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107 Em Aberto, Brasília, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013 Entre rios e florestas: experiências de campo de um professor de Educação Física em ambiente amazônico Gláucio Campos Gomes de Matos Resumo Em pleno século 21, apesar do processo de integração, o modo de vida de ribeirinhos amazônidas mantém práticas socioculturais expressas no extrativismo animal (caça e pesca) e vegetal (extração da madeira, cipó, palha), no cultivo do solo e na criação de animais. Tais práticas, associadas aos seus instrumentos – arco e flecha, arpão, espingarda, caniço, canoa e remo, terçado e machado, entre outros –, possibilitam a homens e mulheres uma vida melhor, porém, não significando vida boa. A experiência de mais de 20 anos é relatada a partir da Etnografia e Sociologia Figuracional. As práticas enquadram-se na concepção de cultura corporal e a Educação Física aliena-se à questão, pois, na lógica de disseminar o esporte e outras práticas, deixa de revelar o significado da relação homem e meio no universo amazônico. Palavras-chave: Educação Física; ribeirinho; Região Amazônica; práticas socioculturais; caçada; pescaria; cultivo do solo.

Entre Rios e Florestas Experiências

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ensaio de educação física

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013

    Entre rios e florestas: experincias de campo de um professor de Educao Fsica em ambiente amaznicoGlucio Campos Gomes de Matos

    Resumo

    Em pleno sculo 21, apesar do processo de integrao, o modo de vida de

    ribeirinhos amaznidas mantm prticas socioculturais expressas no extrativismo

    animal (caa e pesca) e vegetal (extrao da madeira, cip, palha), no cultivo do solo

    e na criao de animais. Tais prticas, associadas aos seus instrumentos arco e

    flecha, arpo, espingarda, canio, canoa e remo, terado e machado, entre outros ,

    possibilitam a homens e mulheres uma vida melhor, porm, no significando vida

    boa. A experincia de mais de 20 anos relatada a partir da Etnografia e Sociologia

    Figuracional. As prticas enquadram-se na concepo de cultura corporal e a

    Educao Fsica aliena-se questo, pois, na lgica de disseminar o esporte e outras

    prticas, deixa de revelar o significado da relao homem e meio no universo

    amaznico.

    Palavras-chave: Educao Fsica; ribeirinho; Regio Amaznica; prticas

    socioculturais; caada; pescaria; cultivo do solo.

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    Abstract Among rivers and forests: a physical education professors field experience in the Amazonian Region

    Even in the 21st century and despite societys expansion into rural areas, the

    lifestyle of the Amazons rural riverside inhabitants continues to depend on socio-

    cultural practices of animal extraction (hunting and fishing), vegetable extraction

    (logging, liana, straw), cultivation of soil and animal husbandry. Such practices and

    their instruments (archery, spears, firearms, fishing rods, canoes and rowing,

    machetes and axes, among others), afford these men and women a better life, though

    not necessarily a good one. The experience of over twenty-one years is reported

    from figurational sociology and ethnography. Even though these practices are a part

    of the physical culture, Physical Education rejects them. Physical Education

    disseminates sports for hegemony and does not reveal the significance of the

    relationship between man and his means in the Amazonian universe.

    Keywords: Physical Education; riverside populations; Brazilian Amazon Region;

    socio-cultural practices; hunt; fishery; agricultural cultivation.

    Introduo

    Em um universo de rios e florestas, o corpo/indivduo homem e mulher

    vive em permanente dilogo com os estmulos ambientais (sol, chuva, enchente e

    vazante do rio, ferroadas, picadas ou mordidas de insetos e outros animais, aroma

    de flores e frutos), permitindo-lhe manter-se vivo e residindo em comunidades

    ribeirinhas amaznicas. Esse dilogo se alicera no que denominei prticas corporais

    (Matos, 1996) e, posteriormente, prticas socioculturais (Matos, 2008).

    No curso de Educao Fsica, aprendemos, em parte, que sua sistematizao

    se deu a partir da observao de atividades fsicas realizadas por humanos ao longo

    da histria, propiciando os Sistemas e Mtodos de Educao Fsica (Marinho, 1953;

    Brasil. MEC, 1967). Lemos que as atividades fsicas dos indgenas, nos perodos

    Brasil-Colnia e Brasil-Imprio, eram arco e flecha, caar, remar, andar, correr ou

    nadar, objetivando a manuteno da vida (Marinho, 1953; Nery, 1983; Tubino, 1996).

    A forma como tais informaes foram ou so transmitidas d a entender sua

    cristalizao no tempo e no espao. Conhecemos, em parte pela Educao Fsica, a

    canoagem, o arco e flecha, a natao, a corrida com provas de pistas e de rua, os

    lanamentos e arremessos em provas de campo. O vis esportivo ancorou-se

    diversidade das prticas socioculturais, fortalecido na disseminao do basquetebol,

    handebol, voleibol, futebol, em formato universal do discurso corporal, sem dar

    ateno s particularidades.

    Ren Maheu (1982, p. 18) pondera essa questo: [...] no pr em causa o

    valor permanente dos desportos de origem helnica ou anglo-saxnica, [mas]

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    observar que no so os nicos no mundo cujas capacidades corporais e morais

    merecem ser valorizadas para fins educativos e estticos.

    A reflexo de Maheu nos atrela ao conceito de cultura corporal desenvolvido,

    mais tarde, no livro Metodologia do ensino da educao fsica (Coletivo..., 1992, p.

    38), no entendimento [...] do acervo de formas de representao do mundo que o

    homem tem produzido no decorrer da histria, exteriorizadas pela expresso

    corporal, destacando jogos, danas, lutas, exerccios ginsticos, esporte,

    malabarismo, contorcionismo, mmica e outros. Posteriormente, foi incorporado nos

    Parmetros Curriculares Nacionais: Educao Fsica (Brasil. MEC, 1997).

    O exposto incita a olhar para o Brasil em que a maioria fala o portugus,

    outros o japons, o italiano e muitos, o espanhol; mas tambm h os que dominam

    Tupi, Nheengat, Tukano, Yanomami, Karibi, entre outras lnguas e dialetos indgenas.

    No Amazonas, existem mais de 60 etnias, portanto, presuno considerar nesse

    universo de muita gente uma nica forma de manifestao corporal.

    O ser humano desenvolveu cultura e civilizou-se,1 produzindo smbolos e

    significados, lidos e entendidos por ele, e no por outras espcies. Basta um animal,

    a exemplo do peixe-boi (Trichechus inunguis), alimentar-se de gramnea em ambiente

    aqutico para deixar vestgios que podem ser vistos por qualquer espcie de ser,

    mas foi o humano a estudar esses vestgios e tirar vantagens deles. Capturou o

    mamfero, cozeu, fritou ou assou sua carne que, aps degustada, incorporou-se

    culinria amaznica. O excedente foi armazenado mediante as tcnicas de salmoura,

    secagem no sol ou mixira (carne frita conservada na gordura do animal derretida).

    Para capturar esse mamfero aqutico, o pescador em sua canoa numa

    posio de expectativa e no mximo de silncio, com arpo ao alcance, na noite de

    luar, quando possvel ver o mamfero colocar suas narinas para fora dgua e a

    maresia provocada pelo movimento de mascar desfecha o arpo num gesto

    explosivo, cravando-o em sua costa. O arrebate do animal contra o artefato e as

    habilidades do pescador aos poucos o enfraquecem, o ar lhe falta e ele falece no

    ambiente aqutico em que nasceu, viveu e, talvez, se reproduziu.

    Essa prtica de exclusividade humana, retrata a cultura amaznica e

    representa uma relao direta com a gua, o instrumento, o mamfero aqutico de

    gua doce e o alimento dele derivado representa um corpo combinando-se a

    manifestaes do ambiente, da resultando peculiaridades culturais. O indivduo

    desenvolve o apego terra e a identidade ao lugar de origem, pois em sua memria

    est arraigado o cheiro da gua, das flores, o sentir da brisa nas madrugadas

    iluminadas pelo luar amaznico.

    No ambiente da Educao Fsica, essa cultura corporal nos proporciona

    contribuir com as discusses ambientais no sentido de refletir sobre a populao de

    peixe-boi que foi abalada, dadas as redes de interdependncias ampliadas, que

    estimularam o extrativismo predatrio; sobre o papel desse mamfero no bioma

    amaznico e as consequncias de sua extino; e sobre as novas propostas de

    preservao, em virtude das redes de interdependncias que convergiram em sentido

    oposto primeira.

    1 Segundo Norbert Elias (1994), o autocontrole/controle das emoes; monoplio da fora pelo Estado.

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    A combinao, nos seres humanos, do andar e do pegar, assim como do correr,

    do pular e do abaixar, desencadeia uma srie de movimentos com finalidades e

    objetivos variados, mas, dado o momento de sua execuo, torna-se difcil a descrio,

    devido complexidade da ao. Associando esses movimentos a um ou mais

    instrumentos, possibilitam-se resultados diversificados. Portanto, no basta

    encontrarmos o denominador comum entre os seres humanos, classificando seus

    movimentos em locomotores, manipulativos e estabilizadores (Gallahue, Ozmun,

    2001), sem que levemos em considerao a configurao na qual o indivduo est

    inserido.

    A biologia, nesse caso a zoologia e na sequncia a ornitologia, assim como a

    botnica, identificou o nome cientfico de plantas e animais em virtude de suas

    caractersticas naturais e universais, livrando-se do nome popular.

    A Educao Fsica tem seguido essa lgica ao se apropriar do esporte e tentar

    homogeneizar no Brasil o movimento humano ao combinar o pegar, arremessar ou

    chutar uma bola, o lanar um dardo, etc. O que se v a orientao para a

    esportivizao alicerada na concepo helnica e anglo-sax. A nfase no esporte,

    tomando-o como hegemnico, pode estar aniquilando a cultura corporal brasileira,

    ainda por revelar.

    tambm a nfase no esporte a contribuir com a maior visibilidade indgena.

    Porm, o que se observa a lgica ritualstica apresentada nos jogos tradicionais

    indgenas seguir aquela dos jogos olmpicos. Isso instiga reflexo em entender que

    regras de jogo seguidas no fato mimtico so diferentes daquelas regras morais

    vividas nos espaos no mimticos. Portanto, o significado simblico representado

    nas prticas esportivas no o mesmo das prticas socioculturais vividas no dia a

    dia. Queira Deus que, estimulados por megaeventos esportivos, a vida, aquela

    retirada com devido respeito para servir alimentao coletiva, no seja a partir de

    ento apenas um alvo mvel para treinar as habilidades do caador atleta.

    Diante do exposto, o presente escrito tem a proposta de apresentar Educao

    Fsica o modo de vida dos amaznidas, destacando suas prticas socioculturais em

    relao ao ambiente aqutico e terrestre, que diante do processo de integrao, em

    pleno sculo 21, resistem e existem questionando sua cristalizao grafada

    historicamente.

    Nesse sentido, objetiva-se fornecer conhecimentos, em especial Educao

    Fsica, da cultura corporal do amaznida alicerada no modo de vida de sua populao,

    que, dado o processo de integrao, no os isentou do jogo de bola, ajustado a partir

    do futebol, enfatizado nos megaeventos esportivos.

    O escrito tem como objeto o resultado da experincia de mais de 20 anos por

    comunidades ribeirinhas amaznicas, prticas socioculturais expressadas no

    extrativismo animal (caa e pesca) e vegetal (madeira, cip, palha), no cultivo do

    solo e na criao de animais. As prticas associadas aos seus instrumentos arco e

    flecha, arpo, espingarda, canio, canoa e remo, terado, machado, entre outros

    possibilitam a homens e mulheres de comunidades rurais do Amazonas uma vida

    melhor, porm, no significando vida boa.

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    O modo de vida em suas prticas socioculturais foi captado por meio da

    etnografia, que um mtodo da Antropologia, e, segundo Geertz (1989, p. 20),

    uma descrio densa. A observao participante, as entrevistas e as conversas com

    informantes permitiram registrar na caderneta de campo informaes pertinentes

    a tais prticas.

    O conceito de configurao em Norbert Elias (1980) contribui para a

    compreenso do objeto revelado, mostrando que o processo de integrao em curso

    e as redes de interdependncia funcionais ampliadas tm influenciado as prticas

    socioculturais.

    Elias (1980, p. 18) enfatiza que as pessoas, atravs de suas disposies e

    inclinaes bsicas, so orientadas umas para as outras e unidas umas s outras das

    mais diversas maneiras e destaca que estas pessoas constituem teias de

    interdependncias ou configuraes de muitos tipos, tais como famlias, escolas,

    cidades, estratos sociais ou Estados. No seio das configuraes, o poder se inclina

    para um lado ou para o outro, mas no vitalcio, e a forma polimorfa de se apresentar

    por vezes no entendida.

    O vis configuracional nos permite compreender como ou por que as prticas

    de orientao alicerada na concepo helnica ou anglo-sax avanam pelo universo

    amaznico, bem como entender a autonomia relativa de indivduos, organizaes e

    reas de conhecimentos que se julgam deter o poder vitalcio.

    Dessa forma, com base na anlise configuracional, neste escrito, sero

    expostas outras formas de manifestaes corporais, circunscritas ao universo de

    florestas e rios que possibilitam ao amaznida viver pois sobreviver d a entender

    que o indivduo est no limiar do esforo para manuteno da vida, e isso no

    verdade. Os amaznidas incorporam tcnicas que lhes permitem extrair das florestas

    e dos rios os meios para manterem a vida e aproveit-la melhor. O desafio tornar

    esse conhecimento contedo da Educao Fsica para que venha tensionar com a

    lgica hegemnica dos megaeventos esportivos e se torne coadjuvante na

    disseminao da cultura corporal amaznica e brasileira.

    O passado/presente no universo extico

    Compreendo, a partir da teoria de Norbert Elias (1994), que no h um ponto

    zero, tudo est em processo, o que induz a refletir sobre os adjetivos rural e urbano

    que, usados em sentido de estado, ofuscam a percepo de transio, perdendo de

    vista o processo.

    A acessibilidade permitiu a ocupao de reas distantes, avanou sobre

    florestas e rios, estruturando stios, fazendas e chcaras. O aumento populacional

    intensificou a ocupao do solo, e transformaes ocorreram a urbe se fez notar,

    descaracterizando o rural. Nesse processo, a mobilidade espacial de pessoas foi

    inevitvel, porm, em muitos indivduos, a memria do modo de vida no rural se

    manteve. As prticas, costumes e habitus so detritos de um rural que ainda

    permanece na estrutura emocional dos amaznidas. Nesse sentido, os espaos

    geopolticos rural e urbano, par de opostos, constituem um processo de transio.

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    Os residentes do espao rural, que designo de amaznidas ribeirinhos, tm os

    ambientes aqutico gua branca e gua preta2 e terrestre para desenvolverem

    as prticas socioculturais.

    Esses ambientes, conforme conhecimento local, diferenciam-se naturalmente

    em terra firme e terra de vrzea. A primeira no fica submersa e constituda por

    mata primria e/ou capoeira vegetao secundria; e a segunda pode ser de terras

    altas, que no ficam submersas em todas as enchentes, e de terras baixas, tragadas

    todos os anos pela enchente do rio. Porm, no h morte de pessoas, pois os ajustes

    culturais acompanham a subida do rio. Na oscilao do nvel da gua enchente e

    vazante , destacam-se as reas de igaps (floresta inundada), a formao de ilhas

    e cabeceiras. Tanto em reas de terra firme quanto em vrzea se cultiva a terra,

    criam-se animais domsticos e se desenvolve o extrativismo animal e vegetal.

    Portanto, as prticas socioculturais so postas em consonncia com as pocas

    do ano e as zonas ambientais, cujas manifestaes cclicas se expressam na florao

    e frutificao de determinadas espcies vegetais, atraindo animais silvestres que se

    tornam caa, e no ciclo das guas (enchente e vazante) do rio, que, ao coincidir com

    as chuvas e a estiagem, apresenta momentos de fartura e escassez de alimento.

    Do exposto, h de entender que o corpo afina-se com o ambiente. Ele no

    preparado pela instituio de ensino escola , mas sim pela famlia e pela vivncia

    na comunidade. O meio se expressa e produz, para homens e mulheres, significados

    simblicos, e sobre eles o aprendizado ocorre. A prtica de criar animais silvestres

    (paca, mutum, veado, anta, entre outros) permite ao indivduo compreender o

    comportamento deles se noturno ou diurno; seu hbito alimentar e as marcas dos

    dentes deixadas no alimento; no terreiro, prximo casa, verifica a forma do andar

    e o registro de suas patas deixado no cho umedecido. Esse costume cria laos

    afetivos com o animal cativo a ponto de no permitir que a famlia o abata e o

    consuma.

    No momento de tratar um animal silvestre esfolar, retirar as vsceras,

    esquartejar , o indivduo vivencia uma lio de anatomia, aprende a localizar no

    corpo do animal rgos vulnerveis a um projtil ou uma arma branca. Portanto, se

    o indivduo sai caa, vai provido de conhecimento e no faz do animal alvo mvel.

    Nesse universo, muitos aprendem desde cedo a lidar com o esforo e a arte

    de esperar. Entendem, ante a natureza no humana, as limitaes do corpo quando

    empunham um machado, um terado ou outro instrumento. As qualidades fsicas

    fora, resistncia, agilidade, velocidade, entre outras , integradas s percepes,

    proporcionam o refinamento das habilidades no manuseio dos artefatos, que, somado

    s experincias passadas de pai para filho, aperfeioa as tticas de caa e pesca.

    Conhecimento e prtica permitem ao indivduo o sucesso nesse ecossistema.

    A habilidade de se movimentar na mata e no rio e o manuseio de artefatos

    do ao indivduo condio de aproximar-se por terra ou por gua silenciosamente

    de sua presa e abat-la. Essa ao integrada corpo/mente possibilita maior

    eficincia e no menos compreenso da finalidade da morte do animal.

    2 A primeira classificao dos rios amaznicos baseou-se na cor de suas guas: branca (Solimes, Amazonas, Madeira, Purus, Juru, Juta) e preta (Negro, Urubu).

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013

    A pacincia, a arte de esperar, vincula-se ao entendimento do processo natural,

    mais lento em seu curso. O indivduo no consegue apressar a natureza e espera

    por horas a chegada da caa na comedia, do peixe-boi ou do pirarucu que emerge

    das profundezas do rio para renovar o ar. Em posio de ccoras ou sentado no banco

    de uma canoa, em galho de rvore ou num barranco margem do rio, as horas

    passam e com elas a fome no percebida. Finda o dia, por vezes sem sucesso. Essas

    qualidades se destacam no modo de vida do amaznida e contribuem para a formao

    do habitus, a propenso de ajudar, de cooperar.

    Desde cedo, ou quando os benefcios proporcionados pelo governo no

    condicionavam a presena no banco da escola, o indivduo, ainda criana,

    acompanhava seus pais ao puxirum conhecido em outros lugares por ajuri ou

    mutiro. o trabalho desenvolvido base da ajuda mtua. Se o amaznida galgou

    seu espao, f-lo por fora da cooperao. Essas qualidades esto arraigadas na

    memria corporal e expressam a identidade e pertencimento ao lugar de origem,

    coisa que outras prticas corporais j mencionadas no fazem qualidades essas

    que, no frenesi dos grandes centros urbanizados, poderiam ser mal interpretadas

    ao ter como parmetro de anlise a lgica do ser produtivo e individualizado. Por

    outro lado, o ressignificar de conceitos que pode contribuir para entender a

    importncia pedaggica de elementos inerentes cultura corporal do amaznida.

    O extico e suas prticas socioculturais

    Caada

    A mata primria um lugar de surpresas rudos de animais e insetos,

    vento, frutos, flores e animais que exalam odores fustigando a percepo. Vidas em

    formas mimticas nos observam sem que tenhamos conhecimento. um lugar de

    incertezas, mas de lgica. No sabemos o que pode acontecer ao percorr-la, no

    entanto, aquele que a penetra caador/coletor dispe de conhecimentos que

    possibilitam, na maioria das vezes, se livrar de momentos perigosos aos moldes

    do corpo humano despreparado.

    inerente ao caador, ao adentrar a mata, predispor-se de qualidades

    perceptivas a estmulos que despertem sua ateno. A discriminao de rudos,

    odores, texturas e formas leva-o a interpretar e significar simbolicamente,

    desencadeando uma ao de aproximao para o ataque ou de conteno, para a

    defesa.

    Passar por obstculos cips, rvores e troncos cados ao cho , subir e

    descer terrenos acidentados fazem parte da caada. A memria espacial e a

    resistncia permitem ao caador percorrer grandes distncias e retornar sua casa.

    Mas o sucesso da caada vai depender da generosidade da natureza em se mostrar

    e das habilidades do caador. Um disparo certeiro garante-lhe a refeio por um ou

    mais dias.

    O caador prefere entrar na mata nas primeiras horas do dia, pois sabe que

    os animais noturnos, por exemplo, veado e anta (Tapirus terrestris), ainda esto se

    agasalhando e os animais diurnos, por exemplo, jacu, mutum (Mitu mitu), cujubim,

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    porcos caititu e queixada (Tayassu pecari), cutia, entre outros, esto despertando,

    e, sob efeito do descanso, tornam-se mais susceptveis ao abate. Conhecer o

    comportamento do animal pode ser decisivo na caada.

    Outros tipos de caada se destacam, entre elas, caar de canoa uma prtica

    de excelncia. Realizada noite, em cabeceira de rios e rea de igap, o caador

    detm as habilidades de se deslocar por entre cips e rvores. Com o remo em uma

    mo e a lanterna na outra, as manobras so feitas com o mximo de ateno. Tendo

    a arma em posio de alcance, a percepo do caador predisposta a rudos e odores

    o faz largar o remo. A espingarda levada ao encontro do ombro. Sem maldade, o

    digno caador, aps o enquadramento do animal luz da lanterna, a dois ou trs

    metros, dispara. A caa agoniza perfurada pelo projtil, e, com todo o respeito, ela

    servir mesa da famlia.

    No dia seguinte, as emoes da caada so revividas. As crianas, com ateno

    histria teatralizada pelo caador pai, irmo ou parente , aprendem que o chifre

    pontiagudo do veado e suas unhas fendidas so armas mortais; assim, evitam-se os

    dentes do queixada, da paca ou da capivara. Aprendem, tambm, como e por onde

    abordar a caa e o significado de ser um bom caador. Aos poucos, ho de entender

    que a relao entre humanos, mata e animais deve ser de interdependncia.

    Pescaria

    O aumento populacional e o desflorestamento proporcionaram ao amaznida,

    em muitas comunidades, limitaes, e o rio o principal meio de obter alimento.

    Diferentemente da caada, pois a mata no um lugar de brincar, a pescaria

    possibilita ao indivduo, ainda criana, a sua prtica no porto de sua casa, na

    companhia de irmos ou do pai, ampliando suas experincias de pescador.

    O pescador, na relao com a gua, os peixes e os mamferos que nela habitam,

    manifesta suas tcnicas de pesca. Graas s redes de interdependncias ampliadas,

    maior foi a presso sobre determinadas espcies, principalmente, com a utilizao

    de malhadeiras, redes e arrastes em ambientes de rios, lagos, cabeceiras e igaraps.

    A versatilidade desses artefatos em comprimento, espessura da linha e

    tamanho das malhas atende a todas as espcies em suas qualidades naturais no que

    se refere fora, s formas, aos tamanhos e capacidade de resistir quando

    capturado. Na vazante, ao ser colocado nos ambientes citados, o que emalhar perece.

    Esses artefatos enfraqueceram a porongao, o arco e flecha, o arpo, a pescaria de

    vara e linha, assim como o saber fazer e a relao com o ambiente. Mas, no momento

    em que a sobrepesca ocorre, tcnicas de arco e flecha e do arpo merecem ateno

    ao se discutir extrao autossustentvel. Elas, entre as peculiaridades das prticas

    socioculturais amaznicas, fortalecem valores, o apego afetivo e o sentido de

    pertencimento ao lugar de origem.

    A malhadeira, a rede de pesca ou o arrasto no exigem do pescador

    habilidades quanto pode se ver na pescaria de arco e flecha e de arpo, que so

    tcnicas de excelncia a envolver o pescador corporalmente. Na de arco e flecha,

    ele desenvolve ajustes ante a lei da refrao, que teoricamente no entende, mas

    na prtica do dia a dia aplicada ao ver o peixe se debater na ponta da flecha.

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    O pescador adequa-se ao vento, que empurra suavemente a canoa, folha ou

    capim, que esconde parte do peixe, ao sol, que ofusca a viso ao refletir na gua,

    ao peixe que, por um impulso, some do campo de viso e de ao do pescador.

    Na pesca de arpo, o indivduo predispe de habilidades para que, naquele

    dia, esperando por trs ou mais horas, utilize uma nica tentativa. A natureza do

    animal, o ambiente e o estado emocional do pescador esto em jogo naquele momento

    em que o arpo sai de sua mo, diferentemente da rede ou malhadeira, que basta

    o animal se enredar em uma das centenas de suas malhas para que seja capturado.

    A oportunidade de fuga na pescaria de arpo de um para um e na malhadeira vai

    depender da quantidade de suas malhas, o que, para a natureza, representa grande

    desvantagem. Obviamente, no desconsidero a determinao do pescador e sua

    exmia habilidade no manuseio do artefato se no sucedido em um dia, ele

    continua no outro, com a inteno de aniquilar o animal.

    As histrias do dia de pesca so narradas e a aprendizagem ocorre. Na

    teatralizao, percebe-se o descuido do pescador e que o animal perseguido saiu

    em vantagem. Algumas ficam na memria e outras passam a ser estrias de pescador.

    Porm, o significado simblico do que ser um grande pescador repercute na

    estrutura social da qual faz parte, e, assim como na mata, ele deve viver uma relao

    de interdependncia com o rio e as espcies que nele existem, compreendendo o

    porqu da morte do outro ser.

    Cultivo do solo

    No perodo de estiagem julho a novembro , destaca-se o preparo do solo,

    principalmente para o cultivo da mandioca para fazer farinha, presente na alimentao

    diria do amaznida: beijus, crueira para mingau.

    As cigarras chichiam indicando que o vero vai continuar: o rio continua a

    secar e h abundncia de peixe, os quelnios sobem praia para desovar e a escassez

    de gua na mata possibilita ao caador abater animais ao virem ao bebedouro.

    O vento traz ao corpo o calor dissipado por tudo que o sol toca. o perodo

    em que a fumaa anuncia que a mata ou a capoeira derrubada est em chamas, mas

    o fogo utilizado para limpeza e fertilizao da terra.

    Para cultivar a terra, o amaznida se organiza em forma de puxirum. A troca

    de dia ou o auxlio mtuo cultural, fortalecendo as relaes de interdependncia.

    A cooperao tem permitido a homens e mulheres avanarem sobre a natureza,

    pois, mediante a apropriao da resistncia e fora fsica de muitos, das tcnicas e

    estratgias associadas aos instrumentos, expandiram suas moradas e, para viver

    melhor, tornaram agricultveis grandes espaos de terras.

    A configurao do puxirum (Matos, 1996, 2008) se revela: anfitries,

    cozinheiras, cavadores, plantadoras, cortadores de maniva (caule da mandioca),

    distribuidores de maniva e de gua (aguadeira), carregador de gua. Na

    interdependncia funcional, os indivduos compartilham para o sucesso dos anfitries.

    Homens adultos jovens abrem as manicujas (covas), pois o esforo de

    moderada a alta intensidade (Matos, 1996) j no indicado para outros de mais

    idade. As mulheres plantam a maniva que foi distribuda por crianas ou adolescentes.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013

    A aguadeira distribui a gua para auxiliar a termorregulao corporal (McArdle et

    al., 2003). Esse um ajuste estratgico para continuar na atividade em temperaturas

    entre 38C/40C e umidade do ar elevada.

    Na dinmica do puxirum, as mulheres, em suas qualidades femininas e em

    trocadilho com os homens, tornam-no mais divertido, amenizando o sentido da

    obrigatoriedade; no plantio da roa, o estado de humor dos participantes risos,

    piadas, gargalhadas ameniza ou suaviza a percepo corporal do esforo fsico

    nesse perodo de estiagem.

    Vivido desde criana, o puxirum a fora da cooperao que se apresenta na

    construo da casa, na derrubada da mata ou no preparo da roa , passa a ser

    componente do habitus do amaznida.

    Consideraes finais

    No universo amaznico, a vida se mantm, bem ou mal, graas s prticas

    socioculturais desenvolvidas ante os estmulos ambientais e as relaes de

    interdependncia. Apesar do processo de integrao em curso, essas prticas

    resistem, provocam e renovam emoes. Caracterizadas de utilitrias, merecem

    ateno pelos valores morais, ticos e educacionais constitudos historicamente,

    fortalecendo o apego afetivo, a identidade ao lugar de origem e o habitus do

    amaznida. Elas, guardadas as propores, podem contribuir para as discusses

    sobre prticas autossustentveis e gerar reflexes socioambientais.

    Na dinmica configuracional, as prticas socioculturais detm qualidades

    mpares que a hegemonia da prtica esportiva disseminada no Pas no permite ver.

    Somam-se queles valores a pacincia, a compreenso do esforo ante os estmulos

    ambientais, a cooperao, a compreenso da relao de interdependncia com o

    ambiente, que podem ser tencionados como contedos da Educao Fsica ante o

    frenesi dos centros urbanizados, marcados pela individualizao, o mpeto competitivo

    e a exigncia do ser independente e produtivo. Seria tambm, por parte dessa rea

    de conhecimento, ao dar ateno cultura corporal amaznica, instigar o sentido

    de honra ao se viver numa relao com grandes rios de gua doce Negro, Solimes

    e seus afluentes e sombra da grande floresta tropical, que, guardadas as

    propores, assumem papel fundamental no equilbrio ambiental do planeta.

    As prticas socioculturais fortalecem a identidade amaznica e revelam a

    pluralidade da cultura corporal brasileira. Permitem Educao Fsica, com essas

    manifestaes da cultura de movimento do cotidiano dos ribeirinhos, tensionar a

    hegemonia de prticas esportivas movidas pela lgica imperativa dos megaeventos

    esportivos e coadjuvar com a disseminao e reflexo da dimenso do movimento

    humano, observando suas peculiaridades e as relaes de interdependncia que se

    apresentam nas configuraes.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013

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  • Glucio Campos Gomes de Matos, doutor em Educao Fsica pela Universidade

    Estadual de Campinas (Unicamp), professor da Faculdade de Educao Fsica e

    Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

    [email protected]

    Recebido em 22 de outubro de 2012.Aprovado em 18 de fevereiro de 2013.