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Tradução SOBRE HANNAH ARENDT Hannah Arendt Tradução de Adriano Correia 1 1 Adriano Correia é professor adjunto na Universidade Federal de Goiás e pesquisador do Cnpq.

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Tradução

Sobre HannaH arendt

Hannah Arendt

Tradução de Adriano Correia1

1 Adriano Correia é professor adjunto na Universidade Federal de Goiás e pesquisador do Cnpq.

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Hannah Arendt

PenSar e agir2

Hannah Arendt: A própria razão, nossa aptidão para pensar, tem necessidade de se efetivar. Os filósofos e os metafísicos monopolizaram esta capacidade. Isto levou a coisas grandiosas e também levou a coisas um tanto desagradáveis, pois esquecemos que todo ser humano tem necessidade de pensar, não de pensar abstratamente, de responder às questões últimas sobre Deus, a imortalidade e a liberdade, mas apenas de pensar enquanto está vivo – e faz isso constantemente. Toda pessoa que conta uma estória do que aconteceu a ela meia hora atrás na rua tem de colocar esta estória em um formato, e esta colocação da estória em um formato é uma espécie de pensamento.

Assim, no que concerne a isso, pode até ser bom que tenhamos

2 Em novembro de 1972 foi organizado no Canadá, pela Sociedade de Toronto para o Estudo do Pensamento Social e Político, um congresso sobre “A obra de Hannah Arendt”, patrocinado pela Universidade de York e pelo Canadá Council. Incialmente chamada a participar como convidada de honra, Arendt preferiu participar das dis-cussões. O presente texto foi editado por Melvin A. Hill a partir do que foi recolhido da gravação da discussão. A edição priorizou os temas mais relevantes e mais extensamente discutidos, desconsiderando a eventual sequência do próprio congresso. Ademais, o edi-tor optou por não intervir, “inglesando”, nas falas dos participantes, vários deles origi-nalmente não falantes da língua inglesa. Independentemente de quão justificada possa ser essa opção, isso acaba por trazer alguma dificuldade para a leitura, assim como a decisão de conservar a transcrição bastante rente à linguagem oral. Vez ou outra optamos por substituir pontos por vírgulas, suprimir a repetição excessiva de palavras e elementos da fala coloquial, mas basicamente conservamos a estrutura da edição original. O texto foi publicado originalmente com o título “On Hannah Arendt”, em HILL, M. Hannah Aren-dt: the recovery of the public world. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1979, p. 303-339 – edição há muito esgotada.O texto trata de temas fundamentais à obra de Hannah Arendt, principalmente no que tange às dificuldades na relação entre teoria e prática, o social e o político, à sua insistência em estabelecer distinções, à definição de sua posição no debate político contemporâneo, por exemplo. Pela excelência dos interlocutores – como C. B. Macpherson, Hans Jonas, Mary McCarthy, Richard Bernstein, Albrecht Wellmer e Hans Morganthau, por exemplo – e pela dificuldade de suas objeções já teríamos como justificar a disponibilização em nosso idioma de um texto dessa natureza. Talvez o maior interesse do texto repouse, em todo caso, nas tentativas de resposta, por vezes frágeis, por vezes implacáveis, que tais oposições acabaram por desencadear em Hannah Arendt. O vigor de sua obra e sua ca-pacidade de provocar para o pensamento saltam à vista, sem dúvida. (Nota do tradutor)

perdido o monopólio do que Kant certa vez chamou muito ironicamente de pensadores profissionais. Podemos começar nos preocupando com o que o pensamento significa para a atividade da ação. De início, admitirei uma coisa: estou interessada antes de tudo em compreender, é claro. Isto é absolutamente verdadeiro. Admitiria ainda que há outras pessoas que estão antes de tudo interessadas em fazer algo, mas não é o meu caso. Posso viver muito bem sem fazer coisa alguma, mas não posso viver sem tentar ao menos compreender o que quer que aconteça. Este é de algum modo o mesmo sentido em que conhecemos isto desde Hegel, a saber: quando penso que o papel principal é o da reconciliação – reconciliação do homem como um ser pensante e razoável. Isto é o que realmente acontece no mundo.

***

Não conheço qualquer outra reconciliação a não ser o pensamento. Esta necessidade é certamente muito mais forte em mim do que normalmente é nos teóricos da política, com sua necessidade de unir ação e pensamento. Porque, vocês sabem, eles querem agir, e eu penso que compreendo algo da ação precisamente porque a observei mais ou menos de fora. Agi em minha vida, umas poucas vezes, porque não pude evitar, mas este não é meu impulso principal. Admitiria quase sem discutir todas as lacunas que se poderia derivar dessa ênfase, porque penso ser muito provável que haja lacunas.

***

C. B. Macpherson: A senhora está realmente dizendo que ser um teórico da política e ser engajado é incompatível? Seguramente não!

Arendt: Não, mas se está correto ao afirmar que pensar e agir não são o mesmo e que na medida em que desejo pensar tenho de me retirar do mundo.

Macpherson: Mas para um teórico da política, um professor e um

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escritor de teoria política, ensinar ou teorizar é agir.

Arendt: Ensinar é algo diferente, e escrever também. Mas pensar, em sua pureza, é diferente – nisto Aristóteles estava correto… Sabemos que todos os filósofos modernos têm em algum lugar em sua obra uma sentença um tanto apologética que diz: “Pensar é também agir”. Ah não, não é! E dizer isto é um pouco desonesto. Quer dizer, temos de encarar os fatos: não é o mesmo! Pelo contrário, tenho de em grande medida deixar de participar, de me comprometer.

Há um antigo relato, atribuído a Pitágoras, sobre as pessoas que vão aos Jogos Olímpicos. E Pitágoras diz: “Um vai lá por fama e outro pelo comércio, mas os melhores sentam-se lá em Olímpia, no anfiteatro, apenas para observar”. Isto é, aqueles que observam atingirão enfim o fundamental de tudo isso, e esta distinção tem de ser mantida – em nome da honestidade, se não de outra coisa.

***

Acredito que o pensamento tem alguma influência sobre a ação. Sobre aquele que age, no entanto, porque é o mesmo ego que pensa e que age. Mas não a teoria. A teoria poderia [influenciar a ação] apenas no aprimoramento da consciência [consciousness]. Já pensaram alguma vez sobre quantas pessoas cuja consciência terá de ser aprimorada?

Se não se pensa sobre isso nesses termos concretos, então se está a pensar no gênero humano – isto é, sobre algum substantivo que realmente não existe, que é um conceito. E este substantivo – seja o ente-espécie de Marx, ou o gênero humano, ou o espírito do mundo ou que seja – é constantemente construído à imagem de um único homem.

Se realmente acreditamos – e penso que partilhamos esta crença – que a pluralidade rege a Terra, então penso que temos de modificar esta noção da unidade entre teoria e prática em uma medida tal que ela se tornará irreconhecível para aqueles que tentaram fazer uso dela antes.

Realmente acredito que se pode agir apenas em concerto e também que se pode pensar apenas por si próprio. Essas são duas posições “existenciais” – se se quer chamar assim – completamente diferentes. Acreditar que há alguma influência direta da teoria sobre a ação, na medida em que a teoria é justamente uma coisa pensada, isto é, algo examinado – penso que isto realmente não é assim e nunca será assim.

***

O principal defeito e erro de A condição humana é o seguinte: eu ainda considerava o que é denominado nas tradições de vita activa do ponto de vista da vita contemplativa, sem jamais dizer qualquer coisa genuína sobre a vita contemplativa.

Penso agora que considerá-la a partir da vita contemplativa é já a primeira falácia, porque a experiência fundamental do ego pensante está nessas linhas de Catão, o Velho, que citei no fim do livro: “Quando não faço coisa alguma, estou mais ativo, e quando estou apenas comigo mesmo, estou menos só”. (É muito interessante que Catão tenha dito isto!) Esta é uma experiência da pura atividade, livre de quaisquer obstáculos físicos ou corporais. Mas no momento em que começamos a agir, estamos a lidar com o mundo, constantemente caindo sobre nossos próprios pés, por assim dizer, e então carregamos nossos corpos – e, como Platão disse: “O corpo sempre quer ser cuidado e que se dane”!

Tudo isto é dito a partir da experiência do pensamento. No momento estou tentando escrever sobre isto, e partirei desse assunto de Catão. Mas não estou pronta para falar a vocês sobre isto, e de modo algum estou segura de que vou conseguir, porque é muito fácil falar sobre as falácias metafísicas, mas essas falácias – que são realmente falácias metafísicas – têm, cada uma delas, origem autêntica em alguma experiência. Ou seja, ao mesmo tempo em que as estamos atirando pela janela como dogmas, temos de saber de onde elas vieram. Isto é: quais são as experiências deste ego que pensa, que quer, que julga; em outras palavras, que está ocupado com puras atividades mentais. Mas vocês sabem que isto é realmente uma

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amostra, se de fato se envolvem com isso. Não posso dizer a vocês mais sobre esse assunto.

***

Tenho uma vaga ideia de que há algo de pragmático nesta questão “Para que serve pensar?”, consoante ao modo como formulei o que todos vocês disseram aqui: “Por que diabos vocês estão fazendo tudo isso?” e “Para que serve o pensamento, independentemente de escrever e ensinar?”. É muito difícil considerar isto e certamente mais difícil para mim que para muitos outros.

Veja, com os negócios políticos tenho certa vantagem, pois não sou, por natureza, um ator. Se eu disser que nunca fui socialista ou comunista – algo absolutamente presumível para toda a minha geração, de tal modo que eu raramente conheci alguém que nunca tenha se comprometido – vocês podem ver que nunca senti necessidade de me comprometer. Até que finalmente, schliesslich schlug mir [einer mit einem] Hammer auf den Kopf und ich fiel mir auf: finalmente alguém bateu em minha cabeça [com um martelo] e, podemos dizer, isto me despertou para a realidade. Não obstante, tive esta vantagem de observar algo pelo lado de fora, e até a mim mesma a partir de fora.

Mas não aqui [com esse assunto do pensamento]. Aqui estou imediatamente nele, e em vista disso estou totalmente em dúvida sobre se conseguirei ou não. Mas, de qualquer modo, sinto que esta Condição humana precisa de um segundo volume e estou tentando escrevê-lo.

***

Christian Bay: Tenho um conceito da vocação de um teórico da política muito diferente do de Hannah Arendt. Devo dizer que leio Hannah Arendt com prazer, mas com um prazer estético. Ela é uma filósofa dos filósofos. Penso ser bonito seguir sua prosa e seu sentido de unidade na história, assim como ser lembrado de todas as grandes coisas

que os gregos disseram e que de algum modo são ainda pertinentes hoje. Penso, contudo, de meu ponto de vista, que há certa falta de seriedade acerca dos problemas modernos em grande parte de sua obra.

Penso que talvez sua obra mais séria seja seu livro Eichmann em Jerusalém: sua indicação, com tal força, de como Eichmann está em cada um de nós. Julgo que isso tem grandes implicações para a educação política, que, antes de tudo, é o antigo tema do vínculo com a política. Mesmo assim, percebo essa falta em muitas outras partes da obra de Hannah Arendt. Talvez nossa habilidade para descentralizar e humanizar dependerá da medida em que encontrarmos modos de enfrentar, combater e superar o Eichmann que há em nós e tornarmo-nos cidadãos – em um sentido radicalmente diferente do emprego costumeiro deste termo.

Fico muito impaciente com demoradas discussões abstratas sobre como o poder difere da violência. Gostaria de saber não apenas o que é a justiça em um mundo cuja injustiça todos nós abominamos, mas como o teórico da política pode fazer com que nos tornemos mais comprometidos e mais eficazes na luta por justiça – e, nesse sentido, pela sobrevivência humana, que é o problema número um.

Fiquei incomodado quando Hannah Arendt disse que seu desejo é nunca doutrinar. Penso que esta é a maior vocação do teórico da política: tentar doutrinar, em um universo pluralista, é claro. Se levarmos a sério problemas como sobrevivência e justiça, então me parece que nossa primeira tarefa é superar o mar de liberalismo e de tolerância, que equivale realmente a dizer que uma opinião tem tanta justificação quanto outra. A menos que nos interessemos apaixonadamente por certas opiniões, penso que tudo estará perdido, caso em que continuará a ser permitido aos eventos seguirem seu próprio curso: o poder tende a ser distribuído sempre mais assimetricamente, enquanto as instituições liberais permitem que os senhores da economia continuem a se enriquecer à custa não apenas da pobreza dos demais, mas de nosso acesso ao conhecimento, à informação, à compreensão.

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Quero que teóricos da política como eu sejam primeiramente homens e mulheres da política, comprometidos na tentativa de educar a nós próprios e um ao outro sobre como solucionar os problemas existenciais urgentes com que nos defrontamos. Ainda uma última questão sobre isto. Era possível dizer com Stuart Mill um século atrás que com o tempo a verdade prevalecerá em um espaço de livre intercâmbio de ideias. Mas (a) não temos muito tempo e (b) não há um espaço de livre intercâmbio de ideias.

Hannah Arendt, o que podemos fazer como teóricos da política para examinar isso de modo que as questões existenciais – que têm às vezes respostas verdadeiras e falsas – sejam trazidas aos lares de muitos de nossos concidadãos, de modo que eles se tornem cidadãos no sentido antigo?

Arendt: Temo que o desacordo seja enorme e eu apenas o aludirei.

Antes de tudo, você gosta de meu livro Eichmann em Jerusalém e falou que eu disse haver um Eichmann em cada um de nós. Ah não! Não há um Eichmann em você nem em mim! Isto não quer dizer que não haja um grande número de Eichmanns, mas eles de fato parecem completamente diferentes. Sempre detestei esta noção de “Um Eichmann em cada um de nós”. Isto simplesmente não é verdade e seria tão falso quanto o oposto, que Eichmann não está em pessoa alguma. Do modo como vejo as coisas, isto é muito mais abstrato do que as coisas mais abstratas que eu muitas vezes me permito – se entendermos por abstrato o seguinte: realmente não pensar por meio da experiência.

Qual o objeto de nosso pensamento? A experiência! Nada mais! E se perdermos a base da experiência, chegaremos a todo tipo de teorias. Quando o teórico político começa a construir seus sistemas, está também geralmente lidando com a abstração.

Não creio que temos ou possamos ter muita influência, no sentido mencionado. Penso que o comprometimento pode facilmente nos levar a

um ponto no qual não mais pensamos. Há certas situações extremas em que se tem de agir, mas essas situações são extremas. Então se mostrará quem é realmente confiável – para o comprometimento – e quem de fato está disposto a arriscar seu pescoço. Mas essas outras coisas – que você viu nos desdobramentos dos últimos anos – são mais ou menos coisas do temperamento público. O temperamento público pode, no entanto, ser algo de que eu gosto, ou algo de que não gosto, mas eu não consideraria minha tarefa particular inspirar este temperamento quando ele me agrada ou partir para as barricadas quando me desagrada.

A relutância das pessoas que efetivamente estão pensando e são teóricos em reconhecer isto e acreditar que isto [pensar] vale a pena – e que acreditam, em vez disto, que apenas o comprometimento e o engajamento valem a pena –, é talvez uma das razões pelas quais no conjunto esta disciplina nem sempre está em muito boas condições. As pessoas aparentemente não acreditam no que estão fazendo.

Não posso dizer explicitamente a você – e detestaria fazer isto – quais as consequências na política real deste tipo de pensamento que eu experimento, não para doutrinar, mas para instigar ou despertar em meus alunos. Posso imaginar muito bem que um torna-se republicano e outro um liberal ou Deus sabe o quê. Mas de uma coisa eu tenho esperança: de que certas coisas extremas que são a consequência efetiva do não-pensar, isto é, de alguém que realmente decidiu que não quer [pensar], pensar que eu realizo talvez excessivamente, que não quer fazer isso de modo algum – de que essas consequências não tenham condições de vir a surgir. Ou seja, quando as cartas estão sobre a mesa, a questão é como eles agirão. [Entra em jogo] então essa noção de que examino meus pressupostos, de que eu penso – detesto usar a palavra por causa da Escola de Frankfurt –, de qualquer modo, que eu penso “criticamente” e que não me permito evadir mediante a repetição de clichês do humor público. Diria ainda que qualquer sociedade que tenha perdido o respeito por isto não está em muito boas condições.

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Michael Gerstein: Pergunto-me, como alguém que é ou se percebe como um ator político, como você poderia me instruir? Ou não me instruiria de modo algum?

Arendt: Não, eu não poderia instruir você e penso que isto seria presunçoso de minha parte. Penso que temos de ser instruídos quando sentamos em torno de uma mesa junto a nossos pares e trocamos opiniões. Então, de algum modo, disto deve resultar uma instrução: não para você, pessoalmente, mas acerca de como o grupo deve agir.

Penso ainda que qualquer outro caminho, do teórico que diz a seus estudantes o que pensar e como agir, é… Meu Deus! São adultos! Não estamos na creche! A ação política verdadeira aparece como um ato de grupo e nós ingressamos nesse grupo ou não. E por mais que façamos algo por nossa própria conta, não somos realmente um ator, mas antes um anarquista.

***

George Baird: Uma das revelações para mim em A condição humana foi o argumento que, como o compreendo, tem origem parcialmente em Maquiavel: o de que a glória e não a bondade é o critério apropriado para os atos políticos. Em A condição humana, de fato, a Sra. Arendt sustenta que a bondade pode até provar-se subversora do domínio político.

Assim sendo, parece-me que está implícito em tudo isto um tipo de desafio dramático às motivações dos ativistas políticos, tal como tipicamente os tenho compreendido no mundo. Por outro lado, a Sra. Arendt, em seu ensaio sobre Rosa Luxemburg, expressou sua admiração pelo que penso ter sido nomeado por ela de sensibilidade para a injustiça de Luxemburg como sendo o trampolim para o ingresso dela no domínio político.

A discussão vis-à-vis pode esclarecer todos estes apelos por guiar a

ação política caso a Sra. Arendt pudesse tentar esclarecer a relação entre seu austero sentido de glória – mais que de bondade – como o critério apropriado (uma posição extremamente rígida e fora de moda no mundo moderno), e sua admiração por Luxemburg. Em alguma parte tem de haver uma relação que sustente essas distinções e que esclareça a situação.

Arendt: Essa questão da bondade não chegou até mim senão por Maquiavel. Tem algo a ver com a distinção entre o público e o privado, mas posso formular isso de um modo diferente. Diria que na intenção de querer ser bom, estou realmente me ocupando com meu próprio eu (self). No momento em que ajo politicamente, não estou concernido comigo, mas com o mundo, e esta é a principal distinção.

Rosa Luxemburg estava muito concernida com o mundo e de modo algum consigo própria. Se ela estivesse ocupada consigo própria, teria permanecido em Zurique depois de sua tese e teria perseguido certos interesses intelectuais. Mas ela não podia suportar a injustiça no mundo.

Se o critério é a glória – o brilho no espaço das aparências – ou a justiça, não é o ponto decisivo. O decisivo é se sua própria motivação é clara – para o mundo, ou para si mesmo, isto é, para sua alma. Este é o modo como Maquiavel formulou isso quando disse: “Amo minha pátria, Florença, mais que minha salvação eterna”. Isto não significa que ele não acreditava em uma vida após a morte, mas sim que o mundo como tal é de maior interesse para mim que eu próprio, tanto meu eu [self] corpóreo quanto meu eu anímico [soul self].

Sabemos que nas repúblicas modernas a religião tornou-se um assunto privado, e Maquiavel realmente estava defendendo que ela seja privada. “Não admitam essas pessoas na política! Elas não se importam suficientemente com o mundo! Pessoas que acreditam que o mundo é mortal e que elas mesmas são imortais são personalidades muito perigosas, porque queremos a estabilidade e a boa ordenação deste mundo”.

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Hans Jonas: Que há no âmago de todo nosso ser e de nossa ação o desejo de partilhar o mundo com outros homens é incontestável, mas queremos partilhar um certo mundo com certos homens. E se é a tarefa da política tornar o mundo um lar adequado para o homem, surge a questão: “O que é um lar adequado para o homem?”.

Isso pode ser decidido apenas se formamos alguma ideia do que o homem é ou deve ser. Isso, em todo caso, não pode ser determinado senão arbitrariamente, caso não possamos apelar a alguma verdade sobre o homem que possa validar juízos desse tipo, assim como os juízos derivados do gosto político, que emergem nas situações concretas – e especialmente se é uma questão de decidir sobre como o mundo futuro deveria parecer – e que temos de emitir todo o tempo, ao lidar com empreendimentos tecnológicos que estão tendo um impacto sobre o ordenamento total das coisas.

Não é o caso, todavia, de que Kant simplesmente apele ao juízo. Ele também apela ao conceito do bem. Existe uma ideia tal como a do bem supremo, não importa como o definamos – e talvez ele escape à definição. O bem supremo não pode ser um conceito inteiramente vazio e está relacionado a nossa concepção do que o homem é. Em outras palavras, aquilo que por um consenso unânime foi declarado morto e acabado – a saber, a metafísica – tem de ser convocado em algum lugar para nos dar uma diretiva última.

Nossa capacidade de decisão vai muito além da lida com as situações imediatas e com o futuro próximo. Nossa capacidade de fazer ou agir expande-se agora sobre tais assuntos na medida em que envolve um juízo, um discernimento ou uma fé – deixo isso aberto – acerca de algo último. Pois na política ordinária, como foi compreendida até o século XX, poderíamos fazê-lo com penúltimos.

Não é verdade que a situação da comunidade política tem de ser decidida com base em padrões ou valores realmente últimos. Mas quando se dá o caso – como sob as condições da moderna tecnologia – de termos

de prosseguir de modo vacilante em direções que afetam toda a condição das coisas sobre a Terra e toda a condição futura do homem, então penso que não possamos simplesmente lavar nossas mãos, dizer que a metafísica Ocidental conduziu-nos a um impasse, declará-la falida e apelar então a juízos partilháveis – com o que, pelo amor de Deus, não queremos designar como juízos partilhados aqueles compartilhados por uma maioria ou por qualquer grupo definido. Podemos partilhar juízos para nossa perdição com muitos, mas temos de apelar para além desta esfera!

Arendt: Receio que tenha de responder. Não estou tocando na questão da Crítica do juízo, de Kant. Realmente, a questão do bem e a questão da verdade não estão colocadas. O livro todo concerne de fato à possível validade dessas proposições.

Hans Jonas: Mas não é político.

Arendt: Não, mas eu disse apenas da validade: se se pode transferi-lo para a esfera política é também uma das questões bastante interessantes, mas marginal neste momento. É claro que fiz isso e o fiz simplesmente ao considerar os escritos tardios de Kant sobre a política. Uma das principais questões aqui é uma certa posição a respeito da Revolução Francesa em Kant, mas não estou prosseguindo nisso porque nos levaria muito longe desta questão de algo último.

Considerando que nosso futuro depende do que você disse agora – isto é, que nós alcançaremos algo último que decidirá por nós a partir de cima (de modo que a questão é, naturalmente, quem reconhecerá esse algo último e quais serão as regras para reconhecê-lo – você tem realmente um regresso infinito aqui, mas seja como for). Eu seria inteiramente pessimista. Se este é o caso, então estamos perdidos. Porque isso de fato exigiria que um novo deus aparecesse.

Esta palavra (Deus) foi cristã, na Idade Média Cristã, e admitiu um ceticismo muito grande, mas era mantida na instância última, porque era Deus. Mas porque isto [Deus] desapareceu, a humanidade Ocidental

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Hannah Arendt

retrocedeu à situação na qual ela estava antes que fosse salva, ou resgatada, ou seja o que for, pelas boas novas – visto que não se acreditava mais nisso. Esta era a situação real, e esta situação os mandou [isto é, os revolucionários do século XVIII] de volta arrastando-se para a Antiguidade, mas não porque, como em alguns casos, estavam enamorados pelos versos gregos ou pelas canções gregas, como pode ser o meu caso – mas essa não foi sua motivação.

Isto é, eles estavam, em inteira nudez, confrontados com o fato de que os homens existem no plural, e nenhum ser humano sabe o que é o homem no singular. Conhecemos apenas “machos e fêmeas criados por eles” – isto é, desde o início esta pluralidade coloca um enorme problema. Estou, por exemplo, perfeitamente segura de que toda essa catástrofe totalitária poderia não ter acontecido se as pessoas ainda acreditassem em Deus, ou antes no inferno – ou seja, se ainda houvesse algo último. Não há tais coisas últimas, e você sabe tanto quanto eu que não existiam tais coisas últimas às quais se poderia apelar de modo válido. Não era possível apelar a pessoa alguma.

Se se passa por uma situação tal [como a do totalitarismo], a primeira coisa que se sabe é o seguinte: nunca se sabe como alguém agirá. Você tem a surpresa de sua vida! Isto perpassa todas as camadas da sociedade e as várias distinções entre os homens. Se quiséssemos fazer uma generalização, poderíamos então dizer que aqueles que ainda estavam muito firmemente convictos em relação aos chamados valores antigos foram os primeiros a estarem prontos a trocar seus valores antigos por um novo conjunto de valores, contanto que lhes fosse dado um. Tenho receio disto, porque penso que no momento em que se dá a alguém um novo conjunto de valores – ou este famoso “corrimão” – se pode imediatamente trocá-lo. A única coisa a que o sujeito está habituado é a ter um “corrimão” e um conjunto de valores, não importa qual. Não creio que possamos estabilizar a situação na qual estivemos desde o século XVII por nenhuma via definitiva.

F. M. Barnard: Você concordaria então com Voltaire? Você levanta esta questão de Deus e, em certa medida, de uma metafísica que se pode questionar qua metafísica, mas que se pode considerar como extremamente útil socialmente.

Arendt: Concordo completamente. Não teríamos de nos preocupar com todo esse assunto se a metafísica e toda essa questão de valores não tivessem ruído. Começamos a nos questionar por causa desses eventos.

Hans Jonas: Partilho com Hannah Arendt a posição de que não estamos de posse de quaisquer fundamentos últimos, seja pelo conhecimento, pela convicção ou pela fé. E também creio que não podemos ter isto como um espetáculo encomendado devido ao fato de que “precisamos disto tão pungentemente que por essa razão devemos tê-lo”.

De qualquer modo, uma parte da sabedoria é o reconhecimento da ignorância. A atitude socrática consiste em saber que não se sabe, e esta constatação de nossa ignorância pode ser de grande importância prática no exercício da capacidade de julgar, que está antes de tudo relacionada à ação na esfera política, à ação futura e à ação de longo alcance.

Nossas iniciativas têm uma tendência escatológica – um utopismo embutido, a saber, um movimento em direção a situações últimas. Desprovidos de conhecimento dos valores últimos – ou do que é em última instância desejável – ou do que é o homem, de modo que o mundo possa ser adequado para ele, devemos ao menos abster-nos de permitir que situações escatológicas ocorram. Esta é apenas uma injunção prática muito importante que podemos extrair do discernimento de que apenas com alguma concepção de algo último estamos autorizados a nos envolver em certas coisas. Em vista disso, o ponto de vista assumido por mim pode ser de alguma relevância, ao menos como uma força restritiva.

Arendt: Com isto eu concordaria.

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Hannah Arendt

PenSar Sobre a Sociedade e a Política

Mary McCarthy: Gostaria de fazer uma pergunta que mantive em minha mente durante bastante tempo. É sobre a distinção bastante acentuada feita por Hannah Arendt entre o político e o social. É particularmente perceptível em seu livro Sobre a revolução, em que ela demonstra, ou busca demonstrar, que o fracasso das revoluções Russa e Francesa deveu-se ao fato de que essas revoluções estavam preocupadas com o sofrimento – em que o sentimento de compaixão desempenhou um grande papel. A Revolução Americana, por sua vez, foi política e terminou na fundação de algo. Mas sempre me perguntei: “O que se espera que alguém faça na cena pública, no espaço público, se ele mesmo não se preocupa com o social? Ou seja, o que resta?”.

Parece-me que uma vez que temos uma constituição, tivemos a fundação e uma estrutura legal, o cenário para a ação política está lá. E a única coisa que resta a fazer para o homem político é o que os gregos fizerem: guerrear! Mas isto não pode estar certo! Por outro lado, se todas as questões de economia, bem-estar humano, ocupação, qualquer coisa que afete a esfera social, devem ser excluídas da cena política, então estou perplexa. Fiquei com a guerra e os discursos, mas os discursos não podem ser apenas discursos, têm de ser discursos sobre algo.

Arendt: Você está absolutamente correta, e posso admitir que me faço essa questão. Em primeiro lugar, os gregos não faziam a guerra apenas, Atenas existia antes da Guerra do Peloponeso e o verdadeiro florescimento de Atenas deu-se entre as Guerras Pérsicas e a Guerra do Peloponeso. O que eles faziam então?

A vida muda constantemente e as coisas estão constantemente lá como se quisessem ser discutidas. Em todas as épocas as pessoas que vivem juntas terão assuntos que pertencem ao âmbito do público – “são dignas de serem discutidas em público”. O que esses assuntos são em cada momento histórico é provavelmente completamente diferente. As grandes catedrais, por exemplo, eram os espaços públicos da Idade

Média. As câmaras municipais vieram mais tarde. E lá talvez eles tivessem de conversar sobre uma questão que tampouco é desprovida de todo interesse: a questão de Deus. Consequentemente, o que se torna público em cada período determinado parece-me completamente diferente. Seria muito interessante seguir isto por meio de um estudo histórico, e penso que alguém poderia fazer isso. Sempre houve conflitos. Contudo, não é necessária a guerra.

Richard Bernstein: Admitamos o lado negativo de uma tese persistente em sua obra: a de que quando os homens confundem o social com o político, há consequências devastadoras na teoria e na prática.

Arendt: Está bem!

Richard Bernstein: Mas você sabe muito bem que – ao menos para nós, agora – não se pode fazer de maneira consistente aquela distinção! Embora possamos apreciar a distinção, ambos estão inextricavelmente conectados. Não é o bastante responder à pergunta de Mary McCarthy afirmando que em épocas diferentes temos de examinar com precisão o que adentra a esfera pública. É uma questão de se nos dias de hoje podemos dissociar ou separar consistentemente o social e o político.

Arendt: Acho que está certo. Há coisas em que a medida correta pode ser calculada. Estas coisas podem de fato ser administradas e, desse modo, não estão sujeitas ao debate público. O debate público pode lidar apenas com coisas que – se quisermos formular negativamente – não podemos calcular com exatidão. Caso contrário, se pudermos calcular com certeza, por que nós todos precisaríamos estar juntos?

Considere uma assembleia municipal. Há uma discussão, por exemplo, sobre onde colocar a ponte. Isto pode ser decidido de cima ou ser resolvido pelo debate. No caso, há realmente uma questão em aberto acerca de onde é melhor colocar a ponte, que pode ser mais bem decidida pelo debate que de cima para baixo. Assisti certa vez uma assembleia municipal em New Hampshire e fiquei muito impressionada com o nível

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de compreensão na cidade.

Por outro lado, parece-me também muito claro que nenhuma quantidade de discursos, discussões e debates – ou o que infelizmente tem tomado seu lugar: comitês de investigação, que são uma desculpa para não fazer coisa alguma – que nenhuma destas coisas seria capaz de resolver os problemas sociais bastante graves que as grandes cidades nos apresentam.

Tomemos outro exemplo. Temos nos júris o último vestígio de participação cidadã ativa na república. Tomei parte em um júri – com grande satisfação e verdadeiro entusiasmo. Aqui, mais uma vez, todas essas questões são de alguma forma realmente discutíveis. O júri foi extremamente responsável, mas também consciente de que há pontos de vista diferentes, dos dois lados do tribunal, a partir dos quais se poderia examinar a questão. Isto me parece muito nitidamente uma questão de interesse público comum. Por outro lado, tudo que de fato pode ser calculado, na esfera do que Engels chamou de administração das coisas – estas são as coisas sociais em geral. Que elas devam estar sujeitas a debate parece-me um embuste e um aborrecimento.

C. B. Macpherson: Está nos dizendo que aquilo com que um júri ou uma assembleia municipal pode lidar é político e todo o resto é social?

Arendt: Não, eu não disse isso. Mencionei apenas exemplos de onde, na vida cotidiana, surgem coisas que não são sociais e que realmente pertencem ao domínio público. Mencionei a assembleia municipal e o júri como exemplos dos muito poucos lugares onde um genuíno público ainda existe.

Albrecht Wellmer: Pediria a você que desse um exemplo atual de um problema social que não seja ao mesmo tempo um problema político. Considere tudo: como educação, saúde, problemas urbanos, e mesmo o simples problema dos padrões de vida. Parece-me que mesmo os problemas sociais em nossa sociedade são inevitavelmente problemas políticos. Contudo, se isto estiver correto, então certamente também

estaria correto afirmar que é impossível estabelecer uma distinção entre o social e o político em nossa sociedade.

Arendt: Consideremos o problema da moradia. O problema social é certamente uma moradia adequada, mas a questão sobre se esta moradia adequada significa integração ou não é certamente uma questão política. Em cada uma destas questões há uma dupla face, e uma destas faces não deve estar sujeita a discussão. Não deveria haver qualquer debate sobre a questão acerca de se todos devem ter uma moradia decente.

George Baird: De um ponto de vista administrativo, o governo britânico descreveu como inadequada uma enorme porcentagem dos conjuntos habitacionais da Grã-Bretanha, de um modo que não faz sentido para uma grande proporção dos habitantes que realmente vivem lá.

Arendt: Penso que este exemplo é útil para mostrar concretamente esta dupla face de que eu falei. A questão política é que estas pessoas adoram a região em que vivem e não querem se mudar, mesmos que seja dado mais um banheiro a elas. Esta é de fato uma questão plenamente discutível e um assunto público que deve ser decidido publicamente e não de cima. Mas se é uma questão de quantos metros quadrados cada ser humano precisa para ser capaz de respirar e levar uma vida decente, isto é realmente algo que podemos calcular.

***

Michael Gerstein: Parece-me que se é forçado a agir politicamente, a lidar com situações concretas e problemas concretos. Na medida em que somos forçados a tomar esses tipos de decisões, as questões de classe, de propriedade, do futuro de uma sociedade, tornam-se um problema bastante concreto e não se pode mais lidar somente com abstrações tais como a burocracia ou a centralização. Estas me parecem revelar o caráter essencialmente despolitizado de seu pensamento, o qual achei muito inquietante quando li sua obra. Ouvir você aqui hoje me inquieta ainda mais, porque felizmente – ou infelizmente – somos forçados a agir no

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mundo e temos então de saber com que o mundo se parece.

Arendt: Esses são os problemas da chamada “sociedade de massas”. Digo chamada “sociedade de massas”, mas infelizmente é um fato. Mas eu gostaria de saber por que você acredita que palavras como classe e propriedade são menos abstratas que burocracia e administração ou as palavras que eu uso. Elas são exatamente iguais. Todas elas pertencem à mesma categoria de palavras. A questão é somente se você é capaz de indicar algo verdadeiramente real com essas palavras. Ou elas têm a propriedade de revelar – ou desvelar – ou elas não têm.

Se você pensa que a burocracia – que significa o governo pelo escritório e não o governo pelos homens ou o governo pela lei – não tem um caráter desvelador, então realmente acredito que você não viveu neste mundo o tempo suficiente. Mas garanto a você que hoje a burocracia é uma realidade muito maior do que a classe. Em outras palavras, você usa uma variedade de nomes abstratos que outrora foram reveladores, especialmente no século XIX, e sequer se dá ao trabalho de examinar criticamente se eles ainda são válidos ou se deveriam ser mudados ou algo assim.

Propriedade é outra questão. A propriedade é deveras muito importante, mas em um sentido diferente daquele em que você a concebe. O que devemos encorajar por toda parte é a propriedade – certamente não a propriedade dos meios de produção, mas a propriedade estritamente privada. Asseguro que esta propriedade está muito mais em perigo, seja pela inflação, que é apenas um modo diferente de expropriar um povo, seja pelos impostos exorbitantes, que é também um modo de expropriação, o modo mais suave de expropriar – em vez de matar cada um. Por toda parte temos esses processos de expropriação. Torne uma quantidade decente de propriedade acessível a todo ser humano – não para expropriar, mas para disseminar a propriedade –, então teremos algumas possibilidades para a liberdade mesmo sob as muito desumanas condições da produção moderna.

***

Mary McCarthy: Agora temos efetivamente a tendência, em algumas dos Estados do leste – não estou falando sobre a União Soviética –, a conceber a propriedade privada exatamente no mesmo sentido em que você a concebe: sem propriedade dos meios de produção. Parece-me que, até onde posso ver adiante, o socialismo representa a única força para a conservação e, de fato, representa uma força conservadora no mundo moderno.

Arendt: Eu disse que os meios de produção não devem estar nas mãos de um único homem. Mas quem então teria a posse deles em seu lugar? O governo.

Alguns anos atrás, na Alemanha, a esquerda exigiu a nacionalização da Springer Press, a imprensa da ala direitista. Springer é somente um homem e certamente tem certa quantidade de poder sobre a opinião pública, através de certos métodos, etc. Mas ele não tem o poder acumulado e os meios de violência que um governo tem. Desse modo, a esquerda teria dado todo o poder do Sr. Springer a seu governo, que certamente teria um poder muito maior: uma imprensa dirigida pelo governo. Quero dizer que mesmo aquela liberdade que Springer tinha de admitir, por causa da competição – porque há outros jornais que contariam o que ele preferia não dizer –, mesmo este tipo de liberdade desapareceria.

Assim, se você fala sobre a propriedade dos meios de produção, o primeiro a herdá-la foi o próprio governo. Mas o próprio governo era certamente muito mais forte do que qualquer capitalista sozinho poderia ser. E se a questão é a do operário, ocorre que eles podiam fazer greve – e o direito de greve é realmente um direito muito precioso – contra um único capitalista. Não poderiam, entretanto, fazer greve contra o governo, de modo que os poucos direitos que o movimento operário realmente conquistou por meio de longa luta desde a metade do século XIX foram imediatamente retirados deles.

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Mary McCarthy: Considere a situação da imprensa nos Estados Unidos: antes da última eleição [1968] algum tipo de sondagem foi feita e penso que algo em torno de 90% da imprensa dos Estados Unidos apoiava Nixon. Temos, com isso, um amálgama de imprensa e governo – ao menos o atual governo dos Estados Unidos – nos moldes do Partido Republicano, e parece-me que temos nos Estados Unidos de agora o mesmo resultado que teríamos na Alemanha se expropriassem Springer.

Arendt: Se a imprensa houvesse fosse expropriada, teríamos não 90% para o governo, mas 100%.

Mary McCarthy: Não necessariamente. Na Holanda, por exemplo, a televisão é propriedade pública – penso que provavelmente estas coisas funcionem apenas em pequenos países – e eles têm uma enorme variedade de partidos políticos. Cada partido político tem seu próprio canal de TV ou parte de um canal. E isto funciona, é aceito pelo povo.

Arendt: Sim, mas lá há leis que forçam a descentralização desta expropriação, deste processo de acumulação. O sistema multipartidário na Holanda funciona como fator mitigante, o qual agora tentam introduzir em alguns dos países orientais. O que teremos de fazer, em geral, é experimentar.

Mary McCarthy: Viva!

***

C. B. Macpherson: Realmente, duas das afirmações de Hannah Arendt sobre o poder esta manhã parecem-me escandalosas. Uma foi que Marx não compreendeu o poder, e a outra foi que o poder está agora na burocracia.

Parece-me que se pode sustentar que Marx não compreendeu o poder apenas se se define o poder de um modo bastante particular. E parece-me que isto é parte do estilo do pensamento da Sra. Arendt. Ela define muitas palavras chave de um modo exclusivo a ela: vocês sabem,

social versus político (um significado um tanto especial para a palavra “social”), força versus violência (um significado bastante especial para a palavra “força”)…

Arendt: Não, poder versus violência. Desculpe-me.

C. B. Macpherson: Poder e violência, desculpe-me. Ação (uma singular definição de “ação”). Esta prática intelectual – uma prática muito vivificante, porque desencadeia, ou deveria desencadear, todo tipo de controvérsia – é uma prática ainda mais curiosa: a de tomar uma palavra que talvez tenha mais de um significado na compreensão comum e conferir a ela um significado muito especial, para então, a partir dela, chegar a conclusões surpreendentes e paradoxais.

Bem, vejamos. Você disse que Marx não compreendeu o poder. O que ele compreendeu, seguramente, foi que, em qualquer sociedade, o poder está nas mãos das pessoas que controlam o acesso aos meios de produção, aos meios de vida, aos meios de trabalho. E isto, em sua terminologia, era uma classe. A senhora concordaria que a única razão para uma burocracia ter o poder que tem – e não concordo que a burocracia tenha todo o poder que a senhora atribui a ela – é porque e apenas na medida em que se converteu em uma classe (quem controla o acesso aos meios de produção, no sentido de Marx), e somente naqueles países nos quais isso se deu?

Arendt: Não concordaria com isto. O que você considera meu uso idiossincrático das palavras – penso que há algo mais do que isto, é claro. Nós crescemos e herdamos certo vocabulário. Temos então de examinar este vocabulário, e não apenas descobrindo como uma palavra é normalmente utilizada, o que nos daria como resultado certo número de usos, que são em seguida legitimados. Em minha opinião uma palavra tem uma relação mais forte com o que ela denota ou com o que o modo como ambos a empregamos. Ou seja, você considera apenas o valor comunicativo da palavra, eu considero a sua qualidade desveladora. E, naturalmente, esta qualidade desveladora tem sempre um pano de fundo

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histórico.

C. B. Macpherson: Considero a propriedade desveladora também e esta é a razão de eu dizer que as palavras classe, poder, e assim por diante, como empregadas por Marx, são conceitos desveladores.

Arendt: Não diria o mesmo sobre classe. Veja que me refiro, naturalmente, à chamada superestrutura. O que Marx quer dizer com poder é de fato o poder de uma tendência ou de um desdobramento. Ele acreditava que isto se materializava, por assim dizer, porque esta tendência é completamente imaterial, na superestrutura que é o governo. E sendo as leis do governo a superestrutura, não são senão espelhos das tendências na sociedade.

Marx não compreendeu a questão do governo, e em grande medida isto pesa a seu favor, pois ele não acreditava que alguém pudesse querer o poder pelo poder. Isto não existe em Marx. Ele não compreendeu o poder no sentido estrito de uma pessoa querer comandar outra e que precisamos de leis para impedir isto.

Sabemos que, de certo modo, Marx ainda acreditava que se os homens forem deixados em paz – a sociedade corrompe o homem – e for mudada a sociedade, o homem reaparecerá. Ele reaparecerá... Deus nos proteja disto: este otimismo perpassa toda a história. Você sabe que Lênin disse certa vez que não compreendia por que o direito penal deveria existir, pois desde que mudemos as circunstâncias cada um impediria cada outro de cometer um crime, com a mesma naturalidade com que todo homem se apressaria a ajudar uma mulher que estivesse em perigo. Acho este exemplo de Lênin muito próprio do século XIX. Não acreditamos mais em tudo isto.

C. B. Macpherson: Mas seguramente Marx viu tão claramente como, digamos, James Mill, que os homens querem poder sobre os outros para obter mediante esse poder um benefício para eles mesmos. Não é o poder pelo poder, mas o poder em vista da obtenção de um benefício.

Arendt: Sim, mas sabemos que este poder de obter benefício por causa do lucro…

C. B. Macpherson: Não necessariamente o lucro, mas qualquer benefício.

Arendt: Mas não sabemos que porcentagem da população faria isto apenas por prazer e sem pensar em benefício. Isto é, Marx sempre pensou que o que percebemos mais ou menos como motivações humanas, são de fato motivações de tendências. Mas é claro que tendências são abstrações, e duvido que elas existam por si próprias. A tendência de uma parede branca é ficar suja com o tempo, a menos que alguém apareça e redecore o quarto.

C. B. Macpherson: Certamente é verdade que Marx estava interessado em tendências, que estava interessado nas leis do movimento da sociedade e assim por diante. Mas não reconheço Marx em sua descrição dele, a transformar a tendência em algum tipo de força efetiva por si mesma.

Arendt: Bem, não podemos nos sentar aqui e ler Marx! Mas isto me parece bastante óbvio e seguramente vem de Hegel. O espírito do mundo de Hegel reaparece em Marx, na medida em que o homem é um ente-espécie. Em cada um dos casos, a pluralidade dos homens é descartada ou desconsiderada. Não há muitos homens cujo agir com e contra cada outro resulte por fim em história. Mas há um único substantivo gigantesco e este substantivo está no singular – desse modo se pode atribuir tudo a este substantivo. Isto eu creio ser realmente uma abstração.

Hans Morganthau: Deixe-me dizer uma palavra sobre a incompreensão básica sobre o poder em Marx. Ele conectou organicamente o desejo de poder com a divisão de classes da sociedade. Acreditou, ademais, que uma vez removida esta divisão de classes em uma sociedade sem classes, a disputa pelo poder – o desejo de poder – desapareceria por si própria. Esta é a profecia do Manifesto Comunista, em que a dominação do homem pelo homem será substituída pela administração das coisas. Mas esta é

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uma equivocada concepção rousseauísta da natureza do homem, da natureza da sociedade e da natureza do poder. O que acho particularmente interessante é que nessa concepção equivocada do poder, o marxismo e o liberalismo do século XIX são irmãos de sangue. Eles acreditavam na mesma coisa.

***

Albrecht Wellmer: Tenho outra questão acerca da importância de certas distinções em sua obra, ou daquilo que Mary McCarthy denominou “o elemento medieval” em seu pensamento. Está suficientemente claro que muitas destas distinções se mostraram extremamente frutíferas no que se refere à crítica de fixações ideológicas: especialmente essas fixações que representam a prevalência de tradições do século XIX – na teoria de Marx, por exemplo.

Por outro lado, estou intrigado com um certo tipo de abstração dessas distinções. Tive sempre a sensação de que essas distinções designam casos-limite aos quais efetivamente nada corresponde na realidade. Espanto-me com o caráter desses construtos, tipos ideais ou conceitos que designam casos-limite. O que quero dizer é que pode estar faltando um elemento algo hegeliano em seu pensamento.

Arendt: Com certeza!

Albrecht Wellmer: Quero fornecer uma tentativa de interpretação do modo como você formula distinções como entre obra e trabalho, o político e o social e poder e violência. Não seria o caso de essas alternativas designarem não possibilidades permanentes do gênero humano – ao menos, não em primeiro lugar –, mas os limites extremos entre os quais a história humana se espraia: a saber, o ser humano como um animal e a utopia. De modo que, por exemplo, se todo trabalho se transformasse em obra, se o social se tornasse um assunto público ou político, em sua compreensão, e se a violência fosse abandonada em nome do poder, novamente em sua compreensão, então isto aparentemente seria a realização de uma utopia.

Sendo assim, eu me pergunto se o fato de você não estar completamente consciente do elemento utópico em seu pensamento explica a razão de você se relacionar de um modo tão estranho com as tradições de pensamento crítico, socialista ou anarquista. Tenho a sensação de que esta é exatamente a razão pela qual você nunca pode fornecer um tratamento adequado seja dessas tradições, seja de algo como a teoria crítica ou a relação de sua teoria com essas tradições.

Arendt: Posso não estar ciente do elemento utópico. Esta é uma das coisas que me parecem bem possíveis. Não digo “sim”: digo apenas que é bem possível. Mas se não estou ciente disso… Pelo amor de Deus, não estou ciente disto e nenhuma psicanálise vinda da Frankfurter Schule ajudaria. Realmente não estou em condições de responder a você imediatamente – tenho de pensar melhor sobre esse assunto.

Pelo menos considere a única coisa que julgo questionável: isto é, se não acredito nesta ou naquela teoria, porque não escrevo uma refutação dela? Eu faria isto apenas coagida. Isto traduz minha falta de comunicação. Não creio que tenha algo a ver com abstração.

Albrecht Wellmer: Minha pergunta se perdeu. Posso reformulá-la? O que você diria de uma interpretação de suas distinções na qual uma alternativa designaria o caso-limite da animalidade e a outra designaria o caso limite da completa realização da humanidade?

Arendt: Diria que mediante esses métodos fantasiosos você eliminou a distinção e já teria operado esse truque hegeliano em que um conceito, por si mesmo, começa a desdobrar-se em seu próprio negativo. Não, não é assim! E o bem não se desdobra em mal e o mal não se desdobra em bem. A esse respeito eu seria inflexível.

Você sabe que tenho um grande respeito por Hegel, de modo que isto não está em questão. Do mesmo modo como tenho um grande respeito por Marx. Claro que também sou influenciada por todas essas pessoas que, afinal de contas, eu li. Então, não me compreendam mal. Mas

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esta seria precisamente a armadilha – em minha concepção – em que me recuso a cair.

***

Hans Morganthau: Foi levantada a questão sobre a centralização, que se opõe diretamente à democracia, se é levada longe o bastante.

Arendt: Acho esta questão muito complicada. Diria, em um primeiro plano, que há realmente por todo o mundo quase uma rebelião contra o gigantismo. Penso ser esta uma reação saudável e eu mesma a compartilho, especialmente porque tais gigantismo e centralização requerem essas burocracias, e as burocracias são de fato o governo de ninguém – e esse ninguém não é benevolente. Não podemos considerar alguém responsável pelo que acontece porque de fato não há autor de feitos e eventos. É realmente assustador. Por esta razão, em grande medida compartilho disso que é designado como descentralização. Também penso que este país [EUA] pode permanecer ou tornar-se um país poderoso somente se houver muitas fontes de poder. Isto é, se o poder for dividido como o foi na noção original dos Pais Fundadores e antes naquela noção de Montesquieu – não tão clara, mas mesmo assim.

Mas se tudo isto está dito – e minhas simpatias estão aí – e você sabe que tenho esta simpatia romântica pelo sistema de conselhos, que nunca foi experimentado – isto é algo que se constrói a partir das bases, de modo que se possa de fato dizer potestas in populo, isto é, que o poder vem de baixo e não de cima – se tudo isto está dito, temos então o seguinte: apesar de tudo, o mundo em que vivemos tem de ser preservado. Não podemos permitir que caia em pedaços. Isto significa que a “administração das coisas”, que Engels pensou ser uma ideia tão maravilhosa e que efetivamente é uma ideia horrível, é ainda uma necessidade. E isto pode ser feito apenas de uma maneira mais ou menos central.

Por outro lado, essa centralização é um perigo horrível, porque estas estruturas são bastante vulneráveis. Como se pode preservá-las sem

centralização? Mas se temos isto, a vulnerabilidade é imensa.

***

a conStituição americana como um tiPo ideal

Ed Weissman: Estávamos a pouco dizendo que existe esta distinção a ser traçada entre o teórico e o ativista em um aspecto importante. Estávamos precisamente dizendo que há uma incompatibilidade básica entre o ativista e o teórico…

Arendt: Não, não entre os homens, entre as atividades.

Ed Weissman: Correto. E está implícito em tudo o que você disse um compromisso intelectual básico com algum tipo de imagem idealizada da Constituição Americana e da experiência americana. Isso soa a mim como o tipo mais inabalável de um compromisso que é fundamental a tanto daquilo que você diz que nem mesmo precisa trazê-lo à tona explicitamente.

Quando fala da Constituição Americana, você faz o que me parece ser algumas suposições, sobre as quais eu gostaria de indagá-la. Parece-me que em alguns aspectos você interpreta mal a Constituição Americana do mesmo modo como Montesquieu compreendeu mal a Constituição Britânica. Trata-se também do mesmo tipo de transferência intelectual. Basicamente, o que ele viu na Constituição Britânica não foi de modo algum uma separação efetiva dos poderes, mas simplesmente um equilíbrio temporário, entre uma velha e uma nova sociedade, que teve um reflexo institucional. Agora você toma esta noção da separação dos poderes e a transfere para a república americana.

Todavia, uma vez que se abole o equilíbrio entre a velha e a nova sociedade, termina-se novamente na situação monárquica britânica, na qual as instituições representam meros interesses. De modo que não é por acaso que terminamos na atual administração americana [1972]. Era inevitável que terminássemos com um rei eleito, Nixon, e com Kissinger,

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que claramente tornou-se um típico ministro da Coroa, no antigo sentido do termo.

Arendt: Bem, certamente fiz algo parecido com o que Montesquieu fez com a Constituição Inglesa, uma vez que construí a partir [da Constituição Americana] certo tipo ideal. Tentei apoiá-lo um pouco melhor em fatos históricos do que Montesquieu o fez, pela simples razão de que eu não pertenço à aristocracia e, por conseguinte, não desfruto desta sagrada preguiça que é uma das principais características dos escritos de Montesquieu. Agora se isto é lícito é outra questão, que nos levaria longe demais.

Realmente todos fazemos isso. Todos nós de algum modo construímos o que Max Weber chamou de “tipo ideal”. Isto é, refletimos sobre certo conjunto de fatos históricos, discursos e o que quer que tenhamos, até que se torne algum tipo de regra consistente. Isto é especialmente difícil com Montesquieu por causa de sua preguiça e é muito mais fácil com os Pais Fundadores, porque eles eram trabalhadores extraordinariamente empenhados, com o que nos fornecem tudo de que precisamos.

Não acredito em suas conclusões: essa inevitabilidade que nos levaria da Revolução Americana ao Sr. Kissinger. Penso que mesmo você, educado na escola da necessidade e das tendências, e da inevitabilidade das leis históricas, deveria compreender que isto é um pouco abstruso.

***

C. B. Macpherson: Estava interessado na posição de Hannah Arendt em relação às tradições. Presumo que a ideia é que ela rejeitou a tradição de Hobbes e Rousseau e aceitou a tradição de Montesquieu e dos federalistas. Posso compreender, mas isto provoca certo embaraço, porque me parece haver uma coisa muito importante que a tradição de Hobbes e a dos Federalistas têm em comum. Isto é, seu modelo do homem como um indivíduo calculador buscando maximizar seu próprio

interesse. O homem burguês é o modelo, e o modelo de sociedade que se segue, uma vez apresentados os pressupostos adicionais, é aquele em que o interesse de cada homem naturalmente entra em conflito com o de todos os outros. Seguramente, ambas as tradições têm esse modelo de homem e de sociedade em comum. Ora, se Arendt rejeita uma tradição e aceita a outra, a pergunta é: o que ela faz com o que elas têm em comum? Ela aceita ou rejeita o modelo do homem burguês?

Arendt: Não creio que o modelo de homem seja o mesmo para as duas tradições. Concordo que o modelo de homem que você descreveu é o do burguês e que este burguês, Deus sabe, é uma realidade.

Mas, se me for possível, quero falar agora sobre o modelo de homem nesta outra tradição. A tradição de Montesquieu, que você mencionou, poderia de fato remontar a Maquiavel, Montaigne e assim por diante. Eles reviraram os arquivos da Antiguidade precisamente para encontrar um tipo diferente de homem, e este tipo de homem não é o burguês, mas o cidadão. Esta distinção entre le citoyen e le bourgeois perdurou, naturalmente, durante todo o século XVIII e conservou-se até 1848, porque se tornou o principal modo de falar e pensar sobre essas coisas durante a Revolução Francesa.

Penso que poderia expressar isto de um modo um pouco diferente. Diria que depois que a monarquia absoluta tornou-se tão absoluta que pôde se emancipar de todos os outros poderes feudais, incluindo o poder da Igreja, adveio uma crise realmente grande. O que ocorreu foi a reemergência da genuína política, como na Antiguidade – assim compreendo as revoluções.

Vejam que retornei à Antiguidade grega e romana apenas em parte porque gosto bastante dela – gosto da Antiguidade grega, mas nunca gostei da Antiguidade romana. Retornei também, de qualquer modo, porque sabia que simplesmente queria ler todos esses livros que essas pessoas tinham lido. E elas leram todos esses livros – como diriam – para encontrar um modelo para este novo domínio político que eles queriam

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criar e que chamaram de república.

O modelo de homem desta república era, até certo ponto, o cidadão da polis ateniense. Afinal ainda temos as palavras daquela época e elas ecoam através dos séculos. Por outro lado, o modelo era a res publica, a coisa pública, dos romanos. A influência dos romanos sobre as mentes desses homens era mais forte, por sua proximidade imediata. Sabemos que Montesquieu não escreveu apenas L’Esprit des lois, mas também sobre la grandeur e la misère de Roma. Todos eles estavam absolutamente fascinados. O que Adams fez? Ele colecionou constituições do mesmo modo como outras pessoas colecionariam selos. Uma grande parte de suas ditas obras reunidas constitui-se apenas de excertos, até certo ponto de pouco interesse.

Eles ensinaram a si próprios uma nova ciência e chamaram-na uma nova ciência. Tocqueville foi o último a ainda falar sobre isso. Ele disse que para esta época moderna precisamos de uma nova ciência. Queria dizer uma nova ciência da política e não a nuova scienza dos séculos anteriores, de Vico. Isso é o que de fato temos em mente. Não creio que resulte algo muito tangível de tudo que pessoas como eu estamos fazendo, mas pretendo antes pensar sobre estas coisas, não apenas no âmbito da Antiguidade, mas sinto a mesma falta da Antiguidade que os grandes revolucionários do século XVIII sentiam.

***

F. M. Barnard: Realmente gostaria de saber que evidência há para dizer que há esta distinção entre interesses e opiniões na visão de democracia dos Pais Fundadores.

Arendt: No momento não posso citar coisa alguma. A distinção é, em primeiro lugar, entre a noção de interesses de grupo, que estão sempre lá, e opiniões, quando tenho de tomar uma decisão. Esta distinção está claramente lá. Temos isso na própria constituição: supunha-se que o legislativo [a Casa dos Representantes] representava mais ou menos

os interesses dos habitantes; o Senado, pelo contrário, presumivelmente filtrava esses interesses e chegava a algum tipo de opiniões imparciais que se relacionariam com o bem-comum.

Esta distinção entre as duas instituições é certamente muito antiga. Resulta do romano potestas in populo, auctoritas in senatu. Em Roma, o Senado era destituído de poder. O senador romano estava lá apenas para dar sua opinião, mas esta opinião tinha uma espécie de autoridade, na medida em que não era inspirada pela potestas da plebe. Eles eram chamados maiores. Nesse sentido, estavam representando a constituição de Roma, religando-a ou conectando-a com o passado de Roma. Assim, o Senado tinha na República Romana uma função completamente diferente daquela da plebe.

Isto subjaz ao pensamento dos Pais Fundadores, que conheciam isto muito bem. Esta é também uma das razões pelas quais estavam extremamente interessados em ter um Senado – muito mais interessados do que qualquer pensador europeu jamais esteve. Sentiam que precisavam filtrar as opiniões imediatamente provenientes das partes interessadas, mediante um grupo de pessoas que está um ou dois passos afastado desta influência direta.

***

Deixe-me falar agora por um momento sobre a relação entre violência e poder. Quando falo sobre o poder, o símile que emprego, por assim dizer, é “todos contra um”. Ou seja, o extremo do poder é todos contra um. Desse modo, nenhuma violência é necessária para dominar alguém. O extremo da violência é o oposto: um contra todos. É o caso do sujeito com a metralhadora que mantém a todos em um estado de perfeita obediência, de tal modo que não são mais necessárias opinião e persuasão alguma.

Não há dúvida de que a violência sempre pode destruir o poder: se tiverem um mínimo de pessoas que estejam dispostas a executar suas

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ordens, a violência sempre pode reduzir o poder à total impotência. Temos visto isso muitas vezes.

O que a violência nunca pode fazer é gerar poder. Isto é, uma vez que a violência tenha destruído a estrutura de poder, nenhuma nova estrutura de poder surge. Isto é o que Montesquieu queria dizer quando falou que a tirania é a única forma de governo que traz consigo o germe da sua própria destruição. Após todos serem privados de poder, por meio da tirania, não há mais qualquer possibilidade de surgir uma nova estrutura de poder que sirva como uma base suficiente para a tirania continuar – a menos, é claro, que a forma de governo seja mudada por inteiro.

Se considerarmos o poder sem qualquer violência, do ponto de vista subjetivo de ser forçado, então a situação de todos contra um é provavelmente psicologicamente mais forte que a outra situação de um contra todos. Com efeito, na situação em que alguém coloca uma faca em minha garganta e diz “O dinheiro, senão te mato”, é claro que obedeço imediatamente. Mas no que concerne ao meu poder, permaneço como estava antes, porque enquanto obedeço, eu não concordo. Se tivermos, todavia, a situação de todos contra um, ela é tão opressora que você de fato pode atingir o indivíduo. Ele não pode mais manter sua posição, ainda que não se deixe subjugar pela violência. Assim, a menos que seja limitado por leis, este seria o governo ilimitado da maioria.

Os Pais Fundadores, como sabemos, temiam o governo da maioria – e de modo algum eram defensores da democracia pura. Descobriram então esse poder que pode ser inspecionado apenas por meio de uma coisa, que é poder: o contrapoder. O equilíbrio do poder inspecionando o poder é uma intuição de Montesquieu que os redatores da Constituição tinham bastante em mente.

PenSamento Político Sem um corrimão

Hans Morganthau: O que é você? É uma conservadora? Uma liberal? Qual sua posição dentro das possibilidades contemporâneas?

Arendt: Não sei. Realmente não sei e nunca soube. Suponho que nunca tive uma posição como essa. Você sabe que a esquerda pensa que sou conservadora e os conservadores algumas vezes pensam que sou de esquerda, uma dissidente ou Deus sabe o quê. Devo dizer que não me importo. Não penso que as verdadeiras questões deste século recebam qualquer tipo de iluminação por esse tipo de coisa.

Não pertenço a grupo algum. Você sabe que o único grupo a que certa vez pertenci foi o dos sionistas. Isto se deu apenas por causa de Hitler, é claro, e foi de 1933 a 1943. Depois disto me desvinculei. A única possibilidade de defender-se enquanto um judeu e não enquanto um ser humano – o que eu penso ter sido um grande erro, pois se você é atacado enquanto um judeu, tem de se defender enquanto um judeu. Não se pode dizer: “Desculpe-me, não sou um judeu, sou um ser humano”. Isto é tolo, e eu estava rodeada por esse tipo de tolice. Não havia outra possibilidade, por isto ingressei na política judaica – não exatamente na política: ingressei na assistência social e estive de algum modo também ligada à política.

Nunca foi uma socialista. Nunca fui uma comunista. Venho de um contexto socialista. Meus pais eram socialistas, mas eu mesma nunca fui. Nunca quis algo desse tipo, de modo que não posso responder a questão.

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Nunca fui uma liberal. Quando disse o que não fui, esqueci [de mencionar isso]. Nunca acreditei no liberalismo. Quando cheguei a este país, escrevi em meu inglês muito vacilante um artigo sobre Kafka, que eles inglesaram para a Partisan Review. Quando consegui falar com eles sobre o “inglesamento”, li este artigo e lá, dentre todas as coisas, aparecia a palavra “progresso”! Eu disse: “O que você quer dizer com isto? Nunca usei essa palavra”, etc. Então um dos editores se dirigiu ao outro na sala contígua e deixou-me lá. Ouvi por acaso ele dizer, de fato em um tom de desespero: “Ela não acredita nem mesmo no progresso!”.

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Hannah Arendt

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Mary McCarthy: Onde você se situa frente ao capitalismo?

Arendt: Não compartilho do grande entusiasmo de Marx com relação ao capitalismo. Se você ler as primeiras páginas do Manifesto Comunista, perceberá que é o maior louvor ao capitalismo que você jamais viu, e isto na época em que o capitalismo já estava sob o mais agudo ataque, especialmente da chamada direita. Os conservadores foram os primeiros a apresentar essas várias críticas, que mais tarde foram assumidas pela esquerda e, é claro, também por Marx.

Em um sentido Marx estava inteiramente correto: o desenvolvimento lógico do capitalismo é o socialismo. A razão é muito simples: o capitalismo começou com a expropriação e esta é a lei que desde então determinou [o seu desenvolvimento], enquanto o socialismo conduz a expropriação a seu fim lógico e está, por conseguinte, em uma via sem quaisquer influências moderadoras. O que hoje é chamado de socialismo humano significa apenas que esta tendência cruel que começou com o capitalismo e seguiu adiante com o socialismo encontra-se de algum modo temperada pela lei.

Todo o moderno processo de produção é efetivamente um processo de expropriação gradual. De modo que eu sempre me recusaria a fazer uma distinção entre os dois. Para mim é, de fato, o mesmo movimento, e nesse sentido Karl Marx estava inteiramente correto. Ele é o único que realmente se atreveu a considerar este novo processo de produção do início ao fim – processo este que se arrastou na Europa no século XVII e prosseguiu nos séculos XVIII e XIX. Assim, Marx estava inteiramente correto – só que o resultado final do processo é o inferno e não o paraíso.

O que Marx não compreendeu foi o que realmente é o poder. Ele não compreendeu esta coisa estritamente política. Mas viu uma coisa, a saber, que o capitalismo, deixado a seus próprios mecanismos, tem

uma tendência a destruir todas as leis que estiverem no caminho de seu progresso cruel.

Além disso, a crueldade do capitalismo nos séculos XVII, XVIII e XIX foi certamente esmagadora. Isto temos de ter em mente quando lemos o grande louvor de Marx ao capitalismo. Ele estava rodeado pelas mais horríveis consequências deste sistema e, todavia, pensou que isto era uma grande coisa. É claro que ele era também um hegeliano e acreditava no poder do negativo. Bem, eu não acredito no poder do negativo, da negação, se representa o infortúnio terrível de outras pessoas.

Então você me pergunta onde estou: não estou em parte alguma. De fato não estou na atual corrente dominante do pensamento político atual ou em qualquer outra. Entretanto, não porque queira ser tão original – acontece que, por alguma razão, eu não me encaixo. Este negócio entre capitalismo e socialismo, por exemplo, parece-me a coisa mais óbvia no mundo, mas mesmo assim ninguém compreende o que estou falando, por assim dizer.

Não quero dizer que sou incompreendida. Pelo contrário, sou compreendida muito bem. Mas se você aparece com uma coisa como esta e retira das pessoas seus corrimões – suas seguras linhas de orientação (então falam sobre a ruptura da tradição, mas não percebem o que isso significa! O que isso significa é que realmente estamos em uma fria!), então é claro que a reação é a de que você é simplesmente ignorado – e este tem sido muito frequentemente o meu caso. Não me importo com isso. Algumas vezes você é atacado, mas habitualmente é ignorado, porque mesmo as polêmicas proveitosas não podem ser travadas em meus termos. Você pode dizer que isto é realmente um defeito meu.

Você disse muito amavelmente que quero compartilhar. Sim, é verdade, quero compartilhar, não quero doutrinar. Isto é realmente verdade. Não quero que alguém aceite tudo quanto eu venha [a pensar]. Mas, por outro lado, acho que essa espécie de desconsideração pela literatura principal em minha própria área é algo, penso eu, que poderia ser usado

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contra mim em algum momento. Além disso, você sabe que não reflito muito sobre o que estou fazendo. Acho uma perda de tempo. Em todo caso, nunca se conhece a si próprio, de modo que isso é completamente inútil. Mas acho que é mesmo uma falha e não apenas uma lacuna. Isto cortaria muito mais profundamente se alguém dissesse: “Por que você não lê os livros de seus colegas?”, ou “Porque faz isso tão raramente?”.

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Há esta outra coisa que Draenos apresentou. Você disse “pensamento sem fundamento”. Tenho uma metáfora que não é tão cruel e que nunca publiquei, mas conservei para mim mesma. Eu o denomino pensamento sem corrimão. Em alemão, Denken ohne Geländer. Ou seja, enquanto você sobe e desce as escadas, sempre se apoia no corrimão para que não caia no chão. Acontece que perdemos este corrimão. Este é o modo como digo isto a mim mesma, e isto é o que de fato tento fazer.

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Este assunto de que a tradição está rompida e que o fio de Ariadne se perdeu. Bem, isto não é tão novo quanto eu fiz parecer ser. Afinal, foi Tocqueville quem disse que “o passado cessou de lançar sua luz sobre o futuro e a mente do homem vagueia nas trevas”. Esta é a situação desde a metade do século XIX e, vista da perspectiva de Tocqueville, é completamente verdade. Sempre pensei que se tem de começar a pensar como se ninguém o tivesse feito antes e a partir de então começar a aprender com os demais.

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Mary McCarthy: Hannah Arendt cria em sua obra um espaço no qual se pode entrar com a magnífica sensação de passar por um arco rumo a uma área liberada que é, em grande medida, ocupada por definições. A distinguo está muito próxima das raízes do pensamento de Hannah Arendt: “Distingo isto daquilo. Distingo trabalho de obra, fama de reputação”,

etc. Este é efetivamente um hábito medieval de pensamento.

Arendt: É aristotélico!

Mary McCarthy: Este hábito de estabelecer distinções não é popular no mundo moderno, em que há uma espécie de obscuridade verbal rondando a maior parte dos discursos. Se Hannah Arendt provoca hostilidade, uma das razões é que a possibilidade de fazer distinções não é acessível ao leitor comum. Mas para retornar às próprias distinções – diria que cada uma, dentro desta área liberada, dentro deste espaço livre –, cada distinção era como uma pequena casa. Digamos que a fama vive em sua pequena casa, com sua arquitetura, e que a reputação vive em outra, de modo que todo este espaço criado por ela está efetivamente mobiliado.

Hans Morganthau: Parece um projeto habitacional de baixa renda.

Arendt: Sem qualquer subsídio federal!

Mary McCarthy: Penso que a possibilidade de revigoramento e oxigenação combina-se com certo sentido de estabilidade e segurança. E isso se dá através da elaboração – do, poderíamos dizer, maravilhoso desdobramento de definições. Cada uma de suas obras é um desdobramento de definições que certamente tratam do assunto e o iluminam cada vez mais, na medida em que uma distinção é desdobrada (após a outra). Mas há também esta estabilidade, na qual a fama vive em sua mansão, ou em sua pequena casa, o trabalho vive na sua, a obra em outra, e o político é, em sua casa, rigorosamente separado do social.

Arendt: É completamente correto o que você diz sobre distinções. Sempre começo qualquer coisa – não gosto de saber muito bem o que estou fazendo – sempre começo qualquer coisa dizendo: “A e B não são iguais”. Isto provém precisamente de Aristóteles, e, para você, de Tomás de Aquino, que também fez o mesmo.

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Gostaria de dizer que tudo que fiz e tudo que escrevi é experimental. Penso que todo pensamento, no modo como tenho me permitido me envolver com ele, talvez um pouco além da conta, de modo extravagante, tem a característica de ser experimental. O que era tão grandioso nessas conversas com Jaspers é que se podia manter por semanas tal esforço – que era apenas experimental, que não almejava quaisquer resultados.

Podia nos acontecer que eu chegasse – permaneceria lá por poucas semanas – e no primeiro dia topássemos com algum assunto. Um dos que eu me lembro foi ein gute Vers ist ein gute Vers, que eu anunciei. Uma boa linha de poesia é uma boa linha de poesia, querendo dizer com isso que tinha uma força própria de convencimento, algo em que ele não acreditava inteiramente. A questão para mim era convencê-lo de que Brecht era um grande poeta. Esta única linha foi suficiente para nós por duas semanas, em duas sessões por dia. Retornamos a esse assunto repetidas vezes.

A discordância nunca foi totalmente solucionada. Mas o pensamento mesmo sobre tal coisa ficou imensamente mais rico por meio dessa troca “sem reservas”, como ele designou – quer dizer, em que nada fica escondido. Você não pensa: “Ah, eu não deveria ter dito isso, pois irá magoá-lo”. A confiança na amizade é tão grande que você sabe que nada pode magoar.