Entre Quatro Paredes - · PDF fileAfinal de contas, permita que eu lhe pergunte, por que escovar os dentes? ... quem está pensando que eu sou? ... posso garantir-lhe que não tenho

Embed Size (px)

Citation preview

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    Entre Quatro Paredes (Jean Paul Sartre)

    Personagens Ins

    Estelle Garcin

    O Criado

    CENA I (Garcin, O Criado do andar) (Um salo, estilo Segundo Imprio. Um bronze sobre a lareira) GARCIN (Que entra e olha em torno) Pois . O CRIADO Pois . GARCIN Ento assim... O CRIADO assim. GARCIN Acho... Acho que com o tempo a gente se acostuma com os mveis. O CRIADO Isso depende das pessoas. GARCIN Ser que todos os quartos so iguais? O CRIADO Que idia! Recebemos chineses, hindus. Que quer que eles faam com uma poltrona Segundo Imprio? GARCIN E eu? Que quer que eu faa? Sabe quem era eu? Ora! Isso no tem importncia. O que fato que sempre vivi no meio de mveis que no gostava e de situaes falsas! Achava isso adorvel. Que tal: uma situao falsa numa sala-de-jantar Lus-Felipe! O CRIADO Vai ver: tambm no ficar mal num salo Segundo Imprio. GARCIN Ah! Bom, bom, bom: (Olha em torno) Em todo o caso, por essa eu no esperava... No me diga que no sabe o que se diz por l. O CRIADO Sobre o qu?

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    GARCIN Quer dizer... (Num gesto vago e largo) sobre isso tudo. O CRIADO Acreditar nessas tolices! Gente que nunca ps os ps aqui. Se ao menos j tivessem estado por aqui. GARCIN mesmo. Riem os dois. GARCIN (Ficando srio de repente) Onde esto as estacas? O CRIADO O qu? GARCIN As estacas, as grelhas, os funis de couro. O CRIADO Est brincando? GARCIN (Olhando-o) Como? Ah! Bem. No. No estava brincando. (Um silncio. Anda um pouco) Nem espelhos, nem janelas, nem naturalmente, nada que seja frgil. (Com sbita violncia) Por que me tiraram a escova de dentes? O CRIADO A est a dignidade humana que volta. formidvel. GARCIN (Batendo com raiva no brao da poltrona) Nada de familiaridades comigo. Reconheo a minha posio, mas no admito que... O CRIADO Est bem! Desculpe. Mas, que quer? Todos os fregueses fazem a mesma pergunta. Mal chegam: Onde esto as estacas?. Garanto que nesse instante no esto pensando em fazer sua toilette. Depois, ficam mais calmos, e a vem a escova de dentes. Mas, pelo amor de Deus, pense um pouco! Afinal de contas, permita que eu lhe pergunte, por que escovar os dentes? GARCIN (Sossegado) mesmo? Por qu? (Olha em torno) E por que olhar nos espelhos? Ao passo que esse bronze, felizmente...Creio que h certos momentos em que seria capaz de olhar firme. De olhar firme, hein? Ora, ora! No h nada que ocultar: digo-lhe que conheo bem a minha situao. Quer que lhe conte como que as coisas se passam? O sujeito sufoca, mergulha, afoga, fica apenas com os olhos fora dgua, e o que que v? Um bronze de Barbedienne. Que pesadelo! Com certeza proibiram voc de me responder, no insisto. Mas no se esquea de que ningum me pilha assim toa; no v se gabar de me haver surpreendido; no sei encarar a situao de frente. (Continua a andar) Ento, nada de escovas de dentes. Nada de cama, tambm. Porque no se dorme, nunca, no isso? O CRIADO Ora essa! GARCIN Eu era capaz de apostar. Por que que a gente havia de dormir? O sono ataca por trs das orelhas. Sente-se os olhos fecharem-se, mas por que dormir? A gente estira-se nem sof e pst!... Adeus sono! Ento, esfrega os olhos, levanta-se e tudo recomea.

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CRIADO Como o senhor romanesco! GARCIN Cale-se. No vou gritar, nem gemer, mas quero encarar a situao de frente. No quero que ela se atire sobre mim por detrs, sem que eu possa reconhec-la. Romanesco? Ento que no se tem mesmo necessidade de sono. Por que dormir, se no se tem sono? timo. Espere a. Por que que h de ser doloroso, por que h de ser forosamente doloroso? J sei: a vida sem interrupo. O CRIADO Que interrupo? GARCIN (Arremedando-o) Que interrupo? (Desconfiado) Olhe bem para mim! Eu sabia. A est o que explica a indiscrio grosseira e insustentvel do seu olhar. De fato, esto atrofiadas. O CRIADO Do que que o senhor est falando? GARCIN Das suas plpebras. Ns... Ns batamos as plpebras. Chamava-se a isso piscar. Um pequeno relmpago negro, uma cortina que cai e se ergue: deu-se a interrupo. Os olhos se umedecem e o mundo se aniquila. No pode imaginar como era refrescante. Quatro mil repousos por hora. Quatro mil pequenas evases. Quatro mil, digo eu... Como ? Ento vou ficar sem plpebras... No se faa de bobo. Sem plpebras, sem sono, a mesma coisa. Nunca mais hei de dormir... Como poderei me tolerar? Trate de compreender, faa um esforo: tenho um carter implicante, como voc v, e tenho o costume de implicar comigo. Mas... mas no posso estar implicando sem parar: por l, havia as noites. Eu dormia. Tinha o sono leve. Em compensao, sonhava coisas simples. Havia uma campina. Uma campina, nada mais. Eu sonhava que estava passeando por ela. de dia? O CRIADO Como v, as lmpadas esto acesas. GARCIN De fato! esse o dia de vocs. E l fora. O CRIADO (Estupefato) L fora? GARCIN L fora, do outro lado destas paredes. O CRIADO H um corredor. GARCIN E no fim desse corredor? O CRIADO H outros quartos, outros corredores e escadas. GARCIN E que mais? O CRIADO Nada mais. GARCIN Voc, naturalmente, tem um dia de folga. Aonde costuma ir? O CRIADO Em casa de meu tio, que o chefe dos criados, no terceiro andar.

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    GARCIN Eu devia ter desconfiado. Onde est o interruptor da luz? O CRIADO No existe. GARCIN Como ? No se pode apagar? O CRIADO A gerncia pode cortar a corrente eltrica. Mas no me lembro se j aconteceu isso neste andar. Temos eletricidade vontade. GARCIN Muito bem. Quer dizer que a gente tem que viver de olhos abertos. O CRIADO (Irnico) Viver... GARCIN No v me aborrecer agora por uma questo de vocabulrio. De olhos abertos. Para sempre. Ser pleno dia nos meus olhos. E na minha cabea. (Uma pausa) E se eu atirasse esse bronze contra a lmpada eltrica, ser que ela se apagaria? O CRIADO muito pesado. GARCIN (Tomando o bronze entre as mos e tentando ergu-lo) Tem razo. muito pesado. (Um silncio) O CRIADO Se no precisa mais de mim, vou retirar-me. GARCIN (Sobressaltado) Vai-se embora? At logo. (O criado chega at a porta) Espere. (O criado volta-se) uma campainha eltrica isso a? (O criado faz sinal que sim) Posso tocar quando quiser, e voc tem obrigao de atender? O CRIADO Em princpio sim. Mas a campainha caprichosa. H qualquer coisa errada no seu mecanismo. (Garcin vai at a campainha, aperta o boto. Ouve-se tocar) GARCIN Funciona. O CRIADO (Espantado) Funciona? (Toca tambm) Mas no se entusiasme muito. Isso no dura. Ento, s suas ordens. GARCIN (Num gesto para det-lo) Eu... O CRIADO O que h? GARCIN No, no nada. (Vai at a lareira e toma a faca de cortar papel) Isto o que ? O CRIADO No est vendo? Um corta-papel. GARCIN H livros por aqui?

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O CRIADO No. GARCIN Ento, para que isto? (O criado d de ombros) Est bem. Pode retirar-se. (O Criado sai)

    CENA II (Garcin s) (Garcin, s, vai at o bronze a apalpa-o) (Senta-se. Levanta-se. Vai at a campainha e aperta o boto. A campainha no toca. Experimenta duas ou trs vezes. Em vo) (Dirige-se porta e tenta abr-la. No o consegue. Ele chama) GARCIN Garom ! Garom! (Nenhuma resposta. Esmurra a porta chamando o criado. Acalma-se depois, subitamente, e senta-se. Nesse instante, abre a porta e entra Ins acompanhada do Criado)

    CENA III (Garcin, Ins, O Criado) O CRIADO (A Garcin) O senhor chamou? (Garcin vai responder, mas olha Ins) GARCIN No. O CRIADO (Dirigindo-se Ins) Est em sua casa, minha senhora. (Silncio de Ins) Se tiver alguma pergunta a me fazer... (Ins cala-se) O CRIADO (Desapontado) Os fregueses geralmente gostam de pedir informaes... No importa. Alm do mais, quanto escova-de-dentes, a campainha e o bronze de Barbedienne, esse senhor est ao corrente de tudo e poder informar to bem quanto eu. (Sai. Um silncio. Garcin no olha para Ins. Ins observa em redor e dirige-se bruscamente a Garcin) INS Onde est Florence? (Silncio de Garcin) Pergunto-lhe onde est Florence. GARCIN No sei de nada. INS Foi s isso que conseguiu descobrir? A tortura pela ausncia? Pois falhou. Florence era uma bobinha e no me faz falta.

  • Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    GARCIN Queira perdoar-me: quem est pensando que eu sou? INS O senhor? O senhor o carrasco. GARCIN (Sobressalta-se e pe-se a rir) um equvoco engraadssimo. O carrasco: boa! A senhora entrou, olhou para mim e pensou: o carrasco. Que extravagncia! O criado um ridculo: deveria ter- nos apresentado. O carrasco! Eu sou Joseph Garcin, publicista e homem-de-letras. O fato que estamos hospedados no mesmo estabelecimento. Senhora... INS (Secamente) Ins Serrano. Senhorita. GARCIN Muito bem. Perfeito. Pois , derreteu-se o gelo. Quer dizer que me acha com cara de carrasco? Quer fazer o favor de me explicar como que se reconhecem os carrascos? INS Tm cara de quem tem medo. GARCIN Medo? esquisitssimo! Medo de quem? De suas vtimas? INS Ora! Sei bem, o que estou dizendo. Espelho no me falta. GARCIN Espelho? (Olha em torno) Que droga! Tiraram daqui tudo quanto pudesse parecer-se com um espelho. (Um tempo) Em todo caso, posso garantir-lhe que no tenho medo. No considero levianamente a situao, e estou perfeitamente cnscio de sua gravidade. Mas no tenho medo. INS (Dando de ombros) Isso com o senhor. (Um tempo) Ser que o senhor sai, de vez em quando, para um passeio? GARCIN A porta est trancada. INS pena. GARCIN Compreendo muito bem que minha presena a aborrea. E, se dependesse de mim, preferiria estar s. Tenho que por a minha vida em ordem e preciso de sossego. Mas tenho certeza de que nos acostumaremos um ao outro: no falo, quase. No me movo, e fao pouco barulho. Apenas, se me atrevo a dar um conselho, ser bom conservarmos entre ns uma