20
Educ. foco, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009 ENTRE PISTAS E IND¸CIOS: O PAPEL DO PORTFŁLIO NA AVALIAÇ‹O DE CRIANÇAS PEQUENAS Raquel Costa Cardoso Lusardo 1* Resumo Este artigo apresenta algumas reflexões metodológicas de acordo com o Paradigma Indiciário de Ginzburg (1989) a partir da pesquisa que investigou a compreensão de professoras acerca do papel do portfólio no processo de avaliação das crianças que frequentam as classes de Educação Infantil. A análise e interpretação dos dados foram realizadas através das pistas e dos indícios encontrados. Considerou-se que as pistas e indícios demonstraram que o papel do portfólio está ligado às concepções do professor sobre avaliação, aprendizagem, criança e infância, concepções essas que interferiram na construção do portfólio das crianças, do professor e nas ações docentes. Palavras-chave:Paradigmaindiciário.Educaçãoinfantil. Avaliação. Portfólio. Criança. Infância. Abstract This article presents some methodological reflections based on Ginzburg’s (1989) Indiciary Paradigm and drawn from a research which investigated the primary school teacher’s perception about the role of portfolio in evaluating children. Data analysis and interpretation were carried out by using the clues and hints provided. These showed that the role of portfolio is related to the teacher’s conception of evaluation, learning, children and * Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Professora da rede municipal da mesma cidade. E-mail: [email protected]

ENTRE PISTAS E IND¸CIOS O PAPEL DO PORTFŁLIO NA … · acordo com o Paradigma Indiciário de Ginzburg ... A semiótica teve suas raízes em uma tríplice ... complementa que procurar

Embed Size (px)

Citation preview

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

ENTRE PISTAS E IND¸CIOS: O PAPEL DO PORTFŁLIO NA AVALIAÇ‹O DE CRIANÇAS PEQUENAS

Raquel Costa Cardoso Lusardo1*

ResumoEste artigo apresenta algumas reflexões metodológicas de acordo com o Paradigma Indiciário de Ginzburg (1989) a partir da pesquisa que investigou a compreensão de professoras acerca do papel do portfólio no processo de avaliação das crianças que frequentam as classes de Educação Infantil. A análise e interpretação dos dados foram realizadas através das pistas e dos indícios encontrados. Considerou-se que as pistas e indícios demonstraram que o papel do portfólio está ligado às concepções do professor sobre avaliação, aprendizagem, criança e infância, concepções essas que interferiram na construção do portfólio das crianças, do professor e nas ações docentes.Palavras-chave: Paradigma indiciário. Educação infantil. Avaliação. Portfólio. Criança. Infância.

AbstractThis article presents some methodological reflections based on Ginzburg’s (1989) Indiciary Paradigm and drawn from a research which investigated the primary school teacher’s perception about the role of portfolio in evaluating children. Data analysis and interpretation were carried out by using the clues and hints provided. These showed that the role of portfolio is related to the teacher’s conception of evaluation, learning, children and

* Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Professora da rede municipal da mesma cidade. E-mail: [email protected]

192

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

childhood, which interfered with the construction of the portfolio of the children and of the teachers, as well as with their actions.Keywords: Indiciary Paradigm. Child education. Evaluation. Portfolio. Child. Infancy.

ResuméCet article présente des réflexions méthodologiques selon le Paradigme Indiciaire de Ginzburg (1989) dès la recherche qui a étudié la compréhension des institutrices sur le rôle du portfolio pendant le processus de l’évaluation des enfants qui sont aux classes de l’école primaire. L’analyse et l’interprétation des données ont été exécutées à travers les traces et les indices trouvés. On a considéré que les traces et les indices ont démontré que le role du portfolio est lié aux notions de l’instituteur sur l’évaluation, l’apprentissage, l’enfant et l’enfance, et que ces notions ont interféré à la construction du portfolio des enfants, de l’instituteur et au cours des ses actions. Mots-clés: Paradigme indiciaire. Éducation des enfants. Évaluation. Portfolio. Enfant. Enfance.

Introdução

Este texto enfoca o caminho metodológico percorrido com base no Paradigma Indiciário de Ginzburg (1989), através da triologia que une os procedimentos de investigação de Morelli, Freud e Conan Doyle, na qual a análise dos dados fundamenta-se nos detalhes, em pistas e indícios aparentemente sem importância, mas que se tornam reveladores do que se busca compreender. Essa metodologia foi utilizada na dissertação “Avaliação em educação infantil: concepções de professoras sobre o papel do portfólio”, de-senvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais.

A partir dos estudos realizados e do trabalho de campo, pesquisei como as professoras de Educação Infantil compreendem o papel do portfólio na avaliação da criança. Nesta investigação, os sujeitos foram quatro professoras que participaram anteriormente da pesquisa “Concepção de qualidade em educação infantil: um estudo de caso” (SILVA e MICARELLO, 2005).

193

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

O referencial teórico fundamentou-se em Lev S. Vygotsky (2004, 2000, 1998a, 1998b, 1996). A contribuição de Vygotsky gira em torno da mediação em que a criança tem papel ativo e aprende em in-teração com o outro através da atuação na Zona de Desenvolvimento Proximal. Amplio essa visão com a colaboração de autores das Ciências Sociais trazendo a perspectiva em que a criança é vista como produtora de cultura. Outra contribuição para o embasamento teórico da pesqui-sa foi a ideia da avaliação mediadora proposta por Hoffmann (2005a, 2005b, 2003a, 2003b, 2000) que atua no processo educativo como um instrumento de reflexão sobre a aprendizagem da criança.

A escolha de um caminho metodológico

Ao seguir o caminho das pistas, investiguei a compreensão das professoras sobre o papel do portfólio no processo de avalia-ção das crianças que frequentam as classes de Educação Infantil de acordo com o paradigma indiciário de cunho qualitativo (GINZ-BURG, 1989), que é fundado no detalhe, no singular e orienta a re-lação a ser estabelecida entre o investigador e os dados obtidos, “na busca daqueles que se podem constituir em indícios reveladores do fenômeno que se busca compreender” (ABAURRE, 1997, p. 14).

De acordo com Ginzburg (1989, 1983), o paradigma indiciá-rio surgido nas Ciências Humanas, no final do século XIX, fundamen-ta-se na semiótica, definida por Charles S. Pierce (1839-1914) como ciência geral dos signos. A semiótica teve suas raízes em uma tríplice analogia que une os procedimentos de investigação de Giovanni Mo-relli (1811-1891), Sigmund Freud (1856-1939) e Arthur Conan Doyle (1859-1930), através de sua criação fictícia Sherlock Holmes.

O método de Morelli consiste em investigar os signos pic-tóricos dos quadros pintados por artistas e atribuir o quadro ao seu verdadeiro autor. Para Morelli, os museus continham várias obras atribuídas de maneira incorreta. Ele analisou essas obras buscando distinguir os originais das cópias, além de investigar as obras não-assinadas para descobrir seus autores.

Ao analisar as obras de arte, Morelli não baseou seu méto-do nos traços mais visíveis ou que chamam a atenção, pois, segundo ele, esses traços seriam fáceis de imitar, mas priorizou os pormeno-res mais desprezados, os detalhes que realmente representavam as características do autor e não tinham tanta influência da escola ar-tística à qual o pintor pertencia. Dessa forma, Morelli sugeriu novas

194

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

atribuições às obras de arte expostas em vários museus da Europa e catalogou traços e formas utilizados por diversos autores, trazendo ilustrações que distinguem um pintor do outro.

Segundo Ginzburg (1989, 1983), Freud tomou conheci-mento dos estudos de Morelli antes de escrever a teoria psicanalí-tica e relacionou o método de Morelli com a técnica da psicanálise médica, que procura compreender os sintomas dos pacientes atra-vés de elementos concretos e ocultos, que não são percebidos ou são descartados na observação. Assim, Freud propôs um método interpretativo centrado em pormenores considerados sem impor-tância, mas que são reveladores do que se busca compreender.

Conan Doyle, através de sua obra literária Sherlock Hol-mes, expressou um método de investigação em que o detetive Holmes descobre o autor do crime com base em pistas e indícios imperceptíveis para os outros, como, por exemplo, ao interpretar pegadas na lama ou cinzas de cigarro. A análise de detalhes apa-rentemente insignificantes conduzia a investigação e decifrava os crimes misteriosos.

Essa tríade, Morelli, Freud e Conan Doyle, fundamenta o método do paradigma indiciário para o qual Ginzburg (1989, p. 150-1) tem a seguinte explicação de analogia:

Como se explica essa tripla analogia? A resposta, à primeira vista, é muito simples. Freud era médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura. Nos três casos, entrevê-se o modelo da semiótica médica: a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo [...].

Dessa forma, esse saber se caracteriza pela reconstrução da realidade através de dados aparentemente negligenciáveis, mas que são importantes e fundamentais para a sua compreensão.

Ginzburg (1989, 1983) relata que esse tipo de saber tam-bém acontecera com relação à caça, lembrando que, por milênios, o homem fora caçador e aprendera a reconstruir formas e movi-mentos das presas ao farejar, registrar, interpretar e classificar pis-tas deixadas pelos animais em uma perseguição. Várias gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse tipo de conhecimento para seus descendentes.

195

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Pino (2005, 1991), ao utilizar o paradigma indiciário em sua obra, complementa que procurar indícios de um processo é muito diferente de estabelecer relações causais entre fatos pesquisados, visto que, para ele, esse processo requer uma análise que siga pistas, sinais, inferências e não as causas. O autor, ao relacionar esse tipo de abordagem da análise semiótica com a teoria sócio-histórica, aborda as idéias de Vygotsky e destaca que:

Assim, se interpretar indícios é procurar a significação que eles têm para o olhar interpretativo do pesquisador, esse olhar deve levar em conta a natureza dialética do processo de que os indícios participaram. Dessa maneira, o olhar do pesquisador no ato de interpretá-los será coerente com o quadro teórico de referência, não só com o método. (PINO, 2005, p. 189).

Desse modo, com base no paradigma indiciário, busquei pis-tas e indícios sobre como as professoras de Educação Infantil com-preendem o papel do portfólio na avaliação da criança. O portfólio está inserido na prática de avaliação investigativa, na avaliação como recurso para a compreensão da aprendizagem infantil. Nessa pers-pectiva, o portfólio é um instrumento de avaliação e registro do pro-cesso de aprendizagem, ao mesmo tempo em que demonstra como a criança está construindo seu conhecimento e os momentos significa-tivos que embasam a intervenção do professor através da mediação.

Assim como o portfólio forneceu pistas sobre a aprendiza-gem e o desenvolvimento da criança e sobre a mediação do profes-sor, durante a escrita da dissertação, estive buscando indícios e pis-tas sobre como as professoras compreendem o papel do portfólio e sua construção como instrumento de avaliação investigativa, já que nesse caso, a busca por pistas e indícios requer um olhar observador sobre os detalhes, sobre o que é aparentemente comum, mas que pode revelar algo novo. Ou ainda no que se destaca como diferen-te e mesmo que não seja valorizado como um indício importante, pode revelar o que se busca compreender.

Nesse sentido, ressalto que as pistas são diferentes da cons-trução de categorias a que se refere Bardin (1977), pois as pistas ou indícios dificilmente se repetem. No trabalho de campo tive a opor-tunidade de encontrar pistas únicas que foram importantes. Os pe-quenos detalhes revelaram as concepções de avaliação, de criança e de infância, no que se refere à educação infantil, como, por exem-

196

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

plo, cito o fragmento a seguir, em que a pista “esponjinha” embora tenha aparecido uma única vez, mostrou-se fundamental para defi-nir a concepção da professora sobre criança e aprendizagem.

Mara1 (turma – 06 anos): Olha, a criança, a meu ver, é um ser que está em constante formação, e muito ávido por informação e daí eu acho que é nossa responsabilidade em lidar com criança, porque como eles estão começando a trilhar, tudo que a gente estiver passando para eles é igual uma esponjinha, vai ser sugado, e sabe-se lá como vai ser usado. Então, a informação que é vinculada para a criança tem muita impor-tância. (Transcrição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

Nesse contexto, pequenos detalhes, uma pista que é encon-trada uma única vez, são importantes para a investigação. De acor-do com o paradigma indiciário de Ginzburg (1983, p. 119), “esta in-vestigação pode ser comparada ao ato de seguir os fios em um tear. Chegamos ao ponto no qual eles podem ser observados compondo um todo, [...]. Para chegar à coerência do padrão, percorremos com o olhar as diferentes linhas.” Assim, no trabalho em questão, as pistas percebidas através da observação do uso do portfólio e das entrevistas com as professoras podem ser comparadas com os fios em um tear. Essas pistas e indícios formaram o todo investigado, que representou como o professor de Educação Infantil compreen-de o papel do portfólio na avaliação da criança.

Pistas e indícios sobre a avaliação na educação infantil e o papel do portfólio

Como a Educação Infantil representa o primeiro contato da criança com a instituição educacional, as experiências vindas dessa primeira experiência podem marcar profundamente a criança e sua visão sobre a escola, o professor e a aprendizagem. Dessa forma, considero fundamental que a avaliação na Educação Infantil esteja pautada nas contribuições de Vygotsky (2004, 2000, 1998a, 1998b, 1996) sobre o desenvolvimento infantil e a aprendizagem na perspectiva mediadora, de acordo com o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, que embasa uma ação voltada para a aprendizagem que se adianta ao desenvolvimento, através da me-diação do professor, o que requer uma avaliação pautada na media-ção e na inovação da prática pedagógica.

197

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Conforme a proposta de Hoffmann (2005b, p. 25), a práti-ca avaliativa mediadora possui três princípios fundamentais: o prin-cípio dialógico/interpretativo da avaliação; o princípio da reflexão prospectiva e o princípio da reflexão-na-ação.

O primeiro princípio prioriza a avaliação como processo dialógico, com muitos sentidos, que se convergem na construção conjunta de conhecimentos. O segundo princípio aborda a avalia-ção através de leituras positivas sobre o processo de aprendizagem, deixando de lado as expectativas ou modelos pré-concebidos, com um olhar aberto para a descoberta, para inovações e indagações. O terceiro princípio focaliza a avaliação como um processo mediador construído na prática. O professor reflete sobre sua atuação, apren-de a aprender, intervém na prática pedagógica a partir do diálogo com os alunos, consigo mesmo e com outros educadores, com in-tuito de transformar o seu fazer pedagógico.

Apesar de as professoras apresentarem uma concepção mis-ta de avaliação, que mescla a avaliação somativa e formativa, os prin-cípios expostos acima sobre a avaliação na perspectiva mediadora fo-ram encontrados na concepção das professoras sobre aprendizagem, conforme as pistas encontradas nos fragmentos a seguir:

Berenice (turma – 03 anos): Eu acho que a aprendizagem se faz a todo o momento [...] aprende com o outro, aprende com o professor, aprende com outras salas, [...] tem o colega que divide muito a experiên-cia dele, troca de informação o tempo todo e tem tudo que a gente oferece para ele. (Transcrição da entrevista do dia 29 de junho de 2006)

Noemi (turma – 04 anos): Aprendizagem para mim seria esse processo de descoberta, de descobrir o novo, de interagir com o outro, com o objeto, com os amigos e está [...] organizando o pensa-mento, descobrindo coisas novas, criando outras coisas. (Transcrição da entrevista do dia 28 de junho de 2006)

Talita (turma – 05 anos): Aprendizagem é troca, eu acho que a todo o momento a gente está aprendendo. [...] Aprendizagem é troca, é uma interação com as pessoas. (Transcrição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

Mara (turma – 06 anos): Eu acho que aprendizagem é um momento de troca, eu não acredito na aprendizagem de um, a gente troca o tempo todo, a todo o momento, [...] é um momento de troca. (Transcrição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

198

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Como se pôde constatar nas falas anteriores, as profes-soras afirmaram que a aprendizagem acontece a todo o momen-to e não somente nas ocasiões específicas em que é ministrado o ensino. Outra pista que considero importante é o fato de a aprendizagem estar ligada à troca, em que as pessoas interagem entre si, compartilham descobertas, ideias e experiências.

Entendo que as professoras possuem uma concepção de aprendizagem fundamentada na perspectiva interacionista, com-posta pelo construtivismo de Piaget e a teoria sócio-histórica de Vygotsky, conforme Marques (2001, p. 73) explica:

Piaget (cognitivista-interacionista) trabalhou fundamen-talmente a interação do sujeito com o que lhe é exter-no nos processos de conhecimento, vendo-o como um sujeito ativo. Vygotsky (sócio-interacionista) acresceu aos pólos do sujeito e da realidade, o pólo do Outro, con-siderando as interações sociais o principal elemento na construção do conhecimento pelos sujeitos.

Todavia, é necessário ressaltar que a concepção de aprendi-zagem das professoras contradiz algumas práticas avaliativas adotadas por elas. A ficha de avaliação utilizada pelas professoras enfoca situa-ções e comportamentos condizentes com uma avaliação somativa, ain-da que possam trazer alguns aspectos da avaliação formativa, no que se refere à autonomia das crianças. Percebo não haver clareza quanto à concepção de avaliação que embasa a prática dessas professoras.

A compreensão da avaliação na Educação Infantil requer um retorno histórico sobre a concepção de criança, de infância e, conse-quentemente, de educação infantil. Philippe Áries (1981), com sua obra História Social da Criança e da Família, foi pioneiro em estudar a histó-ria da criança enquanto ser diferente do adulto, o que ocorreu por volta dos séculos XVI e XVII. De acordo com Del Priore (1999, p. 105),

Entre os séculos XVI e XVII, com a percepção da criança como algo diferente do adulto, vimos surgir uma preocu-pação educativa que traduzia-se em sensíveis cuidados de ordem psicológica e pedagógica.

Dessa forma, o reconhecimento da criança como ser dife-rente do adulto trouxe preocupação com a forma de cuidar e educar. A família não seria mais a única responsável pela criança, devendo tal responsabilidade ser dividida com a escola.

199

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Os estudos e pesquisas sobre a criança apontaram para o seu reconhecimento como sujeito de direitos, trazendo a idéia de infância como construção social. Sarmento (2001, p. 13-4) afirma que:

A verdade é que se houve sempre crianças, não houve sem-pre infância. A consideração das crianças como um grupo etário próprio, com características identitárias distintas e com necessidades e direitos genuínos, é muito recente, é mesmo um projecto inacabado da modernidade.

Assim, é possível perceber que, embora a criança seja um ser único que sempre existiu na sociedade, em alguns momentos e, em alguns lugares, não é reconhecida como sujeito. Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 15) explicam que:

Podemos compreender a infância como a concepção ou a representação que os adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida. A história da infância seria então a história da relação da sociedade, da cultura dos adultos, com essa classe de idade, e a história da criança se-ria a história da relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade. Ao se considerar a infância como condição das crianças, caberia perguntar como elas vivem ou viveram esse período, em diferentes tempos e lugares.2

Nessa perspectiva, entendo que o modo de ver e com-preender a criança implica a prática de relações com a própria criança, que não pode ser imobilizada em imagens sociais ou teorias (SMOLKA, 2002), pois as crianças mudam, o mundo se transforma, as relações são alteradas não havendo uma concep-ção ou conceito que consiga visualizar todas essas mudanças, com base na construção social de uma infância única.

Nas entrevistas com as professoras, encontrei pistas so-bre como elas compreendem criança e infância, revelando con-cepções distintas que interferem na avaliação da criança e na prática da educação infantil. Os fragmentos abaixo trazem pistas sobre a concepção de criança:

Berenice (turma – 03 anos): Ah, eu acho que ser criança é a principal, como é que se fala, é a base de toda uma formação. Ser criança é ser inocente, é ser espontânea, é ser... sei lá, eu acho que é tudo. (Transcrição da entrevista do dia 29 de junho de 2006)

200

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Noemi (turma – 04 anos): A criança, ela é um ser em desen-volvimento, que é receptiva a tudo, que gosta de tudo, gosta de participar de tudo, muito interessada gosta de descobrir tudo, é aberta ao mundo, aberta ao novo e aberta sempre a descobrir coisas novas. (Transcrição da entrevista do dia 28 de junho de 2006)

Talita (turma de 05 anos): Para mim ser criança é um ser que está em pleno desenvolvimento e a criança está sempre muito aberta a receber um carinho, uma informação, pergunta, resposta, a criança ela é muito questionadora. Ela questiona a todo o momento, na participa-ção dela, ela questiona o porquê daquilo ou por que que tem que fazer aquilo, ela é muito questionadora. (Transcrição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

Mara (turma – 06 anos): Olha, a criança, a meu ver, é um ser que está em constante formação, e muito ávido por informação e daí eu acho que é nossa responsabilidade em lidar com criança, porque como eles estão começando a trilhar, tudo que a gente estiver passando para eles é igual uma esponjinha, vai ser sugado, e sabe-se lá como vai ser usado. Então, a informação que é vinculada para a criança tem muita impor-tância. (Transcrição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

A professora Berenice revelou uma concepção de criança pautada na teoria de Rousseau (1968), como ser inocente e puro, que é corrompido pela sociedade. A professora afirma que, como a crian-ça é a base da formação humana, educando a criança hoje se prepara o adulto de amanhã. Nesse sentido, a criança é um ser em preparação, um “vir a ser”, o cidadão do futuro que precisa ser educado hoje.

A professora Noemi traz outra concepção de criança, com-partilhada pela professora Talita, ao falar da criança como ser em desenvolvimento com autonomia. Como sujeitos do seu próprio desenvolvimento, as crianças são abertas, participativas e interagem socialmente. A professora Talita revela uma pista interessante sobre a criança, quando acrescenta que elas questionam, ou seja, as crianças não aceitam passivamente as atividades propostas, sendo reconheci-das como sujeitos ativos e críticos.

Por último, a concepção de criança da professora Mara traz implicações sobre a concepção de avaliação e de aprendizagem. Ela afirma que a criança é um ser em constante formação e o que for trans-mitido para elas vai ser sugado como, por exemplo, uma esponja que

201

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

absorve a água: “tudo que a gente estiver passando para eles é igual a uma esponjinha, vai ser sugado, e sabe-se lá como vai ser usado.”

Embora anteriormente a professora Mara tenha falado em aprendizagem como troca, na interação com o outro, ela se con-tradiz ao afirmar que as informações transmitidas por ela serão absorvidas pela criança, além de expressar dúvidas quanto ao uso desse conhecimento por parte do educando. Nesse caso, percebo que a avaliação tem o objetivo de verificar como as informações foram “sugadas” pela criança. A concepção de avaliação está fun-damentada no que a professora transmitiu ao aluno e na forma como o aluno recebeu esse conhecimento.

Concordo com Lopes e Vasconcellos (2005, p. 39) quando dizem que:

Assim toda criança é criança de um local; de forma correspondente, para cada criança do local existe também um lugar de criança, um lugar social designa-do pelo mundo adulto e que configura os limites da sua vivência; ao mesmo tempo toda criança é criança em alguns locais dentro do local, pois esse mesmo mundo adulto destina diferentes parcelas do espaço físico para a materialização de suas infâncias.3

Assim, entendo que a visão das professoras sobre a criança estabelece um lugar de criança, em que os adultos definem os limi-tes de sua vivência, em que se materializa a infância. Nesse caso, a concepção de criança está relacionada com a concepção de infância, a criança representa o sujeito em si e a infância se refere a uma cons-trução social, aos lugares destinados à criança pelo mundo adulto.

Sobre infância, apenas a professora Noemi não diferen-ciou criança e infância. Uma vez que ela volta a afirmar sua visão de criança, as pistas encontradas nas entrevistas com as outras professoras revelaram uma forte influência da teoria de Rousseau (1968) na concepção de infância como a melhor fase da vida.

Diante das diferentes concepções das professoras sobre a avaliação, criança e infância, considero que essas concepções im-plicam práticas adotadas na sala de atividades juntamente com as crianças com relação ao papel do portfólio.

Villas Boas (2004) afirma que o portfólio é uma coleção de produções do aluno que apresentam evidências de sua aprendizagem. Outra definição aponta que o portfólio de avaliação é uma coleção

202

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

que documenta o processo de aprendizagem e permite a tomada de decisões sobre a continuidade do processo educativo (PARENTE, 2004, HERNÁNDEZ, 2000,1998, SHORES e GRACE, 2001).

Considero que o portfólio pode ser definido como um conjunto de produções ou documentos que demonstram o pro-cesso de aprendizagem da criança na escola, coleção que represen-ta informações e evidências sobre como a criança está aprenden-do. Tal processo é marcado pela dinamicidade, na medida em que se apresenta em constante desenvolvimento e envolve a criança, juntamente com o professor, na trajetória de aprendizagem.

O objetivo principal do portfólio é documentar o desen-volvimento da aprendizagem da criança (PARENTE 2004). Os objetivos específicos incluem: planejar as atividades de acordo com a aprendizagem da criança; envolver os pais no processo de ensino-aprendizagem; compreender as diversas modalidades de aprendizagem e promover a participação do aluno na avaliação com ênfase na sua identidade e autonomia.

Desse modo, o portfólio requer a participação da crian-ça, do professor e dos pais em sua construção. Durante a pes-quisa, percebi que quando o professor dirige o processo de construção do portfólio com base na sua própria atuação, isso implica limitação não apenas da autonomia das crianças, mas da participação dos pais, restrita às reuniões onde são entre-gues os trabalhos das crianças e as fichas avaliativas.

Apresento a seguir algumas pistas e indícios que demons-tram como as professoras compreendem o papel do portfólio na avaliação das crianças:

Berenice (turma – 03 anos): Igual o Davi, ontem, ele desenhou ele, achei muito legal porque ele desenhou e pôs um monte de pontinhos assim batendo com a caneta e disse: ‘sou eu soltando estalinho’. Então quer dizer, ele relacionou o estalinhos aos pontos que ele está jogando na folha, até inclusive eu guardei para o portfólio. Eu vou colocar lá como um registro de como ele captou a festa [junina], ele sentiu a festa como um momento alegre, pelo que eu entendi ali, no desenho dele, e ele soube registrar, soube passar para o papel. [...] (Transcrição da entrevista do dia 29 de junho de 2006)

Noemi (turma – 04 anos): [O portfólio] seria o registro do desenvolvimento da criança, porque ali também registra o desenvolvi-mento dela [para] realmente perceber, acompanhar o desenvolvimento dela. (Transcrição da entrevista do dia 28 de junho de 2006)

203

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Talita (turma – 05 anos): [O portfólio] mostra o processo de desenvolvimento dela [criança], eu acho que através do portfólio a gente consegue perceber esse processo. Na pasta do Daniel, no início do ano, no nome dele, trocava as letras, faltava as letras, eu até coloquei no portfó-lio, depois de quinze dias ela já escreveu o nome perfeito [...], então eu colei as duas folhas, do primeiro dia de aula e a outra mais para frente, fi z a observação [registro] então quer dizer, me deu suporte de ver como ele está desenvolvendo, então mostra para a gente esse processo. (Trans-crição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

Mara (turma – 06 anos): [O portfólio] ele é um registro, fi ca registrado naquele momento o que você achou signifi cativo, principal-mente quando a gente está observando um caso onde a criança precisa ter algum tipo de melhora, eu acho que ele [portfólio] é uma referência. Então à medida que você vê que a criança piora ou melhora, aquilo fi ca registrado, [...] se não fi car registrado, talvez você não seja tão fi el na hora de ter uma atitude com a criança, de indicar um caminho no seu trabalho e às vezes você tem que mudar muito a direção do trabalho, até pelo rendimento da criança que é muito diferente um do outro. (Trans-crição da entrevista do dia 30 de junho de 2006)

A professora Berenice relata um episódio em que uma criança registra o que considerara mais significativo na festa junina, através do desenho de si mesmo “soltando estalinho”. A professora fez o regis-tro da fala da criança no desenho e guardou para colocar no portfó-lio, como documentação da aprendizagem. Nesse fragmento, percebo uma pista que demonstra a compreensão do portfólio como registro de aprendizagem significativa para a criança e também para o professor.

Para a professora Noemi, o portfólio é o registro do de-senvolvimento da criança, que permite perceber e acompanhar seu desenvolvimento. Dessa forma, o papel do portfólio está ligado à compreensão do desenvolvimento da criança.

A professora Talita também diz que o portfólio mostra o processo de desenvolvimento da criança para o professor, exempli-ficando isso através de uma criança que progride na escrita do pró-prio nome. A professora guarda a atividade no portfólio e registra escrevendo suas considerações sobre como a criança desenvolvera a escrita do próprio nome. Entendo que, para Talita, o papel do portfólio está relacionado com a compreensão do processo de de-senvolvimento da criança como algo em constante transformação,

204

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

um dia a criança registra o nome de uma forma, depois de um tem-po, ela avança nessa construção, até o registro do nome de maneira correta. Para a professora, isso é um suporte para suas percepções quanto ao desenvolvimento da criança.

A professora Mara enfatiza que o portfólio é um registro sobre o desempenho da criança. A pista que embasa minha afir-mação está no fato de que, para a professora, a criança melhora ou piora, referindo-se ao bom ou mau desempenho. Ao final do frag-mento, ela deixa outra pista, ao falar de rendimento, que é diferente de um aluno para o outro. Percebo que a professora, ao fazer com-parações entre os rendimentos das crianças, pensa poder afirmar se a criança apresenta melhoras ou não. Assim, analiso que o fato de Mara declarar ser o portfólio uma referência aponta que o registro do desempenho funciona como indicativo para a tomada de atitu-des no trabalho da professora e também em relação às crianças.

Outra pista interessante é a importância do registro como base para “ser fiel na hora de ter uma atitude com a criança”. No meu ponto de vista, esse registro está fundamentado em uma concepção de avaliação punitiva, que separa os alunos com bom desempenho de outros considerados ruins. A concepção de avaliação demonstra-da pela professora Mara não condiz com a construção do portfólio como instrumento da avaliação formativa e mediadora. Ao se utilizar o portfólio em uma perspectiva de avaliação punitiva, evidencia-se a concepção de avaliação subjacente no uso do instrumento.

Concordo com Villas Boas (2004, p. 62) quando diz que:

A avaliação por meio do portfólio exige do professor postura avaliativa diferente da tradicional: ele não ‘ensina’ para que os alunos ‘tirem boas notas’ e sejam aprovados. Ele coordena o trabalho pedagógico por meio do qual os alunos aprendam e se desenvolvam como pessoas.

A autora também ressalta que o trabalho com o portfólio implica assumir riscos ao mudar, tendo o cuidado de não fazer o portfólio reduzir-se a uma pasta de arquivo e a um modismo na educação. Considero que, quando o trabalho com o portfólio não está embasado na avaliação formativa e mediadora, há grande pos-sibilidade de incorrer nesses riscos alertados pela autora.

Durante minhas observações, uma pista que se destacou em relação ao papel do portfólio na avaliação da criança foi a auto-nomia. Esclareço que a autonomia implica exercer um papel ativo

205

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

diante de uma atividade ou situação. Nesse contexto, entendo que tanto a criança quanto o professor podem exercê-la ao mesmo tem-po, através da mediação, em que um aprende com o outro no mesmo momento. Para que o sujeito exerça a autonomia, não é necessário que o outro exerça a passividade, os dois podem ter papéis ativos ao mesmo tempo. Para que isso ocorra, é preciso que a autonomia seja compartilhada através da mediação (VYGOTSKY, 1998).

Nesse sentido, considero que a autonomia pode ser compar-tilhada, relativa e negada. Ela é compartilhada quando duas ou mais pessoas, seja a criança com o professor ou com seus pares, exercem autonomia, compartilhando a aprendizagem. Assim, não é o pro-fessor que somente ensina, mas a criança também ensina e os dois aprendem juntos. Quando, porém, o professor concede que a criança exerça autonomia apenas em determinadas situações a autonomia é relativa, pois se apresenta atrelada ao contexto. A autonomia negada é a que ocorre quando o professor dirige constantemente as ações das crianças, não permitindo que elas façam escolhas com liberdade e autonomia durante a aprendizagem, ficando a criança presa a uma passividade em que somente faz aquilo que lhe é solicitado.

Na realização da pesquisa, percebi que a prática das profes-soras gira em torno desses três tipos de autonomia: compartilhada, relativa ou negada, sendo que algumas professoras mesclam um tipo de autonomia com o outro. A autonomia da criança é fundamenta-da na interação, na liberdade e no exercício de autoria nos trabalhos. Esse é um princípio imprescindível para a construção do portfólio (VILLAS BOAS, 2004; PARENTE, 2004) e para a avaliação for-mativa e mediadora (HOFFMANN, 2005a, 2005b, 2003a, 2003b, 2000). Assim, a maneira como a professora lida com a autonomia interfere no papel do portfólio na avaliação da criança.

Considerações finais

A compreensão das professoras sobre o papel do portfólio remeteu à concepção de avaliação, de aprendizagem, de criança e de infância. Essas concepções foram construídas pelas professo-ras de acordo com influências recebidas e experiências vivenciadas enquanto sujeitos: como crianças, como alunos, como mulheres e como profissionais da educação de crianças pequenas.

Considero que as professoras reconheceram a importância de se utilizar o portfólio na Educação Infantil, contudo, nem todas

206

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

compartilhavam com a concepção de avaliação formativa e mediado-ra que fundamenta a construção do portfólio. Nesse caso, havia uma proposta nova de organizar o portfólio, que trazia também resquícios de uma avaliação somativa, que pôde ser visualizada nas fichas avalia-tivas. Essa mistura comprometia a clareza e o objetivo na utilização do portfólio que, em alguns momentos, foi instrumento e procedimento de avaliação formativa, e, em outras ocasiões funcionou apenas como um instrumento a serviço de uma avaliação determinista. Tal atitude não condiz com os princípios do portfólio, expostos anteriormente, que englobam construção, processo, reflexão, participação, autono-mia, criatividade, parceria e auto-avaliação (VILLAS BOAS, 2004).

Frente ao exposto, percebo que o papel do portfólio de-pende das concepções dos professores sobre a criança, sobre in-fância, sobre avaliação e sobre aprendizagem. Quando se utiliza o portfólio com base em uma concepção tradicional de avaliação, ele pode ser reduzido a um arquivo de papéis, em que as produções são guardadas e ficam no esquecimento ou depois são entregues aos pais sem um processo de reflexão conjunta. A participação dos pais consistia em comparecer às reuniões, olhar as fichas avaliativas, assi-nar, devolver para a professora e receber o portfólio nos envelopes com os trabalhos das crianças, que podiam ser levados para casa.

Nesse processo, é preciso salientar que na escola o portfólio não era analisado pelas crianças e por seus pais em conjunto com a professora. As crianças não participavam dessas reuniões, fato que me parece deva ser questionado, visto que, se as reuniões tinham o objetivo de falar sobre as crianças, por que não permitir que a própria criança mostrasse para os pais suas produções e falasse sobre o que está apren-dendo? A auto-avaliação da criança nesse processo de mostrar seus tra-balhos para os pais é um exercício de autonomia que favorece o senso crítico, na conduta de refletir sobre as próprias ações.

Penso que a formação da criança enquanto cidadão crítico começa desde seu nascimento e é aprimorado pelo processo esco-lar. Com o ingresso na Educação Infantil, a criança precisa encon-trar um espaço próprio em que pode exercer autonomia e reflexão crítica. Negar isso para as crianças é, do mesmo modo, negá-las como sujeitos e como produtoras de cultura (CAROLYN, GAN-DINI e FORMAN, 1999).

Reconheço a necessidade de integrar a participação da fa-mília no processo educativo, além dessas reuniões convencionais. É preciso considerar a família como parceira da aprendizagem, convi-

207

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

dando-a para participar das atividades com as crianças, de mostras de trabalhos, em que a criança conduza os pais para ver suas produ-ções, conhecer sua sala de atividades, oportunizando aos pais viven-ciar momentos significativos de aprendizagem com seus filhos.

Com base na pesquisa realizada, percebi que as professoras não possuem a prática do portfólio como registro reflexivo de seu próprio trabalho, já que elas registram e refletem sobre o portfólio da criança. Tal atitude demonstra que elas não compreenderam a possibilidade de o portfólio docente servir como instrumento de reflexão, como um diário reflexivo. Penso que isso remete à concepção de avaliação, no que tange à auto-avaliação do próprio trabalho docente, processo que não se afigura como simples, já que implica assumir o risco de admitir, expor falhas e procurar ajuda para as dúvidas e os problemas encontrados. Por outro lado, esse risco envolve inovar, descobrir, aprender, compartilhar com colegas, trocar ideias, sugestões, enfim, movimentar-se diante de uma prática estagnada, com o intuito de dinamizar sua atuação.

Percebo que uma possibilidade para a reflexão crítica do professor é a formação em contexto (SILVA e MICARELLO, 2005) baseada em três pilares: formação, pesquisa e intervenção, formação em que se utilize a prática reflexiva como método de trabalho e de aprendizagem em colaboração com o outro. Dessa forma, a formação em contexto acontece na própria escola, com ênfase no diálogo e na experiência do professor que, em conjunto com o pesquisador, investigam a prática pedagógica.

Entendo que na prática docente o professor expressa suas concepções sobre educação, avaliação, criança e infância. Conside-ro que somente uma mudança de concepção pode proporcionar a transformação do trabalho do professor, com práticas mais partici-pativas e de autonomia para as crianças.

Portanto, acredito que, na formação em contexto, os professo-res tenham a oportunidade de discutir as concepções que fundamentam suas ações e possam modificar sua forma de pensar a sua prática, tendo abertura para mudanças e inovações que contribuam para a aprendiza-gem coletiva das crianças, dos pais e dos próprios professores.

Nota

1 Os nomes das professoras são fictícios.2 Grifos dos autores3 Grifos dos autores

208

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

Referências bibliográficas

ABAURRE, Maria Bernadete Marques; FIAD, Raquel Salek; MAYRINK-SABINSON, Maria Laura T. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Mercado de Letras, 1997.

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro/RJ: Livros Técnicos e Científicos Editora S/A – LTC, 1981.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal: edições 70, 1977.

CAROLYN, Edwards; GANDINI, Lella e FORNAN, George. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 1999.

DEL PRIORE, Mary. (org.) História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.

GINZBURG, Carlo. Relações de Força: histórica, retórica, prova. Tradução: Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução: Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

______. O queijo e os vermes. Tradução: Maria Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

______. Chaves do Mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes. In: ECO, Humberto e SEBEOK, Thomas A. O signo de três. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983.

HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000.

209

Entre pistas e indícios: o papel do portfólio na avaliação de crianças pequenas

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998.

HOFFMANN, Jussara. O jogo do contrário em avaliação. Porto Alegre: Mediação, 2005a.

______. Pontos e contrapontos: do pensar e do agir em avaliação. 9 ed. Porto Alegre: Mediação, 2005b.

______. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 20 ed. Porto Alegre: Mediação, 2003a.

______. Avaliação: mito e desafio. 32 ed. Porto Alegre: Mediação, 2003b.

______. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexível sobre a criança. Porto Alegre: Mediação, 2000.

KUHLMANN JUNIOR, Moysés e FERNANDES, Rogério. Sobre a história da infância. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes. (org.) A infância e sua educação materiais, práticas e representações. (Portugal/Brasil) Belo Horizonte: Autêntica: 2004.

LOPES, Jader Janer Moreira e VASCONCELLOS, Tânia de. Geografia da Infância: reflexões sobre uma área de pesquisa. Juiz de Fora: FEME, 2005.

MARQUES, Luciana Pacheco. O professor de alunos com deficiência mental: concepções e prática pedagógica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2001.

PARENTE, Maria Cristina Cristo. A construção de práticas alternativas na pedagogia da infância: sete jornadas de aprendizagem. Tese (Doutorado) Braga, Universidade do Minho, 2004.

PINO, Angel. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.

210

Raquel Costa Cardoso Lusardo

Educ. foco, Juiz de Fora,

v. 13, n. 2, p. 191-210, set 2008/fev 2009

PINO, Angel. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do psiquismo humano. Cadernos Cedes, n.24, pp. 32-43, São Paulo: Papirus, 1991.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.

SARMENTO, Manuel Jacinto. A globalização e a infância: impactos na condição social e na escolaridade. In: GARCIA, Regina Leite. (org.) Em defesa da educação infantil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

SHORES, Elizabeth F. e GRACE, Cathy. Manual de portfólio: um guia passo a passo para o professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.

SILVA, Lea Stahlschmidt Pinto e MICARELLO, Hilda A. L. da Silva. (orgs.) Uma experiência de pesquisa, formação e intervenção em educação infantil. Juiz de Fora: Edições Feme, 2005.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. Estatuto de sujeito, desenvolvimento humano e teorização sobre a criança. In: FREITAS, Marcos Cezar de. e KUHLMANN JUNIOR, Moysés. (orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. Portfólio, avaliação e trabalho pedagógico. Campinas, SP: Papirus, 2004.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Psicologia pedagógica. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. O desenvolvimento psicológico na infância. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. Obras Escogidas IV. Madrid: Visor, 1996.