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Entre Outubros - Você Não Pode Fugir Do Seu Passado, Muito Menos de Quem Se Tornou.pdf

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  • EntrE OutubrOs

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  • Rebecca Dellape

    So Paulo, 2014

    TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

    EntrE OutubrOs

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  • Copyright 2014 by Rebecca Dellape

    Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo no- 54, de 1995)

    Dellape, RebeccaEntre Outubros / Rebecca Dellape Barueri, SP : Novo Sculo Edi-tora, 2014. (Talentos da literatura brasileira)

    1. Fico brasileira I. Ttulo. II. Srie.

    13-13825 cdd-869.93

    ndices para catlogo sistemtico:1. Fico : Literatura brasileira 869.93

    2014IMPRESSO NO BRASIL

    PRINTED IN BRAZILDIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIO

    NOVO SCULO EDITORA LTDA.CEA Centro Empresarial Araguaia II

    Alameda Araguaia, 2190 11o- andarBloco A Conjunto 1111

    CEP 06455-000 Alphaville Industrial SPTel. (11) 3699-7107 Fax (11) 3699-7323

    [email protected]

    Coordenao Editorial Nair Ferraz Diagramao Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Arte de Capa Jaqueline Ramos Vieira Composio de Capa Monalisa Morato Preparao Denise de Camargo Reviso Rita de Cssia Costa

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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  • Aos meus dolos um heri que me ajudou a encontrar uma ltima razo para acreditar,

    e miss sexta-feira rosa, por me ensinar que fazendo sucesso que se afronta os inimigos com uma generosa dose de bom humor;

    aos meus fieis amigos, por me proporcionarem a motivao mais efervescente j inventada;

    minha faculdade, por me disponibilizar suas salas de informtica caso contrrio eu ainda no teria finalizado a

    histria e a estaria escrevendo escondido por madrugadas a fio;

    e, ipso facto, minha me, por me transferir geneticamente sua garra e ousadia.

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  • As pessoas nos levam s experincias,as experincias nos levam ao crescimento,

    e o crescimento nos leva f e l i c i d a d e.

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  • 9C A P T U L O U Molhar o mundo com

    a coragem de um cego

    O vento havia varrido todas as nuvens do cu naquela manh ensolarada de outono. Os reflexos da luz matinal escaparam pelas frestas da cortina do meu quarto, iluminando o ambiente. Aquela claridade habitual e agradvel se enalteceu diante dos meus olhos. Eu me preparei para levantar, recolhendo uma singela presilha roxa do criado-mudo, prendendo assim meus longos cabelos loiros ao topo da cabea. Toquei os ps no cho e respirei fundo, reunindo foras para mais um dia.

    Mame havia deixado um bilhete sobre a mesa de jantar. Li o pequeno papel com curiosidade.

    Holly, querida.Deixei sua camiseta da escola na secadora. Estarei de plan-

    to no Hospital Geral at as cinco horas. No se esquea de me mandar uma mensagem dizendo que chegou bem. Sabe que fico preocupada. O dia vai ser lindo. Eu te amo.

    Ps.: FELIZ ANIVERSRIO!

    Aproveitei a existncia de um livro qualquer sobre o aparador frente da mesa e guardei a folha de papel entre algumas pginas aleatrias.

    O calendrio preso parede da cozinha anunciava 17de outu-bro de 2008. Eu at estava muito animada para um dia comum, mas nem tanto para o dia do meu 16o aniversrio.

    Eu apenas me preocupei em lavar o rosto e escovar os dentes. No estava nem um pouco interessada em maquiagens ou adornos.

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    Usei a mesma presilha roxa para prender algumas mechas da minha franja e sorri para o espelho quando acabei.

    Minha mochila estava jogada no sof desde o dia anterior. Re-visei os cadernos e adicionei algumas apostilas para as aulas de sexta--feira. Quase me esqueci do livro que a Sidney havia me emprestado no comeo da semana. O ttulo era surreal demais para minha me-mria. Tratei de enfi-lo na bolsa e encaixei as alas dela em meus ombros. Passei a chave na porta de casa e fui at a garagem pegar minha fiel bicicleta.

    Entre pensamentos e tranquilas pedaladas, imaginei que havia esquecido meu celular. Freei rapidamente e o cacei na mochila com alguma esperana, mas ele no estava l. Droga.

    Olhei em meu relgio de pulso e me conformei que no have-ria tempo para buscar. Subi novamente na bicicleta e me preparei para seguir o caminho cotidiano at a escola.

    A rua da minha casa costumava no ter movimento naquele horrio. As residncias eram trreas e de mdio porte. Todas de co-res e formas diferentes, sem perder sua estrutura padro. O silncio instaurado era avassalador.

    Eu olhava desatenciosamente para a frente, at ouvir pneus cantarem como se anunciassem um acidente. Retomei a ateno e me assustei com um Audi Coup preto parando bruscamente a al-guns centmetros de mim. Desequilibrei-me e quase ca da bicicleta.

    O automvel, perfeitamente brunido, parecia recm-retirado de uma concessionria. Os vidros escuros reluzentes refletiam o per-feito azul do cu, completamente lvido de nuvens. Exasperei-me diante da suntuosa abordagem. Ningum se pronunciou de incio. Travei um impasse entre esperar ou dar o fora. Fiquei com a segun-da opo e, finalmente, quando estava prestes a alcanar a porta do motorista, o vidro eltrico se abaixou lentamente at a metade da janela de um modo sinistro. Tentei ao mximo no olhar, mas que-la altura meu pnico se misturou com a curiosidade.

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    No se enxergava quase nada l dentro. No pude ver com cla-reza os olhos do sujeito, e apenas um sorriso grande e branco surgiu diante da escurido do interior do automvel. Era um rapaz pardo, com seus braos musculosos estendidos ao volante preparados para arrancar o carro a qualquer momento.

    Desculpe-me. Acho que peguei a rua errada o homem misterioso falou com sua voz benevolente, numa tentativa amistosa de puxar papo.

    Mais ateno da prxima vez redargui e voltei a impulsio-nar minha bicicleta.

    Com alguns metros de distncia, olhei para trs e analisei o carro, que continuou ali, parado. A placa no era da Califrnia. Levantei uma sobrancelha e balancei a cabea, tentando afastar os pensamentos negativos.

    Para todos os efeitos, virei algumas vezes a cabea para trs a fim de observar os movimentos do estranho.

    E o carro permaneceu inerte.So Francisco definitivamente no era uma cidade com refe-

    rncia de segurana. Fiquei cabreira com o evento e apressei a ve-locidade das minhas pedaladas. De repente, pensei que eu era uma garota muito forte, de 1,73 metro de altura, o que poderia muito bem afastar a probabilidade de um fato trgico.

    Eu estava bem prxima da esquina na qual deveria entrar. Dei a ltima olhada para trs, e o carro havia sumido misteriosamente. Fiquei perplexa por meros segundos. Segundos esses que foram su-ficientes para tudo acontecer.

    Algo robusto me derrubou da bicicleta. Quando senti meu corpo ser rebatido contra o cho, notei que eu havia sido atropelada por um furgo. Diversos pares de olhos me enquadraram funesta-mente, mos fortes tentaram me ceder. Senti meus braos serem repuxados.

    Eu lutava para escapar. Um grito de horror aqueceu minha garganta, mas fui incapaz de express-lo. Uma mo grossa tampou

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    minha boca. Movimentei meus dentes para mord-la, mas isso s culminou para que ela pressionasse com toda fora meu maxilar, deixando minha respirao insuficiente.

    Tudo ficou mais difcil, pois foi complicado conciliar as ten-tativas de recomposio do ar e os movimentos bruscos. No me conformei que nenhuma alma viva testemunhou o meu sequestro.

    Em questo de segundos, fui jogada na traseira de um furgo velho e barulhento, com os vidros novamente escurecidos. Nunca ningum veria nada e sequer desconfiaria.

    *

    Todas as lembranas s ficaram claras quando abri os olhos aps um breve desmaio.

    O balanar rude do automvel fez com que meus braos bates-sem contra a lataria dura e fria do furgo.

    Havia um pano enroscado entre minha boca e a minha nuca, deixando-me em silncio eterno. Eu estava toda retorcida em um porta-malas. Tentei me mexer, mas no consegui. A dor que se di-fundia pelo meu corpo era grande, embora suportvel. Senti uma corrente de gelo se espalhar centmetro por centmetro do meu cor-po e fechei os olhos, rezando para que aquilo tudo fosse um pesa-delo. Quando os abri novamente, eu continuava no mesmo lugar. Minhas mos estavam levemente adormecidas, e algo enregelado contornava meus pulsos, trucidando minha pele. Eram algemas. Uma lgrima de agonia desceu pelo meu rosto e acabei soluando ruidosamente.

    Nossa garotinha acordou! Uma voz vinda do banco do motorista se propagou. Havia outros homens que a acompanharam com risadas. Acabei soluando de pavor novamente.

    Cala a boca, magrela! Um deles chutou a diviso de plstico improvisada que separava o porta-malas do resto do furgo.

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    Onde eu estava, onde eu estava. Choraminguei em meus pen-samentos. Os vidros completamente encobertos me deixaram afli-ta, j que no se podia ver nada em funo da escurido. Havia apenas um pequeno jato de luz vindo da parte frontal do carro. Como a fronteira que nos separava no se estendia at o teto, pude notar que eram quatro homens. Pelos cantos dos olhos, vi apenas cabeas e ombros. Vestiam longos suteres escuros e mantinham os rostos encobertos por capuzes alargados que possuam uma fenda para os olhos.

    Eu tentava me recompor lentamente e senti a temperatura es-quentar ali dentro. Enquanto arriscava desvirar meus braos, acom-panhava o movimento daqueles caras, s para garantir que eu no estava sendo monitorada. At que um dos rapazes levantou o capuz em protesto alta temperatura. Por descuido, achou que eu no perceberia. Olhei de soslaio e vi por singelos segundos toda a sua feio, guardando detalhadamente cada caracterstica. A pele clara, as bochechas arredondadas, a boca desenhada em uma linha reta e pequena, o cabelo alongado em cachos desarrumados. Enquanto permaneceu de perfil, pude observ-lo. Desesperou-se ao notar que estava sendo espiado furtivamente. Num rompante, subiu o capuz, escondendo-se. Torci para que tivesse dado tempo suficiente de des-viar meus olhos. E no foi o que aconteceu. O sujeito me fuzilou com a raiva ardendo em sua expresso. Uma ameaa evidente, com um toque de represso. Naquela altura, no deixei de encar-lo.

    Sabe que estou louco para apagar voc, garota?Meu estmago se contraiu, tenso. Eles no poderiam estar

    fazendo aquilo comigo. No mesmo. Acabei por abaixar o olhar pacificamente.

    S se ouvia o rugido do motor daquela lata velha. Concen- trei-me por alguns segundos. Eu precisava reorganizar meus pensa-mentos. Eu no era do tipo de garota que se contentava com a sorte e muito menos com o azar. O comeo havia sido desesperador, mas

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    eu no poderia perder o controle, e precisava de austeridade. Sem-pre agi com muito equilbrio em situaes tensas, at naquelas em que fariam qualquer um desabar. Agora no poderia ser diferente.

    Pensei nas possibilidades: o que queriam? Dinheiro? Ah, cer-tamente no sairia do bolso da minha me da coitada da minha me , uma mdica plantonista no ganhava muito. Afinal, nossa casa no subrbio de So Francisco era alugada e nosso carro acabou de ser quitado depois de diversas prestaes. O que mais poderia ser? Eu no sabia de nenhum segredo, ou de senha megassecreta, ou ento a codificao do cofre do Banco Central, nem tinha ligao com o narcotrfico da cidade. Ser que a crise que estava assolando o pas havia chegado naquele ponto? Das duas, uma: ou me pegaram por engano ou por iluso. O que fariam? Me matariam? Nunca tive medo da morte. Eu morreria um dia, no morreria? Para mim, tanto importava. Eu s me preocupava com minha me, pois eu sabia que perderia o cho se tomasse cincia do que estava acontecendo. Eu queria poup-la, pois no merecia de nenhuma maneira passar por aquela tragdia.

    Em meio aos meus pensamentos, o furgo brecou de uma for-ma abrupta e acabei batendo a cabea na lataria. Exclamei a dor em um nvel alto, mas o grito foi amenizado pelo pano que me amorda-ava. Os homens riram com tom de ironia.

    Ela no sabe o que dor, rapazes. O motorista devia ser o lder daquele grupo. Foi o nico a se

    pronunciar at a nossa chegada a algum lugar.Ouvi um guincho forte, como se um grande porto fosse desli-

    zado por roldanas enferrujadas, seguido de um estrondo ao se fechar contra o batente. Como as janelas estavam todas escuras, no pude enxergar absolutamente nada, mas senti um cheiro industrial incon-fundvel. Eu estava em algum bairro alfandegrio de So Francisco, alis, eu no poderia estar fora da cidade, j que nesse horrio de rush matinal levaramos horas para sairmos dos limites urbanos. A viagem foi curta. At demais.

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    Ento tudo ficou mais escuro ainda. Devamos ter entrado em algum galpo abandonado, porque o barulho do motor se multipli-cou, como um eco fundo e infinito. Algum viria me retirar daquele porta-malas estreito. Com certa fora, um dos homens destravou e ergueu a porta. Endireitei-me, ficando sentada. As cibras se esta-laram pelo meu corpo. Naquele momento, dei por falta da minha mochila e da minha bicicleta. Onde as teriam deixado? Levantei a cabea e pestajenei para os trs sujeitos que me enquadravam com cordas nas mos. Eles estavam prontos para me amarrar, mas o pri-meiro homem que eu havia visto naquela manh o qual dirigia o Audi preto se aproximou. Apenas seus olhos estavam visveis em razo do capuz.

    Esperem, esperem, esperem ele disse pausadamente em um tom sereno, aproximando-se de mim sorrateiramente. Sua mo bru-ta tocou meu queixo com propriedade. Semicerrei os olhos.

    No precisamos ser violentos. Deu uma longa pausa en-quanto me olhava de cima a baixo e continuou. No agora. Va-mos deixar o melhor para o final. Virou meu rosto de leve para a direita, como se me desse um tapa em cmera lenta. Ouvi a risada malfica sair abafada de sua garganta, em tom baixo em funo do capuz, como se a vitria fosse um objetivo iminente.

    O sujeito me recolheu pelas mos e virou-me de costas. Per-correu lentamente suas mos pelos meus braos contorcidos e des-cobertos. A ira, o nojo e a exaltao fizeram meu peito inflar de agonia. Aquilo estava se tornando insuportvel. Fechei os olhos em pura raiva. Alguma lgrima deve ter sado em consequncia. Ele desamarrou o pano que me amordaava num rompante e eu pude sentir o alvio ao recuperar os movimentos do meu maxilar por ligeiros instantes. O homem misterioso levantou o capuz at o nariz e recostou seus lbios prximos do meu pescoo, fazendo um bafo aquecido se espalhar pele minha pele enquanto repetia a frase lentamente.

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    No se esquea de um detalhe: nada far nosso plano falhar. Suas mos pressionaram meu corpo contra o seu, numa tentativa de me imunizar. Rapidamente, algo lanoso tocou meus lbios e meu nariz. O odor qumico penetrou em minhas narinas, inebriando mi-nha mais profunda conscincia. Foi difcil resistir tentao doen- tia de fechar os olhos e abandonar as foras do corpo. Um ltimo pensamento sobrevivente se fez presente.

    Ele s no contava que eu teria o meu plano tambm.

    *

    Meus olhos estalaram. O choque da realidade foi algo incalcu-lavelmente... abissal. O terror me consumiu por breves instantes, at eu conseguir retomar o flego e associar todas as lembranas que se lanaram em minha memria freneticamente. Caminhos extensos. Escuros. Interminveis. Escadas. Enquanto eu era canhestramente carregada, minhas pernas estavam dormentes, os braos latejavam. Tudo ainda rodopiava enquanto eu tentava restaurar minha viso. Vagarosamente, percebi que havia sido trancafiada em algum tipo de calabouo. Ali no possua mais do que quatro metros quadra-dos. Uma porta pesada de puro ferro aniquilava minhas expectati-vas de fuga.

    Apenas um pequeno basculante no alto iluminava debilmente o ambiente sujo. Eu ainda no conseguia sentir minhas mos. Era impossvel querer moviment-las. Tudo culpa daquelas algemas. E l se foi mais uma dezena de lgrimas. Respirei fundo, tentando estabilizar as emoes, tentando organizar os pensamentos.

    Lutei contra aquela astenia momentnea e tentei me erguer, falhando por duas sofridas vezes, at que lancei as pernas para frente e me sentei. Joguei as costas por cima das minhas mos atadas e me revirei em alguns movimentos. Raspei toda minha mo com fora para que as algemas se esmagassem. Repuxei fervorosamente de um

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    lado, de outro. Elas s ficaram ainda mais apertadas. Desesperada, coloquei a maior fora que pude para tentar retirar minhas mos pelos buracos. Em um ato mutilador, contorc-as ao mximo para que elas se espremessem. E com toda a minha fria transbordando pelas veias puxei as mos rapidamente para saltarem dos orifcios. Um barulho rascante estalou. Meu pulso direito abriu, e uma das ar-golas se arrebentou. Contra-me junto ao cho, gemendo de agonia. Arquejei e fiz o impossvel para no me concentrar na dor. Lgrimas permearam meu rosto incontrolavelmente. Segundo por segundo, a dor se amainou, mesmo que insignificantemente. E ento sorri. J havia avanado algumas etapas. A glria momentnea me serviu como anestsico.

    Ergui-me com certa dificuldade do cho, encostando as costas na parede, ficando sentada. Analisei minhas mos. A menos preju-dicada ainda carregava a argola restante. Grandes verges inflama-dos contornavam toda a extenso dos meus pulsos.

    Quer dizer que a mocinha est querendo bancar a rebelde?Aprumei-me ligeiramente. Colei as costas parede, em exta-

    sio. Quem estava ali? Foi quando eu percebi que havia uma cmera suspendida na extremidade da sala e um singelo alto-falante. Minha garganta secou e pensei que desmaiaria novamente, pois o equil-brio do meu corpo falhou com o terror repentino. O sujeito riu pelo udio.

    No se ache to esperta, senhorita Armstrong. Achou que con-seguiria algo com isso? Talvez esteja mais confortvel agora. Mas no importa. Posso observ-la durante todo o tempo. Esqueceu-se do que conversamos? No faa mais coisas que iro me aborrecer, por- que quando eu fico aborrecido... nem minha me quer estar por per-to. A voz do sujeito era quente e firme. Aterrorizadamente firme.

    Mesmo com apenas um alto-falante, eu ouvia o udio em bom som, como se houvesse algum outro aparelho prximo de mim. Mas no havia.

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    Levantei uma sobrancelha e fiquei calada. Eu precisava pou-par minhas palavras. Eu queria pensar em algo, bolar o meu plano. Abaixei a cabea para que tudo ficasse mais claro, mas a voz do sujeito me interrompeu.

    Sabe, Holly... Falando em me, ligarei para a sua em breve. No est com medo?

    Uma pulsao doentia de sangue corrompeu meu corpo ao ouvi-lo pronunciar a palavra me. Detive o torpor e pensei para res-ponder. Foi quando me veio uma revelao. Eu precisava parecer frgil. Eu deveria mostrar que era algum incapaz e fraca. Assim nunca desconfiariam de mim.

    Balancei a cabea com um sim pacato. Ele riu e continuou. Voc quer saber por que est aqui? Por que sequestramos

    voc?Repeti o lance de balanar a cabea, afirmando. Tentei expres-

    sar medo nos olhos. No agora. Se por acaso voc v-la novamente, talvez ela lhe

    conte. Minha me? O que minha me tinha a ver com aquilo? Eu

    preferia morrer a fazer minha me padecer daquela forma, vendo-a perder qualquer coisa, como dinheiro ou bem material, para me res-gatar. No conseguiria viver com a ideia de que minha me perdeu tudo para me tirar daquela situao. Eu era mais forte. Eu era Holly Armstrong, eu tinha fora at no sobrenome. Tinha 1,73 metro de altura, sete anos de treino de tnis, algumas aulas de boxe feminino e muita inteligncia. Eu apenas precisava juntar tudo isso e ter a escapada perfeita.

    No se preocupe que logo, logo irei lhe fazer uma visita. No muito agradvel da minha parte deix-la sozinha desse jeito. Voc vai gostar. Ele e seus risinhos biltres, pensei

    O nojo me possuiu de forma estonteante. Gritei em pensa-mento. Mas nem morta aquele sujeito encostaria um dedo em mim.

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    A transmisso do udio foi interrompida, mas ele continuaria me vendo. As coisas estavam ficando difceis, mas no impossveis. E eu s queria saber: como eu abriria aquela porta? Como eu sairia dali? Como eu atravessaria aquele labirinto de escadas e corredores e conseguiria escapar dos diversos homens prontos para impedir qualquer erro?

    Cambaleei para o lado e joguei as costas no cho, deitando-me. Senti algo repuxar meu couro cabeludo e passei a mo. Era minha fivela roxa que prendia uma mecha de franja. Segurei a fivela na mo e passei a observ-la. Eu a girava entre os dedos, esperando ter alguma ideia. Minha cabea comeou a ficar pesada. Eu sentia um frio escorrer pelas minhas veias de forma doentia. Era minha presso. Fechei os olhos para acalmar meu organismo. Eu estava me sentindo to distante, minhas mos formigavam, as pernas tre-miam sozinhas com calafrios. O sono bateu em minhas plpebras e no resisti.

    Em alguma dimenso paralela realidade, ouvi um tossido grave.

    E ouvi novamente.J estava me comportando como se estivesse em algum so-

    nho. Mas despertei. Pulei da posio em que eu estava voltando a me sentar. Senti uma dor latejar em meu pulso. Olhei para os lados esperando que algum abrisse aquela porta. Pestanejei para o basculante, e a luz do sol refletia mais forte. O meio-dia estava se aproximando. Passaram-se alguns segundos, mas nada aconteceu. Recostei a cabea na parede, uma lgrima se formou e deslizou pelo meu rosto parando em meus clios. Forcei os olhos para que a lgrima casse.

    Houve outro tossido. Prontifiquei-me em uma posio de alerta.Segui meu instinto auditivo e o som vinha do lado direito,

    abaixo. Foi quando visualizei uma pequena grade no canto da pa- rede. Passei a mo pelas frestas.

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  • 20

    Ali era uma tubulao de ar. To pequena que no havia visto antes. Ento ouvi:

    Ei, Roger, qual o telefone da vagabunda a?Sim. Era uma tubulao de ar, que dava acesso sala onde es-

    tavam meus sequestradores. Agora eu escutaria tudo que estivessem planejando. No me aproximei para no perceberem minha desco-berta pela cmera.

    O nmero est salvo aqui no celular da garota.Como conseguiram meu celular? A imagem daqueles homens invadindo minha casa e destruindo

    tudo que viam pela frente se apossou da minha mente, deixando-me enlouquecida.

    Escobar, coloque no viva-voz para mim. Vamos ouvir o que essa vaca vai dizer.

    Um telefone comeou a tocar, dando trs toques.No, no poderia ser. Holly! Onde voc est? Tentei ligar para voc um milho de

    vezes. O timbre preocupado da voz da minha me torturou meu

    corao. Ele estava ligando para ela. Um aperto assombroso sufocou

    meu peito. Tive vontade de gritar, s que tudo que eu falasse seria ouvido; ento, engoli todo o horror e esperei a conversa terminar.

    Holly est ocupada agora, dona. Quem est falando? Onde est minha filha? Est bem. Por enquanto, senhora. Por enquanto. Escuta aqui, seja l quem estiver falando, CHEGA DE BRIN-

    CADEIRA! COLOQUE A HOLLY PARA FALAR COMIGO AGORA! EU SOU A ME DELA.

    Eu sei muito bem, doutora Catherine. A senhora tem uma filha linda. E, poxa vida, ela herdou aquele maravilhoso par de per-nas da senhora?

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  • 21

    CALE A BOCA! Voc doente? O que voc quer?Minha me estava transtornada. E eu ali, ouvindo tudo, sem

    poder fazer nada. No podia chorar nem me rebelar. Se a senhora quer encurtar nossa conversa... Seu tom de

    voz ficou amedrontador. OITOCENTOS MIL DLARES EM MINHAS MOS e a sua filha vivinha sem nenhum arranho.

    Ouvi minha me urrar. O pnico em sua voz era angustiante. VOC EST COM A MINHA FILHA? EU QUERO MI-

    NHA FILHA AGORA! Se voc me conhece, sabe que no tenho esse dinheiro!

    U, eu preciso mencionar a palavra a-man-te para a senhora? Havia displicncia.

    Amante? Voc louco? Nem sou casada! Nem sei se o pai da Holly est vivo!

    Pelo tom, minha me estava prestes a chorar. A senhora sabe de quem eu estou falando. Bom, lhe dou dez

    minutos para me dar uma posio. Caso contrrio, serei obrigado a dar uns arranhozinhos na Holly. Se que a senhora entende o tipo de arranho.

    VOC NO TEM ALMA, SEU DESGRAADO!Ele riu e desligou o telefone, sem esperar uma resposta. Uma

    lgrima escorreu pelo meu rosto. No era medo nem preocupao. Era minha ira se fortalecendo.

    As coisas estavam apertando. Eu tinha de colocar meu crebro para funcionar. Tomar qualquer atitude, mesmo que imprudente, seria melhor do que ficar parada vendo minha vida escapar pelos dedos. Olhei em volta. Eu forava algum pensamento, qualquer que fosse. Fitei a cmera, o alto-falante. Levantei minha mo, fitei a pre-silha. To pequena e intil.

    Parei por alguns segundos. As ideias comearam a clarear. Coloquei a presilha no cho de

    alvenaria frio. O sujeito riu em sua sala, pois o ouvi pela tubulao

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  • 22

    de ar. Permaneci inerte, porque ele no poderia perceber que eu ouvia todos os seus planejamentos.

    Roger, voc j preparou aquela dose? Precisamos de provas agora. Sedaremos essa menina. Ela se acha esperta. Riu em tom sdico. Acabou de acordar. Assim que a apagarmos, tirarei uma foto e mandarei para aquela vadia. Vai pensar que a torturamos. Isso ir adiantar as coisas.

    A cadeira em que ele devia estar sentado guinchou como se ele tivesse se levantado. Ouvi seus passos curtos. Fez-se o silncio.

    Tem certeza de que isso aqui vai funcionar? Ouvi falar. Olhe isto. Est perfeito.Os homens ali presentes riram aps uma pequena passagem de

    tempo. A cadeira guinchou novamente como se algum se sentasse. No se esquea de monitorar, Roger. E, Escobar, cubra a rea

    externa junto com Theo enquanto isso. Vou dar um trato naquela garota.

    A porta se abriu, e a sala ficou silenciosa.Enquanto esperava algum novo som, olhei aquela cmera. O

    alto-falante.O rapaz que sobrou na sala deu um bocejo alto. Deve ter se

    recostado confortavelmente cadeira, conforme os rudos que eu pude ouvir.

    Seria a minha hora de agir. Fiquei descala de um dos ps. Peguei meu tnis e ataquei-o primeiramente no alto-falante para cor-tar o udio. No adiantou. Saltei para alcan-lo com a mo, assim o arranquei com a maior fora que pude. Depois, recolhi o tnis do cho e o mirei no vidro da cmera. Ela se espatifou no cho logo em seguida, fazendo um barulho alto. Usei a extremidade pontuda da presilha para desparafusar um dos pregos da grade da tubula-o de ar. To nervosa, tive dificuldade de acertar at conseguir desparafus-lo. Era comprido e estava todo enferrujado, a ponta era bem afiada.

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    Meu tempo estava se esgotando; eu conseguia ouvir escadas rangendo, passos se aproximando, ps desajeitados batendo contra os entulhos presentes nos corredores que imaginava existir. Busquei meu tnis que estava jogado com os restos da cmera e o coloquei no p. A presilha apliquei de volta ao cabelo e tentei parecer ino-cente ao mximo. Coloquei as mos para trs como quem no quer nada. O parafuso permaneceu escondido entre as palmas das mi-nhas mos. Permaneci inerte. Apenas sentada.

    AGORA. AGORA. AGORA. Fechei os olhos e respirei fundo.

    A fechadura comeou a ser destravada lentamente. O homem moreno que eu havia visto naquela manh surgiu por detrs da porta. O sorriso malicioso em sua expresso, os olhos tendenciosos, to claramente descobertos pela primeira vez. Eu sentia aquele chei-ro de perfume de catlogo enjoativo. Ele se aproximou deixando a porta semiaberta, a um metro de mim.

    , Holly. Enquanto sua me no vem buscar voc... Que tal nos distrairmos um pouco? Deu um passo frente.

    Eu afastei um pouco as pernas e deixei meus ps bem flexio-nados contra o cho. Assim eu teria apoio para me levantar rapi-damente sem usar as mos. A sorte que ele entendeu meu gesto corporal de outra forma.

    Quer dizer que a garotinha da mame gosta de uma saca-nagem?

    Semicerrei os olhos e apertei minha boca, censurando poss-veis palavres. Olhei para a cmera quebrada, e ele logo seguiu meu olhar. Virou-se ficando de perfil. Foi quando percebi que havia uma arma encaixada num coldre preso sua cala. Ele parou e olhou o estrago com desprezo.

    Que coisa feia, Holly. Estalou a lngua trs vezes, balanan-do a cabea em negao. Voc acha que isso significa algo para mim? Espere at ver o que eu vou fazer com voc.

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    Ele cravou seus olhos em mim, tentando entender ou decodifi-car minha expresso insondvel. De repente, ficou furioso.

    Voc acha que est lidando com quem, hein, garota?Eu prossegui em silncio e acabei por levantar uma das so-

    brancelhas, duvidando que ele fizesse algo contra mim. O sujeito se aproximou de uma forma cavalheira. Agachou, ficando a minha altura. Olhei bem dentro dos seus olhos. Usei os cinco segundos de silncio entre ns para observ-lo. Juro que se eu visse aquele cara na rua jamais diria que ele seria cotado como um sequestrador, traficante ou o que fosse de carter criminoso. Talvez as aparncias enganassem mesmo.

    Ele possua a pele perfeitamente asseada de um homem de trinta anos, os dentes perfeitos, o cabelo bem cortado, mas, mesmo assim, estando ali, frente a frente, eu podia notar uma nica dife-rena. Talvez eu s a notasse pelo medo envolvido, pelo contexto de-sesperador, no entanto seus olhos me diziam tudo. Eram secos. Eu podia sentir a maldade que contornava a expresso de seu olhar. Era uma falta de receio. O prazer em estar prejudicando algum; uma vida. O prazer em estar ganhando com isso. A consistncia de seu olhar descrevia tudo. E eu tinha certeza de que ele estava querendo transmitir suas vontades para mim.

    Fatalmente, ele s conseguia enxergar uma jovem de cabelos tingidos, com um corpo bonito, burra e intil. Mas era engano. Eu poderia ser mais inteligente que ele. Alm do mais, eu me mordia de curiosidade em saber como ele poderia ser to cordial nas palavras. Por que ele parecia to poderoso e instigante?

    Eu ainda no ouvi sua voz. Alis, eu odeio gente que no fala. Parece que est guardando tudo o que pensa para reverter a situao. No consigo ver medo nos seus olhos. Aonde pensa que quer chegar? Voc no sabe quem eu sou... Muito menos o que pla- nejo fazer. Seu rosto estava prximo do meu. Eu mal respirava.

    Tanto ele como eu ficamos em silncio novamente. Resolvi arriscar.

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    Se voc vai me matar, eu s lhe peo que me conte... Quem voc? O que voc ganhar com isso? Por que est fazendo isso?

    Ele riu com displicncia. Como sabe que eu vou matar voc? Gelei. Senti uma gota de suor descer pelas minhas costas, ar-

    repiando-me. Ora, ora, ora. Pela primeira vez uma reao correspondente. Riu novamente. Virou a cabea e passou a mo pelo queixo

    tocando a barba serrada de um modo pensativo. Eu acho que voc no merece saber deu uma pausa de

    tudo, obviamente, mas... Deu outra longa pausa. Retirou a mo do queixo e levou at a minha coxa, alisou-a devagar at minha virilha. O encarei com firmeza, at sentir-se desconfortvel com meu olhar e tirar a mo de mim. Posso lhe garantir que no sou nenhum idiota. Voltou a ficar srio. Fui policial durante alguns anos. Uma hora algum precisa de um favor seu. Voc faz e acaba ganhando com isso. Tudo oportunidade. E a as coisas comeam a fazer sentido, sabe? O mundo est to encardido por essa podri-do do trfico, da corrupo. E no h nada a fazer seno seguir com o movimento. S que no podemos nos esquecer de certas regras. E eu sinceramente no sou muito simptico com quem des-cumpre as minhas.

    No entendi muito bem a histria que ele me contou. E no-vamente o sujeito levou sua mo at minha perna, comeando a me bolinar suavemente. Eu resisti e fiquei imvel. Prosseguiu com suas afirmaes. O rosto continuava muito prximo do meu. Seus lbios se recostaram em meu pescoo e minha respirao ficou so-bressaltada. A vibrao da sua voz sussurrante se reverberou sobre minha pele. Uma lgrima de horror escorreu lentamente pela mi-nha bochecha.

    Ou seja... Eu no sou nenhum marginalzinho ladro de galinha. Se voc pensa que quebrar a porra dessa cmera vai me

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    atrapalhar... Pode ter certeza de que no. Seus olhos me analisa-ram com distncia. Eu j estava traumatizada o suficiente. Ele final-mente se levantou, amainando a minha tenso. Ele virou o corpo raivoso para evitar alguma agresso naquele momento. Encarou a cmera logo em seguida ficando quase totalmente de costas. Tenta-va rearranjar os cacos com a ponta dos ps, apoiando-se com a mo no batente da porta entreaberta.

    Oportunidades. Ele tinha dito oportunidades, no ? Pois . A minha acabara

    de chegar. Era agora ou nunca. Eu me preparava para um salto. Mas eu precisava tripudiar antes.

    como os indianos dizem. No tropeamos nas coisas gran-des porque as vemos. J nas pequenas e insignificantes...

    Ele riu de leve como se banalizasse o sbio ditado. Continuou na mesma posio.

    Arrastei minhas costas pela parede ficando quase agachada. Lentamente, firmei o p no cho. Uma contagem regressiva mental me encorajava a levantar.

    Mas eu fiz melhor que isso. Pulei da minha posio em um salto largo e me joguei com

    toda a fora contra a porta de ferro, esmagando seus dedos, que estavam apoiados ao batente. Ele urrou de dor. Teve um reflexo e virou o brao que estava livre para me acertar. Eu tratei de me abaixar e envolvi meus braos entre suas pernas para que perdesse o equilbrio e casse, mas ele continuou em p. Acabei dando espao para que me socasse as costas. Quando senti que estava sendo ataca-da, rolei at o outro canto da sala. E isso s piorou a dor. Perdi um pouco de fora durante cinco segundos. Levantei a cabea e vi que havia dado tempo suficiente para que tirasse seus dedos da porta, levasse sua mo at o bolso e sacasse uma seringa.

    Eu tentei me recompor e estava quase totalmente sentada quan-do senti uma leve pontada da agulha em meu antebrao esquerdo.

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    Acabei sendo mais veloz. Fechei minhas duas mos em punho e as bati contra sua cabea. Ele ficou atordoado e meti os dentes em seu brao que tentava me imunizar. Isso o fez se afastar alguns centme-tros, at cair sentado para trs, parando com as tentativas.

    E a, o xeque-mate. Engatinhei rapidamente e enfiei o prego que estava em minha mo em algum lugar de seu rosto. Afastei-me quando ouvi um berro de horror culminante. Foi em cheio em seu olho e nem quis tentar ver em qual. Ao restabelecer minha viso, ele j estava perdendo os sentidos e tombou completamente para trs, com o sangue escorrendo feito lgrimas. E por fim bateu sua cabea na parede. O pnico havia tomado conta de outro corpo.

    Como uma ltima sada, ele deslizou seus dedos com dificulda-de at a arma presa em sua cinta. Coloquei fora nos meus joelhos novamente e me arrastei de um modo acelerado. Joguei-me contra seu corpo, amortecendo a queda. Deixei minhas pernas pressionan-do seus braos, fazendo o maior esforo para mant-los imunizados. Vi que sua cabea havia batido sobre os cacos da cmera quebrada. Eu precisava sair logo dali, antes que os demais ouvissem e fosse tarde demais. Ainda com os braos presos, retirei sua arma e apalpei seu bolso, que estava recheado com algo. Era um molho de chaves com variados modelos e tamanhos. Levei comigo.

    Levantei-me com dificuldade, e o sujeito gemia baixo, tentava se levantar. No consegui fechar a porta, pois havia muitas coisas em minhas mos, ento apenas a encostei para que suas lamrias fossem abafadas. Ao chegar ao lado de fora, o choque foi terrvel. Eu no fazia a mnima ideia de onde estava. Dezenas de caminhos e sadas alternativas comearam a surgir. Foi quando minha men-te me guiou pelos caminhos das minhas recentes lembranas. Eu deveria estar semiconsciente quando cruzei aqueles corredores pela primeira vez nos braos de algum comparsa qualquer. Apostei seguir uma rota que me levasse a uma grande escadaria. Com um alvio transbordante ao ver os degraus me levarem garagem principal,

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    comecei a descer sem cogitar quem pudesse me esperar l embaixo. Ento senti os corrimos tremerem. Era um sinal de que havia gente demais subindo por aquela escada. Pensei rpido e decidi retornar dois pavimentos superiores. Pulei de trs em trs degraus de cada vez, chegando ao andar de cima em um timo. Fiquei camuflada pela escurido. Pude observar a movimentao dos homens no cor-redor de baixo que correram para socorrer o chefe da quadrilha.

    Quando senti os corrimos aquietarem, comecei a descer no-vamente, possuda pelo ritmo apressado. Eram quatro degraus a cada salto. Faltando um ltimo lance de escada, sem pensar, pulei alto para ultrapassar todos os degraus e chegar at o trreo o quan-to antes, mas no deu muito certo e acabei rolando nos ltimos at o cho. Ali, jogada na alvenaria, vi ps se mexerem entre os es-paos da escadaria do segundo bloco daquele galpo h uns vinte metros de onde eu estava. Sorte que estava escuro, e seria difcil me verem de primeira.

    Arrastei-me para detrs da escadaria. Sentei e suspirei com mi-nha respirao intermitente. Senti a pele do meu rosto queimar. Tentei organizar o prximo passo. Olhei em volta.

    O enorme saguo possua muitos portes, e a Kombi estava parada ao norte. Ao olhar para todos os lados, vi que os homens se espalhavam ao sul tentando me procurar. Olhei para o molho de chaves. Eu perderia tempo demais experimentando cada uma delas nos portes. Balancei-as para que eu visse todas em uma grande an-gular. A chave com o logo da Volks reluziu diante dos meus olhos. No havia opo, a no ser arrombar um daqueles portes com algo bem forte e duro. Deixei a frescura e a dor de lado e levantei, voltan-do a correr com dificuldade em direo ao furgo.

    A porta do motorista estava trancada. Coloquei a chave no se-gredo, mas a trava no abriu. Que inferno! Agora nada poderia dar errado, eu estava quase chegando l. Ouvi as escadas rangendo alto, eles estavam se aproximando. A arma estava em minha mo ainda, ento dei uma coronhada no vidro, estilhaando-o. Puxei a trava.

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    Os homens que estavam na espreita pularam de suas posies e apontaram as armas em minha direo. Sentei-me naquele banco caindo aos pedaos e tateei no cmbio procurando a ignio. Olhei para frente e vi pelo para-brisa cinco homens descendo as escadas loucamente, j colocando as mos para sacarem suas pistolas. Abai-xei a cabea quando ouvi o barulho de um tiro. Coloquei a chave na ignio com dificuldade. Carros nunca foram o meu forte e agora eu usaria todo meu transtorno automotivo para escapar. A chave virou e eu lutava para a Kombi pegar.

    No! Qual ?! Vamos l, pelo amor de Deus! Ela deu um coice e morreu. Os tiros comearam a se multiplicar, e o barulho da lataria da

    Kombi se difundindo me desesperou. Fiz mais uma tentativa. Dei a marcha r e fui com tudo no acelerador, pegando velocidade num rompante. Fechei os olhos para no ver.

    O barulho foi estrondoso, graas quele porto velho e arruina-do, tudo se partiu, abrindo a passagem. O furgo continuou a pegar velocidade, subiu sobre os escombros de ferro retorcido e atravessou a enorme avenida. No sei como no houve um embate com os carros que tranavam a rua enlouquecidamente. S ouvi freios e buzinas sendo acionados.

    Como eu estava sem o cinto de segurana, acabei por rolar furgo a fora quando a porta do motorista acabou por cair no lti-mo embate. A luz do dia chegou a ofuscar meus olhos, que estavam acostumados escurido.

    Foi como um choque ouvir sons que eu pensei jamais ouvir novamente. Acho que dei at uma cambalhota no asfalto, mas me levantei, pois ainda precisava correr.

    Naquele momento, eu no sabia se chorava, gritava ou repri-mia toda a agonia e o terror que se instalara em minha garganta.

    Comprimi toda a dor, fechei os olhos e retirei tudo em uma lgrima. Uma nica lgrima, que congelou ao sair de meus olhos

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    com a corrente de vento que transpassava pelo meu rosto vermelho, ardente, desesperado. Comecei a ter a viso embaada pela lgri-ma que se guardava nas minhas plpebras. Eu estava me sentindo hipnotizada, o ar estava me faltando. Estiquei as pernas em mais alguns passos largos. A dor esmagava meu pulmo a cada tragada de oxignio.

    Ento eu ca. Senti o asfalto raspar em meus joelhos e gemi, e no foi pela dor, mas pelo alvio. Aquela dor me deu a maior prova de que eu ainda estava respirando, de que eu ainda estava viva.

    Jogada ali na calada com a barriga para cima, o sol feriu meus olhos. Ento os fechei. Comecei a soluar me sentindo afogada. Res-pirei bem fundo, tentando armazenar o mximo de ar nos meus pulmes, que j estavam doloridos. Tudo estava sumindo, meus ou-vidos j no ouviam com clareza e o ltimo som que ouvi foi uma sirene l longe, apitando enfurecidamente.

    *

    Eu no estava ligada ao externo. Somente ao meu interno. Eu no ouvia, enxergava, sentia ou percebia nada do que estava aconte-cendo ao meu redor. Era como se eu estivesse presa ao meu subcons-ciente. Eu s conseguia pensar de olhos fechados. Estava buscando definies. Explicaes. Ou qualquer outra coisa que preenchesse minha mente, agora totalmente vazia. Ela havia se tornado um cam-po lvido de mim mesma. Onde estava eu?

    Minha mente j buscava novas respostas. E agora? O que aconteceria? Tudo mudaria? De qual forma?

    Ser que eu seria grande e forte para superar tudo? Ou ser que eu me tornaria uma deficiente, com srias sequelas de um acidente trgico?

    Porque no basta voc ser forte, a ponto de conseguir fazer coisas incrveis referente sua resistncia. Voc precisa ser forte por inteiro. At o fim. Para voc mesmo.

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    Forte a ponto de ter sua capacidade racional equilibrada e dig-namente forte. Saber conviver com extremos, sem danos, e saber parar, para poder seguir em frente.

    E ainda assim eu me sentia afogada, com a sensao traumati-zante de ser colocada em um pesadelo em que voc no enxerga o despertar. Onde no existe um despertar. Nem volta, muito menos uma vitria. E para falar a verdade, eu no me via como uma vitorio-sa. Aquilo no poderia ser triunfo para ningum. Eu no precisava passar por aquela tragdia para ser consagrada uma vitoriosa. Eu de-sejaria nunca ser considerada como tal, no por aquela circunstncia.

    Eu cansei minha mente com mltiplos pensamentos. Mas s um ficou claro o bastante para se destacar entre todos. A nica certeza que estava evidente era o modo de olhar a vida, o mundo. No seria to diferente de anteriormente. Mas seria mais profundo, menos efmero, do ponto de vista de uma garota de dezesseis re-centes anos. Como se eu olhasse o mundo no s com os olhos. Eu usaria minha mente, meu corao, eu escutaria durante mais tempo, de uma forma bem codificada. Eu olharia o mundo como um cego.

    Fuja. Fuja de seus limites. Fuja de seus medos. Alcance o risco, alcance a sada.

    Feche os olhos para seus maiores obstculos. Apenas os ultrapasse. No h tempo para hesitar. No pense, apenas fuja.

    E voc vai superar, pois o grande prmio conseguir respirar.

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    Eu no havia visto luz alguma. Em um reflexo de percepo, senti que meus batimentos cardacos pareciam altos e enervantes, mas talvez fosse apenas a exaltao por eu ter despertado. Embora eu continuasse de olhos fechados.

    Era difcil me concentrar em algo. Relutei contra todas as li-mitaes e senti que minha respirao no era suficiente diante do meu desespero. Eu queria me mexer, eu queria provar a mim mesma que eu estava viva. Que eu havia sobrevivido.

    Sobrevivido a qu, afinal? Tentei resgatar em minha memria possveis recordaes re-

    centes. Apenas rostos surgiram e desapareceram diante de repenti-nas imagens distorcidas na minha imaginao. O horror instintivo emergiu pela minha garganta, fazendo-me gritar. Pude ouvir minha prpria voz, pois o rudo de pnico ecoou em minha mente, como se ela estivesse vazia. Gritei novamente para espantar aquela confu-so interna.

    E ento minhas plpebras descolaram rapidamente. Inicialmente, no houve grandes mudanas. Tudo ainda se re-

    sumia escurido. Instante por instante, minha viso alcanou o espao inspito. A luz da lua era a nica iluminao naquele am-biente. Adentrava pelo vidro da janela que ficava a minha esquerda, fazendo reflexo no granito branco do cho. Avistei um sof-cama branco a minha frente com alguns armrios tambm brancos con-tornando aquele quarto. Senti-me melhor, como se estivesse em um lugar familiar. Embora no fosse definitivamente meu lugar.

    Eu estava em um quarto de hospital. Havia um relgio preso parede. O silncio profundo que se reservava no s ao ambiente, mas a minha alma e a minha mente, destacou o tique-taque dos

    C A P T U L O D O I So tempo no para

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    ponteiros. Eram exatamente onze horas da noite. Analisei minhas pernas por debaixo dos lenis e tentei me mexer. Desejei louca-mente poder descer daquela maca e correr, sem haver nenhum lugar especfico em mente. Uma sonda de lquido escuro ainda estava co-nectada a minha veia do antebrao. Meus olhos ento lampejaram para a porta do quarto, que se abriu num rompante.

    A nica pessoa que eu realmente precisava ver; minha me. Seu jaleco branco balanou enquanto tentava chegar o mais rpido at mim. Tentei inutilmente abrir os braos para abra-la, sem ob-ter xito.

    Me! choraminguei. E ento seus braos me envolveram de uma forma fraternal, aninhando-se a meu lado no estreito espao que sobrava do leito. Eu chorei por longos minutos, ali apoiada em seu ombro, como um desabafo, em completo silncio. Ela alisava meus cabelos com suas mos sutis.

    Holly! Soluou. Eu te amo tanto, filha! Ela repetia as palavras como se transbordassem de seu corao. Achei que iria perder voc! Eu rezei tanto para que voc voltasse viva para mim! Ela chorava copiosamente e eu fazia o mesmo. Voc uma hero-na, Holly! Voc minha herona!

    Seus braos se soltaram do meu corpo. Minha me fitou-me profundamente e sorriu, recolhendo uma lgrima logo em seguida.

    Rezei para que nada lhe acontecesse. E olhe para voc! Est melhor do que nossas expectativas. Ela passou a mo pelo meu rosto, e acabei por fechar os olhos. Ver seu semblante foi definitiva-mente a pior parte. Desmanchada em lgrimas, a dor no fundo de seus lindos olhos azuis era evidente, mas ainda assim me admirava com orgulho.

    Eu no poderia me conformar em perder voc, me. Sus-surrei aos soluos.

    Acabou, Holly! Acabou. Voc est respirando! Ela se afas-tou mais um pouco, secando minhas lgrimas com zelo. Acabou.

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    O rosto dela se aproximou do meu, e eu senti seus lbios selarem um beijo carinhoso em minha bochecha. Ela sorriu, rearranjan- do uma mecha da minha franja atrs da orelha.

    Sei que voc uma garota forte, vai superar tudo isso. S que antes de cicatrizar todas essas feridas. Passou os dedos por algumas cicatrizes em meu brao com cuidado antes de me olhar fixamente. Voc precisa cicatrizar suas lembranas, seu emocional.

    Eu estou bem, me! respondi rapidamente, mesmo saben-do que era mentira. Meus olhos denunciaram o bvio. Minha me suspirou.

    Isso me preocupa tanto. Agora voc ter tantas coisas novas para enfrentar... O chefe da investigao precisa lhe fazer algumas perguntas. Nem todos foram presos, Holly. Ela suspirou de um jeito que eu nunca havia visto. Um pesar to grande que chegou a inundar sua expresso de frustrao. So Francisco no mais segura para ns.

    Lembrei do nico rosto que eu havia visto totalmente. Jamais me esqueceria.

    O que voc quer dizer com isso? Solucei. Talvez voc no faa ideia do quanto esse acontecimento ga-

    nhou repercusso. A CNN divulga vdeos e imagens a cada cinco minutos.

    Fiquei extasiada. No havia sobrado muitas reaes, ento ri. E a ltima coisa que pedi foi ser lembrada como uma pobre vtima de um sequestro.

    Qu? E me mostraram nas imagens? No! Garantiu-me com veemncia. Fique tranquila, nosso

    advogado pediu direito de preservao em relao a isso. Ns temos um advogado agora? Ah, eu quero ver! Cad o

    controle? Movimentei meu brao livre com certa dificuldade, que-rendo alcanar o controle da TV. Me, me ajuda! Eu quero ver!

    Filha, isso no para voc. Ela me olhou diretamente como se quisesse me acalmar. Talvez voc precise de algumas visitas

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    doutora Susan, sabe que ela uma especialista, alm de ser uma grande amiga minha.

    Eu no preciso de uma psicloga! Roguei alto. Eu mesma irei me entender sozinha, mas preciso de minhas velhas lembranas. Abaixei a cabea. Parece que est tudo... Apagado.

    Isso faz parte do processo traumtico, mas melhora em al-guns dias.

    Quero ir para casa, me. Levantei a cabea, analisando seu rosto.

    Ela deu uma longa pausa como quem se preparava para um discurso.

    Por favor, me. Uma lgrima de splica escorreu pelo meu rosto.

    Lembra quando eu lhe disse que So Francisco no era mais segura para ns? Aquela cautela nos olhos, na voz. Em silncio, esperei pelo pior.

    Realmente, eu no havia perdido somente minhas lembranas. Acabara de perder minha vida. Eu consegui deduzir perfeitamente o sentido daquela frase. Tudo seria desfeito. Minha rotina, meus sonhos, minhas expectativas. Aquilo seria o preo de uma segunda chance?

    Ento, isso? Vamos ter que nos isolar agora? O desprezo da ideia me congelou por dentro.

    Vamos esperar a sua alta do hospital para irmos embora, Holly.

    As palavras sempre tiveram um poder muito grande para mim. Ir embora. Tudo ficaria para trs. J tenho tudo planejado. Alguma cidade menor, onde pos-

    samos ter paz e discrio. Ela completou a sentena com uma animao discreta.

    As lgrimas se formaram em meus olhos. Refestelei-me com vontade ao leito e me fechei em meus pensamentos. Nunca havia

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    me imaginado em outro lugar. Outra casa, outra escola, outros ami-gos, outra vida. Eu queria a minha vida, a vida em que eu era feliz. Juro que desejei mudar tudo naquela manh e ter me entregado morte.

    Sua vida s acabou neste lugar, Holly. No para sempre. Que-rer recomear nesta cidade com esse histrico no adiantar nada. Aqui no o melhor lugar para ns. Escute sua me, como voc sempre escutou.

    Eu no poderia discordar, mas tambm no poderia aceitar com um sorriso enorme no rosto, por mais que eu soubesse que era inevi-tvel. Mame colocou a mo sobre meu ombro, seu olhar era firme.

    Voc sabe que no pode evitar. S precisa se acostumar ideia. Vai dar tudo certo. Confie na sua me. Sei que errei e sou um pouco culpada por isso ter lhe acontecido. Sinto-me no direito, e inclusive no dever, de proteger voc.

    Ela estava ficando inquieta e irritada com meu silncio. Me. De olhos fechados, levantei uma das mos para que

    ela cessasse de falar. Holly, ns no temos mais nada que nos prenda aqui. No

    temos nossa casa, nossas coisas, no temos nossa liberdade. Tiraram tudo de ns.

    Aquilo me atingiu como um punhal em meu peito. Agora no haveria mais nada que pudesse ser feito. Eu colocaria na cabea que seria bom viver em um novo lugar sem lembranas. E, mesmo assim, nada seria esquecido. Nada.

    Eu no falei uma palavra em relao a discordar, me. Voc consegue entender como tudo difcil para mim? Como uma vida pode ser posta de cabea para baixo em apenas um dia? Uma l-grima escorreu.

    Voc acha que est sendo fcil para mim? Ela foi categrica. Fiquei recolhida em minha posio.

    Uma batida leve na porta nos distraiu da discusso. A maa-neta girou devagar, e a porta se abriu calmamente. Feixes de luz se

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    propagaram na escurido. A sombra de algum que eu conhecia se formou diante de meus olhos.

    Ainda no meia-noite! Feliz aniversrio, Holly!A penumbra de um senhor grande e robusto surgiu. Doutor Andrew! A surpresa se derreteu em meus olhos.

    Uma tcnica de enfermagem prestativa vinha logo atrs. Com um pouco mais de luz naquele quarto, percebi que ele carregava um lar-go pedao de bolo em um prato pequeno, equilibrando-o com es- mero. Eu j podia sentir o cheiro de chocolate mesclado com nozes se infiltrar no ambiente. Aquilo despertou meu estmago.

    Doutor Andrew foi o primeiro mdico com quem minha me trabalhou. Andrew sempre pertenceu a nossa pequena famlia desde que eu era criana, foi meu pediatra e depois se tornou um pai que eu nunca tive. E a nica coisa que mudara era o aumento de cabelos brancos conforme a passagem dos anos.

    Os dois se aproximaram de ns, e a tcnica se reservou a erguer meu leito em alguns nveis, retirando a sonda do meu brao, fazen-do um breve curativo para estancar a insero da agulha. Meu brao ficou livre novamente. Logo descobri que a mesma sonda estava conectada a um aparelho de transfuso de sangue. Tentei ignorar tal fato repugnante. Nunca gostei da ideia de precisar receber sangue alheio em meu prprio corpo.

    Como o senhor adivinhou? Estava morrendo de fome! Pu-xei assunto para desvirtuar os pensamentos e sorri. Ele se aproxi-mou me dando o prato na mo.

    Nada como nossa comida favorita quando se est doente... Ele abaixou a voz enquanto eu me preparava para garfar o bolo furiosamente. E esta comida daqui horrvel, no ? No tem quem aguente! Riu simpaticamente alisando sua barriga por cima do jaleco branco.

    A tcnica finalmente se retirou por completo, nos deixando sozinhos. Doutor Andrew apoiou a mo no ombro da minha me,

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  • 38

    os olhos demonstravam preocupao. Com os anos que eu os co-nhecia, sabia que conversavam pelo olhar. Ela o fitava como se qui-sesse dizer: est tudo bem agora.

    Ele puxou uma cadeira que estava encostada no p do leito e se sentou. Doutor Andrew era bem esbelto, rechonchudo e sempre usava aquele jaleco cor de gelo, com um bordado no bolso esquerdo escrito pediatria.

    Graas a Deus foram embora. Pensamos que dormiriam aqui disse enfurecido minha me.

    Quem estava a? perguntei antes que ela comentasse. Aqueles malucos da imprensa! Achei que passariam a noite

    toda de planto na porta do hospital. Eles vo voltar mame acrescentou com a frustrao bei-

    rando seu olhar. , Holly... Olhou para mim. Todos querem lhe ver, saber

    se est bem. Muita gente ainda no acredita no que aconteceu.Fiquei boquiaberta, perplexa e mergulhada em uma expresso

    de desgosto. Mas tenha calma, querida. Voc vai sair daqui. Alis, vai ado-

    rar San Diego.Olhei para minha me. De repente ela ficou impaciente e no

    sabia se falava ou se ficava quieta. San Diego, me? Sorri para tentar tranquiliz-la. Doutor

    Andrew percebeu. Voc no contou ainda, Catherine? Achei que Holly sou-

    besse que... Eu ia contar, s estava esperando o momento certo. Olhou

    para mim, esperando uma reao desagradvel.Voltei a garfar os ltimos pedaos do bolo. Abaixei a cabea e

    permaneci em silncio durante alguns segundos. Sinceramente, no entendi o porqu de se preocuparem com

    uma suposta reao minha. Por mais que eu estivesse destruda por

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    dentro, jamais descontaria meus pesares em algum. Era grande o suficiente para lidar com meus problemas. E no teria jeito, se no fosse San Diego, poderia ser qualquer outra cidade. Eu teria que me esforar da mesma forma.

    Achei que quisesse uma cidade pequena. Sorri.Senti que os dois no sabiam o que falar. Me, calma. Acho que no h muitas alternativas agora... E,

    alis, acho que vou adorar San Diego. Dias ensolarados, praias e... Antes que eu terminasse o raciocnio, ela me abraou com al-

    vio em sua respirao. Suspirou e senti a leveza em suas palavras. Que bom, Holly! Mudaremos logo que receber alta! Por que to rpido? J temos para onde ir? Quer dizer, uma

    nova casa? Afastei-me.Mame e Andrew se entreolharam. Levantei uma sobrancelha.

    Hmmm. Algo que no queriam que eu soubesse, provisoriamente ou no. Bom, est quase tudo pronto. Tentou disfarar. No se

    preocupe.Tombei a cabea para o lado em silncio, demonstrando mi-

    nhas dvidas. Holly, estou tentando poup-la da parte mais difcil. Nossa

    prioridade maior agora superar esse caos e seguir em frente. Suspirei, concordando. Inclinei-me para dar a ltima garfada

    no bolo. O que me proporcionou uma vertigem implacvel. Senti que o ambiente a minha volta acabara de perder as dimenses reais. Apoiei minha testa com as mos e gemi. Uma nsia doentia emergiu pela minha garganta.

    Filha, est tudo bem? Estou... bem tonta. A voz saiu grogue. Seu corpo ainda est reagindo aos remdios. Encoste a cabe-

    a para trs e respire fundo. Voc perdeu um pouco de sangue hoje. Tente ficar relaxada.

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    Mame adicionou mais um travesseiro atrs das minhas costas. Recostei-me confortavelmente. Puxou meu lenol para que eu ficas-se totalmente coberta, segurou minha mo e recolocou uma mecha de franja atrs da minha orelha.

    Vai poder dormir melhor agora. No h com o que se preo-cupar, sabe disso.

    Obrigada, me. Apertei sua mo e ela assentiu com a ca-bea. Obrigada pelo bolo, doutor Andrew agradeci, vendo-o sorrir amavelmente atravs das minhas plpebras quase fechadas. Bloqueei os pensamentos da mente. Eu s queria acordar no dia seguinte e conseguir no me recordar de nada.

    Foram quase treze horas de sono profundo.E claro que, ao acordar, muitas das lembranas que eu deseja-

    va ter deletado da mente fizeram questo de passar lentamente por trs dos meus olhos.

    Mas, no geral, eu no conseguia refletir muito bem sobre o ocorrido.

    Nem conseguia assimilar todas as outras coisas que haviam acontecido. Inconscientemente, eu sabia que algo havia mudado. Algo me remetia a sensao perturbadora de que uma grande parte de mim havia se perdido naquela manh trgica.

    Como se eu... No me encaixasse em mim mesma... Como se... Tudo aquilo em que eu fosse empenhar minhas foras no surtiria efeito algum.

    Mas eu sentia que todo aquele transtorno ainda consumiria mesmo que indiretamente minha vida por muito tempo... Eu no tinha auspiciosas expectativas acerca das possibilidades de con-seguir superar o trauma. Eu apenas cogitava que, com o tempo, eu fosse adormecer o incidente, de forma que ele diminusse, que sim-plesmente perdesse sua importncia. Embora no fosse isso que eu queria. E, provavelmente tentando definir tal lapso de tempo ,

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    poderiam se passar anos at que isso acontecesse. E eu nunca quis me tornar refm de meus prprios medos.

    Porque... vamos ser sinceros, o tempo no cura tudo. Alis, o tempo no cura coisa alguma. Ele apenas desloca o incurvel do centro das atenes.

    Esse tal de tempo s serve para nos envelhecer, nos amargar. Faz com que geraes se distanciem, se desconheam. Torna o co-nhecido meramente estranho; e o estranho, nunca antes existido. Se voc no o usa a seu favor... o jogo acabou. De repente voc perdeu a oportunidade de aproveitar o melhor momento, a melhor oportuni-dade. Passou. Afinal, o tempo no faz uma pequena pausa para voc arrumar sua vida. No existem contestaes contra ele.

    O tempo simplesmente corre, no importa se voc est atra-sado, se precisa recomear tudo outra vez ou se precisa de algum tempo para colocar tudo no lugar.

    E, por mais que eu tivesse conscincia de todos aqueles fatores, eu no sabia para onde e muito menos como o tempo me levaria a chegar a algum lugar.

    Afinal, a gente nunca sabe at onde pode chegar.Foi ento que eu decidi dar meu primeiro passo. Levantar da-

    quele leito e provar a mim mesma que eu podia superar todos os meus traumas.

    Minhas pernas no se mexiam com tanta facilidade. Talvez a inrcia prolongada do meu corpo tivesse complicado meus movi-mentos, mas isso no era tudo.

    Com as minhas tentativas foradas de descer minhas pernas, uma dor insuportvel abalou meus msculos ao tocar os calcanhares no cho. Usando os mveis como apoio, arrastei-me at o banheiro. Eu queria ver meu rosto, queria me reconhecer. O reflexo no espe-lho mostrou a triste figura de uma jovem garota branca como neve, com olhos secos do tamanho da Lua. Enrolei o cabelo para livrar meu rosto e conseguir lav-lo com sabonete erva-doce do hospital.

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    Bochechei os dentes com um pouco de gua e senti falta da minha escova de dente. Como era horrvel no estar em casa. Voltei ao quarto e vislumbrei a presena de algumas bagagens de mo ao lado de uma pequena quantidade de caixas de papelo empilhadas ao lado da porta. Puxei uma das cadeiras que esgueiravam a parede frontal e me sentei frente daqueles pertences. Alcancei uma das malas, apoiando-a sobre meu colo. L dentro havia itens de higiene pessoal, como meu desodorante favorito, xampu para cabelos tingi-dos e outras futilidades femininas. Devolvi a pequena bolsa ao cho e me preparei para buscar a outra. Ao abaixar, notei que havia um pequeno pedao de papel entre as mochilas. Era um bilhete.

    Um gelo tomou meu corao de repente. As lembranas eram mais automticas do que minha prpria percepo externa.

    Era um recado escrito pela minha me.

    Ainda no sei como comear este bilhete... Mas s sei que no tenho boas notcias. Est a tudo que nos restou. Eu voltarei noite, querida. Estou resolvendo os preparativos para nossa via-gem. Voc ter exames a maior parte do dia, seja forte. Mame ama voc, acima de qualquer coisa.

    Ler, naquele silncio abissal, palavra por palavra, foi difcil de no conter as lgrimas. Difcil no sentir um aperto sufocar o peito diante de tamanha impotncia. Nada poderia ser feito. Engoli a de-cepo e respirei fundo.

    E o sbado foi o mais neutro possvel. At o clima contribuiu para aquela apatia toda. O cu em um cinza apagado e as gotas de chuva escorrendo loucamente pelo vitral da antessala de ressonn-cias repercutiu em mim uma sensao tensa do perodo ps-acon- tecimento trgico.

    Naquela mesma noite, eu virei alguns canais de TV buscan-do notcias sobre o sequestro. Era impossvel no sentir irresistveis

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  • 43

    pontadas de curiosidade acerca do caso. Mas infelizmente naquele horrio no havia nada a respeito. Frustrada, desliguei o aparelho sem delongas e me encolhi.

    E se eu no precisasse ligar a TV, muito menos abrir os jornais mais clebres do mercado para descobrir os precedentes da minha prpria tragdia... Eu poderia muito bem saciar aquela minha igno-rncia. Eu tinha tantas dvidas.

    Eu simplesmente precisava saber.Algo no preenchido dentro de mim buscava respostas, e eu

    tinha a breve impresso de que eu poderia ir atrs delas. Respirei fundo diante dos meus questionamentos. Minhas pl-

    pebras relaxaram sombriamente e eu fui levada pelo efeito avassala-dor do sono.

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    O tempo estava sendo injusto comigo, apressando coisas que eu queria um pouco mais de tempo para aprender a lidar. E no teve jeito. A segunda-feira amanheceu apagada. Nuvens rechonchudas completaram o cu de outono.

    Naquele dia, logo pela manh, os investigadores me visitariam para fazer algumas perguntas. Mame havia me garantido que o chefe de investigao cuidaria do caso com uma preocupao dife-renciada. Quando acordei de um sono profundo, trs homens me encaravam perplexamente curiosos. Mame tambm estava presen-te, mas reservada no canto norte do quarto, apenas observando. Os dois detetives brutamontes permaneceram em p. J o senhor Freelemann, o superior responsvel pela investigao, sentou-se na cadeira ao lado do leito com intimidade. A cada pronunciamento prolixo, ou informao sem muito sentido que eu pronunciava, o homem de olhos afundados me encorajava com uma expresso de extrema compaixo. Eu contei tudo de que consegui lembrar. Con-tei exatamente tudo que minha mente havia guardado com riqueza de detalhes.

    O detetive mais robusto, senhor Tucker, limpou a garganta afli-to e colocou as mos nos bolsos quando acabei.

    Ento o cara que estamos procurando um ex-policial. Segundo informaes do sujeito... Levantei uma so-

    brancelha.O segundo detetive, cujo nome eu no me lembrava, sacou um

    envelope marrom que estava debaixo do brao. Retirou alguns do-cumentos e os colocou esticados sobre meu colo, o que em seguida descobri serem fotografias.

    C A P T U L O T R Sforas ocultas,

    indefinidas e inexplicveis

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    Preciso que voc os reconhea. Estes foram pegos no local do cativeiro.

    Eram cerca de seis fotos. Virei o rosto vagarosamente at me deparar com elas. Um n entalou na minha garganta.

    Qual deles voc consegue identificar? insistiu. Levei a mo sobre a testa e fechei os olhos, criando fora. Senti

    uma gota de suor frio descer pelo meu pescoo sombriamente. Olhar aqueles rostos resultou numa vontade doentia de vo-

    mitar. Este. Recolhi a terceira foto exposta. Nela estava um rapaz

    grande, pele clara, cabelos encaracolados. Traos finos. Eu o vi no furgo.

    Voc viu o rosto? perguntou desconfiado. Sim. E quanto aos outros? Apontou para o restante das fotos. No tenho certeza. melhor parar. Virei o rosto, rejeitan-

    do as imagens.Houve um momento de silncio. Acho que eu no estava aju-

    dando muito.O detetive recolheu as fotos e se afastou um pouco, insatisfeito. Ok, senhorita Armstrong. Senhor Freelemann suspirou,

    antecipando despedidas. No se preocupe que iremos encontrar esse corrupto desgraado. Uma hora esses caras tero de abrir a boca. Os trs ali se entreolharam sombriamente. Mas j vou avi-sando... O velho de voz benevolente se virou para minha me. Um tom de advertncia em seus olhos maduros me deixou desconfiada. possvel que precisemos da reconstituio ainda esta semana. E Holly ter de nos acompanhar.

    Mame no pareceu aprovar muito a ideia. Senhor Freelemann prosseguiu sem se preocupar com a reprovao dela.

    Bom, Holly. Por hoje s. Ele repousou sua mo em meu ombro com certo apreo. Amanh o legista vir para terminar o seu laudo.

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    Assenti rapidamente, e ele continuou, um pouco sem jeito. E saiba que voc est de parabns. Ele me olhou lisonjeado. Obrigada! Estou tentando... Como mesmo que vocs di-

    zem? Superar. Voc tem uma fora que pouqussimas pessoas desenvolvem,

    garota. Sinceramente... Eu preferia que nada disso tivesse aconteci-

    do. Preferia nunca ter de desenvolver qualquer tipo de fora. Imagino o quanto est sendo difcil. Eu tenho uma filha da

    sua idade e fico pensando no quanto o mundo dela pequeno. Li-mitado. Acho que se algo do tipo acontecesse com Molly ela jamais se recuperaria. No h esse seu fortalecimento emocional.

    Agradeo mais uma vez pelo reconhecimento. E... mande um abrao por mim sua filha.

    Pode ter certeza de que falarei de voc hoje.E finalmente apertou minha mo com um sorriso afvel no

    rosto. Ele e sua equipe se retiraram logo em seguida. Mais uma etapa ultrapassada. Eu ainda tinha um longo dia pela

    frente, com diversas sesses de intensa fisioterapia me esperando. Pensar na hiptese de voltar quele lugar no me amedrontava

    tanto. Eu realmente considerava essa ideia como uma boa oportu-nidade para saciar meus questionamentos mais densos. Pior mesmo seria receber a visita do legista na tera-feira, como havia me garan-tido o senhor Freelemann.

    O legista era um japons mal-encarado, baixinho e usava cu-los fundo de garrafa. No falava e muito menos olhava diretamente para as pessoas.

    Coloquei aquele avental de cor verde-claro de hospital e me preparei para ser examinada.

    Ele tocou o topo da minha cabea e sentiu meus galos. Tes-tou meus reflexos nos joelhos e contou cada hematoma das minhas costas. Mexia-me para um lado e perguntava se doa. E, cara, doa

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    em todo lugar! E nem tinha percebido. A pior dor que senti foi no ombro direito. Perguntei o que era.

    Foi um corte. Os pontos esto cicatrizando respondeu for-malmente.

    Quantos pontos, exatamente? Catorze. Parece que h mais cicatrizes a cada dia. Ri. Ele continuou

    calado.Fiquei to sem graa que mal consegui abrir a boca para falar

    algo de novo. Esperei ele terminar em silncio. Virou-me a pranche-ta para eu assinar. Dei um visto grosso e olhei firme, mas ele nem me deu ateno. Saiu em seguida sem se anunciar. Se tem uma coisa que eu no suporto neste mundo o tal do mau humor. Desci da maca e voltei a vestir a roupa que estava antes. Eu teria uma tarde cheia de testes cardacos no quinto andar.

    Na manh do dia seguinte, mame recebeu uma ligao que a deixou revoltada.

    Notcia: a reconstituio teria de ser feita. E o mais rpido possvel.

    Eu tive de passar duas longas horas tentando convenc-la de que eu realmente tinha capacidade e estrutura emocional para en-frentar aquela medida necessria. Minha alta no havia sado, mas eu j conseguia andar sem muita dificuldade, meu corpo ainda esta-va fraco, mas minha mente funcionava perfeitamente. Eu precisava fazer aquilo. E sozinha.

    *

    Na quinta-feira, dia 23 de outubro, toda a trupe pericial me esperava no estacionamento do hospital, antes mesmo do incio da alvorada, para despistar a imprensa e a grande quantidade de curiosos.

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    A viatura da polcia que nos acompanhava iluminava as ruas do Tenderloin pela sirene. Eu olhava tudo com muita preciso. O galpo estava todo isolado pelas fitas de segurana, o que fez alguns carros se espremerem pela calada. O moletom de capuz escondia meu rosto, e no olhei em volta, mas aparentemente as coisas esta-vam correndo bem. O dia comeava a surgir acanhado nos prel-dios do imenso cu de So Francisco.

    Eu olhei a edificao daquele galpo abandonado com um aperto sufocando meu peito. Eu no sabia como eu reagiria ao en-trar naquele lugar novamente. E, embora estivesse sentindo a aflio de vivenciar aquela realidade transgressora to recente pela segunda vez, esforcei-me e segui em frente.

    A histria se corroborava por fragmentos. Os estilhaos de vi-dro no cho da garagem principal, as marcas dos pneus cantados, gotas de sangue pelo caminho. Tudo foi coletado. As escadarias pa-reciam mais empoleiradas, e os corredores, mais atolados que an-tes. Estar de volta quela atmosfera me remetia a um dj vu, assim como um pesadelo antigo que voc deseja nunca mais relembrar, mas sabe que as imagens aterrorizantes continuaro por um bom tempo intactas em suas lembranas.

    A equipe da percia era grande. Havia pessoas responsveis somente pelo andar trreo, outras pelo superior, a outra parte s fotografava e alguns se espalhavam atrs de novos vestgios. Dois agentes me acompanhavam exclusivamente. Ambos tinham seus olhos vidrados nas lentes da cmera.

    A sala onde eu tinha sido trancafiada estava aberta. Manchas de sangue, que escorriam pela parede sul, chamaram a minha aten-o. Era o sangue do sujeito. Com um breve aceno, o agente dedu-ziu meu gesto em um instante.

    timo. Era isso que estvamos procurando. Ele retirou alguns utenslios de sua maleta prata.

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    Nas extenses da parede, ainda estavam as marcas dos meus de-dos. Encarei meus pulsos enfaixados e me recordei do momento em que forcei as algemas para me soltar. Eu ainda os sentia doloridos.

    Holly... Algum me tirou dos meus pensamentos. Oi. Sorri simpaticamente para o perito uniformizado que

    me espreitava. Era um rapaz alto e um bocado forte. Venha ver o que achamos. Ele fez sinal para que eu o

    seguisse.Descemos as escadas at o trreo, onde se concentravam algu-

    mas divisrias que formavam salas improvisadas. O tal agente de investigao me guiou at uma delas, onde a quadrilha permaneceu durante o meu sequestro.

    Luzes fluorescentes iluminavam um ambiente completamente revirado. Certamente houve uma tentativa de incndio ali. As pa-redes escurecidas por fuligem denunciavam a circunstncia. Ainda assim, documentos se perdiam sobre as mesas, sacos plsticos lota-dos de lixo estavam espalhados pelo espao e restos de entulhos de construo cobriam parte do cho, pois na parede norte uma fenda havia sido aberta, talvez para uma possvel fuga. Analisei o lugar desordenado com mais ateno e denotei algo peculiar.

    Havia uma pequena grade no alto da parede esquerda. A tubu-lao de ar.

    Enquanto eu me perdia naqueles infindveis detalhes, espian-do curiosamente o contedo daqueles documentos espalhados pe-las mesas, o perito se aproximou.

    Quem Christopher Fields?Parei por um momento. Ele detinha um papel nas mos. No fao a menor ideia respondi. Sua me trabalha no Hospital Municipal de So Genaro?

    leu o papel. Aos sbados, no planto da emergncia respondi. O agente sacou o rdio do bolso e contatou algum colega. For-

    neceu os dados e ficou aguardando a resposta.

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    Durante esse tempo, meus olhos rolaram de volta s folhas. Ha-via mapas, vrios nomes, telefones, folhas rasuradas, havia at uma foto minha do tempo da formatura da oitava srie. Diante daquelas provas, comecei a concluir que o sequestro havia sido muito bem planejado. Eles haviam pesquisado os principais dados da minha vida e da vida de minha me. Atrs de mais papis, havia um rela-trio muito peculiar. Reli-o algumas vezes. Foi quando percebi que eram diversos horrios. Os desgraados estavam minha espreita desde setembro. Sabiam quando eu saa de casa e quando retornava. E eu nunca havia percebido nada. Que data mais desgraada para se marcar um sequestro. Meus raciocnios acabaram junto com o telefonema do agente.

    Consegui uma informao. Esse Christopher Fields dono da rede So Martin de hospitais. Vamos entrar em contato para saber como o nome dele surgiu no meio de tudo isso.

    Minha me deve conhec-lo, se bobear. E esses papis em suas mos? Apontou. Oh, sim. Inspirei com pesar. Todo meu histrico de sa-

    das, lugares, horrios... Olhei com tremenda frustrao para as evidncias. O rapaz percebeu minha expresso ressentida e tratou de recolher os documentos.

    Suspirou rapidamente, tentando me confortar. Voc agiu na hora certa, no houve tempo desses caras apa-

    garem nada. Devolveu os papis mesa e comeou a fotografar. Posso pedir um favor para voc?

    Estou atrapalhando, no ? Fui bvia. Claro que no! S queria que avisasse o detetive Tucker para

    desligar a chave de luz. O pessoal vai entrar aqui daqui a pouco com o luminol.

    Pode deixar. Sorri, j me preparando para sair. Olha ele disse alto, impedindo-me de continuar. Se qui-

    ser, pode esperar no carro da viatura sugeriu atenciosamente.

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    Positivo brinquei batendo continncia e terminei por me retirar.

    Falei com o detetive Tucker e me enfiei no carro da polcia. s nove horas da manh ainda no haviam chegado. Sentei no banco traseiro e recostei a cabea. Acho que trinta segundos se arrastaram como uma hora. Avancei o brao sobre o painel e liguei o rdio.

    [...] Bom dia, voc est ouvindo a mais uma transmisso do Jornal da Manh, com Larry Fray. Depois do ltimo dia dezessete, em que um seques-tro foi desarmado no bairro Tenderloin, hoje chegou o grande dia da recons-tituio. O galpo que est sendo investigado foi cenrio de um dos crimes mais bem planejados da histria de So Francisco. Mas os bandidos no contavam que sua vtima, uma adolescente de dezesseis anos, fosse capaz de desarmar todo um esquema e salvar-se do crime quase perfeito. Escute a co-bertura completa desde o primeiro dia pelo nosso jornalista correspondente.

    Um som de multido comeou a aumentar de volume. Eu ima-ginava a rua apinhada de pessoas, as viaturas de polcia isolando a avenida e os diversos criminosos sendo presos. Os curiosos de planto batiam palmas para a ttica da polcia em resolver mais um crime. Um reprter narrara as movimentaes.

    Holly Armstrong foi sequestrada s oito horas desta manh ao sair de casa no bairro de Potrero Hill, indo para a escola em que estuda, at que os meliantes a abordaram e a levaram para o cativeiro. Acompanhe com nos-so correspondente alguns depoimentos. Segundo os colegas da escola, havia uma comemorao no dia de hoje em razo do seu aniversrio.

    Vocs estudavam com a vtima? o reprter perguntou a algum.Reconheci a voz logo de cara. Minha amiga Danie chorava

    muito e sua voz sumia de acordo com as respostas que dava. Ela nossa melhor amiga! Havamos preparado uma surpresa, mas

    tudo aconteceu to rpido! Amiga, esteja onde estiver, ns amamos muito voc!

    O reprter continuou a fazer perguntas. Holly j havia sofrido algum atentado desse tipo anteriormente?

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    Nunca! Ela no tem nada que chame a ateno para ser alvo de uma barbaridade dessas, ainda no conseguimos entender como pde acon-tecer. Distingui a voz de Sidney logo que completou a frase. O reprter, no satisfeito, insistiu com mais questionamentos.

    Qual a ideia que vocs tm dessa histria? No queremos especular nada! S queremos ver a Holly bem, que-

    remos que nos deem notcias. Ansiedade e dvidas esto nos matando. E sabemos que ela precisa de ns.

    Sidney! As lgrimas escorreram desenfreadas pelos meus olhos. Aquilo havia sido to diferente para mim. Inesperado demais. Ouvir meus amigos ali, longe. Queria tanto poder abra-los, dizer que estava tudo bem e avis-los que ficaria longe por um tempo.

    Agora oua a situao que se segue nesta manh, dia da reconstituio. Daniel, como est a movimentao por a?Recolhi as lgrimas e me virei para analisar os portes que es-

    condiam a situao acontecendo do lado de fora. At agora ningum saiu de l de dentro. Os policiais que esto

    escoltando a equipe legista no nos dizem nada. Parece que a garota est participando da reconstituio, Larry. Vamos apurar novas informaes.

    Ok, Daniel, estaremos aqui aguardando mais notcias. E agora te-mos a presena do xerife Thompson, da dcima quarta diviso de...

    Eu desliguei o rdio. No precisava ouvir mais nenhuma pa-lavra. Desci do carro e fui em direo ao porto. Os agentes que estavam ali espalhados me olharam firme.

    No vou sair l fora, no se preocupem. S quero espiar garanti.

    Pela fresta do porto, a imagem de uma multido surgiu. Muitas vans de televiso e rdio deixavam a rua interditada. Como o reprter havia descrito, os policiais que nos escoltavam permaneciam inertes, como esttuas diante do terreno do galpo. Aquele alarido, baru-lhada, pessoas batendo palmas s vezes. Uma celeuma instaurada. Comecei a rir por no haver outra reao. Que ridculo. Os policiais

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    afastavam as pessoas para trs, mas no adiantava muito, em meio tempo, as faixas de segurana estavam se esticando de novo.

    Como est a fora, Holly?O agente alto e forte responsvel pela sala dos documentos

    apareceu por trs e recostou a mo sobre meu ombro. J foi a um circo? muito melhor que isso. Dei uma risada

    sarcstica. Veja pelo lado bom. A opinio pblica sempre piora a barra

    dos culpados. No tenha dvida que voc ganhou muitos fs. Fs ironizei. Se eu tivesse acabado com a fome na Somlia

    ou criado um acordo de paz em Israel. Eu s salvei minha prpria vida. No tem nada de heroico nisso. Revoltei-me. E nem sei se consegui.

    Esse o seu ponto de vista. A sociedade sempre precisa de dolos. Seus olhos me fitaram e eu fiquei em silncio. J termi-namos. Quando quiser ir...

    Virei-me em sua direo. No havia reparado no seu crach que levava seu nome. Perito Nicholas.

    Podemos ir agora, Nicholas.Ele tocou em seu crach, percebendo a procedncia da minha

    descoberta. Pode me chamar de Nick. Tenha certeza de que perteno ao

    seu f-clube oficial.Eu ri sinceramente e assenti. Ser que posso lhe pedir um favor? Repousei meu dedo in-

    dicador sobre os lbios, pensativa. Nick levantou uma sobrancelha.

    E l fui eu no banco de trs da viatura. Com colete preto, bon da percia, cabelos presos e um culos

    escuro. Pedi para me camuflarem. Eu no queria ser vista. No to

    recentemente.

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    Samos despercebidos pela multido. Assisti a tudo aquilo com certo humor. Eu me sentia a Britney Spears ou at mesmo nosso governador. Alguns carros ainda continuaram l para despistar a ateno. Demos vrias voltas pelo quarteiro at entrarmos no esta-cionamento do subsolo do hospital. Nick me acompanhou. Retirei minha camuflagem e entreguei-a em suas mos. Agradeci.

    Acho que foi um dia difcil para voc. Precisa descansar. Nick puxou papo.

    ... Digamos que sim. No muito bom reviver tudo outra vez, mas eu levo isso como uma meta, sabe?! Tentar entender as coi-sas tambm uma forma de aprender a super-las.

    Admiro. No sei se teria a mesma coragem.Dei de ombros. Bom, at qualquer dia despediu-se de forma atenciosa.

    Senhor Freelemann a deixar a par das investigaes. Obrigada mais uma vez, Nick. Aquele silncio se firmou

    no ar. Permaneci segurando a porta do meu quarto. Ento, at qualquer dia. Sorri sem graa.

    At mais. Ele acenou e eu fechei a porta.Minha perna estava doendo mais do que o normal. Preparei-

    -me para me virar e andar at meu leito, imaginando umas boas horas de descanso, quando fui tomada pela surpresa.

    Me?! Avistei-a encostada cama, assinando alguns papis. Achei que estivesse trabalhando.

    Ela percorreu a distncia entre ns, aproximando-se de mim rapidamente.

    Filha, j est tudo pronto! Estou to feliz! Abraou-me re-pentinamente. Eu fiquei um pouco deslocada, mas mantive um sor-riso no rosto por precauo.

    Iremos embora na prxima semana! Ah, querida! Estou to feliz por voc, por ns! Agora tudo vai dar certo!

    A confiana dela me surpreendeu. E de uma maneira positiva.

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    Que timo, me. Parece que seu dia foi produtivo. Sorri, sentando-me na cadeira que espreitava a cama. Eu j no aguentava o desconforto pelas dores.

    Ah, tenho tanta coisa para contar para voc, Holly! San Diego to linda! Voc vai amar! J consegui dois hospitais para trabalhar! Tem uma escola tima para voc! Nosso apartamento perfeito!

    Vamos morar em um apartamento? Como ele ?Ela suspirou para falar. Ah, bonito. Voc j viu? Ainda no, mas est tudo acertado, Holly! No importa que

    por enquanto s tenhamos uma cama e uma geladeira em nosso novo apartamento. Estaremos em paz, querida. Abraou-me no-vamente.

    Pelo jeito no sobrou nada da nossa casa, no . Deduzi. Mame desvirtuou o olhar. Suspirou ligeiramente e voltou a abrir a boca para tentar se contentar.

    Me, ns vamos ficar sem nada dentro de casa. Vamos usar o dinheiro que voc estava guardando para comprar meu carro.

    No, querida. No v abrir mo de seus sonhos por causa disso.

    Ah, me! Por favor... Revirei os olhos. Isso foi ideia sua, mesmo eu no gostando muito de carros. Mal sei ligar um. Ns duas sabamos que quem dirigiria esse suposto carro seria a senhora. Fique tranquila. Quando chegarmos em San Diego a gente provi-dencia tudo.

    Eu te amo tanto! Seremos to felizes de agora em diante! Ela se ajoelhou minha frente e segurou minhas mos. Logo deitou a cabea entre meus joelhos.

    Eu te amo, me. Passei as mos sobre seus cabelos louros e finos.

    Ela se afastou, e eu pude perceber um resqucio de lgrima em sua plpebra.

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    No quer saber como foi meu dia hoje? Sorri. Acho que no necessrio. Fitou-me profundamente,

    como se estivesse reunindo as palavras certas. Sabe, minha filha... Acho que devemos enterrar muitas coisas agora. Apenas deixar de falar. Ser mais fcil. E, ah! Alegrou-se por um instante. Andrew quer falar com voc mais tarde.

    Apenas assenti, sorrindo. E ento mame me sorriu de volta, complacente.

    Doutor Andrew apareceu no incio daquela noite para me pa-rabenizar pela recuperao. Seus olhos afveis me analisaram com preocupao enquanto eu, repousada sobre o leito, curtia o efeito do sono em razo dos remdios.

    Mame disse que o senhor tinha algo para me falar afir-mei com minha voz grogue. Ele arrastou uma cadeira para perto da cabeceira.

    Nada com que voc tenha que se preocupar, querida. s um convite. Nesses ltimos dias que ficar por aqui, voc pode mui-to bem visitar a pediatria quando se sentir muito entediada. Sua me j lhe falou da previso?

    Sorri antes de responder. Sim... Meus olhos estavam prestes a fechar, mas prossegui.

    Na prxima semana, comeo de novembro. Parece uma criana falando.

    Ela realmente est muito feliz. Voc no sabe como essa situa- o a abalou. Suspirou com pesar. Mas voltando a um bom assunto... Quero lhe ver qualquer dia no segundo andar. A no ser que no se d muito com crianas.

    Eu at que gosto de crianas Sorri. S no tenho muito apego.

    Senti sua mo delicada tocar minha testa suavemente. Doutor Andrew riu convencido.

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    No se preocupe com isso, voc uma delas ainda. Ri. Tudo bem, voc ganhou afinal confessei, deixando-o or-

    gulhoso.

    *

    Assim como em minhas mais fnebres lembranas, eu olha-va o calendrio pregado porta do quarto do hospital com certo ressentimento. Sete dias haviam passado rpido, mesmo que eu no sentisse dessa forma. Eu sabia que minha vida estava respirando os ltimos momentos do meu passado remoto. Dentro de alguns dias, tudo seria deixado para trs. Eu assumiria uma nova identidade, pois eu no seria mais a Holly Armstrong. Meu nome se tornaria um fardo, um passado carimbado em minha prpria existncia. Eu tambm sabia que as maiores lembranas que eu guardava dentro de mim deveriam ser apagadas. Mesmo duvidando da minha ca-pacidade para fazer isso. Seria apenas uma medida necessria para amenizar a dor pelas minhas maiores perdas. E, ainda assim, eu nutria dvidas em minha conscincia. Mas tudo voltaria ao normal. Eu tinha de acreditar nisso.

    Pela madrugada, eu acordei atnita de um sonho indefinido, mas agitado. Olhei em volta pelo quarto e no encontrei minha me. Ela deveria estar em um dos seus ltimos plantes. Em cima do sof em que ela costumava repousar entre um intervalo e outro, estavam presentes aquelas caixas de papelo que mame resgatou da nossa casa. No eram muitas. Cinco ou seis no mximo. Desci da cama com certa dificuldade e decidi bisbilhotar por mera dis- trao. Levantei as abas ra