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Entrevista SIMON PLESTENJAK/ FOLHA PRESS Em 3 volumes, o jornalista escreveu a história da infância aos derradeiros anos de GV Getúlio, ame-o ou deixe-o Lira Neto, autor da biografia de Vargas diz que o maniqueísmo ronda a figura do presidente morto há 6 décadas Por Tory Oliveira Passados quase 60 anos, o fantasma de Getúlio Vargas continua rondando o País. Morto em 25 de agosto de 1954 após dar um tiro no peito, Getúlio saiu da vida para entrar para a história como uma das figuras mais polêmicas e contraditórias da política brasileira, capaz de inspirar paixões e ódios igualmente extremados Brasil afora. Prova de sua força é a crítica causada pelo lançamento da biografia Getúlio, escrita pelo jornalista cearense Lira Neto e publicada pela Cia. das Letras. O escritor, que tanto na escola quanto na universidade teve contato com versões negativas do ex-presidente, tomou para si a missão de produzir uma biografia moderna, exaustiva e tão isenta quanto possível de Getúlio Vargas.

Entrevista a Getúlio Vargas

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Entrevista SIMON PLESTENJAK/ FOLHA PRESS

Em 3 volumes, o jornalista escreveu a histria da infncia aos derradeiros anos de GV

Getlio, ame-o ou deixe-oLira Neto, autor da biografia de Vargas diz que o maniquesmo ronda a figura do presidente morto h 6 dcadas

Por Tory Oliveira Passados quase 60 anos, o fantasma de Getlio Vargas continua rondando o Pas. Morto em 25 de agosto de 1954 aps dar um tiro no peito, Getlio saiu da vida para entrar para a histria como uma das figuras mais polmicas e contraditrias da poltica brasileira, capaz de inspirar paixes e dios igualmente extremados Brasil afora. Prova de sua fora a crtica causada pelo lanamento da biografia Getlio, escrita pelo jornalista cearense Lira Neto e publicada pela Cia. das Letras. O escritor, que tanto na escola quanto na universidade teve contato com verses negativas do ex-presidente, tomou para si a misso de produzir uma biografia moderna, exaustiva e to isenta quanto possvel de Getlio Vargas.Imaginada em trs volumes, dois dos quais j chegaram s livrarias, Getlio fruto de cinco anos de pesquisas, em que o autor examinou cartas pessoais, memorandos oficiais, dirios ntimos, autos judiciais, notcias de jornal, alm de fazer entrevistas e colher depoimentos. O primeiro livro, Getlio: 1882-1930 Dos anos de formao conquista do poder, narra a infncia no interior do Rio Grande do Sul, os primeiros contatos com a poltica brasileira e sua chegada ao poder em 1930. J o segundo volume, 1930-1945 Do governo provisrio ditadura do Estado Novo, d conta dos 15 anos em que Vargas esteve no Palcio do Catete como chefe do governo provisrio, constitucional e, por fim, como ditador. O ltimo livro, previsto para ser lanado em 2014, trata da volta de Getlio ao poder em 1950 e de seus derradeiros anos. Lira Neto, para quem o livro pode ser til aos professores de Histria por apresentar uma viso polifnica da histria do poltico, concedeu entrevista a Carta na Escola por e-mail.Carta na Escola: Getlio Vargas ainda uma das mais importantes e controversas figuras da histria do Brasil. Como nasceu seu interesse em biograf-lo?Lira Neto: Sempre me inquietou o fato de Getlio Vargas, esse nome fundamental da histria brasileira, no ter sido, at ento, alvo de uma biografia moderna e exaustiva. Certa feita, li um texto assinado pela cientista poltica Maria Celina Soares DArajo que tratava exatamente dessa questo. Ela sublinhava que a maior parte dos escritos a respeito da trajetria pessoal de Getlio situava-se na esfera da fico, e no da narrativa historiogrfica ou jornalstica.CE: Parte dos livros didticos de Histria adota um vis marxista de valorizar as estruturas e conjunturas da poca em detrimento do indivduo. Nos seus livros, o indivduo, o ator, fica em evidncia. Por qu? Houve resistncia s obras por conta dessa caracterstica?LN: Uma biografia, por essncia, busca compreender como as aes de determinado indivduo e, ao mesmo tempo, o contexto no qual ele viveu se impactaram mutuamente. Da mesma forma que no faz sentido imaginar a histria de um personagem desvinculada da estrutura social, econmica e histrica de sua poca, tambm empobrecedor compreender a vida desse mesmo indivduo circunscrita aos limites de determinismos de qualquer espcie. Os dois primeiros volumes da biografia de Getlio foram recebidos de forma bastante generosa pela crtica especializada, inclusive acadmica. Um dos maiores historiadores brasileiros da atualidade, Boris Fausto, assina a quarta capa do primeiro tomo. A doutora Maria Celina DArajo, a orelha do segundo. O terceiro ter na quarta capa uma recomendao do historiador Kenneth Maxwell, da Universidade de Harvard.CE: De que maneira os livros podem ser aproveitados, na escola, por professores e alunos nas aulas de Histria? E quais contribuies a obra pode trazer para o ambiente de sala de aula?LN: Penso que o livro pode ser til na medida em que expe, digamos, uma viso polifnica da trajetria de Getlio, fugindo ao maniquesmo tpico que ronda o personagem. A utilizao de um conjunto plural de fontes incluindo charges de poca, canes e obras literrias tambm pode contribuir para a compreenso da histria como algo vivo e pulsante.CE: De que forma sua formao como jornalista o ajudou na feitura da biografia?LN: Sempre digo que sou, essencialmente, um reprter. Escrevo longas reportagens histricas. Nesse sentido, valorizo a narrativa e a obrigao de escrever para um pblico heterogneo, decodificando contedos complexos para um pblico no necessariamente especializado. O grande desafio para um jornalista saber transmitir informaes e ideias de forma legvel e atraente, sem que isso signifique a simplificao do tema e, nesse caso, afrouxar mo no necessrio rigor no trato com as fontes histricas.CE: Existe certo preconceito ou desconfiana por parte de historiadores quando um jornalista se prope a tarefa de realizar uma biografia histrica?LN: Certa tenso aqui e acol ainda existe entre historiadores e jornalistas que trabalham com temas histricos, e no passa disso: preconceito mtuo. Os jornalistas precisam aprender muito com os historiadores sobre o trabalho com as fontes documentais. E os historiadores, talvez, precisem compreender as especificidades do trabalho jornalstico, que sustenta uma preocupao bsica com a questo da recepo, isto , com o leitor. So trabalhos de naturezas distintas, com motivaes e alvos diferentes, mas no necessariamente antagnicos.CE: Apesar de ser, de certa forma, um mito, a busca pela imparcialidade pilar forte do jornalismo. Diante de uma figura to controversa e alvo de tantas paixes e dios como Getlio, de quais ferramentas o senhor lanou mo para buscar essa imparcialidade?LN: Obviamente, a objetividade um mito, uma falcia. Porm, isso no exime o jornalista do dever prioritrio de buscar incessantemente a iseno possvel. Na prtica, isso se estabelece no confronto e na exposio das vrias narrativas disponveis a respeito do que se considera um fato. Isso, claro, pressupe buscar entender os mecanismos da prpria construo social e histrica dos chamados fatos.CE: Na viso de alguns historiadores, mais do que deixar um legado, Getlio Vargas mora em nossa alma, isto , contribuiu para a prpria criao de nossa identidade como povo e pas. E por isso Fernando Henrique Cardoso fracassou em tentar desmontar a Era Vargas. O que o senhor pensa sobre isso?LN: Como bem escreveu Boris Fausto na quarta capa do primeiro volume da biografia, Getlio Vargas , para o bem e para o mal, o personagem mais importante da histria republicana brasileira. Na quarta capa do segundo volume, o prprio Fernando Henrique Cardoso reconheceu Getlio como um estadista, a despeito do que se pense sobre ele a sua forma de governar e fazer poltica.CE: A figura de Lula muitas vezes comparada de Getlio. Como o senhor v essa comparao?LN: No h dvidas de que, um e outro, Lula e Getlio, at que se prove o contrrio, foram os lderes polticos de maior expresso popular na histria do Pas. Mas curioso notar que Lula, no perodo de lder sindicalista, era um antigetulista ferrenho. Ento criticava, de forma veemente, a herana histrica dos sindicatos pelegos e atrelados ao Estado, tpicos da Era Vargas. Mais tarde, porm, j como presidente, tentou mimetizar a figura nacionalista do Getlio criador de Volta Redonda e da Petrobras. A foto de Lula com a mo tisnada de petrleo, na poca do anncio do pr-sal, o melhor exemplo disso. Aquilo era um decalque de outra imagem, a de Getlio, com a mo estendida e tambm suja de petrleo, na poca da fundao da Petrobras.CE: Que imagem o senhor carrega de Getlio Vargas nos tempos da escola?LN: Em meus tempos de escola, vivamos uma ditadura militar, que buscava desconstruir por completo a imagem de Getlio e de seu principal herdeiro poltico, Jango. J na universidade, nos tempos da abertura poltica, meus professores marxistas tambm procuravam reduzir a figura complexa do ex-presidente ao ditador do Estado Novo, negando-lhe qualquer virtude ou mrito.CE: Essa imagem mudou aps a produo da biografia? Em que sentido?LN: Creio que os cinco anos de trabalho nessa biografia ajudaram-me a compreender que intil tentar analisar Getlio a partir de uma viso simplista. A perspectiva ingnua e quase devocional dos getulistas mais sinceros to parcial e equivocada quanto a ira dos antivarguistas mais empedernidos.CE: O que mais o surpreendeu sobre essa figura histrica durante o processo de pesquisa e produo dos volumes da biografia?LN: No digo que tenha sido exatamente uma surpresa, mas fascina-me a constatao de que at hoje, 60 anos aps sua morte, Getlio continue gerando tanta paixo, tantos amores e dios extremados.CE: Seus livros tambm se tornaram um grande sucesso comercial, inclusive figurando na lista dos mais vendidos em livrarias. Em sua opinio, por que Vargas e sua biografia ainda chamam tanta ateno do pblico brasileiro?LN: Exatamente pelo fato de continuar dividindo opinies de forma to apaixonada. A controvrsia a respeito de Getlio e de seu legado continua atualssima.CE: No site promocional dos livros, h uma enquete que pergunta Para voc, quem foi Getlio? Gostaria de estender essa pergunta ao senhor: quem foi, afinal, Getlio Vargas?LN: Uma das opes pergunta, na enquete, diz que Getlio, por sua complexidade, no pode ser definido em uma nica frase. Se eu tivesse de responder minha prpria pergunta, cravaria esta opo.

Publicado na edio 89, de agosto de 2014