proximidade de Lula com o MST se estabeleceu porque ele participava de diversas

atividades do Movimento e visitava assentamentos e acampamentos ligados à organização do

MST. Nessas ocasiões, Lula discursava e se colocava como um amigo e parceiro das lutas do

MST. Na leitura da Direção Nacional do Movimento, Lula era o único político candidato a

presidência que poderia fazer a reforma agrária almejada por sua organização.

O apoio histórico do MST a Lula se justificava, sobretudo, pela trajetória de vida e

política do presidente. Lula era visto como sujeito trabalhador que havia vivenciado

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dificuldades e compreendia o sofrimento dos sem-terra. Havia respeito e admiração entre

MST e Lula, sobretudo, pelo fato de eles terem compartilhado, em alguns momentos, a

concepção de reforma agrária como um fator significativo e prioritário para o

desenvolvimento nacional. Dessa forma, a relação entre eles se estruturava pautada no

respeito e reciprocidade.

Entre as décadas de 1980 e a primeira década do século XXI, Lula transforma

consideravelmente seus discursos e suas concepções políticas e ideológicas. Entretanto, o

MST, através do Jornal Sem Terra, não se preocupa em refletir sobre essas transformações.

O seu interesse direcionava-se à trajetória do trabalhador, do ex-metalúrgico e às experiências

vividas em torno de muitas dificuldades materiais e econômicas, tal como a maioria da

população brasileira. Para o Movimento, a virtude de Lula estava no fato de ele ser um

trabalhador e simpatizante de seu Movimento. Por esse prisma, havia certo romantismo por

parte do MST, pois as representações do Movimento face a Lula nas eleições de 2002 ainda se

alicerçavam no político e no líder sindical da década de 1980.

A partir dessa visão romântica, o clima de euforia e esperança contagia a Direção

Nacional do MST. Na tarefa de romper com a política macroeconômica do governo FHC e de

realizar a reforma agrária, o Movimento acredita no governo Lula e se coloca na posição de

auxiliá-lo. Porém, nos primeiros meses de governo, o Movimento evidencia certa tensão e

impaciência com os caminhos traçados por Lula e por sua equipe na área econômica. Para o

Movimento, a política econômica de Lula estava ancorada nos preceitos do governo anterior,

que era favorecer os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, em especial, os

banqueiros.

Ano a ano o MST vai demonstrando sua insatisfação com os caminhos trilhados pelo

governo na área econômica, e isso se explicita nos editoriais do Jornal Sem Terra. É

interessante pontuar que o Movimento acreditava que Lula mudaria os rumos da área

econômica, e, de certa forma, os discursos sobre isso levavam à visão de que era a equipe

econômica de Lula que não tinha compromisso com os trabalhadores. Lula era preservado das

críticas nos editoriais e as representações sobre ele não eram pejorativas e nem o

ridicularizavam.

Nessa perspectiva, analisou-se que muitos editoriais não se referiam diretamente à

figura de Lula, como se processava nos tempos de Sarney, Collor, Itamar e FHC. Houve

evidente intenção da Direção Nacional do MST em ocultar o nome de Lula diante das críticas

face ao seu governo. Uma das pistas que levaram a essa interpretação foi a estratégia de

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mencionar “governo Federal”, de forma genérica, e não governo Lula, para não expor o

presidente e/ou associá-lo às críticas. Desse modo, estabeleceu-se um processo de

harmonização do discurso no Jornal Sem Terra, em que, intencionalmente, suavizou-se a

forma de se referir ao governo e, sobretudo, a Lula. Os discursos passaram a ser mais

cautelosos, visando a não expor pejorativamente o “presidente do povo”, para o qual o MST

havia feito campanha e ajudado a eleger. Outra novidade dos discursos do jornal era a de que

o presidente não era mais a representação personificada do seu governo, como aconteceu nos

tempos do presidente FHC.

No governo Lula, deu-se continuidade a algumas características do governo FHC, em

especial, na política econômica. Entretanto, esse governo não foi idêntico ao de FHC. Pelo

contrário, afirmar isso seria limitar e simplificar as ações do governo Lula (sobretudo nas

áreas econômica e social) e o complexo e dinâmico jogo político do Estado brasileiro.

Sublinhe-se que, com o passar do tempo, o MST revela certa impaciência por

entender que Lula deveria se posicionar e declarar estar ou ao lado dos trabalhadores ou ao

lado dos ricos e poderosos; devia também ser mais “popular”, voltado aos trabalhadores e ao

desenvolvimento interno do país. Contudo, apesar da impaciência e das críticas, Lula tinha

credibilidade e respeito junto à Direção Nacional do Movimento.

O Movimento, por sua vez, não compreendia a participação do governo Lula no jogo

político e não aceitava as opções e alianças feitas por esse governo em prol da denominada

governabilidade. Para o MST, Lula andava em más companhias e se aliava a partidos e a

grupos conservadores. Nessa direção, o Movimento, a partir de suas concepções políticas e

ideológicas, se apoiava no ideal de um governo puro, livre de qualquer influência, exceção

para os trabalhadores. Certamente, tratava-se de uma concepção romântica e idealizada do

jogo político, na qual o MST, em suas representações, ainda personificava Lula como ex-

operário e líder sindical, prístino, livre das influências “burguesas”.

Ao longo do governo Lula o MST criticou sua política macroeconômica, salientou seu

conservadorismo e o favorecimento de interesses das elites. Entretanto, o presidente era

preservado das críticas e não era ridicularizado por suas opções políticas. A perspectiva

maniqueísta das representações do MST fazia com que ele não reconhecesse, debatesse e

refletisse sobre os próprios avanços sociais do governo Lula, pois a leitura do Movimento

pautava-se em dizer que a política econômica era conservadora e reproduzia desigualdades

sociais e concentração de riquezas. Por mais que a política econômica mantivesse traços

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conservadores, negar ou não reconhecer os avanços sociais do governo Lula parecia limitar o

olhar para as experiências históricas do país.

Em relação à reforma agrária, com a eleição de Lula, o clima vivenciado pela Direção

Nacional do MST e demais integrantes de sua organização foi o de esperança. Esse clima

justificava-se pelos compromissos históricos de Lula e PT com a reforma agrária. Para o

Movimento, Lula seria o presidente que enfrentaria o latifúndio e implantaria um amplo e

massivo processo de reforma agrária. Por parte da Direção Nacional do MST, Lula honraria

seu compromisso histórico com os trabalhadores rurais sem-terra.

A euforia e o entusiasmo que contagiaram a organização do MST se baseavam na

figura do presidente, reconhecido e legitimado como a extensão dos trabalhadores na

Presidência da República, e o único presidente capaz de fazer a reforma agrária avançar.

Sendo assim, personificava-se a figura de Lula como uma espécie de salvador da Pátria e não

se refletia profundamente sobre o jogo político e sobre os interesses de grupos que

compunham o Congresso Nacional, além de que, o próprio Lula e PT transformaram-se

significativamente relativamente a suas concepções políticas e ideológicas, inclusive, sobre o

tema reforma agrária.

Lula, em 2002, antes de ser eleito presidente, evidenciava que não enfrentaria o

latifúndio como pretendia o MST. Os seus discursos seguiam um tom mais conciliador e

moderado face ao tema. Todavia, para o MST, Lula precisava assumir o enfrentamento ao

latifúndio logo nos primeiros meses de sua gestão. Em meio às tensões no período, Lula não

se colocava contrário à reforma agrária, e isso fez com que a Direção Nacional do MST

personificasse a reforma agrária na figura daquele Lula, o da década de 1980, como se suas

ações não fossem dificultadas e limitadas no jogo político. Em meio a críticas e com a

reforma agrária caminhando a passos de tartaruga, a qualquer momento, conforme o MST, o

presidente poderia mudar o cenário e agilizar a reforma agrária no país.

No que tange à reforma agrária, o governo Lula não a tratou como prioridade e nem

sinalizou para um cenário de alteração mínima do quadro de concentração de terras no Brasil.

Suas ações foram tímidas e houve um fortalecimento do agronegócio nos dois mandatos do

governo, com incentivos do próprio Estado. Todavia, destaca-se a importância de suas ações

como a não criminalização e o diálogo com os movimentos sociais, o investimento em

políticas de créditos e assistência técnica nos assentamentos rurais, fortalecimento do

PRONERA, criação do PAA, dentre outras.

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Nesse cenário, o MST tecia críticas ao “governo Federal” face à reforma agrária e às

políticas para o campo. Nos editoriais do Jornal Sem Terra, as críticas giravam em torno de

cobranças ao Lula sobre os seus compromissos históricos, e havia uma evidente frustração do

Movimento para com o governo Lula. Todavia, as representações sobre o presidente não o

ridicularizavam e os discursos do jornal eram brandos, harmoniosos, com o objetivo de não

expor pejorativamente Lula. Havia uma frustração do Movimento, mas as dimensões de

respeito e proximidade com o presidente se mantiveram. Embora as ações do governo Lula

em relação à reforma agrária deixassem a desejar, o presidente não era representado como

inimigo da reforma agrária.

Ao longo da tese, analisou-se que o MST, em sua trajetória histórica, desenvolveu

representações sobre os presidentes FHC e Lula a partir de uma visão maniqueísta,

personificou-os como fossem a tradução do bem ou do mal, sem considerar a complexidade e

dinâmica do jogo político brasileiro. Observou-se dificuldade do MST em conceber a

dinâmica do Estado e as composições e alianças dos governos, assim sendo, o Movimento

canalizou a responsabilidade da efetivação da reforma agrária à figura dos presidentes.

O MST revelou uma leitura simplista e personalista sobre os presidentes. No caso de

FHC, suas representações pautavam-se no mal, como se ele fosse o inimigo dos trabalhadores,

incapaz de fazer algo significativo para o país. FHC foi jocosamente ridicularizado pelas

representações do MST, via Jornal Sem Terra, como, por exemplo, ao ser apresentado como

Pinóquio. Em relação ao presidente Lula, as representações foram personificadas no sentido

de que ele era do bem, sujeito trabalhador, que entendia as dificuldades e o sofrimento dos

trabalhadores, e único presidente capaz de realizar a reforma agrária no Brasil. Lula foi

idealizado pelo Movimento como o ex-operário, líder sindical, um político prístino,

cristalizado da década de 1980. Essa representação fez com que o Movimento não refletisse

sobre as transformações políticas e ideológicas do petista e tivesse uma visão romântica do

jogo político.

Por ironia da história, o governo do presidente considerado “inimigo dos

trabalhadores” foi o que mais obteve áreas e assentou maior número famílias no Brasil,

ultrapassando os números do próprio governo do presidente Lula. Acredita-se que a

perspectiva maniqueísta utilizada pelo MST para efetuar a leitura dos presidentes FHC e Lula

e seus respectivos governos dificulta as reflexões sobre as experiências históricas e a

complexidade que envolve o jogo político brasileiro e os interesses envoltos na composição

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dos governos. O pensamento inflexível e cristalizado, pautado no bem e no mal, transformou

o MST em refém dos seus próprios discursos.

Salienta-se que a leitura crítica acerca das representações do MST sobre os presidentes

não reduz, conforme mencionado, a importância do Movimento para o cenário político

brasileiro e para a luta pela reforma agrária. Pelo contrário, assim como dissera o saudoso

educador Paulo Freire, em abril de 19971012, o MST e os sem-terra, de maneira geral,

constituem-se em uma das expressões mais fortes da vida política e cívica do Brasil e provam,

a cada dia, que é preciso lutar para que se obtenha o mínimo de transformação social.

1012 FREIRE, Paulo. Entrevista concedida a Luciana Burlamaqui, abril de 1997. Disponível em:

www.paulofreire.ufpb.br. Acesso em: 17/08/2013.

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FONTES

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em nota de rodapé, o jornal foi citado conforme os procedimentos exigidos pelo

PPGH/UFGD.

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ANEXOS

ESTRUTURA ORGANIZATIVA DO MST*

Instâncias de Representação Setores de Atividades

Congresso Nacional

Encontro Nacional

Coordenação Nacional

Direção Nacional

Encontro Estadual

Coordenação Estadual

Direção Estadual

Coordenação Regional

Coordenação de Assentamentos

Coordenação de Acampamentos

Núcleos de Base

Secretaria Nacional

Secretarias Estaduais

Secretarias Regionais

Setor de Frente de Massa

Setor de Formação

Setor de Educação

Setor de Produção, Cooperação e Meio

Ambiente

Setor de Comunicação

Setor de Finanças

Setor de Projetos

Setor de Direitos Humanos

Coletivo de Relações Internacionais

Setor de Saúde

Setor de Gênero

Coletivo de Cultura

Coletivo de Mística

Mística

Organizações Convencionais

ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola

CONCRAB – Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda.

ITERRA – Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

ENFF – Escola Nacional Florestan Fernandes

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Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 16 de dezembro de 2014.

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Fabiano Coelho